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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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Resumo
Herdoto refere Tartessos como um territrio ocidental frequentado por Focenses
e Smios em torno dos Sculos VII e VI a.C. (I, 163; IV, 152). Estes relatos so anali-
sados de acordo com a Tradio pica, cuja importncia notria no Sc. VI a.C., bem
como com a construo das paisagens mticas ocidentais em Hesodo e nos Poemas
Homricos. Consideram-se, para este estudo, o registo escrito e, em menor medida, a
cultura material e alguns aspectos etimolgicos. Analisam-se tambm algumas possveis
influncias egpcias e fencias na construo destes relatos.
Palavras chave: Hesodo; Poemas Homricos; Herdoto; Paisagens Mticas
Ocidentais; Tradio pica.
Abstract
Herodotus refers Tartessos as an occidental territory visited by Phoceans and
Samians around the VII and VI Centuries B.C. (I, 163; IV, 152). These stories are anal-
ised according to Epic Tradition, which importance is noted around VI Century B.C., as
well as the construction of the occidental mythological landscapes in Hesion and in the
Homeric Poems. This study considers the written sources and, in a less important way,
material culture and some ethymological problems. This study analises as well some
possible Egyptian and Phoenician influences on the construction of those stories.
Key Words: Hesiod; Homeric Poems; Herodotus; Occidental mythological land-
scapes; Epic Tradition.
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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ndice
I Em jeito de introduo .............................................................................................. 5
II As Fontes ................................................................................................................. 15
A Cultura material................................................................................................. 16
Alguns aspectos etimolgicos ............................................................................... 20
Hesodo ................................................................................................................. 25
Homero.................................................................................................................. 28
Herdoto................................................................................................................ 31
Discusso .............................................................................................................. 36
III A Imagem do Ocidente........................................................................................... 39
Os Confins da Terra Habitada............................................................................... 41
O Ocidente como espao monstruoso ................................................................... 46
e ................................................................................ 52
A Idade de Ouro e o encontro de Odisseu com os Feaces .................................... 59
IV Tartessos: entre Mitos e Representaes................................................................ 65
Os Confins da Terra Habitada em Herdoto......................................................... 66
A Viagem de Colaios ............................................................................................ 68
A Viagem dos Focenses ........................................................................................ 73
Argantnio e os habitantes dos confins................................................................. 75
O esteretipo de riqueza: pastorcia, metais, agricultura ...................................... 82
Tartessos e as paisagens mticas do Ocidente ....................................................... 88
V Para finalizar........................................................................................................ 98
Agradecimentos................................................................................................... 104
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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Dedicado a ti, para quem este texto foi escrito
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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The artist is the creator of beautiful things.
To reveal art and conceal the artist is arts aim.
The critic is he who can translate into another manner or a new material his
impression of beautiful things.
The highest, as the lowest, form of criticism is a mode of autobiography.
Oscar Wilde, Picture of Dorian Gray
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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I Em jeito de introduo
Estas linhas iniciam e encerram o resultado de uma investigao que visou, sobre-
tudo, lanar um olhar sobre dois relatos de Herdoto, que colocam Tartessos o reino
de Argantnio no papel de paisagem onde chegaram Smios e Focenses, entre os
Sculos VII e VI a.C. De que modo estas informaes foram transmitidas a Herdoto?
Que objectivos tinham estes relatos nas sociedades por onde circulavam? Que interesses
reflectiriam? Estas e muitas outras questes repetiram-se ao longo de todo o processo de
investigao que procurei desenvolver dentro das minhas naturais limitaes. Agora,
que findei esta fase do meu percurso pessoal, posso debruar-me sobre o que escrevi,
por isso creio que de todo o interesse abordar, neste captulo introdutrio, alguns
aspectos com os quais tive oportunidade de contactar.
O topnimo ou hidronmico Tartessos coloca-nos, automaticamente, na senda de
um conjunto assinalvel de representaes, recepes e reformulaes que nunca foram
alheias s circunstncias sociais e histricas de cada autora ou autor. O tema que apre-
sento nesta dissertao , certamente, mais modesto que uma anlise sistemtica de
todos os aspectos ideolgicos que rodeiam um discurso e, consequentemente, a sua
formulao e recepo ao longo de tantos sculos. Pretendo apenas discutir algumas
questes relativas formao de Tartessos enquanto fenmeno literrio que representa
um territrio ocidental e distante, abordando temas como o enquadramento, discusso e
problematizao das fontes escritas onde incidiu a anlise (Hesodo, Homero e Her-
doto), a imagem do Ocidente (consequentemente, das Colunas de Melqart/ Hracles e
Gadir) como linha mestra da cena herica e, finalmente, o surgimento dos dois relatos
de Herdoto neste contexto (I, 163 e IV, 152) e o seu enquadramento na representao
do Ocidente, bem como na discusso sobre a presena fencia.
Antes de prosseguir neste aspecto, penso que importante dedicar algumas pala-
vras ao modo como apresento esta dissertao. Optei por expor, em anexo, alguns
excertos que considerei mais importantes para o conjunto da dissertao1. Outros excer-
1 A leitora ou o leitor verificar que, depois de uma citao, pode aparecer um smbolo seguido de um
nmero (por exemplo, Hesodo, Theog. 109 123/ *1.1) que remete, precisamente, para o Anexo A (Fon-
tes Escritas) e para a numerao dos excertos citados.
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tos so apenas mencionados, enquanto que outros so enquadrados no corpo do texto ou
em nota de rodap. No anexo A, apontam-se as tradues utilizadas. No caso de ausn-
cia de referncia traduo na bibliografia consultada, optei por referir apenas a proce-
dncia do excerto (por exemplo, Martnez Hernndez, 1999). O Anexo A est, ento,
dividido do seguinte modo: (1) Hesodo; (2) Poemas Homricos; (3) Herdoto; (4)
Outros autores gregos e latinos; (5) Textos egpcios e orientais e (6) Textos Veterotes-
tamentrios. O Anexo B inclui figuras e o Anexo C as abreviaturas utilizadas ao longo
do texto e na bibliografia. Este modo de organizao justificou a redaco da disserta-
o em dois volumes, uma vez que, segundo creio, facilita a leitura e a crtica.
Retomemos o assunto com que inicimos o texto. Importa assinalar algumas limi-
taes que devem ser tidas em linha de conta. A investigao desenvolvida incidiu, pre-
ferencialmente, sobre Fontes Escritas e, paralelamente, sobre vestgios arqueolgicos e
a construo etimolgica de alguns termos. No que toca s Fontes Escritas, procurei
aprofundar o contexto e o contedo das obras dos trs autores citados, o que no se rea-
lizou, excepto em casos pontuais, para outros autores. Os vestgios arqueolgicos no
foram alvo de um estudo sistemtico, pelo que me contentei em referi-los apenas quan-
do podiam complementar uma informao. Um gosto pessoal pela Lingustica levou-me
a referir, sempre que necessrio, algumas questes relacionadas com um tema para o
qual no tive formao acadmica. No obstante, considero que este aspecto importan-
te para uma aproximao representao do Ocidente.
Tartessos surge, na obra de Herdoto, como um territrio visitado por Focenses e
Smios, localizado mais alm de uma fronteira (as Colunas de Hracles) em tempos
anteriores aos do autor. Tartessos representa uma riqueza distante que apenas possvel
quando h uma preocupao pela descrio dos confins do mundo habitado, como
podemos verificar na importncia dos Poemas Homricos no Sc. VI a.C.. Partindo des-
te princpio, procurei enquadrar Tartessos numa imagem geral do Ocidente e, dentro
desta, num conjunto de elementos que permitem abordar o tema numa perspectiva tri-
pla: como espao monstruoso (Hracles vs Grion), como espao escatolgico (Ilha dos
Bem-aventurados e Elysion)2 e como espao entre o divino e o humano (Idade do Ouro,
em Hesodo, e os Feaces de Odisseia). O primeiro apenas importante para enquadrar
as aventuras de Hracles, indubitavelmente anteriores a qualquer heri. O segundo e o
2 Daqui em diante, estes espaos sero referidos de acordo com a terminologia grega:
(Makrn Nsos) e (Elysion), respectivamente.
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terceiro, por seu turno, so duas vertentes de um mesmo eixo de representao, isto : a
riqueza distante. O tema tem muita importncia se considerarmos que estas paisagens
foram, com o aumento da cosmoviso grega consequente do processo de colonizao,
reconhecidas e identificadas nos novos territrios.
Isto implica, necessariamente, uma abordagem s possveis origens destes relatos,
sobressaindo, como veremos a seu tempo, aparentes influncias fencias e egpcias, tan-
to em termos etimolgicos como ideolgicos. Considerando que o Templo de Gadir
(bem como aqueles que o frequentavam) teve uma grande importncia na construo da
imagem do Ocidente, possvel que estes espaos apresentem caractersticas que se
veiculavam nos relatos proferidos (e ouvidos) no contexto de contactos comerciais esta-
belecidos entre Gregos e Fencios3. Consequentemente, Tari [Tarshish] pode ser um
dos elementos veiculados nessas tradies que, posteriormente, conduziram a um reco-
nhecimento e consequente atribuio geogrfica por parte dos gregos. Este reconheci-
mento, por seu turno, parece obedecer a alguns padres que se manifestam na criao/
adaptao de topnimos gregos no espao peninsular, bem como a possveis padres de
adaptao/ transformao ligustica entre os nomes transmitidos pelos Fencios e rece-
bidos pelos Gregos (de a Tari), o que ser discutido na Parte II.
Para alm do reconhecimento das paisagens, procurei abordar a questo em ter-
mos de forma (ou morfologia)4 das tradies orais. Isto , partindo da concepo da
Idade de Ouro e da representao dos Feaces em Odisseia, penso que personagens como
Argantnio, que apresentam uma longevidade inconcebvel no tempo de Herdoto,
cumprem em relatos hericos a mesma funo que Alcnoo. Ou seja, dispensam rique-
zas e cumprem os rituais de hospitalidade em terras distantes, vivendo numa felicidade
que gira em torno da produtividade agrcola (que, por sua vez, tem como consequncia a
longevidade). Neste sentido, seria interessante observar estes relatos na perspectiva da
3 Para o tema das colonizaes antigas em espao helnico, veja-se a volumosa obra de Martin Bernal,
Black Athena (ver bibliografia). Esta obra composta por trs volumes, dos quais consultei edies dife-
rentes. Uma vez que apresentam datas de publicao distintas (1993, 1991 e 2006), optou-se por citar a
obra consoante o volume, isto , Bernal 1 (1993), 2 (1991) e 3 (2006). 4 Creio que importante, nesta linha, citar o trabalho de Vladimir Propp, que me foi sugerido por F.
