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Representações sonoras no cinema silencioso: a dimensão acústica de Lábios sem
Beijos, de Humberto Mauro
Juliana Panini
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar/Brasil) – Programa de Pós-Graduação em
Imagem e Som
Resumo:
Primeira produção da Cinédia, Lábios sem Beijos (1930) de Humberto Mauro é uma
obra que, ainda no contexto do cinema silencioso brasileiro, demonstra interesse e
domínio na utilização do som – no viés da representação sonora – como elemento
narrativo e dramático da linguagem cinematográfica. O presente trabalho visa refletir
como se dá a organização dos elementos visuais na composição das imagens de modo a
construir representações sonoras, além de analisar como tais imagens estão articuladas
na narrativa, ou seja, de que modo a montagem permite que o som – representado –
possa atuar verdadeiramente como elemento narrativo, compreendendo-o, deste modo,
como elemento básico da linguagem cinematográfica, mesmo perante a impossibilidade
de sua reprodução física.
Palavras-chave: Lábios sem Beijos - Humberto Mauro - cinema silencioso - som -
representação sonora
1
Representações sonoras no cinema silencioso: a dimensão acústica de Lábios sem
Beijos, de Humberto Mauro
O cinema dos primeiros tempos: primeiros sons
Mesmo nos primórdios da arte cinematográfica – momento no qual a reprodução
física do som se configura como uma impossibilidade técnica e os filmes levam,
historicamente, a classificação de silenciosos ou mudos – o cinema não estava
verdadeiramente desprovido do som, elemento básico de sua linguagem. A
impossibilidade técnica de reprodução configurou-se, na verdade, numa ambígua e fértil
carência. O incômodo causado pelas imagens sem sons acusava uma “deficiência” que
exigia alguma atitude para compensar a aparente ausência da dimensão sonora da nova
arte.
Decorrente do início do processo de industrialização do cinema nos EUA, as funções
de produtor, distribuidor e exibidor – antes condensados numa só figura – foram
desmembradas. Com a fragmentação da indústria cinematográfica que começa a se
edificar nos primórdios dos séc. XX ocorre também a fragmentação de interesses dos
ramos. A multiplicação de cópias do filme feitas pelo produtor acarreta um problema
para os exibidores: como diferenciar a apresentação do mesmo filme que será exibido
por outro exibidor concorrente?
Apesar de a exibição dos filmes ainda dividirem espaço com outras atrações – os
“espetáculos de variedades” – o que já representa um diferencial de cada sala exibidora,
cada qual com uma série de outras apresentações em cartaz (cães amestrados,
dançarinas, cantores cômicos, etc.), Rick Altman afirma que “a exibição entre 1907 e
1910 torna-se cada vez mais um espetáculo sonoro que visa particularizar a atração de
cada exibidor” (ALTMAN, 1995: p. 43).
Com este intuito, são elaboradas “estratégias sonoras” de
acompanhamento das sessões de exibição. Altman comenta sobre as
mais significativas dos primeiros anos do cinema:
- O silêncio. (...). É completamente falso dizer que o acompanhamento
musical dos filmes mudos é sistemático. (...). Ora, o piano na sala servia
muitas vezes para acompanhar a cantora, fato comprovado pelas inúmeras
2
instruções dadas ao projecionista para chamar o pianista apenas um pouco
antes do final do filme, a fim de que ele se prepare para a canção. (...).
- A música automática. Além do piano na sala, (...), um segundo piano,
automático, que é colocado logo na entrada do cinema para atrair público.
(...). Freqüentemente posto em funcionamento durante o filme, este piano
serve mais como atrativo musical do que como acompanhamento musical.
- O acompanhamento musical. Seguindo um uso já em vigor no teatro de
variedades, no melodrama e em outros estilos teatrais, o filme é cada vez
mais acompanhado por uma música específica, correspondente ao gênero.
(...).1
- Os efeitos sonoros. De início herdeiros diretos do teatro de variedade (em
que os instrumentistas forneciam diversos efeitos cômicos) (...), os exibidores
da época do nickelodeon ampliaram largamente o uso dos efeitos sonoros.
(...).
- A voz humana sincronizada ao vivo. (...) diversas trupes (...) percorrem o
país com um espetáculo de qualidade, em que as vozes dos atores do filme
são dubladas por outros atores escondidos atrás da tela. Na época, vários
filmes são feitos visando unicamente a esta exibição falada. Motivo pelo qual
muitos deles são seguidos com grande dificuldade na ausência de falas.
