revista brasileira de direito issn 2358-6974 · das fontes normativas e diversidade de cenários...
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ISSN 2358-6974VOLUME 3
JAN / MAR 2015
Doutrina Nacional / Leonardo Estevam de Assis Zanini / Ricardo
Lucas Calderon / Michele Mayumi Iwasaki / Thaís Fernanda Tenório Sêco
Pareceres / Luiz Edson Fachin / Luiz Gastão Paes de Barros Leães
Atualidades / Vivianne da Silveira Abílio
Resenha / Gustavo Tepedino
Vídeos e Áudios / Anderson Schreiber
RevistaBrasileirade DireitoCivil
ISSN 2358-6974VOLUME 2
OUT/DEZ 2014
Doutrina Nacional / Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho /
EroulthsCortiano Júnior / Guilherme Calmon Nogueira da Gama / João
Gabriel Madeira Pontes / Pedro Henrique da Costa Teixeira / José
Fernando Simão
Doutrina Estrangeira / Neil Andrews
Pareceres / Arnoldo Wald / Gustavo Tepedino
Atualidades / Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior
Resenha / Fabiano Pinto de Magalhães
Vídeos e Áudios / Gustavo Tepedino
RevistaBrasileirade DireitoCivil
ISSN 2358-6974VOLUME 1
JUL / SET 2014
Doutrina Nacional / Gustavo Tepedino / Luiz Edson Fachin / Paulo
Lôbo / Anderson Schreiber / Paulo Nalin / Rodrigo Toscano de Brito
Doutrina Estrangeira / Gerardo Villanacci
Jurisprudência Comentada / Marília Pedroso Xavier
Pareceres / Judith Martins-Costa
Atualidades / Bruno Lewicki
Resenha / Carlos Nelson Konder
Vídeos e Áudios / Caio Mário da Silva Pereira
RevistaBrasileirade DireitoCivil
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 2
APRESENTAÇÃO
A Revista Brasileira de Direito Civil tem por objetivo fomentar o diálogo
e promover o debate, a partir de perspectiva
que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.
A RBDCivil é composta das seguintes seções:
Editorial;
Doutrina:
(i) doutrina nacional;
(ii) doutrina estrangeira;
(iii) jurisprudência comentada; e
(iv) pareceres;
Atualidades;
Vídeos e áudios.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 3
EXPEDIENTE
Diretor
Gustavo Tepedino
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz
Gustavo Tepedino
Luiz Edson Fachin
Paulo Lôbo
Pietro Perlingieri
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Fabiano Pinto de Magalhães
Louise Vago Matieli
Paula Greco Bandeira
Paula Moura Francesconi de Lemos
Tatiana Quintela Bastos
Vivianne da Silveira Abílio
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SUMÁRIO
Editorial
Contratos empresariais na unidade do ordenamento – Gustavo Tepedino 5
Doutrina nacional
O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos Estados Unidos
– Leonardo Estevam de Assis Zanini 8
Usucapião familiar: quem nos salva da bondade dos bons? – Ricardo
Lucas Calderon e Michele Mayumi Iwasaki
28
Prescrição e decadência no direito civil: em busca da distinção funcional –
Thaís Fernanda Tenório Sêco
56
Pareceres
Contrato de seguro de vida e o agravamento do risco – Luiz Edson Fachin 82
O contrato EPC e o princípio do equilíbrio econômico – Luiz Gastão Paes
de Barros Leães
112
Atualidades
A questão da configuração de fraude nas alienações envolvendo bem de
família e suas consequências: análise da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça a partir do Recurso Rspecial nº 1.227.366 – Vivianne
da Silveira Abílio
Resenhas
140
Resenha a Arnoldo Wald (organizador), Doutrinas Essenciais – Mediação
e Arbitragem, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2014 – Gustavo
Tepedino
157
Vídeos e áudios
Direito e Mídia – palestra proferida pelo Professor Anderson Schreiber na
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) em
03/11/2014
--
Submissão de artigos
Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de
Direito Civil - RBDCivil
160
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EDITORIAL
Contratos empresariais na unidade do ordenamento
Nos dias 26 e 27 de fevereiro de 2015, o Conselho da Justiça Federal e a
Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM), sob a liderança dos
Ministros Humberto Martins e João Otávio de Noronha, promoveram a II Jornada
de Direito Comercial, destinada à discussão e elaboração de Enunciados
Interpretativos relacionados ao direito empresarial, contratual e societário. O
evento reuniu professores, magistrados e profissionais do Direito de todo o Brasil,
propiciando riquíssima discussão sobre os temas atuais do direito comercial.
Ao lado da excelência de diversos Enunciados aprovados, amplamente
divulgados e destinados a exercer papel central na prática jurídica, vale refletir
sobre a superação da consumida controvérsia acerca da autonomia do direito
comercial e da unicidade do direito obrigacional. Isto porque a classificação
didática dos diversos ramos do direito não exclui o tratamento interpretativo
unitário de todas as disciplinas jurídicas, especialmente no caso de matérias afins,
que se sobrepõem inevitavelmente no direito obrigacional. Verifica-se, a mais não
poder, na jurisprudência e, notadamente, na utilização intensa dos princípios
normativos pelo Superior Tribunal de Justiça, que as peculiaridades dos diversos
ramos do direito não afastam a construção dogmática informada por valores
comuns que tornam o direito empresarial integrado à teoria das obrigações.
Afinal, a unidade do direito decorre não de suposta dogmática monolítica do
direito obrigacional e empresarial, mas da dinâmica funcional do sistema jurídico,
articulado em ordenamento complexo sob a regência de Texto Constitucional
rígido. Compreende-se, assim, que a livre iniciativa tenha foro constitucional,
assim como a dignidade humana, a isonomia substancial e a solidariedade social
(art. 1º, III e IV; e art. 3º, I e III, C.R.), fundamentos e objetivos fundamentais da
República. Do mesmo modo, na linguagem do constituinte, a ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme ditames da justiça social, observados numerosos
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princípios socializantes prescritos pelo art. 170 e por seus incisos. Trata-se de
ordem econômica que estimula e promove, a um só tempo, a liberdade e a
solidariedade; a autonomia privada e a igualdade.
Longe de trazer incerteza, essa opção do constituinte de conectar a atividade
econômica a interesses existenciais e sociais serve de suporte para a estabilidade
do sistema, de modo a evitar guetos setoriais isolados, erigidos ao sabor de
pressões econômicas. Cabe à magistratura, mediante suficiente fundamentação de
suas decisões, depurar a nova concepção de segurança jurídica, firme na legalidade
constitucional e em parâmetros objetivos que permitam a transparência e o
controle social da atividade jurisdicional. Na esteira dessa perspectiva de
segurança, os princípios e cláusulas gerais não devem ser tomados como opção
ideológica ou redacional, e sim como fenômeno cada vez mais frequente nos países
da civil law (e mesmo nos países da common law), a traduzir técnica legislativa
própria da era tecnológica: a iniciativa privada caminha em velocidade frenética,
tornando impossível disciplinar a atividade econômica senão mediante o recurso a
princípios e cláusulas gerais.
Nesse cenário, com o propósito de estabelecer padrões hermenêuticos
coerentes, assume relevância a distinção estabelecida pelo constituinte,
fundamentada não mais em aspectos estruturais e estáticos, mas em critérios
funcionais e dinâmicos, que aparta as relações existenciais das patrimoniais.
Nestas últimas privilegia-se, sem ruptura do sistema, o legítimo escopo econômico
dos titulares, justificando-se assim o tratamento igualitário das partes nos
contratos empresariais, em que há simetria de informações entre os contratantes.
Não há aqui fuga do sistema mas reconhecimento da legitimidade da autonomia
privada no âmbito do mesmo sistema jurídico que agrega e concilia valores sociais
e existenciais.
De fato, o contrato constitui-se no principal instrumento para a realização
da autonomia privada, que se expressa no acordo de vontade. Há de ser prestigiada
a atividade empresarial sem prejuízo do respeito a valores extrapatrimoniais
alcançados pelos negócios jurídicos. Nessa mesma linha de análise, a preocupação
constitucional com o meio ambiente equilibrado, a tutela do consumidor, a livre
concorrência e a integridade psicofísica dos trabalhadores corrobora o valor social
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da livre iniciativa, mostrando-se equívoca a percepção de que as disposições
normativas que extrapolem a letra regulamentar da lei sejam fonte de insegurança.
Na mesma linha de análise, os princípios da função social, da boa-fé
objetiva e do equilíbrio econômico das prestações, longe de intimidarem os atores
jurídicos ou reduzirem a atividade empresarial, refletem a dimensão axiológica
estabelecida pela ordem constitucional. Mostra-se assim plenamente compatível
com os contratos empresariais o controle de merecimento de tutela das cláusulas
negociais, assim como, nos termos da previsão do Código Civil, a repressão a
cláusulas abusivas; a possibilidade de resolução e revisão de obrigações tornadas
excessivamente onerosas; a maior proteção do aderente, e assim por diante.
Na legalidade constitucional, as peculiaridades dos contratos empresariais
encontram plena justificação axiológica, sendo inconcebível, por exemplo, a leitura
dos princípios acima mencionados associados à pretensa vulnerabilidade em
relações paritárias. Tais singularidades, contudo, compatíveis com a pluralidade
das fontes normativas e diversidade de cenários econômicos, não afastam a
unidade do ordenamento e a necessidade de se rejeitar a fragmentação do sistema
jurídico – e de sua tábua de valores – em que se manifesta a identidade cultural da
sociedade.
GT
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SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional
O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO RIGHT OF
PRIVACY NOS ESTADOS UNIDOS
The emergence and development of the right of privacy in the United
States
Leonardo Estevam de Assis Zanini
Pós-doutorado em Direito pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales
Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na Albert-
Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Bacharel em
Direito pela USP. Juiz Federal. Professor universitário. Ex-Diretor da Associação dos Juízes
Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Ex-Delegado de Polícia Federal. Ex-Procurador do
Banco Central do Brasil. Ex-Defensor Público Federal. Ex-bolsista da Max-Planck-Gesellschaft e da
CAPES. Ex-Diretor Acadêmico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento da Justiça Federal em
São Paulo.
RESUMO: O artigo aborda o surgimento e a evolução do right of privacy nos Estados
Unidos. Analisa a publicação de Warren e Brandeis e sua influência na doutrina,
na jurisprudência e na legislação. Cuida das construções doutrinárias posteriores
ao artigo de Warren e Brandeis, como é o caso dos estudos de Prosser e Bloustein.
Trata da distinção entre o right of privacy e o right of publicity, bem como da
formulação do privacy constitucional. Por fim, examina a relação existente entre os
direitos da personalidade e o right of privacy.
PALAVRAS-CHAVE: Right of privacy; Right of publicity; Direitos da personalidade;
Dignidade da pessoa humana; Common law.
ABSTRACT: The article discusses the emergence and evolution of the right of privacy
in the United States. It analyzes the publication of Warren and Brandeis and its
influence in doctrine, case law and legislation. It examines the doctrinal
constructions subsequent to the article of Warren and Brandeis, such as the
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studies of Prosser and Bloustein. It seeks to trace the differences between the right
of privacy and right of publicity, as well as the formulation of the constitutional
privacy. Finally, it examines the relationship between the personality rights and
the right of privacy.
KEYWORDS: Right of privacy; Right of publicity; Personality rights; Human dignity;
Common law.
SUMÁRIO: Introdução – 2. O surgimento do right of privacy e a contribuição de
Warren e Brandeis – 3. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos
Estados Unidos – 4. As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a
década de 1950 – 5. O right of publicity – 6. A difícil distinção entre o privacy e o
publicity – 7. O privacy na construção doutrinária de Prosser – 8. O privacy como
tutela da dignidade e da individualidade – 9. A formulação do privacy
constitucional – 10. A consolidação do entendimento do caso Griswold – 11. A
relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade – 12. Considerações
finais
1. Introdução
O right of privacy surgiu nos Estados Unidos e difundiu-se para os países
que adotam o sistema da common law. Tais países, entretanto, apresentam um
grau bastante variado de proteção da personalidade humana, valendo notar, por
exemplo, que no Direito inglês não haveria uma espécie de proteção geral, mas
apenas uma tutela indireta, relacionada com elementos constitutivos de
determinados delitos.1
Desta feita, considerando sua origem e os grandes avanços de seu sistema
protetivo, bem como que se trata de modelo utilizado por outros países de
common law e mesmo de civil law, objetivamos realizar um breve estudo sobre o
right of privacy nos Estados Unidos, passando pelas diversas fases de seu
desenvolvimento até seu reconhecimento no âmbito constitucional.
Nossa análise, ao lado do estudo do privacy, também buscará a
compreensão dos principais pontos de divergência e convergência entre o sistema
1 LÉVY, Vanessa. Le droit à l‘image: définition, protection, exploitation. Zürich: Schulthess, 2002, p. 152.
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dos Estados Unidos e o dos direitos da personalidade, tradicionalmente
reconhecido pelos países de direito continental, como é o caso do Brasil.
