retornar à história - foucault

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8/20/2019 Retornar à história - Foucault http://slidepdf.com/reader/full/retornar-a-historia-foucault 1/7 97 etornar istória R ektshí heno kaíkí ( Retomar à histó ri a ), P a id e ia , n 11: Mi c h e l F o u c alllL , de feve reiro de 1972 . ps. 45-60. (Co nferênc ia pro nun ciada n aU ni versidade de Ke io em 9 ele outubr o e le 1970. Texto est abelec id o a par tir el e um d acti lograma revist o por M . Foucaul t, ) As d i sc u ssões s ob re as relõ es e ntr e o estruturalismo ea hist ó- ria foram. não s om en te na Fr ança. ma s n a Europa . tamb ém na Amér i ca e ta lvez no Japã o. não se i ao ce rto . num erosa s. densas e fre.enteme n te c onf usas . E elas o for a m por um ce rto núm er o de razões q u e são s im ples d ee num erar. A pr im eir a é qu e nin guém c oncorda com quem quer que s ej as o- br eoq ue é o es tru tur ali s mo. Em s eg undo lu ga r .a pal avr a hi stó- ria . na F rança . s igni fi ca du as c oisa s :a quilo de qu e fal a mo s hís to- riador es eo qu ee l es faze m em sua pr áti ca . At e rceira r azã o. a mai s im por ta nte . é qu e muito s tema s ou pr e ocupações políti ca s atr aves- sara m essa di sc ussã o sobr e as relaçõ e s entre a históri a e o es trutu - ra li s mo . N ã od es e jo d e modo alg um desvincular a di scu ss ão de hoj e do co ntext o políti c o em qu ee la e stá inserida . muito ao con trá- rio. Em uma prim eir a par te. g ostari a de apres ent a r a es tr at ég i a ge - ral . op l ano de bat alha desse debat ee ntr e os estrutur ali st as e se us adve rsár i os a res peito da hi st óri a. A prim eir a c oi sa a c on st atar é qu e o estruturalismo . ao m eno s em s u a fo rm a ini ci al . foi um ae mpr e itada cujo propósito er a of ere- ce r um m étod o ma is pr ec is o e ma is rigoroso à sp e squisas hi st óri - cas . O es tru tur a lismo n ã os e desviou .a om e nos em seu com o. da hi s tóri a: e l e pr etend e u f aze r um a história . e uma históri a mais ri - go r osa es iste mátic a . Tom arei s impl esm e nte três ex e mplos. Po - de-s ec ons idera r qu e o nort e-a meri ca no Boas foi o fund a dor do m é- todo est rutur al em etnolo gía . Or a. o que esse método era par ae l e? l. Bo as (F.) . T h e mi nd oJ prir n iti ue m a no Nova Iorqu e, McMill an. 1911 ; Ra ce . la n g llag e a n d c uüur e , Nova Ior que, McMill an. 19 40. 197 2- Retomar à História 283 Es se nci almente . um a maneir a d ec riti ca r um a det ermin ada form a de históri a etnol ógíca qu ee ra feit ae m su a ép o ca. Ty lor h av ia forn e- c ido o se u mod elo . Es ta hist óri a pre tendi a qu et od as as s oci eda- des hum a nas seguiam um a mesm ac urv a d ee volu çã o. indo da sf or - mas ma is si mp l e s às m ai sc ompl exas. E ssa e voluçã o apena s v aria - ri a de uma soci edad e par a outr a pel a ve loc i da de das tr ansform a- ções . Por outro lado. as grand es form as soc i ais. com o. por exe m- plo . as reg ras de casam e nto ou as téc ni cas ag ríco l as. se ri am n of un - do tipos de espécies biol óg i cas . es ua e xtensão. se u cresc i mento, se u des envolvim e nto. su a di st ribui ção tam bém obedecer iam às mes mas leis e aos m es mo s padr ões qu eoc resc im ent o eo des do- br ame nto das esp éci es bioló gi cas. D eq ualqu er fo rm a, o mod elo qu eT yl or conc ebi a par a a nali sa r o dese nv olvim ento ea his t óri a d as s ociedad e s er a o bioló gi co .Éa Da rwín e de um a maneir a mais ge ral ao evolucíonísmo qu e Tylor se refer i a pa ra relata r a história da ss oci edad es. O problema d e Bo as era lib ert a r om ét odo et nológíco d esse ve lho mod e lo biológico e mo str ar como as s ociedades hum anas . fo s sem el as s impl e s ou compl exas. ob edec iam a ce rt as rel õe s int ern as qu ea sd efiniam em su a es pec ifi cid ad e; esse pro ces so int erno a ca da SO Ciedade é o qu e Bo as c hamava d e a es trutur a de um a so cie- dad e. es trutura cuja análi se dev ia lh e pe rmitir f aze r um a hi stó ri a nã om ais biológica . ma sr ea lm ent e hi stó ri ca d as s oci edades huma - na s. P ara Boas. tratav a-s e. port a nto. n ão abs olut ament e de um a s upr ess ã o do ponto d e vist a hi s tóri co e m prov eit od e um ponto d e vi s ta. di gamos . anti -históri c o ou a- hi s tóri co. Tomei o exemplo d e Bo as. ma s pod eri a t e ru sa do d a mes ma for - ma o e xemplo da lín í stí ca ee sp ec i alm ente od a fonolo gí a. Ant es de Troub etskoi , a fon éti ca his ri ca e nfoca v a a ev olu çã od e um fo - nema ou de um som atr avé s d e um a língua .El a não te ndi aa dar con ta da transform açã o d e todo um esta do de um a lín gu ae m um da do mom ento : o qu e Troub ets ko í pr ete nd e u f aze r com a fon ología 2. Ty lo r E. B. , R e s e ar c lies int o Lh ee arly hi s Lo ry oJ m a nl c in d a nd Lh e d e v e lo p menL oJ c ivi liz aLion. Londr es, J . Mur r ay, 1865 ; Primil . iv e c ultur e : r e s e ar c h es inL o th . e d ev e lo pm e nt oJ mythology. phil oso phy , r e lig io n , a rt a n d c u s t o m , Londres. Murr ay. 1871 . 2 vol .: Anthrop o log y: an intr c du c ti o n L o th e s i u i oJ m a n a nd c iv iliz a t io n . Londre s. McMill an. 188 l. 3 . Tr oubetskoi N. , Z ur all ge m e in e n Th eo ri e d e r io n o loq isc ti e n V o lca ls y sL e me. Trabalhos el oC írcul o Língüistt co d e Pr aga. Pr aga, 192 9. t . 1. ps. 39-67 : Grun â z uq e de r P/1 O T1 0 10gi e. Trab alhos do Cír culo Lingüí sti ca de Praga, Praga , 1939. t . VII P rin c ip es de phonol og ie , trad. Cantíne au, Paris. Kltn cks ieck, 1949).