- O som gravado e sincronizado.(...) Sob diversos nomes (Cameraphone,
Chronophone, Cinephone, Phonoscope, Picturephone, Vivaphone, etc.), trata-
se sempre de uma mesma tecnologia de discos mais ou menos sincronizados
com a imagem. (...) Não oferecendo boa qualidade de voz, nem mesmo um
espetáculo audiovisual satisfatório, eles conseguem portanto perturbar ainda
mais a exibição da época. (...).
- O “conferencista”. (...), muitos exibidores compreendem o interesse de
fornecer um comentário ao vivo de cada filme (ou ao menos dos filmes de
ficção). (...), o conferencista cinematográfico oferece uma continuidade
narrativa, justamente onde falta continuidade às imagens. Mas como as outras
abordagens sonoras, o conferencista é uma presença intermitente no cinema.
(...). (ALTMAN, 1995: pp. 43-44).
1 Com relação ao acompanhamento musical, a estratégia sonora mais estudada referente ao período do cinema silencioso, Claudia Gorbman comenta que era utilizada pelos seguintes motivos: acompanhava outras formas de espetáculo anteriormente (peças teatrais, por exemplo), disfarçava o ruído do projetor, auxiliava na construção histórica, geográfica e de atmosfera dos cenários, na identificação de personagens e ações, imprimia ritmo e dimensão espacial às imagens, revertia o aspecto “fantasmagórico” das imagens sem sons e mantinha unidos os espectadores. (GORBMAN, 1987: p. 53).
3
O autor chama a atenção, todavia, para o fato de que se a multiplicação de cópias
gera, para o exibidor, a necessidade de diferenciar sua exibição e deste modo superar as
salas concorrentes que apresentam o mesmo filme, por outro lado também o produtor
sofre consequências negativas com a fragmentação das funções. Altman coloca que
“(...) as independência e a variedade de exibidores entre 1907 e 1910 perturbou
profundamente a relação direta outrora existente entre o produtor e seu público” (idem,
p.43). Impossibilitada de prever a recepção que seus filmes teriam nas salas exibidoras,
a indústria produtora adota medidas para tentar controlar a recepção, medidas estas que
“a longo prazo constituirão a origem do estilo e do sistema que chamamos de
‘clássico’”. (idem, p. 44). Dentre as principais estratégias que visam a retomada do
controle da recepção cinematográfica – inscrever no filme o ponto de vista preconizado
pela indústria produtora (através de um narrador que funciona como “uma espécie de
conferencista fílmico interiorizado” [GUNNING, 1994, apud ALTMAN, 1995]),
interpelar de modo mais generalizado o espectador (e não produzir “sob medida” para
públicos previamente conhecidos pelo produtor) e produção de publicidade informativa
que predisponha o espectador a uma recepção mais precisa – Altman também aponta a
padronização do som nas salas de exibição, com práticas como uso contido de ruídos,
utilização de música clássica e folclórica em detrimento da popular, apropriação da
música ao filme, dentre outras.
As “estratégias sonoras”, resumidamente comentadas acima, dizem respeito, todavia,
a utilização de sons extra-fílmicos para promover acompanhamento sonoro durante a
exibição. Cabe compreender, entretanto, de que maneira as próprias imagens ditas
mudas ou silenciosas eram dotadas de uma dimensão acústica própria.
A dimensão acústica das imagens “silenciosas”
Discussões acerca do som nos filmes do período silencioso – e também com relação
à própria pertinência dos termos “silencioso” e “mudo” para nomear o período – atêm-
se, em sua grande maioria, somente no que diz respeito aos efeitos sonoros extra-
fílmicos (os acompanhamentos, em seus diversos formatos), atribuindo dessa forma, ao
som, apenas um papel externo na linguagem cinematográfica. É preciso notar, todavia,
que o cinema silencioso já era dotado de uma dimensão acústica, coabitando
internamente com a dimensão visual fílmica. É através da composição plástica das
imagens cinematográficas, da capacidade da linguagem visual em comunicar não
4
somente o que concerne ao visual e da participação ativa do espectador na assimilação e
compreensão de informações, que o filme silencioso não está desprovido de sons. A
partir de dinâmicas existentes entre modos de percepção e modos de composição, o som
compõe, juntamente com a imagem, a plenitude do arranjo cinematográfico.
No que diz respeito à dimensão acústica dos filmes silenciosos, faz-se necessário, em
primeiro lugar, entender o papel ativo do espectador na compreensão de informações
teoricamente ausentes na imagem, tal como assinalar quais os modos de percepção
envolvidos nesse processo.
