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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Artes
AMANDA GONSALES DE ARAUJO
Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo Co-Habitar com a Fonte do método Bailarino-Pesquisador-
Intérprete (BPI)
Campinas
2017
AMANDA GONSALES DE ARAUJO
Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo
Co-Habitar com a Fonte do método Bailarino-Pesquisador-
Intérprete (BPI)
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para
a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena na Área de
Concentração: Teatro, Dança e Performance.
ORIENTADORA: PROFª DRª LARISSA SATO TURTELLI
COORIENTADORA: PROFª DRª GRAZIELA ESTELA FONSECA RODRIGUES
Este exemplar corresponde à versão final da dissertação
defendida pela aluna Amanda Gonsales de Araujo, e orientada
pela Profª Drª Larissa Sato Turtelli.
Campinas
2017
À minha mãe Fátima Gonsales e minha avó Luzia Rossi, que
apresentaram-me as nuances entre a rudeza e a delicadeza
que os caipiras carregam nas mãos.
Agradecimentos
À Profª Drª Larissa Sato Turtelli pela orientação feita com dedicação e
esmero, conduzindo-me a um contato cada vez mais profundo comigo mesma, a fim
de potencializar-me enquanto artista da cena.
À Profª Drª Graziela Rodrigues pela co-orientação repleta de reflexões e
ensinamentos preciosos sobre o método BPI, e pelos apontamentos assertivos no
decorrer do meu processo, desvelando-me mais do que eu podia ver.
Ao Núcleo de Pesquisa BPI que me possibilitou a troca de experiências e
conhecimentos acerca desse método, atuando nesse percurso interno de deixar-me
afetar e reconhecer-me no outro.
À Natália Vasconcellos Alleoni e Yasmin Berzin pelos momentos de reflexões
e elucidações a respeito do meu processo no método, auxiliando-me a passar pelos
momentos difíceis de encontro comigo e encorajando-me sempre para as travessias.
Ao Glauco Barsalini que me brindou com seu vasto e profundo conhecimento
a respeito da cultura caipira, e que me auxiliou através do seu entusiasmo e paixão
por esse povo a adentrar essas porteiras.
À Maria Silvia Ianni Barsalini que com seu olhar delicado e poético penetrou
estas páginas, e colaborou para refinar este texto que traduz aquilo que corre por
dentro de mim.
Ao Tarcísio Barsalini que atravessou comigo vales e montes todos os dias
durante essa pesquisa, acompanhando as conquistas, os medos e as dificuldades
em seguir, emprestando-me com carinho seus ouvidos e olhos atentos, sem os quais
seria muito mais difícil prosseguir.
Ao meu pai Luiz e meu irmão Fernando, por todo o apoio sempre concedido
para seguir nos caminhos da arte, e por serem minha base onde sempre posso me
encontrar.
Aos meus avós paternos, Diva e Mauro (em memória), que seguem comigo
sendo minha fonte de inspiração, ao fazerem-me perceber minhas raízes.
Ao meu avô materno Manoel, a quem me falta palavras para descrever o
tamanho da importância que teve nesse trabalho, pois esteve presente em todos os
campos, não fisicamente, mas na memória e no reconhecimento, lembrando-me
sempre de onde vim.
As mulheres da minha vida, minha mãe, Fátima, e minha avó materna, Luzia,
mulheres fincadas na terra que me ensinaram o valor das pequenas coisas e a
singeleza dos pequenos gestos. Carrego-as comigo, pois fazem-me lembrar da força
e da suavidade que são necessárias para levar a vida, vida nem sempre fácil para
elas, que cresceram a olhar por entre as frestas dos pés de café o sol nascer e se
despedir.
A toda a minha família que me permite lembrar quem sou.
Por fim, aos caipiras com quem entrei em contato nessa pesquisa, em
especial a Marisa, a Fátima e a Giovana na colheita de café em Jaú- SP, ao
Mosquito na Folia de Reis em Três Pontas - MG, a Dona Antônia na Encomendação
das almas em São Tiago - MG e a Dona Mariquinha em seu sítio em Bofete – SP,
que me receberam em seus espaços e me fizeram sentir, por um momento, como se
fosse parte dele. A todo carinho, afeto, cuidado e confiança demonstrado, meus
sinceros agradecimentos. Por me fazerem lembrar quem sou e me permitirem entrar
em contato com a essência e a singeleza de ser caipira.
Resumo
Esta pesquisa debruça-se sobre o método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI)
tendo como enfoque o eixo Co-habitar com a Fonte. O método BPI estrutura-se
fundamentalmente em três eixos: o Inventário no Corpo, o Co-habitar com a Fonte e
a Estruturação da Personagem, que visam o desenvolvimento artístico mas que
acabam por elaborar também questões pessoais do intérprete, pois o processo se
dá como uma “escavação” interna, quando o pesquisador entra em contato consigo
em profundidade para poder se expressar com mais inteireza. Para esta pesquisa o
eixo Co-habitar com a Fonte foi de extrema importância, pois ao entrar em contato
com a cultura caipira do interior de São Paulo e Minas Gerais, através de pesquisas
de campo que abarcavam o trabalho, o cotidiano, as festas e a relação com o
sagrado, os conflitos, rejeições e identificações da intérprete passaram a acontecer,
propiciando que um olhar interno fosse ativado a partir do contato com o outro. Essa
vivência possibilitou que a intérprete transpassasse o que estava em sua superfície,
para tocar em conteúdos que até então estavam soterrados, ocasionando assim
uma ampliação de suas possibilidades expressivas, pois pôde desvelar mais sobre
si. Este trabalho foi desenvolvido por uma cantora que encontrou no método BPI a
possiblidade de desenvolver-se em termos corporais e expressivos, a fim de
alcançar uma presença cênica potente e experienciar uma voz que de fato nascesse
do corpo.
Palavras chave: Bailarino-Pesquisador-Intérprete; dança – Brasil; caipira – cultura;
dança – pesquisa; voz.
Abstract
This research focuses on the Dancer-Researcher-Performer method (BPI),
experienced by a singer who had as an intention to get in touch with a corporal and
expressive work, focusing on the axis co-inhabit with the source. The BPI method is
fundamentally structured in three axes: body inventory, cohabiting with the source
and the character structuring, which aim at artistic development but which end up
stumbling on the interpreter's personal issues, as the process develops as an internal
"dig", where the researcher contacts herself in depth to be able to express her art
more fully. In order to do so, the co-inhabitant with the source axis was extremely
important, because when it came into contact with the countryside culture from São
Paulo's interior and Minas Gerais, through field surveys that included work, daily life,
parties and the relationship with the sacred, some conflicts, rejections and
identifications began to happen, allowing an inner look to be activated from the
contact with the other. This experience made it possible for the interpreter to cross
what was on the surface, to touch contents that had been buried until then, thus
causing an amplification of its expressive possibilities, since it could reveal more
about itself. This work was developed by a singer who found in the BPI method the
possibility of developing in body and expressive terms in order to achieve a powerful
stage presence and to experience a voice that was actually born from the body
works.
Keywords: Dancer-Researcher-Interpreter; dance – Brazil; countryside – culture;
dance – research; voice.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 13
ASPECTOS DA CULTURA CAIPIRA ..................................................................... 24
A cultura caipira: sua terra, seus sons e suas crenças ................................. 24
Um campo de risco ........................................................................................ 28
Imaginário acerca do caipira .......................................................................... 29
Em mim o caipira ........................................................................................... 39
METODOLOGIA, MATERIAIS E PROCEDIMENTOS ............................................ 44
O Inventário no Corpo ................................................................................... 44
O Co-Habitar com a Fonte ............................................................................. 45
A Estruturação da Personagem ..................................................................... 47
As ferramentas do método BPI ...................................................................... 50
A Estrutura Física e sua Anatomia Simbólica ................................................ 52
As pesquisas e os Diários de Campo ............................................................ 55
Comitê de ética .............................................................................................. 56
Laboratórios Dirigidos e Diário de Dojo ......................................................... 57
PESQUISAS DE CAMPO ....................................................................................... 58
Colheita de café na Fazenda São Marcelo – Jaú, SP .................................. 59
Procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em Pedra Bela - SP .......... 68
Dona Mariquinha – Bofete, SP ..................................................................... 71
Folia de reis – Três Pontas, MG .................................................................. 75
Encomendação das almas – São Tiago, MG .............................................. 82
Síntese dos campos .................................................................................... 87
O caipira: uma ponte para mim mesma ....................................................... 89
O PERCURSO PARA O INTERIOR ...................................................................... 91
Os laboratórios ............................................................................................. 91
Questões do inventário ................................................................................ 97
IEOA É SEU NOME ............................................................................................... 101
VOZ ....................................................................................................................... 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 116
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 120
ANEXOS ............................................................................................................... 124
Anexo 1 – Termos fornecidos pelo Comitê de Ética utilizados nas pesquisas
de campo ............................................................................................................... 124
Anexo 2 – Fotos do Dojo ............................................................................. 129
Anexo 3 – Partituras musicais ..................................................................... 134
Anexo 4 – Fotos da apresentação .............................................................. 136
Anexo 5 – Link para vídeo da apresentação artística realizada na defesa .141
13
Os espelhos foram quebrados e seus cristais espalhados ao vento –
encontre você mesmo seu cristal! Não há sinais nem informações das trilhas
a serem seguidas, nestas veredas. A salvação está nas descobertas
pessoais, em geral custosas e muito sofridas, mas inevitáveis. (Prefácio de
Fausto Fuser em RODRIGUES, 1997, p.14).
INTRODUÇÃO
Há de se contar o percurso. O percurso que reflete a minha busca artística:
potencializar-me como artista da cena. Durante esse processo entrecruzei música,
teatro e dança, a fim de ampliar meu contato, a partir de diferentes abordagens, com
duas ferramentas essenciais para o meu fazer: a voz e o corpo. Apesar de estarem
completamente conectados, percebia que minha formação como cantora havia me
dado poucos recursos para acessar, de fato, minha corporalidade. Chegar à voz sem
passar pela corporalidade, percebendo de que maneira poderia me conduzir, se
opor, auxiliar, desafiar ou potencializar meu canto, era algo que me intrigava, pois
sentia que não alcançaria uma presença e uma visceralidade em minha performance
sem “passar pelo corpo”.
Você não pode separar o uso de sua voz do resto de você mesmo. O
impulso de comunicar vocalmente vem do uso de todo o organismo, não
apenas dos órgãos vocais. E toda vez que seu uso mecânico é afetado, sua
voz também é afetada, que é a expressão de você mesmo. (MCCALLION,
1988, p. 3).
Assim, decidi voltar-me para o trabalho corporal, a fim de sentir meus ossos,
meus músculos e minha pele, experimentando as possibilidades do meu corpo
através da Dança para que, se a voz emergisse, ela viesse de modo inteiro, unindo
então voz e corpo para alcançar uma presença potente por meio de um processo
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criativo, desenvolvido através do Método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) que
explanarei adiante.
O corpo no método BPI é visto em sua potência de articular significados,
transitando entre lugares íntimos, fronteiriços e apartados; proporcionando
deslocamentos e estabelecendo interligações com uma coletividade
humana. Esse corpo é o ponto de partida para a construção do saber no
método. Em seu movimento criativo ele mergulha em si mesmo, vive o
encontro, a cumplicidade, o conflito, o vazio, a efervescência, transforma-se
e gesta uma nova vida. O refinamento propiciado por esta arte do
movimento ultrapassa os muros dos conhecimentos da própria arte,
ampliando o trânsito dos saberes entre as áreas. Quando se percorre a
senda desse refinamento do movimento entra-se nos domínios da memória
e da emoção. (RODRIGUES, et al. 2016, p.572).
Antes de adentrar-me no conteúdo desta pesquisa, traçarei aqui um pouco do
meu trajeto. Meu percurso acadêmico teve início na graduação em Música Popular -
modalidade Voz, na Unicamp, onde fui orientada durante três Iniciações Científicas
patrocinadas pelo PIBIC/CNPq – de 2012 a 2015 - pela Profª Drª Regina Machado
que ministra a disciplina de Voz, além de algumas disciplinas teóricas na graduação
e na Pós-Graduação em Música Popular. Durante a graduação, apesar da disciplina
de Voz abordar, de certa maneira, conteúdos expressivos relacionados ao canto,
sentia necessidade em desmembrar cada vez mais meu fazer, olhando também para
aspectos textuais e corporais do canto, além dos musicais que a graduação me
oferecia. Dessa maneira, intui que deveria aventurar-me em outras áreas, e as Artes
da Cena me apontaram um caminho, no qual me aprofundei através de cursos e
disciplinas, dentro e fora da Unicamp1.
1 Os cursos realizados relacionados ao tema em questão foram: "Canto e dança O impulso
na voz e no corpo" com Renata Rosa no LUME em 2010; "Atitude da voz falada, na voz cantada" com
Marcelo Onofri no FEIA no mesmo ano; Oficina de “Técnica de Alexander aplicada ao canto” com
Izabel Padovani no Feia em 2011; “Curso livre de Teatro no Barracão Teatro” coordenado pelo ator
Eduardo Brasil em 2013; "Da energia a ação" curso com Naomi Silman no Lume em 2014; Curso com
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Recordo-me que a minha primeira vivência dentro das Artes da Cena foi um
curso de curta-duração com a cantora Renata Rosa, em 2010, na sede do Lume
Teatro – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp. O curso
intitulava-se “Canto e Dança - o impulso na voz e no corpo”, e ali buscávamos
encontrar uma relação orgânica entre voz e movimento. A partir dessa experiência
algo descortinou-se para mim, pois ao trabalhar o canto atrelado ao movimento,
novas possibilidades vocais - tanto em sonoridades, quanto em sentidos – se
abriram, e passei a querer despertar cada vez mais esse corpo e essa voz, a fim de
extrair deles potencialidades expressivas até então intocadas. A partir dessa
experiência, o fazer vocal já não se restringia apenas ao aparelho fonador: tinha se
ampliado, ganhado pernas, tronco e braços.
Então, iniciei a busca por vivenciar tal tríade - voz, corpo e presença -
acreditando que, para tocar fundo nisso, deveria tocar-me de fato, tanto em aspectos
vocais e corporais, quanto em conteúdos emocionais. Como se escavasse a mim
mesma, perpassando a superfície e descobrindo outras camadas que me
revelassem novos corpos e vozes, mais inteiros e potentes, para depois de um longo
processo - como um iniciado2 - poder ser. Assim, voltei-me para estudos do texto, da
Thomas Adams, da “Escola do desvendar da voz” e Oficina "Intersecções poéticas entre o movimento
e a voz", ministrada por Lineker Oliveira, na Oficina Cultural Oswald de Andrade no mesmo ano. As
disciplinas realizadas no Departamento de Artes Corporais da Unicamp durante a graduação foram:
“Expressão Corporal II” ministrada pela Profª Drª Mariana Baruco em 2010; “Expressão Vocal –
Interpretação II” ministrada pela Profª Drª Sara Lopes em 2012; “Princípios da Ação Cênica”
ministrada pelo Profº Drº Mario Santana em 2014. No intercâmbio que realizei na Universidade de
Évora em Portugal cursei as seguintes disciplinas referentes a corpo e voz: “Laboratório de Voz”
ministrada pelo Profº João Grosso e pela Profª Drª Paula Dória e “Treino Corporal do Actor III”
ministrada pela Profª Drª Beatriz Cantinho, ambos em 2013. Além disso, participei do "Intercâmbio
cultural Agita videodança, performance e produção cultural", produzido pela Casa de Harina, em
Portugal e Espanha durante esse período. Por seis meses, em 2012, tive aulas de Técnica Alexander
aplicada ao canto com a cantora Izabel Padovani.
2 “Iniciático quer dizer <<do início>>. Iniciar-se é passar por um conjunto de ritos que levam o
fiel de volta aos começos do mundo, às origens do ser. O saber iniciático é o saber das origens, que
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ação, da voz e do corpo, encontrados nas Artes da Cena, e das mais diversas
possibilidades sonoras e interpretativas na Música. Via-me então, nesse entremeio,
estando de fato no meio e esticando-me ao máximo para poder tocar em cada
extremidade, imbuindo-me em líquidos, cores e texturas que cada linguagem poderia
me proporcionar. Mas, sem tirar os pés do meio, pois o não pertencer me fazia livre,
e o não saber era a minha maior sabedoria.
No ano seguinte, em 2011, a professora Regina Machado trouxe ao Instituto
de Artes a cantora Izabel Padovani, para ministrar um workshop sobre seu trabalho
envolvendo canto e Técnica Alexander3. Interessei-me por tal abordagem, e por
sugestão da professora passei a ter aulas particulares com a Izabel no ano seguinte.
As aulas aconteciam semanalmente, eram individuais e tinham duração de uma
hora; frequentei-as por um período de seis meses. A cada encontro, algumas
tensões cristalizadas iam se desfazendo, e o cantar acontecia com mais facilidade.
As tensões desfeitas liberavam um espaço interno para a passagem do ar,
ampliando os espaços de ressonância, propiciando assim uma voz com mais
harmônicos e projeção. Dessa maneira, ao conquistar maior “naturalidade” ao
cantar, meu corpo estaria mais livre para expressar-se. Após esse contato, realizei
minha primeira Iniciação Científica, intitulada “Investigações sobre a eficácia da
Técnica Alexander na prática do canto”. Nessa pesquisa, desenvolvida de agosto de
2011 a julho de 2012, entrevistava alunos e professores da área para perceber se a
aplicação da Técnica influenciava a prática dos cantores e como isso acontecia.
não se assimila apenas, mas se vive. Tamanha é a transformação do iniciado, que recebe novo
nome: tornou-se outro. A iniciação, o recomeço é, portanto, metamorfose: o outro que substitui o
neófito, quem é, de onde vem, o que quer dizer?” (AUGRAS, 1983, p. 17).
3 Tal Técnica, desenvolvida pelo ator Frederick Matthias Alexander - de origem australiana, -
nasceu devido a uma rouquidão crônica que o acometia, e que a medicina tradicional não pôde
solucionar. Em busca de cura, Alexander deu início a uma análise minuciosa de seus padrões
posturais frente a um espelho, identificando assim tensões que interferiam em seus mecanismos
vocais e respiratórios, causando-lhe a rouquidão. A fim de inibir tais tensões e melhorar o uso e
funcionamento de seu próprio corpo, estruturou alguns princípios que resultariam em sua Técnica.
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Como disse anteriormente, durante a graduação segui fazendo cursos
relacionados a corpo e voz dentro e fora da Unicamp, aplicando cada vez mais
esses conhecimentos em meu fazer artístico e nas aulas que lecionava. Na
graduação, fui PAD da professora Regina Machado, trabalhando aspectos
expressivos e interpretativos com alunos de monitoria em Canto Popular. Em 2012,
iniciei parceria com a bailarina Natália Alleoni (mestranda em Artes da Cena na
ocasião), o músico Fábio Evangelista, o bailarino Tutu Morasi e a atriz Leny Góes.
Realizamos apresentações de cunho interdisciplinar e gravamos um longa-
metragem em Dança, vinculado ao mestrado da bailarina. O longa-metragem
intitulou-se “A rosa”, e foi premiado pela “VII Mostra Internacional de Videodança de
São Carlos” e “São Carlos Videodance Festival”.
No início de 2013, iniciei o curso livre de teatro no Barracão Teatro em Barão
Geraldo, Campinas, coordenado pelo ator Eduardo Brasil. Em agosto desse mesmo
ano apresentei o espetáculo “Há na memória um rio”, que contava com a
participação dos músicos Alberto Ferreira e Theron Fuhrmann, a bailarina Natália
Alleoni e a direção cênica de Bernardo Berro. O ator João Paulo Lorenzon, indicado
ao Prêmio Shell de melhor ator em 2012 com a peça “Eu vi o sol brilhar em toda a
sua glória”, e a direção do filme “Elena” da diretora Petra Costa, cederam-me trechos
de seus roteiros para compor o espetáculo. Dessa maneira, colocamos os textos
entre as canções, interpretados por mim e por João Paulo. Nessa apresentação,
entrecruzei diversas linguagens artísticas – música, teatro e dança – e tratei de
temas humanos, como as perdas, os encontros e desencontros da vida,
comparando-a as águas do rio, que correm e nunca voltam a passar pelo mesmo
lugar. Quais as memórias que ficam? O que realmente guardamos conosco? Eram
as questões que queríamos provocar.
No segundo semestre desse mesmo ano, fui selecionada com uma bolsa do
Ministério da Cultura para realizar um intercâmbio na Universidade de Évora, em
Portugal. Durante um período de seis meses, frequentava disciplinas na Música, no
Teatro e na Dança, dando continuidade às minhas buscas interdisciplinares. Porém,
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mais do que isso, vivi - sem saber até então – o início de um processo criativo.
Propiciada talvez pelo inverno e pela solidão, experienciei ali uma profunda conexão
interna e externa, estando atenta a tudo o que me rodeava: os sons, as músicas, a
arquitetura, os cheiros, os sabores, as lendas, a história, as estações. Ia registrando
minhas sensações através de fotografias, gravações de voz e anotações em um
caderno, que estava sempre comigo. Ao refletir sobre o processo de imersão (em
mim mesma) que estava vivendo, passei a associá-lo a um processo arqueológico,
pois foi ao “escavar-me”, isto é, ao tocar em lugares submersos e até então
desconhecidos, que pude encontrar fragmentos meus. Em vias de finalizar o
intercâmbio, deparei-me com os materiais acumulados: eles eram tão potentes, que
pude perceber que por detrás de minhas experiências individuais havia um coletivo.
No fundo, eu estava tocando em questões da humanidade, e queria levá-las ao
público através de um processo criativo. Foi assim que encontrei a dissertação de
mestrado de Stela Maris Sanmartin – “Arqueologia da criação artística, vestígios de
uma gênese: o trabalho artístico em seu movimento”, (2005), que retrata processos
criativos dentro das artes plásticas. Aí o pontapé foi dado. Voltei ao Brasil e comecei
a estruturar essa experiência para torná-la arte.
Ao regressar, juntei-me à atriz, Leny Góes, que me auxiliou a encontrar os
pilares temáticos de que trataríamos no espetáculo, a partir dos materiais reunidos
por mim. Assim, delineamos uma narrativa tratando sobre o encontro consigo e,
consequentemente, a identificação das grades que nos cercam, nossas prisões.
Para falar das prisões, remontei ao período da Inquisição da igreja católica, quando
aqueles que não seguiam os dogmas eram submetidos à tortura e à execução, fato
que aconteceu em diversos lugares da Europa, inclusive em Évora, Portugal, e tratei
também sobre o Mito do Amor Romântico, outra prisão tão presente em diversas
histórias medievais, época que decidi abarcar. Com relação ao encontro consigo,
citei o reconhecimento e acolhimento das nossas próprias sombras, dito por Carl
Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta e, por fim, o conhecimento foi citado como
chave para ultrapassar as grades que nos cercam, sejam elas religiosas ou políticas.
A partir disso, selecionei canções e textos que comporiam o ensaio aberto,
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contemplando um repertório irlandês, português e brasileiro, e textos da literatura
estrangeira. O cenário, composto por fogueira e tochas à volta, foi montado em uma
praça na cidade de Campinas – SP, e a instrumentação contou com um trio de
cordas: violoncelo, violino e violão, que somaram a essa atmosfera arcaica. Tal
apresentação foi intitulada “Sombras de Alguém”.
Durante o processo, tive uma prática constante de laboratórios corporais, que
abordavam os textos e as canções, a fim de trazer a eles uma potencialidade
expressiva que partisse do corpo. Tais laboratórios foram dirigidos por uma outra
atriz, Ana Piu, portuguesa. No primeiro semestre de 2014, estruturei esse ensaio
aberto apresentado em agosto desse mesmo ano e, em paralelo a isso, finalizei
minha segunda iniciação científica, “Voz e corporalidade, práticas investigativas
sobre a influência corporal na prática do canto”, interrompida, temporariamente,
durante o intercâmbio. Nela, descrevi como foi o processo dos laboratórios e fiz um
levantamento dos estudos interpretativos com os quais entrei em contato em
Portugal e no departamento de Artes Corporais da Unicamp, no semestre em
questão.
