resenha - a arqueologia vai ao hospital (bruno ribeiro)

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OLIVEIRA, A. T. D. et al.: A Arqueologia vai ao Hospital: pesquisa arqueológica para a implantação do Centro Histórico-Cultural Santa Casa. Porto Alegre: FAPA/ISCMPA, 2009. Por Bruno Leonardo Ricardo Ribeiro 1 Este livro apresenta os resultados obtidos durante a etapa 2005- 2006 da pesquisa arqueológica realizada para a implantação do novo Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, em área de propriedade desta instituição e nas proximidades da mesma, na Avenida da Independência. O objetivo da construção do CHC é a salvaguarda dos registros e documentos associados à Santa Casa. Do mesmo modo, o espaço servirá como reserva técnica para os vestígios arqueológicos descobertos durante sua construção. Já nas primeiras páginas do livro é ressaltada a importância da coleção arqueológica resgatada, que constitui a maior concentração de vestígios arqueológicos relacionados a uma área hospitalar já identificada em território nacional. A obra conta com apresentação, dois prefácios e introdução, além de outros quatro capítulos referentes a toda a pesquisa realizada. A apresentação e os prefácios já trazem as primeiras informações sobre a importância histórica da Santa Casa de Porto Alegre, o mais antigo hospital da capital, e a viabilização do projeto de implantação do CHC, através das parcerias formadas entre a Faculdade Porto Alegrense, a Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, o Ministério da Cultura, o BID e a UNESCO, por meio do projeto “Monumenta.” A Introdução, de Fernanda Tocchetto, traz um panorama geral das informações presentes nos capítulos porvir, apresentando um pequeno resumo de cada um deles. Chamou-me muito a atenção que em suas primeiras linhas a autora ironize com o título do livro, dizendo que a arqueologia foi ao hospital fazer um “diagnóstico” e acabou por “salvar” um “paciente”, no caso, os registros arqueológicos. Essa 1 Universidade Federal de Pelotas.

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Resenha da Obra A Arqueologia vai ao Hospital, de Oliveira, A.T.D et al, 2009

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OLIVEIRA, A. T. D. et al.: A Arqueologia vai ao Hospital: pesquisa arqueolgica para a implantao do Centro Histrico-Cultural Santa Casa. Porto Alegre: FAPA/ISCMPA, 2009.Por Bruno Leonardo Ricardo Ribeiro[footnoteRef:2] [2: Universidade Federal de Pelotas.]

Este livro apresenta os resultados obtidos durante a etapa 2005-2006 da pesquisa arqueolgica realizada para a implantao do novo Centro Histrico-Cultural da Santa Casa de Misericrdia, em Porto Alegre, em rea de propriedade desta instituio e nas proximidades da mesma, na Avenida da Independncia. O objetivo da construo do CHC a salvaguarda dos registros e documentos associados Santa Casa. Do mesmo modo, o espao servir como reserva tcnica para os vestgios arqueolgicos descobertos durante sua construo. J nas primeiras pginas do livro ressaltada a importncia da coleo arqueolgica resgatada, que constitui a maior concentrao de vestgios arqueolgicos relacionados a uma rea hospitalar j identificada em territrio nacional.A obra conta com apresentao, dois prefcios e introduo, alm de outros quatro captulos referentes a toda a pesquisa realizada. A apresentao e os prefcios j trazem as primeiras informaes sobre a importncia histrica da Santa Casa de Porto Alegre, o mais antigo hospital da capital, e a viabilizao do projeto de implantao do CHC, atravs das parcerias formadas entre a Faculdade Porto Alegrense, a Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, o Ministrio da Cultura, o BID e a UNESCO, por meio do projeto Monumenta.A Introduo, de Fernanda Tocchetto, traz um panorama geral das informaes presentes nos captulos porvir, apresentando um pequeno resumo de cada um deles. Chamou-me muito a ateno que em suas primeiras linhas a autora ironize com o ttulo do livro, dizendo que a arqueologia foi ao hospital fazer um diagnstico e acabou por salvar um paciente, no caso, os registros arqueolgicos. Essa analogia, se observada sob a tica contempornea da proteo e preservao do patrimnio arqueolgico, soa um tanto quanto inapropriada, por no considerar os impactos que tal salvamento implicou sobre o paciente. Por razes que espero serem de senso comum entre os profissionais da rea, no acredito ser necessrio um maior desenvolvimento desta discusso, relativa a permissividade da idia do resgate arqueolgico como uma ao benfica ao registro arqueolgico, seja em prol de uma pesquisa cientfica ou um empreendimento econmico[footnoteRef:3]. Resumidamente, partindo dessa premissa jocosa, o que a arqueologia fez, na realidade, pode at ter salvado uma perna, talvez um brao ou a cabea do paciente, mas este, infelizmente, com certeza no sobreviveu. Outro ponto a ser ressaltado dentre o panorama geral levantado na introduo de Tocchetto que um dos objetivos, durante os trabalhos arqueolgicos, era a busca por indcios do antigo cemitrio da Santa Casa e da antiga fortificao que circundava a cidade, ambos do sculo XVIII. De acordo com a autora, levantamentos histricos apontavam para uma possvel sobreposio destas reas com a rea pesquisada, no entanto tais construes ainda no haviam sido identificadas. [3: Carta Patrimonial de Lausanne, 1990 Art. 3; mais discusses tambm em Caldarelli, 2007.]