Moreno Arrastio. Este trabalho deve ser tido em linha de conta na anlise dos aspectos que procuro tratar,
embora considere que basear uma linha de investigao apenas neste autor bastante redutor, na medida
em que pouco se pode extrapolar a partir de uma sequncia mecanizada de frmulas e funes. Este
aspecto vai ser tido em linha de conta apenas na interpretao da recepo de informaes na obra de
Herdoto e ser explicado, definitivamente, nas concluses desta dissertao.
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agricultura e no tanto na questo da riqueza em metais. Se considerarmos a influncia
fencia nestes textos, seria coerente pensar numa imagem deste Ocidente desconheci-
do para os gregos at, pelo menos, ao Sc. VII a.C. construda em torno do interesse
nos recursos agrcolas?
A prpria obra de Herdoto pode colocar alguns problemas de interpretao,
sobretudo se tivermos em linha de conta que algumas das tradies que transmite pro-
vm da circulao da palavra oral e no tanto da escrita. Alis, verifica-se que esta obra
apresenta muitos traos de oralidade, quer na sua transmisso, quer na prpria forma
com que os relatos chegaram ao investigador de Halicarnasso. Claro est, no podemos
comparar os objectivos desta volumosa obra com os objectivos de um conjunto de tradi-
es como Odisseia, ou mesmo de um poema como Trabalhos e Dias. Existem algumas
diferenas fundamentais, mas o penltimo relato parece, pelas suas caractersticas, per-
mitir um conjunto de variantes que me leva a crer que Herdoto ter escutado um relato
muito similar, mas com protagonistas e espaos diferentes. Este aspecto ser desenvol-
vido mais adiante, mas possvel adiantar o seguinte: o autor ter, obviamente, selec-
cionado o contedo das informaes, no interessando, no conjunto da sua obra, repro-
duzi-lo na ntegra.
Como afirmou Amin Maalouf em Les identits meurtrires (As Identidades
Assassinas), o texto no muda, o que muda o nosso olhar. Olhar que em cada poca
se demora por certas frases e desliza por outras sem as ver. difcil no concordar
com esta afirmao quando nos debruamos sobre um corpus de fontes escritas que
poucos acrescentos tem tido nos ltimos cem anos (Guerra, 1999, p. 127). Pelo contr-
rio, outro tipo de fontes, nomeadamente arqueolgicas, tm vindo a dar um excelente
contributo para a definio do conceito de Tartessos enquanto cultura. Vale, por isso, a
pena deter-me um pouco, embora de uma forma muito sinttica, no percurso das inves-
tigaes do sculo que passou, assinalando que esta no a ocasio apropriada para um
desenvolvimento do tema. O panorama apresentado poder, assim, parecer esquemti-
co5.
5 Remeto, no obstante, para algumas referncias importantes: a excelente tese de M.A. Mart-Aguilar
(2000), que analisa a recepo de Tartessos a partir do Sc. XVI, o artigo de R. Olmos (1989), onde o
autor apresenta uma sntese muito clara e objectiva da histria das investigaes no contexto da relao
entre fontes escritas e arqueolgicas, bem como a obra de M. Torres Ortiz, onde se apresenta alguma
bibliografia sobre o tema, concentrando-se, sobretudo, nos trabalhos posteriores a Bonsor (2002, p.25 -
42). As linhas que se seguem incidem, maioritariamente, sobre estes dois ltimos autores.
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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Devemos comear por Edward Bonsor, cujos trabalhos incidiram nos finais do
Sculo XIX e no princpio do Sculo XX. No por acaso que este investigador foi
pioneiro da Arqueologia Tartssica, uma vez que procurou definir a etnicidade de
Tartessos a partir da anlise (baseada no critrio da inumao/ incinerao) de algumas
necrpoles e das suas caractersticas evolutivas6. As suas investigaes, iniciadas em
1885, resultaram na publicao de Les colonies agricoles pr-romaines de la vale du
Betis (1889) e de Tartessos (1921), onde procurou defender a tese de uma etnia celta
ou celto-pnica para Tartessos, bem como a localizao da cidade. Para tal, baseou-se
na obra de Avieno Ora Martima propondo, primeiro (1921), uma localizao entre
entre a lagoa de El Sopetn e a Duna de El Carrinchal e, no ano seguinte, a alternativa
de Torre Carbonera (Torres Ortiz, 2002, p. 25 27). Como veremos mais adiante, estes
trabalhos apenas sero valorizados a partir dos Anos 50.
Trs anos aps a publicao de Tartessos de Bonsor, Adolf Schulten publica a sua
verso de Tartessos, reeditada em 1945. Esta obra marca o protagonismo das fontes
escritas na definio da etnicidade e do volkgeist tartssicos, bem como a tentativa de
tocar com as prprias mos o emporion referido nas fontes. Schulten parece seguir os
caminhos da filologia alem de finais de Oitocentos, cujo exemplo podemos identificar
em Schliemann, isto , a identificao de cidades antigas como Tria (cf. Tortosa,
2003), bem como as propostas de Oswald Spengler7. Como afirma M. Torres Ortiz,
() la figura de Schulten va a suponer la consolidacin de Tartessos dentro del marco
de los modernos estudios de filologa clsica e Historia Antigua, aunque este investiga-
dor no renuncia a la arqueologa como medio para descubrir la ciudad de Tartessos
() (2002, p.28), localizando-a no Coto de Doana (Schulten, 1945, p. 12; Wagner,
1992, p.5).
A florescente cidade de Tartessos, grega em 1924 e Tirsena em 1945, era conside-
rada por Schulten como centro de um imprio, com literatura (Almagro-Gorbea, 2005,
6 Bencarrn, Santa Luca, El Acebuchal, Cruz del Negro, Alcantarilla e Caada de Ruiz Snchez. Bonsor
definiu cinco fases evolutivas, num esquema intercalado (inumao/ incinerao/ inumao, etc.) que
culmina nas urnas de incinerao de tipo Cruz del Negro. Bonsor enquadra-se num contexto intelectual
que comeou a valorizar, no ltimo tero do Sc. XIX, os estudos fencios e pnicos, sobretudo no que
toca sua Histria e Histria de Arte. 7 Para este autor, as culturas tm um ciclo vital prprio e regular, em clara analogia com organismos
vivos, que nascem, crescem e morrem, com uma alma que lhes inerente. Para uma exposio dos
pensamentos de Spengler, cf. Gardiner, 1995, p.228 244.
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p.40), com uma sociedade hierarquizada e com leis, o que se enquadra num contexto
intelectual que valoriza os conceitos de Cidade e Estado na perspectiva de uma evolu-
o que apenas se d com influncias externas (cf. Lpez Castro, 1993). Para alm desta
postura difusionista, h que apontar um aspecto muito importante: para Schulten, numa
perspectiva anti-semita (cf. Wagner, 1992, p. 4 5), os Tartssios eram Filo-helenos
que lutavam contra os brbaros Persas, mercaderes y marinos, pacficos, alegres, hos-
pitalarios, emprendedores, cultivados, tendentes a la exageracin y a la fantasa, habili-
dad retrica, frivolidad y aficin al canto y al baile (Torres Ortiz, 2002, p.29). Esta
imagem, quase idlica, lembra a ideia aristotlica de predisposio dos povos (Pol. VII,
7/ *4.9; VII, 15, 3-4/ *4.10; sobre o aproveitamento poltico de VII, 7, cf. Bernal 1,
p.196-7), ao mesmo tempo que aproveita, embora numa perspectiva distorcida pelos
preconceitos do seu contexto intelectual, parte da imagem que as fontes transmitem
sobre as comunidades mticas do Ocidente, sobretudo os Feaces.
Depois de Schulten, seguiram-se vrias tentativas de identificao de Tartessos,
valorizando, uma vez mais e exclusivamente, as fontes escritas, mas em vo8. De facto,
Tartessos continuava a ser um lugar de localizao imprecisa e extremamente discutvel,
tanto nas tentativas dos autores antigos como nas pretenses dos investigadores mais
recentes. Tal no impediu, contudo, que se desenvolvessem novas hipteses, nomeada-
mente a perspectiva orientalizante da cultura Tartssica, enquadrando Tartessos, junto
com a Pennsula Ibrica, nas culturas mediterrneas.
As Dcadas de 50 e 60 so, por isso, marcadas pelos avanos da Arqueologia
enquanto mecanismo de aproximao s sociedades proto-histricas peninsulares,
sobretudo aps a descoberta do Tesouro de Carambolo. A consolidao deste processo
manifesta-se com a publicao de Tartessos y los inicios de la Colonizacin fenicia en
Occidente, da autoria de Jos M. Blzquez (1968). A este respeito, Mariano Torres
comenta que esta obra refleja que Tartessos ha dejado de ser un problema de crtica
textual para pasar a convertirse en uno principalmente arqueolgico () (2002, p.33).
De facto, no mesmo ano celebra-se o V Symposium Internacional de Prehistoria Penin-
sular (Tartessos y sus problemas), marcando, indelevelmente, a importncia da anlise
do registo arqueolgico e o abandono do mtodo positivista anterior, procedendo-se
8 Localizaes propostas nos Anos 40: Ilha de Salts (Huelva), Asta Regia (Sevilha) e Mesa de Astas
(Cdiz). Cf, a este propsito, Wagner, 1992, p.4ss.
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escavao de necrpoles e povoados que configuravam um horizonte orientalizante de
origem fencia (Wagner, 1992, p.5; Torres Ortiz, 2002, p.32 35).
Tal no quer dizer que os resultados da investigao arqueolgica tenham sido
suficientemente produtivos na dcada de 70. Os modelos de tradio germnica manti-
veram-se durante um longo perodo de tempo, merc de uma tentativa de independn-
cia da Arqueologia em relao a outros campos do saber. De facto, podemos apontar
algum autismo relativamente aos desenvolvimentos tericos no sentido de termos utili-
zados pela investigao, nomeadamente o conceito de aculturao e a superao da
ideologia difusionista. Esta postura atraiu crticas (bastante justas) de autores como Car-
los Wagner (1992; cf. Lpez Castro, 1993), uma vez que continuou a abordar o proble-
ma de Tartessos na perspectiva dos agentes externos, tanto para o seu incio como para
o seu fim (cf. infra), seguindo, no poucas vezes inconscientemente, Schulten. Uma
minoria propunha, no contexto da hegemonia da influncia externa, o incio da cultura
tartssica no Bronze Final, antes mesmo do perodo Orientalizante.
neste contexto que algumas explicaes se orientaram para a definio de um
perodo Pr-colonial ou Proto-orientalizante (M. Almagro Gorbea), que forma-
riam uma cultura de origem greco-micnica. O pressuposto destas propostas era, preci-
samente, a distribuio das Estelas Decoradas do SW e de cermicas com um estilo
Geomtrico Greco-chipriota. Consequentemente, a origem de Tartessos deve-se
chegada dos Povos do Mar no final do II Milnio a.C. (Bendala, apud Torres Ortiz,
2002, p.30 39). Assim, os trabalhos de M. E. Aubet foram importantes no final da
Dcada de 70, uma vez que se debruaram sobre la capacidad de cambio que emanara
de la propia dinmica interna de las comunidades tartsicas (Wagner, 1992, p.8) e pro-
puseram que a assimilao de informaes externas restrita a um pequeno grupo social
e selectiva. O Orientalizante tambm pode ser explicado pela presena de artesos
fencios instalados na costa e no interior (Wagner, 1992, p.8, n. 7; Wagner e Alvar,
2003, passim).