Depois do período de criação, estruturação e apresentação do ensaio aberto,
dei continuidade ao processo criativo que se desdobrou no espetáculo “UM OLHAR
de lua ATRAVESSADO de nuvens”, apresentado um ano depois. Nele, incluí
trechos de obras da escritora Hilda Hilst, natural de Jaú, cidade onde nasci, e dei
continuidade à temática das prisões, dentre elas o amor romântico, o medo do novo,
e o bombardeio de informações e deveres a que nos impele a sociedade. Além
disso, associei a vida a uma viagem de trem, reforçando a ideia de que somos feitos
de encontros e despedidas e que, no final, teremos apenas a nós mesmos. Tal
espetáculo contou com outra equipe e um diretor do Departamento de Artes Cênicas
do Instituto de Artes da Unicamp, Profº Drº Mário Santana. Além disso, modificamos
o repertório e os textos com relação ao ensaio aberto, agora composto por canções
de Lenine, Belchior, Caetano Veloso e Milton Nascimento; porém, a temática se
manteve. Foi apresentado como recital de formatura de minha graduação em Música
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Popular e no Festival Hilda Hilst, na cidade de Jaú – SP. Foi esse o conteúdo da
minha terceira e última Iniciação Científica, “O processo arqueológico do intérprete-
criador”, descrevendo um processo criativo de dois anos e que resultou em um
ensaio aberto e em um espetáculo.
Analisando todo o meu percurso, minhas experiências e a maneira como
estava conduzindo os espetáculos produzidos, percebi que esse tipo de processo
criativo provindo das minhas vivências para então encontrar eco em questões
humanas, abrangendo diversas linguagens artísticas, e me colocando num lugar
para além do canto - somando a ele ações e falas a fim de potencializar o
espetáculo, direcionava-me mais ao Departamento de Artes Corporais do que à
Música, no que tange à Pós-Graduação. Então, soube do Método BPI e interessei-
me por conhecê-lo melhor. Após uma conversa com a orientadora dessa pesquisa,
Profª Drª Larissa Turtelli, iniciei meu contato com o Método numa disciplina de
Tópicos especiais em dança, ministrada por ela no segundo semestre de 2014. Após
isso, cursei Dança do Brasil I no semestre seguinte, ministrada pela Profª Drª Larissa
Turtelli com a PED Nara Cálipo. Conhecendo um pouco mais sobre o Método, tanto
em aspectos teóricos, quanto em aspectos práticos, fui me interessando pela sua
complexidade e assertividade, com relação aos processos que norteia. Propus-me,
então, a vivenciá-lo, ingressando no Mestrado em Artes da Cena, sendo orientada
pela Profª Drª Larissa Turtelli e Coorientada pela Profª Drª Graziela Rodrigues.
Dessa maneira, o trabalho corporal constante fez-se essencial, principalmente no
meu caso, vinda de uma área que não aborda esse tipo de fazer. Porém, mais do
que isso, vivenciar o método fez-me perceber que a entrega é o seu maior desafio,
pois o intérprete deve se colocar despido diante de si durante todo o processo,
estando atento às suas sensações e emoções, caso contrário o processo não
acontece. Além disso, estar com o outro em uma pesquisa de campo da maneira
como nos propõe o método, sendo esse um dos seus eixos, coloca-nos ainda mais
diante de nós mesmos, pois ao lidar com o outro, percebemos facetas nossas até
então desconhecidas, ou até mesmo rejeitadas. Dessa maneira, o processo dentro
do Método BPI possibilita que alcancemos um contato minucioso e profundo
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conosco mesmos, perfurando camadas da pele, órgãos e vísceras, atingindo o miolo
do corpo, escavando a superfície para, quem sabe ali, naquele miolo, encontrarmos
a nossa potencialidade expressiva que o método propicia entrar em contato.
Descreverei como isso acontece, no capítulo em que tratarei sobre a metodologia,
mais adiante.
Após ingressar no Mestrado, cursei, no segundo semestre de 2015, as
disciplinas Dança do Brasil II e IV, ministradas respectivamente pelas professoras
doutoras Larissa Turtelli e Graziela Rodrigues, com o auxílio das PEDs Mariana
Floriano e Nara Cálipo. Nesse mesmo semestre fiz a preparação vocal de um grupo
de bailarinos da graduação em Dança na Unicamp, para o espetáculo de TCC
“Depois daquele canto”, dirigido dentro do método BPI por Graziela Rodrigues e
Larissa Turtelli, tendo como assistente de direção Elisa Costa. No espetáculo
atuaram: Carolina Constantino, Igor Manoel, Isadora Buonanni, Juliana Pedroso e
Yasmin Berzin. Como parte do processo foram feitas pesquisas de campo em
terreiros de candomblé de Cachoeira, na Bahia. Tal experiência permitiu-me
compreender um pouco mais sobre a relação corpo-voz num espetáculo dentro
dessa linha de pesquisa.
No primeiro semestre de 2016, cursei as disciplinas de Dança do Brasil III e V,
ministradas respectivamente pelas professoras doutoras Larissa Turtelli e Graziela
Rodrigues, auxiliada pela PED Elisa Costa. Além disso, cursei a disciplina intensiva
de Pós-Graduação em Artes da Cena intitulada Tópicos especiais em atuação,
ministrada pelas professoras doutoras Graziela Rodrigues e Larissa Turtelli,
essencial para o progresso desta pesquisa.
Já no segundo semestre de 2016, atuei como PED na disciplina Dança do
Brasil VI, ministrada pelo Profª Drª Larissa Turtelli. Nessa disciplina trabalhei com os
22
alunos aspectos vocais, dentre eles: respiração, apoio vocal4, ressonância5,
projeção, paisagens sonoras e as canções que cada uma escolhia. Nessas
dinâmicas, a cada aula aprendíamos uma canção, e depois a condução da Profª
Larissa ia unindo a voz cantada com o fluxo de movimento. Foi muito interessante
perceber o reflexo que os movimentos tinham na voz e vice e versa, tanto no meu
fazer quanto no dos alunos.
No início de 2017 cursei a disciplina intensiva, Laboratório de Criação II
Arquiteturas do corpo no Método BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete), ministrada
pelas professoras doutoras Graziela Rodrigues e Larissa Turtelli, de grande impacto
para o desenvolvimento da pesquisa, que citarei mais adiante.
Aproximei-me do método BPI por conta de seu processo criativo, pois o
mergulho em si mesmo que ele propõe, dialoga com uma necessidade pessoal de
entrar em contato comigo mesma a fim de poder criar. Além disso, ter uma direção
tão presente como acontece no método, e um trabalho corporal que acredito ser de
extrema importância para um cantor, também me chamavam a atenção.
Poder experienciar essa voz que brota do corpo, caso ela apareça, tendo em
vista a imprevisibilidade do material criativo dentro do método, me atrai, pois creio
que, ao nascer de estímulos corporais, a voz pode apresentar-se de uma outra
maneira, quebrando, quiçá, com alguns padrões vocais e apresentando-me novas
possibilidades, engaioladas nas couraças do meu corpo. Viver a materialidade do
corpo, no máximo do seu tônus e das suas possibilidades para, então, retornar ao
4 “O appoggio é, então, uma coordenação complexa de todos os músculos do canto, que tem
sua raiz no equilíbrio entre a pressão aérea e a fonação controlada.” (STARK, 2003, apud MARIZ,
2013, p. 114).
5 “Aquilo que dá ao som vocal a sua sonoridade, a sua penetração, a sua cor, e o seu poder
emotivo são as vibrações do ar que impomos nas cavidades internas do nosso rosto, ou caixas de
ressonância da voz.” (VILLELA, 1961, apud MARIZ, 2013, p. 57).
23
imaterial da voz e vê-la de um outro lugar, encontrando nela sua materialidade,
rasgada na garganta e partindo das vísceras.
Assim, o objetivo dessa pesquisa foi realizar um trabalho artístico no método
BPI, dentro do eixo Co-habitar com a Fonte, a partir da pesquisa de campo feita com
a cultura caipira do interior do Estado de São Paulo e Minas Gerais, a qual
possibilitou uma apreensão sensível dos corpos, paisagens e contextos vivenciados,
e despertou em meu corpo conteúdos trabalhados nos Laboratórios Dirigidos. O
intuito foi estabelecer um processo criativo, e proporcionar ao âmbito musical um
olhar sobre o fazer vocal que emergisse do corpo e de suas memórias.
Especialmente em relação à voz, um trabalho que busca apenas o total
controle sobre a fonação, que se pauta em modelos que suprimem nossas
forças pulsionais e atribui valores subordinados a uma estética do belo e do
feio, não deixa de tanger a repressão, a submissão e a tortura. A voz “está
sempre amparada no desejo, e nos revela as nuanças emocionais do outro”
(HAOULI, 2005, apud OLIVEIRA, 2013, p. 34). Esterilizar essas nuances em
busca de uma “fonação perfeita” é esterilizar o desejo, e a meu ver não há
como se criar o novo sem dar vazão à força do desejo. (OLIVEIRA, 2013,
p.34)
24
ASPECTOS DA CULTURA CAIPIRA
A cultura caipira: sua terra, seus sons e suas crenças
Ao adentrar nesse universo, irei me referir aos caipiras dos séculos XIX e XX,
sem considerar os escritos sobre tal cultura referentes ao século XVIII.
Entre os anos do fim do século passado e, sobretudo, os do começo deste,
alguns estudiosos da cultura paulista descobriram que o estado tinha como
tipos o “caipira” e o “caiçara”, que é um caipira do litoral. Foi então que ele
deixou de ser “uma gente” miserável de cultura invisível e se tornou o
agente da cultura popular do estado. Visível, ele emergiu a objeto de
estudo. Tinha virtudes, falava, usava um dialeto que era, na verdade, o
porão da fala de todos. De índios e jesuítas teria aprendido cantos e
danças. Criou as suas. Era enfim uma cultura a que alguns pesquisadores
deram o nome de “cultura caipira”. (BRANDÃO, 1983, p.24).
Resultante da mistura entre colonizador e colonizado, o caipira se fez,
amalgamando traços indígenas e portugueses evidenciados em seus cantos,
danças, comidas e costumes. Dos índios, herdou parte da alimentação elaborada
com mandioca, milho e feijão, técnicas de caça e pesca, o costume de se deitar em
redes e andar descalço. Segundo Antônio Cândido (1987), o caipira baseia-se em
uma economia de subsistência contentando-se com o necessário, não perseguindo
o acúmulo de capital e isentando-se de grandes ambições, o que lhe confere a fama
de vadio e preguiçoso, por valorizar suas horas de descanso.
A vida rural caipira, assim ordenada, equilibra satisfatoriamente quadras de
trabalho continuado e de lazer, permitindo atender às carências frugais e até
manter os enfermos, débeis, insanos e dependentes improdutivos.
Condiciona, também, o caipira a um horizonte culturalmente limitado de
aspirações, que o faz parecer desambicioso e imprevidente, ocioso e vadio.
Na verdade, exprime sua integração numa economia mais autárquica do
que mercantil que, além de garantir sua independência, atende à sua
mentalidade, que valoriza mais as alternâncias de trabalho intenso e de
lazer, na forma tradicional, do que um padrão de vida mais alto através do
25
engajamento em sistemas de trabalho rigidamente disciplinado. (RIBEIRO,
1995, p.385)
Majoritariamente até a década de 1950, o caipira era aquele que morava
afastado da cidade e vivia daquilo que produzia, estabelecendo uma relação de
cuidado com a natureza, pois dependia dela para sobreviver, segundo Glauco
Barsalini (2002). Os trabalhos domésticos e os cuidados com as crianças ficavam
por conta da mulher, e os trabalhos na roça e na caça por conta dos homens,
conforme Darcy Ribeiro (1995). Plantavam, colhiam, pescavam, cuidavam das
criações e, no tempo livre, interagiam com o meio e a comunidade, através da
religião, da música e das festas.
Assim, a casa rústica, o quintal e a periferia próxima – o bairro, a vizinhança
– acabam não sendo apenas os lugares do trabalho familiar, mas
igualmente os espaços de quase toda a vida social e simbólica do caipira
paulista. Ali as pessoas convivem entre parentes, “compadres” e vizinhos.
Ali praticam em família ou “no bairro” quase toda a vida religiosa: a pequena
reza de terço que reúne à volta de um oratório caseiro as pessoas da
família, os parentes e vizinhos de residência próxima; as festas familiares de
devoção coletiva, que obrigam à reunião de grupos maiores para a
“devoção” ou o “cumprimento de um voto válido”, com comida, reza, canto e
dança (RIBEIRO, 1995, p.74)
Já as práticas religiosas estiveram sempre ligadas ao catolicismo instituído
por Roma e trazido pelo português. Porém, para além das participações em rituais
da igreja o caipira foi construindo sua própria religiosidade, feita de romarias,
promessas, encomendas, benzimentos e folias que não dependiam
necessariamente da figura de um sacerdote.
Tal religiosidade popular, até hoje, aproxima os fiéis de Cristo e dos Santos,
pois os tira do altar, onde estão os sacerdotes, e os coloca no meio do povo.
Carregam cruzes nas costas, beijam-nas e dançam com suas bandeiras, trazendo-
as para perto de si. Assim, potencializam sua relação e aproximação com o sagrado,
o que possibilita ao morador do bairro presidir uma folia ou uma encomenda, sem ter
26
qualquer título ou formação religiosa, conquistando sua legitimidade através da
comunidade. A partir disso, as funções vão se distribuindo entre os moradores,
aproximando-os do fazer ritualístico e reforçando a vida em comunidade: “A
religiosidade rural se marca essencialmente pela festa, através da revigoração do
sagrado. A festividade religiosa tem um caráter social que garante e reforça a
identidade do grupo.” (GOMES e PEREIRA, 1992, p. 87).
Assim, enquanto aos sacerdotes restaram a confissão e os sacramentos,
rituais que ocorriam com pouca frequência e apenas por ocasião das visitas
dos padres às capelas, as rezas, as bênçãos, as encomendas, as cantorias,
as promessas, as folias, etc., rituais cotidianos no meio da população mais
simples, passaram a ser conduzidas e controladas por leigos. A
popularidade dos “rezadores leigos” concorria a dos sacerdotes, gerando
alguns embates e provocando desentendimentos entre os representantes
oficiais e os especialistas populares, emergidos do ritualismo cotidiano.
Estes davam mais credibilidade aos cultos, consolidavam-se com os
representantes do lugar para os efeitos da liturgia e dos rituais sagrados,
isto é, de acordo com o que lembra Carlos Rodrigues Brandão, constituíam-
se “os milagreiros da roça”. (MARCHI, SAENGER, CORRÊA, p. 35, 2002).
Tal autonomia mantém a fé do povo viva, pois se modifica ao atravessar
gerações, não se limitando apenas a doutrinas. A apropriação que caracteriza esses
fazeres está sempre num limiar entre manter certos traços que caracterizam a
tradição, e agregar a ela novos elementos. Dessa maneira, a cultura vai se
amalgamando, pois é nesse construir e desconstruir que ela vai se enchendo de
significados simbólicos e afetivos, pois foi feita por mãos destituídas de poderes,
perante a Instituição Católica, mas repletas de fé.
Somada às práticas católicas, a cultura caipira mantém um imaginário de
lendas, seres sobrenaturais, simpatias e maus agouros. Lobisomem, saci-pererê,
mula-sem-cabeça, gato preto, espelhos cobertos em dias de tempestade, mau
olhado, olho gordo e simpatias para afastar doenças e más intenções. Dividindo-se
entre benzedeiras e sacerdotes, uma crença não abala a outra; pelo contrário, torna
27
ainda mais rica a cultura desse povo, que reza a Deus e benze com as ervas do
quintal.
Compreenderemos esse estado de coisas se considerarmos a estreita
ligação das suas representações religiosas com a vida agrícola, a caça, a
pesca e a coleta, e de ambas com a literatura oral. Basta focalizar, neste
sentido, o mecanismo das promessas e dos esconjuros, através do qual
veremos uma religião eminentemente propiciatória, ligada a práticas de
magia simpática, para obter êxito na colheita e na caça, para afastar ou
curar males- numa mistura estreita de reza, mezinha, talismã, onde a erva
do campo se associa ao pelo de bicho e à jaculatória, onde o bentinho se
prende ao mesmo fio que o dente de quati ou a unha de gato. (PERES,
2010, p.16)
Resultado de tantas misturas, assim também é a música caipira, composta
por aspectos vindos do português, do negro e do índio. A viola, instrumento
característico dentro dessa linguagem, originária de Portugal, provavelmente foi
influenciada pelos instrumentos árabes; porém, tempos depois de ter chegado ao
Brasil, passou a misturar-se com o violão.
Embora pareça provável que o instrumento tivesse chegado anteriormente,
noticias certas sobre violas de arame só aparecem de fato nas cartas dos
jesuítas, que chegaram ao Brasil com Tomé de Souza em 1549. Foram eles
que introduziram aqui, de modo sistemático, as violas e os demais
instrumentos europeus. (...) O instrumento tinha, então, três cordas duplas e
a prima simples. No século seguinte, iria ganhar mais uma ordem de cordas
e, na segunda metade dos anos de setecentos, ainda mais outra. (...) As
informações sobre a introdução da viola no Brasil nos levam a crer que esta
se deu não só pelos jesuítas, a elite intelectual da colônia, como também
pelos colonos portugueses. Do ponto de vista social, a viola já se
apresentava como o elemento por meio do qual as classes dominantes da
colônia difundiam a cultura musical moderna do Ocidente às classes
subalternas do Brasil. (TABORDA, 2011, p. 43).
28
Já os aspectos rítmicos, foram descendentes dos negros escravos e, as
letras, inspiradas no cancioneiro ibérico, com aspectos de canções medievais ou
indígenas, quando tratam de temas sobre a natureza.
Era, de qualquer modo, gente desgarrada, sem família, que vinha aqui para
roer sua saudade, sua memória, sua melancolia. Já de origem humilde em
sua terra (...), aqui eles perdiam de vez o pequeno contato que
eventualmente tivessem com o livro, a palavra escrita, a forma erudita de se
expressar. Já que o índio também não escrevia, essa acabaria por ser uma
das marcas da música caipira: a expressão oral, a informação boca a boca
que passa de um a outro. (...) A música caipira, portanto, se apoia no
inconsciente coletivo apenas verbalizado. Não por coincidência, alguns dos
maiores criadores desse gênero são gente simples, humilde, semi-
alfabetizada (...) Nossa moda de raízes é branca nas formas e rimas, e
africana, indígena e portuguesa no pensamento e afeto. Com uma alegria
que não esconde certa tristeza, o cantar caipira possui um fundo nostálgico,
como se alguma coisa se tivesse perdido ao longo do tempo. (...) São as
marcas do exílio: o português degredado e saudoso; o indígena humilhado e
desterrado em sua terra; o africano de pele escura, amargurado pela
escravidão. (...) Moda bem tocada é aquela que desperta em nós uma
saudade que a gente nem sabe do quê. (RIBEIRO, 2006, p. 19).
Um campo de risco
Na década de 1960, segundo Ribeiro (1995), o caipira vê-se diante de um
dilema: a porção de terra onde vive e planta, de que necessita para sobreviver, é
tomada por colonos italianos, espanhóis, poloneses e alemães. Assim, tem que
decidir entre tornar-se empregado dos novos donos daquela terra, submetendo-se a
um modo de vida que privilegia uma carga de trabalho à qual não está acostumado,
ou embrenhar-se em terras mais longínquas para tentar, de alguma maneira, manter
seu modo de vida. Ainda assim, conforme afirma Cândido (1987), aqueles que se
tornam assalariados resistem a integrar-se a um sistema de trabalho tão rígido, e
aqueles que se afastam tentam formar novos núcleos de convívio para manter suas
tradições.
29
Aos poucos, o caipira vai se integrando à cidade e deixando sua economia de
subsistência. Cândido (1987) coloca que ele passa a ter que adquirir quase tudo que
consome, adaptando-se assim às relações comerciais. Dessa maneira, percebe que
o padrão de vida que levava no campo, atendendo as necessidades básicas, é
considerado padrão de miséria perante a cidade, segundo Ribeiro (1995).
A terra, por isso, é necessária à perpetuação de sua cultura. Perder a terra
significa perder o meio fundamental que permite a construção da cultura
caipira. Sem a terra, o caipira vai desaparecendo. Em seu lugar surge o
assalariado do campo, ou mesmo o da cidade, cuja cultura sofrerá radicais
transformações. (BARSALINI, 2002, p.106).
Mantendo as tradições que lhes são permitidas, o caipira perpetua suas
relações em comunidade, seja nos bairros ou em família. A fé, a maneira de contar
histórias, o linguajar - que lhe são próprios -, e as horas passadas na cozinha ao
redor da mesa demonstram esse lugar como um espaço de afetos, “uma cultura
caipira que vai da mesa ao mito – o que se come e o que se conta enquanto come”
(BRANDÃO, 1983, p.75).
A cozinha é o espaço da convivência afetiva e do aconchego que aguçam
as lembranças. Generosas e fartas, muitas cozinhas ainda usam o fogão a
lenha com um fogo que nunca se apaga, um café sempre escoando e uma
fumaça suspensa no ar. Pela cozinha passam os cantos, um fragmento de
dança e muitas histórias que já pareciam perdidas no tempo. Neste espaço
singular da casa luta-se contra o esquecimento e a amargura aproveitando-
se o movimento ritualístico do preparo do alimento. O tempo da festividade
é longo e a cozinha não pode parar. (RODRIGUES, 1997, p. 98).
Imaginário acerca do caipira
Ao adentrar-me em tal cultura, tanto em pesquisas de campo no interior de
São Paulo e Minas Gerais, como através de livros e filmes, muitos pontos de vista e
imaginários sobre a figura do caipira me tomaram. Por exemplo, os personagens
como o Jeca Tatu – a destacar o lado preguiçoso desse povo sem levar em conta o
traumatismo cultural vivido, segundo Ribeiro (1995) – ou o Jeca de Mazzaroppi,
30
representante de um independente que dificilmente se curva a um poder senhorial,
segundo Barsalini (2002), alimentam em nós diversas facetas sobre a mesma figura,
(re) construindo o nosso olhar perante ela. Em campo, deparei-me com inúmeros
caipiras, colocando-me questões como a identificação e a rejeição com relação ao
universo pesquisado, ambas de extrema importância para esse processo. “Os
relacionamentos entre as pessoas são demarcados pela proximidade física e pela
relação emocional. Não importa se a emoção é de ódio ou de amor, ambas
possibilitam a aproximação das pessoas.” (RODRIGUES, 2003, p.24)
Eles, com seus olhares profundos, sorrisos largos, gestos amistosos,
passos tranquilos, humor inteligente, silêncios esplendidos, almas de
príncipes. Vidas simples, afazeres da lida diária. Nos sons das vozes, violas,
rabecas, confissões inesperadas, a sonoridade de uma substancia própria
(...) A figura de um homem essencial, arraigado a uma experiência de vida
cheia de uma radicalidade, indo a fundo, sem medir esforços, à disposição,
sorridente de sua escolha, revela-se na música, na fé, na lida da terra, na
dignidade de cada um, no respeito a si e ao próximo. (MARCHI, SAENGER,
CORRÊA, 2002, p.20).
Quais são os caipiras que residem em nosso imaginário? O senhor bondoso
sempre pronto a ajudar o próximo, a figura “pitando” de cócoras no meio do mato, a
senhora que habita o interior da casa, silenciosa e desconfiada, o contador de
histórias ou o homem que lida com os bichos e planta aquilo que come. Serão, de
fato, esses os caipiras com os quais nos deparamos hoje? Aquele que vive afastado
da cidade e leva uma vida simples pode ser o que permeia nosso imaginário, mas a
verdade é que nos deparamos com diversos caipiras. Esse termo, caipira, nos
sugere os seguintes aspectos:
Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de
convívio e modos rústicos e canhestros (sin.) (...) (FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,
apud BRANDÃO, 1983, p.9).
31
Homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou
trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público (...)
Habitante do interior, canhestro e tímido, desajeitado, mas sonso...
(CASCUDO, Luís da Câmara, Dicionário do Folclore Brasileiro, apud
BRANDÃO, 1983, p.10).
Ao buscar referências sobre tal figura, deparei-me com discursos semelhantes
e opostos que polemizam nossa visão sobre o caipira. Em razão disso, explanarei
aqui algumas delas. Primeiramente apresentarei a figura corajosa, independente e
valente, perpetuada por alguns escritores; em sequência, aquele homem que
assusta pela sua aparência, modos e violência, retratado por outros; e, por fim, a
figura dócil, amorosa e afetiva que carregamos conosco.
32
O aventureiro
O caipira é um obscuro e é um forte!
(PIRES, 1921, p. 05)
“Caipiras negaceando” (1888) obra de Almeida Júnior6
6 Foi um pintor e desenhista nascido em Itu - SP em 1850, precursor em retratar temáticas
regionais e o homem em seu cotidiano, trazendo para as telas muitas imagens sobre a cultura caipira.