Melinda Szaloky, ao analisar a dimensão acústica do filme Sunrise (1927), de F. W
Murnau, atenta para o fato de que todas as possíveis percepções decorrentes da imagem
estão atreladas à contribuição ativa do espectador, que associa ideias a partir da síntese
de imaginação e consciência.
A autora aponta a sinestesia como um dos modos de percepção envolvidos no
processo de assimilação de informações sonoras (e de informações ligadas aos outros
sentidos que não seja a visão) nas imagens silenciosas. Definida como uma experiência
neuropsicológica na qual um sentido estimulado causa a percepção de outro, a
sinestesia, apesar de ser uma condição rara, pode ser considerada um fator implicado na
percepção de pessoas que não são verdadeiramente sinestésicas, justamente por se tratar
de um processo no qual é possível estarem envolvidos fatores independentes daqueles
encontrados no diagnóstico da sinestesia, tais como memória e imaginação, relacionadas
com contextos culturais específicos e experiências de vida:
What makes possible the description of one kind of sense perception in terms of
another – that is, a metaphoric paraphrase of one sensation through another – is, no
doubt, that most of these percepts are heavily laden with culture-specific
connotations. (…). This metaphorical aspect of synaesthesia implies an inner
hearing that, independent of immediate physical stimuli, relies on memory,
imagination, and inference-making on the basis of lived experiences. 2 (SZALOKY,
2002: p.113)
2 “O que torna possível a descrição de um tipo de percepção sensorial em termos de outra – isto é, uma paráfrase metafórica de uma sensação através de outra – é, sem dúvida, que a maioria dessas percepções são fortemente carregadas de conotações culturais específicas. (...). Este aspecto metafórico da sinestesia implica uma audiência interna que, independente de estímulos físicos imediatos, depende da imaginação, memória e inferência de decisões com base em experiências vividas.” (nossa tradução)
5
Mediados por fatores conscientes (memória, fantasia, expectativas, imaginação) os
sentidos não atuam isoladamente na percepção do mundo, mas em comunhão.
Assim, cabe notarmos, resumidamente, que os fatores relacionados acima (dentre
outros) permitem que, conscientemente, o espectador desenvolva uma atitude de escuta
mental de sons que, fisicamente, não existem. Encontram-se, todavia, representados na
imagem e ativos em suas funções narrativas, o que nos remete à colocação de
Eisenstein, quando este afirma que: “O som não foi introduzido no cinema mudo: saiu
dele. Surgiu da necessidade que levou nosso cinema mudo a ultrapassar os limites da
pura expressão plástica.” (EISENSTEIN, apud MARTIN, 2003: p. 111). No que
concerne à ideia de escuta mental como parte de uma discussão mais abrangente sobre a
atuação do som na linguagem cinematográfica, encontramos a questão sendo abordada
por Michel Chion: “The question of listening with the ear is inseparable from that of
listening with the mind [grifo nosso], just as looking is with seeing.3” (CHION, 1994:
p. 33).
Nesse sentido, a escuta das imagens silenciosas está primeiramente calcada na
representação de “fontes sonora” – “qualquer objeto físico enquanto está emitindo um
som” – e “objetos sonoros” – “qualquer som que isolamos fisicamente ou com
instrumentos conceituais, delimitando-o de forma precisa para que seja possível estudá-
lo” (RODRÍGUEZ, 2006: pp. 55-56). Ao se deparar com a imagem de uma fonte sonora
– um cachorro latindo, por exemplo – o espectador infere a presença do objeto sonoro
produzido por esta fonte – os latidos – no que seria uma espécie de prática (no caso,
baseada na “representação sonora”) do que Chion define como “escuta causal”
(CHION, 1994: p. 25): escuta norteada pela relação entre som e fonte/causa.
Apesar de alguns sons possuírem “uma ‘representação’ mais imediata, de fácil
assimilação, como o som dos passos, de água, de portas” (MANZANO, 2003: p. 48), ou
seja, serem apreendidos através de uma correspondência direta e instantânea com suas
fontes, outros sons, contudo, necessitam de modos de composição mais elaborados para
serem devidamente representados ou para despertarem a atenção necessária do
espectador, segundo sua importância narrativa. Desse modo a “representação sonora”
parte mais intimamente da dimensão plástica da imagem, da organização de seus
elementos visuais e da articulação resultante do processo de montagem do filme.