2. O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e
Brandeis
A ideia de privacy, conforme asseveram muitos autores, já estava presente
no sistema jurídico dos Estados Unidos no século XIX, sendo possível o
h çã “
ó” Wh . P S C
1834. No entanto, o conceito de privacy não chegou a receber reconhecimento
formal da comunidade jurídica como um right, o que somente ocorreu com a
publicação do artigo de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis.2;3
Antes do artigo de Warren e Brandeis, vamos encontrar na obra do juiz
Th C y 1880 í “A Treatise on the Law of Torts”
z çã ã “right to be let alone”. A h
expressão, Cooley não a relacionou com a noção de privacy,4 mencionando-a em
seu trabalho sobre responsabilidade civil (torts) como parte do seguinte trecho:
“The right to one‘s person may be said to be a right of complete immunity: to be
let alone”.5
A expressão forjada por Cooley somente ganhou relevo com a publicação,
em 15 de dezembro de 1890, na Harvard Law Review, do artigo de autoria de
S D. W L D. B “The Right to Privacy”. N
autores colocam em evidência a ocorrência de transformações sociais, políticas e
econômicas, bem como o surgimento de novos inventos, como a fotografia, que
contribuíram para a ocorrência de violações da vida privada das pessoas.6;7
2 SOMA, John T. Privacy law. St. Paul: Thomson/West, 2008, p. 11. 3 Apesar de muitos estudiosos admitirem na common law o reconhecimento jurisprudencial do right of privacy antes do artigo de Warren e Brandeis, o tema não é, entretanto, isento de discussões. De fato, há um grupo considerável de estudiosos que vê nos casos apontados pelo artigo como de reconhecimento do privacy apenas a admissão de outros institutos, como o direito de propriedade, a quebra de contrato, a violação de confiança ou mesmo a ocorrência de difamação, sendo a eventual proteção do privacy apenas incidental. Afirma-se ainda que os argumentos utilizados por Warren e Brandeis para a construção do privacy partiram da errônea compreensão dos precedentes examinados. FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo patrimonial do direito à imagem. Coimbra: Coimbra, 2009, p. 156-157. 4 RIGAUX, François. La protection de la vie privée et des autres biens de la personnalité. Bruxelas: Bruylant, 1990, p. 272. 5 COOLEY, Thomas McIntyre. A treatise on the law of torts. Chicago: Callaghan, 1880, p. 29. 6 W B çã y : “The intensity and complexity of life, attendant upon advancing civilization, have rendered necessary some retreat
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Partindo desses problemas, os autores analisam um bom número de
decisões de tribunais ingleses e americanos, deduzindo então a existência de um
princípio geral na common law, o right of privacy. Assim, utilizando o termo
“right to be let alone” õ “tort” ã “privacy” q
constituiria uma profunda ofensa, que lesionaria o senso da própria pessoa sobre
sua independência, individualidade, dignidade e honra.8
Nessa linha, o direito em questão garantiria ao indivíduo uma ampla
liberdade contra intromissões não desejadas em sua vida, tutelando seus
pensamentos, sentimentos, emoções, dados pessoais e até mesmo o nome.9 A
imagem também foi incluída no âmbito de proteção do privacy,10 destacando-se
que os avanços da fotografia tornaram possível a captação de forma oculta dos
traços pessoais, pelo que se fazia necessária a utilização da lei de torts diante dos
riscos inerentes ao progresso técnico.11
Para fundamentar o privacy, os autores recorreram ao direito à vida,
expressamente enunciado na declaração de independência dos Estados Unidos e
formalmente reconhecido pela quinta emenda da Constituição. Acrescentaram
ainda que apesar de a Constituição não fazer qualquer menção à palavra privacy,
seus princípios já faziam parte da common law, particularmente no que diz
respeito à proteção do domicílio, tendo o desenvolvimento tecnológico apenas
from the world, and man, under the refining influence of culture, has become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have become more essential to the individual; but modern enterprise and invention have, through invasions upon his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater than could be inflicted by mere bodily injury.” WARREN S D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 196. 7 Há muito debate em torno da motivação de Warren e Brandies para a publicação do artigo dedicado ao privacy. Alguns estudiosos especulam que foi uma resposta ao aumento de sensacionalismo da imprensa em geral. Outros apontam que seria uma reação direta aos abusos cometidos pela imprensa contra a família de Warren, uma das mais influentes na sociedade de Boston do final do século XIX. Seja como for, independentemente das razões que levaram ao artigo, é certo que ele causou muito impacto no âmbito da common law, sendo ainda hoje inegável a sua importância. WAGNER W zy w J. L “ ‟ é” E -Unis. Revue Internationale de Droit Comparé, v. 17, n. 2, p. 365-376, abr.-jun. 1965, p. 366. 8 SOMA, John T, op. cit., p. 11. 9 PLACZEK, Thomas. Allgemeines Persönlichkeitsrecht und privatrechtlicher Informations- und Datenschutz. Hamburg: LIT, 2006, p. 46-47. 10 É í q “ y” ã ã “ ” í . D de Warren e Brandeis como das primeiras decisões sobre a matéria que o privacy assumiu, desde o início, vocação para ampla tutela dos valores da personalidade, não se limitando apenas à tutela da privacidade (FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo patrimonial do direito à imagem, p. 32). Desse modo, considerando a dificuldade na tradução do termo, que não se confunde com a privacidade e nem com os direitos da personalidade, preferimos utilizar nesse trabalho, para não incorrermos em nenhuma imprecisão, a expressão em inglês. 11 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D., op. cit., p. 211.
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tornado necessário reconhecer expressamente e separadamente esta proteção sob
o nome de privacy.12
Outrossim, apresentam no artigo limitações ao privacy, como por
exemplo: a permissão de publicação de material de interesse geral e público, a
possibilidade de publicação de fatos danosos quando o indivíduo consente, bem
como a inexistência de defesa quando se alega que o fato é verdadeiro ou então que
ã h “ í ” çã .13
O artigo de Warren e Brandeis vai provocar um impacto considerável no
sistema jurídico norte-americano, mas isso não vai ocorrer de maneira imediata.
De fato, em um primeiro momento ocorreu hesitação por parte da doutrina quanto
ao privacy, pois muitos autores negaram energicamente as novas ideias, enquanto
que outros defenderam o instituto com entusiasmo.14
Nos tribunais o efeito da publicação do artigo também não foi imediato,
uma vez que os primeiros casos julgados não reconheceram a existência do
privacy. Contudo, a ideia foi aos poucos sendo adotada e até expandida pelos
tribunais estaduais e federais, valendo ainda notar que nas primeiras décadas de
existência o right of privacy foi defendido ao abrigo da property theory, mas
depois passou a ser progressivamente abordado como um direito pessoal.15
De qualquer forma, é interessante notar que para o sistema da common
law dos Estados Unidos é bastante incomum que um artigo publicado em uma
revista tenha sido decisivo para desenvolvimento de um direito. Também é muito
supreendente o fato de que um artigo publicado em 1890 ainda continue a ser
considerado hodiernamente como a obra fundamental sobre o tema, sem tem
perdido sua validade, especialmente se levarmos em conta a importância e
atualidade da matéria.16
12 SOMA, John T., op. cit., p. 13-14. 13 Ibidem, p. 14. 14 PROSSER, William Lloyd. Handbook of the law of torts. 4 ed. St. Paul: West, 1971, p. 802. 15 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 164-165. 16 KAMLAH, Ruprecht. Right of privacy. Köln: Carl Heymanns, 1969, p. 58-59.
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3. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados
Unidos
Os casos Schuyler v. Curtis (1891)17 e Marks v. Jaffa (1893) são
normalmente apontados, por um grande número de doutrinadores, como aqueles
que teriam iniciado as discussões a respeito do right of privacy nos tribunais dos
Estados Unidos. Apesar da precedência, mais célebres se tornaram outros dois
casos, que foram julgados de forma diversa e coincidentemente envolveram lesão
ao direito à imagem.18
O primeiro deles, o caso Roberson v. Rochester Folding Box Co., conhecido
“F h F y” z à inserção da fotografia de uma moça em
um cartaz publicitário divulgado por um fabricante de farinha. A ação foi rejeitada
em 1902 pela Court of Appeals de Nova Iorque, mas a existência do right of
privacy aparentemente tinha sido reconhecida pelas duas cortes inferiores.19
Na decisão da Court of Appeals, tomada por estreita maioria de quatro
votos a favor e três contra, foi negada a existência do direito em questão pela falta
de precedente, pelo caráter puramente mental da lesão, pela dificuldade de se
estabelecer a distinção entre natureza pública e privada, bem como pela indevida
restrição à liberdade de imprensa e liberdade de expressão.20
Em seguida, três anos mais tarde, o caso Pavesich v. New England Life Ins.
Co. foi levado à Suprema Corte da Georgia. Nele foi debatida a reprodução não
autorizada em um jornal do retrato do senhor Pavesich, que foi colocado ao lado
da foto de um homem em farrapos, tendo sido atribuída a prosperidade do
primeiro ao fato de ter contratado uma apólice de seguro.21
Na decisão, proferida em 1905, a corte rejeitou os argumentos levados
anteriormente ao caso Roberson, pelo que acabou aceitando o entendimento de
17 O caso Schuyler v. Curtis é particularmente interessante, pois além de apresentar um problema que abrangeria o reconhecimento do direito à imagem, também levanta a questão da imagem da pessoa falecida. A demanda foi iniciada por Philip Schuyler, sobrinho de Mary Hamilton Schuyler, que se opôs à construção e exposição de uma estátua de sua falecida tia em um evento em Chicago. A Supreme Court de Nova Iorque (primeira instância), em 1891, apoiada no artigo de Warren e Brandeis, acolheu o pedido, sustentando que a falecida tinha mantido em vida uma postura reservada, que não seria compatível com a pretendida exposição. A Court of Appeals, entretanto, asseverou que não era relevante o desejo da falecida, pois eventual right of privacy não teria sobrevivido à morte da senhora Schuyler. HAND, Augustus N. Schuyler against Curtis and the Right to Privacy. The American Law Register and Review, Philadelphia, vol. 45, n. 12, p. 745-759, dez. 1897, passim. 18 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 161-165. 19 RIGAUX, François, op. cit., p. 278. 20 PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 803. 21 Ibidem, p. 803.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 14
Warren e Brandeis. Assim, os juízes consideraram que a publicação da imagem de
uma pessoa, sem seu consentimento e com o propósito de exploração comercial,
configuraria uma violação do right of privacy, o que não demandaria da pessoa
retratada prova especial do dano.22
A decisão do caso Pavesich v. New England Life Ins. Co. foi então sendo
paulatinamente seguida por tribunais de vários outros estados americanos, de
modo que na década de 1950 a oposição ao right of privacy já tinha praticamente
desaparecido.23
Por conseguinte, fica evidente que as duas últimas decisões mencionadas
são extremamente importantes para o desenvolvimento do privacy nos Estados
Unidos, motivo pelo qual são reiteradamente analisadas nos manuais. Também é
interessante observar que os casos apresentados estão associados à defesa de
valores patrimoniais, ainda que ligados a valores pessoais. Ademais, vale ainda
destacar que apesar de no caso Roberson v. Rochester Folding Box Co. ter sido
rejeitada a concepção de Warren e Brandeis, não podemos nos esquecer que tal
julgado contou com opiniões divergentes, bem como deu causa à promulgação de
uma lei sobre privacy no Estado de Nova Iorque.24
4. As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de
1950
O período que vai do início até a metade do século XX não apresentou
evolução aparente da doutrina do privacy, registrando apenas decisões que
confirmaram a concepção desenvolvida por Warren e Brandeis. Perdeu-se então a
oportunidade de incluir os avanços tecnológicos do período na proteção.25
A estagnação do desenvolvimento do privacy provavelmente está
associada à apresentação aos tribunais de um reduzido número de casos com
novos pontos de vista, bem como pelo fato de que os tribunais não estavam
dispostos a avançar no tema sem apoio em figuras jurídicas tradicionais, como a
proteção da honra ou da propriedade.26
22 O íz : “The publication of a picture of a person, without his consent, as a part of an advertisement, for the purpose of exploiting the publisher‘s business, is a violation of the right of privacy of the person whose picture is reproduced, and entitles him to recover, without proof of special damage”. LÉVY V op. cit., p. 150. 23 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 59-60. 24 Ibidem, p. 59-60. 25 Ibidem, p. 61. 26 Ibidem, p. 61.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 15
A problemática é muito bem representada pela decisão do caso Olmstead
v. United States, que pode ser considerada como uma das corresponsáveis pela
referida estagnação da doutrina do privacy. O processo envolvia escutas
telefônicas feitas pelo FBI contra Roy Olmstead e muitas outras pessoas, que
teriam transportado e vendido bebidas alcoólicas em violação à lei nacional.27
O tribunal decidiu que as escutas telefônicas realizadas, que constituíam o
principal meio de prova, não tinham sido feitas com invasão da propriedade
privada, já que os cabos telefônicos interceptados se localizavam na rua, em áreas
próximas das casas e dos escritórios investigados. No voto vencedor, o juiz Taft
esclareceu que a escuta por meios eletrônicos não poderia ser considerada como
busca, no sentido empregado pela Constituição, uma vez que não houve invasão
física, e que não teria ocorrido apreensão inconstitucional, na medida em que não
envolveu nenhum bem tangível.28
Desse modo, como os locais investigados não foram fisicamente invadidos,
as interceptações telefônicas não violariam a Quarta Emenda da Constituição, que
garante a inviolabilidade da pessoa, da sua casa, de seus documentos e dos seus
bens contra a realização de buscas e apreensões ilegítimas. Assim, foi dada
interpretação literal à Quarta Emenda constitucional, que seria aplicável somente
na hipótese de busca envolvendo invasão física e de apreensão de objetos
tangíveis.29
Apesar do entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz
Brandeis, coautor do famoso artigo já mencionado, apresentou voto em sentido
contrário, propugnando por uma aplicação liberal da Quarta Emenda
constitucional, que protegeria o cidadão contra qualquer violação injustificada do
privacy, seja qual for o meio utilizado. Asseverou ainda que o governo deveria ter
obtido um mandado de busca antes de ter invadido a privacidade alheia, mesmo
porque a Constituição protege os cidadãos não apenas em aspectos materiais, mas
também em suas crenças, pensamentos, emoções e sensações.30
Nessa linha, Brandeis, usando na decisão linguagem similar àquela do
artigo publicado muitos anos antes, ampliou o foco do privacy, destacando que o
right to be let alone encontra proteção não somente na common law, mas também
27 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D. Privacy as a constitucional right: sex, drugs, and the right to life. New York: Quorum Books, 1992, p. 92. 28 O‟BRIEN D M. Privacy, law, and public policy. New York: Praeger, 1979, p. 51-52. 29 Ibidem, p. 51. 30 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93.