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8/20/2019 Retornar à história - Foucault

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etornar istória

R ektshí heno kaíkí ( Retomar à história ), P a id e ia , n 11: Mi c h e l F o u c alllL , defeve reiro de 1972 . ps. 45-60. (Conferênc ia pronunciada na Universidade de Keio em9 ele outubro ele 1970. Texto estabelecido a partir el eum d actilograma revisto por M .Foucault, )

As d iscussões s obre as relações e ntre o estruturalismo e a hist ó-ria foram. não s omente na França. mas na Europa . também naAmér ica e ta lvez no Japão. não sei ao certo. num erosa s. densas e

freqü.enteme nte c onfusas. E elas o for am por um certo núm ero derazões q ue são s imples de enum erar.A pr imeira é que ninguém concorda com quem quer que s eja so-

bre o q ue é o es truturalismo. Em s egundo lu gar. a palavra histó-ria . na F rança. significa duas c oisas: aquilo de qu e falam os hísto-riadores e o que e les faze m em sua prática. At erceira r azão. a maisimportante. é que muito s temas ou pr eocupações políti cas atraves-sara m essa discussão sobr e as relações entre a históri a e o estrutu -ralismo. Não desejo de modo algum desvincular a discussão dehoje do co ntext o políti co em qu e e la está inserida . muito ao contrá-rio. Em uma primeira parte. g ostaria de apres entar a estratégia ge -ral. o plano de batalha desse debate entre os estrutur alistas e se usadve rsários a res peito da história.

A primeira coisa a c onstatar é que o estruturalismo . ao m enosem sua fo rma inicial. foi um a empr eitada cujo propósito er a ofere-cer um m étodo mais pr eciso e mais rigoroso às pesquisas hi stóri-cas . O estruturalismo n ão se desviou . ao menos em seu começo. dahistória: e le pretendeu fazer um a história . e uma históri a mais ri-gorosa e s istemática. Tom arei simpl esmente três ex emplos. Po -de-se cons iderar qu e o nort e-americano Boas foi o fund ador do m é-todo estrutur al em etnolo gía . Ora. o que esse método era para e le?

l. Boas (F.). T h e mi nd oJ prir n itiue m a no Nova Iorque, McMill an. 1911 ; Ra ce .

la n g llag e a n d c uüur e , Nova Iorque, McMill an. 1940.

1972 - Retomar à História 283

Essencialmente . uma maneira de criti car um a determin ada form ade históri a etnol ógíca que era feita em sua ép oca. Ty lor h avia forne-cido o seu mod elo . Esta hist ória pretendia que todas as s ocieda-des hum anas seguiam um a mesma curva de evolução. indo da s for-mas mais simpl es às m ais compl exas. Essa e volução apenas varia-ria de uma soci edad e para outr a pela ve locidade das transform a-

ções. Por outro lado. as grandes form as soc iais. como. por exem-plo. as reg ras de casam ento ou as téc nicas ag rícolas. se riam no fun-do tipos de espécies biológicas . e sua extensão. se u crescimento,seu des envolvim ento. su a distribui ção também obedecer iam àsmesmas leis e aos m esmos padrões que o c rescimento e o desdo-bramento das esp écies bioló gicas. De qualquer forma, o mod eloque Tylor conc ebia para analisar o desenvolvim ento e a históriadas s ociedad es er a o bioló gico. É a Darwín e de uma maneira maisgeral ao evolucíonísmo que Tylor se refer ia pa ra relatar a históriadas sociedades.

O problema d e Boas era libertar o m étodo etnológíco desse ve lhomod elo biológico e mostrar como as s ociedades hum anas. fossemelas s impl es ou compl exas. obedeciam a ce rtas relações int ernasque as definiam em sua es pecificidade; esse processo int erno acada SOCiedade é o qu e Boas c hamava de a es trutur a de uma socie-dade. es trutura cuja análise devia lhe pe rmitir f azer um a histórianão mais biológica . mas realmente histórica das s ociedades huma -nas. P ara Boas. tratav a-se. port anto. n ão absolut amente de umasupressão do ponto d e vist a históri co em prov eito de um ponto d evista. digamos . anti -históri co ou a-histórico.

Tomei o exemplo d e Boas. mas pod eria ter usado d a mesma for-ma o exemplo da língüístíca e especialmente o da fonolo gía. Antesde Troub etskoi , a fonética histórica e nfocava a ev olução de um fo -nema ou de um som através de uma língua . Ela não tendia a darconta da transform ação de todo um esta do de uma língua em umdado mom ento: o qu e Troub etskoí pretendeu faze r com a fonología

2. Ty lo r E. B. , R e s e ar c lies int o Lh e e arly hi s Lo ry oJ m a nl c in d a nd Lh e d e v e lo p menL

oJ c ivi liz aLion. Londr es, J . Mur r ay, 1865 ; Primil . iv e c ultur e : re s e ar c h es inL o th .e

d ev e lo pm e nt oJ mythology. phil oso phy , re lig io n , a rt a n d c u s to m , Londres.