Abordando a questão, Melinda Szaloky explica a distinção entre o que chama de
“sons visíveis” (visible sounds) e os que se tornam visíveis através de recursos visuais:3 “A questão da escuta com o ouvido é inseparável da escuta com a mente, tal como olhar é com ver.” (nossa tradução)
6
Several theorists of the early cinema note the artistic potential of (silent) film to
represent sound by plastic means. Because some sounds are automatically present on
the screen (although unnoticed and thus unheard by the spectator) through their
source objects, it is useful to draw a distinction between these visible sounds and the
ones that become visualized and accentuated by the distinctive use of a pictorial
cinematic device (typically close-ups, camera movements, editing, and the gestures
of actors).4 (SZALOKY, 2002: p. 127).
Nesse sentido, parece-nos possível atribuir, em certa medida, à ausência da
reprodução física do som, um certo desenvolvimento da linguagem cinematográfica,
tanto no que diz respeito à elaboração da mise-en-scène, quanto às possibilidades do uso
do som na narrativa.
Construídas de maneiras distintas, com funções narrativas variadas, as representações
sonoras despertam atenções também diferenciadas. Por sugerirem outros significados
para além do óbvio (o latido do cão) alguns sons são mais notados do que outros. São
assimilados, inclusive, como sendo dotados de volumes distintos. Trata-se, obviamente,
do poder de associação de ideias, o que leva inclusive à possibilidade de, com o prévio
conhecimento da fonte sonora, inferir outras características do suposto som produzido,
como timbre.
Analisemos as seguintes situações, retratadas a partir de imagens silenciosas: dois
bandidos discutem, sentados juntos a uma mesa de bar, um plano para assaltar uma
casa. O dono do bar está ao lado da mesa onde se encontram os bandidos, mas não
escuta a conversa. Numa outra cena, os tais bandidos invadem a casa para colocar em
prática o plano do assalto. Notando a presença deles, o cão da residência começa a latir
e seu latido (constante, irritante, denunciativo) parece estar em um volume significativo,
a ponto de chamar a atenção de um policial que faz ronda numa rua distante da casa que
esta sendo assaltada.
A partir destes exemplos (inspirados em situações similares encontradas em filmes
silenciosos) acreditamos ser possível pensar que o exercício de escuta mental engloba
não somente um processo de reconhecimento sonoro, mas também de organização
sonora. Implicado dentro de um contexto narrativo, e elaborado em função do mesmo,
4 “Muitos teóricos do início do cinema notam o potencial artístico do filme (silencioso) para representar o som por meios plásticos. Porque alguns sons estão automaticamente presentes na tela (embora despercebidos e, portanto, inaudíveis para o espectador) através de suas fontes sonoras, é útil fazer uma distinção entre esses sons visíveis e os que se tornam visualizados e acentuados pelo uso distintivo de um dispositivo pictórico cinematográfico (em geral, close-ups, movimentos de câmera, edição e os gestos dos atores.” (nossa tradução)
7
cada elemento sonoro possui um função distinta (mais ou menos importante) e é
representado de um modo diferenciado e consequentemente percebido de um modo
distinto. Conforme o contexto narrativo e o modo representativo, outras características
(como o volume, por exemplo) podem ser, mentalmente, atribuídas à representação
sonora. No exemplo dado, o latido do cachorro precisa ser alto o suficiente para que o
policial, distante da casa invadida pelos ladrões, possa perceber que algo está errado.
Por outro lado, a conversa dos ladrões no bar não chamou a atenção do dono do
estabelecimento, que estava próximo o bastante para, em teoria, ouvir a discussão.
Podemos entender que o volume da fala dos ladrões estava num um volume baixo o
suficiente para que ninguém percebesse e seu plano fosse levado adiante. Já o latido do
cachorro parece tão alto que os outros possíveis sons representados na cena ficam
“abafados”, saem do primeiro plano da atenção, numa dinâmica do que seria a relação
existente entre as representações sonoras, segundo suas funções narrativas.
Lábios nunca antes beijados
Da disputa por um táxi, num dia chuvoso na cidade do Rio de Janeiro, entre dois
jovens que até então não se conheciam – Lelita (interpretada por Lelita Rosa) e Paulo
(interpretado por Paulo Morano) – inicia-se a trama de Lábios sem Beijos (1930).
Depois da briga pelo táxi, os jovens burgueses encontram-se novamente num baile.