Os captulos I e II so de autoria de Vera Lcia Maciel Barroso, e tratam do levantamento de documentos e outros registros histricos associados Santa Casa de Misericrdia de Porto Alegre. Num primeiro momento, confesso ter visto com certa estranheza a prosa literria adotada pela autora ao tratar as fontes e apresentar as informaes obtidas a partir de pesquisas e levantamentos dos documentos histricos, presentes nos acervos da prpria instituio. No entanto, e tendo em mente que tal publicao esteja voltada, na realidade, para o pblico mais amplo, me parece condizente a adoo de uma escrita menos acadmica. Contudo devo ressaltar um ponto paradoxal: certa imprudncia referente ao tratamento das fontes. Em primeiro lugar, a prpria distino feita pela autora entre fontes escritas e fontes orais. Mesmo que tivesse por objetivo uma facilitao da elaborao do texto, acabou por relegar as ultimas condio de subalternidade em relao as primeiras, como se a oralidade no apresentasse o mesmo carter documental que a escrita. Tal perspectiva de certo modo incongruente com as propostas tericas mais contemporneas e me pareceu um pouco descontextualizada (COSTA, 2010). Em segundo lugar, a autora parece no levar em conta certas consideraes relativas ao tratamento a ser dedicado s fontes, como questes relativas a quem as disse ou escreveu, por que o fez e quais foram os interesses que buscava atender. Seja na apresentao de fontes primrias, secundrias ou orais e, principalmente, por se tratarem de fontes originrias de acervos privados da prpria instituio pesquisada ou de interlocutores intimamente ligados a instituio, tais consideraes so ainda mais fundamentais para uma leitura e interpretao acurada dos dados apresentados, como nos esclarecem, apenas para citar alguns autores, Orser Jr. (1992), Bacellar (2008), Alberti (2008) e Costa (ibid.). Os captulos subsequentes tratam dos resultados das escavaes e anlises de material arqueolgico em laboratrio. O captulo III assinado por Alberto Tavares Duarte de Oliveira, Arquelogo contratado pela Instituio e responsvel pelo salvamento realizado, e o captulo IV por Zeli Teresinha Company, responsvel pela anlise laboratorial dos vestgios arqueolgicos resgatados. No Captulo III Duarte de Oliveira apresenta toda a rea de pesquisa, que englobava 08 edificaes residenciais, por ele numeradas sequencialmente de 01 a 08, que remeteriam ao incio do sculo XX e totalizariam 2.500m. Em sua metodologia de escavao Alberto adotou abordagens diferenciadas para as reas abrigadas e para as desabrigadas de cada edificao (poro/ptio). Nos pores foram realizados poos teste de 1m alinhados e em intervalos de 5 metros, desde a fachada at os fundos do imvel, para, naqueles casos em que se fizesse necessrio, expandir as reas de escavao. Nos ptios, por sua vez, as escavaes se concentraram em pontos especficos do terreno, principalmente nas reas limtrofes entre as casas 02/03 e 04/05. H, aqui, certa incongruncia nas informaes apresentadas. O autor afirma que naquele momento da pesquisa as casas 04, 06, 07 e 08 ainda estavam ocupadas, mas se contradiz posteriormente, quando apresenta dados sobre a escavao de quadrculas na casa 04, e de maneira assistemtica nas casas 05 e 08. No entanto ressalta que nenhuma interveno fora realizada