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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança e(m) Política – Maio/2013
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RELAÇÕES ENTRE CORPO E PODER A PARTIR DE UMA VISÃO CRÍTICA DO BALÉ CLÁSSICO
FLÁVIA SCHEYE SPIRÓPULOS (USP)
RESUMO Pretendemos investigar relações entre corpo e poder a partir de uma visão crítica do balé clássico que se estruturou como modelo da formação em dança em nosso país. A bailarina Zélia Monteiro propõe outras relações, deslocando o foco do treinamento dos passos que atuam como modelo na técnica clássica para o processo que ocorre no corpo durante o movimento. Katz & Greiner (2001, 2003, 2004, 2005, 2007, 2009, 2010), Vieira (2006, 2008), Teixeira (2012), Foucault (1979, 1987) e Agamben (1993, 1995) são os autores que dialogam com a pesquisa, explicitando que os ambientes estético, pedagógico, social e político se imbricam por meio de toda e qualquer ação, fazendo-se necessário deter o olhar sobre essa rede complexa quando tratamos de dança. PALAVRAS-CHAVE: Dança, Balé Clássico, Zélia Monteiro, Corpo, Poder.
RELATIONS BETWEEN BODY AND POWER FROM A CRITICAL VIEW OF CLASSICAL BALLET
ABSTRACT We intend to investigate the relationship between body and power from a critical view of classical ballet that was structured as a model of dance training in our country. The ballerina Zelia Monteiro proposes other relationships, shifting the focus of the training steps that act as a model in the classic technique for the process that occurs in the body during movement. Katz & Greiner (2001, 2003, 2004, 2005, 2007, 2009, 2010), Vieira (2006, 2008), Teixeira (2012), Foucault (1979, 1987) and Agamben (1993, 1995) are the authors that dialogue with research, explaining that the environments aesthetic, educational, social and political intertwine through any and all actions, making it necessary to hold the look on that network when dealing with dance. KEYWORDS: Dance, Classical Ballet, Zélia Monteiro, Body, Power.
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Introdução
Em sua emergência como uma dança institucionalizada, o Balé Clássico
se consolidou de forma diretamente relacionada ao discurso de poder de seu
entorno que, em seu contexto de origem, dizia respeito ao governo do rei Luís
XIV.
Apresentando grande eficiência adaptativa, o Balé evoluiu e se
transformou ao longo do tempo; também se expandiu como forma de
conhecimento, ganhando projeção e características diversas entre muitos
lugares no mundo.
Então, quando olhamos para a produção desta técnica nos dias de hoje,
é importante ressaltar que existem inúmeras abordagens diferentes sobre seu
ensino e prática.
Este artigo é parte da pesquisa de mestrado, ainda em andamento,
realizada sob a orientação da profa. Dra. Maria Helena Franco de Araújo
Bastos no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com o apoio da CAPES,
com o objetivo de investigar e discorrer sobre o trabalho da artista Zélia
Monteiro.
Partindo do entendimento que corpo só existe e sobrevive em um
determinado ambiente, sendo sua sobrevivência dependente desta relação
(KATZ & GREINER, 1998), este texto pretende exaltar o fato de que toda forma
de saber delimita, necessariamente, um campo de poder (FOUCAULT, 1979)
e, portanto, quando pensamos em dança, a relação estabelecida entre o corpo
e suas ações no mundo implicam em atitudes e posturas que extrapolam o
âmbito artístico, repercutindo diretamente na esfera política. Particularmente,
quando falamos sobre ensino em dança, devemos considerar que o aluno está
entrando em contato com toda esta complexa rede de conhecimento, e pensar
o que e de que forma lhe será ensinado.
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Zélia Monteiro propõe a prática da técnica clássica por meio de uma
relação sensível com o corpo de cada indivíduo. Suas aulas de balé abordam
todo o vocabulário específico desta técnica, apoiando-os sobre o conhecimento
da estrutura e funcionamento do corpo. As relações com o outro e com o
espaço emergem desse ambiente.
Acredita-se que sua proposta proporciona uma prática em dança
baseada na autonomia do indivíduo em relação ao seu próprio corpo e que
esse tipo de abordagem é bastante interessante para se pensar a formação em
dança em nosso país.