Cortejada por Paulo, apesar de aparentar ser uma mulher moderna e desajuizada, Lelita
é recatada, receosa, e tarda em permitir que o rapaz beije seus lábios, nunca antes
beijados. Acreditando que o mesmo Paulo também seduzira sua prima Didi
(interpretada por Didi Viana), a impetuosa Lelita vai ao seu encontro para forçá-lo a se
casar com a prima. Descobre, todavia, que Didi se enamorara de outro Paulo. Confusão
desfeita, o jovem casal reata o namoro.
Produzido por Adhemar Gonzaga e dirigido por Humberto Mauro, trata-se do
primeiro filme da Cinédia5 – produtora fundada por Gonzaga – rodado nos seus ainda
não concluídos estúdios no bairro carioca de São Cristóvão. Um filme notável na
filmografia brasileira por diversas razões, a começar pela própria parceria entre
Gonzaga e Mauro, dois homens apaixonados por cinema, mas de ideários bastante
distintos no que diz respeito à arte cinematográfica.
5 http://www.cinedia.com.br/cinedia.html
8
Sheila Schvarzman comenta essa relação:
(...) há ainda uma profunda diferença entre Gonzaga e Humberto Mauro, que vai
além da origem citadina ou interiorana, da extração social ou da educação muito
diferente de cada um deles, e que ajuda a compreender os seus ideais
cinematográficos. Gonzaga cresceu como um fã do cinema e de sua mitologia,
alimentando-se dos filmes e da ilusão dos filmes, da história dos atores e diretores, e
da curiosidade e do desejo de produzir. A noção de direção para Gonzaga confunde-
se com a própria criação da fantasia cinematográfica: um universo fechado em si
mesmo, com suas próprias regras – transparência, subentendimento e fotogenia. É
por isso que Gonzaga e seu grupo têm a idéia de que podem construir imagens do
Brasil segundo cânones estabelecidos para o cinema e que aviavam a todos aqueles
que lhes consultassem. Já Mauro, como vimos, acredita que a câmera está a serviço
da realidade. Como explicou em sua entrevista6 em 1966, ele não escrevia roteiros ou
diálogos definidos. Tinha uma idéia do que queria filmar, mas deixava-se levar
também pela própria situação, ou aquilo que o lugar onde esta filmando sugeria (...).
[...]
Há, portanto, nessa construção do Brasil pensada por cada um deles, a própria
concepção do que é o cinema: uma máquina de construir a realidade e a ilusão
(Gonzaga), ou instrumento que aspira ao real (Mauro). É essa diferença primeira que
ordena a visão que imprime ao que fazem. Acredito que essa diferença é
fundamental e se explicita com clareza em Lábios sem beijos, (...).
(SCHVARZMAN, 2004: p. 67-68).
É notável, no filme, justamente esta dinâmica de dois olhares que se confrontam. Ao
passo que é possível encontrar Gonzaga nos ambientes e figurinos luxuosos, nas
caracterizações que objetivam construir uma imagem de riqueza, sofisticação e
modernidade da juventude abastada da então Capital Federal – ou seja, uma concepção
de beleza e leveza, comum ao cinema hollywoodiano – é também perceptível a
sensibilidade de Mauro “que ironiza essas mesmas crenças e se debruça com vagar e
gosto sobre as paisagens do Rio de Janeiro”, “que agrega a esse universo o aspecto vivo
da captação do documental”.
O olhar de Mauro debruça-se justamente sobre essa contradição entre a aparência
moderna e sua essência vivida mais pela imposição da mudança do que propriamente
pela verdadeira transformação da mentalidade, circunscrita, vale lembrar, apenas à
incipiente burguesia das cidades (...).
6 Depoimento de Humberto Mauro cedido ao Museu da Imagem e do Som. Rio de Janeiro, 25.11.1966.
9
(...) encenação de Mauro, que joga com a ingenuidade e perversidade, ou mais
prosaicamente, com os temores sexuais dos personagens. Lelita não se entrega, não
se deixa beijar. É impetuosa, voluntariosa, independente, mas, na realidade, tem
medo do desejo e do amor, assim como Morano, que começa o filme afirmando que
se apaixonar é coisa fora de moda.
[...]
Ao lado disso, há um filme sobre o Rio de Janeiro, a paisagem por onde Lelita
transita. É a chance de Mauro debruçar-se sobre a beleza natural da paisagem e do
progresso, figurada no próprio carro e na cidade. (SCHVARZMAN, 2004: pp. 70-
71)
É nessa construção documental feita por Mauro que Lábios sem Beijos assume,
principalmente no início, o tom de uma sinfonia da metrópole. Sheila Schvarzman
acredita que o filme “possa ser visto hoje como um excelente documento sobre a cidade
do Rio de Janeiro no início de 1930” (idem).