Paralelamente, muitos investigadores procuraram cruzar informaes derivadas da
Antropologia, embora sem muito eco na investigao9, enquanto que outros se concen-
travam na relao entre Tari e Tartessos, bem como na difcil decifrao da escrita do
Sudoeste. Assiste-se, contudo, a uma importante renovao terica que entra, directa-
9 Entre estes, contam-se J. Caro Baroja, Prez Prendes, J. Arce, Garca Iglesias, Garca Moreno, J. Berme-
jo, J. Alvar e C. Wagner (Remeto a discusso do tema para Wagner, 1992, p.8-9).
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mente, nos Anos 80, com a utilizao de metodologias herdadas do mundo anglo-
saxnico, o que significava, claramente, um progressivo abandono do fantasma ger-
mnico no seio de uma Arqueologia preocupada, sobretudo, com a enumerao e a clas-
sificao de dados cuja interpretao poucas vezes se afastava de ideias preconcebidas.
Significava tambm a utilizao de uma base inter-disciplinar que resultaria bastante
bem na anlise dos processos derivados do contacto inter-cultural.
Nesse sentido, outra via de investigao surge como uma procura de resposta a
uma questo fundamental: o objectivo desses contactos. De acordo com Jaime Alvar, os
factores econmicos justificam estes contactos (1990, p. 11-12), podendo produzir-se
com dois nveis de intensidade: Modo de Contacto no Hegemnico (=MCnH) ou
Modo de Contacto Sistemtico (Alvar, 2000). Neste contexto, este autor e Carlos Wag-
ner apresentaram uma proposta de extremo interesse para este trabalho, que ficou
conhecida como Colonizao Agrcola (Alvar e Wagner, 1988, passim; 2003, pas-
sim). Partindo dos trabalhos de Whittaker e G. Bonsor, estes investigadores afirmam
que a presena fencia diversificada, incluindo a componente agrcola como um meca-
nismo possvel. Dedicarei mais algumas palavras a estas propostas na Parte IV.
Como se pde verificar at este ponto, a base inter-disciplinar nem sempre mar-
cou as investigaes durante o sculo que passou. No entanto, surge um outro aspecto
de extrema importncia: a descoberta de novos achados gregos em Huelva e Mlaga,
que alterou por completo a hegemonia do registo fencio na rea da actual Andaluzia
Ocidental que pautou os estudos dos Anos 60 e 70 do Sc. XX. O interesse pela chega-
da dos Fencios acabou por desvalorizar a presena grega, que era verificada somente no
registo escrito, motivando por conseguinte a pouca importncia dada a achados como os
do templo de Hera (Heraion), em Samos (cf. infra, Parte II). Estes vestgios de Huelva,
datveis entre os Sculos VII e VI a.C. permitiram, na Dcada de 80, a revalorizao
das fontes escritas, com os trabalhos de Ricardo Olmos e Paloma Cabrera (Olmos,
1989). Passagens como a de Il. XXIII, 740 9 (*2.5) e de Herdoto (I, 163/ *3.2 e IV,
152/ *3.17) comeam, ento, a fazer parte das aproximaes ao carcter do comrcio
destes objectos na Pennsula Ibrica, bem como explicao da apario deste empo-
rion nos relatos de Herdoto10.
10 Ou, segundo Olmos, la nueva relacin histrica que surge de esta realidad arqueolgica. Es decir, en
cmo a travs de estos hallazgos de Mlaga y Huelva, podemos hoy leer los textos (1989, p.503).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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Todo este percurso do qual pouco se apresentou aqui reflecte-se na construo
da sntese de Tartessos, de Mariano Torres Ortiz (2002). Este trabalho incide, maiorita-
riamente, sobre o registo arqueolgico, concedendo pouca importncia ao registo escri-
to, embora alargue o seu espectro de anlise toponmia e onomstica (Torres Ortiz,
2002 e 2005). A sua perspectiva baseia-se no pressuposto, antes veiculado, que Tartes-
sos um processo de Longue Dure que se inicia antes da presena fencia, colocando
os fenmenos de interaco cultural com populaes orientais como parte de um pro-
cesso mais amplo. Para alm disto, h que ter em linha de conta a discusso sobre a cro-
nologia da presena fencia (Parte III).
O carcter literrio de Tartessos no registo escrito tem vindo a ser questionado nos
ltimos anos (entre outros, Ballabriga, 1986; Olmos, 1989; Cruz Andreotti, 1990;
1991a; 1991b), produzindo resultados interessantes que sero citados ao longo da dis-
sertao. Analisando de um modo superficial o registo escrito, damo-nos conta que Tar-
tessos nunca teve uma localizao precisa, se atendermos ao seu carcter de emporion.
Ser um termo que designa uma regio, ou melhor, uma parte do Ocidente? Ou trata-se
apenas do reconhecimento da regio que os Fencios tero designado como Tari? Ou
ainda de um tpico literrio que passou a fazer parte de relatos picos?
Nos termos que coloco estas questes, importante verificar que a descrio deste
emporion parece obedecer a certas convenes literrias que teremos oportunidade de
apontar na Parte III. Claro est, no excluindo a hiptese de que sero, eventualmente,
relatos fantsticos baseados numa realidade vivida. Considero, tal como Jos Horta
(1995, p. 181), que qualquer discurso uma reconstruo (ou percepo) da realidade,
sendo indissocivel da relao entre sujeito e objecto, em que o observador e o trans-
missor nem sempre so a mesma pessoa11. Esse discurso visa, sobretudo, o receptor, da
a transmisso da compreenso do elemento observado, quer se insira numa descrio
presente, quer reflicta, como nos casos que analisamos, episdios passados que identifi-
cam uma comunidade. Assim, a representao () a traduo mental de uma reali-
dade exterior que se percepcionou e que vai ser evocada oralmente, por escrito, por
um cone estando ausente (Horta, 1995: 181). Como ser evidente, lidamos com um
11 Aproveito esta ocasio para afirmar que o objectivo desta dissertao era bastante mais ambicioso.
Uma vez que procurei ver a questo de Tartessos no campo das representaes, seria interessante utilizar
alguns elementos de anlise aplicados aos estudos africanos neste mesmo contexto. No foi, contudo,
possvel abarcar este volume de informao, pelo que me contentei em apresentar apenas alguns aspectos
que me parecem importantes e que podem fazer parte de trabalhos futuros.
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aparato conceptual grego que faz parte da sua histria da mentalidade e que se reflecte
nas percepes mas, de qualquer modo, podem representar prticas (gregas ou fencias),
bem como interesses econmicos e, essencialmente, a grelha cultural que preside ao
discurso.
Por isso, devo deixar bem claro que analisar as representaes no significa anali-
sar as sociedades em si mesmas.
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
15
II As Fontes
A definio de processos sociais, econmicos e polticos feita, em boa medida, a
partir da leitura da cultura material12, colmatando as limitaes das fontes escritas. Esta
vertente ganhou um peso significativo na tentativa de localizao, distribuio, carcter
e cronologia do que se apelidou Cultura Tartssica. Escolhendo-se fsseis directo-
res em termos materiais (tipologia das necrpoles e cermicas) e lingusticos (topon-
mia), foi possvel, como vimos, afirmar que Tartessos era um fenmeno econmico e
social que se iniciou antes da Expanso Fencia, contrariando a ideia de que no
Perodo Orientalizante que se encontra a gnese deste processo13. Por isso, o objecto
central de um recente e muito bem fundamentado trabalho de M. Torres Ortiz (2002) o
registo material. Nota-se o pouco peso que as fontes escritas, consideradas no sem
razo como insuficientes na definio de Tartessos no seu conjunto, tm na sua anlise
(cf. Idem, 2002, p.12-3 e 20).
O surgimento de um topnimo referente Pennsula Ibrica (Tari, Tartessos),
ainda que analisado de modo breve nesta dissertao, leva a que se lhe conceda alguma
ateno. Isto porque permite uma aproximao possibilidade de transmisso fencia e
posterior reconhecimento grego, bem como localizao da rea Tartssica, pela desig-
nao posterior de Turdetnia. Esta ltima considerao serviu de base para a anlise
dos topnimos tartssicos na sua distribuio, configurando relaes centro-periferia
(Torres Ortiz, 2002; 2005). Outra vertente de anlise incide sobre os topnimos gregos
ou indgenas/ fencios helenizados que foram criados e/ ou adaptados, perdurando (ou
no) com os Romanos (Moret, 2006; Rodrguez Adrados, 2000 e 2001a)14.
12 Entende-se por Cultura Material: cermica, torutica, arquitectura, urbanismo, etc. 13 Apesar de no ser um tema estudado nesta dissertao, a definio deste conceito foi, recentemente,
revista num simpsio realizado em Mrida (Maio de 2003), intitulado El Periodo Orientalizante (Celesti-
no Prez e Jimnez vila, eds., 2005, p.117 248). Cf. Blzquez, 2002, passim. 14 Queria deixar um pequeno apontamento ao trabalho deste ltimo autor, citando ipsis verbis as suas
ltimas palavras: referindo-se aos topnimos gregos, Adrados afirma que No fueron las armas, ni siquie-
ra el comercio los factores decisivos, sino la superioridad cultural de los griegos, que triunf al final
sobre los fenicios y hubo de ser aceptada por los romanos; y por los indgenas, desde luego. El caso de los
topnimos no es sino uno entre varios (Adrados, 2001a, p.33. Os sublinhados so meus). O campo das
relaes inter-culturais e, neste caso concreto, da transmisso de informaes e de topnimos extre-
mamente permevel introduo de juzos de valor (cultural!) cujos fundamentos evito rotular, mas que
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
16
A Cultura material
A materializao de Tartessos no registo arqueolgico permite colmatar grandes
lacunas nas Fontes Escritas sem, contudo, deixar de levantar alguns problemas. Uma
delas o processo anterior s primeiras referncias escritas ao solo Peninsular e que
aparenta desenvolver-se entre os sculos XI e VI a.C., indicando contactos entre esta
rea, o Mediterrneo e o Atlntico. A localizao, por seu turno, baseia-se nas refern-
cias escritas que situam Tartessos para l das Colunas de Hracles, bem como, conse-
quentemente, na concentrao de alguns materiais na rea da Andaluzia Ocidental.