Institucionalização do Balé Clássico e alguns de seus desdobramentos
O balé clássico nasceu nos salões de baile das cortes renascentistas
européias, ganhando força e projeção na França, durante o reinado Luís XIV
de 1643 a 1715, quando passou a ser organizado, sistematizado e apresentado
como espetáculo público.
Luís XIV(1638-1715), o Rei Sol, considerado o maior rei do período
absolutista, foi capaz de construir uma imagem pública cobiçada em torno da
sua atuação na corte de Versailles (BURKE, 1994). Como exímio bailarino que
era, Luís XIV se utilizou da dança como recurso de governo, representando sua
atuação na corte. “O balé de corte é uma forma teatral de organizar, em
símbolos, as relações sociais” (MONTEIRO, 2006: 37), sendo “o próprio rei o
integrante mais importante da trupe” (TEIXEIRA, 2012: 41) e, escolhendo os
dançarinos que o acompanhariam em tal empreitada, a pirâmide hierárquica do
governo era explicitada nesses espetáculos. Saber dançar, portanto, podia
possibilitar maior proximidade com o rei. Caracterizando aquele que estaria, ou
não, em destaque, o balé se tornava um meio para a ascensão social: um
instrumento de poder.
De acordo com o filósofo Michel Foucault (1979), todo campo de saber
delimita também um campo de poder e vice-versa − as duas ações estão
implicadas mutuamente. O autor define que nos séculos XVII e XVIII ocorre na
Europa um fenômeno que dá à luz uma “nova mecânica de poder” que “apoia-
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se mais nos corpos e seus atos do que nas terras e seus produtos”
(FOUCAULT, 1979: 187, 188). Este tipo de poder que se instaurava
diferenciava-se dos outros, pois, uma vez que seu dispositivo se localizava no
corpo, não era mais necessário um esquema de vigia e cobranças; o próprio
sujeito, regido por interesses ou repressões políticas e sociais, passava a
regular suas ações de acordo com as regras vigentes. Pode-se dizer que o
balé, no contexto em que se organiza como uma técnica de dança estruturada,
foi um desses dispositivos de poder ligados diretamente aos interesses do
governo monárquico. Era, portanto, necessário criar um “selo oficial”
(TEIXEIRA, 2012), de conhecimento, que justificasse o fato de que somente
um determinado grupo de pessoas teria acesso ao saber dessa dança, além de
regulamentar os modos pelos quais se dariam tal acesso.
Outra parte da burocratização das artes foi a montagem do sistema de academias, o equivalente nas artes do sistema de colégios que estava se desenvolvendo sob governos europeus no século XVII. Colbert não se limitou a fundar academias; regulamentou o comportamento de seus membros. Os da Academie Française, por exemplo, receberam horários fixos de trabalho, juntamente com um relógio de pêndulo, para garantir que seu sentido de tempo seria tão preciso quanto desejava o ministro (BURKE apud TEIXEIRA, 2012: 38).
A ação de Colbert, ministro de Luís XIV, garantia o funcionamento da
academia a partir de leis que relacionavam diretamente o tempo com ações.
Em Vigiar e Punir, Foucault (1987) apresenta o conceito de disciplina
que diz respeito, justamente, ao modo de regulamentar uma ação, feita pelo
corpo humano, relacionando-a com o tempo e espaço, de forma que o modo
como é feita seja garantido por essas regras. De acordo com este conceito, o
relógio de ponto da academia de dança francesa disciplinava o comportamento
dos funcionários, dizendo o que fazer, quando fazer e por quanto tempo.
A primeira academia de dança oficial foi inaugurada na França, em
1661, sob o nome de L'Académie Royale de Danse (“Academia Real de
Dança”) com o objetivo de dar legitimidade à dança produzida nesse contexto.
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Privilegiando o bailarino com formação técnica, a Academia Real de Dança garantiria seu posicionamento artístico perante as outras artes da corte, mas, em contrapartida, o vínculo se associava diretamente aos desígnios do rei. Era para ele que os bailarinos dançavam, eram eles que evidenciavam “Sua Majestade” e assim, a autonomia dos artistas continuava a mercê de autoridades (TEIXEIRA, 2012: 41).