nas casas 06 e 07, durante o perodo em que coordenou os trabalhos, exatamente por estarem ocupadas, sem apresentar qualquer justificativa relacionada ao fato de que, mesmo ocupadas, algumas das residncias foram escavadas, enquanto outras no. Outro ponto a ser destacado que, apesar de informar que fora realizado um registro minucioso dos vestgios identificados dentro de cada uma das sondagens, envolvendo seu posicionamento vertical e horizontal quando de sua evidenciao ao longo dos nveis/camadas escavados, o autor no informa como se deu o controle estratigrfico da escavao, se realizada em nveis naturais ou artificiais. Essa informao, curiosamente, s apresentada durante a leitura do captulo IV, referente aos resultados da anlise laboratorial dos materiais arqueolgicos resgatados. No entanto, destaco alguns pontos positivos. Alm de Oliveira ter tido a perspiccia de identificar uma distino nos usos feitos dos espaos internos das residncias, inferida a partir da contraposio das dimenses e materiais envolvidos na edificao dos cmodos dianteiros e traseiros portas mais largas e p direito mais alto na frente das casas e cmodos traseiros de dimenses relativamente menores. O autor ainda interpreta tal diferenciao sob a luz da oposio entre espaos pblicos e privados, ou mesmo da diferenciao entre residentes e empregados, uma vez que na rea frontal das casas, de maiores dimenses, se encontrariam as salas de jantar e de estar (espaos pblicos internos por excelncia), alm dos dormitrios, enquanto que os fundos teriam sido reservados a banheiro, cozinha e dispensa/DCE. Quanto aos achados arqueolgicos propriamente ditos, Alberto destaca, alm da identificao de uma tubulao de esgoto durante os trabalhos realizados nas casas 01 e 02, a descoberta de uma lixeira domiciliar no ptio da casa 05 e, o aspecto mais relevante do trabalho, a identificao de uma lixeira hospitalar no ptio da casa 04, onde foram resgatados mais de 18m de materiais arqueolgicos que remeteriam aos finais do sculo XIX e incio do XX. Sobre estes achados o autor faz uma srie de inferncias interessantes. A primeira, quanto tubulao de rede de esgoto e a lixeira domstica identificada na casa 05, o autor destaca que, apesar da construo das casas datarem dos anos 1906 e1907, a primeira rede de esgoto da cidade s foi instalada em 1912 e que este encanamento, que apresenta marcas de fabricao por uma indstria inglesa, fora verificado em todas as casas escavadas. O que demonstra uma antecipao, por parte da Santa Casa, quanto as questes de saneamento bsico da cidade. Para ele, tais fatos estariam em consonncia direta com as mudanas e preocupaes higinicas[footnoteRef:4] surgidas na cidade de Porto alegre, no incio do sculo XX. Em relao a lixeira hospitalar, constituda em sua maioria de objetos associveis a botica e a cozinha do hospital, o autor levanta duas possibilidades: poderia ter sido formada em camadas, correspondentes ao despejo contnuo de materiais, ou proveniente do depsito de grandes montantes em momentos diferentes, para posteriormente ser coberta com espessa camada de saibro, provavelmente concomitantemente ao incio das obras de construo das casas. [4: Para uma discusso mais aprofundada sobre este tema, uma proposta muito interessante a de Luengo, 2010.]