Assim, a Geografia Tartssica definiu-se por um conjunto de fsseis directores:
Estelas Decoradas do Sudoeste, cermicas com decorao brunida interna e externa
(Torres Ortiz, 1999, p.26 33), estilo Carambolo15 e cermicas pintadas com decorao
orientalizante (tipo Lora del Ro). A distribuio destes materiais levou, por conseguin-
te, a criar uma Periferia (entre o Algarve e a Pennsula de Lisboa, Vale do Genil e
depresses intra-bticas de Ronda e Granada) e um Centro (Andaluzia Ocidental), a
partir do qual se ter desenvolvido um processo de Colonizao entre o Tejo e o Sado
(Torres Ortiz, 2005). A presena de cermicas brunidas externas do Bronze Final, a
tipologia de necrpoles (por exemplo, Senhor dos Mrtires) durante a Idade do Ferro, a
toponmia e a distribuio das Estelas Decoradas do Sudoeste so elementos que contri-
buem para esta definio geogrfica e econmica.
no menos importante a questo da cronologia que marca o incio e o fim deste
fenmeno social, econmico e poltico. Colocam-se, partida, duas hipteses: (1) Tar-
tessos inicia-se com o contacto com populaes fencias, resultando da uma Acultura-
o materializada pelo Perodo Orientalizante Tartssico (Torres Ortiz, 2002, p.15);
(2) Tartessos inicia-se com o Bronze Final Pr-colonial (entre outros, Aubet, 1986,
passim; Plcido, 2002; Torres Ortiz, 2002), materializando-se pelo horizonte das cer-
micas de retcula brunida e pintadas de estilo Carambolo16. Isto leva a admitir que Tar-
em todo o caso so importantes de assinalar, na medida em que destapam alguns princpios que afectam a
leitura da realidade peninsular que, supostamente, se reflectiria em Tartessos. 15 Pellicer, Ruiz Mata, Schubart e Del Amo. Esta tambm a opinio de Torres Ortiz (2002). Ver, no
Anexo B, as figuras 7 a 9, para a distribuio das cermicas citadas. 16 A primeira opinio defendida por Garrido, Ruiz Mata e Schubart, enquanto que a segunda por Aubet,
Del Amo, Arteaga, Balbn, Bendala, Blzquez, Luzn, Pellicer, Tejera, Almagro Gorbea e Torres Ortiz
(2002, p.15-16).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
17
tessos teve incio no Sc. XI a.C. (em cronologia absoluta) com a Metalurgia Atlntica e
com situaes como o Depsito da Ra de Huelva, inscritas no chamado Perodo Proto-
orientalizante do Bronze Final peninsular (Almagro Gorbea, 1989, p.280; sobre esta
questo, cf. supra).
Em relao ao ocaso de Tartessos (Alvar, 1993), a anlise centra-se em torno
do desaparecimento das importaes gregas na regio de Huelva (Cabrera, 2000), que
coincide, cronologicamente, com a conquista da Fcea pelos Persas em 546 a.C. e com
a batalha de Allia (535), bem como com o retrocesso do comrcio fencio a partir da
rendio de Tiro em 573 a.C. e o consequente desaparecimento de algumas colnias no
Ocidente (Aubet, 1994). De acordo com Torres Ortiz, esta cronologia pode ser apontada
para o fim do Orientalizante, explicando assim o retrocesso na produo mineira e na
criao de excedentes agrcolas (2002, p.16). Por outro lado, os modelos tradicionais
colocaram nos Cartagineses o papel de agentes no fim de Tartessos. Esta tese seria
abandonada, considerando-se o esgotamento dos recursos e a incapacidade destas
comunidades para a extraco dos metais mais inacessveis17.
Independentemente de considerarmos que Tartessos anterior presena fencia e
que esta apenas mais uma etapa num processo de longue dure, interessa-nos, para a
leitura das fontes escritas, verificar de que modo seria possvel materializar a construo
do conhecimento grego sobre o Ocidente atravs de achados micnicos em solo penin-
sular, bem como da presena de materiais gregos transportados por Fencios para o
Extremo Ocidente (Fig. 12)18.
Os referidos achados micnicos datam do Sc. XIII a.C. e identificaram-se em
Llanete de los Moros (Montoro, Crdoba), La Cuesta del Negro (Purrullena, Granada),
Gatas (Almera), Coria del Rio e Carmona (Lpez Pardo, 2000, p.13) revelando, para
Mederos, contactos com a Siclia e a Sardenha e, para Martn de la Cruz, a poca de
maior expanso do comrcio micnico. Para vrios autores, entre os quais M. Ruiz
Glvez (2000) e D. Plcido (2002, p. 124 5), estes achados revelam contactos anterio-
res presena fencia e, consequentemente, conduzem considerao de que o espao
para l das Colunas de Hracles era j conhecido no II Milnio, o que se reflectiria, em
boa medida, na imagem mtica do Oceano (Rodrguez Adrados, 2000, p.1-2).
17 Sobre esta discusso: Wagner, 1992, p.8 e 25; Alvar, Martnez Maza e Romero, 1992 e Alvar, 1993. 18 Este aspecto vai reflectir-se na discusso da etimologia tartssica, bem como nos traos de influncia
fencia em Hesodo e Homero, da a importncia que confiro a estes aspectos (cf. infra).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
18
Nesta perspectiva, a presena fencia aproveitaria rotas j conhecidas (Ruiz-
Glvez, 2000, p.11-12), apesar das notcias que colocam o Templo de Gadir (Strab. III
5, 5/ *4.21) num perodo anterior fundao da cidade. Jaime Alvar assinala, contudo,
que o perodo Pr-colonial difcil de definir, o que torna difcil uma relao com
estes achados micnicos (2000). Tal justifica-se pela cronologia dos objectos orientais
mais antigos (Sc. XI IX a.C.)19. Em todo o caso, surgem materiais gregos a partir da
primeira metade do Sc. VIII a.C. (Almagro Gorbea, 1989, p.284), configurando
assim a possibilidade de uma transmisso fencia de informaes sobre o Extremo Oci-
dente a partir dessa cronologia, bem como da formao de uma imagem mtica veicula-
da a partir dos santurios ocidentais (Moreno Arrastio, 2000). Podemos enquadrar, neste
contexto, a grande importncia das viagens de Hracles/ Melqart pelos confins do mun-
do, o que remete para o achado de uma plaquinha de bronze representando o 10 traba-
lho do Heri no Templo de Hera em Samos (Olmos, 1989; Tiverios, 2000, fig. 2; Car-
penter, 1991, p.127, fig. 201; fig. 15).
Este achado, cronologicamente atribudo s ltimas dcadas do Sc. VII, apresen-
ta, para M. Tiverios, uma minuciosa alusin a la ambientacin, algo inusual en el tra-
tamiento iconogrfico del tema en el arte griego, y ms an en esta poca (2000, p.60,
fig. 2), demonstrando uma imagem extica que se relacionaria com a poca da viagem
de Colaios de Samos. No entanto, mais interessante ainda resulta o conjunto de pentes
de marfim identificados no espao onde o navegante smio depositou a sua oferenda.
So pequenos objectos com forma rectangular (c.12 cm de largura e 0,5mm de espessu-
ra) decorados por inciso com animais e monstros, interpretados por Br. Freyer-
Schauenburg como fencio-ocidentais. Esta interpretao conduziria atribuio de um
fabrico no Sudoeste Peninsular, na medida em que se assemelham aos que foram identi-
ficados nas Estelas Decoradas e em Cruz del Negro (Carmona, Sevilla) em termos de
estilo iconogrfico (egiptizante como seria comum na arte fencia) e em termos de
19 A questo da cronologia da presena fencia do Extremo Ocidente ser abordada mais adiante. A pre-
sena fencia pode remontar ao Sc. IX a.C., enquanto que os achados da Ria de Huelva parecem remon-
tar ao sculo anterior, tendo sido interpretados como objectos de prestgio (Almagro-Gorbea, 1989, p.282;
Plcido, 2002, p.126). Esta ltima questo de extrema importncia, na medida em que, como considera
F. Moreno Arrastio (2001, p.100-101), a considerao de que se trata de objectos de prestgio desvaloriza
a sua funcionalidade, sendo o resultado de uma viso social orientada, estritamente, para o consumo. Este
aspecto ser comentado na parte IV na discusso dos esteretipos de riqueza
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
19
execuo da arte (inciso assria?), apesar de utilizarem matria-prima de origem africa-
na. Estes pentes so desconhecidos na rea helnica, chegando a Samos antes de 640
630 a.C., manifestando, a par de aparentes oferendas de barcos, o aumento da importn-
cia destas viagens ao Extremo Ocidente, bem como um certo contedo arqueolgico
viagem de Colaios (Tiverios, 2000, p.57-9) ou, se preferirmos, importncia que estas
viagens tm em memrias como a que Herdoto ter escutado.
Outro achado interessante, oriundo da desembocadura do rio Galiks (Golfo Ter-
naico), o fragmento de asa de uma taa de engobe negro com a inscrio ,
qual tero sido adicionadas, posteriormente, as consoantes / / e // que configuraram o
antropnimo . Este antropnimo dispensa apresentaes na questo de Tar-
tessos, mas importante assinalar que era utilizado por algum desta zona. Curiosamen-
te, tanto um como outro parecem habitar regies ricas em prata (rio Tartessos) e em
ouro (rio Galiks), segundo M. Tiverios (2000, p.63). Nas Costas do Mar Negro, identi-
fica-se tambm um topnimo correspondente ( ), o que demonstra
alguma importncia deste nome, bem como uma relao com o minrio. Voltarei a este
assunto. Em todo o caso, exemplos como este podem indicar, pelo menos em parte, a
circulao de nomes sobre suportes portteis. Esta transmisso pode muito bem aplicar-
se s epgrafes gregas mais antigas da Pennsula Ibrica que, de acordo com E. Gangutia
(1999), serviram como possveis fontes de Hecateu de Mileto no Sc. VI a.C., bem
como, provavelmente, de alguns topnimos peninsulares. Concentremo-nos, ento, no
topnimo/ hidronmico Tartessos, de modo a verificar alguns aspectos relacionados com
a formulao de uma etimologia associada ao Ocidente.
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
20
Alguns aspectos etimolgicos
A anlise etimolgica de Tartessos (), bem como dos componentes
toponmicos e hidronmicos definidos como Tartssicos, um terreno bastante limitado
a priori pelos poucos conhecimentos sobre os elementos lingusticos das comunidades
indgenas do Bronze Final e da Idade do Ferro, bem como pela impossibilidade de deci-
frao da escrita do SW, identificada sobre pedra ou cermica20. Consequentemente,
estas limitaes impossibilitam a utilizao destes textos como fonte histrica (Torres
Ortiz, 2002, p.14 e 21 - 22)21. A investigao debruou-se, maioritariamente, na anlise
da raiz consonntica de Trt-, Trs- e Trd- e nas suas possibilidades de transformao
(Koch, 2003; Garca Moreno, 1989; Villar, 1995; Lpez Ruiz, 2005), complementando
a anlise de prefixos e sufixos presentes nos topnimos da Pennsula Ibrica, referidos
mais adiante.