Acreditamos ser possível, no que concerne a ideia de “documento”, refletir também
sobre os aspectos sonoros dessa metrópole, ou seja, fazer apontamentos sobre a
“paisagem sonora”7 da cidade, naquela época, através das imagens captadas. Com
relação ao assunto, Murray Schafer afirma que “uma paisagem sonora consiste em
eventos ouvidos e não em objetos vistos”, mas destaca, todavia, a importância do relato
de imagens na compreensão dos ambientes acústicos de outrora. Embora seja possível,
hoje em dia, “utilizar modernas técnicas de gravação e análise no estudo das paisagens
sonoras contemporâneas”, o autor comenta que “para fundamentar as perspectivas
históricas teremos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura e
da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos” (SCHAFER, 2001: p.
24).
A julgar pelo sistemático interesse durante todo o filme em não apenas registrar, mas
enfatizar, através de imagens, os sons que compunham os ambientes e ações
apresentadas na narrativa, acreditamos que as imagens captadas por Mauro também
registram, num viés representacional, seu próprio testemunho auditivo das paisagens
sonoras (pós-industrial) da cidade do Rio de Janeiro no começo da década de 30.
7 Schafer cunhou o termo “soundscape” (paisagem sonora), definindo-o como todo e qualquer evento acústico que compõe um determinando lugar. Segundo o autor, o termo não faz referência apenas a ambientes reais, mas também a construções abstratas, “como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente” (SCHAFER, 2011).
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As representações sonoras em “Lábios sem Beijos”
Seria um grande equívoco considerar o filme de Humberto Mauro como uma mera
justaposição de imagens de fontes sonoras que, através de um processo de
reconhecimento (calcado na memória), permite ao espectador compreender, na imagem,
o som produzido por determinadas fontes numa atitude de escuta mental. A dimensão
acústica de Lábios sem Beijos é uma construção sonora pensada, bem organizada, fruto
de uma evidente preocupação no que concerne ao papel do som na linguagem
cinematográfica. Mais do que captar diversas fontes sonoras, Mauro primeiramente as
escolhe segundo sua importância para a história que conta, para o retrato documental
dos ambientes que aborda. Mas essas escolhas não bastam. É através da orquestração
feita pelo diretor através da composição plástica, enquadramento, movimento de
câmera, gestual dos atores e montagem, que as representações sonoras se fazem, de
fato, ouvidas e essenciais para o universo fílmico.
Como comentado acima, Lábios sem Beijos começa em tom de sinfonia da
metrópole. Uma tempestade se forma na cidade do Rio de Janeiro. Com maestria,
Mauro compõem as nuances8 desse dia chuvoso, onde pessoas andam apressadas, o
vento forte deixa seus cabelos, saias e chapéus revoltosos, faz dançar papéis no meio da
rua e balança de modo ameaçador as árvores. Os passos apressados, o chapéu que rola
na rua, o balançar das árvores, os carros e bondes transitando, o toldo de uma barraca
sendo abaixado e, por fim, pesados pingos de chuva que alcançam o chão: na
composição dessas representações, alternância de closes e planos abertos destaca o
aspecto sonoro das imagens e compõem, em conjunto, as representações sonoras. Um
turbilhão de sons que antecedem o encontro de Lelita e Paulo, na disputa por um
mesmo táxi.
8 Aspectos comentados no início da matéria na revista A Scena Muda, tal como em Cinearte (curiosamente, o mesmo texto): “Papeis voando. Toldos descendo. Chapéus mal seguros arrancados pelo vento. Correrias para tomar o bonde. Primeiros pingos. Chuva, finalmente!” (in “Lábios sem Beijos”. Revista A Scena Muda, 10º ano/ n. 503/ pg. 9. 1930) e (in “Lábios sem Beijos”. Revista Cinearte, volume 05/n. 242, pg. 6. 1930 - [em Cinearte aparece escrito “chapéos”] ).
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Entrecortando a sequência do forte temporal, antecedendo a chegada da chuva, uma
inserção denuncia que o caráter sonoro e musical será destacado e se estenderá por toda
a narrativa. Um homem sai à janela e começa a cantar. Sua expressiva gestualidade
acusa demasiada empolgação. Como resposta à cantoria, uma mulher, na janela ao lado,
tampa os ouvidos e junto com ela, o espectador.
Logo somos introduzidos ao universo de Lelita, que mora com o tio e a prima Didi.
