resumo
DESCRIPTION
tradição oralTRANSCRIPT
Ensaio sobre a palavra e a importância da verdade na tradição oral
africana: De Hampate Bá á Pepetela
Resumo:
O presente texto trata de trabalhar a importância da oralidade dentro das tradições
africanas presentes no texto A tradição viva do filosofo malinense Mammadou Hampaté
Bá, onde o autor trabalha mostrando a força da tradição oral no que é tangível na
manutenção da harmonia e do ensinamento. Comparo esse texto com a obra do escritor
angolano Pepetela,o livro As aventuras de Ngunga,onde o personagem
principal,Ngunga,percebe a facilidade que os adultos possuem em mentir e dissimular a
verdade,tornando assim a palavra algo sem sentido.
A tradição africana é marcada pela oralidade1 e a palavra possui um status de
importância dentro dessas sociedades.Por diversas vezes o pensamento eurocêntrico
classificou as diversas culturas e sociedades africanas como “atrasadas”,apenas pelo
fato de que,muitas dessas sociedades não possuíam um código de escrita aos moldes
ocidentais.Todavia isso não passa de uma mera ignorância alimentada de um
pensamento racista que por muitos anos procurou uma justificativa para explicar ou
amenizar sua política colonialista em Africa.Na realidade a palavra “falada” é que
representa todo o peso simbólico dentro de muitas civilizações africanas,e a verdade se
estabelece como condição magna para se obter a paz de espírito.
Ao analisar o livro As aventuras de Ngunga,escrito pelo escritor angolano
Pepetela,vemos que a verdade e a palavra se encontram fortemente presentes.Ngunga é
um garoto de treze anos que perde os país durante a guerra de descolonização de Angola
ocorrida entre 196-1974.Ngunga passa a viver com o presidente Kafuxi,um velho
representante de varias aldeias que na verdade não passava de um homem
mentiroso,mesquinho,não estando realmente preocupado com a revolução e nem com os
guerrilheiros:
“(...)quando chegava algum guerrilheiro ao
kimbo,Kafuxi mandava esconder a fubá.Dizia as
1 Amadou Hampaté Bá “A tradição viva”
visitas que não tinha comida nenhuma.Se
alguma visita trouxesse tecido,então ele
propunha a troca.Sempre se lamentando que
essa era a ultima quinda de fubá que possuía.Se
a visita não tivesse nada para trocar,então
partia do kimbo com a fome que trouxera..”.2
Kafuxi ai representa um homem que não possui um real respeito com aquilo que fala.O
mesmo possuía muita comida e três mulheres que o forneciam força de trabalho
juntamente com Ngunga que,por sinal,terminou sendo enganado e praticamente forçado
a trabalhar para o presidente.Ngunga já percebia que muitos homens construíam seu
caráter através da mentira e do egoísmo,e que muitos desses homens não tinham um real
interesse em manter e preservar aquilo que diziam as outras pessoas ao redor.Talvez
essa traição a tradição da palavra tenha se dado ao fato da influencia eurocêntrica
durante os varios séculos de cruzamento e dominação.O peso da fala não possui a
mesma relevância no mundo ocidental onde as assinaturas e livros representam a
legitimidade do saber e do conhecimento.Em muitas parte do continente africano os
mais velhos são considerados verdadeiras bibliotecas vivas,e por isso,são respeitados e
preservados dentro dos seios meios sociais.São esses tradicionalistas responsaveis por
repassar todo o conhecimento da vida para as gerações mais novas.
Não há real possibilidade em diminuir a importância do relato oral do relato
escrito.Antes dos livros e da escrita serem desenvolvidas e repassadas aos outros,o
homem e seu cérebro eram a principal fonte de conhecimento3,e até mesmo dentro dos
países onde a escrita teve sua gênese,muitos não obtinham acesso a essa nova
ferramenta de comunicação de massa.Apenas a partir do século 16 é que os primeiros
livros foram impressos em língua vulgar,se desapegando da tradição do latim.Mesmo
assim nem toda população européia era alfabetizada,principalmente a população rural
que mantinham sua oralidade muito bem viva passando e repassando suas lendas e
costumes.Hampaté Bá nos alerta para a uma incongruência:
”Para alguns estudiosos,o problema todo se resume em saber se é possivel conceder á
oralidade a mesma confiança que se concede a escrita quando se trata do testemunho de
fatos passados.No meu entender,não é esta a maneira correta de se colocar o
2 Pepetela.”As aventuras de Ngunga”3 Mamadou Hampate Bá “Atradição viva”p.182
problema.O testemunho,seja escrito ou oral,no fim não é mais que testemunho
humano,e vale aquilo que vale o homem.”
Perceba que,assim como ocorre em varios fatos da historia ocidental,onde se
predominou o costume da “historia dos vencedores”,os relatos podem sim serem
totalmente inverídicos.As transgressões realizadas na passagem desses relatos durante
os séculos,muitas vezes se deu por simples falta de inteligibilidade- nos casos de
traduções de línguas antigas como latim para línguas modernas-como também uma
manobra de contar a versão da historia que mais lhe agrada e mais lhe cai bem.
“Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do
que o testemunho oral transmitido de geração a geração.As crônicas de guerras
modernas servem para mostrar que,como se diz(na Africa),cada partido ou nação
“enxerga o meio-dia da porta de sua casa”- através do prisma das paixões,da
mentalidade particular”(Bá,Hampaté)
O que falar sobre o descobrimento da America?Relatos contados pelos recém chegados
nessas terras,falam que os habitantes aqui encontrados não passavam de simples
selvagens desconhecedores da lei,da fé,e da ordem política.Em Africa também não foi
diferente.Mesmo o continente africano obtendo civilizações complexas e grandiosas
como o reino de Oyo4,europeus não consideravam essa cultura e essa algo evoluído e
sofisticado.A dominação colonial tratou de minimizar e até mesmo diminuir a
importância dessas tradições,tornando-as muitas vezes,”coisas do passado”.
A instituição da educação colonial não apenas impôs uma nova gramática ou lingüística
a esses povos autóctones.Muito das tradições de iniciações,em especial as tradições
realizadas pelo povos Bambara e Peul,localizados na região do Mali,realizadas pelo
Komo5,onde os jovens eram iniciados nas profissões tradicionais que,por sua
vez,possuem uma ligação forte entre o homem e Deus,foram extirpadas do meio social
tendo que por muitas vezes se esconderem em regiões remotas.As profissões
tradicionalistas- Ferreiros,curtidores de coro,tecelões,caçadores- estão intimamente
ligados a Deus,a natureza...Os tecelões são aqueles que tecem com o ritmo das
palavras.Em seu oficio diário eles estão a tecer a vida,carregando o passado no colo e
tecendo o futuro com os dedos.O ritmo dualístico dos pés,realizando um movimento de
4 O império Yorubano era uma confederação de varios povos que partilhavam de uma língua e cultura comum.A partir do século 18 a cidade Oyó se torna um centro referencial desse império.5 Escolas de iniciações das Savanas africanas como no Mali
vai e vem dando ação aos pedais da tecelagem,simbolizam as idas e vindas da
vida.Seguindo o ritmo da palavra criadora.
Apesar dos tradicionalistas estarem divididos em certas profissões não devemos pensar
que geralmente eles são especialistas6reduzidos apenas a uma área de conhecimento.A
educação tradicional africana se encontra fora dos muros de uma escola,podendo ser
passada em qualquer circunstancia e qualquer forma(leia-se a palavra qualquer não
como forma de desleixo ou despreparo,mas sim,uma forma de variar o sistema de
ensinar e educar o iniciante).A natureza se transforma em uma escola viva.Retomando o
texto de Pepetela podemos ver isso explicito quando Ngunga em um dialogo com
Mavinga se recusa a ir para escola:
“-(...)Ngunga,tu és pequeno demais para ser
guerrilheiro.Aqui já te disse que não podes
ficar.Andar só como fazes,não é bom.Um dia vai
acontecer-te uma coisa má.E não estas a
aprender nada.
-Como?Estou a ver novas terras,novos rios,novas
pessoas.Oiço o que falam.Estou a aprender(...)”7
Percebe-se ai uma grande diferença do conceito de aprendizagem.Para Mavinga o
Ngunga só poderia estar a aprender alguma coisa se estivesse em uma escola,com
papeis formais,recebendo a educação formal trazida pelos colonizadores
portugueses.Para Ngunga,a vida que ele leva observando o curso do rio,o nascer das
arvores e plantas,as historias contadas pelos mais velhos,era uma forma muito mais
eficaz de ter aprendizado completo.A educação tradicionalista africana não está
separada em pratica e teórica.Há um emaranhado que juntam tanto a pratica com a
teoria em uma só.Os iniciados dessas tradições são iniciados para a vida em toda sua
completude.Historia se funde com geografia,que se funde com biologia,que se funde
com filosofia,formando assim um saber concreto.Por isso,há uma grande incongruência
com a afirmativa da não existência do saber africano.Fazendo um leve comparativo
entre as tradições Bambara e as tradições africanas chegadas no Brasil com os negros e
negras aqui escravizados,podemos dizer que,a oralidade é o grande banco de
conhecimento,a comunidade,aqui recriada através do “povo de santo”,é a verdadeira
6 Hampate Bá. A educação tradicional africana7 Pepetela.As aventuras de Ngunga p20
escola.O saber passado de boca a boca durante gerações tem a responsabilidade de não
morrer com seu antecessor e nem pode cair em ouvidos errados.O mistério,cujo sentido
no mundo ocidental é ligado ao maléfico,aqui tem o sentido de proteção e sacralidade
das tradições.Muitos dos mistérios presentes nas tradições africanas não devem ser
propagados a terceiros que não fazem parte desse sistema.Caso algum estranho tenha
esse interesse,devera passar pelos mesmos ritos de iniciação8 como qualquer outra
pessoa.