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na Constituição. Também identificou o Estado como um potencial ofensor desse
direito.31
Nos anos que se seguiram, a posição defendida por Brandeis foi
continuamente sustentada por outros juízes, mas a Suprema Corte dos Estados
Unidos, apesar de pronunciamentos ousados em muitos julgados, manteve reserva
ao right of privacy quando se discutia seu reconhecimento constitucional e a
admissão de provas em processos criminais.32
Assim, também não foi reconhecida a ocorrência de violação ao privacy no
caso Goldman v. United States (1942), em que a conversa do acusado foi gravada
por um microfone instalado na parede do apartamento contíguo, uma vez que a
prova não teria sido obtida com invasão física.33 O posicionamento foi mais uma
vez confirmado no caso On Lee v. United States (1952), quando o tribunal admitiu
as provas colhidas pela escuta de conversações entre On Lee e um agente
infiltrado, que estava com um microfone. O mesmo pode ser constatado em
Silvermann v. United States (1961), que, confirmando a regra do caso Olmstead,
apenas condenou a utilização de microfones pelo fato de ter ocorrido invasão de
propriedade.34
5. O right of publicity
Em 1953 mais um passo importante é dado no julgamento do caso Haelan
Laboratories Inc v. Topps Chewing Gum Inc, que colocou em evidência a falta de
adaptação e a insuficiência do privacy para a resolução de problemas relativos a
interesses patrimoniais, estabelecendo novos limites para esse direito.35
A demanda envolveu a celebração de vários contratos entre a empresa
Haelan Laboratories Inc e jogadores profissionais de baseball, nos quais foi
estabelecido um direito exclusivo de utilização da imagem, do nome e de
elementos biográficos dos jogadores para a venda de produtos da empresa.
Conhecendo a existência do contrato, a empresa concorrente Topps Chewing Gum
Inc procurou os mesmos jogadores e obteve, em violação à obrigação contratual
31 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology. New York: Aspen, 2006, p. 28-29. 32 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 61-63. 33 DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R. The Right to Privacy: Essays and Cases. St. Paul: West, 1976, p. 18. 34 O‟BRIEN D M. op. cit., p. 54-55. 35 ROUVINEZ, Julien. La licence des droits de la personnalité. Zürich: Schulthess, 2011, p. 81.
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anterior, semelhante autorização para utilização da imagem, o que deu ensejo à
demanda judicial por parte da primeira empresa.36
Em sua defesa, a ré asseverou que os contratos celebrados entre a autora e
os jogadores não poderiam transferir o right of privacy, visto que tal direito tinha
natureza pessoal e intransferível. Também argumentou que nos contratos não
havia previsão de nenhum property right que pudesse ser invocado.37
Entretanto, o tribunal rejeitou os argumentos da defesa, considerando,
sem nenhuma preocupação teórica, a necessidade de se destacar uma parte do
right of privacy e reconhecer a existência de um right of publicity. Tal direito foi
considerado independente do privacy e garantiria um privilégio exclusivo à pessoa
quanto ao aproveitamento econômico de sua notoriedade, o que poderia ser
considerado um property right, na medida em que teria valor pecuniário.38
Assim sendo, apesar de guardar suas origens históricas no right of
privacy, o surgimento do right of publicity não decorreu de um processo
evolutivo, mas é resultado de uma radical ruptura do right of privacy, que
produziu um direito transmissível, inclusive, na opinião da doutrina majoritária,
por herança.39
Após a decisão do caso Haelan, a nova figura jurídica foi rejeitada por
alguns tribunais e aceita por outros. A mesma diversidade de entendimentos pôde
ser vista na doutrina, que contou, entre os defensores do right of publicity, com
Grodin e Nimmer. Este último acabou fixando os contornos do novo instituto,
destacando que o right of privacy não era adequado para a integral proteção do
cidadão na segunda metade do século XX, em especial pela presença maciça da
publicidade.40
No âmbito da Suprema Corte dos Estados Unidos, o right of publicity
somente foi reconhecido em 1977, no julgamento do caso Zacchini v. Scripps-
Howard Broadcasting Company, quando se admitiu a existência de interesse
ô çã “h - ” q
televisão sem sua autorização.41
36 RIGAUX, François, op. cit., p. 395. 37 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 176. 38 RIGAUX, François, op. cit., p. 393 e 396. 39 GÖTTING, Horst-Peter. Persönlichkeitsrechte als Vermögensrechte. Tübingen: Mohr Siebeck, 1995, p. 191. 40 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179. 41 FREEDMAN, Warren. The Right of Privacy in the Computer Age. Nova Iorque: Quorum, 1987, p. 28.
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Na demanda, o tribunal atribuiu ao right of publicity um interesse análogo
à propriedade (propietary interest) e afirmou ainda que a finalidade de tal direito
é muito próxima à de uma patente ou de um copyright, na medida em que é
protegido o direito de colher os frutos de uma atividade individual, que nada tem a
ver com a proteção dos sentimentos ou da reputação.42
Depois dessa decisão o right of publicity foi sendo progressivamente
admitido pelos Estados do país, muitos deles consagrando até mesmo uma
legislação específica sobre o tema.43
Portanto, a proteção do direito à imagem na common law passou a
compreender um modelo dualista, composto tanto pelo right of privacy como pelo
right of publicity. O primeiro voltado para a tutela de valores pessoais, enquanto
que o segundo se destina à proteção de valores patrimoniais.44
6. A difícil distinção entre o privacy e o publicity
Como foi visto, o right of publicity pode ser concebido, em linhas gerais,
como o direito que cada pessoa tem de controlar o uso comercial de sua
identidade, dirigindo sua tutela para aspectos meramente patrimoniais. O instituto
é visto como uma espécie do gênero da concorrência desleal, uma vez que garante
o privilégio exclusivo quanto à exploração da identidade, particularmente no que
toca à publicação de fotografias.45
Ocorre que o fato do right of publicity ser mencionado em ligação com a
identidade não significa que a sua proteção está relacionada apenas com os bens
da personalidade. Na verdade, essa tutela vai muito além, abrangendo todas as
formas de identificação da pessoa, como a imagem, o nome ou a voz, bem como
objetos materiais.46
Nessa linha, a despeito da definição doutrinária aparentemente clara do
right of publicity, bem como do estabelecimento de suas diferenças em relação ao
privacy, na prática a distinção não é tão simples, mesmo porque existe uma
grande afinidade entre esses direitos.
Normalmente um dos critérios utilizados na distinção é o comportamento
anterior da vítima. Assim, se a pessoa, como ocorreu no caso Zacchini, não se opõe
42 RIGAUX, François, op. cit., p. 393-394. 43 ROUVINEZ, Julie, op. cit., p. 82. 44 LÉVY, Vanessa, op. cit., p. 151. 45 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 28. 46 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166.
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à publicidade, contanto que ela receba as vantagens financeiras pela exposição,
estaríamos diante do publicity. Também ocorrerá atentado apenas ao right of
publicity quando uma pessoa autoriza a publicação de seu nome ou de sua imagem
em um determinado periódico, mas não em um outro, ou quando a extensão da
utilização publicitária excede o que foi previsto contratualmente.47
Por outro lado, estaremos diante de invasão do privacy se os fatos em
análise indicam que o indivíduo jamais explorou o valor associado a sua reputação
ou a sua atividade profissional, bem como que não houve qualquer consentimento
no que toca à utilização do seu nome ou de sua imagem.48
A partir daí, parte da doutrina e da jurisprudência passaram a considerar,
de modo geral, que a utilização do nome ou da imagem de pessoas célebres, sem
autorização, em uma propaganda, somente afeta o right of publicity. De contrário,
tratando-se de uma pessoa não conhecida do público, a defesa da utilização não
autorizada do nome e da imagem deve ser feita pelo right of privacy.49
Outrossim, podemos arrolar ainda a distinção no que toca à
patrimonialidade e à transmissibilidade do interesse protegido. Assim sendo,
considerando a patrimonialidade do publicity, a doutrina reconhece que ele faz
parte do próprio patrimônio da pessoa (estate) e admite a possibilidade de sua
cessão contratual ou transmissão hereditária. O mesmo não valendo para o right
of privacy, que se volta para a proteção de interesses ideais e não permite a
transmissão.50
Por conseguinte, deve-se admitir que são poucas as situações em que a
delimitação se apresenta tão evidente. A despeito disso é sem dúvida sempre
conveniente analisar o comportamento anterior da vítima, investigar a natureza da
agressão, bem como buscar interpretar o consentimento do sujeito para que se
possa chegar à conclusão se estamos diante de um caso de privacy ou publicity,
sobretudo quando foi contratualmente autorizada a exploração do nome ou da
imagem.51
47 RIGAUX, François, op. cit., p. 394-396 e 407. 48 Ibidem, p. 394-396. 49 GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 243. 50 ROUVINEZ, Julien, op. cit., p. 82. 51 RIGAUX, François, op. cit., p. 395.
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7. O privacy na construção doutrinária de Prosser
Somente na década de 1960 é que vai ser visto o surgimento de novas
discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do privacy. No que toca à
doutrina, inicia-se então um debate contrapondo pontos de vista favoráveis e
opostos às ideias de Warren e Brandeis.
Entre as críticas dirigidas à concepção, podem ser distinguidas diversas
orientações, como a que substitui o conceito de privacy por outro considerado
mais adequado, a que censura a utilização de um vocábulo único para diversos atos
ilícitos e a que contesta a definição do privacy “ ó”.52
Entretanto, vamos aqui destacar o embate mais célebre, que envolveu
Prosser e Bloustein, tendo exercido, como será visto, indiscutível influência nos
desenvolvimentos posteriores do privacy.53
William Prosser, aclamado professor da California School of Law
(Berkeley) e à época uma das maiores autoridades em responsabilidade civil (tort
law), apresentou em 1960 um estudo bastante preciso acerca das decisões
prolatadas sobre o right of privacy. Nele o estudioso procurou evidenciar as regras
emanadas de cada caso e os desenvolvimentos jurídicos daí decorrentes54-55.
Após a análise de substancial amostra do repertório jurisprudencial
disponível, Prosser admitiu a existência de confusão e inconsistências no
desenvolvimento do privacy, mas tentou sistematizar a matéria. Asseverou que
não se estava diante de apenas um tort, mas sim de quatro grupos diversos, vendo
em cada um deles a lesão de diferentes tipos de interesses protegidos. Nessa linha,
destacou que os interesses tutelados pelo privacy não teriam quase nada em
comum, exceto que todos eles representariam uma interferência no right to be let
alone.56
Prosser passa então a classificar o privacy nas seguintes espécies: 1)
invasão em assuntos privados da pessoa (intrusion); 2) publicação de fatos
embaraçosos relativos à vida privada de determinada pessoa (public disclosure); 3)
publicação que leve a opinião pública a uma falsa compreensão (false light), o que
se assimila à difamação (defamation), mas enquanto esta requer que a informação
52 Ibidem, p. 630. 53 DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R., op. cit., p. 25-26. 54 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71. 55 O trabalho de Prosser foi ampliado e atualizado por Keeton, contando com última edição (5. ed.) publicada em 1984 sob o título Prosser and Keeton on the Law of Torts. 56 PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 804.