33
Para falar do caipira como figura destemida, aventureira e corajosa, utilizamos
citações de Cornélio Pires, autor do livro “Conversas ao pé do fogo”, Antonio
Cândido em “Os parceiros do rio bonito - estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida”, e Lia Marchi, Juliana Saenger e Roberto
Corrêa, autores do livro “Tocadores – homem, terra, música e cordas”. Pires faz
descrição detalhada dos diversos tipos de caipira: o branco, o negro, o mulato e o
caboclo; Cândido faz uma abordagem sociológica e histórica do caipira e Marchi,
Saenger e Corrêa, utilizam-se de uma linguagem mais poética para descrever as
pesquisas de campo que fizeram, em busca das raízes culturais da música de
tradição oral brasileira.
Com linguagens diferentes, abordam características semelhantes desse povo.
Ei-lo tangendo suas “tropas” cargueiras, empoeiradas ou cobertas de lama,
pelos caminhos tortuosos e esburacados, furando matas virgens, galgando
montanhas ásperas, vadeando rios revoltos e pestíferos, afrontando
pantanaes e “atoledos”, atravessando campos e campos, vencendo
dezenas de léguas a pé ou arcado e molengão sobre o burro (p.4)
manteúdo, ao monótono “Belém-belém” do sino pendurado ao pescoço da
madrinha ruana! (...) É duro e constante na luta! conforto? deixá-los aos da
cidade... (PIRES, 1921, p.05)
Cândido cita o que alguns escritores relataram sobre o caipira:
Spix e Martius acharam que o paulista era aventureiro, “melancólico e de
gênio um tanto forte”; Hércules Florence assinala que “os habitantes de São
Paulo, como em geral os de toda a província, são tidos entre os brasileiros
por valentes e rancorosos”; todos, porém, reputam-no hospitaleiro e franco.
(CÂNDIDO, 1987, p.42)
Enfim, encontramo-nos com Marchi, Saenger e Corrêa, que nos enchem de
imagens ao falar desses homens e de suas sagas de maneira poética.
No olho do homem um deserto desafiador, feito para ser atravessado,
vencido, revelando histórias escondidas, abrindo espaço para sagas de
34
famílias inteiras, levadas no vento do cerrado e nas marés do litoral. (...) A
história de um lugar que é sozinho, de tão sozinho ganhou vida, virou gente,
cheio de contos e canções perdidas, de vontades, de poderes, de amores,
conflitos, canudos, farrapos, queimadas, carvão, raios, enchentes,
tempestades. Um grito que ecoa pelo tempo. A memória de uma história de
desbravamento. (MARCHI, SAENGER, CORRÊA 2002, p. 73)
35
Meio homem, meio bicho
“Peregrino” (1894) obra de Almeida Júnior
36
Em busca de outras imagens sobre o caipira, encontramos uma referência
que os retrata como bichos, demônios malfazejos e feios. Tais citações estão na
obra de Carlos Rodrigues Brandão, autor do livro “Os caipiras de São Paulo”, que
cita a viagem feita pelo francês Auguste de Saint-Hilaire ao Brasil, no livro “Viagem à
Província de São Paulo”.
Estes últimos, quando percorrem a cidade, usam calças de tecido de
algodão e um grande chapéu cinzento, sempre envolvidos no indispensável
poncho, por mais forte que seja o calor. Denotam os seus traços alguns dos
caracteres da raça americana; seu andar é pesado, e têm o ar simplório e
acanhado. Pelos mesmos têm os habitantes da cidade pouquíssima
consideração, designando-os pela alcunha injuriosa de caipiras, palavra
derivada possivelmente do termo curupira, pelo qual os antigos habitantes
do país designavam demônios malfazejos existentes nas florestas...
(Viagem à Província de São Paulo), (BRANDÃO, 1983, p.11).
Feios, sujos, violentos e miseráveis, foram alguns dos adjetivos que
sintetizaram a figura do caipira para Saint-Hilaire, quando veio ao Brasil, em 1816.
Os moradores das mesmas, provavelmente oriundos das raças africana,
americana e caucásica misturadas entre si, eram de feio aspecto e
excessivamente imundos, pela lividez da pele e pela extrema magreza
demonstravam servir-se de alimentação pouco substancial ou insuficiente;
muitos dentre eles eram desfigurados por enorme papo. As mulheres tinham
os cabelos desgrenhados e o rosto e o peito cobertos de sujeira; as crianças
pareciam enfermas e eram tristes e apáticas; os homens eram abobados e
estúpidos. Parece que esses infelizes tinham muita preguiça para o
trabalho, só cultivando o estritamente necessário à satisfação das próprias
necessidades, e a seca do ano anterior levou ao cúmulo a sua miséria.
Quase por toda a parte me pediam esmola; desde que me encontrava no
Brasil, não presenciara em parte alguma tamanha pobreza. (Viagem à
Província de São Paulo), (BRANDÃO, 1983, p.16).
Eu ouvia, desde que atravessei a fronteira de São Paulo, falar-se,
comumente, em matar, como em qualquer outra parte se falaria em dar
bengaladas. Chumbo na cabeça, faca no coração, eram as doces palavras
37
que, constantemente, feriam meus ouvidos. Os antigos paulistas faziam tão
pouco caso da própria vida, como da de seus semelhantes. (Viagem à
Província de São Paulo), (BRANDÃO, 1983, p.18)
38
Dócil e amoroso
“Cozinha caipira” (1895) obra de Almeida Júnior
39
Por fim, encontramos as referências que tratam do caipira como o homem
singelo, pacato e acolhedor, em Pires e Marchi, Saenger e Correa.
Docil e amoroso é todo camponez; sincero e affectivo é o caipira. (PIRES,
1921, p.07)
Nascidos fora das cidades, criados em plena natureza, infelizmente tolhidos
pelo analfabetismo, agem mais pelo coração que pela cabeça. Tímidos e
desconfiados ao entrar em contacto com os habitantes da cidade, no seu
meio são expansivos e alegres, folgazões e francos; mais francos e
folgazões que nós outros, os da cidade. De rara intelligencia – não vae nisto
exagero – são, incontestavelmente, mais argutos, mais finos que os
camponeses estrangeiros. Comprehendem e aprehendem com maior
facilidade; facto, aliás, observado por estrangeiros que com elles têm tido
occasião de privar. (PIRES, 1921, p.06).
O silêncio e a solidão também embalam esse nosso imaginário.
Neste cenário silencioso, que ganha o nome de interior, um homem que
sabe de onde vem, que se orgulha de suas raízes e se encontra nelas, que
tem a capacidade de continuar permanecendo o mesmo de antes,
comprometido com sua história. O homem e o deserto, encontram-se em
sua solidão. A capacidade de ouvir o silêncio, interrompido pelo canto da
inhuma, pelas águas do rio e da chuva, pelas marés, pela poeira que viaja
com o vento, pelo som da viola, instaurou neles uma dimensão de
universalidade assustadoramente explicável, essencialmente humana e
desejável. (MARCHI, SAENGER, CORRÊA, 2002, p.73)
No silêncio, nas lonjuras, nos pequenos sons, na aridez do chão (...)
floresceu um homem monumental, dono de si, amoroso dos seus, capaz de
fazer o chão dar frutos, respeitoso de suas crenças, criador de sua música,
alegre de sua vida. (MARCHI, SAENGER e CORRÊA, 2002, p.74)
Em mim o caipira
Nascida e criada em Jaú, no interior do estado de São Paulo, minha infância e
adolescência foram repletas de cozinhas, modas de viola – ouvidas no radinho de
40
pilha - e idas à igreja. Ao selecionar um tema para minha pesquisa de campo, o
caipira estabeleceu-se, pois havia uma necessidade de entrar em contato com as
minhas raízes para, assim, perscrutar-me mais fundo. Além disso, o campo
escolhido dialogava com Portugal, pois várias manifestações atreladas à cultura
caipira têm origem nas terras lusitanas, fato não conjecturado no momento da
escolha, mas repleto de sentido, pois havia regressado recentemente de um
intercâmbio nesse país que, além de ter me propiciado o despertar de um intenso
período de auto conhecimento, também foi o disparador de um processo criativo.
Assim, voltava-me para as minhas origens e olhava para o colonizador e para o
colonizado, ambos existentes em mim.
Deste modo apresentam-se as origens dessa festividade e desse ritual,
ambos atrelados a Portugal, a começar pela Folia de Reis.
As folias do Espírito Santo, conquanto pareçam ter tido uma origem pagã no
druidismo, ou na superstição grega, todavia elas foram introduzidas em
Portugal e nas Ilhas dos Açores com a maior devoção e piedade. Antes de
estabelecidos entre nós os impérios do Espírito Santo, tínhamos as folias
denominadas do Bispo Inocente; as quais também foram solenizadas na
França, e eram anualmente com esplendor festejadas em São Martinho de
Tours. E posto que condenadas no ano de 1260, todavia ainda no século
XVII as tivemos com grande pompa na Catedral de Lisboa. (Arquivo dos
Açores, p. 183, apud DPH-IPPLAP, 2012 p. 21).
Paralelamente aos rituais religiosos ocorriam as festas nas ruas. Em
Portugal, a Folia era uma dança popular e profana, nos séculos XVI e XVII e
foi descrita como uma “dança de homens vestidos à portuguesa, com guizos
nos dedos e gaitas e pandeiros, girando e pulando à roda de um tambor”.
(CASSIANO, 1998, p.47)
Por fim, as origens da Encomendação das Almas.
Não se dispõe ainda da data certa de sua entrada no país, via Portugal. As
notícias mais remotas que se tem divulgado, datam do começo do século
XIX, mas é plausível que a tenham introduzido antes. As formas mais
41
primitivas, em voga naquela centúria, traziam consigo homens penitentes,
que se auto-flagelam. A auto-flagelação é feita com o chicote chamado
“disciplina”, feito de couro cru ou fio de linho ou algodão trançado, tendo no
extremo cacos de vidro, pregos, lâminas metálicas cortantes. Ao término do
ritual estão enxangües. O sangue escorrido é uma purificação, obtida pelo
ato extremado. (PASSARELLI, 2007, p.02).
A fé católica foi algo muito presente em minha história, pois por muitos anos
fiz parte do “Caminho Neocatecumenal”, um itinerário de formação cristã que
frequentava em minha cidade, da infância à adolescência. A rigidez da doutrina
gerava frequentemente um sentimento de culpa, que era reforçado ao sermos
lembrados de que somos pecadores, desde o dia em que “Eva comeu a maçã”. Com
isso, esse aspecto do catolicismo ligado às penitências e aos sacrifícios, ressoam
muito em mim, e estão atrelados, de alguma forma, à cultura caipira, que feita de
lenha, fogo, terra, canto, reza, velas, santos, mato, entre outras coisas, permeia meu
imaginário e minhas memórias. Sendo assim, nesse momento aproximo-me de suas
cozinhas, suas porteiras, sua terra e seus altares, para desvendar e (re) encontrar
em mim seus afetos e significados.
A fim de entrar nesse universo, recorro às raízes, meus ancestrais.
Entrecortado por choros e com a gagueira acentuada por conta da idade, seu
Manoel, mais conhecido como seu Mané, meu avô, deixa escapar a mim algumas de
suas histórias vividas nos tempos da roça.
Tem tanta coisa pra contar... uma vez tava andando de cavalo na fazenda,
era meia-noite, vi um cachorrão grande, não sei o que era... era lobisomem.
Depois sumiu. Tinha medo, tinha. Essas coisas só acontece à noite, de dia
não. Ainda mais que era tempo da quaresma... coisa ruim. E quando estava
andando no meio do cafezal, à noite também, um clarão desceu do céu e
iluminou um pedaço do caminho. O cavalo parou, não queria ir. Tivemos
que esperar a luz sumir. Vi também uma bola de fogo uma vez no alto de
um morro. Tava sempre sozinho...mas agora não vou falar não.
42
Com a audição e fala já debilitadas por conta de dois derrames, seu Mané
parece ainda estar a cavalgar. Estar ao seu lado é como revisitar um desconhecido,
do qual estranhamente sinto saudades. Através do seu olhar longínquo posso tocar
a mata e sentir o cheiro da noite, aquelas noites de solidão que ele guarda consigo,
como um segredo. Nesse momento subo com ele no cavalo e divido a nostalgia. Às
vezes, um fumo e um gole de pinga para acalentar a passagem das horas. De um
jeito manso, próprio daqueles que sabem o valor do silêncio, seu Mané prefere calar-
se para evitar que as águas lhe molhem o rosto, deixando assim que eu mesma
cavalgue para onde minha imaginação alcançar.
Sem puxar conversa, apenas observa a movimentação em sua pequena
casa. Minha avó Luzia cuida de suas necessidades básicas e não deixa faltar-lhe o
café e o pão. Diferente dele, não lhe falta conversa. Porém, as histórias são bem
diversas: ela conta sobre o trabalho na roça, sobre as horas que passava debaixo do
sol com os filhos no cafezal, sobre às vezes em que ia de charrete até a cidade
visitar os pais e sobre os botijões de gás e bacias com roupa já carregados na
cabeça. Com isso, enquanto meu avô cavalga à luz do luar, minha avó está fincada
no chão, carregando sua enxada.
Filhos de italianos e espanhóis levam os anos que lhes restam de maneiras
distintas, porém ambos carregam, no olhar e no peso das mãos, porções de terra e
de histórias. Foi com eles que aprendi a simplicidade e a humildade diante da vida, e
é neles que minha base está plantada. Longe de grandes ambições financeiras e
sociais, criaram os três filhos na roça, com o suor do próprio rosto. Suor de verdade,
gerado pela enxada, pelo trabalho com a terra, com os animais, de sol a sol, todos
os dias. Assim passaram aos filhos e netos firmeza e coragem para encarar a vida,
misturada a uma doçura de quem, no fundo, não leva a vida tão a sério assim.
Sussurrando os segredos de sua alma, ouvindo da terra os segredos de sua
lida. E o segredo é não contar o segredo. (...) Esse homem – em sua
humanidade encantadora, preservada por um lugar onde o tempo é outro,
regido por sua terra, por sua solidão, por sua música, por seus amores, tem
43
dentro de si a perfeita convivência entre a rudeza e a delicadeza. (MARCHI,
SAENGER e CORRÊA, p. 74, 2002).
Assim, o meu imaginário sobre a cultura caipira até as pesquisas de campo
abrangia o fogão a lenha, a moda de viola, as cozinhas, os benzimentos, o mato, a
terra, as plantações, a noite, o cavalgar, seres como lobisomem e curupira, o céu
imensamente estrelado, as velas, as romarias, as ladainhas e os véus. A partir disso
fui a campo, e ali me deparei com inúmeros caipiras, condizentes e opostos a esse
imaginário. Histórias de morte, violência e solidão, e atos generosos, afetivos,
sensíveis e simples me tomaram, mexendo profundamente comigo, indo da rudeza à
delicadeza, do material ao espiritual e da solidão ao afeto. Descreverei mais sobre
minha relação com o caipira mais adiante, quando dissertarei sobre o meu processo
dentro do método BPI.
44
METODOLOGIA, MATERIAIS E PROCEDIMENTOS
Metodologia
Para o desenvolvimento desta pesquisa foi utilizado como método, o
Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI), criado pela Profª Drª Graziela Rodrigues, pois
em suma, ele proporciona uma “escavação” interna àquele que o vivencia,
colocando-o em contato com aspectos profundos de si mesmo encontrados em seu
corpo, e através da relação com o outro, tendo como intuito alcançar um material
artístico expressivo que nasça no mais íntimo do intérprete, já transformado pelo
campo, e transborde para quem assiste a ele.
Todo esse processo proporcionado pelo BPI trouxe um amadurecimento da
intérprete-criadora, tanto como artista como em todos os outros âmbitos, pois
acolhendo e conhecendo a si mesma, algo que o método proporciona, pode
expressar-se com mais inteireza.
Tal método foi criado na década de 1980, e desde aí muitos o vivenciaram,
dentro e fora da Universidade. As principais publicações para compreender o
método são o livro e a tese de Graziela Rodrigues (1997 e 2003 respectivamente).
No entanto, atualmente somam-se a essas referências inúmeras outras, totalizando
mais de 100 publicações sobre o assunto. Estruturado basicamente em três eixos, o
Inventário no Corpo, o Co-habitar com a Fonte e a Estruturação da Personagem,
estes entrecruzam-se o tempo todo, conduzindo o processo do artista (Rodrigues,
2003). Dão suporte ao desenvolvimento dos eixos cinco ferramentas: Técnica de
Dança, Técnica dos Sentidos, Laboratórios Dirigidos, Pesquisas de campo e
Registros (Rodrigues, 2010). Assim sendo, descreverei os três eixos a seguir.
O Inventário no Corpo
É a primeira etapa a ser vivenciada dentro do método, não se excluindo a
possibilidade de revisitá-la em outros momentos. Nesse eixo, o intérprete entra em
contato com a sua história, suas memórias e consequentemente com o meio em que
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está inserido, percebendo como todos eles estão inscritos em seu corpo. Um roteiro
para pesquisa com os próprios familiares e para reflexões pessoais auxilia-o nesse
contato com a história familiar. Assim, reflete sobre sua descendência, as religiões e
festividades em sua família e as próprias lembranças sobre suas terras, seus
caminhos, suas trilhas, suas estradas e seu terreiro. Além disso, reflete também
sobre o significado da Dança em sua vida e o que o moveu a isso. Na parte prática,
as atividades corporais, que têm como princípio a Técnica de Dança organizada por
Rodrigues (1997) que será descrita adiante, acontecem continuadamente,
preparando o intérprete para vivenciar a Técnica dos Sentidos que o colocará em
contato com seus conteúdos internos através de imagens, movimentos, sensações e
emoções impregnadas em seu corpo. Assim, o intérprete ganha consciência daquilo
que está nele e pode perpassar conteúdos que, de alguma forma, impedem o fluxo
desses sentidos e limitam sua expressividade, possibilitando expandir seu discurso
artístico para conteúdos que dialogam com a sociedade.
Observa-se que após a realização do Inventário no Corpo há um maior
desprendimento do corpo para articular o movimento que lhe faz sentido,
como também aumentam as condições de elaboração de movimentos com
valor artístico. (RODRIGUES, 2003, p.96)
O Co-habitar com a Fonte
A relação interpessoal é o que nos propõe esse eixo. Nessa etapa, o
intérprete seleciona um local onde queira realizar a pesquisa de campo, estando ela
circunscrita a algum segmento social ou manifestação cultural brasileira à margem
da sociedade dominante, e que por esse motivo contém em si traços de resistência
cultural. A escolha desse campo possibilita ao intérprete conviver com uma realidade
distinta da sua, propiciando que ele expanda sua visão sobre o outro, através de
uma possível quebra de preconceitos, máscaras e tabus, além de ampliar sua
percepção sobre si, pois ao deparar-se com outra realidade, identificações e
rejeições vem à tona, fazendo emergir conteúdos muitas vezes desconhecidos.
46
O Co-habitar com a Fonte possibilita uma rica interação entre corpos. Paul
Schilder (1994), coloca que as relações entre as pessoas são relações entre
imagens corporais. O pesquisador ao estabelecer uma fina sintonia no
contato com o outro poderá sintonizar-se consigo mesmo e se conhecer.
(RODRIGUES, 2003, p.105).
O Co-habitar com a Fonte foi o principal eixo desta pesquisa, em que a
recepção do pesquisado no corpo, apreendendo sinestesicamente a paisagem, o
ambiente, os cheiros, as cores, as expressões, os sons e as histórias de cada
campo encheram meu corpo, possibilitando-me entrar em contato com conteúdos
profundos que estavam adormecidos, conduzindo-me a perceber que “Não há como
chegar aos recônditos da arte sem levar a si mesmo” (Rodrigues, 2003, p.13).
A escolha do campo é feita por afinidade e por desejo, e inconscientemente o
campo escolhido dialoga com questões do intérprete que necessitavam vir à tona no
momento. “A escolha do intérprete pelo campo tem ligação com questões ainda não
conscientes de seu interior e, ao mesmo tempo, com uma identificação cultural deste
com esse campo.” (Rodrigues, et al. 2016, p. 559). Após ter estabelecido um contato
mais profundo consigo mesmo, propiciado pelo Inventário no Corpo, o pesquisador
pode ir a campo para apreender física e emocionalmente as sutilezas de cada lugar
e de cada pessoa ali encontrada, expandindo e “destampando” seu corpo, a partir
daquilo que encontra no outro.
Quando cada um de nós está buscando sintonizar com outra pessoa, somos
também nós mesmos de forma mais plena, presentes e conectados a este
outro. A sintonia é um sentir cinestésico e emocional do outro – conhecer
seu ritmo e experiências, por estar metaforicamente falando, na sua pele.
(ERSKINE, 1997, p.1, apud RODRIGUES, 2003).
Para tornar esse corpo receptivo, centrado e presente, a fim de receber o
outro no corpo, os Laboratórios Dirigidos caminham nesse sentido, preparando o
corpo do bailarino através da Estrutura Física e Anatomia simbólica do método, que
descreverei a seguir, sabendo que Co-habitar, de fato, se dá quando o pesquisador,
47
por um momento, sente-se parte do lugar que está pesquisando, absorvendo
imagens de corpos que se mesclarão ao seu.
Segundo Rodrigues (2003), a preparação do corpo do intérprete para ir à
pesquisa de campo acontece por meio de diversos exercícios e reflexões, dentre
eles aqueles que visam: a ampliação dos referenciais, quando o bailarino necessita
ampliar sua percepção sobre o que é dança e exercitar a observação dos seus
sentimentos em relação aquilo que vê; a ampliação do olhar para o outro,
conquistada a partir de uma fina percepção do próprio corpo, em que o
enraizamento e a expansão auxiliam nesse aspecto, além de um estado de
presença oposto a um corpo relaxado; e, por fim, ter a minúcia necessária para
poder ler o movimento do outro, baseando-se na Estrutura Física e Anatomia
Simbólica como referência a essa leitura. A cada dia de pesquisa de campo, a
experiência é registrada em Diário.
A Estruturação da Personagem
Após ter vivido todo o processo, o bailarino “Incorpora” uma personagem,
criada a partir do entrelaçamento de aspectos do intérprete, suas memórias e o
campo vivenciado. Isso se dá por meio dos Laboratórios Dirigidos, em que o diretor -
figura indispensável para a realização desse processo - está junto do intérprete,
orientando-o e questionando-o a fim de colocá-lo em profundo contato consigo,
propiciando que brote daquele corpo uma expressividade potente.
Rodrigues (2003) explana o termo “incorporação” na visão de Melanie Klein,
segundo Hinshelwood (1992, p.357) a fim de explicitar os sentidos atribuídos ao
termo que também é utilizado no método.
O termo "incorporação• refere-se à fantasia da absorção corporal de um
objeto que é subsequentemente sentido como fisicamente presente dentro
do corpo, ocupando espaço e sendo ativo Iá. E a experiência que o sujeito
tem de um mecanismo de defesa que é objetivamente descrito como
introjeção. (HINSHELWOOD, 1992 apud RODRIGUES, 2003, p.123).
48
Além disso, considera-se seu sentido nos cultos afro-brasileiros, onde
Rodrigues (2003, p. 123) descreve que:
Esse fenômeno da incorporação nos ritos afro-brasileiros é quando o santo
ou entidade é recebido pela pessoa iniciada. Ora, o interesse nas pesquisas
de campo sobre este fenômeno foi devido à riqueza que o corpo em transe
expressava e principalmente ao fato do próprio crente dizer que se tratava
de um processo em que noventa por cento dependia da pessoa e apenas
dez por cento era atribuído ao "santo".
Dessa maneira, o momento da Incorporação da personagem no método
sintetiza esse cruzamento de imagens corporais que não passam pela nossa via
cognitiva e que expressam fragmentos de nós mesmos, muitas vezes
desconhecidos.
O termo Incorporação é utilizado no método BPI para representar o
momento dentro do processo em que a pessoa alcança uma integração das
suas sensações, emoções e imagens, vindas até então desconectadas. É
um fechamento de gestalten, de onde emanam novos conteúdos bem
delineados, constituindo a personagem (Rodrigues, 2003, p.124).
Durante todo esse processo, a imagem corporal do intérprete, da qual fala
Schilder7 (1994), é descontruída e reconstruída inúmeras vezes, devido à vivência
nas pesquisas de campo em que apreendemos o outro no próprio corpo, e as
modelagens que emergem durante o processo.