Murr ay. 1871. 2 vol.: Anthrop o log y: an intr c du c tio n L o th e s i u i oJ m a n a nd

c iv iliz a tio n . Londre s. McMill an. 188l.3 . Troubetskoi N. , Z ur all ge m e in e n Th eo rie d e r pí io n o loq isc tie n V o lca ls y sL e me.

Trabalhos elo Círculo Língüisttco de Pr aga. Praga, 1929. t. 1. ps. 39-67 : Grun â z uq e

de r P/1 O T1 0 10gi e. Trab alhos do Círculo Lingüí stica de Praga, Praga, 1939. t. VII P rin c ip es de phonol og ie , trad. Cantíneau, Paris. Kltn cksieck, 1949).

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284 Mi ch e l Foucau l t - Dit os e E sc rito s

e ra c ri a r o instrumento que permitisse passar da história de qual -qu e r form a indi v idual de um som à história bem mais geral do s is -te m a fonético de toda uma l íngua.

Pod eria tom ar um t e rce iro exemplo que evocarei brevemente , o d aapli c aç ão do estrutur a lismo à literatura . Quando Roland Barthes , h á

alguns a nos , definiu o que ele chamou de nível de escrita em oposi ç ãoao nív e l do estilo ou ao nível da língua, o que ele queria fazer ? Poisbem, isso se esclarece ao se observar qual era a situação e o est á giodos estudos de história literária na França , por volta de 1950 -1955.Nessa épo ca , fazia-se ou história individual , psicológica, eventu a l-m ente psi ca n a lítica do escritor , do seu nascimento à conclusão d esu a o br a, ou um a história glob a l, geral de uma época, de todo u mc onjunt o c ultur a l, de um a consciência coletiva, se quiserem.

No prim e iro caso , a penas se r e encontravam o indivíduo e se u sprobl e m as p esso a is, no outro, atingiam-se somente níveis muit osge ra is. O qu e Barthes quis fazer , introduzindo a noção de es c rit a,e ra d esc obrir um c e rto nível específico a partir do qual se pud essefa zer a história da literatur a enquanto literatura, enquanto el a temuma e sp ecificid ade particular , enquanto ultrapassa os indivíduo s enela s e situam os indivíduos e , de outro lado , na medida em qu e e laé, de ntr e tod as as outras produções culturais, um elemento p e rf e i-ta m ent e e specífico, tendo suas leis próprias de condicionam ent o ed e t ransform aç ão. Introduzindo essa noção de escrita, Barth esquis estab e le ce r uma nova possibilidade de história literári a.

Cr e io e nt ão que o necessário a guardar na cabeça é que, em s e u sproj e tos ini c ia is, os diferentes empreendimentos estruturalist as sej am e les etnológícos língü ístícos ou l iterários, e poder-s e- iadiz e r a mesm a coisa a respeito da mitologia e da história das ci ên-

c ias) for a m s empre , em seu ponto de partida, tentativas para c ri a rum instrumento de uma análise histórica precisa. Ora, é pr ec isoreconh e ce r qu e essa empreitada, não digo de todo que fracassou ,mas qu e e la n ão foi reconhecida como ta l , e a maioria dos adver sá-rios dos estruturalistas entrou em acordo pelo menos em um po n -to : o e struturalismo tinha desconhecido a própria dimensã o d ahistóri a e e le seria de fato ant í-hístórtco

Essa c rítica vem de dois horizontes diferentes. Há , inicialm ent e ,um a c ríti ca te órica de inspiração fenomenológíca ou existen c ia l .

4 . Ba rth es R .) . L e d e gr é zé ro d e l é critur e Paris, Ed . du Seuil , col . P íe rr es vives ,

1 953.

1972 - Reto m ar à Hi stó ri a 285

Obs ervou-se que , quaisquer que tenh am sido suas boas intenções ,o estruturalismo foi obrigado a abandon á- Ias; e le te ria dado de fatoum privilégio absoluto ao estudo das r e laç õ es simult â neas ou sín-c rônicas em detrimento do estudo das r e lações e volutivas . Quan-do, por exemplo , os fonolog ístas estudam as le is t onol ó g íca s , elesestudam os estados da língua sem l ev a r e m cont a sua evoluçãotemporal . Como é possíve l fazer históri a, se n ão s e lev a e m conta otempo? Mas há mais . Como se poderi a dizer qu e a a nális e estrutu-ra l é histórica, se ela privilegia não somente a simult aneid ad e sobr eo sucessivo , mas, por outro lado , o ló g ico sobr e o ca usal ? Porexemplo, quando év í-Strauss analisa um mito, o qu e e le buscan ã o é sa b er d e onde v e m esse mito, por qu e ele nas ce u, como foitransmitido , quais as razões pelas qu a is um a d e terminad a popula-ção recorreu a esse mito ou por que t a l outr a foi levada a transfor-má-lo Ele se contenta , pelo menos em um primeiro momento, eme stabelecer relações lógicas e ntr e os difer entes e le mentos dessemito e, no espaço dessa lógica , é possív e l estabelecer determina-

ç ões temporais e causais. Por fim , outr a objeção : a de qu e o estru-turalismo não leva em cont a a liberd ad e ou a iniciativa individual .Sartre critica os lingüistas , afirmando que a língua é apenas o r e -sultado, a crista , a cristalização de uma a tividad e humana fund a-mental e primeira . Se não houvesse sujeito f a lante par a retomar acada instante a língua , habitá-Ia no seu interior, contorná-Ia , defor-má-Ia, utilizá-Ia, se não houvesse esse e lem e nto da atividade huma -na, se não houvesse a palavra no próprio cerne do sist ema da lín-gua , como a língua poderia evoluir? Or a , a partir do momento emqu e se deixa de lado a prática humana para considerar apenas a es-trutura e as regras de coerção , é evidente que se f a lha novamenteem relação história .