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seja falsa, no privacy a informação geralmente é verdadeira, mas cria uma falsa
impressão e; 4) abuso do nome ou da imagem de outrem para benefício próprio
(appropriation),57 conceito que se aproximaria do right of publicity, no entanto,
este direito protege a pessoa contra a exploração comercial não autorizada
(property right), enquanto que o privacy diz respeito à tutela de valores pessoais
da personalidade.58
O estudioso não foi, obviamente, o primeiro a apresentar uma classificação
do right of privacy em diferentes tipos. Na verdade, o que torna seu trabalho
relevante, a ponto de ser considerado por muitos como leitura obrigatória para as
discussões sobre privacy, não é somente o fato de ter desenvolvido uma
classificação que impôs ordem e clareza à matéria, mas também por ter
identificado o bem jurídico protegido em cada uma das hipóteses apresentadas.59
Destarte, ainda que de forma implícita, pode-se deduzir do pensamento de
Prosser que não existe unidade na tutela do privacy, visto que não estaríamos
diante de um valor independente, mas sim de uma composição de interesses que
vai abranger a reputação, a tranquilidade emocional e a propriedade imaterial.60
8. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade
Os ensinamentos de Prosser não ficaram isentos a críticas, como a
H y K “Privacy in Tort
Law – Were Warren and Brandeis Wrong?” 1966. N
questiona a proteção do privacy por meio da legislação de torts, concluindo que,
com exceção dos casos de apropriação, a tentativa de proteger o privacy no âmbito
da responsabilidade civil é um erro.61
Edward Bloustein, em trabalho publicado em 1964, assevera que a análise
em grupo de casos, apresentada por Prosser, contrariou o que Warren e Brandeis
defendiam, uma vez que acabava indicando a incapacidade dos tribunais de
continuarem o desenvolvimento do privacy sem que fosse necessário o apoio em
figuras jurídicas tradicionais, como a propriedade e a honra.62
57 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72. 58 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179. 59 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72. 60 BLOUSTEIN, Edward J. Privacy as an aspect of human dignity: an answer to dean Prosser. New York University Law Review, v. 39, p. 962-1007, 1964, p. 962. 61 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8. 62 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 73.
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Nessa linha, Bloustein destaca a existência de uma considerável confusão
no que toca à natureza do bem jurídico protegido pelo privacy, entendendo que
Prosser remete esse direito novamente às antigas instituições jurídicas, o que
estaria em contradição com o pensamento de Warren e Brandeis, na medida em
que viam no privacy uma figura jurídica nova e unitária.63
Partindo desses problemas, Bloustein propõe em seu artigo uma teoria
geral do privacy, levando em conta, para tanto, o bem jurídico protegido em todos
os casos. Considera então que a dignidade humana seria esse bem jurídico, que
ligaria o right of privacy do direito privado ao direito público, vínculo este
totalmente ignorado por Prosser. Acrescenta ainda que o privacy não é limitado à
common law, abrangendo o direito como um todo, inclusive as disposições de
direito processual penal.64
Outrossim, Bloustein lembra da existência de muitas leis mais recentes,
que regulam o uso de sistemas eletrônicos de vigilância ou que proíbem a
interceptação telefônica de conversas, exemplos que seriam suficientes para
comprovar a proteção do right of privacy de forma independente, não somente
como uma proteção civil contra atos ilícitos.65
Além disso, outra questão que se colocava era a respeito dos
desenvolvimentos futuros do privacy. De acordo com o estudioso, a influência do
trabalho de Prosser era patente, já que nos anos que se seguiram à sua publicação
quase toda decisão sobre privacy mencionava sua concepção, bem como também
refletiu na elaboração do Restatement of Torts. Assim sendo, nas palavras de
Bloustein, se seu posicionamento não estivesse correto, então seria importante
demonstrar suas falhas e apresentar uma teoria alternativa.66
Desse modo, em suma, sugere Bloustein que o raciocínio de Prosser não
estava correto, pois o privacy envolveria o mesmo interesse na preservação da
dignidade e da individualidade do ser humano, falando-se então em apenas um
tort, que garantiria uma proteção abrangente e sem lacunas.67
Alguns autores americanos concordaram com Bloustein, especialmente
diante dos fortes argumentos lançados contra Prosser no sentido de que sua visão
63 Ibidem, p. 74. 64 Ibidem, p. 74. 65 Ibidem, p. 74. 66 BLOUSTEIN, Edward J., op. cit., p. 964. 67 Ibidem, p. 1005.
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se limitava à common law, bem como que a classificação por ele proposta não era
exaustiva e ainda apresentava distinções insuficientemente esclarecidas.68
Contudo, boa parte dos estudiosos acabou seguindo o posicionamento de
Prosser, sendo certo que alguns deles, como é o caso de Wade, até avançaram em
suas ideias.69 De qualquer forma, é interessante notar que as ideias de Bloustein
em muito se assemelham à concepção em vigor no direito continental,
especialmente pela menção à tutela da dignidade humana.
Por conseguinte, o fato é que as ideias de Prosser acabaram saindo
vitoriosas e sua sistemática passou a exercer uma influência tão grande que foi
seguida de forma quase unânime pela doutrina e pela jurisprudência, ecoando
ainda no Second Restatement of Torts, de 1977, bem como na constituição, nas leis
e na common law de vários estados.70 E o resultado não poderia ser diverso, uma
vez que independentemente da denominação utilizada, o fato é que o conceito de
privacy procura realmente dar uma visão unitária a um grande número de
situações ou de relações que são heterogêneas,71 isso sem falar na ampla e já
tradicional aceitação pela jurisprudência da inclusão desse instituto entre os
torts.72
9. A formulação do privacy constitucional
Paralelamente ao debate doutrinário, viu-se que ao longo do tempo o right
of privacy, desenvolvido como um conceito da common law, passou a aparecer em
casos envolvendo a Constituição dos Estados Unidos. Todavia, apesar do início dos
debates ter ocorrido ainda na primeira metade do século XX, o reconhecimento do
right of privacy na Constituição somente veio com o caso Griswold v. Connecticut,
decido em 1965 pela Suprema Corte dos Estados Unidos.73
Na demanda foi debatida uma lei de Connecticut, que tornou ilegal o uso
ou a distribuição de anticoncepcionais, o que configuraria ingerência do Estado no
privacy. A lei deu causa à condenação de um médico, que examinou uma mulher
68 RIGAUX, François, op. cit., p. 633. 69 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 75. 70 GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 185-186. 71 RIGAUX, François, op. cit., p. 632. 72 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8-9. 73 RIGAUX, François, op. cit., p. 167.
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casada e prescreveu métodos contraceptivos, bem como do senhor Griswold,
diretor da clínica onde o referido médico trabalhava.74
Na Suprema Corte dos Estados Unidos o juiz Douglas, que tinha assumido
a cadeira de Brandeis, redigiu o voto do caso Griswold v. Connecticut, que se
tornou célebre. Nele o magistrado declarou a inconstitucionalidade da lei e
reconheceu a existência de um direito geral de privacy, que decorreria das
seguintes emendas à Constituição dos Estados Unidos: primeira (liberdade de
expressão), terceira (restrição ao aquartelamento de soldados em casas
particulares), quarta (busca e apreensões ilícitas), quinta (autoincriminação) e
nona (declara que os direitos não especificados na Declaração de Direito são
também protegidos por ela).75
A decisão ainda destaca o caráter sacro da união conjugal e o respeito que
merece a intimidade do casal, considerando, por conseguinte, inadmissível que a
polícia pudesse estender suas investigações ao quarto do (“the sacred
precincts of marital bedrooms”).76
Dessa forma, somente a partir do caso Griswold v. Connecticut que vai ser
reconhecido constitucionalmente, pela primeira vez, o right of privacy, que apesar
de não ser expressamente mencionado pela Constituição, estaria localizado,
conforme o voto do juiz Douglas, no interior das penumbras ou zonas de liberdade
criadas por uma interpretação mais abrangente da declaração de direitos.77
10. A consolidação do entendimento do caso Griswold
Em 1967 a Suprema Corte dos Estados Unidos vai finalmente superar a
doutrina Olmstead, analisando o caso Katz v. United States, no qual policiais, sem
autorização judicial, interceptaram conversações telefônicas realizadas de uma
cabine telefônica.
O voto vencedor foi proferido pelo juiz Stewart, que mencionou o
posicionamento do tribunal no caso Griswold e reconheceu a violação do privacy
decorrente de injustificada medida de busca e apreensão, na hipótese envolvendo
bem imaterial. O magistrado ainda acrescentou em sua decisão que Katz tinha uma
razoável expectativa de privacy quando entrou na cabine telefônica e fechou a
74 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93. 75 Ibidem, op. cit., p. 97. 76 RIGAUX, François, op. cit., p. 167. 77 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M., op. cit., p. 28-29.
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porta, estando assim resguardado pela Quarta Emenda, que protege pessoas e não
lugares (the Fourth Amendment protects people, not places).78
Em seguida, em 1969, no caso Stanley v. Georgia, novamente foi colocada
em prova a solução dada ao caso Griswold. A demanda envolveu a realização de
busca e apreensão na casa de Stanley, estando a polícia munida do respectivo
mandado, deferido para que fossem encontradas provas da atividade de
agenciamento de apostas. Todavia, durante o procedimento, foram encontrados
vídeos obscenos no quarto de Stanley, que foi acusado de violação da legislação da
Georgia.79
Pois bem, na Suprema Corte dos Estados Unidos todos os juízes estavam
de acordo com a absolvição de Stanley, mas houve divergência quanto aos
fundamentos. Nesse particular, vale destacar o voto do juiz Marshall, que citou
tanto a manifestação proferida pelo juiz Brandeis no caso Olmstead quanto o
entendimento acolhido pelo tribunal no caso Griswold, argumentando ainda que a
Constituição protege os cidadãos contra invasões não esperadas em seu direito de
privacy.80
Por derradeiro, as decisões posteriores ao caso Griswold permitiram então
a construção e consolidação do privacy constitucional, que foi ainda dividido em
é : Q E “ ”
de outras emendas (primeira, terceira, quarta, quinta e nona), enquanto que a
segunda está voltada para o devido processo substantivo.81
11. A relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade
No Direito dos Estados Unidos, como foi exposto, não é comum a menção
a bens da personalidade, mesmo porque não existe a figura dos direitos da
personalidade, como é conhecida nos países de tradição continental. Para a
solução de eventuais demandas relacionadas com os bens da personalidade, os
norte-americanos desenvolveram então o right of privacy, que constitui uma
categoria de direitos que não é equivalente aos direitos da personalidade.82
De fato, o right of privacy apresenta inúmeros pontos de divergência,
abarcando, por um lado, aspectos que não se incluem no âmbito dos direitos da
78 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71. 79 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 99. 80 Ibidem, p. 99. 81 Ibidem, p. 100. 82 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166.
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personalidade, bem como deixando de tutelar temas que são evidentemente
abrangidos pelos direitos da personalidade.
Em linhas gerais, apresentamos a evolução do right of privacy naquele
país, cuja origem doutrinária foi lentamente sendo consagrada na jurisprudência,
na legislação de um grande número de estados e, finalmente, foi elevado ao nível
constitucional pela Suprema Corte.
Nesse contexo, pode-se notar que há um paralelo entre o desenvolvimento
do privacy e dos direitos da personalidade. É que para problemas muito
semelhantes, surgidos no decorrer do século XX e início do século XXI, foram
apresentadas pelos dois sistemas soluções muitas vezes bastante parecidas, não
obstante a diversidade da fundamentação.
Todavia, é certo que os norte-americanos levam o individualismo ao
extremo, bem como possuem uma mentalidade pouco solidária, o que, somado ao
raciocínio da common law sustentado pela técnica de solução de casos pelos
precedentes,83 acaba por deixar claro que é bastante complicada qualquer
aproximação teórica entre o right of privacy e os direitos da personalidade. A isso
deve ser acrescido o fato de que há uma grande dificuldade de se estabelecer uma
definição adequada entorno do privacy, havendo diferentes formas de se ver o
instituto.84
Realmente, esses institutos apresentam origem, natureza jurídica,
abrangência, fundamentação e limites bastante diversos. Todavia, considerando a
similude dos problemas enfrentados pelos países da civil law e da common law,
não nos parece despropositada a constante análise do direito dos Estados Unidos,
que sempre poderá contribuir com soluções criativas para a inovação da civil law.