Expandimos e contraímos o modelo postural do corpo; retiramos e
adicionamos partes; reconstruímo-lo; misturamos os detalhes; criamos
novos detalhes; fazemos isso com o nosso corpo e com sua própria
expressão. Fazemos experiências constantes com ele. Quando a
experimentação através dos movimentos não é suficiente, acrescentamos a
influencia do aparelho vestibular e de intoxicante da imagem. Quando,
mesmo assim, o corpo não é suficiente para expressar as mudanças lúdicas
7 Psiquiatra, neurologista e formado também em psicanálise e filosofia.
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e destrutivas que ocorrem nele, acrescentamos roupas, máscaras, jóias,
que por sua vez também expandem, contraem, desfiguram ou enfatizam a
imagem corporal e partes dela. (SCHILDER, 1994, p.183 apud
RODRIGUES, 2003, p.121).
A história de vida da pessoa irá determinar a estrutura da imagem corporal,
principalmente no início do seu desenvolvimento. As primeiras experiências
são fundamentais na estruturação da imagem corporal. As ações e atitudes
das pessoas que a cuidaram, os toques (qualidade e intenções dos
mesmos) e as palavras, inscrevem uma história no seu corpo. O próprio
interesse destas pessoas em relação aos seus próprios corpos terão surtido
influência na formação da pessoa. As doenças que ela teve também
provocarão ações em seu próprio corpo. As experiências e as atividades
vividas por cada pessoa farão o traçado específico da sua imagem corporal.
Uma estruturação que nunca cessa, continuando sempre por toda a sua
vida. (RODRIGUES, 2003, p.21)
Dançar com a personagem traz uma força e um sentido ao corpo, pois ela
nucleia e ao mesmo tempo amplia os conteúdos mobilizados no intérprete.
Acompanhados por rejeição ou identificação do intérprete, os conteúdos dessa
personagem vão sendo desenvolvidos e, com o trabalho contínuo, aquele passa
gradualmente a assumir o que rejeitou de si mesmo. Dessa maneira, o intérprete
vive o processo, reconhecendo a si mesmo e ao outro, para chegar a uma
expressão artística que nasça de suas vísceras e que brote do corpo, tamanha a
força, a originalidade e a precisão ao dizer, sobre o mundo, a partir de si.
A personagem preenche os espaços do corpo, amplia-os com seus
sentidos, havendo assim espaço para me moldar e me transformar, como
um barro que se modela. A pele é sensível à paisagem que penetra, a
respiração se altera, a sensibilidade do corpo se amplia, ela ganha corpo e
não se cristaliza numa forma, pois cada dia se apresenta de uma maneira. É
viva e orgânica. (Resposta de questionário em RODRIGUES, 2003, p.139)
50
As ferramentas do método BPI
Para vivenciar os eixos descritos anteriormente, são utilizadas cinco
ferramentas dentro do método, discriminadas a seguir (ver Rodrigues, 2010).
- A Técnica de dança do BPI
Tal técnica foi estruturada a partir do estudo e decodificação da organização
dos corpos das pessoas que fazem parte de culturas de resistência, sendo elas
integrantes de segmentos sociais ou manifestações culturais brasileiras, em que
foram feitas diversas pesquisas de campo por Rodrigues. A partir disso,
organizaram-se a Estrutura Física e a Anatomia Simbólica, descritas mais adiante
neste texto, trabalhadas pelos intérpretes em processo no método BPI, além de
serem utilizadas como base para análise dos corpos das pessoas das pesquisas de
campo.
-A Técnica dos Sentidos
A Técnica dos Sentidos é um circuito de imagens, sensações, emoções e
movimentos, através do qual o intérprete explora e elabora no corpo conteúdos
internos que fazem parte da dinâmica das suas imagens corporais, modelando-os e
aceitando-os como parte de si mesmo, no decorrer do processo. A todo momento
componentes desse circuito se entrecruzam, podendo aparecer de maneira conjunta
ou isolada durante a prática dos Laboratórios Dirigidos, através de um movimento
que clareia uma imagem, uma imagem que causa emoção, ou uma emoção que traz
uma sensação. Assim, o intérprete vai aos poucos cavando mais fundo e
descobrindo um pouco mais sobre o que trafega no seu corpo. A Técnica dos
sentidos vai possibilitando maior compreensão sobre aquilo que brota do corpo do
intérprete, fazendo com que seu produto artístico possa nascer das vísceras, e se
desenvolver ao nível da consciência.
Essa técnica é trabalhada nos três eixos do BPI, possibilitando ao intérprete
um profundo contato consigo mesmo, ao perceber seus conteúdos internos, ao estar
51
em relação com o outro nas pesquisas de campo, e ao elaborar criativamente as
relações entre esses conteúdos nos laboratórios dirigidos.
-Os Laboratórios Dirigidos
Os laboratórios dirigidos são conduzidos pelo diretor, a fim de propiciar que
diferentes conteúdos possam emergir do corpo do intérprete, estando eles ligados
ao Inventário no Corpo, à experiência do Co-habitar com a Fonte e ao processo da
Estruturação da personagem. Os laboratórios são feitos em espaços individuais
circunscritos, aos quais se nomeia Dojo um círculo traçado em volta do bailarino,
para demarcar o espaço onde entrará em contato com seus conteúdos internos. O
intuito é que, no final do processo, possam construir juntos, diretor e intérprete, o
trabalho artístico que sintetizará todo esse trajeto.
Os estudos de imagem corporal consideram ao redor do corpo uma
extensão do corpo por ser uma esfera de sensibilidade especial. Segundo
Paul Schilder, do ponto de vista psicológico, os arredores do corpo são
animados por ele. Em dança, este espaço significa um espaço pessoal que,
segundo Laban, é chamado kinesfera. Em tradições orientais este espaço
em torno do corpo é chamado de dôjo, espaço este que o guerreiro deve
cuidar para que não seja invadido pelo inimigo por ser parte do seu corpo.
(RODRIGUES e MULLER, 2006, p. 136, apud NAGAI, 2012, p. 26).
- As Pesquisas de Campo
Este é o momento em que o intérprete vai para fora, para depois retornar de
modo mais profundo a si mesmo. Durante os três eixos ocorrem as pesquisas de
campo, porém alteram-se os seus ambientes. No eixo O Inventário no Corpo, ela
acontece em locais que dizem respeito à memória do intérprete, no Co-habitar com a
Fonte ocorre de maneira mais intensa, pois o intérprete necessita sair de seu lugar
comum e abrir-se para relações, e no terceiro eixo, a Estruturação da Personagem,
se realiza em locais que estejam em função daquilo que foi incorporado.
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-Os Registros
Os registros são feitos através de diários de campo e de laboratórios, em que
o intérprete descreve minuciosamente tudo aquilo que foi vivenciado. Os registros
audiovisuais das pesquisas de campo são esporádicos, já que se prioriza a relação
pessoal, e os dos laboratórios acontecem com maior constância no final do
processo. O diretor também faz registros, a fim de auxiliar o intérprete a traçar o
mapa de consciência sobre o seu trajeto. (Rodrigues, 2010).
A Estrutura Física e sua Anatomia Simbólica
A Estrutura Física e a Anatomia Simbólica compõem a ferramenta da Técnica
de Dança do método BPI. Aqui as descreveremos sinteticamente, com base em
Rodrigues (1997). A autora enfatiza que a Estrutura Física - vista nos corpos em
campo e posteriormente sintetizada para o trabalho nesse método - caminha para o
recebimento do campo simbólico, assim como o recebimento do campo simbólico
caminha para essa Estrutura Física. Um dos aspectos fundamentais para que tal
conexão se dê, é que ao trabalhar um profundo “enraizamento” do corpo através do
contato dos pés com o solo, o bailarino refina a percepção sobre si mesmo e sobre o
outro, pois tal organização auxilia na percepção da imagem corporal, segundo Paul
Schilder (1994), e prepara o corpo para a Técnica dos Sentidos.
Esse corpo aberto, receptivo e repleto de sentidos, acionado por tal Estrutura,
se organiza pelo conceito de corpo-mastro, definido por Rodrigues (1997), em que a
parte inferior do corpo, sua base, os pés, interligam-se profundamente com o solo,
como se tivessem raízes. Eles recebem e devolvem energia à terra, e a musculatura
em espiral das pernas respeita os espaços de articulação. A bacia responde à
gravidade, e o cóccix, em direção ao chão, proporciona a sensação de uma terceira
base. A parte de cima do corpo interliga-se ao céu: tronco, braços e esterno, que
centraliza o emocional. O corpo traz em si mesmo o mastro festivo observado
53
nessas manifestações, em que as energias correm do céu para a terra, vivificando o
corpo. O cruzamento de energias e consciência da integração das partes opostas do
corpo, direita superior com esquerda inferior, por exemplo, empresta uma unidade e
concentração de força ao centro deste.
O corpo-mastro recebe a força do céu e da terra, encontra seu eixo e o
flexibiliza. Estando aberto aos aspectos simbólicos, os processa e expurga através
da explosão do movimento, conduzido através de cada parte do corpo. (Rodrigues
1997).
-Partes inferiores
Ligados à terra, os pés experimentam diversos apoios em relação ao solo,
mastigam, afundam e amassam, rotacionam e flexionam-se em diversos sentidos,
direções e com diferentes esforços. Os principais apoios são os dedos, metatarso,
calcâneo, dorso e bordas, sendo eles pequenos, médios ou grandes, utilizam
esforços mínimos, medianos ou máximos, sutilizando, deixando as raízes soltas ou
enraizando no solo, respectivamente.
-Os joelhos
Os joelhos flexionados possibilitam maior liberdade de movimento aos pés, e
influenciam a posição da bacia e da estrutura corporal como um todo. A quebra de
joelhos, a projeção à frente, e o pôr-se de joelhos estão presentes. Muitas vezes a
ação dos joelhos simboliza uma saudação ou o recebimento do sagrado, segundo
Rodrigues (1997).
-A pelve
A sensação de ter um prolongamento que nasce do cóccix em direção ao solo
é uma constante nessa prática. Tal sensação concede maior tração para o solo e
uma verticalidade do tronco, fazendo com que as cristas ilíacas se elevem.
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Na movimentação da pelve através do cóccix, muitas vezes é desenhado o
símbolo do infinito; assim, a bacia expande-se internamente e as articulações coxo-
femurais ganham espaço. Dessa maneira, segundo Rodrigues (1997), a pelve está
sustentada, ganhando densidade e volume, quando o movimento é realizado com
maior força de tração e adquirindo velocidade e agilidade quando esta força diminui.
O tronco permanece atuante, mesmo nos momentos em que não apresenta tanta
mobilidade.
-Partes superiores
A relação com o solo, buscada através da base, empresta maior mobilidade
ao tronco que se interliga ao céu. A coluna vertebral alonga-se e adquire variadas
posturas destacando-se as: vertical, perpendicular, abaulada e horizontal. No que diz
respeito a alguns de seus sentidos significativos, Rodrigues (1997) destaca que a
verticalidade está relacionada à ação de fincar o mastro; a postura perpendicular
oferece maior agilidade e indica certa reverência ao sagrado, quando acentuada; a
abaulada geralmente aparece quando se faz uma relação com a ancestralidade,
ganhando densidade e um ritmo mais lento; já a postura horizontal aparece, por
exemplo, em folguedos nos quais existem personagens animais.
-O tronco
Segundo Rodrigues (1997), dentre suas várias dinâmicas, as escápulas
movem-se frequentemente alternando-se e participando das torções, as quais
acentuam a força de tração para o centro do corpo. Os ombros variam entre
alternâncias, suspensões e quedas. Os braços se estendem até as pontas dos
dedos das mãos, a partir do osso esterno, que centraliza o estandarte da Anatomia
Simbólica. Os cotovelos pontuam o espaço, abrem ou protegem a parte anterior do
tronco.
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-Mãos
As mãos exploram variadas possibilidades de movimentos, assim como os
pés. Segundo Rodrigues (1997), muitas vezes as mãos materializam o imaginário
através de seus movimentos, denotam aspectos simbólicos ligados a arquétipos e
agem na expressão do que está armazenado no corpo. Assim, seus gestuais são os
mais diversos: transformam-se em armas, empurram, abrem caminho, interligam céu
e terra. Nas manifestações e rituais pesquisados por Rodrigues, as mãos são
sempre muito presentes; elas falam, assim como os pés.
-Cabeça
De acordo com Rodrigues (1997), os devotos e filhos de santo dizem que o
Santo reside na cabeça, e é ali também que estão nossas forças mentais,
relacionadas às nossas sensações físicas e de movimentos. A cabeça direciona-se
para o alto, para baixo, rotaciona-se, pontua-se e pende para as laterais, denotando
diferentes sentidos. O olhar direciona a cabeça para dentro, para fora, para o alto ou
para o solo, de acordo com cada intenção.
Materiais e procedimentos
As pesquisas e os Diários de Campo
As pesquisas de campo foram realizadas entre agosto de 2015 a junho de
2016, abrangendo rituais e manifestações religiosas, o cotidiano e o trabalho na
cultura caipira, variando o tempo de permanência em cada uma delas. Foram feitos
registros fotográficos, audiovisuais e nos diários de campo em todas elas, a seguir:
-Colheita de café na fazenda São Marcelo em agosto de 2015, em Jaú, SP;
-Festa do Folclore em agosto de 2015, em Santo Antônio da Posse, SP;
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-Terço de São Gonçalo em setembro de 2015, próximo a Santo Antônio da Posse,
SP;
-Revelando SP8 em setembro de 2015, em Valinhos, SP;
-Procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em outubro de 2015, em Pedra Bela,
SP;
-Sítio da dona Mariquinha em novembro de 2015, em Bofete, SP;
-Folia de Reis em janeiro de 2016, em Três Pontas, MG;
-Encomendação das almas em março de 2016, em São Tiago, MG;
-Romaria à Pirapora em março de 2016, em Pirapora, SP;
Comitê de ética
Para ser possível citar nomes de pessoas e locais envolvidos nessa pesquisa,
recorreu-se ao Comitê de Ética e realizaram-se os procedimentos necessários. Cada
participante e/ou instituição envolvida assinou um Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido e uma Autorização de Coleta de Dados – o modelo encontra-se em
anexo - fornecidos pelo Comitê, o que permite citá-los neste trabalho.
8 Festival que ocorre algumas vezes por ano em diversas cidades do interior de São Paulo,
afim de disseminar a cultura, arte e culinária paulista.
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Laboratórios Dirigidos e Diário de Dojo
Os Laboratório Dirigidos tiveram início nas aulas de Dança do Brasil a partir
de agosto de 2015, e se aprofundaram na disciplina intensiva da Pós-graduação
cursada em fevereiro de 2016. Desde abril de 2016, quando a etapa da Pesquisa de
Campo foi encerrada, os laboratórios passaram a ocorrer também de forma
individualizada, duas vezes por semana, sendo que toda experiência foi registrada
detalhadamente no diário de Dojo.
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PESQUISAS DE CAMPO
Por um ano realizei pesquisas de campo, em lugares relacionados à cultura
caipira, deparando-me com minhas identificações e rejeições a respeito desse
universo. Para isso, o eixo empregado nessa etapa foi o Co-habitar com a Fonte,
descrito no capítulo anterior. Sendo assim, dissertarei aqui sobre as experiências
vividas em campo, em que pessoas até então desconhecidas, me receberam como
se eu “fosse de casa”, com muito afeto e generosidade. Em que a desconfiança e o
receio existiram no início, de ambas as partes, porém tudo foi se dissolvendo e
abrindo espaço para o acolhimento, permitindo-me misturar-me àquele ambiente, às
suas paisagens e costumes, para que pudesse sentir-me parte dali, mesmo que por
alguns momentos, e de fato coabitar.
Um percurso para o interior, parte do título desta pesquisa, faz alusão a dois
interiores com os quais entrei em contato: o interior geográfico, onde vive o caipira, e
o meu interior - fato que este trabalho me propiciou. As histórias contadas sobre as
colheitas de café na roça, de que participavam minha avó e minha mãe; sobre as
procissões feitas na estrada de terra da fazenda onde moravam; sobre o pouco com
que viviam, comprando apenas aquilo que não produziam, escovando os dentes
com sabão e fazendo bonecas de espiga de milho; e por fim, a vida em comunidade
que tinham, onde se reuniam para bailes e rezas entre os colonos, compõem a
minha história, e mesmo não as tendo vivido fazem parte de mim. Porém, para além
disso, questões pessoais e até então intocadas vieram à tona nesse processo, as
quais descreverei com acuidade mais adiante.
Aqui explanarei os aspectos mais marcantes dos campos pesquisados,
destacando as principais paisagens, as personagens, as sensações e os
sentimentos pelos quais fui arrebatada, chegando a uma síntese de todos eles no
final, abordando apenas os campos que tiveram maior repercussão em meu corpo.
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Colheita de café na Fazenda São Marcelo – Jaú, SP
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Essa pesquisa de campo foi realizada na Fazenda São Marcelo em Jaú,
minha cidade natal, localizada no interior de São Paulo. Frequentei o cafezal durante
alguns dias, esporadicamente, e posteriormente em três dias inteiros e consecutivos,
acompanhando a rotina dos lavradores e participando dela.
As paisagens e seus sons
Recordo-me claramente do momento em que cheguei à fazenda, e avistei os
lavradores como que infiltrados na plantação. Ao longe podia ver os bonés e um
pano, que lhes cobria a cabeça. Todos ali usavam blusas e calças compridas para
evitar o sol. Ao olhar para o horizonte, uma imensidão de arbustos verdes que
parecia não ter fim.
A plantação se dividia em fileiras, e cada casal se alocava em alguma delas
durante o dia. A maioria deles residia na fazenda, enquanto outros caminhavam
horas para chegar até ali. As casas da colônia eram simples, sem forro e sem piso,
dispostas ao redor de uma represa e precedidas por uma porteira. Na casa que
visitei, por exemplo, bem simples, toda cercada por bambus, havia um terreiro onde
eram criadas as galinhas e de onde podíamos avistar a represa, à sua frente.
A plantação de café à beira da estrada emprestava uma contraposição
gritante entre esses dois mundos, em que o silêncio do cafezal fazia sobressair o
barulho da rodovia, e o seu ritmo mais lento ironizava a euforia dos automóveis. Na
colheita, o som resumia-se ao rastelar das folhas secas no chão e ao peneirar dos
grãos, entrecortado por pouca conversa, para guardar o fôlego para o trabalho,
diziam eles. Ali também não havia música, o que insistia era o som do vento que os
automóveis cortavam na estrada, e um ou outro cantarolar e brincadeira que brotava
por entre as fileiras.
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A cronologia
O tempo ali parecia passar de modo diferente. Não sei se pelas memórias
longínquas que carrego comigo, ou se pela maneira como aquelas pessoas levam a
vida. Apesar da pressa de cada casal em reunir muitos sacos de café - o que
resultaria em um salário melhor no final do mês - o ritmo ali era mais lento,
espaçado. Não havia informações que cortassem aquele fluxo, apenas a mesma
atividade durante 10 horas: bater nos pés de café, rastelar as folhas secas que
caíssem deles, separar os grãos em montes, peneirá-los e ensacá-los.
Chegávamos ali um pouco antes das 7 h da manhã, e logo às 8 h alguns
abriam suas marmitas para almoçar. Por volta das 12 h almoçávamos novamente e
voltávamos ao trabalho que ia até as 17 h. Por vezes, no meio da tarde ocorria uma
pausa para uma xícara de café. Pude compreender as palavras de Cândido ao falar
um pouco sobre a rotina desses homens.
O despertar é geralmente às 5 horas, seguido de pequena ablução,
consistindo num pouco de água pelos olhos. Segue a primeira refeição e a
ração de milho às criações. Parte-se então para o local de trabalho,
raramente encostado à casa, quase sempre distante 200 a 1.000 metros (e
mais). A faina encetada vai até o pôr do sol, resultando uma jornada de 12
horas no verão, de 10 no inverno, interrompida pela altura das 8 h 30 m por
meia hora, para almoço, e cerca de uma hora pelo meio-dia, para merenda
e repouso. Chegando em casa, o trabalhador dá milho às criações, lava as
mãos, o rosto, os pés e janta, das 19 h em diante. Às 22 h ninguém mais
está desperto, e a maioria já se deitou pouco depois das 20. (CÂNDIDO,
p.123, 1987)
Os carros passando na estrada e nós, do outro lado da pista, tendo que
estender uma rede no chão para almoçar, salientavam ainda mais a “modernização”
e uma sensação de termos parado no tempo. O que via por entre as fileiras eram
homens e mulheres cansados, tentando vencer o tempo ao colherem mais grãos de
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café para aumentar o orçamento no final do mês, e comentando entre eles o desejo
do relógio marcar 17 h, hora de ir para casa.
Personagens, sensações e sentimentos
Trabalhavam ali alguns casais, jovens e idosos. Havia também uma menina,
de cerca de cinco anos, que acompanhava a avó na colheita. Aos poucos fui me
aproximando de cada um e, consequentemente, de suas histórias. Alguns buscavam
ali uma renda extra, outros sobreviviam daquilo há muitos anos, e poucos faziam
aquilo desde criança. Enquanto alguns diziam gostar do trabalho na roça, outros não
viam a hora de nunca mais voltar.
As mulheres ainda chegavam em casa e cuidavam dos afazeres domésticos e
dos filhos, enquanto os homens descansavam. Aos finais de semana iam à cidade
visitar os parentes, ir ao mercado, à missa, e comprar roupas. Alguns saíam muito
pouco, lembro-me que uma delas me disse: “não saio daqui pra nada não, não vejo
nada, só mato”.
Muitas histórias trágicas de morte, violência e sofrimento, eram contadas a
mim, por vítimas e ex-presidiários. Diferentes sensações se misturavam em mim,
medo, tristeza, raiva, indignação e impotência por não poder aliviar tanto sofrimento.
Já nos primeiros dias aproximei-me de Fátima, uma senhora de estatura baixa
e aproximadamente 60 anos, que aparentava ter mais idade por conta da pele,
marcada pelo trabalho ao sol. Seu corpo franzino e miúdo reforçava a impressão que
tive dela, uma senhora com ares de menina, dotada de uma inocência que lhe
permitia falar sobre qualquer assunto, sem se preocupar com o que os outros iriam
pensar. O tempo todo me dizia que quase não saía da fazenda e que não sabia de
nada, enquanto eu tentava convencê-la do contrário.
Tinha a sensação de que ela ocupava pouco espaço com o corpo, com o
quadril um tanto rígido e uma curvatura na coluna que a tornava um pouco corcunda.
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Seu tônus era mediano. Sempre que parava para conversar mantinha a mão
apoiada na cintura com a palma virada para fora, algo recorrente nos corpos que
observei. A desconfiança também era algo muito presente naquelas pessoas, ela,
particularmente, me olhava sempre de baixo para cima, como se me analisasse e
tentasse me desvendar. Aos poucos fui conquistando sua confiança e mostrando
que queria apenas conviver com ela. Tinha um olhar penetrante quando me
encarava e muito distante quando olhava ao longe, parecia se passarem séculos em
seus olhos.
Ao contrário do corpo, a voz era muito expansiva, com um timbre metálico
que cortava o espaço. Tinha um jeito de falar um tanto cantado, devido às
finalizações de frases com melodias ascendentes, que conferia certa vivacidade à
conversa. Sua maneira de falar era bem “caipira”, como costumam classificar, pois
acentuava o “r” e usava as conjugações verbais no singular, quase aniquilando o uso
do “s”, como “nói fala, nói come”.
Sentia-me muito acolhida perto dela, era como se me protegesse e me
ensinasse, de alguma maneira, o que eu precisava fazer para poder fazer parte
daquele lugar por alguns dias. Quando me via chegar ao cafezal, logo gritava para
todos que a amiga dela estava chegando. Ali ensinou-me a rastelar e a peneirar o
café, não se preocupando se isso iria tomar o seu tempo de trabalho, pois quando
me viu tentando trabalhar falou: “a menina tá com vontade de colher”, e
pacientemente me ajudou. Enquanto rastelava as folhas secas no chão eu, imbuída
de silêncio e certa solidão, associava essa ação a perpassar a superfície, a algo que
sentia estar fazendo ali, pois o contato com tal campo me provocava sensações e
sentimentos, e me desvendava conteúdos internos até então desconhecidos, como
por exemplo, o medo do afeto e do contato.
Era difícil peneirar. Para isso precisava juntar as pernas, flexionar os joelhos e
apoiar a peneira na coxa, balançando e jogando o café para cima até sair toda a
sujeira. Aos poucos fui me sentindo mais à vontade com tal tarefa, a ponto de poder
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liberar a Fátima para tomar um café no meio da tarde. Até chegar nesse ponto,
algumas pessoas ali faziam piadas do meu mau jeito, e isso me incomodava. A
facilidade com que Fátima rastelava e amontoava as folhas em fileiras era muito
bonito de ver, pois imprimia pouca força ao movimento, deixando os braços leves e
tornando o rastelo como uma extensão do seu próprio corpo. Tinha as mãos
calejadas por conta do trabalho, e ao ver as minhas disse-me que pareciam de
papel. Lembro-me que me senti envergonhada por isso, e ela prontamente me falou
que era assim, cada um sabia fazer uma coisa.