As críticas feitas pelos tenomenologístas ou existencialistas sãogeralmente retomadas por um certo número de marxistas , quechamarei de marxistas sumários , ou seja , marxist a s cuja referên-cia teórica não é o próprio marxismo , mas pr ecisamente as ideolo-gias burguesas contemporâneas. Em contr apartida , de um marxis-mo mais sério, ou seja, de um marxismo r ea lmente revolucionáriochegam críticas . Estas objeções se apói a m no fato d e que os movi-mentos revolucionários que ocorreram , qu e a inda se produzem en-tre os estudantes e os intelectuais , não d e vem quase nada ao movi-mento estruturalista. Talvez haja apenas uma única exceção a esseprincípio , o caso de Althusser, na França. Althusser foi um marxis-ta que aplicou à leitura e à análise de textos de Marx um certo nú-

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286 Michel Foucault - Ditos e Escritos

mero d e métodos que podem ser considerados como estruturalis -tas, e a a nálise deAlthusser foi muito importante na história rec en-te do m arxismo europeu . Essa importância está ligada ao fato d eque Althusser libertou a interpr etaçâo marxista tradicional d e todohumanismo , de todo hegelíanismo , também de toda fenom enolo gíaque pesavam sobre ele, e , nessa medida , Althusser tornou nova-mente possív el uma leitura de Marx que não era mais universitári a.mas efetivamente política ; mas essas análises althusserianas, emque pese sua importância no começo , foram ultrapassadas muitorapid ament e por um movimento revolucionário que , desenvolv en-do-se inteiramente entre os estudantes e intelectuais, torna-s e,como voc ês sabem, um movim ento essencialmente antit eórico.Além disso, a maioria dos movimentos revolucionários qu e se de-senvolveram r ecentemente no mundo está mais próxima d e Ros ade Luxem burgo do que d e Lenin e: e les dão mais crédito espont a-neidade das massas do que à análise teórica .

Parece -me que, até o s éculo XX, a análise histórica tev e essen-

cialmente por finalidade reconstruir o passado dos grande s con-junt os nacionais, conform e os qu ais a sociedade industrial c apita-lista se dividi a ou se agrupav a. Após os séculos XVIIeXVIII ,a so cie-dade indu strial capitalista se estabeleceu na Europa e no mundoconform e o esquema das grandes nacionalidades. A história tevepor função, no interior da id eologia burguesa, mostrar como essasgrandes unidades nacionais , das quais o capitalismo necessit ava,vinh am d e longa data e tinham , através de diversas revolu ções,afirm ado e mantido sua unidade .

A hi stória era uma disciplin a graças à qual a burguesia mostr a-va, de início , que seu reino era apenas o resultado, o produto , o fru-to d e uma lenta maturação e que , nessa med ida, esse reinado eraperfeitamente justificado, já que ele vinha da bruma dos tempos ; aseguir , a burguesia mostrava que, já que esse reinado vinha d e tem-pos im emori ais, não era possível amea çá-Io por uma nova r evolu -ção. A burguesia simultaneam ente justificava o seu direito d e ocu-par o pod er e conjurava as ameaças de uma revolução em asc en-são , e a história era certamente o que Michelet chamava de r essur-reição do p assado . A história se atribuía a tarefa de tornar viv a atotalid ade do passado nacional . Essa vocação e esse papel da í t ó -

5. Althu sser L.) , Pour Marx . Paris, M aspero. 1965; Du Capital à Iaph ilos o phi ed e Mar x , in Althusser L.). Mach erey P.) . Rancíere J. , Lire L e Capita l . Paris.

Maspero, 1965, t. I, ps. 9-89; L objet du Capita l , in Althusser L .). Balíbar E .).Establet R .). ibid ., t. lI, ps. 7-185.

1972 - R etomar à História 287

ria devem ser agora revisados se quisermos separar a história dosistema ideológico em que ela nasceu e se desenvolveu. Ela deve serpreferencialmente compreendida como a análise das transforma-ções das quais as sociedades são efetivamente capazes. As duas no -ções fundamentais da história , tal como ela é praticada atualmen -te, não são mais o tempo e o passado, mas a mudança e o aconteci-mento. Citarei dois exemplos : um tomado emprestado dos méto-dos estruturalistas, o outro , dos métodos propriament e híst órtcos :o primeiro tem por finalidade mostrar -Ihes como o estruturalismodeu, ou, em todo caso, se esfor ça para dar , uma forma rigorosa àanálise das m udanças; osegundo visa a mostrar como c ertos méto-dos da nova história são tentativas para dar um est atuto e um sen-tido n ovos à velha n oção de acontecimento.