Mesmo havendo a separação entre bailarinos profissionais e não
profissionais, e tendo o balé se transferido dos salões de baile para o palco,
“encontrava-se preservada a sua razão política de perpetuar, como algo
incontestável, a relação de dominância da realeza sobre a sociedade”
(HERCOLES, 2005: 50). Jean-Georges Noverre (1727-1810) propõe uma
mudança neste sentindo, dando ênfase à interpretação dos bailarinos em
coreografias dramáticas, nos seus Balés de Ação. Contudo, suas contribuições
estéticas só foram reconhecidas num momento posterior; em sua época,
Noverre não recebeu o apoio que precisava para propagar suas ideias
revolucionárias, pois, segundo a pesquisadora Rosa Maria Hercoles (2005),
elas vinham com a força que poderia desestabilizar a continuidade política da
realeza.
No século XIX, depois da Revolução Francesa de 1830, a Ópera de
Paris se desvincula do poder da corte passando a refletir o triunfo da
burguesia em suas produções. Durante esse período, a escola acadêmica
francesa se expande por toda Europa e Rússia.
A Revolução Francesa deslocou para as províncias muitos dos dançarinos e dos mestres de balé, a dispersão destes artistas foi extremamente benéfica para a arte do balé. Londres passou a ser um polo para artistas de todas as Escolas, destacando-se a participação de Charles Didelot (1767-1836), aluno de Jean Dauberval e de Jean Georges Noverre, que atuou em Londres na temporada de 1788-9. Suas experiências o levaram a pavimentar o caminho para o surgimento do balé de elevação, um dos traços marcantes do balé romântico, e para a fundação de uma escola distinta de balé clássico na Rússia (HERCOLES apud LAWSON, 2005: 90).
A figura central desse período é Marius Petipa (1818-1910), que, no ano
de 1847, é contratado como primeiro bailarino de São Petersburgo, onde,
depois, seguiria como o mestre de balé e coreógrafo. Petipa atendeu o desejo
da sociedade russa da época por obras mais fáceis, com execução brilhante,
em torno de estrelas femininas: “Petipa adotará o hábito de rechear seus balés
com episódios que nada têm a ver com o assunto, mas que são pitorescos,
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sem perceber que transformava o balé de ação de Noverre numa super-revista
dançada, do tipo grande espetáculo” (BOURCIER, 2001: 217).
A partir de 1887, a escola italiana irrompe na Rússia, disseminando um
modelo de balé mais virtuoso e formal. Sua figura central é Enrico Cecchetti
(1850-1927), professor e bailarino, que, em 1902, se juntou a Serge Diaghlev
(1872-1929), formando seus principais bailarinos.
Diaghlev foi um empresário e importador da dança. Conseguiu reunir
nos seus Balés Russos (1909-1929), criado em 1908, grandes nomes não só
da dança (Fokine, Nijinsky, Massine, Nijinska, Balanchine, entre outros) mas
também da música (Stravinsky, Satie, entre outros) e artes plásticas (Picasso,
Matisse, entre outros). A companhia se configura com caráter itinerante, o que
exige a produção de balés mais curtos, com cenários mais simples,
significando uma grande transformação no âmbito estético do balé. Entre seus
coreógrafos estava Fokine, interessado em uma estética que discutisse a
expressividade ligada ao corpo que dançava, e não nos adereços e libretos
necessários para contar as histórias dos balés narrativos. Segundo Hercoles,
coube a esse coreógrafo a ruptura com a estética vigente até então:
Creio que tenha chegado à conclusão que a dança, assim como a poesia, não é o meio mais adequado para se contar histórias, embora não explicite esta ideia em seu discurso. O Sr. passou a se interessar em narrar acontecimentos em um único ato, inaugurando um novo formato, onde seu desejo de comunicar as emoções e os sentimentos, provocados pelo ato de dançar, podia se realizar. (...) Coube ao Sr. a reforma não só das estruturas coreográficas, mas também, de todo o pensamento romântico em dança. Seu rompimento com o excessivo formalismo acadêmico possibilitou o surgimento do balé moderno. Historicamente, lhe coube esta transição. Em outras palavras, estava rompido o contrato do corpo como legenda de algo que se passa além dos limites de sua carne (HERCOLES, 2005: 82, 84).
A partir deste breve histórico, pretende-se chamar a atenção para a
evolução dos âmbitos político, estético e pedagógico, que acontece sempre de
forma concomitante, pois são imbricados um no outro. A autonomia que os
sistemas desenvolvem para permanecer no tempo reúne fenômenos relativos
às diferentes instâncias que se cruzam, propagando sua existência relativa ao
ambiente com que troca suas informações.
