resenha crítica corrigida - processo penal

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO FILIPE ALMEIDA CAMPOS MOTA “AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL: UMA ANÁLISE CRÍTICA.” Salvador, 07 de dezembro de 2013

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Page 1: Resenha Crítica Corrigida - Processo Penal

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

FILIPE ALMEIDA CAMPOS MOTA

“AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL: UMA ANÁLISE CRÍTICA.”

Salvador, 07 de dezembro de 2013

Page 2: Resenha Crítica Corrigida - Processo Penal

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO

FILIPE ALMEIDA CAMPOS MOTA

“AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL: UMA ANÁLISE CRÍTICA.”

Salvador, 07 de dezembro de 2013

Page 3: Resenha Crítica Corrigida - Processo Penal

Esta resenha se propõe a fazer uma análise crítica da obra “As

Misérias do Processo Penal de Francesco Carnelutti”.

“(...) A maior necessidade do encarcerado não é o alimento,

nem as roupas, nem o teto sobre a cabeça, nem os medicamentos, mas o

remédio da amizade, do amor fraterno que, para ele, é o único alívio”.

CARNELUTTI, Francesco.

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Na sua célebre obra “As misérias do processo penal”, Francesco

Carnelutti analisa a relação jurídico-processual no âmbito criminal para

investigar quais são os caracteres mais íntimos que permeiam o

concatenado lógico de atos que se inicia com o inquérito policial e se

encerra – ao menos para o senso comum – com a sentença penal

condenatória ou absolutória.

É preciso dizer que o célebre jurista italiano não se propõe a

fazer uma análise formalista, estritamente procedimental, mas ao revés.

Deixando de lado a dogmática, investiga a fundo os sujeitos do processo

que são, antes de tudo, seres humanos, e revela como o comportamento

psicológico e a história de vida de quaisquer dos que atuem no processo

criminal pode ser extremamente relevante para o desfecho da ação penal.

Não devemos estranhar, todavia, as diversas menções que o

autor faz no decorrer do livro a referências religiosas como “Jesus” ou

“Deus”. Tampouco devemos nos surpreender com as diversas referências

que o autor faz a sentimentos e estados de espírito, como o amor, a

amizade e a compaixão. Em verdade, todos estes elementos devem ser

entendidos como característicos da época e o lugar em que a obra foi

escrita, haja vista que a absoluta maioria da sociedade italiana é

extremamente católica, religião que se infiltra na sociedade desde o

processo de endoculturação 1 , que se inicia na primeira infância.

É através destas lentes teóricas e ideológicas que devemos

iniciar a resenha crítica aqui em comento, sob pena se julgar a distinta

obra sub analisis com anacronismo, considerando uma mera resma de

papeis sem qualquer valor nos dias hodiernos. Muito pelo contrário: a

presente obra serve como denúncia social, sobretudo para os operadores

do Direito que enxergam o processo penal como mero procedimento e se

esquecem que entre a notitia criminis e a coisa julgada está em jogo a

liberdade de um ser humano tão dotado de dignidade quanto os que o

julgam.

Carnelutti inicia sua obra fazendo referência à toga, vestimentas

utilizadas pelo magistrado, pelos membros do Ministério Público e pelos

advogados como verdadeiro instrumento de distinção entre as autoridades

1 Segundo WEBER, endoculturação é o processo pelo qual a criança aprende, através do contato familiar, as primeiras regras básicas da sociedade, como a solidariedade, a proibição do incesto etc.

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e o acusado. Revela que a toga, ao mesmo tempo, distingue e une: une o

magistrado do advogado e separa ambos dos leigos.

Entende que o uso da toga, por acusadores e defensores,

significa a união a serviço da autoridade do Juiz. Aqueles só estariam

aparentemente divididos, mas, na verdade, estariam unidos por um

esforço comum.

É preciso, neste ponto, fazer algumas ressalvas. Sobretudo

porque a “toga” a qual se refere o jurista italiano parece não representar

na atualidade a mesma função que ele acreditou exercer outrora. De

maneira bastante lúcida, Wilson Alves de Souza 2 demonstra que, em

verdade, toda esta formalidade excessiva constitui um verdadeiro

problema cultural que só obstaculariza o acesso à justiça. Senão,

vejamos:

“A cul tura impregnada no âmbito dos t r ibunais com a prát ica de desnecessár ias formalidades, a exemplo das vestes ta lares é muito ant iga. Certamente que esta cul tura não mudará instantaneamente. De tão ant iga que é , de tão arraigada que está , cer tamente demandará muito tempo para mudar . A exigência do uso de vestes ta lares pelos magist rados em determinados meios chega a ser uma exigência legal . Poderá parecer que este venha a ser um assunto de menos importância . No entanto, a verdade é que ta is formalidades, de um lado, nada ajudam para a ef ic iência da prestação do serviço jur isdicional e , de outro lado, conforme sal ientado acima, contr ibuem para dif icul tar o acesso à just iça , na medida em que servem para int imidar o c idadão humilde e , ass im, afugentá- lo mais a inda do ambiente judiciár io”.