A cena acusa outra prática recorrente em todo o filme: a representação da sensualidade
das personagens femininas, com belíssimos enquadramentos de seus rostos e
principalmente de suas pernas. O tio de Lelita a adverte, diz que a sobrinha tem muita
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liberdade e que é preciso ser uma moça comportada. Durante a discussão entre ele e a
sobrinha, um outro personagem compõe a cena: possivelmente um emprego do tio de
Lelita, que datilografa um documento. A composição (e repetição, tanto em plano
aberto quanto em close) desse quadro compõe o teor sonoro do ambiente: Lelita e o tio
discutem ao som da máquina de escrever.
Mas outro elemento sonoro irá afetar esse ambiente. Lelita, ignorando as
reclamações do tio, senta-se em cima de uma mesa. Nesse momento, a representação
sonora de um trovão/raio leva Lelita a pular, assustada, da mesa onde se sentara. A
construção explicita o papel da montagem, fazendo com que duas situações se
interliguem através do som: a tempestade que se forma (exterior) interferindo na
dinâmica da personagem dentro de sua casa (interior).
Na sequência vemos Paulo Morano na casa de Tamar (interpretada por Tamar
Moema). Da conversa dos dois, um letreiro indica que o rapaz esta terminando seu
relacionamento – apenas uma “aventura”, segundo ele – com a moça. Tamar, por sua
vez, não parece chateada com a situação. Depois que Paulo se retira, a jovem coloca um
disco para tocar, canta (close de seu rosto) e dança ao som dessa canção que parece tão
alegre quanto à personagem nesse momento. Pela segunda vez surge uma representação
sonora musical (música esta que denota ser bem mais agradável do que a cantada pelo
homem na janela).
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Lelita e Paulo encontram-se, pela primeira vez, dentro de um táxi. Por ter entrado
primeiro, a jovem julga uma ousadia e falta de educação quando o rapaz adentra o
mesmo veículo e insiste que dividam o carro, já que, com a chuva, conseguir outro seria
difícil. Numa clara representação da modernidade, o automóvel é um elemento
recorrentemente retratado em Lábios sem Beijos. Mauro abusa dos enquadramentos para
compor a presença do carro no cenário da capital.
É curioso notarmos que a presença do som no filme também é trabalhada por meio
de uma dinâmica de expectativas que ora se concretizam, ora não. No caso da presença
do carro, há uma cena na qual Paulo aguarda, dentro de seu veículo, Lelita, que se
arruma para irem juntos a um baile. Como a moça demora para sair de casa, Paulo
coloca a mão no volante. O espectador aguarda que a ação se concretize, ou seja, que o
rapaz aperte a buzina. Consequentemente, teríamos uma representação sonora, mas ao
ver a jovem saindo de casa, o rapaz não completa o ato. Diferentemente, por sua vez, de
momento posterior no qual Lelita sai, dirigindo, junto com a prima, em busca de Paulo
Morano (acreditando que fora enganada e que o rapaz havia se aproveitado da prima).
Em tal situação, ela dirige impetuosamente pelas ruas do Rio de Janeiro e buzina
(bastante) quando um velhinho fica parado na frente do veículo, impedindo que prossiga
sua busca.
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Voltando à descrição sequencial do filme, dado o primeiro e conflituoso encontro de
Lelita e Paulo, os jovens se reencontram em um baile. Tem-se o início de uma longa
corte até que a moça permita que o rapaz a beije. Logo após o primeiro encontro no táxi,
voltamos à casa de Lelita. Nesse ponto do filme, somos apresentados a mais uma alusão
ao som ambiente, feita, dessa vez, através do letreiro. O tio da jovem pede à filha, Didi,
que esta desligue o rádio. O pedido indica um descontentamento, fazendo deste
comentário uma possibilidade de imaginar quais sons/ruídos compõem o ambiente
naquele momento, além de destacar o dinamismo da capital refletido no turbilhão
sonoro que invade as casas.
Se a princípio Tamar não se importara com rompimento de Paulo, a situação,
todavia, se modifica. A confusão armada pelo fato de que também Didi se enamorara de
um rapaz chamado Paulo Morano faz com que Lelita se afaste do Paulo que conhece.