Em um dado momento perdi-a de vista no meio do cafezal, e ao encontrá-la,
prontamente me falou: “mas você sempre dá um jeito de me encontrar né?”, achei
engraçado. Passados alguns dias a vi fumando depois do almoço, lembro-me que
nesse instante Fátima deixou de estar no lugar entre menina e mulher e virou uma
senhora para mim. Era curioso, pois me fazia entrar em contato com uma
ancestralidade que eu desconhecia conscientemente, mas com a qual sentia
profunda empatia, talvez, memórias da minha família.
Outra senhora no campo que me chamou muito a atenção foi a Dalgisa.
Avisou-me prontamente para chamá-la de Marisa, pois todos a chamavam assim
desde pequena. Marisa e Fátima foram meus focos nessa pesquisa de campo,
mulheres das quais me aproximei e com as quais me relacionei. Marisa veio da
Bahia, era negra, forte, parecia ter um corpo expandido, com um tônus um pouco
alto e os pés fincados na terra, os quais mantinha descalços. Quando parava para
conversar ou descansar, apoiava uma das mãos na cintura e deslocava o eixo um
pouco para o lado, mas ao rastelar as folhas secas do chão e ao bater nos pés de
café - com um pedaço de madeira -mantinha o tronco ereto. Praticamente não a via
sair muito do seu eixo, conservando a postura perpendicular ao chão sem o uso de
torções, para rastelar. Seu corpo era como um escudo, uma espada fincada na terra,
aliada a uma expressão facial, quase sempre fechada, desconfiada. Dizia-me que
não confiava em ninguém, e expressava isso através de um olhar de canto e seu:
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“uhum”, expressão que fazia ao concordar com algo. O olhar me parecia um tanto
opaco, sem brilho, talvez justificado pelas histórias difíceis.
Ao vir da Bahia, para ajudar a filha grávida, teve que encarar a morte do neto,
anos depois, vítima de assassinato. Marisa me contava essa história enquanto
almoçávamos, embaixo do pé de café, e à medida em que seu choro lhe permitisse
contar. A comida já não descia mais, me sentia completamente impotente, faltavam-
me palavras para colocar-me diante de tamanha crueldade e frieza. Depois disso,
disse-me que havia perdido completamente a confiança no ser humano, pois sentia
medo, de qualquer um.
Marisa parecia dançar com a peneira. Seu corpo fremia balançando-a para os
lados, seguido de um impulso que lançava o café para cima. Tal movimentação
exigia força, principalmente nos braços, e ao mesmo tempo leveza para poder lançar
o café. Para isso havia um percurso: com um pedaço de madeira, batia nos pés de
café, depois rastelava as folhas que caíam deles, fazia montes, peneirava, limpava e
por fim ensacava os grãos. Era muito cansativo para mim fazer o trabalho delas,
doía tudo, pernas, escápulas, ombros, me sentia fraca, incapaz de fazer o que
aquelas mulheres faziam. Após o almoço deitava um pouco e tentava descansar. O
sol era escaldante, e eu tinha de decidir entre queimar-me, ou sentir calor ao usar
aquelas blusas de manga longa. Era difícil comer ali, em meio a tanta poeira. Já
havia engolido tanta terra que parecia impossível engolir qualquer outra coisa, sentia
como se tivesse muita terra dentro de mim. Era preciso ultrapassar meus limites para
conseguir fazer o mesmo trabalho que elas ali, e aquilo fazia-me mais forte. Eram
como mulheres de ferro.
Ao demonstrar-me afeto, Marisa dizia que me protegeria, caso houvesse
necessidade, e por vezes dividia a comida comigo. Ao chegar à fazenda no segundo
dia, ela me recebeu com um abraço tão apertado que me deixou sem ação. No
último dia, levou-me para conhecer sua casa e mostrou-me fotos da família, sentia
como se ela estivesse tirando um pouco da sua armadura, feita pelo tempo, e se
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abrindo um pouco para mim. Eu, ao contrário dela, permanecia ainda um tanto
desconfiada, mas recebia meio sem jeito, o afeto que ela me dava.
Além dessas duas mulheres, foi significativo nessa pesquisa o contato
estabelecido com uma criança que passou bastante tempo comigo. Sentia-me muito
bem ao cuidar dela, tanto que em um momento ela me chamou de mãe e perguntou
se eu a levaria comigo. Via nela um pouco da minha mãe, que também frequentara a
colheita quando pequena. Brincamos por entre os pés de café e no meio da tarde a
vi pegando bolachas e frutas que estavam na minha bolsa, ela tinha muita fome, e
era muito triste ver aquilo. Além da comida, também se interessava pelos objetos
diferentes que eu carregava, um chapéu, óculos de sol e um caderno. De repente,
quando notei, ela estava usando tudo, brincando com os óculos, rabiscando o
caderno e passando o protetor. Por um instante sentia-me como colonizadora, ao
ver seu deslumbramento com relação a tais coisas. A menina também carregava
consigo histórias bastante sérias de violência e muitos medos, de polícia e
ambulância quando passavam na estrada, por exemplo. Quando foram busca-la
para ir à casa, segurou em minha roupa e insistiu que queria ficar comigo. Sentia-me
na obrigação de protegê-la, mas ao mesmo tempo era incapaz de fazer muita coisa
por ela.
Em diversos momentos me sentia estranha ali, como se fosse um bicho. Ao
chegar as pessoas me olhavam, espiavam por entre os pés de café e queriam saber
o que estava fazendo ali. No final do dia, quando os homens iam buscar os sacos de
café também era estranho, me olhavam dos pés a cabeça e comentavam entre si,
fazendo com que me sentisse acuada perto deles, ao mesmo tempo em que sentia
raiva. Era um misto de sensações. Às vezes me perguntava porque estava ali,
enquanto também percebia que sentiria falta daquelas pessoas e daquela paisagem.
Realmente, a vida deles não é nada fácil, mas há uma simplicidade nesse ambiente
que me alimentou, pois ali valorizam-se as pequenas coisas, que em geral são as
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essenciais. Além disso, essa experiência me fez olhar para mim mesma e aos
poucos perceber como lidava com tudo aquilo.
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Procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em Pedra Bela – SP
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Essa pesquisa de campo foi realizada em uma procissão no dia de Nossa
Senhora Aparecida em Pedra Bela, interior de SP.
As paisagens e seus sons
A procissão saiu bem cedo, com destino à capela no alto de uma pedra da
cidade. O caminho era repleto de ladeiras e o sol estava bem forte. Havia um cheiro
de rosas que nos acompanhava, provindo do andor em que levavam a santa.
Quando este se aproximou do alto da pedra, vi que muitos já estavam à espera dela,
recebendo-a com um grito de Viva à Nossa Senhora que me arrebatou. Era muito
bonito ver as pessoas esperando esse encontro. Ao chegar à capela, os fiéis
aproximaram-se de Nossa Senhora para beijá-la e deram início ao canto “Viva a
mãe de Deus e nossa”, que se caracteriza pelo seu modo menor e remete aos
cantos gregorianos, devido ao andamento lento, rítmica dilatada e conteúdo do texto
de caráter sacro. Recordo-me que nesse momento, uma memória de infância me
tomou, pois essa canção era a abertura de um programa de rádio matinal que me
despertava todos os dias. Nessa hora, fui para mais perto de casa.
Personagens, sensações e sentimentos
Um grupo pequeno de moradores fazia o percurso em silêncio, e quatro
homens carregavam o andor nos ombros, com a imagem da santa. Encontrar esse
cenário me desapontou. Um grupo pequeno e em silêncio era exatamente o oposto
daquilo que eu esperava: muitas pessoas cantando e rezando. Uma paisagem
simples, com pessoas simples, nada grandiloquente, em que o encontro real com o
caipira ia na contramão daquele do meu imaginário, em idealizar algo na direção do
que foi descrito por Peres.
Passos que alavancam o moinho do tempo em busca de um lugar. Veredas
de instantes onde a fé de muitos é construída na fusão de corpos e
espíritos. Devotos romeiros, sertanejos, homens, mulheres e crianças,
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personagens com chapéus e lenços ao vento trazendo consigo pés
calejados e dispostos a seguir. Lábios que sussurram preces e que se
abrem para cânticos de louvor. Olhares que descansam e inundam a face
em gratidão por graças alcançadas. (PERES, p.57, 2010).
O grupo seguia seu destino, ora cantando, ora rezando o terço, ou em
silêncio. O que ficava forte para mim era a sensação de estar só mesmo em grupo, e
parecia-me que para aquelas pessoas também, pois a peregrinação acontecia
individualmente, a cada ladeira vencida.
Aos poucos fui percebendo quanta fé existia nelas. Era realmente algo
emocionante. Havia ali homens, mulheres e crianças, de variadas idades. Me
chamou a atenção naquele primeiro momento um senhor, com calça, camisa social
de manga longa e que com um lenço limpava o suor do rosto. Parecia que o sol
escaldante não lhe afetava, apesar do suor, o que importava era estar muito bem
vestido para ir ao encontro de Nossa Senhora.
Depois de visitar a capela, na volta, encontrei uma mulher descendo as
escadarias. Ela descia os degraus com muita dificuldade, segurando com firmeza no
corrimão, pois visivelmente tinha alguma deficiência nas pernas. Aquele esforço e
determinação chamaram minha atenção e parei para falar com ela. Quando lhe
perguntei se era difícil estar ali, ela me disse: “É a fé. Se eu pudesse subiria tudo
isso aqui de joelhos”. Aquilo me surpreendeu.
Sempre que refletia sobre a penitência e as promessas, algo recorrente no
catolicismo, indagava-me sobre sua valia. Porém, naquele contexto, não havia
espaço para esse tipo de racionalização, pois a força daqueles corpos e daquelas
vozes era tão grande, que ultrapassava qualquer filosofia, restando-me apenas parar
e sentir o sagrado, que movia aquelas pessoas ali.
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Dona Mariquinha – Bofete, SP
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Após algumas buscas e vivências em pesquisas de campo, persistia em mim
o desejo de conhecer alguém que ainda conservasse certos traços do caipira que
permeavam meu imaginário. A vida baseada na economia de subsistência e o
contato com a natureza eram alguns deles. Nessa busca, cheguei até Dona
Mariquinha, moradora de um sítio em Bofete no interior de SP e que ainda preserva
alguns desses traços, somado a um certo isolamento, que também me cativou.
A sociedade caipira tradicional elaborou técnicas que permitiram estabilizar
as relações do grupo com o meio (embora em nível que reputaríamos hoje
precário), mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, a sua
exploração sistemática e o estabelecimento de uma dieta compatível com o
mínimo vital – tudo relacionado a uma vida social de tipo fechado, com base
na economia de subsistência. (CÂNDIDO,p.36, 1987)
As paisagens e seus sons
Após um pedaço de estrada de terra cheguei à casa de Dona Mariquinha. Ao
lado direito, logo na entrada, uma capela, e ao esquerdo a casa, com as janelas e
portas abertas. O sítio era bem grande, a casa cercada por quilômetros de mata,
algumas criações de animais e outras casinhas menores. Adentro sua casa. Nela
havia muitos quartos, mas atualmente ela morava praticamente sozinha. O chão era
de barro e as paredes de tábua e alvenaria. Na cozinha havia algumas estantes,
repletas de imagens de santos e velas, e ela me dizia ser devota de todos eles.
Visivelmente a cozinha era o lugar na casa pelo qual ela tinha especial apreço.
Passava o dia ali preparando e servindo suas refeições, todas feitas no fogão à
lenha. O curioso era que ela adorava cozinhar, mas pouco comia de seus quitutes.
Quando cheguei à cozinha já me aguardavam na mesa, pão, queijo, leite,
café e doces, tudo provindo da fazenda, pois ainda faz quase tudo o que come,
açúcar, arroz, feijão, pão, farinha, milho, queijo, farofa, café, enfim, muitas coisas.
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Gosta tanto de cozinhar que tem um cômodo apenas para armazenar panelas, de
variados tamanhos, além de talheres e pratos.
Em volta da sua casa, as outras, mais pequeninas, permanecem ali
desabitadas, pois foram construídas pelo seu marido quando ainda morava mais
gente ali. Criações de porcos e galinhas também ocupam o sítio, além de muitos
instrumentos que usa para preparar os próprios alimentos, e que exigem muita força
e habilidades, características que Dona Mariquinha tem de sobra.
Já a capela na frente da casa guarda a memória do marido, que faleceu ali
quando foi atear fogo no terreno e não resistiu à fumaça causada pelo incêndio.
A cronologia
Estar ali era como estar em um tempo muito remoto. Afinal, é raro
encontrarmos pessoas que ainda vivem assim, afastadas da cidade e consumindo,
na maior parte das vezes, apenas o que produzem. O ritmo era lento e dilatado, ali
era realmente possível ver o dia passar.
Dona Mariquinha não sai de casa e nem vai à cidade, não gosta, prefere ficar
ali recebendo quem aparece e cuidando dos afazeres diários. Essa senhora abriu-
me uma fenda no tempo.
Personagens, sensações e sentimentos
Quando cheguei, deparei-me com uma senhora de estatura baixa, magra,
costas bem abauladas e pele enrugada. Usava um lenço na cabeça e caminhava o
tempo todo de um lado para o outro, com os braços ligeiramente flexionados que
mantinham um certo balanço, para frente e para trás. Tinha os dedos longos e um
pouco tortos, algo que me chamou a atenção. Olhava pouco nos olhos das pessoas,
pois mantinha-os quase sempre distantes, focados na próxima tarefa que iria fazer.
Quando não, olhava de canto, analisando a situação. Tinha o quadril rígido, o eixo
deslocado um pouco para frente e o andar um tanto endurecido, de passadas curtas
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que quase não descolavam do chão. Estava sempre empenhada em fazer alguma
coisa, cuidar da panela no fogão, do café que estava a preparar, das suas criações,
quase não parava.
Sua postura, seus dedos longos e seu jeito de ser um tanto solitário, pois não
conversava muito, me chamaram a atenção. Havia algo de enigmático ali, parecia
que ela guardava consigo tantas histórias, tanta sabedoria, e as deixava escondidas,
vazando apenas através dos seus gestos. Era muito sincera e direta, dava respostas
curtas e às vezes deixava por responder, o que me intrigava ainda mais.
No fim do dia, seu filho começou a dedilhar a viola e ela mais do que
depressa foi com ele cantar. Nessa hora a emoção me tomou, pois tem algo de
nostálgico e melancólico que o som da viola guarda e que mexe comigo. Enquanto
ela cantava ia gesticulando o conteúdo da letra, o que trazia uma simplicidade e uma
singeleza, fazendo-me viajar por entre as minhas paisagens e memórias, todas
relacionadas às minhas raízes.
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Folia de reis - Três Pontas, MG
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Dentre as manifestações religiosas da cultura caipira, a Folia de Reis foi uma
das que me despertou curiosidade. Em Três Pontas, MG, acompanhei por três dias
a Folia da Família Dias, que existe desde 1870. Tal manifestação ocorre geralmente
entre o Natal e o Dia de Reis, nessa companhia, o percurso durou seis dias, de
primeiro a seis de janeiro.
Eles caminhavam o dia todo, de manhã até a noite, fazendo apenas duas
paradas, no almoço e no jantar, com o grupo todo reunido na casa de algum
morador ou Folião.
A Folia de Reis é uma manifestação popular que simboliza os Reis Magos
indo ao encontro do Menino Jesus. Os foliões visitam os moradores da região
levando a benção divina materializada pela bandeira, que carregam e que vai à
frente do grupo, além de arrecadarem ofertas para a festa do dia de Reis. Nas casas
a Folia canta os versos tradicionais e também versos novos e improvisados,
compatíveis com cada morador e situação. À frente vão os Palhaços, também
chamados de Marungos ou Bastiões, vestidos com roupas coloridas, máscaras e
utilizando bastões. Eles vão durante todo o caminho gritando bordões, dançando e
fazendo saltos e acrobacias quando alguém pede o “Corta Jaca”. O tempo todo a
música dá o tom ao ritual, tocada por diversos instrumentos e com abertura de
vozes. O ritual finaliza no encontro com o Menino Jesus que acontece no último dia,
na festa de encerramento.
Em Portugal, o termo folia já existia no século XVI (...) e denominava uma
dança viva ao som de pandeiro e canto, representando os próprios Reis que
vão adorar o Menino Jesus. Sua origem está no drama sacro encenado nas
igrejas no Natal, durante a Idade Média. Com o tempo, esses dramas
deixam de ser apresentados em latim e libertam-se da música litúrgica. Há
também um deslocamento da ênfase do Officium Pastorum – o nascimento
e a chegada dos pastores à manjedoura – para o Officium Stellae, que
compreende o anúncio aos Reis, a viagem seguindo a estrela, o encontro
com Herodes, a adoração do menino (Rios, 2006, p. 66; Moreyra, 1983,
apud PERES, 2010, p. 27).
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As paisagens e seus sons
Três Pontas é uma cidade localizada no sul de Minas Gerais, com pouco mais
de 50 mil habitantes. A Folia restringia seu trajeto a alguns bairros, visitando
diversas casas durante o dia, começando o percurso às 12 h e indo
aproximadamente até às 21 h. No caminho, adentrávamos todo tipo de casa,
algumas mais simples sem acabamento, sem portões, com paredes coloridas,
presépios grandes e enfeitados, e diversas fotos de familiares nas paredes.
As músicas da Folia de Reis de Três Pontas caracterizavam-se pelo seu
modo maior, andamento lento e rítmica dilatada. A instrumentação era composta por
violão, viola, pandeiro, caixa, cavaquinho, sanfona e sete vozes. Com relação ao
canto, havia sempre perguntas e respostas, com algum dos Foliões cantando uma
estrofe e o coro repetindo a frase final. Em seguida, o coro entrava repetindo a
estrofe toda com abertura de vozes, composta por oitavas e terças.
As personagens, sensações e sentimentos
Lembro-me que ao encontrar a Folia, a primeira coisa que notei foi que a
maioria deles era homens, havia apenas duas mulheres. Isso me incomodava um
pouco, sentia-me um tanto acuada com os olhares, não sabia o quanto podia me
abrir. A maioria era mais velha, com mais de 40 anos. Como eu era a “estrangeira”
ali, ficavam comentando sobre mim e se entreolhando, observando minha reação,
novamente me sentia como um bicho, bicho acuado. Quando se aproximavam e
encostavam em mim, fossem homens ou mulheres, me incomodava muito, sentia-
me invadida. Embora eu tivesse essas sensações e sentimentos, não houve em
nenhum momento por parte deles nenhuma atitude desrespeitosa.
Ao começar o trajeto observei os Palhaços, dançando e gritando bordões no
meio da rua. Isso me chamou a atenção, pois todos paravam para olhá-los, me
perguntava se não tinham vergonha, medo do ridículo.
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A primeira parada que fizemos nesse primeiro dia foi no convento das
Carmelitas, que eu até então desconhecia. Ao chegar em frente a ele vi uma grade e
uma cortina dourada, quando uma mulher falou: “Façam barulho para as
Carmelitas!”. Aí, as cortinas se abriram. Recordo-me como isso me tomou. Encontrar
ali, aquelas mulheres, jovens e idosas, todas cobertas, sem nenhuma vaidade,
silenciosas, me causou espanto e identificação. Por alguns minutos tive o privilégio
de vivenciar uma cena que me marcou, repleta de oposições, de um lado os
homens, foliões, dançando, cantando, suados, com partes dos corpos à mostra,
rindo, tocando instrumentos; e do outro, as mulheres, caladas, cobertas,
endurecidas, observando a festa, sem se mexer, sem cantar, sem interagir, e
cheirando a talco. Quando me aproximei da cela para conversar com elas,
seguraram em minhas mãos, sedentas pelo contato, e olharam em meus olhos.
Enclausuradas nelas mesmas, e repletas de mistérios debaixo de suas túnicas.
Saindo dali, voltamos ao percurso da Folia.
Comecei a notar que o que me chamava a atenção na manifestação, não
eram as músicas nem o ritual, propriamente dito, mas aquilo que escapava dele. Os
foliões descansando nas sarjetas, os que recebiam a Folia em casa, os que ficavam
conversando do lado de fora da casa, enfim, aquilo que não estava com o foco da
atenção.
Um morador de rua fisgou minha atenção durante todo o trajeto. Com as
orelhas grandes, estatura baixa, um saco de estopa que carregava nas costas,
roupa de frio – independente do calor que fazia -, dentes sujos e um modo de falar
que ninguém compreendia, acompanhou a Folia durante os três dias em que estive
lá. Comia com a gente, dançava, cantava e também quis participar do rito,
segurando a bandeira e pedindo para que cantassem a ele. E cantaram. Foi muito
bonito ver sua alegria e perceber que ele já não estava tão sozinho, como devia
sentir-se normalmente, tinha mais gente partilhando da sua solidão.
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Andávamos o dia todo e os foliões nunca reclamavam, passavam o dia
visitando cada casa que pedisse, cantando e tocando, sempre com um sorriso no
rosto. Pareciam estar indo ao encontro de alguém muito especial.
Uma das visitas que me marcou, foi quando passamos em uma casa bem
simples, com os tijolos à mostra, e nos cômodos do fundo encontramos uma
senhora deitada em uma maca, com uma mulher ao seu lado. Foi muito tocante a
reação dessa senhora quando viu a Folia entrar. Ela ficou tão feliz, que se
emocionou e começou a dançar deitada, com as partes do corpo que conseguia
movimentar. Nesse caso, as mãos, os pés e a cabeça. Balançava-as para um lado e
para o outro, animada. Aquilo emocionou a todos. No final, disseram-me que aquela
senhora sempre esperava a Folia passar, todos os anos, o que justificava sua boa
oferta, mesmo considerando as condições simples em que vivia.
A generosidade daquelas pessoas era algo encantador. Os moradores, os
foliões, todos, doavam e partilhavam o pouco que tinham, e emocionavam-se ao
deparar-se com os menos afortunados, como o morador de rua ou a senhora
debilitada na cama. Ofereciam comida, levavam alegria e fé, e paravam para
perceber o outro. Sempre perguntavam se eu estava bem, se voltaria no dia
seguinte ou se tinha comido. Acolheram-me mesmo sabendo muito pouco sobre
mim. Entre eles, há trocas de elogios, piadas e histórias de vida contadas na mesa
do almoço, fatos cotidianos, destituídos de grandes ambições.
Suas vestimentas transpareciam muita simplicidade. Bonés com logomarcas
de empresas, blusas e calças um tanto desbotadas, pés rachados e unhas sujas. A
eles isso parecia não importar, em nenhum momento os via reclamando. As
refeições, todas elas, eram compartilhadas com quem se juntasse à Folia.
Algo muito forte que vivi, relacionado a essa generosidade, foi com o
Mosquito, apelido de um dos cantores da Folia. Mosquito já havia sido palhaço de
circo, cantor de dupla sertaneja e adorava contar suas histórias. De estatura
mediana, usava uma camisa de botão sempre aberta, bigode, alguns colares de
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santo pendurados no pescoço e um cigarro atrás da orelha, mesmo sem ser
fumante. Dificilmente saía de uma postura ereta, o que conferia a ele um tronco mais
rígido, isento de muitas torções ou deslocamentos. Seus braços pouco se
movimentavam, ao andar, permaneciam estendidos ao longo do tronco, com um
ligeiro balanço. A bacia era um pouco projetada para a frente e o olhar sempre
distante. Sua voz, um pouco metalizada, era dotada de uma sonoridade mais aguda,
característica recorrente nas vozes das pessoas com quem convivi em campo.
Entre conversas, no último dia, Mosquito falou-me que havia passado a noite
pensando no que me daria de presente. Eu um tanto envergonhada com a situação
falei que lhes daria algo para não esquecerem de mim, e ele prontamente me
respondeu: “nunca esqueceremos de você, de qualquer jeito”, o que me marcou
profundamente. Então, entregou-me um embrulho, e dentro dele havia um colar com
a foto de um padre que seria beatificado na cidade. Disse-me que eu devia repassar
o presente a alguém de quem gostasse, como forma de carinho. Não entendi sua
proposta, pois me parecia estranho ganhar o presente e passá-lo adiante, quando
Mosquito me falou que eles costumam levar presentes aos amigos como forma de
carinho, e que eu deveria fazer o mesmo.