Como primeiro exemplo tomar ei a análise feit a por Du mézil dalenda romana de Hor ácío Ela é, creio , a primeira análise estrutu-ral d e uma lenda indo-européia . Dumézil encontrou tr ês versõesisomorf as dessa história muito conhecida em muitos p aíses, parti-

cularmente na Irlanda. H á de f ato um relato irland ês no qu al se en-contr a um personag em, um herói chamado C üchulainn: ess e CU-chulainn é uma crianç a que r ecebeu um poder m ágico dos deusesque lhe dá uma força extraordinária. Certo dia, quando o r eino emque ele vivia se encontrav a ameaçado , Cúchula ínn parte em expedi-ção contra os inimigos . No portão do palácio do chefe adversário ,encontr a um primeiro inimigo qu e ele mata. A seguir , continuaavançando. Encontra um segundo adversário e o mata ; depois umterceiro, que também mata . Após essa tríplice vitória , Cüchulaínnpod e voltar para casa ; mas o combate o colocou em tal estado deexcita ção, ou melhor, o poder mágico recebido dos d euses se en-contra de tal forma exacerbado no curso da batalha ao ponto detorn á-lo rubro e em bras as; se entrasse em sua cidad e, ele seria umperigo para todos . É para aplacar essa força ardent e e fervente queos cidadãos decidem enviar-lhe , no caminho de volta, uma mulher .Mas ocorre que esta mulher é a esposa de seu tio e as l eis contra oincesto proíbem tal relação sexual; portanto, ele não pode arr efecerseu ardor dessa maneira, e se é obrigado a mergulh á-lo em um ba -nho d e água fria . Mas ele está d e tal forma quente que faz f erver aágua do banho, e se é obrigado a ternperá-lo sucessivamente emsete banhos até que ele adquira a temperatura normal e possa en -trar em sua cidade sem constituir um perigo para os outros.

6. Dum ézil (G.l, Horac e e t le s Curiac e s , Paris , Gallim ard, cal. Les myth esrorn aí n s 1942 .

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Miche l Fouca ul t - Dit os e Esc ri tos

A an á lis e de Dumézil difere das análises de mitologias compar a -das f e it a s anteriormente No século XIX tinha existido toda um ae scola de mitologia comparada ; restringia-se a mostrar as sem e -lhan ç as existent e s entre tal e qual mito e foi assim que alguns his -toriadore s das r e ligiões tinham chegado a encontrar o mesmo mito

solar em quase todas as religiões do mundo Dumézil ao contrário- e é nisso que sua an á lise é estrutural - apenas compara ess e sdois relatos para estabelecer quais são exatamente as diferençasentre o prim e iro e o segundo Ele identifica essas diferenças combastante precisão No caso de üchula ínn o irlandês o herói éuma crian ç a ; por ou tro lado ele é dotado de um poder mágico ; fi -n a lm e nt e e le e st á só Observem o lado romano: o herói Horá c io éum a d u lto e s tá em idad e de carregar as armas não tem nenhu mpod er mág ic o - é simplesmente um pouco mais esperto do qu e o soutro s já qu e e le inv e nt a o estratagema de fingir que fogepara r ea -p a rece r s imples pequ e na distinção no interior da estratégia m as

e le n ão te m pod e r mágico al g um Outro conjunto de diferença s n oc a s o d a le nd a ir la ndesa : o herói tem um poder mágico muito fort e ee s se pod e r m ág ico é de tal forma exacerbado na batalha qu e e le setorn a portador de um perigo para sua própria cidade No caso d ore la to romano o herói retorna vitorioso e dentre os que ele en c on -tr a v ê a lgu é m que e m seu coração traiu sua própria pátri a: s u airm ã qu e se a liou aos adv e rsários de Roma O perigo foi portant od e slo ca do do e xterior da cidade para o interior Não é mais o h e ró iqu e é port a dor do perigo; é alguém diferente dele apesar de p e rt e n-ce r à su a fa míli a Fin a lmente o terceiro conjunto de diferenças : n ore la to irl a nd ês apenas o banho mágico nas sete cubas de água fri apod e c he ga r a a p a ziguar o herói ; no relato romano é preciso um ri-tu a l n ão m a is mágico ou religioso mas jurídico ou seja um jul ga -m e nto se guido de um procedimento de apelo e de uma absolvi çãopara qu e o h e rói recuper e seu lugar no seio dos seus contempo -rãn e os

Portanto a análise de Dumézil e essa é a primeira de su a s ca-ract e rístic a s não é uma análise de uma semelhança mas d e um adifer e n ça e d e uma interação de diferenças Por outro lado a a n á li -se d e Dum é zil não se restringe a construir um quadro das dif e ren-ç as ; e la e s ta b e lec e o sistema de diferenças com sua hierarqui a esu a subo rdina çã o Por exemplo Dumézil mostra que no rel a to ro -m a no a p a rti r do mom e nto em que o herói não é mais essa c ri a n çad e te nr a id a de portador de um poder mágico mas um sold a d ocomo o s outros n e sse ex a to momento fica claro que ele n ã o pod e

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e nfrentar sozinho seus três adversários pois necessari a mente umhomem normal frente a três adversários normai s deveria perder ;conseqüentemente o relato romano acr e scenta e m torno do heróiHorácio dois parceiros os dois irmãos qu e v ê m e quilibr a r em facedos três Curiácios o herói romano Se o h e rói fos se dot a do de um

poder mágico seria muito fácil vencer seu s tr ê s adv e rsários; a par-tir do momento em que ele é um homem c omo os outros um solda-do como os ou tros subitamente se é obrigado a coloc á-lo e ntr e ou-tros dois soldados e sua vitória será obtida apenas por uma espé-c ie de virada enfim de estratagema tático O r e lato romano tornounatural a façanha do herói irlandês ; a p a rtir do momento e m queo s roma n o s introdu z ira m a diferença que c onsiste e m c olocar umh e rói a dulto no lugar de um herói cri a n ç a a partir do momento emqu e eles apresentaram um herói norm a l e n ã o mais um persona-gem dotado de poder mágico era necessário qu e eles fossem três en ã o mais um contra três Temos portanto não somente o quadro

d as diferenças mas a conexão das dif e re n ça s umas c om as outras Finalmente a análise de Dumézil consist e e m mostr a r quais são asc ondições de tal transformação