Além do problema acima elucidado por Alves de Souza, o próprio Carnelutti já evidencia que muitos magistrados e promotores valem-se de suas vestes como se fossem verdadeira vestimentas teatrais, indumentária adequada ao espetáculo que muitos imaginam ser o processo penal. Esta passagem é totalmente aplicável aos dias atuais, em que aqueles que deveriam servir à administração da justiça utilizam-se do processo penal como meio de promoção social, sobretudo nos crimes de grande repercussão, seja para figurarem como “heróis” que realizaram a justiça, seja para atra ir clientes, no caso dos advogados.

Se de um lado estão magistrado, advogado e promotor protegidos pela autoridade da toga, do outro está o acusado, que quando encarcerado se torna o mais pobre de todos os homens, segundo Carnelutti . Ele salienta que não devemos olvidar que aquele acusado 22 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à Justiça. Editora Dois de Julho, PP 32.

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também é homem e pode se redimir dos erros cometidos. Aliás, esta seria a verdadeira função da justiça: fazer ressurgir no homem que cometeu determinado crime num ato extremamente egoístico o amor pelos que lhe rodeiam.

Muito interessante é a metáfora utilizada pelo autor, que revela que assim como a balança e a espada são símbolos que representam o Direito, as algemas devem assim também ser consideradas, pois quando algemado, sem saída, sem liberdade é que o acusado reflete sobre o que cometeu e faz seu gérmen da bondade sobressair.

Estando nesta situação de miserabilidade não resta outro arrimo para o acusado, malvisto por todos que o rodeiam, senão a amizade do advogado. Carnelutti realmente acredita que a relação entre o advogado criminalista e o réu é um verdadeiro laço de intimidade, que faz surgir entre eles um sentimento.

Com todas as vênias devidas ao advogado italiano, este entendimento parece não mais se aplicar no cotidiano forense. Hoje em dia, a relação entre o advogado e seu cliente está deveras mitigada pela usura financeira e pela falta de tempo. Pela necessidade de arranjar mais clientes ou clientes mais importantes, sem que haja qualquer sentimento verdadeiro pela história do acusado.

Tanto isto é verdade que não raro encontramos na jurisprudência casos de defensores públicos que estão tão indiferentes para com a história do acusado que nem sequer realizam uma defesa eficiente. Esta situação chegou ao extremo do Supremo Tribunal Federal precisar editar uma Súmula em defesa dos acusados que não contam com a sorte ao cair nas mãos de defensores tão socialmente irresponsáveis.

Enunciado da Súmula 523, STF: No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.

Muito relevante também é a figura do magistrado. Todavia, enquanto ser humano, também está sujeito a falhas; não é possível tolerar falhas, todavia, quando se está em jogo a liberdade de outrem. Neste sentido, Carnelutti vê como grande saída a existência de órgãos colegiados, que promoveriam um verdadeiro debate entre os magistrados para que se chegasse o máximo possível de uma solução justa para o caso concreto.

Mais uma vez somos obrigados a questionar a aplicabilidade deste entendimento. É que mesmo nos órgãos de jurisdição superior nem sempre impera a racionalidade dialógica. Basta observar os inúmeros acórdãos em que inexiste qualquer voto vencido, se limitando os demais

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desembargadores que compõem a turma a acompanharem o voto do relator, abdicando a elaboração de um parecer jurídico que somente contribuiria para o acerto da decisão.

Apesar de ser muito criticada, a parcialidade do defensor é extremamente importante para o processo. Carnelutti observa que não devemos encarar, como faz o senso comum, o advogado criminalista como um inimigo; como alguém que compactua com o acusado. Ao revés: a parcialidade do advogado é extremamente importante para o processo! E é justamente isso que defende a processualística moderna, sobretudo Ada Pellegrini 3 na sua obra Teoria Geral do Processo:

“Somente através da soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese) o juiz pode corporificar a síntese , em um processo dialético. É por isso que se diz que as partes, em relação ao juiz, não tem papel de antagonistas, mas sim de "colaboradores necessários": cada qual dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve.”

De acordo com Carnelutti , o processo penal, para ser perfectibilizado, precisa reconstruir o suposto fato punível. A reconstrução deste fato, todavia, não é fácil. È preciso valer-se de provas, que muitas vezes não são suficientes. Dentre estas provas, muitas vezes, está a testemunhal, que acaba por trazer à lide pessoa que não praticou qualquer delito mas que precisará se submeter às mazelas do processo penal.

Todavia, além das provas, é preciso, segundo Carnelutti , conhecer a história do acusado. Pois só reconstruindo a história do acusado é que se poderá compreender o motivo do cometimento do ato criminoso. E mais: se realmente houve dolo na prática do delito. Ao tratar deste tema em particular, o jurista italiano é muito feliz ao compreender que deveria se considerar, na oportunidade do julgamento, não apenas a capacidade de delin

qüir do indivíduo, mas também a capacidade de se redimir.