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O Modelo Importado na Formação em Dança no Brasil e o Discurso de
Poder que Ele Carrega
Em sua tese de doutorado, Ana Teixeira (2012) investiga as instâncias
de dança públicas brasileiras e afirma que “mantém-se uma relação estreita,
nos dias de hoje, com o pensamento produzido no Brasil colônia quando se
refere à importação de modelos artísticos no contexto da dança oficial”
(TEIXEIRA, 2012: 30). A autora defende que nossas raízes coloniais, mais o
quadro político do local onde essas companhias e academias são geridas,
atravessam os corpos que dançam e atuam nesses lugares, comprometendo o
entendimento de dança que ali se produz. Teixeira nos mostra que essa
tradição vem permeando toda a institucionalização da dança brasileira, desde a
chegada da coroa portuguesa no Rio de Janeiro, encontrando reverberações
até os dias de hoje.
Quando a corte portuguesa desembarca no Brasil, em meados de 1800,
a cidade de Rio de Janeiro passa por uma revolução cultural. Além dos hábitos
e costumes europeus que passam a ser incorporados, incluindo um
determinado padrão artístico, os portugueses investiram também em
construções de teatros e academias, todas de acordo com o modelo europeu.
A construção de um cenário adequado a tal padrão exigia, num primeiro
momento, a atuação dos próprios profissionais de dança com naturalidade
européia. Muitos imigrantes fixaram residência no Brasil a fim de educar o povo
brasileiro no seu gosto pelas artes.
Um século depois, em 1927, ainda de acordo com esta ideia, é criada a
primeira escola oficial brasileira de formação em dança. A russa Maria Olenewa
(1896-1965) deu início à Escola de Bailados do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro. Em 1982, a escola adotou o nome de sua mentora e passou a se
chamar Escola Estadual de Dança Maria Olenewa.
Olenewa iniciou seus estudos em Moscou e, em 1916, foi para Paris
onde começou a dançar com a companhia de Ana Pavlova. Em 1918 conhece
o Brasil em tourneé com essa companhia e, mais tarde, retorna, em 1921, com
Léonide Massine, mudando-se para cá, definitivamente, em 1926. Um ano
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depois fundaria a escola no Rio de Janeiro, na qual permanece como diretora
até 1942, quando é afastada do cargo e muda-se para São Paulo, assumindo a
direção da Escola Municipal de Bailado, que havia sido fundada em 1940,
também com a direção artística de um bailarino russo, Vaslav Veltchek (1897-
1967). Em 2011, sob a direção de Susana Yamauchi, essa escola pública
adota o nome de Escola de Dança de São Paulo e inclui em seu programa um
segundo eixo de formação, com mais ênfase em técnicas de dança moderna e
contemporânea.
É curioso notar que, desde sua primeira visita ao Brasil, pouco tempo se
passou para que Olenewa se transferisse para o país. É possível imaginar que
havia um cenário convidativo para bailarinas(os) que, com conhecimento
especifico em balé clássico, construído no exterior, estivessem interessados
em abrir mão de sua carreira e terra natal para virem se instalar nas grandes
cidades do país a fim de atuar como formadores desta técnica. Apesar disso, o
ambiente que encontravam aqui não era apoiado pelo governo e os artistas
precisavam dispor de seus próprios recursos para manter suas investidas.
Olenewa, por exemplo, teve que se desfazer de suas tapeçarias e joias para
manter a escola (ACERVO KLAUSS VIANNA).
Hoje, 86 anos depois de sua fundação, a escola ainda é um dos polos
mais significativos no ensino da técnica clássica, porém, quando se acessa o
site oficial da escola, pouco se sabe sobre como o Balé Clássico é ensinado
atualmente em seu programa:
A Escola oferece curso profissionalizante com aulas de Ballet clássico, pas de deux, repertório clássico, danças características, dança espanhola, ballet moderno, composição e improvisação, história da arte, história da dança, terminologia da dança clássica, educação musical, comportamento e atitude profissional. E, ao longo de sua existência, vem sendo responsável pela formação dos mais importantes nomes brasileiros que atuam no ballet, seja como bailarinos, coreógrafos, maitres no Brasil e no exterior (THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO).