Através do relato irlandês vemos se d e l inear o perfil de uma so-c ie dade cuja organização militar repousa essencialmente nos indi-víduos que receberam seu poder e sua for ç a do seu nascimento ;sua força militar está ligada a um certo pod e r m á gico e religioso Aoc ontrário no relato romano o que s e vê aparecer é uma sociedadena qual o poder militar é um poder c oletivo ; há tr ê s heróis Horá-c ios ; esses três heróis Horácios são d e qu a lqu e r forma apenasfuncionários já que eles são delegados p e lo poder e nquanto o pró-

prio herói irlandês havia tomado a iniciativa de sua expediçãoÉ

nointerior de uma estratégia comum que o combat e se desenrola ; ditode outra forma a transformação romana do v e lho mito indo-euro-peu é o resul tado da transformação de uma sociedade e ssencial-mente constituída ao menos em seu e strato militar por individua-lidades aristocráticas em uma sociedade cuja organização militar éc ol e tiva e até certo ponto democrática Voc ê s vê e m como a análisee strutural não digo resolve os problem a s da história de Roma m a s se articula muito diretamente com a hi s tóri a e fe tiva do mundoromano Dumézil mostra como não é pr ec iso buscar no relato dosHorácios e dos urtác íos alguma coisa como a transposição de umacontecimento real que teria ocorrido nos primeiros anos da histó-ria romana ; mas no momento mesmo em que mostra o esquemada transformação da lenda irlandesa em um relato romano e le evi-

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290 M íc h e l F o u ca ul t - Di tos e Esc ri tos

den c ia qual foi o princípio da transformação histórica da velha so-c ie d a d e romana e m uma soci edade controlada pelo Estado. Vo cêsv êe m qu e uma análise estrutural como a de Dumézil pode se arti c u-la r com um a a n á lise histórica. Apartir desse exemplo, poderíamo sdiz e r: um a an á lise é estrutural quando ela estuda um sist e m a

transform á v e l e as condi ç ões nas quais suas transforma çõ es s erealizam .

Gost a ria agora , tomando um exemplo bastante diferent e, d emostr a r c omo certos métodos utilizados atualmente pelos histori a -dores p ermitem dar um sentido novo noção de acontecimento.Há o h ábito de dizer qu e a história contemporãnea se interess aca d a v ez m e nos pelos acontecimentos e cada vez mais por c e rto s fe-nôm e n os am plos e g er a is qu e a travessariam de qualquer form a ote mp o e se m a nt e ri am , a tr a v é s dele , inalterados . Mas, já h á al g u -m as d éca d as, c om eç ou -se a pr a ticar uma história dita ser ía l n aqu a l ac on tec im e nto s e c onjuntos de acontecimentos constitu e m o

te ma ce ntr a l.Ahi stó ri a se ri a l n ão foc a liz a obj e tos gerais e constituídos por an -tec ip ação , c omo o f eud a lismo ou o desenvolvimento industri a l. Ahistóri a se ri a l d ef in e se u objeto a partir de um conjunto d e do c u-m ento s do s qu a is e la dispõ e. Assim se estudaram , há uma d éc ad a,o s a rquivos com e rc ia is do porto de Sevilha durante o século XVI :tudo o qu e se re lac ion a c om a e ntrada e a saída dos navios , su aqu antid a d e, s u a ca rga, o pr eç o de venda de suas mercadori as, su an ac ion a lid a d e, o lu ga r d e ond e el e s vinham e para onde iam . S ã otodo s esses d a do s, m a s e stes são os únicos dados que constitu e m oobj e to d e e studo . Dito de outr a forma, o objeto da história n ão é

mai s d a do por um a esp é cie de categorização prévia em período s ,épo cas, n aç õ e s, c ontin e nt es , formas de cultura ... Não se estudammais a E sp a nh a e a Am é rica durante o Renascimento; estudam- se,e e st e é o único obj e to , todos os documentos que concernem vid ado porto d e S e vilha d e tal data a tal outra. A conseqüência, e es se éo s e gundo traç o d a históri a ser íal, é que essa história não tem , d es -d e e nt ão, a bsolutamente por função decifrar, através desses do c u-m entos , a lg um a coisa como o desenvolvimento econômico d aEspanh a; o obj e to d a p e squisa histórica é estabelecer , a partir d es-ses do c um e ntos, um c e rto número de relações. Assim foi possív e le stab e lece r - r e firo -me sempre ao estudo de Chaunu sobre Sevilh a - estim a tiv as e s tatísticas. ano a ano, das entradas e saídas dos na-

7 . C h a unu (H .) e (P .l, S é vill e e t I AUantiqu e P a ris . Sevpen , 1955-1960 . 12 v o l.