Tartessos consiste, etimologicamente, num conjunto de consoantes (Trt-) que,
aparentemente, pertenceria a um universo lingustico Indo-Europeu22, que ter sofrido
alteraes ao longo do tempo ao nvel das suas vogais, permitindo variantes como Tart-,
Turt-, Turd- e Tert-, abrindo possibilidades de adaptao lngua das etnias que visita-
ram a Pennsula Ibrica (Tari e Tharion com os Fencios, Tartessos com os Gregos e
Turdetnia no Sc. II a.C. com os Romanos; Strab. III 2, 14/ *4.19). Esta questo leva a
reflectir, essencialmente, sobre o carcter do topnimo original e sobre as hipteses de
transformao que este pode ter tanto na lngua Fencia como na lngua Grega. Se con-
siderarmos, tal como Villar (1995), que a frmula original seria Tartis, estaramos na
presena de um hidronmico (pela presena do sufixo is) que ter sido helenizado em
20 Parte desta discusso merece um breve apontamento. A cronologia desta escrita foi situada no Bronze
Final, isto , no Sc. XI a.C., por M. Ruiz Glvez (2000), enquanto que A. Arruda, partindo da cronolo-
gia de alguns stios arqueolgicos do Concelho de Ourique, situa estas estelas numa fase mais tardia que
incide sobre os Scs. VI V a.C (2001). Numa tese bastante recente, M. Vzquez Hoys (2008) introduz
uma ideia inovadora e arriscada: os Peninsulares ensinaram os Fencios a escrever, detendo a escrita mui-
to antes da sua chegada. Dito de outro modo, prope uma teoria de Ex-Ocidente Lux. 21 Os trabalhos de J. Goody destacam a importncia da escrita na organizao das estruturas de poder em
termos de comrcio e administrao (Goody, 1986, p.67ss; Ruiz Glvez, 2000; Torres Ortiz, 2002, p.21-
22). 22 Ou mesmo, na opinio de outros autores, paleoindo-europeu (Rodrguez Adrados, 2000, p.6).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
21
referncias como a de Estescoro (PMG 184; Strab. III 2, 11/ *4.17), com a substituio
de is por ssos23. Por sua vez, os derivados de Tar- e Tur- identificam-se ao longo da
Europa e, em particular, na Pennsula Ibrica (Fig. 7).
tambm provvel que na transio entre o II e o I Milnio se tenha registado
uma adaptao de /rti/ a /ri/ devido presena e /i/ junto de /t/, configurando assim o
termo Tari (Villar, 1995), cujas interpretaes e tradues podem variar (Lpez Ruiz,
2005)24. C. Gordon (1978, apud Lpez Ruiz, 2005) traduz Tari por mar, aduzindo a
sua associao ao vermelho e ao vinho (tal como o vinhoso ponto em Il. XXIII, 316),
j que poderia derivar do Copta Trore (com raiz tr- tambm presente no Hebraico
tr), bem como do ugartico Trt e Mrt. J.P. Brown (1968) salienta que uma inscrio
pnica num anel de ouro apresenta uma dedicatria a Mlk-trt, por parte dos habitan-
tes de Gadir (l gdr)25, o que indica o uso da partcula Trt numa inscrio fencia.
Antes de Gordon, Allbright retoma a teoria de Gesenius, e prope, em 1941, a
existncia de um emprstimo do acdico r, traduzido por fundio. Estaramos, com
isto, perante uma referncia ao Rio tinto e/ ou fundio de metal? Veremos que, em
alguns topnimos peninsulares helenizados, existem referncias aos recursos mineiros
(para alm de outros) ou a caractersticas geogrficas, o que poderia, indirectamente,
validar esta tese. Por sua vez, para M. Koch (2003) e Ju. B. Tsirkin (apud Lpez Ruiz,
2005), Tari seria a adaptao de um topnimo indgena, podendo muito bem referir-
se, nos textos veterotestamentrios, ao confim ocidental do mundo habitado (ex: *5.4)26,
integrando assim a Pennsula Ibrica no quadro de outras possveis localizaes27.
23 Polbio (III 24, 2; 4; 32, 9) menciona tambm um topnimo Tarseion e um etnnimo Therstai (Koch,
2003, p.176-185) no contexto do segundo tratado romano cartagins de 226 a.C.. De acordo com P.
Moret, o autor no se refere Pennsula Ibrica, sendo mais provvel a sua localizao no Norte de frica
ou na Sardenha. Therstai pode ter relao com um antropnimo Thersits identificado em Ilada (II,
112), um opositor de Odisseu e Aquiles (para este personagem, cf. Thalmann, 1988). De qualquer modo,
segundo Villar (1995, p.244 5) trata-se de uma helenizao de um termo pnico. 24 (1) Nome de lugar; (2) Barco de Tari, tal como os Barcos de Biblos (c. 2160 1788 a.C.), cuja
designao se refere s viagens que estas embarcaes realizam; (3) Pedra preciosa; (4) Antropnimo. 25 In: Donner e Rllig, 1962 1964, n 71 (apud Brown, 1968, p.47). Existem edies mais recentes deste
trabalho, citando-se aqui a edio consultada por Brown. 26 Lipinski assinala que pode haver uma referncia a Tiro e aos Fencios que estavam sob o seu domnio,
podendo tambm destinar-se a enaltecer o poder de Assarhadon, dando-lhe um sentido ecumnico (cf.
Koch, 2003, p.167 175; Lpez Ruiz, 2005; Bravo Jimnez, 2005). 27 Mar Negro, ndia, Cartago, frica, Tarso e Etrria (Alvar, 1982; Lpez Ruiz, 2005).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
22
Outro aspecto que suscita alguma curiosidade a meno de T. Como se
pode observar primeira vista, neste termo est presente uma raiz Trt-, que parece coin-
cidir com e, consequentemente, com o extremo occidental do mundo habita-
do (Strab. III 2, 12/*4.18; Vara, 1982). Tratando-se, ou no, de uma palatizao de
Tari (Koch, 2003; Lpez Ruiz, 2005), o que parece evidente a referncia a um terri-
trio distante com uma base etimolgica comum. Admitindo a possibilidade de uma
adaptao a um topnimo indgena, tambm a paisagem brumosa do Trtaro, referida
em Hesodo (Theog. 119ss; 722ss; 820ss.) e nos Poemas Homricos (Il. VIII, 477 481/
*2.3), teria essa raiz, tanto etimolgica como ideolgica. Estaramos perante a possibili-
dade de que o sentido etimolgico de Extremo Ocidente, nas suas paisagens da morte,
tenha como base uma referncia ao mundo peninsular? J. Vara salienta tambm que
topnimos como / (denominaes de populaes e lugares da Trcia e da
Ctia) tinham variantes como (Cidade na Trcia), o que poderia, eventualmen-
te, contribuir para colocar a hiptese de uma variao de sufixos sobre um prefixo
comum, com a alterao da segunda vogal // para // e, consequentemente, de
para -.
Estes aspectos tm a sua importncia na anlise de mecanismos de transmisso,
mas por agora interessa continuar a discusso sobre os topnimos Trt-, na medida em
que, a partir do princpio do Sculo II a.C., so identificados na Andaluzia Ocidental
topnimos e etnnimos com esta raiz. Artemidoro de feso28 ter tido acesso a um
topnimo reconhecido nas Campanhas de Cato em 192 a.C. (Turta), que perdurou em
detrimento de Tartis e que ter dado origem, atravs da raiz Turd- veiculada por Tito
Lvio, designao de Turdetnia (cf. Villar, 1995). A possibilidade da existncia de
variantes ao nvel da primeira vogal (/a/, /e/ e /u/), bem como da terceira consoante (/t/,
/d/)29, coloca a regio da Turdetnia no papel de sucessora da Cultura Tartssica (Garca
Moreno, 1989; Villar, 1995), o que leva a crer, por conseguinte, que o hidronmico Tar-
28 Em 1998, C. Gallazzi e Brbel Kramer publicaram Artemidor im Zeichensaal. Eine Paryrusrolle mit
Text, Landkarte un Skizenbchern (APF), onde apresentam a descoberta de um papiro de Artemidoro na
parte que se refere Hispnia. Contudo, apenas se edita um pequeno fragmento que pouco ou nada altera
o trabalho de R. Stiehle, publicado em 1856 (Der Geograph Artemidoros von Ephesos, Philologus, p.
193 244), no qual se apresentam alguns fragmentos sobre a Pennsula Ibrica (fr. 7 a 36). 29 Variante que, por sua vez, pode ser identificada na relao entre o antropnimo Odacis/ topnimo Odu-
cia (Lora del Rio) com Otakii das moedas de Obulco (Untermann; Faria: Torres Ortiz, 2005, p.196).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
23
tessos (veiculado por Estescoro) seja uma variao de Tartis que, mais tarde, se desig-
nou como Baetis (Guadalquivir), dando o nome Btica (*4.22).
Consequentemente, estas premissas colocam Tartessos na Andaluzia Ocidental.
Outros argumentos contribuem para a defesa desta tese, tanto ao nvel da antroponmia,
como ao nvel da toponmia (Torres Ortiz, 2002; 2005). Quanto a esta ltima, identifi-
cam-se na regio turdetana topnimos cujas componentes no se enquadram nem na
matriz Indo-Europeia nem na Ibrica. Designaes com prefixo em Ip- e Ob- e sufixo
em urgi (Rodrguez Adrados, 2000, p.6), ippo, -oba e uba (Untermann, De Hoz,
Gorrochategui e Villar, apud Torres Ortiz, 2002, p.15; 2005; Fig. 8)30, permitem, jun-
tamente com a distribuio dos fsseis directores da Cultura Material Tartssica, defi-
nir a extenso e as esferas de interaco da regio andaluza (Torres Ortiz, 2002). Permi-
tem tambm propor, utilizando os topnimos em ipo, a colonizao tartssica da zona
inter-fluvial do Tejo e do Sado (id. 2005, p.195 6). No entanto, de salientar a pouca
importncia que a distribuio dos topnimos em Trt- tm nesta linha de argumentao.
Observando a fig. 7, verifica-se que a distribuio dos nomes em Tart- e Turt- no se
restringe Andaluzia Ocidental, nem mesmo faixa que se considera como a periferia
Tartssica. Contudo, no quero alongar-me por este caminho, limitando-me apenas a
deixar nestas linhas uma pequena dvida sobre esta distribuio.
Outros topnimos surgem com o avano da Colonizao grega, com as navega-
es e o comrcio. Havia, para R. Adrados (2000, p.6), trs sadas: o aceptar los nom-
bres indgenas; o adaptarlos al griego; o poner nombres griegos, aunque slo fuera para
usarlos ellos, otras veces para imponerlos (en las colonias sobre todo). En una obra
como la Ora Maritima o en el mismo Hecateo hay de todo esto: y con frecuencia es
muy difcil la interpretacin. A base destes topnimos pode ser um fenmeno de
duplicao (Gangutia Elcegui, 1999; Moret, 2006, fig.2 e p.49-50), que nem sempre
fcil de rastrear no Ocidente, pelo desconhecimento da implantao de alguns deles.