Por fim, no que toca especificamente ao direito à imagem, vale lembrar
que o sistema jurídico dos Estados Unidos é bastante particular, uma vez que
reconhece dois direitos distintos para a sua proteção, conforme o atentado diga
respeito a um aspecto da vida privada ou à utilização comercial da imagem. Assim,
tal solução apresenta o inconveniente da dificuldade de delimitação do conceito e
das fronteiras entre o privacy e o publicity, o que, a nosso ver, não aconselha sua
adoção no direito pátrio.
83 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Teoria Geral. Vol. 1. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60. 84 SOMA, John T., op. cit., p. 16.
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12. Considerações finais
Reputamos ser sempre interessante o conhecimento de outros sistemas
jurídicos, tanto que nos propusemos a estudar o privacy, no entanto, a mera
transposição de institutos da common law para a seara dos direitos da
personalidade, sem um aprofundado exame da matéria, em especial no que toca à
tutela da imagem, não parece apresentar grandes vantagens. Ao contrário, tal
tentativa pode representar uma ameaça aos direitos da personalidade, cuja
proteção já conta com legislação, doutrina e jurisprudência bastante sólidas nos
países de tradição romano-germânica.
Portanto, consideramos ser sempre necessária muita cautela ao se tentar
uma aproxição do privacy aos direitos da personalidade, pelo que vemos com certa
restrição a conduta daqueles estudiosos, entusiastas do Direito dos Estados
Unidos, que procuram, sem maiores cuidados, a transposição para o direito
continental de institutos da common law.
Recebido em 23/01/2015
1º parecer em 24/02/2015
2º parecer em 24/02/2015
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USUCAPIÃO FAMILIAR: QUEM NOS SALVA DA BONDADE DOS
BONS?
Family’s Adverse Possession: who save us from good’s goodness?
Ricardo Lucas Calderon
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.
Pós-graduado em Teoria Geral do Direito e em Direito Processual Civil.
Professor dos cursos de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas – FGV/ISAE e da Universidade
Positivo.
Coordenador da especialização em Direito das Famílias e Sucessões da Academia Brasileira de
Direito Constitucional. Professor dos cursos de Graduação da UNIBRASIL. Pesquisador do grupo
q D C “V C é ” PPGD-UFPR. Membro
do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-
IBDFam. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Comissão de Educação
Jurídica da OAB/PR. Advogado em Curitiba.
Michele Mayumi Iwasaki
Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.
Pós-graduada em Sociologia Política-UFPR. Pesquisadora do grupo de estudos e
q D C “V C é ” PPGD-UFPR.
Advogada em Curitiba.
RESUMO: Em 2011 foi introduzida no Brasil a denominada usucapião familiar (art.
1.240-A do Código Civil). O texto legal dispõe que o ex-cônjuge ou ex-companheiro
poderá adquirir a propriedade total do imóvel objeto do lar conjugal, desde que
demonstrada posse superior a dois anos ininterruptos, agregada ao abandono do
lar pelo outro consorte. Nesse trabalho, parte-se da premissa que esse instituto
pretende, em última ratio, tutelar a família e o direito à moradia, o que lhe
garantiria guarida constitucional. A partir disso, procura contribuir na apuração do
seu significado hodierno, que deve resultar de uma interpretação sistemática que
leve a sua escorreita tradução. Nesse mister, importa imprimir uma hermenêutica
crítico-construtiva que permita extrair um sentido do instituto que reverbere,
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muito mais do que apenas a sua estrutura, a sua função naquelas dadas situações
fáticas.
PALAVRAS-CHAVE: Usucapião familiar; Família; Propriedade; Abandono; Moradia.
ABSTRACT: In 2011 a new form of acquisition of property was introduced in
Brazilian law: the family adverse possession (Civil C ‟ 1.240-A). The
legal text determines that the ex-spouse or ex-partner may acquire the total
property to the real estate of the conjugal home as long as he/she proves
possession of more than two years without interruption and the abandonment of
the home by the other consort. In this paper we part from the premise that this
institute seeks, ratio ultima, to support the family and the fundamental right to
housing, which guarantees a certain level of constitutional protection. Aside from
this, it seeks to contribute to the comprehension of its hodiernal meaning, which
should result a systematic interpretation that leads to its more perfect translation.
In this manner it is important to make use of critical-constructive hermeneutics,
which allow for the extraction of the institute that resounds much further than the
structure, to its function in those factual situations.
KEYWORDS: Family adverse possession; Family; Property; Abandonment; Housing.
SUMÁRIO: Introdução – 1. Constitucionalidade do dispositivo – 2. Requisitos legais
e questões controversas da usucapião familiar – 3. O sentido funcionalizado da
expressão abandono do lar – Considerações Finais.
Introdução
A celeridade das mutações fáticas do líquido cenário contemporâneo acaba
por apresentar novas questões ao Direito, não raro com complexos e intricados
fatores envolvidos.85 O afã de procurar respostas imediatas para alguns destes
intrigantes litígios do presente acaba, muitas vezes, por levar a uma precipitação
que nem sempre é recomendável aos juristas.
85
“Num mundo em que as coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima das identidades, que
são necessariamente instáveis, é preciso estar constantemente em alerta; mas acima de tudo é preciso manter
a própria flexibilidade e velocidade de reajuste em relação aos padrões cambiantes do mundo „lá fora‟.”
(BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 100).
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É o que se percebe na introdução no direito brasileiro da denominada
usucapião familiar,86 novel modalidade aquisitiva da propriedade que decorre do
abandono do lar por um dos cônjuges ou companheiros, agregado a outros
requisitos descritos na regra que o instaurou. Tal usucapião extraordinária urbana
foi regulada pela incorporação do art. 1.240-A no Código Civil,87 criando um
instituto sem qualquer prévia discussão doutrinária ou jurisprudencial a respeito.
Em um primeiro momento, pode-se vislumbrar uma provável boa intenção
do legislador ao procurar tutelar um problema social muitas vezes reiterado: o
imbróglio resultante de um fim conflituoso de uma relação de conjugalidade88 sem
a resolução das questões patrimoniais relativas ao imóvel que serve de moradia
para os integrantes daquele núcleo familiar. Isso porque, com a separação de fato,
usualmente um dos membros do casal permanece no lar conjugal (muitas vezes a
mulher com filhos) enquanto o outro dali se retira (nestes casos, o homem). E o
posterior pleito de partilha do bem pelo cônjuge ou convivente que se afastou
pode, em muitos casos, trazer dificuldades de moradia e subsistência para aqueles
que restaram no imóvel, implicando em problemas de diversas ordens.
É possível que o legislador tenha tentado tutelar situações fáticas como
essas, amparando o consorte abandonado que permaneceu no imóvel (a mulher
com a prole, na imagem que foi retratada como corriqueira nos debates legislativos
sobre o tema) e que então necessitaria do bem para sua moradia.89 Observa-se,
assim, primeiramente, uma certa preocupação em tutelar a família abandonada e
garantir o seu direito de moradia, o que pode parecer justificável.
86
Também denominada usucapião conjugal, usucapião por abandono afetivo, ou, ainda, usucapião
extraordinária por abandono do lar. Parece que a definição mais adequada é efetivamente usucapião familiar. 87
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta,
com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja
propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia
ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano
ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao
mesmo possuidor mais de uma vez.§ 2o (VETADO).” (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011, que alterou a
Lei 11 977/2009 – reguladora do programa federal Minha Casa, Minha Vida). 88
Utiliza-se neste trabalho da expressão conjugalidade como significante que engloba tanto as
relações consagradas pelo matrimônio como as relações mantidas sob a forma de união estável. 89
Ao comentar o trâmite do projeto de lei nas casas legislativas do Congresso, Ricardo Aronne
assevera: “Dentro das comissões, no debate das propostas ao Minha Casa Vida, um dos pontos em que os
iluminados legisladores do planalto se detiveram, foi que não raro os casais constituintes das famílias simples
da planície, para os quais o programa se dirige, tinham sua união dissolvida. Que em razão disso, a mulher,
normalmente, era abandonada e ficava vulnerável; enquanto o homem depois, ao divórcio, separação ou
dissolução, viria a postular a sua meação. E mais, que esse era mais um problema que atribulava o Judiciário,
sendo desejável um mecanismo que lograsse aliviar-lhe tal peso.” ARONNE, Ricardo. A usucapião por
abandono familiar e o cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser
o que jamais será. p. 4. Artigo atualmente no prelo.
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Contudo, em que pese uma provável boa intenção na origem da inclusão
desta nova modalidade da usucapião familiar, calha aqui o célebre questionamento
de Agostinho Ramalho Marques Neto: quem nos salva da bondade dos bons?90
Isso porque, a regulação posta com o referido dispositivo legal não é muito clara
nas expressões que elegeu para retratá-lo. Diversas inconsistências técnicas são
observadas e, quiçá, não proteja nem mesmo o bem jurídico que pretendeu
(proteção da família e do direito à moradia), de modo que a norma resultante da
leitura desse dispositivo pode levar a algumas situações não previstas e certamente
não desejadas nem mesmo por quem a aprovou. A precipitação e a generalização
praticada com a imposição da usucapião familiar exige um esforço hermenêutico
dos civilistas, com o objetivo de evitar um inadmissível retrocesso e permitir uma
significação jurídica alinhada ao estágio atual da nossa literatura jurídica e da
nossa jurisprudência.91
O intuito do presente artigo é contribuir com a apuração do sentido civil-
constitucional desse dispositivo, adequado a este momento do direito privado,
averiguando qual sua função no nosso ordenamento jurídico, sempre com especial
atenção para os princípios constitucionais incidentes na hipótese, com observância
da funcionalização do direito das coisas e sem descurar da estatura do pulsante
direito de família brasileiro hodierno.
Anteriormente à análise dos aspectos jurídicos envolvidos na temática,
importa anotar ao menos uma percepção prévia que salta aos olhos ao apreciar o
texto legal da usucapião familiar: os sociólogos afirmam que, dentre as principais
características dos relacionamentos afetivos atuais, estão a flexibilidade e a
efemeridade, as quais levaram Zygmunt Bauman a denominar o período como a
era do amor líquido.92 Para Gilles Lipovestky “ ã í ã í
90
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade
Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994: “Uma vez
perguntei: quem nos protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante,
„a priori‟, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. (...)”. 91
Como se perceberá a seguir, não são poucos os questionamentos apresentados a referida usucapião,
muitos deles contundentes. Ademais, a literatura jurídica e o conjunto de decisões dos nossos tribunais
consolidaram conquistas que não podem ser renunciadas pelos civilistas. 92
“Pode-se supor (mas será uma suposição fundamentada) que em nossa época cresce rapidamente o
número de pessoas que tendem a chamar de amor mais de uma de suas experiências de vida, que não
garantiriam que o amor que atualmente vivenciam é o último, que têm expectativa de viver outras
experiências como essa no futuro. Não devemos nos surpreender se essa suposição se mostrar correta. Afinal,
a definição romântica do amor como „até que a morte nos separe‟ está decididamente fora de moda, tendo
deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais
costumavam servir e de onde extraía seu vigor e sua valorização.” (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido:
Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Op. cit., p. 19).
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família pós-moralista hodierna, que já é possível fazer a montagem ou
”.93
Não deixa de ser sintomático que, justamente no momento de maior
liberdade e permissividade para dissoluções e recombinações dos relacionamentos
í „ ‟.
Prova disso é que um dos temas mais discutidos no direito de família atualmente é
o abandono afetivo.94 Paralelamente, segue o abandono elencado no Código Civil
como uma das hipóteses de impossibilidade da comunhão de vida conjugal95 e,
agora, com repercussão também no direito das coisas, de forma até mesmo
surpreendente, nota-se que um aspecto relevante da locução que instituiu a
usucapião familiar está na expressão abandono do lar.96 Essa centralidade que
pretende ser conferida às consequências jurídicas das situações fáticas decorrentes
do abandono é merecedora de percepção e reflexão.
Para além disso, o histórico do direito brasileiro exige que o significante
abandono do lar mereça especial atenção dos juristas na extração do seu
significado atual, visto não ser indicado, neste momento, retomar o sentido que a
denominação já teve outrora.97 A partir desta percepção, um dos pontos centrais
da análise ora proposta se debruçará na tradução atual para o termo abandono do
lar previsto na regra da usucapião conjugal, pois esse parece ser um dos pontos
93
LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos
novos tempos democráticos. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005. p. 139. 94
CALDERON, Ricardo Lucas. Abandono Afetivo: reflexões a partir do entendimento do Superior Tribunal
de Justiça. IN: RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. et all (orgs.) A ressignificação da função dos institutos
fundamentais do Direito Civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014.