No último dia, ao andar pelas ruas encontrei o Mosquito e mais algumas
pessoas sentadas em uma esquina. Parei ali com eles, e logo notei que estavam
relembrando coisas do passado. Um deles, compositor, começou a me contar sobre
suas canções e disse-me que fizera uma delas contando sobre um assassinato
acontecido ali. Um homem que abusava das crianças no cafezal e depois as matava.
Contou toda a história me apontando o local dos crimes, ficava perto dali. Descreveu
com acuidade como eram as torturas, que iam desde enfiar crianças em formigueiro,
a cortar seus genitais, coisas horrendas. Depois disso, mostrou-me sua canção.
Estar ali era como estar na rua de casa. Um lugar ermo que me fez entrar no
universo caipira. O tempo ali parecia congelar, e eu me sentia em casa. Os cheiros,
os cenários, as pessoas, tudo aquilo parecia ir entrando em mim, impregnando meu
corpo, enchendo-me de memórias. Nesse momento posso dizer que Co-Habitei com
81
a Fonte, como afirma Rodrigues (2003), pois vivi aquela paisagem como se fosse a
minha.
Eis que havia chegado então o último dia, um dia de festa. Na rua do
Embaixador - Folião que presidia a manifestação – havia sido montada uma
manjedoura, onde crianças representavam as principais figuras do nascimento de
Jesus – Maria, José e o Menino. A rua toda havia sido enfeitada, e com um tapete
vermelho traçaram um caminho de alguns metros, circundado por bandeirinhas e
coberto por três arcos de bambu. Ali, os Foliões fizeram o percurso até a
manjedoura e me convidaram para fazer parte dele. No caminho foram rompendo as
três correntes que ficavam abaixo dos arcos, e a cada corrente rompida eles
comemoravam. Em volta, muitos moradores assistiam a esse momento, marcado
pela música, pela dança e pela alegria dos Foliões. Ao chegar à manjedoura, as
crianças, vestidas de Jesus, Maria, José e os anjos, recebiam os Reis Magos,
simbolizados pelos Foliões. Esse momento foi de muita emoção: todos se
abraçavam e comemoravam mais um ano da Folia de Reis da Família Dias, foi
encerrada com um jantar servido a toda a comunidade.
Despedir-me deles não foi fácil; foram poucos dias de convivência que
pareceram muitos. A conexão estabelecida entre nós foi muito valiosa e nesses dias
pude sentir-me completamente aceita e acolhida, o que me causou certo
estranhamento, pois mesmo sem conhecer-me eles me receberam como se eu
fosse “de casa”. Conviver com essa gente humilde me fez olhar profundamente para
mim, e perceber o valor do afeto, da caridade e de um mundo mais solidário.
82
Encomendação das almas, São Tiago – MG
83
A Encomendação das almas é um ritual da cultura popular que acontece no
período da quaresma. De origem ibérica, proveniente de Portugal, tal manifestação
ocorre desde a idade média, tendo chegado ao Brasil com os colonizadores. Em
alguns locais o ritual é realizado por um grupo de homens, que se cobrem com
túnicas e capuzes; em outros, as mulheres já participam e todos usam vestes
convencionais. Consta do histórico da Encomendação das Almas, que no percurso
os fiéis se auto-flagelavam, a fim de se livrarem de seus pecados e serem
purificados; por isso, o ritual tem o sentido de encaminhar as almas dos mortos para
o céu e lembrar os vivos de se redimirem dos pecados, segundo Passarelli (2007).
Na maioria dos lugares, o ritual acontece à noite, e tem início nos cemitérios.
O grupo de encomendadores sai pelas ruas da cidade, fazendo pequenas paradas
em esquinas e encruzilhadas, e entoando cânticos e rezas. Às vezes levam velas e
instrumentos, e entoam um canto lúgubre, densificando a aura de mistério que tem o
ritual.
Os moradores que não acompanham o cortejo devem ficar dentro de casa, e
não podem abrir portas nem janelas enquanto a Encomenda passa. Diz-se que, se
isso acontece, as almas adentram tais residências, pois elas estão indo atrás dos
encomendadores. Deve-se manter o silêncio nas ruas, em respeito à tradição, que
persevera há anos.
Em São Tiago, MG, onde acompanhei tal manifestação, o ritual era presidido
por Dona Antônia e seguido por um grupo de adultos, jovens e crianças.
Começamos o trajeto no portão do cemitério, perto das 23 h, onde todos fizeram um
círculo e deram-se as mãos. Ali, uma vela foi acendida e iniciou-se o primeiro canto.
Ao fundo, uma imensidão negra entrecortada por árvores, cruzes e túmulos
compunham o cenário do pai nosso, rezado em coro.
Caminhamos por toda a cidade, fazendo paradas em esquinas e
encruzilhadas, entoando cânticos e rezas ao som das matracas. A procissão ritual
durou cerca de 2 horas e terminou em uma capela. O que me espantou foi que
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apesar de nunca ter participado de um ritual assim, sentia-me completamente parte
daquilo. Parecia que o rito também era meu, e fazia parte de mim, talvez em um
tempo antigo e escuro, composto por aquela paisagem. Vivia o passado, estando no
presente.
A encomendação das almas deixava, pelo seu aparato sinistro e sigiloso, a
maior impressão no espírito do povo. Afirmava-se que o curioso que
conseguisse olhar a procissão, veria apenas um rebanho de ovelhas
brancas, conduzido por um frade sem cabeça. Algumas encomendações
permitiam a flagelação penitencial, e muitos devotos feriam-se cruelmente,
durante a noite, necessitando tratamento de muitos dias. Ainda ouvi as
descrições dos velhos moradores de Natal, que tinham ouvido, tremendo de
medo, as lamentações assombrosas da encomendação (...) assustando a
todos com o sinistro batido das matracas e gemidos dos flagelantes (cf.
CASCUDO in Jangada Brasil, n.7, março de 1999, apud PEREIRA, p.141,
2005).
As paisagens e seus sons
São Tiago é uma cidade pequena, com 11.000 habitantes aproximadamente.
As ruas de pedra e os pedaços de terra precedidos por porteiras, conferiam um ar
ainda mais antigo e ermo ao local. O fato de a procissão acontecer perto da meia-
noite, também permeava o ritual de mistério, algo que ele já tem por si só, por tratar
da vida após a morte. A cada passada, as ruas, as vielas, o silêncio, a noite, as
porteiras, os terrenos inabitados, tudo ia penetrando em mim.
As músicas caracterizavam-se pelos modos maiores e andamento lento, além
do prolongamento de algumas sílabas que percorriam extensos caminhos melódicos
até encontrar repouso na nota fundamental. O canto, um tanto lamentoso,
derramado, e o som das matracas, iam me afogando em sentidos, misto de tristeza,
comoção, mistério e suspense. Ouvir a matraca cortar o silêncio da noite, sem pedir
licença e sem conter seu volume, era muito forte para mim, sentia um arrepio no
corpo todo, como se uma onda me tomasse. E o canto de Dona Antônia
potencializava tudo isso, fazendo valer todos os quilômetros percorridos até ali. Sua
85
voz era incisiva, cortante, convocava vivos e mortos, rasgava, se impunha e parecia
sair de dentro das vísceras. Parecia matéria, era tridimensional. Timbre9 claro e
metálico10, com uma pequena rouquidão que o carregava de vida e de história. Seu
canto, todo ornamentado11 e repleto de vibratos12, me remetia a algo ancestral, um
canto com urgência, ritualístico, daqueles que se canta a fim de invocar.
A cronologia
Eu parecia estar em outro momento da história, em outro século. Não me
sentia no ano em que vivemos mas em algum tempo bem mais remoto, quando tais
práticas e paisagens podiam ser mais recorrentes. As velas, as cruzes, as pedras,
aquela cidade, pareciam ter congelado no tempo.
As personagens, sensações e sentimentos
Dona Antônia era a mulher que presidia o rito. Encontrar uma senhora
conduzindo tal manifestação foi realmente marcante para mim. Alguém da idade
dela, aproximadamente 70 anos, com a disposição em manter um ritual daquele
todos os anos, a fim de não perder a tradição ensinada pela avó; era muito bonito.
Ainda sem conhecer ninguém, cheguei e ela me recebeu, apresentando-se
como alguém que presidia a Encomenda. Quando perguntei se conhecia
benzedeiras por ali, pois gostaria de encontrá-las, me disse que eu estava
conversando com uma. Já ali, estabelecemos uma relação.
9 Característica sonora que permite distinguir sons da mesma frequência.
10 Timbre claro é um som com mais ênfase nos harmônicos agudos e o timbre metálico tem
certo brilho e estridência.
11 Variações em torno da melodia principal.
12 Oscilação na frequência do som.
86
Cada um que se aproximava para participar da Encomenda, vinha
cumprimentá-la com profundo respeito, demonstrado por manifestações de afeto.
Ela carregava no pescoço muitos terços e colares com imagens de santos, e um
sino que, segundo me disse, através do badalar a lembrava da sua conexão com o
sagrado. Era um pouco corcunda, de estatura mediana e tinha um tônus moderado.
Seu quadril, pouca mobilidade, e o olhar, vazado e sereno, parecia me atravessar.
Dona Antônia era solista nos cânticos e comandava a Encomenda, dando os
sinais de parada, de reza e silêncio. Sua expressão era sempre de felicidade e
satisfação em estar ali. Seguia à frente do grupo, segurando um terço nas mãos e
um livretinho de rezas, mantendo a cabeça sempre baixa. Durante o trajeto era
possível imaginar uma multidão seguindo atrás do ritual, como seria antigamente:
fiéis se auto-flagelando em penitência a Deus.
Devido à minha visita, ela estendeu um pouco a duração do ritual, e no final,
quando encerramos, na capela, deixou-me o convite de visitá-la no dia seguinte em
sua casa.
Não recusando o convite, no dia seguinte fui fazer-lhe uma visita. Ao chegar
lá, vi que ela me esperava na porta. Então mostrou-me primeiro o lado externo da
sua residência, uma casa bem grande, com muitos escritos nas paredes, pelo lado
de fora: versos que ela mesma criara, expondo gratidão e apreço pela família.
Dona Antônia morava sozinha mas a casa era enorme, à espera de que os
filhos viessem visitá-la. Mostrou-me tudo: todos os cômodos, cada detalhe, cada
objeto; tudo guardava um significado, desde a pedra no altar da sala, até a boneca
pendurada no terraço. A cada cômodo, uma descoberta. Ela acumulava muitas
coisas; todas as suas memórias estavam ali, materializadas, e o mais curioso de
tudo era o terraço. Um sino enorme pendurado no teto foi a primeira coisa que me
chamou a atenção ali. Ela me contou que o tocava todos os dias na hora do almoço,
e rezava, usando um microfone para que toda a vizinhança ouvisse. Achei
engraçado e ela me disse que era um hábito de sua mãe, iniciado a pedido de um
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padre, hábito esse que levava adiante. Ao lado do sino, muitas bonecas, ursos de
pelúcia, batinas, quadros, ramos secos; enfim, tudo que fizesse sentido a ela.
Além do terraço, um quarto com instrumentos musicais me chamou a
atenção. Todos os tipos de instrumentos, de populares a eruditos, estavam em cima
da cama e, na parede, várias colagens de santos. Então, Dona Antônia pegou o
violão e cantou, para mim, músicas da Encomenda, ensinando-me. Nesse momento
percebi que estava na mesma postura que ela, tamanha a empatia. Cantamos
juntas, foi bonito.
Logo adiante, em outra sala, as paredes estavam todas repletas de
lembranças e papéis enormes com reflexões dela sobre a vida. Ao lado, havia um
grande altar. Disse-me que espalhava esses papéis pela casa para que as pessoas
refletissem, e começou a lê-los para mim. Depois disso, benzeu-me.
Permaneci ali por algumas horas e não tinha vontade nenhuma de ir embora.
Em pouco tempo estabelecemos uma relação de afeto e eu não queria partir.
Mostrou-me sua padaria e deu-me algumas bolachas e tapetes para trazer de
recordação. Dona Antônia marcou-me através do afeto e, por vezes, me esquecia
que estava ali como pesquisadora; assim, Co-habitamos.
Síntese dos campos
Após ter falado dos campos, farei uma síntese de todos eles, apresentando
de forma sucinta o que me marcou em cada um.
Revisitando o primeiro, a Colheita de café na Fazenda São Marcelo em Jaú –
SP, pude notar que ela marcou-me em alguns aspectos, como: a sensação de me
sentir bicho, objeto de análise e observação, principalmente com relação aos
homens; o medo, presente em alguns momentos, por estar em território
desconhecido; a solidão, nos momentos em que trabalhava com o café ou quando
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observava os trabalhadores; o afeto, com a Fátima, a Marisa e a menina com quem
convivi; a desconfiança, presente em mim e nelas; o cansaço, devido ao trabalho e,
por fim, o impacto ao ouvir histórias tristes e difíceis de morte, envolvendo crianças.
Foi um campo frutífero, pois experienciei sensações opostas, como desconfiança e
confiança, descaso e afeto, e pude experimentar envolver meu corpo no trabalho da
lavoura.
A procissão no dia de Nossa Senhora Aparecida em Pedra Bela – SP,
marcou-me devido à fé que presenciei ali, questionada num primeiro momento, mas
que depois envolveu-me, fazendo-me sentir mais perto de casa; e ao cansaço, por
ter que vencer muitas ladeiras durante a caminhada. Nesse campo, me senti mais
observadora, percebendo tudo de maneira mais distanciada.
Na casa da Dona Mariquinha, em Bofete – SP, entrei em contato com a
simplicidade que aparecia em seu modo de vida, baseada em uma economia de
subsistência. Além disso, a desconfiança, marcada pelo olhar de canto, remeteu-me
à minha família e a um universo já conhecido. Por fim sua independência que lhe
permite, apesar da idade, prover tudo o de que necessita. Ali me senti
completamente à vontade; era estranhamente familiar estar ali.
Na Folia de Reis, em Três Pontas – MG, pude me aproximar, de fato, do
afeto, da simplicidade, do companheirismo, da dedicação, da alegria e do
acolhimento. Também me senti como bicho em alguns momentos, e ouvi histórias de
morte envolvendo crianças, assim como no cafezal. Porém, a troca afetiva foi tão
valiosa, que sobressaiu a essas histórias difíceis. Foi difícil despedir-me daquele
universo, e principalmente do Mosquito, tão acolhedor.
No último campo, a Encomendação das Almas em São Tiago – MG, vivi um
universo que me encanta: a noite, o silêncio, a solidão e os mistérios; tudo somado
ao afeto e à solidariedade, também encontrados ali.
89
Assim, pode-se notar a minha identificação com o campo, pois em muitos
momentos, escrevo que me senti “em casa”. Foram recorrentes, a sensação de
sentir-me bicho, principalmente quando o campo envolvia homens; ouvir histórias
trágicas, tristes e de morte; a solidão, mesmo em meio a muita gente; a
desconfiança, minha ou daqueles que eram pesquisados; e o afeto, estabelecido
com as pessoas. Pude vivenciar o trabalho, a procissão, a vida doméstica e as
manifestações dentro da cultura caipira, o que me proporcionou um olhar mais
amplo sobre essas pessoas e o seu universo. Os campos foram o foco do trabalho e
essenciais para essa pesquisa, pois questionaram minha visão sobre o caipira,
desmitificando minha percepção sobre ele e colocando-me em contato com as
minhas identificações e rejeições com relação a esse universo, que revela, por
consequência, conteúdos até então desconhecidos sobre mim mesma.
O caipira: uma ponte para mim mesma
Em todos os campos via muita generosidade, afeto, alegria e em
contrapartida muito trabalho, raiva, histórias difíceis e trágicas de morte e de luta
pela sobrevivência, e o meu sentimento com relação a tudo isso era de uma certa
frustração, pois parecia não encontrar aquilo que buscava. Essa frustração
alimentava o desejo em alterar o meu objeto de pesquisa, pois o sentimento de
rejeição com relação ao campo perdurou por quase todo o processo, sendo
imprescindível nesses momentos o papel da direção, que me auxiliou a identificar as
fugas, evitá-las e dar continuidade ao trabalho.
Tal sentimento de rejeição com relação ao campo ocorria devido a uma
extrema identificação e sensação de espelhamento com esse universo, o que
ocasionou um grande incômodo, pois questões de identidade evidenciaram-se e
inevitavelmente fui entrando cada vez mais em contato comigo mesma, sem saber o
quão profundamente estava mergulhando.
90
Não era fácil ver naquelas colhedoras de café minha avó, naquela criança que
brincava na terra minha mãe, ou até mesmo me ver naquelas procissões há uns
anos atrás. Era tudo muito cru, muito nu, era de maneira escancarada a Amanda e
sua história de vida, suas origens. Talvez a Amanda que enterrei, de certo modo, há
uns anos atrás e que esse processo está me fazendo desenterrar. E não dava pra
fugir, não dava pra mudar o campo, não dava pra não sentir esse espelhamento
seguido dessa rejeição, ou muitas vezes um estranho acolhimento por sentir-me “em
casa”. Olhar pra mim mesma e minhas origens, como esse campo me proporcionou,
foi algo extremamente dolorido e ao mesmo tempo profundamente acolhedor.
91
O PERCURSO PARA O INTERIOR
Os laboratórios
Paralelamente às pesquisas de campo, ocorriam os laboratórios dirigidos.
Neles, ocupava o meu Dojo e dava fluxo aos sentidos: movimento, emoção,
sensação e paisagem, que iam apresentando meus conteúdos internos relacionados
às pesquisas de campo. Alguns desses conteúdos eram passageiros, outros,
repetiam-se e com o passar do tempo iam se transformando e ganhando forma, até
tornarem-se modelagens, isto é, corpos bem delineados e com conteúdos bastante
intensos, mas que ainda não se tornaram personagem. Pode-se dizer que esses
corpos são como uma “ponte” para a incorporação que virá em seguida, já que
trazem conteúdos que necessitam ser processados. Quando a incorporação da
personagem se dá, o corpo e os conteúdos internos ganham maior definição, pois
ocorre uma nucleação das várias modelagens que se apresentaram até então.
Assim a personagem se instaura e grita seu nome.
Nagai (2008, p.12) explica que "um corpo no BPI representa uma síntese de
conteúdos" e mais adiante complementa "chamamos de corpo, o resultado
de uma modelagem, ou seja, uma postura dinâmica com atributos de
emoção, sentido e gestos bem definidos". (TURTELLI, 2009, p.42).
Dessa maneira, descreverei a seguir as quatro modelagens mais presentes
no início desse processo: a “Velha”, a “Mulher-bicho”, a “Morte” e a “Moça” através
de uma tabela utilizada no BPI, que registra os conteúdos vivenciados através do
fluxo dos sentidos. Assim, é importante ter em vista que paisagens, movimentos,
sensações e sentimentos trafegam pelo corpo do intérprete, não havendo nenhuma
“obrigatoriedade” de que cada modelagem traga consigo todos esses elementos, por
esse motivo algumas células da tabela foram deixadas sem preenchimento. Além
disso, a coluna dos sons foi acrescentada a tabela, já que esse processo foi
vivenciado por uma cantora.
92
Corpo Paisagens Movimentos Sensações Sentimentos Sons
Mulher-
bicho
Cemitério
com
túmulos de
terra, como
de
indigentes.
Procurar carne e
mortos na terra;
cheirar as mãos;
aproximar-se da
terra; cavar; comer
carne crua; segurar
coração nas mãos e
comê-lo; tronco
paralelo ao chão e
os braços torcidos
para trás; torções e
oposições de tronco
e braços; corpo
abaulado.
Instinto,
agressividade,
voracidade.
Farejar;
expirações
fortes; sons
entrecortados
que trafegam
entre choro e
riso.
Morte Canavial;
guerra;
brasas de
fogueira no
chão.
Esterno projetado
para a frente;
cheirar as mãos
ensanguentadas;
movimento sinuoso
com a bacia; mão
que chama; dedos
com muito tônus;
segura um punhal
na mão; segura um
coração; tira as
próprias vísceras;
carrega carne crua
nas mãos; carrega
uma serpente atrás
do pescoço;
Ser uma alma
penada; foi
morta, tem o
corpo
machucado,
ensanguenta-
do; ser
imortal; ser
inatingível;
esconder-se a
noite; ser
invisível;
Vingança;
tristeza; força;
impotência;
poder; ironia;
maldade;
sensualidade;
enfrentamento;
ludibriar.
Bufar; sons
entrecortados
que passeiam
entre riso e
lamento; riso
maléfico;
sussurros
com os
dentes
cerrados e
articulação de
língua, como
se falasse em
outro idioma.
93
tremores; se auto-
flagela; chicoteia pelo
espaço; cavalga; tem
o corpo abaulado
segurando dois
crânios debaixo dos
braços e olhando por
entre as frestas dele;
movimentos
espiralados de
braços e coluna; tira
pele de cobra do
corpo.
ser meio
bicho;
sexualidade
aflorada;
despertar o
feminino; ser
auto-
suficiente.
Moça Cemitério;
casamento;
Folia de Reis.
Esterno projetado
para frente; braços
abertos; reverenciar
segurando a saia do
vestido; giros; pernas
e pés soltos variando
apoios; saltos;
movimentos
pequenos e ágeis
com os pés; bacia
deslocando para os
lados; segurar um
bastão; segurar um
espelho; pentear-se;
mexer no vestido;
Se arrumar
para algo; ser
morta no altar
pelo seu
marido no dia
do seu
casamento e
sentir o
vestido todo
ensanguenta-
do.
Tristeza;
vaidade;
respeito para
com alguém;
devoção;
alegria; pena;
festividade.
Choro bem
agudo; voz
entrecortada
como um
lamento.
94
tirar uma coroa de rei
da cabeça; amarrar
um tecido no corpo e
fazer um vestido-
bandeira; dançar;
acompanhar um
cortejo.
Velha Porta de
igreja; ruas
de pedra à
noite de São
Tiago-MG;
Praça do
Giraldo de
Évora-
Portugal;
Quinta da
Regaleira e
Poço
Iniciático de
Sintra-
Portugal;
cemitério;
campo de
concentração
com aviões;
guerra; casas
Andar lento e
arrastado com uma
raiz muito profunda;
ação de benzer com
sinal da cruz;
proteger-se com uma
espingarda; mostrar
com o braço
estendido um
coração humano em
suas mãos; fremir
nas mãos; pedir
dinheiro e mostrar
moedas; chamar as
pessoas pedindo
dinheiro e arrancar o
coração delas;
carregar cruz nas
costas e a frente do
corpo; caminhar;
Estar em
uma
procissão;
ser expulsa
da própria
terra; estar
sempre
vigiando; não
poder ser
vista; foi
morta e está
fadada a ficar
ali cuidando
dos mortos
no cemitério
sempre; ficar
sempre
dentro de
casa; esperar
visita;
Apatia;
solidão;
mágoa;
tristeza;
impotência;
indiferença.
Sussurros
com os
dentes
cerrados e
articulação
de língua,
como se
falasse em
outro idioma;
vibração de
língua com
som; “sh”
como quem
pede silêncio;
fry14.
14 Região mais grave da extensão vocal que consiste em uma sonoridade “crepitante”.
95
no
subterrâneo.
segurar a cruz diante
de si a fim de afastar
algo; colocar a cruz
na cova; tem um véu
de renda preto que
cobre a cabeça;
tronco paralelo ao
chão; enterrar;
amassar pão;
procurar; carregar
lenha nas costas;
procurar corpos dos
mortos enterrados;
carregar criança nas
costas; carregar
menino morto nos
braços; carregar
caixão de criança
indigente nos braços;
carregar homem
morto nos braços; faz
sinal de mallochio13
girando ao seu redor
para espantar mau-
olhado; pedir silêncio
com o indicador
apoiado nos lábios.
proteger-se
quando vê
alguém a
espiando;
estar em uma
guerra e não
ter pra onde
fugir; ser
criança; ter
chifres na
cabeça e nas
costas; ouvir
ao longe um
canto de
procissão;
dedos das
mãos com
muito tônus
como garras;
corpo com
muito tônus;
segurar uma
vela; segurar
um bastão.
13 Gesto feito com as mãos para espantar mau olhado, com o mindinho e o indicador
esticados e os outros dedos dobrados.