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Zélia Monteiro: Uma Proposta para o Ensino do Balé
Zélia Monteiro atua como artista, criadora e professora de dança,
principalmente em São Paulo. Teve formação em balé clássico, com Maria
Melô (1910-1993), italiana que se radicou no Brasil na década de 1970, e dava
aulas de balé baseadas na escola de seu professor, o italiano Enrico Cecchetti
(1850-1928). Zélia foi sua aluna e assistente, de 1977 a 1985. Depois trabalhou
durante 9 anos, de 1984 a 1992, ao lado de Klauss Vianna (1928-1992),
compartilhando seu interesse pela improvisação. Entre os anos de 1993 a 1997
atuou na França ao lado de Marie Madelaine Beziérs (Coordenação Motora),
Ivonne Berge (Improvisação para Crianças), Peter Goss e Mathilde Monnier
(Dança Contemporânea), entre outros.
Os cruzamentos dessas técnicas de dança no corpo da artista criaram
um entendimento que diz respeito ao processo do movimento no corpo e que
reverberam nas instruções que ela dispara nas aulas de balé que ministra,
assim como nos procedimentos que organizam suas criações.
O trabalho de Zélia compreende um corpo que se apresenta da forma
como se organiza. Quando realiza passos e sequências pré-existentes (como
na técnica clássica), ou quando improvisa (a pesquisa cênica da bailarina se
utiliza da improvisação como linguagem), nós vemos aquele corpo pensando
enquanto dança, isto é, atento às ignições de movimento que acontecem
naquele determinado momento.
Tal entendimento é coerente com a descrição que Helena Katz e
Christine Greiner propõem na Teoria Corpomídia (2001, 2003, 2004, 2005,
2007, 2009, 2010), que compreende o corpo como resultado de uma
determinada coleção de informações que se apresentam em materialidade um
determinado tempo/espaço. Essa coleção é resultado de trocas que o corpo
estabelece em relação com seu ambiente imediato. Corpo e ambiente são,
então, instâncias codependentes, que existem e se transformam sempre em
relação. A ação de um desses sistemas necessariamente implica no outro.
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Portanto, quando consideramos o Balé Clássico como um sistema em
relação com seu entorno, o modo como é executado, ou seja, como se realiza
esta determinada ação no mundo, implica em responsabilidades por suas
reverberações. Nesse sentido, quais ideias estamos propagando quando
ensinamos essa técnica de dança do modo como fazemos?
Em sua tese de doutorado, Teixeira nos traz o decreto municipal de São
Paulo n. 17.620, de 29 de outubro de 1981, e o estatuto do servidor público do
município de São Paulo, Lei n. 8.989, de 29 de outubro de 1979, vigentes até
hoje, que nos mostram os deveres dos bailarinos do Balé da Cidade de São
Paulo, e conclui: “Como se vê, a capacidade e a aptidão de um bailarino
funcionário público do município de São Paulo baseiam-se em cinco vocábulos:
assiduidade, disciplina, responsabilidade, capacidade de iniciativa e
produtividade” (TEIXEIRA, 2012: 71). Os vocábulos descritos por Teixeira
deveriam garantir que os bailarinos dessa companhia realizem sua função, que
é dançar.
A disciplina, ou método disciplinar, foi durante muito tempo vinculada ao
ensino do balé clássico. Como apresentado acima, Foucault (1987) define este
dispositivo e o vincula a um determinado contexto, no qual coabitava um
determinado modo de lidar com a dança. Desconsiderar essas informações
pode provocar entendimentos equivocados que atribuem à técnica clássica a
qualidade de ser, por si, disciplinar.
Alheia a esta ideia − que repercute na exigência de muitos professores
acerca da reprodução de formas ideias que cada passo ou posição de pés e
braços devem obedecer no balé −, Zélia afirma que o foco está justamente em
perceber o estado de atenção e de disponibilidade do corpo enquanto a dança
acontece. Seu interesse é pelo processo do movimento, suas instruções
consistem mais em como fazer, do que no que fazer e, deste modo, os passos
e as posições emergem como resultado do modo como o corpo se organiza.