Pode tambm ser um fenmeno de criao de novos nomes em grego, entre os quais se
contam os topnimos com terminao em -oussa31, em parte relacionados, tal como
30 Para outros autores, os topnimos em uba, -oba,- ippo e urgi so Indo-europeus (Rodrguez Adrados,
2000, 6). Porm, para Villar, -ippo pode ter uma origem minorasitica (Torres Ortiz, 2002, p.42). 31 Para uma enumerao desses topnimos gregos (para alm das tradues e adaptaes), cf. a lista de
Rodrguez Adrados (2000 e 2001a), destacando-se, para o nosso caso, , introduzido por
Estrabo (III 2, 11) referindo-se passagem de Estescoro onde se mencionam as fontes do Guadalquivir
(), e Erythia, a ilha de Grion (Ilha Vermelha) mencionada por Hesodo (Theog. 982).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
24
outros, com a descrio dos recursos disponveis ou caractersticas geogrficas destac-
veis; os topnimos podem ser, igualmente, relacionados com um fenmeno de eponi-
mao de um heri ou de quem chegou a estes lugares (Gangutia Elcegui, 1999; Rodr-
guez Adrados, 2000, p.10). No caso de , tratar-se-ia, ento, de uma adapta-
o de um nome ao Grego, com a introduo de - sobre um topnimo/ hidronmi-
co de raiz Trt-.
O que quero destacar neste captulo dedicado a questes etimolgicas a impor-
tncia que tem a Representao de terras distantes, em parte associada aos Mitos que
referem viagens remotas aos confins do mundo (que, pouco a pouco, ia sendo desenha-
do no imaginrio grego). Para se tornar inteligvel, o desenho deste mundo faz-se ora
atravs da referncia aos recursos, ora atravs da readaptao de mitos, ora de nomes
trazidos de outros lados, nomeadamente da sia Menor. bvio que o papel das nave-
gaes para esta construo, mesmo condiderando o pouco crdito conferido aos que
viajavam por mar e aos Gregos do Ocidente (Moret, 2006, p.41), foi fundamental, regis-
tando-se ecos de terras distantes habitadas por monstros ou por homens extraordinrios
que se manifestavam, sobretudo, nos lugares de origem dos viajantes e dos colonos.
Assim, os relatos de Hesodo e dos Poemas Homricos parecem ter alguma correspon-
dncia com as supostas viagens micnicas a estes confins, contribuindo em boa medida
para represent-las em vrias tradies orais (Canales Cerisola, 2004, p.38). Outro tanto
deve ser dito das viagens fencias, que sem dvida tambm contribuiram para a constru-
o do Ocidente enquanto espao fantstico e enquanto fonte de riqueza.
Como o objecto central do trabalho , precisamente, este, creio que vale a pena
entrar agora no campo da anlise das fontes escritas escolhidas para enquadrar a questo
de Tartessos enquanto fenmeno de representao e enquanto fenmeno de (re)criao
de uma paisagem ocidental e limtrofe. Em todo o caso, podemos adiantar, que notria
a importncia conferida a estas viagens na poesia. tambm importante assinalar vrias
questes que se prendem com estas fontes, para que estas se tornem mais compreens-
veis e para que delas se possa fazer uma leitura mais crtica dentro das limitaes, natu-
ralmente, impostas
A anlise das fontes escritas no deixa, tambm, de ser problemtica. Estes
documentos fornecem informaes que devem ser enquadradas na sociedade que as
Sobre a questo dos topnimos em -oussa, cf. Schulten, 1945, p.90-2; Moret, 2006, p.45-9 e Canales
Cerisola, 2004, p.133 7.
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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(re)produz, bem como no prprio contexto na construo da obra. Neste sentido, algu-
mas questes que as obras analisadas permitem colocar novas questes sobre os excer-
tos escolhidos para a sua anlise. Estando consciente, claro, que o que muda o nosso
olhar e que nos vamos demorar em certas frases e deslizar por outras sem as ver
Hesodo
Para alguns autores antigos, Hesodo anterior a Homero, tendo vivido antes da
Olimpada de 776 (i.., entre 1100 e 850 a.C.)32. A crtica mais recente tem, contudo,
invertido esta ordem. Por exemplo, para alm de no se encontrar entre os Poetas picos
(Finley, 1982), Hesodo introduz elementos que poderiam considerar-se como autobio-
grficos (Osborne, 1998, p.172 3), o que, em ltima anlise, na opinio de Loureno
(2006, p.35 6), corresponde a uma fase seguinte a Homero, que em nenhum momento
se identifica como autor. Esta necessidade de identificao levou a que, em muitos
casos, e o nome de Hesodo no ser concerteza uma excepo, muitos poemas anni-
mos tenham sido atribudos a um determinado autor.
Em termos cronolgicos, salienta-se a apresentao de pontos de vista que seriam
contemporneos da Idade do Ferro dos Sculos VIII e VII a.C. (Lesky, 1995; Finley,
1982), o que se enquadraria na referncia de Trab. 653 659 (*1.5), em que o autor
alude aos Jogos Fnebres em honra de Anfidamante de Clcis, nos quais ganhou um
prmio. Este personagem estar, de acordo com referncias posteriores (Plutarco, Mora-
lia, 153 e-f), relacionado com a Guerra Lelantina (cf. Tucdides I 15, 3), cronologica-
mente localizada em torno de 700 a.C., quer pelas tcticas aplicadas, quer mesmo pelas
supostas consequncias arqueolgicas do conflito (Osborne, 1998, p.176 177)33.
Tomando em linha de conta a introduo do Alfabeto na rea helnica, muitos autores
afirmam que esta no se deu antes do Sculo VIII a.C., o que nos remete, uma vez mais,
32 De acordo com o Mrmore Prio (c. 264-263 a.C.: Canales Cerisola, 2004, 33, n. 4), Herdoto II, 53/
*3.6; ver clculos em Taciano I, 31: Bernal 1: 100, n.58). De facto, Herdoto refere que os autores citados
so anteriores a si, pelo menos, quatrocentos anos, enumerando, por ordem, Hesodo e, depois, Homero,
sem discutir quem anterior e quem posterior; Osborne (1998, p.93) considera tambm que Hesodo
ter vivido pela mesma poca ou um pouco antes de Homero. 33 A. Martn Snchez e M. A. Martn Snchez salientam, contudo, que Plutarco considera que os versos
654 5 so espreos e que, de acordo com a traduo de Mazon, h uma aluso ao duelo entre Hesodo
e Homero (Trad. de Trabalhos e Dias, 1998, p.106, n. 104).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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para c. 700 a.C.. Contudo, Martin Bernal recua muito mais esta cronologia. Na sua opi-
nio, o Alfabeto fora introduzido na Grcia em torno de 1400 a.C. e o auge da expanso
Fencia deu-se entre 1000 e 850 a.C. (Herdoto V, 58/ *3.20), colocando assim Hesodo
no Sculo X.
Os Poemas hesidicos, em particular Teogonia, apresentam um conjunto de ele-
mentos que permitem relacion-los com tradies literrias externas, isto , orientais e
egpcias34, provavelmente resultantes de colonizaes mais antigas (Bernal 1, p.100
102, n. 59 e 62). Do ponto de vista cronolgico, tais tradies podem remontar ao III
Milnio a.C., havendo a possibilidade de variantes em poca Micnica, na opinio de
Walcolt (Bernal 1, p.101), bem como de uma transmisso fencia (de onde procedia o
vinho favorito de Hesodo), enquadrada na perspectiva das tradies do I Milnio a.C.;
por outro lado, as Teogonias criadas em torno de Zeus podem ter mais que ver com
Amon do que com Marduk, o que remeteria para uma transmisso no II Milnio a.C.
(Bernal 1, p.102, n. 68). Teogonia parece ser, assim, um produto do encontro de tradi-
es e civilizaes (egpcia, fencia, babilnica, hurrita, hitita, indo-europeia, etc.), a
julgar pela quantidade de traos comuns (Martn Snchez e Martn Snchez, 2000,
p.18), cujas origens no so fceis de definir. O mesmo se passa com Os Trabalhos e os
Dias, em que encontramos no passo do Mito das Idades um conjunto importante de
teorias que procuram definir a sua origem.
Os Trabalhos e os Dias pode ser considerada como uma obra que apresenta um
Hino a Zeus (que coloca na primeira pessoa o autor e na segunda o seu irmo Perses) no
contexto de uma disputa pela herana deixada pelo pai do Poeta. Atravs deste poema
verificamos a existncia de um interesse especfico pelo trabalho humano e pela justia
distribuda por Zeus entre os lderes. Em linhas gerais, Trabalhos e Dias a colocao
da ideologia de Teogonia a um nvel quotidiano, num contexto poltico em que so os
Basilei que julgam casos como este que ope o Poeta ao seu irmo. Teria sido a deciso
daqueles tomada em prol de Perses devido a um suborno que inspirou Hesodo (ou
o que emite a voz) a compor este poema35. O Mito de Prometeu acaba, assim, por ser
34 Um interessante estudo publicado recentemente analisa as relaes entre Hesodo e as tradies orien-
tais, bem como com os textos rficos (Lpez Ruiz, 2006). Veremos tambm, mais adiante, a relao que
as tradies externas podem manter com em termos lingusticos e ideolgicos. 35 O Poema est dividido em trs partes: (1) Justia (vv. 1 382): Zeus e os humildes mortais, abrindo
caminho para a discusso sobre a boa e a m discrdia entre os homens, a injustia de Perses, a explica-
o do porqu dos mortais serem obrigados a trabalhar e a necessidade de trabalhar; (2) Trabalho (vv.
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enquadrado no Poema como veculo explicativo da condio humana em que viviam
Hesodo e os seus prximos: por castigo de Zeus, o Homem foi obrigado a trabalhar
para sobreviver (Trab. 42 105; Osborne, 1998, p.172 174; Brown, 1998, p.388).
Para alm disso, Hesodo Habitava Ascra (m no Inverno, terrvel no Vero, e nunca
boa: Trab. 638 640) e, se atendermos ao seu discurso, os seus lderes no eram jus-
tos. Justia e Prosperidade agrcola juntam-se, assim, em dois mundos opostos: por um
lado, o dos homens de Ouro e, por outro, , onde vivem alguns heris.
Estes mundos, pelo que o Mito das Idades d a entender, so o oposto do mundo da
Idade do Ferro em que vive Hesodo.