96
Ao trazer essas modelagens para o corpo, podia notar que as festividades, as
brincadeiras e o sagrado que apontavam na modelagem da “Moça” eram
questionados e barrados por mim. Já as modelagens da “Morte”, da “Velha” e da
“Mulher-bicho” me causavam maior empatia, porém me estagnavam em uma
paisagem e sensação de mortes e destroços, não permitindo que o Fluxo dos
Sentidos acontecesse. O excesso de tônus dessas três modelagens fazia com que
eu me sentisse inteira e com uma presença potente, além de sentir maior
identificação com os conteúdos apresentados por elas, o que dificultava que eu
desse passagem aos outros materiais. Sendo assim, o conflito em tentar entender o
porquê da rejeição atrelada aos conteúdos trazidos pela “Moça”, perdurou por um
bom tempo.
Com o decorrer do processo, pôde-se perceber que a dificuldade em aderir a
esses conteúdos estava diretamente ligada a um medo de aprofundar, pois as
modelagens da “Morte”, da “Velha” e da “Mulher-bicho” criavam certas barreiras
impossíveis de serem penetradas, nem pela morte, símbolo de transformação.
A morte é a Grande Barca, a Nave Derradeira a informar que a aparente
inercia do morrer é, no fundo, um ato de movimentação. A morte que a
metáfora religiosa percebe é dinâmica e possibilita o contato do homem com
outra experiência tão radical quanto o nascer. (GOMES e PEREIRA, 1992,
p. 223).
Além da dificuldade em deixar-me tocar, pudemos perceber que a
identificação com os conteúdos mais sombrios me remetiam a um universo com o
qual entrei em contato durante o meu intercâmbio em Portugal, e que passou a fazer
parte de uma identidade assumida por mim. Todo esses conteúdos da Folia, das
festas e do sagrado me causavam incômodo, pois remetiam a uma identidade que
eu acreditava ter deixado para trás. O método atuou exatamente nesse ponto, me
fazendo tocar a ferida. A Amanda que fui, a Amanda que queria ser e a Amanda que
sou, fruto de todas essas vivências, antes e depois de atravessar o oceano. Qual é a
minha identidade? Ou melhor, quais são elas? Foram questões que se fizeram
97
presentes durante todo o processo, reconfigurando - como se modelasse uma argila
- tudo aquilo que sou, ou que acredito ser.
(...) é um método de transformar a imagem corporal e diminuir a rigidez de
suas formas... Assim, o movimento influencia a imagem corporal e nos leva
de uma mudança da imagem corporal a uma mudança da atitude psíquica.
(RODRIGUES, 2003, p.22)
...no BPI “a pessoa deixa emergir do seu corpo memórias que estavam
inconscientes, caso contrário o Processo não acontece”. (TURTELLI, 2009,
p.20)
Questões do inventário
No eixo Inventário no Corpo o bailarino é conduzido a uma investigação de
seu corpo, a qual envolve um re-avivamento das memórias que o
constituem, um resgate de sua história pessoal, uma redescoberta de suas
origens e uma redescoberta do meio sócio-cultural que o permeia, pois tudo
está inscrito em seu corpo. (TURTELLI, 2009, p.10).
Uma etapa imprescindível dentro do processo é a do Inventário no corpo,
quando é possível desobstruir o corpo ao trazer à tona conteúdos pessoais que
necessitam ser elaborados e que não são tratados como materiais criativos, pois, de
certa maneira, impedem o Fluxo dos Sentidos. Assim, esse eixo atua com as
pesquisas de campo e as modelagens, preparando o corpo para o material criativo
que se apresentará. A fim de elucidar esse ponto da pesquisa, descreverei a seguir
algumas experiências vividas dentro desse eixo.
Uma experiência bem marcante aconteceu durante a disciplina da pós-
graduação AC202 Tópicos especiais em atuação, oferecida no início de 2016 pela
Profª Drª Graziela Rodrigues e pela Profª Drª Larissa Turtelli. Nesse curso, em uma
das dinâmicas em dupla, vivi uma experiência interessante. A indicação do exercício
foi nos levando a modelagens infantis, e começamos a nos relacionar em duplas.
98
Interagi com um dos alunos da disciplina, que em um dado momento me puxou por
um dos braços, enquanto eu segurava com o outro no batente da porta. Nesse
instante uma memória de infância invadiu-me: lembrei-me de quando tinha seis anos
e segurei no corrimão da escada da escola com muita força, enquanto a diretora me
puxava pelo braço, pois eu não queria ir para a aula. Minha mãe estava no pé da
escada observando e eu chorava muito. Meu impulso, após essa memória vir à tona
foi o de ir para o meu Dojo, porém, apesar da indicação ser a de convidar o outro
para adentrar o seu espaço impedi que ele entrasse, evitando aprofundar o nível da
relação. Passado um tempo ele entrou em meu espaço, e então começamos a
mexer na terra; pouco a pouco fui me abrindo para o contato, partilhando com ele
objetos que estavam ali. Lembro-me que esse momento me emocionou, pois
percebia o quanto era difícil me abrir e relacionar-me, e o quanto foi importante
quebrar essa barreira e deixar-me afetar pelo outro, já que assim tocávamos em
uma das questões centrais desse processo: o afeto, que necessitava vir à tona.
Nesse mesmo dia, após a dinâmica em dupla, um movimento de deitar-me no
chão de barriga para cima, com as pernas flexionadas e ligeiramente levantadas,
conduziu-me a sensações atreladas ao parto, tanto ao fato de ser parida quanto a
parir, no que diz respeito à dor de nascer e de dar a luz, trazendo questões minhas
acerca da relação mãe e filha, ao fazer-me olhar para esses conteúdos, um tanto
dolorosos, que estavam em meu corpo, mas que eu me recusava a ver. Atrelado a
isso, pude vivenciar na colheita de café um momento entre minha mãe e eu, que
também me auxiliou no processamento desses conteúdos. Foi ao andar pelas fileiras
de café procurando as pessoas que trabalhavam ali que ela me sugeriu: “vamos
correr para encontrá-los?” Eu mais do que depressa aceitei o convite e corremos por
entre as fileiras do cafezal. Ao olhar para o lado, via minha mãe entre as plantações
e me sentia viva, pois era como se voltássemos a ser crianças e os medos e as
hierarquias estivessem sendo diluídas, possibilitando que nos encontrássemos
completamente “despidas” e assim o afeto emergisse. Entrar em contato com esses
sentimentos foi de extrema importância para o processo de “desamarrar” o corpo e
poder aprofundar.
99
Por fim, posso dizer que o momento que descreverei a seguir foi crucial para
esse processo, pois me colocou em contato com questões pessoais deixadas de
lado e que ao trazer à consciência possibilitou que desobstruísse meu corpo,
causando até mesmo certo estranhamento ao me colocar nos laboratórios depois
disso, pois a percepção do meu próprio corpo havia mudado.
Após alguns laboratórios em que os conteúdos recorrentes eram de auto-
flagelo, ser algemada, chicoteada, amarrada, enforcada, queimada em uma fogueira
e jogada na água, alguns traumas se processaram. Essas sensações de tortura me
traziam imagens de negros em senzalas e de bruxas na inquisição, ambos símbolos
de resistência e busca pela liberdade, que sofriam ao ter que viver escondidos ou
enclausurados.
Foi através de uma sensação física e uma imagem que me apareceu em Dojo
que determinados conteúdos marcantes da minha vida e que ainda não haviam sido
bem processados começaram a ebulir. O choro e a dor foram inevitáveis, pois era
como se revivesse esses momentos e sentimentos no corpo. Então, após alguns
dias, percebi que a angústia que sentia só se transformaria através do corpo, pois foi
daí que ela nasceu. Coloquei-me novamente em laboratório, e assim os conteúdos
voltaram a se desenrolar.
Dou ênfase para esse momento do método, já que trazer um trauma à tona
não é de fato nem um pouco fácil, pois trazemos à consciência algo obscuro da
nossa história, que temos a chance de olhar novamente, para que através do corpo,
possamos perceber e transpassar vivências difíceis que ficaram gravadas em nossa
musculatura e na nossa pele, o que possibilita realmente que uma outra “dimensão”
de nós mesmos se abra, nos permitindo aprofundar mais e chegar mais perto
daquilo que somos, pois não somos em essência os nossos traumas, eles estão aí,
mas se trazidos para a consciência podemos ir além. Ressalto nesse momento a
importância do papel da diretora, que me auxiliou a identificar e elaborar o que
estava ocorrendo internamente, respeitando meu momento de processar esses
conteúdos para poder prosseguir com a criação.
100
Elaborar envolve um saber: saber sair dos pontos que aprisionam”.
Segundo a autora (ibid., p.154) [Rodrigues, 2003] é de fundamental
importância o intérprete ir além das “dores do passado”: “transformando-as,
dando-lhes movimento. Um mover que busca novos significados [...] Saber
modificar-se”. O intérprete não fica preso às suas emoções, ele aprende
como conduzi-las em direção a um movimento de vida. (TURTELLI, 2009,
p.21)
101
IEOA É SEU NOME
A personagem é fruto da pesquisa de campo, do co-habitar com a fonte e
do que esta vivência despertou no próprio intérprete. No trabalho de
laboratório, o corpo do bailarino-intérprete passa a assumir um corpo
imaginário, “como se não fosse o dele”, gerando uma liberdade de
expressão e uma permissividade na dança de experimentar a fala e o canto,
sem a preocupação de responder a padrões convencionados.
(RODRIGUES, 1997, p.19).
Com a prática dos laboratórios, chega um determinado momento em que o
corpo sintetiza uma personagem. Ela é resultado de todos os eixos do método, o
Inventário no corpo que viabiliza os processamentos da história pessoal do
intérprete, e o Co-habitar com a Fonte que nos coloca em contato com o outro e
consequentemente com nós mesmos.
O sentido atribuído à Incorporação é o momento – dentro do Processo – em
que a pessoa alcança uma integração das suas sensações, das suas
emoções e das suas imagens, vindas até então soltas e desconectadas.
(RODRIGUES, 2003, p.124)
Até parece que são muitas personagens, porem todas essas imagens fazem
parte de um mesmo eixo. Em alguns momentos essas características se
misturam, outras vezes uma delas se destaca, tornando-se depois
fusionadas. Uma historia vai ser formando. Na fusão dos corpos resulta uma
individualidade que grita o seu próprio nome. (RODRIGUES, 2003, p.128).
Seu nome: IEOA, no início causou-me certo estranhamento por ser
constituído apenas por vogais. Depois, ao pesquisar sobre esse nome, um leque de
significados foi aberto, dentre eles sua relação com o nome Jeová, já que IEOA é a
sua pronúncia vocálica.
Pelo lado consonantal seu nome soa JEHOVAH, e pelo vocal IEHOUAH.
Aqui entra em lugar do J um I e, em lugar do V, um U. O primeiro H substitui
a impronunciável vogal da lua. O segundo H não é mencionado por Rudolf
Steiner no contexto acima. Se pronunciarmos o nome empregando
102
consoantes, ele exprimirá como, através do J e do V, o elemento do fogo já
se imiscui na formação do corpo etérico, pois o ser humano aspira
veementemente por seu nascimento. (BAUR, 1992, p.193)
O Tetragrama Sagrado YHVH ou YHWH (mais usado), (הי- aifarg an ,וה
original, o hebraico), refere-se ao nome do Deus de Israel em forma escrita
já transliterada e, pois, latinizada, como de uso corrente na maioria das
culturas atuais. (...) The Grecised Hebrew text “εληιε Ιεωα ρουβα“ é
interpretado como significando ”meus Deus Ieoa é mais poderoso”. – “La
prononciation ‘Jehova’ du tétragramme”, O.T.S. vol. 5, 1948, pp. 57, 58.
[Papiro Grego CXXI ” PISTIS SOPHIA” (do 3º séc.), Biblioteca do Museu
Britânico.]
(https://traducaodonovomundodefendida.wordpress.com/2012/01/01/e-o-
nome-jeova-uma-juncao-da-palavra-adonai-sobreposta-ao-tetragrama/)
Os nomes YaHVeH (vertido em português para Javé), ou YeHoVaH (vertido
em português para Jeová), são transliterações possíveis nas línguas
portuguesas e espanholas, mas alguns eruditos preferem o uso mais
primitivo do nome das quatro consoantes YHVH; já outros eruditos
favorecem o nome Javé (Yahvéh ou JaHWeH). Ainda alguns destes
estudiosos concordam que a pronúncia Jeová (YeHoVaH ou JeHoVáH),
seja correcta, sendo esta última a pronúncia mais popular do Nome de Deus
em vários idiomas.
Esta expressão “Eu sou o que sou” é usada como título para Deus, para
indicar que ele realmente existia. Isso corresponde a “Eu sou aquele que é”,
“Eu sou o existente”. YHVH estaria assim confirmando sua própria
existência. (http://www.universidadedabiblia.com.br/tetragrama-yhvh-o-
nome/).
Além disso, encontramos na Quirofonética15 outros significados para seu
nome.
15 Tal referência foi indicada pela Profª Drª Regina Machado no exame de qualificação dessa
pesquisa.
103
Dentre todas as vogais, o I é onde a corrente aérea alcança a maior
velocidade. (p.175) A obra divina do templo do corpo humano prevê que o
ser humano represente uma espécie de coluna ereta. O corpo como figura
ereta: I. (...) “O E consolida o eu no corpo etérico “, diz Rudolf Steiner. O E
junta as metades esquerda e direita do corpo e as encaixa entre si.(BAUR,
1992, p.173)
É de modo comparável a uma abóboda que se forma a cabeça. Tanto em
sua forma como em sua função, a cabeça isola o ser humano das
adjacências. O corpo como figura fechada em si mesma: O. (BAUR, 1992,
p.185)
O A é o fonema mais aberto, mais lento e mais quente.” (BAUR, 1992,
p.169) “O A Abre a porta. (BAUR, 1992, p. 170)
No E e no U exprimem-se a solidez e a obscuridade que a Terra assumiu.
No E soam as rochas firmes e no U as escuras profundezas. (p.193) No
gesto do I o eu se coloca sem sombra na existência, com sua forma mais
luminosa e mais clara. Através do A atuam ele as forças do nascer do sol e,
através do O, as do pôr-do-sol. (BAUR, 1992, p.190)
Sendo assim as vogais representam: “A – a porta aberta; E – os muros
limitantes; I – A coluna ereta; O – O arco da cúpula; U – O comprido salão. (BAUR,
1992, p.185)”, na linha da Quirofonética, criada na Áustria em 1972 pelo Dr. Alfred
Baur, que compara o organismo fonador ao organismo como um todo, atuando
através de recursos da massagem e da fala como fonte curadora.
Ao falar dos conteúdos trazidos por IEOA podemos dizer que três pesquisas
de campo foram essenciais para o desenvolvimento desse trabalho: a Folia de Reis
em Três Pontas – MG, a colheita de café em Jaú – SP e o ritual de Encomenda das
Almas em São Tiago – MG.
A começar pela Folia de Reis, nota-se que ela “abriu as comportas do corpo”,
pois afetou-me num nível que foi para além das identificações, tocando em questões
que estavam inconscientes e que necessitavam vir à tona nesse momento, dentre
elas o deixar-me tocar. Ali, como dito anteriormente na síntese dos campos, foi o
104
lugar dos afetos, em que as relações me atravessaram, fazendo-me receber o outro.
A colheita de café fez-me entrar em contato com o passado da minha família que
trabalhava na roça, além de conteúdos como a generosidade, a morte, o abuso
sexual e a pobreza. E por fim, a Encomenda das Almas trouxe todo um universo
simbólico em que mergulhei em Portugal, como os mistérios da vida após a morte e
a ligação com o plano espiritual.
Assim, constata-se que a personagem traz conteúdos relacionados, de certa
maneira, a esses três campos: a festividade e a brincadeira, a dor e o sofrimento e a
morte e seus mistérios.
Por vezes IEOA sai pelas ruas dançando, abrindo os caminhos e querendo
mostrar-se. As paisagens são ruas de pedra e um cortejo a acompanha durante o
dia. Ao seu redor há muitas pessoas, mas a sensação de solidão caminha ao seu
lado, trazendo consigo certa conotação de liberdade.
Ao levar as mãos para o céu sente as fitas de cetim coloridas penduradas por
todo o espaço. Lá no alto vê uma bandeira branca com a figura de uma pomba, o
Divino Espírito Santo. Passeia por entre as fitas e à frente do peito segura bem
aberta sua bandeira, conectando-se com o sagrado. Na caminhada utiliza variados
apoios dos pés de modo bem ágil, intercalado com pequenos saltos. Por vezes
emite alguns glissandos16 descendentes com a vogal I e E, como alguém que
festeja.
Esse universo trazido por ela remete à figura do palhaço da Folia de Reis e às
festividades, devido às brincadeiras, à ironia, à leveza, às movimentações ágeis dos
pés seguidas de pequenos saltos, por carregar consigo uma bandeira, usar um
bastão com fitas coloridas nas mãos e manter o rosto encoberto, ora por um tecido,
ora pintado.
16 Condução de uma nota a outra passando por todos os intervalos entre elas com articulação
ligada.
105
É um personagem misterioso, alegre, cínico e dissimulado, sempre usa
máscara. (...) Sua figura faz a transição entre o sagrado e o profano nas
cerimônias, entre o caráter solene e o lúdico das festas. Os palhaços usam
máscaras confeccionadas com diferentes materiais, sempre muito coloridas,
às vezes, com expressões aterradoras, outras cômicas; sabem dançar,
executar acrobacias e promover brincadeiras. (KODAMA, 2009, p. 142,
143).
Em outros momentos, IEOA caminha para o outro extremo, trazendo
conteúdos ligados à morte - o destino comum de todos os homens, à vida após a
morte e o contato com as almas. Por diversas vezes senti como se ela estivesse
enterrada, saindo da própria cova em um cemitério, à noite. É como se ela fosse
uma alma penada, uma guardiã que está ali para cuidar dos que já se foram mas
ainda continuam nesse plano, sendo o elo de ligação entre o mundo físico e
espiritual, pois encaminha as almas para uma outra dimensão. Essa encomendação
das almas se dá através de um canto, um lamento, quando caminhando com o
tronco paralelo ao chão vai levando uma procissão de almas atrás de si.
Nesses momentos a sensação mais presente é a de carregar a dor dessas
pessoas a fim de aliviá-las e encaminhá-las para um outro plano. Porém, não é
sofrido habitar um cemitério, sente como se ali fosse seu lugar, recebe os que
chegam e busca os que estão por vir, entoando um lamento a cada chegada.
Além disso, a temática da morte já surgiu em outros momentos atrelada à
figura de Cristo, pois a personagem levava uma cruz nas costas, era chicoteada e
tinha o corpo todo machucado. IEOA fez esse trajeto com a cruz e a enterrou, sentiu
a dor da morte e depois ressurgiu, tornando-se essa IEOA que vive pairando por aí
como alma penada.
Seu corpo todo machucado, ensanguentado, que carrega espadas nas mãos,
ossos nos braços e crianças mortas são conteúdos recorrentes, que reiteram a
temática da morte.
106
A morte relativiza o fruto da criação humana, o que a faz sedutora e
temerosa. Seduz quando encerra uma obra ou devora um corpo, e com isso
abre caminhos para projetos inauguradores: na própria inumação do
cadáver, a morte transforma o homem em húmus que fertiliza a terra e o
imaginário. A morte atemoriza porque abre as portas do desconhecido e
revela o perecimento de todas as coisas, inclusive do Eu que assiste a
tantas mortes. A morte é ambivalente, representando a inauguração e o fim,
e é dinâmica na diversidade de maneiras como ocorre e nos significados
que o homem lhe atribui. A morte são varias representações de um evento
singular. (GOMES e PEREIRA, 1992, p.199)
Escrever a morte representa entender o homem em sua fragilidade. O
discurso fúnebre retém o rio de lágrimas e lamentações atribuindo-lhe um
aspecto estético, reconstitui o corpo dilacerado e deposita flores sobre a
terra fria. ((GOMES e PEREIRA, 1992, p. 222).
Assim IEOA transita entre um corpo machucado que tem muita relação com o
chão, e um corpo que salta, que gira, que quer tocar o céu. Vida e morte. A
personagem passeia pelos extremos, parecendo ter muito conhecimento escondido
debaixo de tantos panos, que cobrem seu rosto e seu corpo, sem revelá-los por
completo.
A fim de potencializar a percepção sobre ela descreverei aqui uma
experiência tida na disciplina intensiva AC111 - Laboratório de criação II ministrada
pelas professoras doutoras Graziela Rodrigues e Larissa Turtelli no início de 2017,
que foi de extrema importância para elucidar conteúdos da personagem.
Em um dos dias da disciplina, por indicação da Profª Drª Graziela Rodrigues,
abri o dojo para os colegas. Foi uma experiência muito importante, pois senti muito o
fluxo dos sentidos. Sentia meu corpo preciso, inteiro, potente. Nesse dia apareceram
duas modelagens, uma delas cantava. Esta era uma mulher mais velha, com
movimentos mais lentos e sinuosos, como o quadril desenhando um oito e os braços
abertos com movimentos espiralados. Estava ajoelhada e usava um véu na cabeça.
Então entoou uma melodia em modo menor. A sensação era de suspensão, sentia-
107
me como uma alma, alguém desencarnado. Depois disso senti-me menina, em pé,
com movimentos nos pés muito ágeis e deslocamentos pelo espaço. Dizia que tinha
morrido com 10 anos, e que a morte iria buscar todo mundo. Então sentia uma
energia de vitalidade, de brincadeira.
Apesar desses corpos terem vindo de maneira muito intensa, os conteúdos
ainda pareciam um pouco descolados, uma mulher mais velha que cantava e
parecia levitar, e uma criança, que tem algo de brincadeira e uma relação muito forte
com o solo. Foi então que, dois dias depois, os conteúdos integraram-se. Para isso,
foi necessário trazer a sensação de estar com a personagem no corpo, sem me
preocupar com os conteúdos que ela traria. Comecei por utilizar os diversos apoios
dos pés e a movimentar o quadril em oito. Então, comecei a expandir o corpo,
direcionando cada parte para um lado, pensando em vários vetores, como se cordas
me puxassem para vários lados. Assim, o corpo da brincadeira foi aparecendo. Ela
carregava nos braços um caixão de criança, e a impressão que tinha era como se
sua mãe a carregasse quando ela morreu. Então, a voz começou a surgir, como um
lamento, trazendo a dor da mãe ao enterrar um filho. A partir daí, o corpo foi
contando uma história, que a voz complementava.
“Minha mãe pôs esse vestidinho em mim, nunca tiro ele”, dizia IEOA menina
mexendo no vestido, ao dizer do dia que morreu. Contava que usava o véu para sair
na rua pra não ser vista, e que com o seu bastão ia até os velórios das crianças para
acalmar o coração das mães e assim poder levar as crianças embora, para esse
outro mundo. IEOA mostrou-se como uma guardiã de um mundo entre os mortos e
os vivos, não estando nem encarnada, nem desencarnada completamente, era
como se habitasse uma espécie de “umbral”, para onde vão as crianças que morrem
mas não vão embora. Dizia que se os adultos ficam sofrendo porque uma criança vai
embora ela não consegue descansar, e IEOA ajudava nisso, cantava uma música
alegre, dava movimento e brincava a fim de encaminhar essas crianças. Dizia que
quando uma criança morria, uma música bem triste tocava nesse lugar e ressoava
108
no coração da mãe, mesmo sem ouvi-la, cabendo a ela esse lugar entre o mundo
dos vivos e dos mortos.
Nesse dia o cantar estabeleceu-se e recordo-me nitidamente da sensação de
desafogar o peito que isso me trouxe, algo que não havia acontecido até então. Até
então o canto parecia não caber ali, pois atrelava isso a uma certa “ordem”, com
relação às frases melódicas, e IEOA me soava como essa figura que traz a
desordem e quebra os padrões. Porém, nesse dia o canto oscilou entre um lamento
e algo festivo, passeando entre os extremos.
Em um dos últimos laboratórios, a Profª Drª Graziela nos indicou utilizar um
caixão de criança ao invés do caixote de madeira, como estávamos fazendo. Sabia
que tal indicação abriria muitas comportas internas e então o providenciamos.
Nos laboratórios que se seguiram, havia uma dificuldade em me relacionar de
fato com o caixão. O medo de tocar nas minhas memórias referentes a esse
universo impedia um real aprofundamento. Então, por indicação da direção, trabalhei
o caixão como um objeto, manuseando-o e percebendo-o, sem me preocupar com a
personagem, para assim explorar os sentidos que viriam à tona no meu corpo a
partir desse contato.