O balé pode ser assim apresentado ao aluno como uma maneira de sentir, perceber e conhecer seu corpo e seu funcionamento, para que ele possa trabalhá-lo tecnicamente com base nesse conhecimento. Não precisa ser associado, como em geral o é, a um treinamento
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rígido imposto ao corpo, e, sim, introduzido, respeitando o processo individual e a constituição física de cada um. Visto por este enfoque, o balé é capaz de reorganizar padrões posturais desequilibrados, pois trabalha com alinhamento ósseo muscular, alongamento e fortalecimento de musculaturas fracas, adequando postura e coordenação […]. O trabalho de consciência aplicado aos exercícios de barra e centro traz para o aluno a noção de que o corpo que dança balé é o mesmo que vive e apreende o mundo e pode ser trabalhado dentro e fora da sala de aula (MONTEIRO, 2010: 95,96).
Assim, compreende-se a técnica não como uma ferramenta ou algo de
que se dispõe a priori ou independente da dança, mas como a própria ação
realizada de uma determinada maneira, que, ao se repetir, vai se refinando e
especializando. A técnica seria, dessa maneira, uma competência do corpo.
Conhecimentos de anatomia e cinesiologia fundamentam o trabalho pedagógico, onde a técnica é introduzida como uma maneira de sentir e conhecer o corpo e seu funcionamento. O trabalho, a partir desse conhecimento, promove um trânsito coerente entre técnica e percepção (sensível) da organização de seus movimentos. Os exercícios da barra são explorados de modo que o aluno consiga encontrar o alinhamento ósseo, o uso das alavancas e das musculaturas corretas para a realização dos movimentos e sequencias que serão feitos no centro e nas diagonais. Aos poucos, o aluno adquire a postura e a coordenação exigidas pela técnica do balé (CENTRO DE ESTUDOS E ENSINO DE BALÉ).
Esta abordagem dá importância à diferença de como cada pessoa se
apropria da técnica e transforma o conceito de repetição necessária para o
desenvolvimento da habilidade. Cada vez que se repete um plié, é realizado
um plié diferente, uma vez que o interesse ao realizar este passo está em
como o corpo se organiza a fim de tentar reproduzir este modelo ideal. Fica
claro que cada corpo se move de uma determinada forma apesar de se basear
em um modelo comum.
No trabalho corporal, a aprendizagem, muitas vezes, é compreendida como treinamento para excelência na repetição de movimentos codificados, na reprodução de um vocabulário padronizado. Mesmo nesse caso, pode-se notar a maneira como cada corpo se organiza para cumprir a tarefa de aprender e reproduzir o movimento aprendido. A diferença individual aparece (NEVES, 2008:71).
Para Katz, a questão da repetição também é entendida como um
processo em constante transformação:
Um processo de repetição não se dá sem minúsculas diferenças a cada repetição. E a repetição com essas minúsculas diferenças, a
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certa altura, produz uma diferença que se nota. As várias qualidades de informação que um corpo produz e abriga não são compartimentadas e estanques, mas se comunicam e se relacionam. Assim, um processo de repetição também está modificando todo o resto, que não está sendo especificamente repetido (KATZ, 2005:39).
Portanto, no trabalho de Zélia Monteiro, a consciência do corpo em
movimento perpassa e modifica o entendimento do treinamento de balé,
permitindo uma discussão acerca de seus modos de ensino, considerando uma
abordagem preocupada com a organização do corpo em ação. A prática que a
artista propõe aproxima a dança clássica do estado de atenção necessário às
práticas corporais investigativas, fazendo com que o treinamento repetitivo com
fim em si mesmo perca o sentido (pois é feito sem sentir).