O captulo IV, por sua vez, pareceu-me um pouco apressado, uma vez que nele Company se prope apresentao das anlises laboratoriais dos vestgios arqueolgicos resgatados e estes ainda se encontravam em etapas iniciais de anlise. A autora no fez, na obra, mais do que uma simples apresentao e caracterizao tipolgica dos vestgios identificados, com algumas poucas inferncias relevantes, principalmente referentes ao alto ndice de ocorrncia de vestgios vtreos (94% de todo material coligido na lixeira hospitalar) e suas possveis interpretaes e correlaes cronolgicas. Especula, entretanto, que os outros tipos de vestgios identificados permitiriam, assim como os vestgios vtreos, estudos interessantes em relao ao cotidiano e os usos feitos do terreno pela populao da poca. Aqui, cabe salientar, que esta pressa em levantar dados o mais rpido possvel para agilizar uma publicao, mesmo que de maneira insuficiente, talvez possa ser associada a diferenciao rtmica comumente verificada entre as pesquisas acadmicas e aquelas realizadas por contrato, onde se verifica constante presso pela entrega dos resultados e liberao da rea do empreendimento. Como a prpria autora sugere, um sem nmero de objetos de estudo poderiam ser explorados, contudo o tempo escasso foi determinante. Finalmente, posso dizer que, apesar de considerar que esta obra passa longe de ser uma referncia no que tange pesquisas de arqueologia histrica, acredito que cumpra com seu papel de aproximar a Arqueologia, e a Histria da Santa Casa de Misericrdia de Porto Alegre, de um publico mais amplo e leigo em relao a discusses deste tipo. Devo admitir tambm que, apesar de certas passagens descompassadas em relao as propostas terico-metodolgicas da Arqueologia Histrica contempornea, todas as linhas interpretativas aqui oferecidas apresentaram-se, em certo grau, bem atualizadas. Observamos certa ambivalncia nas hipteses dedutivas levantadas pelos autores, relativas ao comportamento, a percepo e aos usos feitos dos espaos domiciliares pelos seus antigos ocupantes, o que, ao mesmo tempo, demonstra preocupaes em atender demandas tanto antropolgicas quanto histricas. Isso fica ainda mais claro quando nos lembramos que o objetivo inicial dos trabalhos era a identificao de resqucios de edificaes apontadas em documentos histricos, mas at ento desconhecidas dos pesquisadores. Assim vemos que, como proposto por Deagan (2008), Funari (2007) ou mesmo Costa (2010), os pesquisadores associados ao projeto de pesquisa arqueolgica realizada para a implantao do novo Centro Histrico-Cultural da Santa Casa adotam a premissa de que a arqueologia histrica se pauta pelo mix de abordagens que possibilita, trabalhando ora voltada Histria, na resoluo de questes fora do alcance desta, ora voltada a perspectivas e questionamentos associados Antropologia, relativas ao comportamento e aos padres cognitivos humanos.Referncias BibliogrficasALBERTI, V. Histrias dentro da Histria. In.: PINSKY,C.(org.). Fontes Histricas. So Paulo, SP. Editora Contexto. 2008. Pgs. 155-202.BACELLAR, C. Uso e Mau uso dos Arquivos. In.: PINSKY,C.(org.). Fontes Histricas. So Paulo, SP. Editora Contexto. 2008. Pgs. 23-80.CALDARELLI, S. B. Pesquisa arqueolgica em projetos de infraestrutura: a opo pela preservao.In.:Revista do Patrimnio, (33) - Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. 2007. Pgs. 153-174. CARTA DE LAUSSANE, 1990. Sobre a Proteo e a Gesto do Patrimnio Arqueolgico. ICOMOS/ICAHM. Disponvel em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=262 acessado em 04/10/2014.COSTA, D. M. Arqueologias Histricas Um Panorama Espacial e Temporal. Vestgios Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica, Vol. 4 N.2. 2010. Pgs. 09-38.DEAGAN, K. Lneas de Investigacin en Arqueologa Histrica. In.: Vestgios: Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica, (2): 1. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG 2008. Pgs. 63-93.FUNARI, P. P. 2007. Teoria e a Arqueologia Histrica: a Amrica Latina e o Mundo. In.: Vestgios: Revista Latino-Americana de Arqueologia Histrica, (1): 1. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG 2007. Pgs. 49-58LUENGO,F.C. A histria da higienizao no Brasil: o controle, a eugenia e a ordem social como justificativa. In.: LUENGO,F.C. A vigilncia punitiva: a postura dos educadores no processo de patologizao e medicalizao da infancia. So Paulo, SP. Ed. UNESP: Cultura Acadmica. 2010. Pgs 23-46.OLIVEIRA, A.T.D. et al. A Arqueologia vai ao Hospital. Porto Alegre, RS. Ed. Porto Alegre: FAPA; ISCMPA. 2009.ORSER JR, Charles. Introduo Arqueologia Histrica. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1992.