Para este trabalho, o texto de Hesodo importante para procurar compreender o
que estaria por detrs da construo do Outro, em geral, e da construo de persona-
gens como Grion ou Argantnio, em particular. A relao que a cronologia da obra
mantm com a colonizao fencia um elemento de extrema importncia, sobretudo
porque pode conter ecos de uma transmisso mais antiga que voltamos a encontrar em
Homero. A anlise desta transmisso poderia, em ltima anlise, relacionar-se com uma
ideologia Fencia criada em torno do conhecimento do Extremo Ocidente, que logo
seria transmitida para outras comunidades com as quais contactaram. Esta transmisso
(sobretudo, seno exclusivamente, oral) criaria, assim, as bases para a construo de
paisagens imaginrias distantes, que so apresentadas nos vrios relatos como espaos
que so, em tudo, diferentes dos lugares onde se criam os poemas, e at mesmo melho-
res. Note-se que estas descries enquadram contextos onde as sociedades sentem bas-
tantes dificuldades para sobreviver, ou mesmo em contextos de violncia (saques, inva-
ses, etc.), como seria o mundo prximo de Hesodo. E, por definio, no necessrio
que as utopias (ou o mito da cidade ideal) criadas nestes contextos tenham uma
localizao geogrfica (Lens Tuero e Campos Daroca, 2000; Pinheiro, 2006).
383 694): calendrio dos trabalhos agrcolas, a boa altura para a navegao, ou seja, o know how de
trabalhar bem; (3) Dias (vv. 695 828): conselhos relacionados com o calendrio (cf. Osborne, 1998,
p.174; Martn Snchez e Martn Snchez, 1998, p.72).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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Homero
Como referi, ao contrrio de Hesodo, Homero parece ser um poeta annimo que,
semelhana do primeiro, tinha grande conscincia dos valores morais e polticos
(Osborne, 1998, p.189; Dalby, 2006, p.14) e ter feito parte da transio da oralidade
para a escrita, fixando assim um conjunto de tradies anteriores (W.G. Forrest, in Ber-
nal, 1, p.100, n. 59). Estes textos foram, com muita probabilidade, mais escutados que
lidos (Loureno, 2006, p.37), embora possamos admitir que as convenes mtricas, as
frmulas lingusticas, bem como a associao de objectos antigos a algumas cenas (cf.
Il. II, 45; VII, 219; XI, 485; XVII, 128), permitiriam a perdurao destes poemas na
oralidade sem que, para isso, fosse necessrio um registo escrito (West, 1988; Osborne,
1998, p.168 169; Dalby, 2006, p.3-30; Moreno Arrastio, 2007, p.145).
Um primeiro problema que surge ao abordar a questo homrica a identidade
do(s) seu(s) autor(es). Nos finais do Sculo XVIII e princpios do Sc. XIX, intelectuais
como Friedich A. Wolf consideraram que os Poemas Homricos no podiam ser obra de
um s autor analfabeto, o que levou a pensar que se tratava de um conjunto de poetas
que representavam o Volk grego, bem como a infncia da raa europeia (Bernal 1,
p.264 265, n. 3 e 4). A ideia de que Homero um autor annimo assenta sobre trs
premissas: (1) o seu nome pode ser o resultado de vrios significados relacionados no
s com a profisso o cantor harmonioso como tambm com os locais onde os
poemas eram recitados Santurio de Zeus Homrio. (2) Estes versos foram transmiti-
dos por uma congregao de poetas os Homridas que se consideravam descenden-
tes de um poeta cego identificado com Demdoco de Esquria, embora dificilmente se
admita que se trata de uma famlia (West, 1999, apud Loureno, 2006, p.34 e 39 40;
Pinheiro, 2005, fig. 5; cf fig. 20). (3) Na poesia oral, o nome do autor seria dispensvel,
o que se alterou, posteriormente, com a repulsa pelo anonimato, da a atribuio de um
conjunto de tradies dispersas e annimas a um Homero (Loureno, 2006, p.35
37). Com isto, assiste-se criao de cerca de dez textos que procuram reconstruir a sua
biografia36.
36 (1) Certame, texto annimo transmitido num manuscrito florentino do Sc. XIV; (2) Sobre as origens
de Homero, Cronologia e Vida, atribuda a Herdoto e escrita, provavelmente, entre 50 e 150 d.C. (por
Hermgenes de Esmirna ou Ceflion de Grgito); (3 e 4) duas obras atribudas a Plutarco, intituladas Da
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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A cronologia um problema derivado de toda esta incerteza. Foram muitas as ten-
tativas de aproximao neste sentido. A afirmao de Pausnias (IX 30, 3/ *4.5) um
bom exemplo, o que no se reflecte em Herdoto (II, 53/ *3.6). Partindo deste ltimo,
Bernal defende que Homero ou um annimo pertence ao Sculo IX a.C. (1, p.101
102), baseando-se na referncia a objectos fencios em Homero (Il. XXIII, 740 9:
*2.5; Od. IV, 611 619/ XV 113 119: *2.13), bem como na presena de Fencios
atestada no Egeu em Odisseia e relacionando-os , uma vez mais, com a Expanso (cf.
supra). Esta cronologia significa um recuo nas datas apontadas por outros autores (Fin-
ley, 1982), que se baseiam na mesma discusso da introduo do Alfabeto no Sculo
VIII, aduzindo que o relato de Odisseu se localiza no Ocidente do Mundo Grego, e no
seria possvel antes da Colonizao do Sul de Itlia e da Siclia o conhecimento de
outros espaos. Isto pressupe que Homero pertenceria aos Scs. VIII VII a.C. (Fin-
ley, 1982; Loureno, 2006, p.33), sem ponderar a hiptese de uma possvel transmisso
oral fencia sobre os seus conhecimentos do Mediterrneo Ocidental, (Bernal 1, p.101;
Plcido, 2002, p.133-4). Esta hiptese, como vimos, pode ser equacionada a partir do
reconhecimento de materiais gregos entre o esplio fencio, bem como dos j referidos
achados micnicos.
Em todo o caso, haveria que acrescentar cronologia Homrica um outro argu-
mento, exposto anteriormente por Wolf: Odisseia ter sido, definitivamente, escrita em
522 a.C. (a par de Ilada), por ordem de Hiparco, fixando-se os elementos hoje conheci-
dos da obra, acrescentando-se outros (p.e., a Telemaquia). Assim, Odisseia seria um
poema do Sc. VI, sendo posterior a Ilada (West, Works and Days, 1978, e W. Burkert,
in Loureno, 2006, p.35), o que pode levar a ter em linha de conta os vrios acrescentos
que estes poemas sofreram37. A paternidade de Homero ter surgido, assim, no Sculo
vida e Poesia de Homero; (5) Vida de Homero, na Crestomania de Prclo: o nico que nega a cegueira
de Homero e a competio com Hesodo; (6) Suda (Sc. X d.C.), redigido a partir do ndice de Autores
Ilustres, de Hesquio de Mileto (Sc. VI d.C.); (7 10) informaes sobre Homero ou dos esclios a
Homero e comentadores annimos, na Vita Romano e na Vita Scolarienses (Pinheiro, 2005, p.118 121). 37 O acrescento de versos aos poemas confirmado por Pndaro (Nem. II, 1/*4.3), onde o autor afirma que
os Homridas so poetas de versos cosidos, expresso que tem paralelos no campo semntico de rap-
sodos que, seguramente, recitavam estes poemas (Loureno, 2006, p.38 39).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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VI, enquanto que no Sculo seguinte surge a associao do seu nome a Ilada e Odis-
seia (Herdoto II, 116/ *3.7; IV, 29)38.
Desde incio todos aprenderam de Homero (Xenfanes, Fr. 10 D-K; Pereira,
1998, p.181; Loureno, 2006, p.37). Pisstrato quem, nos finais do Sculo anterior,
impe a recitao obrigatria destes poemas nas Panateneias, segundo Pausnias.
Acrescenta-se que Pisstrato reuniu os poemas de Homero, que andavam dispersos e
eram lembrados pela tradio, uns nuns lugares, outros noutros (Pausnias 26, 13/
*4.6, o itlico meu). Esta atitude demonstra, essencialmente, que o contedo destes
poemas (orais?) tinha uma grande aceitao na audincia destes festivais de poesia, da
a redaco de um texto oficial ateniense, e indica tambm que os tais poemas dispersos
por vrias regies podem ter algumas variantes com origens mais antigas que o Sculo
VI a.C.
Essas origens podem ser egpcias ou mesmo orientais, na medida em que poss-
vel estabelecer alguns paralelismos entre estas tradies, nomeadamente as frmulas do
discurso (cf. West, 1988; Galn, 2001) e a descrio dos confins do mundo (Plcido,
2002). Contudo, estas hipteses apenas foram colocadas ou descartadas consoante o
ambiente poltico e intelectual que revisitou as fontes homricas. Por exemplo, Wolf e
Karl rtfried Mller pertenceram a um contexto intelectual que considerava o Grego
como Filsofo, artista e racialmente puro, o que levou ao afastamento de hipteses
colocadas anteriormente sobre essas influncias. Mais tarde, no princpio do Sculo XX,
Victor Brard publica Les phniciens et lOdysse (1902 3) e Les Navigations
dUlysse (1917). Este autor procura as influncias orientais no texto homrico, chegan-
do concluso de que Odisseia era o resultado de uma adaptao grega de um priplo
semita, devido utilizao de linguagem nutica (Bernal 1, p.344-9; Tortosa, 2003: 37
39). Recentemente, possvel pensar que Odisseia pode apresentar, tal como o texto de
Hesiodo, ligaes a outras produes literrias. Por exemplo, J.M. Galn apresentou
alguns aspectos formais que importa reter e dos quais se destacam, para esta dissertao,
a ddiva, a hospitalidade, as paisagens escatolgicas e o desejo do regresso (*5.1
5.3). Todos estes elementos, presentes no Poema Homrico, podem relacionar-se com
outros textos egpcios e orientais (Galn, 2001, passim), bem como com o Livro dos
38 Os excertos citados correspondem a duas situaes distintas: a primeira refere o regresso de Alexandre
e Helena e o segundo associa um excerto de Odisseia (IV, 85: Na Lbia, onde os cordeiros nascem j
com cornos) aos bovinos sem cornos de Ctia, interpretando o crescimento dos cornos de acordo com o
clima frio ou quente (segundo Schrader, 2000). Ver tambm Hrdr. III, 32 (*3.14)
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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Mortos, na opinio de Bernal (1, p.101; 2, p.85 88), pela imagem das ilhas ocidentais
(cf. infra).