Como ensinar a dança? Bom, eu mudei muito minha maneira de ensinar dança depois que conheci o Klauss, trabalhei com ele. Hoje em dia, no trabalho que faço, procuro trazer um pouco o aluno para o corpo dele, ou trazer o corpo do aluno para ele mesmo. Aproximar um pouco o corpo da pessoa. Considero, assim, uma didática aberta, porque... não é que eu ensine alguma coisa, mas é um trabalho de sensibilizar, de procurar, ir sugerindo. Você vai, através de algumas diretrizes, sugerindo, para que ele comece a perceber o corpo, como esse corpo se move, como ele sente o corpo. Essa ruptura que falei de antes e depois do Klauss foi um pouco relacionada com o modelo no ensino da dança. Você não partir de um modelo, de um lugar onde você tem que chegar, mas partir da sua sensação, do seu corpo, seu peso, suas articulações, do que é tensão, do que é relaxamento, do que é o espaço interno, espaço articular, e de como esse corpo vai se relacionar com o espaço, com as outras pessoas, tudo isso vai sendo trabalhado, quer dizer, o próprio aluno é que vai descobrindo, uns mais rápidos outros mais lentos, vai de cada um. Um pouco com as instruções que você vai sugerindo para eles, cada um vai fazendo o seu caminho, dentro disso. Eu ensino balé, também, e improvisação. E nos dois eu trabalho mais ou menos do mesmo jeito. No caso do Balé Clássico, depois desse trabalho de sensibilização, da pessoa ir se apropriando mais do corpo, ela vai para a barra, e aí é que vou introduzir o código do balé, para aquele corpo que ela já tem, que ela já está descobrindo, ou não. Ou que ela já está mais em posse dele. Esse corpo é que vai aprender o que é um plié, que não é tão diferente de sentar numa cadeira, fazer um demi-plié, ou um grand-plié. E é um pouco a partir da mesma musculatura, dos mesmos apoios que você usa para andar, correr, sentar, para abrir a porta, fechar a porta, para dirigir, na verdade você vai dando a ponte de que essas mesmas musculaturas, essas mesmas articulações é que são usadas para fazer balé. É o mesmo corpo. Na verdade, faço um pouquinho essa ponte nas aulas de balé (PORTAL DE PERIÓDICOS ELETRÔNICOS DA UFBA).
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Considerações Finais
O Balé Clássico é uma técnica de dança que sobrevive desde o século
XVII. Durante este longo período, mudanças significativas já ocorreram e ainda
acontecem de acordo com o profissional que transmite essa forma de
conhecimento e o ambiente no qual está inserido. Portanto, ao ensinar essa
técnica nos dias de hoje, é importante que o professor tenha clareza de qual
traço desta dança seu trabalho enfoca e, desta forma, qual a rede de
conhecimento que acompanha sua ênfase.
Para Zélia Monteiro, as formas específicas do balé são entendidas como
um resultado das conexões psicomotoras, do encadeamento muscular, do
reconhecimento do peso e apoios com os quais o corpo lida naquele momento.
Em seu trabalho, a técnica clássica é um meio de troca, de comunicação, um
ambiente de atenção e escuta ao corpo que dança que permite que o indivíduo
aprenda mais sobre si mesmo, desenvolvendo e refinando recursos acerca de
como se colocar no mundo.
Em A comunidade que vem, Giorgio Agamben (1993) trata do ser
qualquer. Diferente da tradução comum, que carrega o sentido de indiferente,
Agamben traz à luz a relação com o desejo também presente nessa
designação do ser qual quer (aquele que quer). Neste sentido, a singularidade
do indivíduo não se dissolve diante dos traços comuns do conjunto ao qual faz
parte (qualquer um), mas permite o reconhecimento com os outros por meio do
engajamento por algo (o qual quer) que pode ser comum. “A singularidade
liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o
carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal” (AGAMBEN,
1993:11).
Podemos dizer que o modo como Zélia Monteiro apresenta o balé
clássico aos seus alunos permite que a técnica seja trabalhada na mesma
relação de vontade tratada por Agamben. Apesar de essa dança dispor de
modelos pré-estabelecidos para todos, os passos e posições já estão definidos
há muitos anos; o que a artista leva em consideração é o modo como cada um
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irá se relacionar com eles. Neste sentido, ela redefine quem pode ter acesso a
esse saber: um ser qualquer.
Portanto, nesta proposta existe uma mudança de paradigma. Uma vez
que Zélia revê o foco de interesse na relação com o balé, imediatamente
transforma o entendimento do corpo que dança e o ambiente com o qual está
implicado.
Para o corpo que se comunica enquanto é, o discurso que surge daí não
é mais impregnado pelo poder de outro, mas sim o do engajamento; daquele
que alimenta o desejo e o prazer de dançar.
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Flávia Scheye Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (ECA/USP), sob a orientação da Prof. Dra. Helena Franco de Araújo Bastos. Graduada em Comunicação das Artes do Corpo (PUC/SP) desde 2008. Integrante da Companhia Perdida (direção de Juliana Moraes) desde 2010. Trabalha em parceria com Zélia Monteiro discutindo a prática e o ensino do balé clássico. Professora da Escola de Dança de São Paulo desde 2012.