Aqui abrimos um parêntese para tratar de uma das funções da pena que é a de reinserir na sociedade quem já cumpriu pena no sistema prisional. Vale salientar, contudo, que esta função ressocializadora não

3 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrni. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. Ed. Malheiros.

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apresenta quase nenhuma efetividade diante da realidade penitenciária brasileira.

Sobre este tema é relevante citar o representante do Instituto de Criminologia e Política Criminal Juarez Cirino dos Santos 4, professor da Universidade Federal do Paraná, que assevera:

“O processo técnico-corretivo da prisão, cuja história registra 200 anos de fracasso reconhecido marcado pela reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado – o célebre isomorfismo reformista de Foucalt – caracteriza-se por uma eficácia invertida, com a reprodução ampliada da criminalidade pela introdução de condenados em carreiras criminosas.”

Esta função ressocializadora, como se vê nos dizeres de Juarez Cirino dos Santos, esbarra na realidade dos presídios e no própria forma como é realizado o encarceramento dos condenados. O supramencionado doutrinador conclui sua idéia demonstrando, inclusive, que a verdadeira realidade é que na prisão os condenados estão sujeitos a penas muito mais gravosas do que a sentenciada pelo juiz. Ao invés de ter apenas a sua liberdade cerceada, também tem, não raro, a sua saúde, a sua sexualidade e a sua dignidade violadas. Potencialidades humanas do acusado que não foram objeto de limitação pela sanção penal e que deveriam manter-se preservadas.

É justamente pelo extremo caráter negativo da prisão que Carnelutti não titubeia em salientar que não basta reprimir os delitos. É necessários preveni-los. E para isso, o cidadão precisa saber exatamente a quais sanções estará sujeito se cometer determinado ato ilícito – princípio da legalidade – além de ser conferida à pena um caráter de exemplaridade.

Todavia, esta repressão ensejada por Carnelutti na sua obra como necessária carece de maior efetividade na atualidade. Isto porque reina na sociedade brasileira a impunidade, sobretudo nos denominados “crimes de colarinho branco”, praticados pelo alto escalão de uma sociedade extremamente estratificada e marcada pela seletividade do Direito Penal. Seletividade esta que, para Juarez Cirino dos Santos, representa todo o rigor da lei para os menos abastados e todas as minorantes, exculpantes e quaisquer invenção doutrinária “supra-legal” que possa evitar o encarceramento da alta sociedade.

Ao final da obra, Carnelutti não decepciona e traz uma conclusão que faz juz às misérias que havia premeditado no título do livro. Assevera que a absolvição d o acusado, em verdade, só se perfectibiliza com a insuficiência probatória. Quando é inocente, o juiz declara que o acusado não cometeu o ato, ou que o ato não é um delito.

4 4 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Conceito Editorial. PP. 14

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Porém, nos casos de insuficiência de provas, o juiz declara que nada pode afirmar sobre o acusado. Neste caso, o processo se encerra com uma inconclusão sobre a matéria de fato.

Tudo isto só prejudica o acusado que, mesmo tendo sido absolvido, carregará uma cruz pelo resto da vida. É que o processo penal deixa no acusado uma verdadeiro estigma social, como se tivesse que ser privado de um dos seus caracteres mais atávicos: o de ser gregário.

Após sair da prisão o processo termina, no entanto, a pena não, por o sofrimento e o castigo continuam quando o ex-detento tenta retornar à sociedade e percebe que já não tem mais os mesmo laços de amizade, as oportunidades se limitam e o tempo voraz como só ele já o fez percorrer grande parte da sua existência terrena.

E conclui Carnelutti com maestria:

“A questão é muito mais grave. Ao sair da prisão, o detento sabe que já pagou por seus malfeitos e que novamente é um homem livre, mas as pessoas não o vêem assim. Para elas, ele sempre será um condenado, quando muito dirão dele, ex-presidiário.”

Do exposto, resta por fim uma crítica ao título do livro. Ora, seria uma contradição criticar o enunciado de uma obra justamente na conclusão desta resenha crítica. Todavia, esta contradição é apenas aparente, pois só após das divagações anteriormente feitas é que podemos afirmar que as misérias não são bem do processo penal. As misérias são oriundas da forma com que os seres humanos, ditos “operadores do direito” lidam com a technique por eles mesmos criada: se o processo penal avilta, maltrata e denigre é porque é desta forma que a sociedade pare ainda estar preparada para lidar com aqueles que erram: marginalizando-os e não estendendo-lhes a mão.

Curiosamente, este livro é escrito, como dito, em um país de maioria amplamente cristã, sobretudo católica, que detêm como um dos princípios basilares da religião a doutrina do perdão. É de se inquietar.

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Bibliografia:

1- CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. Editora Pillares. 2010.

2- SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à Justiça. Editora Dois de Julho. 2012.

3- CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrni. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. Ed. Malheiros. 2006.

4- SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Conceito Editorial. 2011.