A este panorama acrescenta-se um aspecto fundamental que estrutura toda a Odis-
seia: o desejo de regresso de um protagonista que, terminada a guerra de Tria, procura,
durante dez anos, a chegada a casa para junto dos seus39. No caminho, encontra-se com
uma srie de seres, uns menos humanos que outros, que lhe permitem regressar com um
relato para contar. E que belo relato. Independentemente de se tratar, ou no, de um
conjunto de versos cosidos com uma cronologia discutvel, importante assinalar que
esta obra apenas um relato de viagem (Hartog, 2001, p.23). Tratar-se-ia tambm,
semelhana do texto de Hesodo, de um convite reflexo sobre o mundo presente,
apresentando outras (supostas) realidades humanas e divinas que sustentariam a viso
antropolgica do outro e que, grosso modo, distinguem o que grego do que no
(Osborne, 1998, p.178 e 189). Este regresso ou o seu desejo encontra alguns parale-
los com os relatos de viagem egpcios (Sinuhe e O Nufrago: Galn, 2001, *5.2 e *5.3),
na medida em que os seus protagonistas manifestam um desejo extremo de regressar a
casa e, acima de tudo, procuram regressar com qualquer objecto valioso ou um conjunto
de riquezas que justifica e simboliza to grande viagem e uma ausncia to prolongada,
como no caso de Wennamon.
Herdoto
Com o objectivo de registar e preservar os feitos notveis e singulares do
Homem, bem como de explicar as diferenas e as causas dos confrontos entre gregos e
brbaros (I, 1/ *3.1)40, Herdoto desenvolveu uma investigao de grande riqueza etno-
grfica e histrica, deixando para a posteridade duas referncias a Tartessos (I, 163/
*3.2 e IV, 152/ *3.17). Estes excertos devem ser enquadrados no contexto da obra, justi-
ficando a anlise de alguns aspectos que parecem importantes para explicar e discutir a
39 De acordo com M. Bernal (3, p.382), o nome de Odisseu uma construo etimolgica
procedente do verbo egpcio wd3, ao qual se acrescenta o sufixo w/ eus. O correlativo egpcio wdyt, por
seu turno, traduz-se por expedio e viagem. Sobre o nome de , cf. Pucci, 1993. 40 A dicotomia entre Gregos e Brbaros (distintos pela lngua) um aspecto que acompanha toda a obra
de Herdoto. A este respeito, cf. Soares, 2001; Silva, 2000, 2001. Para uma diacronia do conceito, cf.
Dubuisson, 2001.
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
32
posio de Tartessos nas Histrias. Como se sabe, esta paisagem est totalmente fora do
espao geogrfico e, consequentemente, etnogrfico que o historiador analisa. O que
significa que poderamos incluir Tartessos no conjunto das referncias aos confins do
mundo de Herdoto, bem como, no caso particular da viagem de Colaios, no seu exlio
em Samos.
O percurso de vida do autor, bem como o carcter social dos seus informadores
influenciaram, seguramente, a composio da sua obra. A valorizao da viagem como
modo de conhecer o mundo (cf. os comentrios de Herdoto s viagens de Slon I, 30
e Anacrsis IV, 76) ter levado a uma grande curiosidade nutrida pelos costumes
nmoi das vrias comunidades com as quais contactou, directa ou indirectamente41,
da ter dedicado os seus quatro primeiros livros descrio etnogrfica dos povos con-
quistados pelo imperialismo Medo persa. Esta tendncia pode ser rastreada em autores
anteriores a Herdoto, entre eles Hecateu de Mileto42, derivando, em boa medida, do
aumento do conhecimento geogrfico de paisagens mais ocidentais entre os Sculos
VIII e VI a.C. Necessariamente, o discurso acaba por se adaptar curiosidade da
audincia, surgindo novos gneros literrios (Periegsis e Logs) que procuram caracte-
rizar, de acordo com as referncias culturais vigentes (tanto do autor como da sua
audincia), a geografia, a natureza, as comunidades que habitam as regies e, no caso de
Hecateu, a explicao etimolgica dos etnnimos (Gangutia Elcegui, 1999, p.6 9).
A biografia de Herdoto conhecida atravs dos poucos dados que fornece na sua
obra e de excertos de autores posteriores, cuja veracidade pode ser contestada. Calcula-
se que ter nascido entre 484 e 485 a.C. (pouco antes da invaso de Xerxes em 479
41 A postura de Herdoto em relao aos nmoi (adiante / ) encontra-se muito bem exemplificada
em III, 38 (*3.10), numa passagem em que critica a postura de Cambisses em relao a outras culturas. O
argumento pode ter uma origem dlfica, segundo C. Schrader (2000, n. III 201, citando Xenofonte, Mem.
IV 3, 16). Atendendo concluso do excerto, em que Hrdt. refere Pndaro (citado tambm por Plato, em
Grgias, 484b), provvel que o historiador tenha utilizado o termo num sentido errneo, j que
Pndaro se refere, mais precisamente, a Hracles e Grion, utilizando o episdio e o termo no sentido de
Lei (i.., a lei do mais forte). Voltarei a referir este aspecto mais adiante. 42 A este nome podemos juntar outros: Caronte de Lmpsaco, Dionsio de Mileto, Esclax de Carianda,
Helnico de Lesbos (contemporneo ou posterior a Herdoto), Helnico de Lesbos (que escreveu uma
Histria da Prsia, referindo-se aos dos brbaros, ao perodo mtico da Grcia, s origens das
cidades gregas na sia), Xanto, etc. (Soares, 2003, p.16 17; cf. Fowler, 1996). O carcter fragmentrio
da(s) obra(s) de Hecateu no permite tecer grandes consideraes em torno da verdade que o autor
prope no seu promio (fr. 1 Jacoby; Hartog e Casevitz, 1999, p.43/ *4.1).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
33
a.C.) em Halicarnasso43, onde participou, juntamente com a sua famlia, na luta contra a
tirania de Lgdamis, episdio que lhe valeu o exlio em Samos. Regressado de Samos,
iniciou um longo percurso de conhecimento do mundo (454 444 a.C.), viajando pelo
Egipto (c. 449 a.C.: III, 15), Fencia (II, 44/ *3.5), talvez Mesopotmia e Babilnia (I,
178; 181), Ctia (stria, IV, 50, e Olbia, IV, 76), Magna Grcia (IV, 99), Siclia (VII,
165 167) e Cirenaica (onde recolheu informaes sobre a Lbia: IV, 168ss.). Como
afirma em III, 115 (*3.15) e IV, 184 5 (*3.18), no conheceu o Mediterrneo Ociden-
tal. Em 444, participou na fundao de Trios (ordenada por Pricles), onde obteve a
cidadania da cidade e onde acabou de redigir a sua obra, at aos primeiros anos da
Guerra do Peloponeso (VI, 91; VII, 137; 233; IX, 73). Partindo do episdio do assassi-
nato de embaixadores Lacedemnios s mos dos Atenienses (Tucdides, II, 67), a data
da sua morte fixada em 430 a.C. (cf. Schrader, 2000, p.16-21).
A sua estadia em Samos permitiu-lhe recolher um conjunto assinalvel de infor-
maes (III, 44 48 e 49; Immerwahr, 1956-57; Mitchell, 1975; Gmez Espelosn,
1993), quer por smios, quer por Espartanos (III, 55), sobre o passado e sobre os seus
principais protagonistas. Um desses Polcrates foi conhecido para Herdoto atravs
de uma Aristocracia Smia anti-tirania (Schrader, 2000, n.III, 228; Mitchell, 1975, pas-
sim), revelando, por parte do autor, um interesse extraordinrio pelo modo como o Tira-
no se apoderara da ilha (568 567 a.C.), desembaraando-se dos seus dois irmos (III
39 42) e de alguns opositores (III, 44 46 e 49). Converteu tambm Samos numa
potncia naval (III, 39). Este Tirano, segundo testemunho do investigador, acolheu na
sua corte Anacreonte (III, 121; Schrader, 2000, p.XIX; n. III, 623) e, de acordo com
testemunhos posteriores, foi mecenas da Poesia e dos Poetas at 523 a.C., antecedendo
Hiparco na organizao de festivais de poesia onde participaram os Homridas (Lou-
reno, 2006, p.34-5). Este dado liga-se no s recitao dos Poemas Homricos, como
tambm a uma referncia de Anacreonte a Tartessos (Strab. III 2, 14/ *4.19: fr. 361
PMG/ *4.2), o que se poderia traduzir, hipoteticamente, pela introduo de aspectos
picos em relatos smios como o de Colaios. Esta no seria a nica influncia literria
43 Esta cidade denota uma grande confluncia cultural, tnica e lingustica (Schrader, 2000; Soares, 2003,
p.467). Foi fundada por Drios oriundos do Peloponeso, que encontraram a uma populao de origem
Cria, bem como algumas influncias Jnias. O interesse de Herdoto pela cidade, sobretudo por rte-
mis, antepassada do tirano Lgdamis (VII, 99; VIII, 67 69; 87 88 e 101), associa-se a uma descrio
pormenorizada deste local (I, 144 e I, 174 176). Sobre a vida do autor, cf. a introduo geral da traduo
consultada para este trabalho (=Schrader, 2000).
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Tartessos: entre Mitos e Representaes
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do discurso de Herdoto, na medida em que o percurso de vida de Polcrates foi
retransmitido pelo autor com um carcter trgico (cf. Mitchell, 1975).
Herdoto marca, assim, o percurso de uma longa tradio que observamos na pi-
ca (genealogia e relatos de fundao), na especulao cientfica (Geografia e Etnografia)
e na Tragdia (o percurso de vida de vrias personalidades). Retomando o assunto do
Promio (*3.1), as Histrias assinalam o incio de um caminho oposto representao
de um passado mtico habitado por heris, dando protagonismo ao factor humano nos
seus feitos individuais e colectivos, bem como a personagens concretos. Procurando
saber pelo que v e ouve, recolhendo informaes e apresentando o resultado de
uma investigao (estes so os sentidos do termo Histria), Herdoto confirma a
gnese da Historiografia como gnero literrio (Schrader, 2000, p.10-12). Parece fun-
dar, igualmente, o que hoje chamamos de Histria Comparada das Religies, segundo
Burkert (Soares, 2003, p.20-21): procura influncias externas para explicar aspectos da
cultura grega (Egipto: II, 49 52; II, 171; II, 182; VI, 55; Fencia: IV, 147; V, 57-8/
*3.20), compara entre si rituais fnebres (entre Citas e Egpcios, por exemplo, em III,
16), refere as particularidades de vrias comunidades e procura, em vrias ocasies,
apresentar verses diferentes de um mesmo relato, bem como a sua interpretao pes-
soal. Teremos, mais adiante, oportunidade de comentar o seu interesse pelos vrios sis-
temas polticos (cf. Hrdt. III, 80 82/ *3.11).
Os elementos etnogrficos que utiliza na obra, para alm de encerrarem em si uma
mensagem tica, manifestam que o Outro um portador de costumes e no um des-
vio a uma norma preconcebida, o que poderamos, hoje, apelidar de relativismo cultu-
ral. O o cerne da pluralidade cultural, cujos fundamentos religiosos so consi-
derados inviolveis44, no havendo uma norma universal que defina o bom e o mau (p.e.
III, 38/ *3.10; Soares, 2003, p.20 23). Assim, o ou Lei estrutura e funda-
menta todos os comportamentos humanos, tornando-os inteligveis, compreensveis