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v ios . das classificações segundo os p a íse s , d as divisões conformeas mercadorias ; a partir das relaçõe s qu e pud e ra m s e r estabeleci-d a s, foi possível também desenhar as c urv as d e e volução, as flutua -çó s os crescimentos, as p a radas , os d ec ré scimos ; puderam-sed e screver os ciclos , estabelec e r enfim as r e laç õ e s entr e esse con-junto de documentos que conc e rnem ao porto d e S evilha e outrosdocumentos do mesmo tipo relativos aos porto s d a América doSul , das A n tilhas, da Inglaterra . a os portos m e dit e rr â neos . O histo -riador - observem - não int e rpr e ta m a is o do cum en to para apreen-d e r por trás dele uma espé c ie d e rea lid a d e so c ia l ou espiritual quen e le se esconderia; seu trabalho c onsi s te e m manipular e trataruma série de documentos homog ê n e os c on ce rnindo a um objetop arti cular e a uma época d e te rmin a d a. e sã o as r e laç ões intern a sou e xternas desse rpus de do cum ent o s qu e constituem o resulta-do do trabalho do historiador . Gr aç as a es te m é todo. e essa é a ter-ce ir a característica da históri a se ri a l, o histo r ia dor pode fazere m ergir acontecimentos qu e . d e outr a form a . n ã o t e riam apareci-do . N a história tradicional, consid e rav a-s e qu e os ac ontecim entose ra m o que era conhecido . o qu e e ra vi s ív e l, o qu e e ra identificáv e ldir e ta ou indiretamente. e o trabalho do historiador era buscar suacausa ou seu sentido . Acausa ou o sentido e stavam essencialmentee sc ondidos. O próprio acont ec im e nto e ra b asi c am ente visível , mes-n1 .Os e ocorria não se dispor d e do c um e ntos p ara estab e lecê-lo deum a forma inquestionável . A históri a se ri a l p e rmite d e qualquerforma fazer aparecer diferentes estratos d e ac ont e cimentos, dosquais uns são visíveis , im e diat am e nt e c onh ecidos até pelos con-temporâneos. e em seguida . debaixo d ess e s acont ecimentos quesão de qualquer forma a espuma da história . h á outros aconteci-mentos invisíveis. imperceptíveis para os contemporâneos . e quesão de um tipo completamente difer e nt e . R e tomemos o e xemplo dotr a balho de Chaunu. Em certo sentido , a e ntr a da e a saída de umnavio do porto de Sevilha é um acont e cim ento qu e os contemporâ-n e os habitantes de Sevilha conhecem p e rfeitament e e que podemosre constítuír sem muitas dificuldad e s. Por baixo desse estrato deacontecimentos, existe um outro tipo d e ac ontecim e ntos um poucomais difusos: acontecimentos que não são percebidos exatamenteda mesma forma pelos contemporâneos, mas dos quaís no entan-to , todos tinham uma certa consciência; por exemplo, uma baixaou um aumento dos preços que vai mudar sua conduta econômica .

Depois . ainda por baixo desses acontecimentos, vocês t ê m outrosque são difíceis de localizar, que são com freqüência dificilment e

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9 Mi chel Foucau lt - Ditos e Escritos

perceptíveis pelos contemporâneos, que não deixam de constituirruptur as decisivas. Assim, a inversão de uma tendência, o ponto apartir do qual uma curva econômica que tinha sido crescente torn a-se estável ou entra em declínio, esse ponto é muito importante n ahistória de uma cidade, de um país , eventualmente de uma civiliza-ção, mas as pessoas que lhe são contemporâneas não se dão cont adele. No nosso caso, apesar de termos uma contabilidade nacionalrelativamente precisa, não sabemos exatamente que ocorreu a in -versão de uma tendência econômica . Os próprios economistas nãosabem se um ponto de detenção em uma curva econômica assinal auma grande inversão geral da tendência ou simp lesmente um pon -to d e parada , ou um pequeno interciclo no interior de um ci clomais geral . Cabe ao historiador descobrir esse estrato escondid ode ac ontecimentos difusos , atmosféricos , policéfalos que, afin al,determin am, e profundamente, a história do mundo . Pois se sab eclar amente agora que a inversão de uma tendência econômica émuito mais importante do que a morte de um rei .

Estuda-se da mesma forma , por exemplo , o crescimento popul a-cional : o fato de que a curva demográfica da Europa, que era qua seestável durant e o século XVIII , tenha crescido a bruptamente no fimdo s éculo XVIIIe tenha continuado a crescer durante o século XIXfoi o qu e tornou, em parte , possível o desenvolvimento industri alda Europ a no século XIX ; mas ninguém viveu este acontecimentocomo s e puderam viver as revoluções de 1848. Iniciou-se uma p es-quisa sobre os modos de alimentação das populações européias noséculo XIX: percebe-se que, em um dado momento, a quantidad ede proteínas absorvidas pelas populações européias começou acresc er bruscamente. Acontecimento prodigiosamente importantepara a história do consumo , da saúde , da longev idade . O aumentobrusco d a quantidade de proteínas ingeridas por uma população é,de certo modo , muito mais significativo do que uma mudança d eConstitui ção e do que a passagem de uma monarquia à república ,por exemplo. É um acontecimento , mas um acontecimento que nãopode ser atingido pelos métodos clássicos ou tradicionais. Ele é so-ment e atingido pela análise de séries, tão contínuas quanto possí-vel, d e documentos freqüentemente negligenciados. Vemos , por-tanto , na história serial, não absolutamente o acontecimento s edissolv er em proveito de uma análise causa l ou de uma análise con-tínua , mas os estratos de acontecimentos se multiplicarem.

Dond e duas grandes conseqüências, que são inter-relacionadas :a prim eira é que as descontinuidades da história irão se multipli-

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car. Tradicionalmente , os historiador es assinal avam as desconti -nuidades nos acontecimentos , como a d escoberta da Am érica ou aqueda de Constantinopla . É verdade qu e tais acontecimentos po-dem concernir às descontinuidades , mas , por exemplo , a grandeinversão da tendência econômica, pres ente no crescimento na Eu-ropa do século XVI, que se estabilizou e entrou em regressão nocurso do século XVII,assinala uma outr a descontinuidade que nãoé exatamente contemporânea da primeira . A hi stória aparec e entãonão como uma grande continuidade sob uma descontinuidade apa-rente , mas como um emaranhado d e descontinuidades sobrepos-tas. Aoutra conseqüência é que, por isso , se foi levado a descobrir ,no interior da história, tipos de dura ções diferentes . Tomemos oexemplo dos preços . Há o que se chama de ciclo s curtos : os preçossobem um pouco; depois, tendo alcançado um certo teto , eles sechocam contra o limite do consumo e, n este momento, descem umpouco , depois tornam a subir . São ciclos curtos que podem serperfeitamente isolados. Abaixo dessa curta duração, dessa dura-