(p. 545-564) 95
O Código Civil de 2002 também refere ao abandono nos relacionamentos familiares no seu art. 1.573, IV:
“Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos
seguintes motivos: (.;..) IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo.” 96
Cujo sentido não é descrito pela regra, o que pode levar (e já tem levado) a questionamentos quanto ao seu
significado atual. 97
Isto porque, durante grande parte do século passado o abandono do lar como descumprimento dos deveres
do casamento acabou por servir de embasamento para situações de repressão e até mesmo dominação da
mulher, com um viés totalmente equivocado, incompatível com a igualdade de gêneros garantida pela atual
Constituição: “No regime originário do Código Civil de 1916 o desquite litigioso deveria caber em uma das
causas especificadas no art. 317: „ adultério, tentativa de morte, sevícias ou injúria grave, abandono
voluntário do lar por mais de dois anos‟. A jurisprudência do passado procurou alargar esse aparente
numerus clausus, entendendo que o abandono do lar por menos de dois anos poderia constituir injúria
grave, expandindo o conceito de injúria.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito de Família. 14
ed. v.6. São Paulo: Atlas, 2014. p. 197. Quem aponta a direção a ser seguida neste particular é Ana Carla
Harmatiuk Matos: “Desta maneira, objetivamos não reproduzir uma dogmática ultrapassada, comprometida
com ideais dominantes de uma classe social, artificial, excludente, discriminatória à condição feminina, a
qual não abrange as diferentes espécies de relações familiares. Tal modelo foi erigido em um determinado
momento histórico, entretanto, os valores atuais estão a exigir novas estruturas jurídicas de respostas.”
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000. p.164.
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nevrálgicos do tema em comento. Outro aspecto que será tratado diz respeito à
necessária imbricação que o direito à moradia deverá ter no momento da
concretização do referido instituto.
Para melhor clareza do que se propõe, dividiu-se a análise em quatro
pontos: o primeiro discorrerá sobre a constitucionalidade do dispositivo; o
segundo sobre os aspectos centrais desta modalidade aquisitiva; o terceiro
sustentará o sentido que deve ser conferido a expressão abandono do lar com a
necessária tutela da família; e, por derradeiro, considerações finais são
apresentadas com destaque no perfil funcional que deve ser conferido à usucapião
familiar.
1. Constitucionalidade do dispositivo
O processo legislativo de aprovação da Lei 12.424 de 2011 (que introduziu
o art. 1.240-A no Código Civil) está repleto de peculiaridades que, para alguns
autores, maculariam o dispositivo de insanável inconstitucionalidade, a qual
sustentam ser também de ordem material, por tratar equivocadamente como
usucapião uma situação que afronta aspectos basilares desta modalidade
aquisitiva.98
No âmbito formal, a referida lei teve como ponto de partida uma Medida
Provisória que atualizava as regras do programa do governo federal Minha Casa
Minha Vida,99 que originariamente nada falava sobre a nova modalidade de
usucapião. No decorrer do debate desta Medida Provisória nas comissões do
Congresso Nacional, foi suscitada a possibilidade de introdução desta usucapião
familiar, o que acabou prevalecendo no projeto final que foi aprovado. Entretanto,
não houve discussão no plenário sobre tal novel usucapião, que não constou nem
mesmo da exposição de motivos do referido projeto de lei. Por tudo isso, há quem
alegue ―que o próprio processo legislativo resta contaminado‖.100
Essas inconsistências formais do atabalhoado processo de aprovação da lei
que implantou o art. 1.240-A no Código Civil podem, efetivamente, maculá-lo por
completo, visto que são relevantes os questionamentos apresentados (o que não se
ignora). Apesar disso, até este momento nenhuma medida que o retire do
98
Por todos, as contundentes observações de: ARONNE, Ricardo. A usucapião por abandono familiar e o
cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser o que jamais será. p.
4. Artigo atualmente no prelo. 99
Medida Provisória 514 de 2010. 100
Ob. Cit. p. 5.
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ordenamento (ou suspenda sua eficácia) foi proferida, de modo que segue em
vigência e, ainda, vem sendo aplicado reiteradamente pelos nossos tribunais.
Apesar da possibilidade até mesmo de uma declaração incidental de
inconstitucionalidade no julgamento dos casos concretos, fato é que até este
momento a majoritária corrente doutrinária e jurisprudencial aponta no sentido
de sua validade e constitucionalidade, o que tem feito avançar o debate relativo ao
seu conteúdo material e a forma da sua concretização.
A partir da premissa de que a Constituição é a bússola que deve orientar a
interpretação do Código Civil (e não o contrário) entende-se possível extrair um
sentido da usucapião familiar que seja adequado ao texto constitucional.101 Diante
disso, com esta observação prévia, sem deixar de anotar a pertinência de muitas
das objeções formais que lhe são postas, passa-se a análise das questões materiais
do dispositivo, pois é este o objetivo central do presente trabalho.
Ao lado do aspecto formal, como antes mencionado, alguns autores
questionam também uma suposta inconstitucionalidade material da usucapião
familiar, entendendo haver afronta injustificada a segurança jurídica e o direito de
propriedade, por não demonstrar uma função social compatível com a
expropriação pretendida e, ainda, não atentar para as atuais diretrizes
constitucionais sobre direito de família.102
Nesse particular, não parecem se sustentar os argumentos dos defensores
da inconstitucionalidade material, pois é possível encontrar guarida constitucional
para uma adequada interpretação desse instituto, sem embargo dos diversos
equívocos terminológicos que ele apresenta. Em outras palavras, pode-se
identificar uma leitura do dispositivo adequada aos princípios e valores
constitucionais incidentes na hipótese, o que faria reluzir sua constitucionalidade.
101
“É verdade que a boa hermenêutica deve impedir retrocessos, na medida em que a Constituição Federal é
que deve conformar a disciplina do Código Civil. Nunca o contrário. Não é menos verdade, todavia, que em
um campo no qual o político e o jurídico encontram-se tão próximos, o texto do Novo Código referencia um
posicionamento teórico diverso daquele conquistado a partir da paulatina construção doutrinária e
jurisprudencial consolidada.” LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social da propriedade: em busca de
uma contextualização entre a Constituição Federal e o Novo Código Civil. IN: Revista da Faculdade de
Direito de São Bernardo do Campo. A. 8. N. 10. São Paulo, 2004. (p. 271-287). p. 285-286. 102
“Nessa linha, não se descarta a inconstitucionalidade do novel artigo 1240-A.” DONIZETTI, Elpídio.
Usucapião do lar serve de consolo para o abandonado. Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico de 20
de setembro de 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-set-20/consolo-abandonado-
usucapiao-lar-desfeito>. Acesso em 02 de agosto de 2014.
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O princípio basilar da nossa Constituição é o da dignidade da pessoa
humana,103 que aponta no sentido de proteção desta esfera dos particulares com a
maior efetividade possível. A escorreita atenção ao princípio não abarca apenas a
proteção contra tratamentos degradantes ou desumanos, mas se circunscreve em
um invólucro que pode assumir inclusive relevos patrimoniais.104 Uma especial
proteção da dignidade daqueles integrantes do núcleo familiar que restaram
desamparados e necessitam do uso do imóvel para sua subsistência pode dar
suporte a constitucionalidade da modalidade aquisitiva ora apreciada.105
Outro princípio que assume densidade na análise da constitucionalidade
da usucapião familiar é o da solidariedade,106 também previsto expressamente pela
Constituição de 1988.107 A diretriz que impele a um tratamento solidário assume
especial destaque quando do trato de conflitos entre cônjuges ou conviventes,
podendo inclusive resultar em obrigações específicas decorrentes de tais relações
de conjugalidade, com extensão até mesmo para após o término do relacionamento
(como o exemplo da obrigação alimentar). Assim, a destinação da propriedade do
imóvel apenas a apenas um dos integrantes da respectiva relação pode se justificar
em um espectro de prevalência do princípio da solidariedade, no sentido concreto
de que o patrimônio de um dos consortes acolha, naquele momento, o outro.
103
Art. 1º da CF/88. Sobre o tema: MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana:
substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 116 104
“[...] o princípio constitucional visa a garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no
sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de
integridades físicas ao ser humano. [...] Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade
humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste. De modo que terão precedência os
direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que
estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei.” (MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de
dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. Op. cit., p. 116) 105
“A proteção jurídica à dignidade da pessoa humana, valor fundamental do ordenamento brasileiro,
abrange, como se sabe, a tutela dos múltiplos aspectos existenciais da pessoa: nome, imagem, privacidade
etc. Inclui também a garantia dos meios materiais razoavelmente necessários – em não apenas mínimos –
para o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Tal garantia decorre logicamente da própria tutela
da dignidade humana, que se converteria em fórmula vazia não fosse dever do Estado, das instituições e da
sociedade civil assegurar os meios necessários ao pleno exercício desta dignidade.” SCHREIBER, Anderson.
Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. IN:
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.
84. 106
Art. 3º da CF/88. 107
LÔBO, Paulo Luiz Netto. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In:
CONRADO, Marcelo (Org.). Direito Privado e Constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da
pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 327.
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O direito à moradia108 também pode contribuir para uma densificação
constitucional da usucapião familiar, desde que sua materialização vise tutelar essa
premente questão habitacional. Na perspectiva do direito italiano Pietro
Perlingieri assevera que:
A inegável relevância jurídica do interesse à moradia permitiu à Corte C „ ‟ „ q q z q E C çã ‟ a ser q „ que a vida de cada pessoa reflita a cada dia e sob qualquer aspecto, a h ‟.109
A Constituição Federal brasileira possui expresso dispositivo que aponta
na proteção do direito à moradia, art. 6º, devidamente incluído no rol dos direitos
çã q “ z -se necessários novos
instrumentos jurídicos destinados a garantir a efetiva tutela do direito à
moradi ”.110 Nesse contexto, é possível vislumbrar uma áurea de
constitucionalidade desta nova modalidade de usucapião caso sua interpretação
priorize a consagração do constitucional direito à moradia.111
Os questionamentos quanto a eventual desrespeito ao direito de
propriedade e à segurança jurídica podem ser respondidos com a observância da
sua funcionalização, que também é reverenciada constitucionalmente. Norberto
Bobbio preconiza que o direito deve atentar para além da estrutura dos institutos
jurídicos, dedicando especial relevo para a sua função.112 O movimento de
108
Art. 6º da CF/88. Sobre o tema: “A moradia como direito, formalizado em texto normativo, somente
aparece em 2000, com a inclusão realizada via Emenda Constitucional 26, no art. 6º. O que significa dizer
desde logo que, assim como o direito não acompanhou a idéia da questão social e da política pública, a
moradia também não figurou no rol das „novas‟ regulações fundamentais e sociais estabelecidas inicialmente
no período da redemocratização.” PONTES, Daniele Regina. Direito à Moradia: entre o tempo e o espaço
das apropriações. Curitiba: Juruá, 2014. p. 129-130 109
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 888. Em nota de rodapé. 110
SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel
residencial do devedor solteiro. IN: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito
civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.85. 111
Nessa perspectiva a posição de Nelson Nery Junior, para quem o sentido finalístico da usucapião familiar
deve estar atrelado ao direito à moradia: “É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para
famílias com pequena renda mensal, bem como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade
conjugal, mais que ainda reside no imóvel, dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou
o lar. (...) O elemento finalísitico da utilização do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua
família, deve estar presente para que possa ser declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR,
Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013. p. 1162. 112
“Sem fazer concessões a rótulos, sempre perigosos por mais úteis que sejam, acredito ser possível afirmar
com certa tranqüilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tenha
obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se
dedicaram à teoria do direito se preocuparam muito mais em saber „como o direito é feito‟ do que „para que o
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repersonalização do direito civil também conferiu uma nova coloração a muitos
destes conceitos.113
A função social é elemento estrutural da propriedade, obriga o proprietário
e deve restar atendida no caso concreto, sob pena até mesmo de fulminar a
titularidade desse direito na sua esfera jurídica.114 Conforme afirma Eroulths
Cortiano Junior, a adequada função social da propriedade aponta na melhor
utilização do bem no específico caso concreto
Na apreciação da função social da propriedade, o operador do Direito tem de atentar para a concretude da situação proprietária, levando em conta a posição ocupada pelo sujeito proprietário – na sua vida de relações e na sua relação com o bem apropriado -, as características do bem sobre o qual incide a propriedade e a forma do exercício dos poderes proprietários. A função social da propriedade remete, sempre, a uma visão concreta das relações em que incide o fenômeno proprietário, cujo balizamento será feito a partir da normativa, mas cujo objetivo é garantir a melhor utilização social da propriedade. Aqui se dá a ruptura do modelo proprietário.115
Nesta perspectiva, mostra-se viável sustentar a constitucionalidade da
usucapião familiar como instrumento que vise proteger a mais adequada utilização
concreta do imóvel, o que retrataria o atendimento escorreito da sua função social,
apontando, inequivocamente, para a prevalência do direito à moradia como acesso
ao direito de propriedade116.
direito serve‟. A conseqüência disso foi que a análise estrutural foi levada muito mais a fundo do que a
análise funcional.” (BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri:
Manole, 2007. p. 53-54. 113
“Neste sentido se julga oportuna a «repersonalização» do direito civil – seja qual for o invólucro em que
esse direito se contenha –, isto é, a acentuação da sua raiz antropocêntrica, da sua ligação visceral com a
pessoa e os seus direitos.” (CARVALHO, Orlando de. A Teoria Geral da Relação Jurídica. 2. ed. Coimbra:
Centelha, 1982. p. 90) 114
“Diante de tais reflexões críticas, construiu-se o entendimento de que a função social da propriedade
consiste em elemento interno do direito de propriedade, aspecto funcional que integra o conteúdo do direito,
ao lado do aspecto estrutural. A partir daí, transforma-se a concepção segundo a qual o proprietário deteria
amplos poderes, limitados apenas externa e negativamente, na medida em que o legislador imponha confins
para o regular exercício dos direitos. Diversamente, os poderes concedidos ao proprietário adquirem
legitimidade na medida em que o exercício concreto da propriedade adquire legitimidade na medida em que o
exercício concreto da propriedade desempenhe função merecedora de tutela, tendo em conta os centros de
interesse extra-proprietários alcançados pelo exercício do domínio, a serem preservados e promovidos na
relação jurídica da propriedade, como expressão de sua função social.” TEPEDINO, Gustavo. A Função
Social da Propriedade e o Meio Ambiente. IN: Temas de Direito Civil. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
p. 187. 115
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 146-147. 116
“O direito à moradia, como direito ao acesso à propriedade da moradia, é um dos instrumentos, mas não o
único, para realizar a fruição e a utilização da coisa.” PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade
constitucional. Op. Cit. p. 888.