O ocidentalismo não leva em conta toda essa complexidade do saber africano.A
principio,vale notar que,os primeiros elementos de estudos produzidos e utilizados
dentro das academias européias com a intenção de falar sobre a historia,civilização,ou
até mesmo filosofia e sistema político africanos,foram escritos por estrangeiros durante
a colonização.Dizia-se que,os africanos não teriam uma real consciência de sua cultura e
filosofia9.Podemos falar em tolice do olhar estrangeiro?Como um povo que possui uma
relação tão complexa com o meio natural não poderia ter capacidade em reconhecer
suas ciências?Esses mesmos acadêmicos europeus que se consideraram pioneiros dentro
dos estudos africanos,achando que o africano seria um “selvagem” sem nenhuma,ou
com pouca capacidade inteligível para entender e explicar sua própria estrutura
filosófica e cientifica,criaram um certo conceito de “total unanimidade”,onde todos
possuíam concordância plena.Esse tipo de pensamento é fruto de um romantismo
barato...Tolhe a possibilidade de pluralismo no campo comportamental e intelectual de
diversos povos africanos.Criam uma Africa sem características particulares e intimas a
cada região especifica.A exemplo da presença e da importância da escrita dentro de
civilizações africanas,podemos citar a existência dos hieróglifos egípcios,do alfabeto
coopta presente no antigo reino de Axum,atual Etiópia,o alfabeto Wolof10,mostrando
assim que nem toda Africa é “ágrafa”,e mesmo os povos de tradição oral,cujo a escrita é
uma mera ferramenta secundaria,também são povos avançados e não “primitivos” como
julga a ciência eurocêntrica.
A palavra é segredo da magia.Magia,uma palavra que,assim como mistério,possui uma
carga bem negativa dentro das sociedades européias e ocidentais como um todo,dentro
das tradições africanas pode conter tanto o valor negativo como o valor positivo.Como 8 Hampate Bá. “A tradição viva” p.1949 Paulin Hountondji .”Conhecimento de áfrica ,conhecimentos africanos:Duas perspectivas sobre estudos africanos”.p.15110 Estudada pelo historiador senegalês Cheik Anta Diop,possui extrema similaridade com os hieróglifos egipicios.
diz o adágio: “A palavra vale aquilo que vale o homem”,as palavras são facas de dois
gumes bem cortantes,podendo trazer paz ou guerra aquele que a profere.Por isso é
aconselhável um enorme cuidado antes de dizer qualquer coisa.As palavras são
consideradas uma herança divina dada pelo próprio criador.Os Bambaras acreditam
que,Maa Ngala(Deus criador de Maa,o homem primordial)deu aos homens o dom da
fala.Então,assim como a fala de Maa Ngala possui poder de animar todas as coisas do
mundo- inclusive todas as coisas estáticas em Maa-11 a fala humana também possui o
mesmo poder,quer dizer,tem o mesmo sentido já que o homem é uma parte de
Deus.Justamente por esse motivo não é aconselhável o má uso das palavras.A mentira
dentro desse plano é tida como uma forma do homem se separar de si mesmo,uma
forma de se exilar,de morrer!Os tradicionalistas assim como os nobre e iniciados são
ensinados a jamais mentir e,se por a caso vierem a cometer algum erro,devem confessar
sem nenhuma desculpa elaborada,ou qualquer outra forma de escapismo.A moral é
elemento fundamente e uma elo entre os seres.Um pacto de confiança e de extrema
relação intima.No conto de Pepetela,Ngunga se entristece com a falta da palavra e com
todo negativismo que isso gera no homem.A mentira,retomando o caso de Kafuxi,é
conseqüência da mesquinharia,da avareza,e de outros “ruídos” que bloqueiam a
comunicação entre homem e Deus.A mentira na Europa também é condenada e
mitificada como algo ruim.Todavia não exerce o mesmo peso avaliativo,podendo até
mesmo ser relevada,reduzida,e tida como benéfica.Um “mestre da faca”,ferreiro
tradicionalista responsável pelos sacrifícios iniciais dos povos Dogons,Bambaras e
Peuls,ou qualquer outro tradicionalista ou nobre,caso tenham que mentir ou omitir
alguma informação,são destinados a largar os seus cargos,pois,não são mais puros e
isentos da imoralidade da mentira.Em alguns casos como a partir do momento em que o
domínio colonial começa a enviar intelectuais estrangeiros para essas localidades com o
intuito de absorver toda a cultura e ensinamentos desses povos,é permitido que se omita
tais informações pondo essa pessoa na palha12.
11 Hampate Bá “A tradição viva”.p.18612 Por na palha é um trocadilho que significa “enganar”.Essa técnica se tem inicio a partir do momento em que o governo colonial Frances envia etnólogos e outros diversos intelectuais para o Mali e outras coloniais francofonas,tendo como intuito estudar essa cultura “exótica”.