Este, indignado com a rejeição de Lelita, acredita que Tamar possa estar envolvida na
inexplicável mágoa da jovem. Paulo procura Tamar para poder resolver a situação e a
encontra em um restaurante. Convicto de que a moça tenha realmente feito intrigas para
Lelita, Paulo sai bravo do local. Tamar ri, mas logo em seguida veremos que sofre pelo
desinteresse do rapaz, que se encontra apaixonado por outra. Acreditamos ser deste
momento a representação sonora mais interessante de Lábios sem Beijos. Tamar deita o
rosto na mesa, demonstrando que sofre. Mas sua dor será representada ainda mais
subjetivamente: um músico (que, tudo indica, está dentro do restaurante) prepara-se
para tocar... um violino! Não obstante a escolha de um instrumento musical que nos
remete a sonoridades aveludadas e às vezes melancólicas – o que, por si só, já traria
consigo a possibilidade de se tratar de uma melodia triste – a própria execução da
música constrói, representativamente, uma espécie de comentário sonoro referente ao
sofrimento de Tamar. O personagem, que se posiciona para começar a tocar, passa com
violência o arco pelas cordas do violino, para depois deslizá-lo de um modo mais
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delicado. O arco que arranha o instrumento acusa a ideia de uma melodia triste, que se
inicia de modo brusco, “rasgado”, coerente com o pesar de Tamar naquele momento.
A atuação do som nos trechos comentados acima permite notar que, na construção da
dimensão acústica do filme, apesar da presença de muitos “sons visíveis” (SZALOKY,
2002), prevalece, todavia, as representações sonoras de composição mais elaborada,
calcadas em estratégias narrativas que envolvem composição plástica da imagem,
enquadramento, movimento de câmera, gestual dos atores e montagem. O arranjo desses
recursos possibilita que as representações sonoras tenham papel ativo na construção da
narrativa. O som, nesse sentido, se configura como um elemento de imprescindível
importância para a obra em questão.
Um filme pra ser ouvido
Diversas são as reflexões possíveis acerca de Lábios sem Beijos referentes às
variadas facetas que constituem o filme. Muitas outras páginas seriam necessárias para
comentar devidamente os belíssimos retratos documentais feitos por Mauro da cidade
do Rio de Janeiro, para refletir os comentários irônicos feitos pelo diretor sobre os
personagens e as ações nas quais se encontram (não há dúvida de que a melhor ironia
seja a cruz que Paulo vê projetada na parede quando vai conversar com Lelita: a moral
que pesa sobre o rapaz, que beijara lábios nunca antes beijados, é provocada, na
verdade, pela armação de uma pipa presa num fio do poste de luz da rua que, projetada
na parede, coincide com a imagem de uma cruz). Acreditamos ser necessário também
distender ainda mais a discussão acerca da dimensão acústica no cinema silencioso.
Coube-nos aqui apenas tecer alguns apontamentos deste que é um dos aspectos mais
instigantes do filme. Como Lábios sem Beijos, outras obras da filmografia brasileira da
época permitem atentar para a construção sonora na narrativa fílmica mesmo perante a
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impossibilidade de reprodução técnica do som. Como um elemento essencial da
linguagem, o som contribui desde os primórdios do cinema para que sua expressão seja
plena. Fato que comprova Humberto Mauro nesse filme que precisa ser, para bem
compreendê-lo e experimentá-lo, tão “ouvido” quanto visto.
Referências Bibliográficas:
ALTMAN, Rick. Nascimento da recepção clássica: a campanha para padronizar o som. (trad. Marie
Ange Bordas). In: Imagens, n.5, Campinas: Editora da Unicamp, 1995. pp. 41- 47.
CHION, Michel. Audio-Vision: sound on screen. Claudia Gorbman (Trad.) New York: Columbia
University Press, 1994. 239 p.
GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: Narrative Film Music. Bloomington: Indiana University
Press, 1987.
MANZANO, Luiz Adelmo Fernandes. Som-Imagem no Cinema: a experiência alemã de Fritz Lang.
São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003. 175 p.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Paulo Neves (Trad.) São Paulo: Brasiliense, 2003.
279 p.
RODRÍGUEZ, Ángel. A dimensão sonora da linguagem audiovisual. Rosângela Dantas (Trad.) e
Simone Alcantara Freitas (revisão técnica). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. 344 p.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo
atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Marisa Trench
Fonterrada (Trad.). São Paulo: Editora UNESP, 2001. 381 p.
SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. 398
p.
SZALOKY, Melinda. Sounding Images in Silent Film: Visual Acoustics in Murnau's "Sunrise" IN:
Cinema Journal, Vol. 41, No. 2 (Winter, 2002), pp. 109-131. Publicado por: University of Texas Press e
Society for Cinema & Media Studies Stable.
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