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No campo das titularidades é inequívoco que nossa Constituição Federal
assegura o direito a um mínimo existencial,117 o que pode vir a justificar a aquisição
da propriedade na forma do art. 1.240-A do Código Civil.118 Exemplificativamente:
na hipótese de um dos consortes necessitar do imóvel para sua moradia, como
condição vital para sua mantença e de seus familiares, viável a sua proteção
também em observância do direito ao mínimo existencial.
Ainda sob a ótica constitucional, percebe-se uma especial tutela da família,
ao ser descrita como base da sociedade e merecedora de especial proteção do
Estado (art. 226), de maneira que latente a constitucionalidade dos institutos que
pretendam efetivar essa proteção.119 Na esteira disso, uma leitura da usucapião
familiar que objetive proteger a esfera patrimonial da família se afigura claramente
q é “ é
pessoa e da família; isso tem consequências notáveis no plano das relações
í ”.120 Há sólida corrente doutrinária nesse sentido. Luiz Edson Fachin é
um dos defensores da constitucionalidade do art. 1.240-A do Código Civil
Apreende-se que o novo dispositivo legal encartado ao Código Civil é adequado aos vetores que esteiam o ordenamento jurídico brasileiro, sendo possível o acolhimento sistemático ao art. 1240-A em leitura orientada pelas determinantes principiológico-constitucionais.121
A partir das considerações acima, afigura-se possível sustentar a
constitucionalidade de uma leitura da usucapião familiar ao afiná-la com tais
pressupostos constitucionais, que devem, inexoravelmente, reverberar na
definição das balizas de aplicação de referido instituto.
117
“Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção
do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo
existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.8. 118
“A guarida a essa esfera patrimonial básica acentua a consideração de valores que denotam interesses
sociais incidentes sobre as titularidades. Tais valores recaem, ainda que de modo diverso, sobre a posse a
propriedade.” FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. atual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 285. 119
“Em verdade a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento da Constituição Federal
foi a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o
respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a
defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à
dignidade da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem
ser focadas sob a luz do Direito Constitucional.” MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed.,
rev. atual. amp. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 42. 120
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 888. 121
FACHIN, Luiz Edson. A constitucionalidade da usucapião familiar do art. 1.240-A do Código Civil. In:
Revista Carta Forense, de 2 de outubro de 2011. Disponível em:
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-constitucionalidade-da-usucapiao-familiar-do-artigo-
1240-a-do-codigo-civil-brasileiro/7733>. Acesso em: 02 de agosto de 2014.
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2. Requisitos legais e questões controversas da usucapião familiar
Inegável que faltou ao legislador uma precisão terminológica para a
definição do instituto da usucapião familiar, o que já vem sendo observado por
parte da doutrina e alguns precedentes nos tribunais.122
Nesse contexto, na apuração do sentido do instituto não se pode perder de
vista a essência da necessária hermenêutica com a superação da simples
subsunção conforme apregoa Gustavo Tepedino
[...] se o ordenamento é unitário, moldado na tensão dialética da argamassa única dos fatos e das normas, cada regra deve ser interpretada e aplicada a um só tempo, refletindo o conjunto das normas em vigor. A norma do caso concreto é definida pelas circunstâncias fáticas na qual incide, sendo extraída do conjunto normativo em que se constitui o ordenamento como um todo.123
Com a vigência da Lei Federal 12.424 de 16.06.2011 foi incluído no
Có C “ ã ” ( . 1.240-A, CC),
pelo qual se passa a admitir a exceção de hipótese de prescrição aquisitiva da posse
entre ex-cônjuges ou ex-companheiros (art. 197, I, CC).
Da letra fria da lei extrai-se tratar de instituto aplicável a imóvel
urbano com até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), objeto de
partilha de bens em que uma das partes abandona o lar em detrimento do
exercício da posse pela outra, que utiliza o bem para sua moradia ou de sua
família, sem que esta seja proprietário de outro imóvel, urbano ou rural:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
A primeira controvérsia em torno do tema parece estar
praticamente superada e diz respeito ao marco temporal inicial da contagem do
prazo da prescrição aquisitiva pela incidência do instituto em razão da sua eficácia
no tempo. Para delimitar a prazo inicial da usucapião familiar prevalece o
122
No caso da usucapião familiar há dificuldade ainda maior devido ao curto lapso temporal entre a
aprovação da norma e a de vigência da lei que a criou. Além disso, há dificuldade de acesso a amostragem
mais ampla de julgados em vários de tribunais devido a tramitação em segredo de justiça nos processos de
famílias (art. 155, II, CPC). Essa pesquisa tem por base a pesquisa de jurisprudência no Supremo Tribunal
Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça das unidades da federação de Alagoas, Rondônia,
Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e Territórios, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná. 123
TEPEDINO, Gustavo. O ocaso da subsunção. Disponível em: <http://www.tepedino.adv.br/wp/wp-
content/uploads/2012/09/RTDC.Editorial.v.034.pdf>. Acesso em 28.07.2014.
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entendimento da sua ocorrência a partir da vigência da Lei 12.424/2011, que visa
assegurar a segurança jurídica das relações jurídicas previamente estabelecidas.
Esse é o entendimento firmado por muitos tribunais e que vêm sendo
acompanhado em uma razoável quantidade de precedentes,124 assim como foi
deliberado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal125
Enunciado 498 - A fluência do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião nele contemplada tem início com a entrada em vigor da Lei n. 12.424/2011.
Assim, independentemente do exercício prévio da posse de forma
exclusiva por um dos cônjuges ou companheiro (a), segundo a decisão reiterada
dos tribunais, a data inicial a qual se aplica a usucapião familiar é 16.06.2011,
quando passou a vigorar o dispositivo em tela no Código Civil.
Outra questão que em princípio se evidenciava mais tortuosa na
caracterização do começo do prazo da prescrição aquisitiva está na definição da
data separação do casal, o que não implica, necessariamente, na existência de
separação judicial, medida cautelar de separação de corpos ou até mesmo do
divórcio.
O texto legal faz referência a çã “ -cônjuge ou
h ” “ ”. N q
coabitação prescindível à constituição da entidade familiar, a data da separação
fática do casal será o marco para a contagem do período aquisitivo, sendo
irrelevante o seu prévio reconhecimento formal (seja pela via judicial ou por
escritura pública).
Nessa linha é a interpretação dada pelo Enunciado 501 da V Jornada de
Direito Civil
124
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO FAMILIAR - LEI 12.424/11 - VIGÊNCIA -
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. O prazo de 02 anos da prescrição aquisitiva, exigido pela Lei nº
12.424/11, deve ser contado a partir da sua vigência, por questões de segurança jurídica, vez que antes da
edição da nova forma de aquisição da propriedade não existia esta espécie de usucapião. (Apelação Cível
1.0177.11.001434-3/001, Relator(a): Des.(a) Antônio de Pádua , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em
07/03/2013, publicação da súmula em 19/03/2013). No mesmo sentido: TJ/MG Apelação Cível
1.0702.12.035148-2/001, Apelação Cível 1.0702.11.079218-2/001, Apelação Cível 1.0598.11.002678-1/001;
TJ/SP Apelação 0012360-17.2013.8.26.0032, Apelação 0707317-31.2012.8.26.0020, Apelação 0001253-
55.2013.8.26.0426, Apelação 0040665-69.2011.8.26.0100, Apelação 0052438-14.2011.8.26.0100, Apelação
0023846-23.2012.8.26.0100; TJ/RS Apelação Cível Nº 70050616598; TJ/PR Apelação Cível 3201-
90.2011.8.16.0002, Apelação Cível 0007120-30.2011.8.16.0021). 125
Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy
Rosado de Aguiar Júnior. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. In:
<http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-
civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em: 28.07.2014.
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501 - A õ “ - ô ” “ - h ” . 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio.126, 127
Nota-se a necessária adequação dos termos empregados na redação do art.
1.240-A, CC pela interpretação sistemática da concepção de ex-cônjuge ou
companheiro, tendo em vista a dignidade constitucional para a pluralidade de
entidades familiares. Vide o Enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil
500 - A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas.128
O q ã q çã é “
” obre o bem, que não se confunde com aquela definida no art. 1.197 do
Código Civil
Enunciado 502 - O conceito de posse direta referido no art. 1.240-A do Código Civil não coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código.129
Conforme leciona Pontes de Miranda, o conceito e natureza jurídica da
posse, por essência é suporte fático da relação inter-humana de poder exercido
entre o possuidor e o alter, ou seja, a comunidade. Não se trata de poder ou o seu
exercício relativo ao domínio ou à propriedade (usus, fructus, abusos). 130 Assim, a
posse pertence ao mundo dos fatos e pode ingressar no plano jurídico em razão de
ato, negócio, ato-fato ou fato jurídico puro. O exercício da posse, ainda que
acrescida de algum direito, é do plano fático e o que importa ao titular.131 Fundada
na sua natureza fática, a teoria clássica da posse admite distintas gradações e uma
consequente pluralidade de sujeitos que variam do possuidor imediato (posse
direta) ao mediato (posse indireta), adotada pelo Código.
Assim, dispõe o texto legal que a usucapião familiar poderá ser concedida
àquele que exercer a posse direta por 02 (dois) anos ininterruptos, sem oposição e
126
Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 127
No mesmo sentido julgou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Ementa: APELAÇÃO
CÍVEL Usucapião familiar, com fundamento no artigo 1.240-A do Código Civil Ação de extinção do feito,
sem resolução do mérito, afastada. O evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a
separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges. Ação em condições de ser
julgada (art. 515, § 5º, do CPC). Lapso temporal não verificado. Pedido improcedente. (Apelação 0023846-
23.2012.8.26.0100, Relator(a): Des.(a) José Carlos Ferreira Alves, 2ª Câmara de Direito Privado, julgamento
em 03.12.2013) (grifo nosso) 128
Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 129
Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 130
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte Especial, Tomo 10, Direito das Coisas:
Posse. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2001. p. 31. 131
MIRANDA. Ibid. p. 32-33.
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com exclusividade. Nesse contexto, é preciso registrar que a finalidade do instituto
não pode restringir o direito a aquisição originária da propriedade àquele que
permanece na posse efetiva do lar conjugal, devendo ser contextualizada com as
múltiplas vicissitudes que motivam a saída de uma das partes.
Darcy Bessone há muito já sustentava a necessidade de uma releitura
contemporânea do instituto e do Direito das Coisas
Não estamos a refletir apenas a figura complexa da posse. Queremos saltar para fora de um círculo tão estrito para vermos todo o descompasso entre o Direito e a vida, especialmente no campo do Direito privado. Tem faltado imaginação e criatividade aos cientistas do Direito. Não conseguem vincular-se à evolução resultante das novas descobertas e inventos. De ordinário, viram-se para trás, em lugar de volverem-se para frente.132
Por estar diretamente atrelada à proteção da família e à concretização da
h h q “ çã
”133 para evitar situações concretas de injustiça.