ção de qualquer forma vibratória, vocês têm ciclos mais importan-tes que atingem 25 ou 50 anos, e depois , ainda mais embaixo , há oque se chama, em inglês, de tr n s secular es a palavra está pres-tes a passar para a língua francesa) , ou s eja, tipos de grandes ciclosde expansão ou de recessão que, em geral, em todo lugar onde elesforam observados, englobam um período de 80 a 120 anos . Por bai-xo ainda desses ciclos , há o que os histori adores franceses cha -mam de inércias , ou seja, esses grandes f enôm enos que atuampor séculos e séculos : por exemplo, a tecnolog í agrícola da Euro-pa, os modos de vida dos agricultores europeus que permanece -ram em grande parte estagnados do final do século XVIao tnícío e

mesmo à metade do século XIX- inércia do camp esinato e da eco-nomia agrícola sob a qual houve grandes ciclos econômicos e , nointerior desses grandes ciclos, ciclos menores e, fin almente , no ápi-ce, as pequenas oscilações de preço, de mercado , que pod em serobservadas . A história não é, portanto , uma duração ; é uma multi-plicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos ou -tros . É preciso, portanto, substituir a velha noção de tempo pelanoção de duração múltipla ; quando os adversários dos estrutura -listas lhes dizem: Mas vocês neglicenciam o tempo , esses adver-sários não parecem se dar conta de que faz muito tempo , se ousodízê-lo que a história se desembaraçou do tempo, ou seja , que oshistoriadores não reconhecem mais essa grande duração única queenglobava, em um só movimento, todos os f enômenos humanos:

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9 Mich e l Fo u ca ul t - Dito s e E sc ritos

n a ra iz do tempo da história não há alguma coisa como uma evolu-çã o biológica que englobaria todos os fenômenos e todos os acont e -c im e ntos; há na verdade durações múltiplas e cada uma del as éportadora de um certo tipo de acontecim e ntos É preciso multipli -ca r os tipos de acontecimentos como se multiplica os tipos de dura-çã o Eis a mutação que está emvias de se produzir atualmente nasdisciplinas da história

C hegarei fin a lmente minha conclusão me desculpando por ch e-ga r aí tão tarde Creio qu e e ntre as análises estruturalistas da mu-d a n ç a ou d a transforma çã o e as análises históricas dos tipos d eac ontecim e ntos e dos tipos de duração há não digo exatam e nt eide n tidad e n e m mesmo c onvergência mas um certo núm e ro d e pon -tos im por ta nt e s de cont a to Para terminar eu os assinalarei Qu a n-d o o s histo r ia d o re s tratam os documentos eles n ã o visam a int e r-p retá -Io s o u se ja não procuram por tr á s ou além deles um sentidoesc ondido E les t ratam o do c umento do ponto de vist a de suas r e la-

ções int e rn as e e xterna s D a mesm a form a quando o e strutur a li staes tud a o s mi to s ou a lit e ra tura ele n ã o p e d e a esse s mitos ou a essalite rat ura o qu e e le s pod e m traduzir ou exprimir da m e ntalidad e deuma c ivili zaçã o ou da história de um indivíduo Ele se e sforça p a rafaze r surgir as relações e o sistema das r e la ç ões c ar ac te rísticas d es-se tex to ou d es s e mito Ar e jeição da interpretação e do procedim e n-to exegé tí c o que vai buscar por trás dos textos ou dos documento s oq u e el es si g ni f ica m é um el e mento qu e atualmente s e e ncontr a ta n -to no s estru tur a listas qu a nto nos historiadores

O s egund o ponto acr e di to é que os e struturalist a s a ssim c om oos h is tor ia d ore s são l e vados no curso do seu trab a lho a aband o-

n ar a grand e e v e lha m e tá for a biológica d a vida e d a evolução D es-de o s é culo XIX a idéia da e volução e dos conceitos adjacentes foib as tante utiliz a d a par a retraçar ou analisar as difer e ntes mud a n-ças nas so c ie d a des humanas ou nas pr á ticas e atividades do ho-m e m A m e tá for a biológi c a que permitia pensar a história apr e se n-ta v a um a v a nt a gem ideológica e uma vantagem epístemológt c Av a ntagem eptst emológ íc é que se tinha na biologia um modelo e x-pli ca tivo qu e bastava transpor termo a termo par a a históri a; es-p e rava-s e a tr a vés disso que essa história tornada e volutiva foss ef in a lment e tã o c ientífica quanto a biologia Quanto à vantagem id e o-ló g ica muito fácil de situar se é verdade que a história é tomada

e m uma dur aç ão análoga à do vivente se são os mesmos proc e ssosd e evolução que estão em ação na vida e na história então as so c ie -d a des hum a nas não têm uma especificidade particular então a s

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sociedad e s humanas não têm outra legalidade não têm outr a de-termina çã o ou regularidade senão a da própria vida E t a l c omonão h á re volução violenta na vida mas simplesmente uma l e ntaacumula ç ão de muta ç ões minúsculas da m e sma forma a hi s tóriahum a na não pode realmente trazer em si revolução viol e nt a e laapenas trará em si pequenas mudanças imperceptíveis M e ta fori-zando a história pelas formas d e vida gar a ntir-s e -ia assim qu e associ e d a d e s human a s não seriam suscetív e is d e revolu çã o C reioque o estruturalismo e a históri a p e rmitem a bandonar es sa g ra ndemitologia biológic a da his tória e d a duração O e struturali sm o de-finindo as transformações a história des c re v e ndo os tipo s d eacont e cimentos e os tipos de dur açã o difer e n tes tornam po s síveissimult a n e amente o a p a recimento das descontinuid a des na hi s tóriae o a p a re cimento d e tr a nsformações regrad a s e c oerent e s O e stru-turalismo e a históri a contempor â ne a são os instrumentos t e óricosgra ç as a os quais s e pode contrariamente à v e lh a idéia d a c ontinui-dad e p e nsar realm e nte a descontinuidad e dos ac ontecim e n tos e atransform a ção das so c iedades