Com esse procedimento mais um véu foi retirado. Lembranças de pessoas
que já perdi, que já vi serem postas debaixo da terra, saudade e medo da despedida
me tomaram, parecia viver tudo novamente. Não havia encerrado esses ciclos, e ali,
pelo corpo, foi imprescindível encerrar. Iniciei pela morte externa para chegar nas
minhas mortes mais internas. Via-me ali, menina, a seguir os preceitos e dogmas
cristãos. Dentro do caixão, com espanto percebi, estava o menino Jesus. Menino
que tiraram de mim. O meu sentimento nesse momento era como se a própria igreja
tivesse me arrancado a pureza da fé. Sentia também que haviam tirado de mim o
meu próprio corpo. Pois passei por situações em relação à igreja católica nas quais
me foi fortemente incutido que não podia ter libido, não podia ter prazer, que a carne
109
era o maior pecado: não podia ter corpo. Não podia ser, não podia existir, não podia
sentir. Não podia ter individualidade.
E então uma percepção valiosa: o que estava fazendo nesse processo de
criação? Buscava “ganhar corpo”, durante todos esses anos, e para isso, busquei
trabalhar suas diversas possibilidades através das Artes da Cena, mas para me
sentir encarnada de fato faltava virar uma chave, que só foi possível através desse
processo: permitir-me ter carne e osso, e assim existir.
Com isso, o roteiro para a apresentação foi sendo estruturado. IEOA iniciava
seu percurso no cemitério, saindo de dentro da cova. Ali tinha o gesto de empurrar a
terra e os outros caixões e ganhar espaço para sair. Tirava a terra do corpo,
empunhava o seu bastão, e se transformava para sair. Utilizando os variados apoios
dos pés ela ia ocupando o espaço e abrindo o caminho com seu bastão.
Cumprimentava os presentes e benzia os quatro cantos da sala. No centro, girava e
achava seu eixo, firmando o seu lugar. Então abria sua bandeira, símbolo do
sagrado, à frente do peito, repleta de fitas de cetim, e levava para as pessoas
fazerem seus pedidos, interagindo com elas. Após fazerem seus pedidos, a bandeira
ia ganhando vida e IEOA dançava com ela, assim como os palhaços nas Folias de
Reis. Depois, deixava sua bandeira e seguia seu caminho, sendo guiada pelo
bastão. De repente se via só, e começava a sentir os flagelos em seu corpo. Com o
corpo todo machucado seguia, e ia ao encontro da morte. Com um andar lento e
pesado carregava o caixão nas costas, como quem leva sua cruz. Depois, passava a
carrega-lo à frente do corpo, como quem nina uma criança, materializando o ápice
da dor: a mãe que perde seu filho. Entoava um canto, um lamento, que diz: “Oh
almas que estás dormindo, nesse sono tão profundo. Rezemos um pai nosso, as
almas do outro mundo. Sejas pelo amor de Deus, pelo amor de Deus seja.” E assim
enterrava, se revoltava, sentia a dor e via a alma deixando o corpo e indo para uma
outra dimensão, então se despedia.
IEOA sai da terra, se relaciona, festeja, é morta e alguém conduz a sua alma.
As relações, a dor, a perda, o luto, a efemeridade humana, a passagem para um
110
outro plano, a vida eterna, a vida, a morte e a festa. IEOA fala dos ciclos, daquilo
que termina e daquilo que renasce.
Objetos
IEOA traz uma forte relação com o sagrado e com o catolicismo. Até um
determinado momento a cruz foi um objeto muito presente nos laboratórios, sendo
carregada nas costas, levada à frente do corpo, fincada no chão ou enterrada,
simbolizando a dor da morte, o sofrimento e a Paixão de Cristo, mas também a
esperança da ressurreição. Já a bandeira, objeto utilizado na Folia de Reis que
simboliza o sagrado, se manteve, sendo carregada aberta a frente do peito, como se
brotasse do esterno.
Além disso, a terra é um elemento central desde o início, pois antes de utilizá-
la havia um movimento de ciscar com os pés, cavar, plantar, e a sensação de estar
dentro de um buraco. Após materializá-la, o corpo reiterou tais conteúdos, trazendo
também as imagens de túmulos, a sensação de enterrar os mortos, de sair da
própria cova, de esconder-se e proteger-se.
Os tecidos foram outro elemento que apareceram diversas vezes nos Dojos e
que quando materializados, encheram o corpo de sentidos. Um pano preto rendado
e um pano branco transparente sobre a cabeça potencializaram os corpos que
estavam se modelando. O primeiro potencializou o corpo da Velha, e o segundo o
corpo da Morte e da IEOA. Somado a isso IEOA usa guizos em seus dedos das
mãos, um vestido longo bege cobrindo todo o corpo e fitas de cetim que lhe cobrem
o rosto e são penduradas em seu bastão com guizos na ponta, que ela utiliza para
abrir os caminhos, dançar, transformar e chicotear. Além disso, outro objeto
importante é o caixão, que a liga com a morte e com uma outra dimensão.
O espaço construído é muito próprio de cada pessoa. A relação da pessoa
com o espaço criado por ela possibilita um fluir de movimento, de onde irá
111
surgir a sua dança. As sensações, os significados da pessoa invadem o
espaço e o espaço vem na pessoa. (RODRIGUES, 2003, p.125).
Muitos dos elementos que vão surgindo, vindos internamente, são
solicitados à própria pessoa que os confeccione, e passam a fazer parte do
corpo de sua personagem, auxiliando-a na estruturação da mesma. Porém,
isto não quer dizer que sejam permanentes, assim como nada é
permanente na personagem, não sendo caracterizados como figurinos.
Todavia, podem perfeitamente vir a constituí-lo, numa outra etapa.
(RODRIGUES, 2003, p.130-131)
112
VOZ
O trabalho corporal que pude vivenciar durante essa pesquisa foi de extrema
importância para a minha formação como artista da cena, por ser algo que eu ainda
não havia experimentado e no qual ansiava em me aprofundar, a fim de alcançar
uma presença cênica potente, e assim despertar quiçá, a voz.
Ao falar de presença, ressalto que não tivemos como objetivo nos
aprofundarmos nesse assunto tão visitado nas artes cênicas, porém, como essa
necessidade me levou para as artes da cena, deixo aqui minha reflexão sobre a
presença que eu tanto almejava.
Antes de iniciar meu processo no método BPI associava, dentre outras
coisas, a presença a um tônus mais alto. Com o desenrolar do processo fui
percebendo que esse tônus mais alto muitas vezes me enrijecia e paralisava, não
dando fluxo e delineamento aos movimentos, e de certa maneira também me
fechava, pois servia como um escudo. No decorrer do processo minha concepção
sobre presença se alterou, pois fui percebendo que ao tirar essa “casca” eu me fazia
muito mais presente. Fui caminhando na contramão e notando que ao contrário do
que eu imaginava, era necessário tirar, desnudar e abrir para poder estar presente.
Pois que para estar é preciso ser, e para ser é preciso retirar camadas.
Além disso, assimilar a proposta do método BPI, no que diz respeito a deixar
o movimento fluir sem censura não foi simples, pois para isso era necessário evitar o
impulso de querer pré-definir aquilo que seria feito. Com o passar do tempo o corpo
foi ganhando maior autonomia e o processo passou a fluir com mais facilidade, me
proporcionando maior liberdade e fluxo de movimento.
A Técnica de Dança do método BPI propiciou que eu sentisse meu corpo
inteiro, o qual o trabalho com o tônus e as raízes dos pés foram de extrema
importância para sentir-me “encarnada” em meu próprio corpo, algo desconhecido
antes desse processo. Antes do contato com o método era como se não tivesse
113
pernas, membros muito frágeis para mim. Então, ao frequentar as aulas diárias de
Dança do Brasil da graduação em Dança, com enfoque no método BPI, pude ir
“ganhando corpo”, conquistando membros e tronco e ocupando assim o meu
espaço.
Como o intuito dessa pesquisa era o trabalho corporal, foi definido que não
haveria uma preocupação com relação à voz aparecer ou não nesse processo, pois
uma das características do método é a imprevisibilidade daquilo que emergirá do
corpo. Assim, a voz se apresentou muito pouco no início do processo, deixando
muitos corpos no silêncio, algo interessante de se perceber, já que a voz é o meu
instrumento de formação.
Na maioria das vezes em que ela se fazia presente, foi através de sussurros
com os dentes cerrados e articulação de língua como se falasse em outro idioma,
um “sh” como quem pede silêncio, expirações fortes que lembravam um bufar,
vibrações de língua com som, sons graves em stacatto17, fry e sons entrecortados
bem agudos, que por vezes remetiam a um riso - trazendo uma conotação de poder
como um riso maléfico da morte – e outras vezes a um choro, como de quem perde
alguém amado. Demarcando esse limiar entre os extremos, ser inatingível ou afetar-
se, materializando o ponto de conflito desse processo: deixar-se tocar.
Ressalto aqui que esse também foi um ponto de conflito no processo, pois a
ausência ou rara presença da voz nos laboratórios causou-me incômodo e
questionamentos, já que me propus a vivenciar um processo na dança mesmo
sendo cantora, experienciando diariamente a sensação de estar pisando em um
“terreno desconhecido”, que aos poucos foi se aproximando de mim, enquanto na
contramão a voz se distanciava, deixando-me apenas com o silêncio.
Mesmo sabendo que nesse processo isso poderia ocorrer, pois o foco do
método estava em trabalhar o corpo, as frustrações advindas pela ausência de voz
17 Nota com duração curta com ênfase no ataque.
114
me visitavam, e então, em vias de finalizar essa pesquisa, em um dos laboratórios a
voz e o corpo se uniram. Estava com a personagem incorporada quando a Larissa
falou: “Deixa vir o canto que já está aí. Ele já está”. Tal fala soou como uma
libertação, pois ao perceber isso a voz começou a brotar trazendo consigo uma
melodia, desprovida da minha necessidade em controlar as alturas ou o timbre,
apenas deixando a voz nascer meio trêmula e confusa, e aos poucos ir
estabilizando-se em algumas notas. Então, comecei a girar enquanto cantava, e
assim pude sentir a vibração do som na altura do palato duro18, que resultou em um
som repleto de harmônicos, com ênfase para os agudos. O som era cheio e parecia
ocupar todo o espaço da sala e o próprio corpo. Era como se eu virasse voz e corpo
por alguns instantes, enquanto minha mente dava trégua para eu simplesmente ser
e estar.
Após o laboratório sentia um misto de satisfação, por ter conhecido aquele
novo lugar físico, sonoro e enquanto estado, e ao mesmo tempo certo receio, pois
sentia como se tivesse “perdido o controle”, não enquanto catarse, mas enquanto
deixar de querer direcionar o que meu corpo e minha voz iriam produzir, e deixar-me
ser conduzida pelo movimento e pelo som. Como chegar àquele lugar/estado
novamente? Era uma das questões.
Com o passar do tempo, a voz passou a se fazer mais presente e melodias,
principalmente em modos menores, começaram a surgir, deixando cada vez menos
espaço para o silêncio. Quando não entoava melodias surgiam sons como “ie”, “o”,
“a”, em um glissando descendente. Além disso, foi nítida a ampliação das
possibilidades vocais, no que diz respeito a variações de timbres e ao alcance de
notas localizadas nas regiões de extremo grave e agudo.
18 É o “teto” da boca que separa a cavidade oral da cavidade nasal. A parte óssea anterior é
chamada de palato duro.
115
Por vezes a voz se fazia mais presente e o corpo ocupava o segundo plano,
ou vice-versa, trazendo novamente a questão de como integrá-los. Então, em alguns
laboratórios, iniciava o fazer pela voz e deixava brotar o movimento, experimentando
assim esses dois caminhos, da voz que desperta o corpo, e do corpo que desperta a
voz, a fim de integrá-los. Quando isso ocorria, as nuances vocais caminhavam junto
com o corpo, como se a voz também fosse se modelando. Foi interessante perceber
como esse som, que emerge conjuntamente com o corpo em movimento, parece
preencher todos os espaços do corpo. É uma voz que nasce com urgência, é uma
necessidade, como se ela partisse de dentro do corpo imbuída de líquidos e carne,
sem encaixar-se necessariamente em padrões estéticos convencionados, apenas
sendo aquilo que é, conectada com a emoção e por isso, repleta de sentido.
Ao falar sobre essa relação voz e corpo, posso concluir ao final desse trajeto
que o trabalho corporal feito diariamente dentro do método contribuiu imensamente
para essa potencialidade expressiva que queria alcançar como intérprete. Pois, para
conquistar uma presença eu necessitava ter corpo, e pude perceber isso ao começar
a trabalhá-lo, já que fui ganhando tônus, despertando minha musculatura que estava
adormecida, ganhando raiz, base e ocupando o espaço. Nesse sentido, o trabalho
técnico de dança e dos sentidos proposto pelo método BPI, me permitiu conhecer
um corpo “vivo” e apresentou-me os caminhos para chegar até ele. A respeito dessa
presença que eu buscava alcançar, posso dizer que a experienciei através de um
corpo dilatado, que pulsa, e que tem a percepção ampliada, preenchendo o espaço
e comunicando-se com aquele que vê.
Assim, o processo dentro do método BPI contribuiu para meu fazer como
cantora, pois deu-me corpo, fez-me experimentar a voz a partir dele e proporcionou-
me reflexões profundas sobre aspectos da minha história incrustados em meu corpo
e questões de identidade, permitindo-me integrar-me.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um processo extremamente profundo foi vivido nesses dois anos, pessoal e
artisticamente, o qual me exigiu disciplina, entrega e ao mesmo tempo
desprendimento, no que tange aos conteúdos trazidos pelo corpo.
Até então, nos processos criativos que havia vivenciado, o assunto sobre o
qual eu iria tratar sempre vinha em primeiro plano, surgindo das letras das canções
que trabalhava, ou das temáticas dos espetáculos, esse era o ponto de partida.
Demorei a entender que, no método BPI, o conteúdo era consequência, pois o mais
relevante era o corpo ganhar presença, inteireza, e que isso indicaria o conteúdo
que iríamos tratar, vindo a partir do corpo. Dessa maneira, pude ir percebendo que é
um processo que acontece decididamente de dentro para fora, não há como ocorrer
no sentido contrário, pois se for assim, esbarramos no apego aos materiais dos
quais queremos tratar, que não necessariamente mobilizam o nosso corpo. Com
isso, essa foi uma das minhas dificuldades, pois ao apegar-me aos conteúdos era
difícil deixar o corpo fluir para onde quisesse.
Nesse mesmo sentido, foi interessante perceber como a narrativa, os
conteúdos e até mesmo os objetos que emergiram desse processo criativo,
dialogam com os outros processos que vivi, citados no início desse trabalho. Um
percurso, o encontro com o outro, a dor, a morte e a despedida, temas recorrentes
para mim.
Outro ponto importante foi a dificuldade de deixar-me tocar pelos conteúdos
que estavam se apresentando para mim, em campo e nos laboratórios. Eles traziam
um universo no qual eu não queria me aprofundar, pois assim tocaria em questões
minhas que estavam às escuras e que eu havia decidido deixar para trás. Porém,
com essa atitude, não me reconhecia por inteiro; foi ao deixar aflorar essas questões
na consciência que consegui me integrar, e foi isso que o processo fez, desenterrou
meus mortos e apresentou-me a mim mesma.
117
Entender que é um processo também me faz amadurecer como artista, pois
ao tirar o sentido de obrigação em estar sempre pronta, me permiti aprofundar ao
percorrer caminhos necessários para chegar a esse material potente sem seguir
pelo atalho.
Como cantora, o processo contribuiu imensamente em vários aspectos,
dentre eles a presença cênica, tão desejada; a perceber a relação que se faz entre
corpo e voz quando eles realmente estão atuando de maneira conjunta,
possibilitando-me descobrir outras possibilidades vocais e enquanto processo
criativo, me proporcionou viver uma criação com maior profundidade, atingindo
níveis que sem uma direção não teria alcançado.
Ao lidar com a vida e a morte, IEOA passeia pelos extremos, trazendo como
cenário festas e cemitérios e expressando sentimentos de felicidade e de dor, dois
pontos específicos ligados ao meu processo, a ligação com o universo caipira no
que diz respeito a suas crenças e folias, e com um universo mais sombrio, frio e
obscuro, que também está atrelado à cultura caipira e que pude começar a tomar
consciência no período em que vivi em Portugal. Assim a personagem uniu esses
dois polos, integrando a Amanda que se encontrava fragmentada.
É como querer florir sem ter raiz, foi preciso achar minha raiz que estava um
tanto desfeita, voltar e olhar para a Amanda, lá atrás, abraçá-la e levá-la comigo,
ampliando minha noção de identidade sem enrijecê-la.
O processo de aceitação da personagem veio com o tempo, pois no início
IEOA trazia somente conteúdos relacionados à festividade, que me causavam
rejeição e me apresentavam questões sobre a minha própria identidade. Como eu
podia me identificar mais com os conteúdos trazidos pelas modelagens da “Velha” e
da “Morte” se eles não tinham permanecido? Como eu podia aceitar uma
personagem com quem eu acreditava não ter nenhuma identificação? Qual era
minha identidade então se aqueles conteúdos haviam brotado de mim? Eram
perguntas que me rondavam.
118
Ao pensar em incorporar uma personagem no início do processo, acreditava
que ela traria à tona conteúdos e temáticas com os quais me identifico, assim,
reiteraria e “fortaleceria” de alguma maneira, aquilo que acredito ser. Porém, tudo
aconteceu às avessas. Se o processo tivesse ocorrido assim, não haveria conflitos e
sem eles, nenhuma transformação; teria saído “ilesa” e acreditando numa identidade
rígida, única e restrita. Sem saber realmente o nível de profundidade a que estava
me propondo mergulhar, vivi de fato o que o BPI me propunha, entrei em contato
com aquilo que acreditava ser e desconstrui a fôrma na qual havia me encaixado,
ampliando assim minha noção de identidade. Se o método me dissesse: “faça da
personagem aquilo com que você se identifica” não teríamos o que apresentar nesse
trabalho. Porém, foi como se me dissessem: “se acredita ser apenas isso, verás que
existe muito mais do que pensa ser”, e então se abriu um universo.
Não é nada fácil desapegar-se da identidade que você quer mostrar ao
mundo para encontrar algo que está mais ao fundo. É preciso deixar as defesas e as
proteções para permitir que o outro conduza você e possa ver você despido, e
principalmente, para que você mesmo consiga se ver por inteiro. Tudo o que IEOA
me trouxe foi uma parcela daquilo que sou, daquilo que me atravessou a partir do
contato com o campo e do que precisava emergir nesse momento. Circunscrever-me
a ela ou àquilo que acredito ser, não se resume à minha identidade como um todo,
mas é uma parcela dela. Temos milhões de facetas desconhecidas, e essa é a
maravilha de se escavar sempre. É preciso fôlego pra descer tantos metros de
profundidade, e principalmente um olhar descolado de si, que nesse caso foi a
direção, que atuou assertivamente a todo o momento e sem a qual não teria sido
possível sair da superfície. Pois é tão difícil quebrar os próprios muros que
colocamos em volta de nós mesmos, que muitas vezes precisamos de alguém que
nos ajude a encontrar a marreta.
Posso dizer que foi um processo intenso, árduo e transformador me perceber
mais do que eu podia ver. Esperava que a personagem reafirmasse quem eu
acreditava ser, mas ela fez muito mais do que isso, apresentou-me fragmentos meus
119
e possibilitou-me vivenciar os conteúdos encontrados em campo que ressoaram em
mim; o que me permitiu integrar-me e fez-me experimentar o sentido do seu nome
descrito nas páginas anteriores: “Eu sou o que sou”.
120
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jeova-uma-juncao-da-palavra-adonai-sobreposta-ao-tetragrama/)
(http://www.universidadedabiblia.com.br/tetragrama-yhvh-o-nome/).
124
ANEXOS
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo Co-Habitar com a
Fonte do método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI)
Amanda Gonsales de Araujo
Número do CAAE:
Você está sendo convidado a participar como voluntário de uma pesquisa. Este
documento, chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visa assegurar
seus direitos como participante e é elaborado em duas vias, uma que deverá ficar
com você e outra com o pesquisador.
Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para esclarecer suas dúvidas. Se
houver perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, você poderá esclarecê-las
com o pesquisador. Se preferir, pode levar este Termo para casa e consultar seus
familiares ou outras pessoas antes de decidir participar. Não haverá nenhum tipo de
penalização ou prejuízo se você não aceitar participar ou retirar sua autorização em
qualquer momento.
Justificativa e objetivos:
Durante a graduação em Música, a pesquisadora sempre buscou potencializar sua
expressividade através de disciplinas no Teatro e na Dança. Pouco antes de finalizar
sua graduação, soube do método BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete) e
interessou-se por vivenciá-lo no mestrado. Sendo o Co-Habitar com a Fonte um dos
eixos do método, que consiste em pesquisas de campo, optou por pesquisar a
cultura caipira, universo familiar e instigante para a pesquisadora.
125
Dentro das inúmeras possibilidades de vivências dentro da cultura caipira, está a
(....)
O objetivo dessa experiência que compõe a pesquisa de mestrado dentro do
método, está em vivenciar (...) para depois, através de laboratórios dirigidos do
método BPI, notar a repercussão que tais pesquisas de campo tiveram no corpo da
bailarina-pesquisadora-intérprete.
Procedimentos:
Os participantes do estudo serão observados (...). Haverá registro audiovisual da (...)
apenas se consentida a autorização pelos participantes.
Desconfortos e riscos:
Não há riscos previsíveis.
Benefícios:
(...)
Acompanhamento e assistência:
Após a pesquisa de campo, se realizado registro audiovisual, uma cópia do material
filmado será entregue para a comunidade.
Sigilo e privacidade:
Seu nome será citado na pesquisa caso tenha seu consentimento.
Contato:
Em caso de dúvidas sobre a pesquisa, você poderá entrar em contato com a
pesquisadora Amanda Gonsales de Araujo, End. profissional: Rua Elis Regina, 50,
Cidade Universitária, Instituto de Artes, 13083854 - Campinas, SP, e-mail:
126
Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões
éticas do estudo, você poderá entrar em contato com a secretaria do Comitê de
Ética em Pesquisa (CEP) da UNICAMP das 08:30hs às 11:30hs e das 13:00hs as
17:00hs na Rua: Tessália Vieira de Camargo, 126; CEP 13083-887 Campinas – SP;
telefone (19) 3521-8936 ou (19) 3521-7187; e-mail: [email protected].
O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
O papel do CEP é avaliar e acompanhar os aspectos éticos de todas as pesquisas
envolvendo seres humanos. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP),
tem por objetivo desenvolver a regulamentação sobre proteção dos seres humanos
envolvidos nas pesquisas. Desempenha um papel coordenador da rede de Comitês
de Ética em Pesquisa (CEPs) das instituições, além de assumir a função de órgão
consultor na área de ética em pesquisas
Consentimento livre e esclarecido:
Após ter recebido esclarecimentos sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos,
métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa
acarretar, aceito participar:
Nome do(a) participante:
________________________________________________________
_______________________________________________________
(Assinatura do participante ou nome e assinatura do seu RESPONSÁVEL LEGAL)
Data:____/_____/______.
Responsabilidade do Pesquisador:
Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e
complementares na elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de
127
Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro, também, ter explicado e fornecido
uma via deste documento ao participante. Informo que o estudo foi aprovado pelo
CEP perante o qual o projeto foi apresentado e pela CONEP, quando pertinente.
Comprometo-me a utilizar o material e os dados obtidos nesta pesquisa
exclusivamente para as finalidades previstas neste documento ou conforme o
consentimento dado pelo participante.
______________________________________________________
(Assinatura do pesquisador)
Data: ____/_____/______.
128
Autorização para Coleta de Dados
Eu, ____________________________________________ responsável pela
_________________________ declaro estar ciente dos requisitos da Resolução
CNS/MS 466/12 e suas complementares e declaro que tenho conhecimento dos
procedimentos/instrumentos aos quais os participantes da presente pesquisa serão
submetidos. Assim autorizo a coleta de dados do projeto de pesquisa intitulado
“Romaria, um percurso para o interior: vivência a partir do eixo Co-Habitar com a
fonte do método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI)” sob-responsabilidade da
pesquisadora Amanda Gonsales de Araujo após a aprovação do referido projeto de
pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa-Unicamp.
_____________________________
Assinatura e carimbo
Data:
129
Fotos da camarinha montada na Disciplina Intensiva de 2016
130
131
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133
Foto da camarinha montada na Disciplina intensiva no início de 2017
134
Partitura da música “Viva a mãe de Deus e nossa”.
135
Partitura de um canto do ritual de Encomenda das almas de São Tiago – MG.
136
Fotos da apresentação realizada na defesa
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Link para vídeo da apresentação artística realizada na defesa
https://www.youtube.com/watch?v=yqDKb6ERiYc&feature=youtu.be