Por isso, em alguns casos é possível a concessão da usucapião familiar até mesmo
para o consorte que não está na posse efetiva do bem.134
Uma sociedade desigual na qual persistem condições de desigualdade de
gênero e de altos índices de violência doméstica, não se pode limitar a conferir
apenas a aplicação do instituto àquele cônjuge ou companheiro que permaneceu
fisicamente no imóvel.
É necessária uma reinterpretação dos institutos do direito das coisas em
sintonia com o Direito de Família hodierno. Exemplo da insuficiência das teorias
possessórias clássicas135 para a correta aplicação da usucapião familiar pode ser
verificada na situação abaixo
DIREITO CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL. IMÓVEL ADQUIRIDO DURANTE PERÍODO DE CONVIVÊNCIA. PERDA DA MEAÇÃO PELO COMPANHEIRO. ART. 1.240-A. APLICAÇÃO ANALÓGICA. COMPANHEIRA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INAPLICABILIDADE. PARTILHA NECESSÁRIA.
Segundo dispõe o art. 1.725 do Código Civil, reconhecida a união estável, aplica-se o regime da comunhão parcial de bens.
132
BESSONE, Darcy. Da Posse. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 7. 133
FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. 10 anos do Código Civil: o ser e o ter no
direito de família a partir da aquisição pela permanência na morada familiar. In: Direito civil constitucional e
outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Coordenação Pastora do Socorro Teixeira Leal. Rio de
Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 646. 134
SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo:
Método, 2013. p. 172. 135
Em que pese a velocidade das enormes transformações sociais ocorridas no século passado e início deste,
as teorias objetiva e subjetiva de Ihering e Savigny, respectivamente, que datam do século XIX, permanecem
bastante fortes na codificação vigente.
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Não comprovado, na hipótese, os requisitos para usucapião nos termos do art. 1.240-A, em especial o abandono do lar e a posse sem oposição, inviável aplicação analógica deste dispositivo à companheira anteriormente vítima de violência doméstica e familiar a partir da interpretação dos justos objetivos da Lei Maria da Penha, ainda mais quando já reparada financeiramente por tal ocorrência.
(Acórdão n.690599, 20120310272384APC, Relator: CARMELITA BRASIL, Revisor: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/07/2013, Publicado no DJE: 10/07/2013. Pág.: 122)
Não raro as vítimas de violência doméstica não representam seus
agressores por temer o agravamento do conflito familiar, e, com o intuito de
proteger a si e eventual prole, saem do lar conjugal. Assim, a interpretação acerca
do requisito da posse direta deve ser orientada para a finalidade de tutelar a
entidade familiar e o conjunto de direitos que compõe a sua esfera existencial
mínima, não para coagi-la a permanecer onde sequer a sua integridade física e
moral é respeitada.136
Outro ponto controvertido sobre o tema diz respeito ao foro competente
para julgar as ações relativas à usucapião familiar. Como pertine tanto ao Direito
das Coisas como ao Direito de Família, atualmente discute-se qual o foro
competente para o julgamento dessas demandas: se o foro cível comum ou as varas
especializadas de família.
Nessa questão vislumbra-se uma tendência dos tribunais a decidir pela
competência cível:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE DIVÓRCIO - RECONVENÇÃO - USUCAPIÃO FAMILIAR - ART. 1240-A DO CC/02 - COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO - DIREITO REAL - COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL - DECISÃO MANTIDA.
Na usucapião familiar, prevista art. 1240-A do CC/02, a existência de instituição familiar, seja o casamento ou a união estável, é apenas um dos requisitos necessários para a sua constituição. A questão de fundo nela contida refere-se a constituição de domínio sobre imóvel, constituindo-se, portanto, ação de cunho patrimonial. Tendo em vista que a usucapião familiar não se refere a estado de pessoas, mas sim a aquisição originária de propriedade imobiliária, cujos efeitos poderão atingir terceiros, a competência para seu julgamento é dos Juízes da Vara Cível, e não da Vara de Família. (TJMG, Agravo de Instrumento Cv 1.0024.13.206443-
136
Nessa linha, José Fernando Simão e Flávio Tartuce sustentam que o abandono do lar não tem
vinculação necessária com a posse direta do imóvel: “Desse modo, o requisito do abandono do lar merece
uma interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se
pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por cônjuge ou
companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode
ser comparada ao abandono.” In: SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 .
Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172.
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7/001, Relator(a): Des.(a) Afrânio Vilela, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/03/2014, publicação da súmula em 21/03/2014)137
Sendo a aquisição da propriedade uma consequência do abandono
familiar, questão que diz muito mais com o direito de família, a competência para
o processamento do pedido deve ser atribuída às varas de família.138
Conforme se verá adiante, a usucapião familiar tem caráter principalmente
existencial, pois visa tutelar a família e o seu direito à moradia, de modo que sua
análise é matéria que deve restar sob a incumbência dos juízos de família.
3. O sentido funcionalizado da expressão abandono do lar
O dispositivo legal que introduziu a usucapião familiar traz como um dos
q „ ‟ ã . 1240-A
do Código Civil. Infeliz a escolha deste significante pelo legislador, como já
exposto, pois a figura do abandono do lar desempenhou outro papel no direito
brasileiro recente, atualmente já totalmente superado.
Como o instituto visa tutelar um aspecto patrimonial de uma relação
familiar, deve, necessariamente, corresponder ao momento atual do direito de
família brasileiro, sob pena de incorrer em inadmissível retrocesso. As alterações
neste ramo do direito foram tantas que alguns autores até preferem referir a um
direito das famílias,139 no plural, para bem demarcar esse multifacetado sentido
contemporâneo.
Quem descreve com clareza a alteração que se processou é Maria Celina
Bodin de Moraes
Esse processo foi acompanhado de perto pela legislação e pela jurisprudência brasileiras que tiveram nas duas últimas décadas, inegavelmente, um papel promocional na construção do novo modelo familiar. Tal modelo vem sendo chamado, por alguns especialistas em „ ‟ h ó significativa novidade, em decorrência da inserção, no ambiente familiar, de princípios como igualdade e liberdade.140
137
No mesmo sentido TJ/SP Conflito de competência nº 0180277-60.2013.8.26.0000 e TJ/PR
AGRAVO DE INSTRUMENTO n.º 966031-5. 138
LIMA, Susana Borges Viegas de Lima. Usucapião familiar. In: Direito das famílias por juristas
brasileiras. Organizadoras Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carla Harmatiuk Matos. São Paulo: Saraiva,
2013. p. 805-821. 139
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. 140
MORAES, Maria Celina Bodin de. A Família Democrática. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.).
Anais do V Congresso Brasileiro do Direito de Família. São Paulo: IOB Thomson, 2006. p. 615.
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A partir dessas diretrizes constitucionais o trato atual das relações
familiares fez emergir, dentre outros, os princípios da responsabilidade141 e da
afetividade142, que conferem outra coloração às diversas categorias do direito de
família. Para proteção dessa família democrática hodierna, inviável a utilização de
figuras jurídicas que incompatibilizem com o momento alcançado.143
Importa destacar que uma adequada tutela das relações jurídicas
familiares existenciais não se compatibiliza com meras técnicas subsuntivas,
exigindo muito mais do intérprete.144 Essa especialidade das situações familiares
já era sustentada por José Lamartine de Oliveira e Francisco Muniz
Poderíamos dizer, pois, que os direitos de família, por razões éticas e pelo caráter eminentemente pessoal da relação, exigem formas próprias de tutela, inteiramente distintas das que caracterizam a defesa dos direitos de crédito, dos direitos reais e dos próprios direitos da personalidade.145
Diante disso, ao significante abandono do lar deve ser conferido um
significado adequado com a tutela da relação familiar subjacente. Ou seja,
compatível com um retrato civil-constitucional contemporâneo da família
brasileira, de modo que sua significação se circunscreva aos contornos
constitucionais e às categorias vigentes do nosso atual direito privado.
Consequentemente, se mostra inconcebível qualquer interpretação da
expressão abandono do lar que busque retomar a averiguação da culpa na
dissolução do vínculo conjugal, visto ser esta uma questão já superada no direito
de família brasileiro, máxime após a Emenda Constitucional 66/2010. Do mesmo
modo, não se pode vislumbrar na figura do abandono do lar uma mera sanção a
141
SANCHES, Fernanda Karam de Chueiri. A Responsabilidade no Direito de Família Brasileiro
Contemporâneo: Do Jurídico à Ética. Dissertação. (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em
Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013. p. 157. 142
CALDERON, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar,
2013. p. 320. 143
“Não se pode esquecer que a família, nas últimas décadas e neste início de milênio, busca mecanismos
jurídicos diversos de proteção para seus membros, o respeito às diferenças, necessidades e possibilidades.”
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 5. 22 ed. atual. Tânia da Silva Pereira. Rio
de Janeiro: Forense, 2014. 144
“Più che mai dunque nel diritto familiare risulta evidente la necessita di rinnovare le tecniche di
interpretazione e di qualificazione con il superamento di qualsiasi operazione argomentativa di tipo
sillogistico che pretenda di fermarsi alla lettera del legislatore e di espungere dall‟analisi, che è a
fondamento del convincimento giuridico, il profilo funzionale rappresentato dagli interessi e dai valori.”
(PERLINGIERI, Pietro. La persona e i suoi diritti: problemi del diritto civile. Napoli: Edizione Scientifiche,
2004. p. 378). Em tradução livre: “Mais do que nunca, portanto, no direito de família resulta evidente a
necessidade de renovar as técnicas de interpretação e de qualificação com a superação de qualquer operação
argumentativa de tipo silogístico que pretenda se deter nas palavras do legislador e afastar da análise, que é o
fundamento do convencimento jurídico, o perfil funcional representado pelos interesses e pelos valores.” 145
OLIVEIRA, José Lamartine de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de Direito de Família. 4 ed.
Curitiba: Juruá, 2008. p. 14.
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um dos cônjuges ou conviventes. Calha, aqui, a alteração de enfoque que se
percebe na própria responsabilidade civil: muito mais do que se sancionar um
culpado, o que na maioria das vezes não é simples, o foco atual visa a
recomposição da vítima. Embora não se ignore que existam autores que sustentem
que a perda da propriedade pelo cônjuge que abandona o lar simbolize uma
verdadeira sanção pelo descumprimento dos deveres do casamento ou da união
estável (a utilização da expressão abandono do lar como elemento desta usucapião
inicialmente reforça essa visão, pois é a mesma que é descrita como um dos
deveres do casamento).146
Como se pode perceber, é complemente inviável a restauração da figura do
abandono do lar com uma interpretação quase literal, que possa inicialmente
induzir a um retrocesso que busque requentar questões já superadas. A busca de
um culpado pelo fim do relacionamento somente aumenta a litigiosidade, sem
nada agregar, de modo que a solução das controvérsias só tende a agravar dada a
infinita quantidade de motivos que ambas as partes podem trazer em seu favor.
Esta leitura é incompatível com o estádio do nosso direito jusfamiliar.
Por outro lado, também o direito das coisas assumiu uma feição
constitucionalizada. A partir desta percepção não parece adequado atribuir ao
abandono do lar um sentido meramente objetivo de ausência de vínculo efetivo
com o imóvel, de ausência de posse, ausência de relação direta de uso do bem,
como é usual nas demais modalidades de usucapião. Diversos autores estão a
sustentar que a expressão abandono do lar para fins desta usucapião deve ser
146
“A nova modalidade de usucapião inserida no Código Civil pela Lei 12.424/2011 consiste em
sanção civil pelo descumprimento dos deveres do casamento e da união estável. Aquele que abandona
voluntária e injuriosamente o domicílio familiar, nas condições descritas neste dispositivo legal, descumpre
gravemente os deveres conjugais e os deveres oriundos da união estável e fica sujeito à perda do direito de
propriedade em favor do consorte que ali permanece durante dois anos e sem oposição. Este é mais um dos
artigos do Código Civil que oferece proteção ao consorte inocente e punição ao culpado pelo
descumprimento dos deveres familiares, reforçando essas normas de conduta após a Emenda Constitucional
66/2010. Recordemos que dever sem sanção não é norma de conduta, mas sim, mera recomendação ou
simples conselho, o que seria inadmissível, por inconstitucional, ou seja, por violar principalmente o art. 226,
caput, da Constituição Federal, que impõe ao Estado proteção especial à família e, por conseguinte, aos seus
membros.” FIUZA, Ricardo; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Código civil comentado. 9ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2013. p. 1171. Ainda: “O abandono do lar pelo cônjuge consiste em infração grave para a
relação jurídica de casamento. O art. 1.566, II, do CC estabelece que (...) „são deveres de ambos o cônjuges
(...) II – vida em comum, no domicílio conjugal; (...)‟. O casamento ou a união estável marcam a opção da
vida conjugal, que pode ser consolidada pelo contrato de casamento ou pela união estável.” MEDINA, José
Miguel Garcia; ARAÚJO; Fábio Caldas de. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. p. 781.
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entendida de modo objetivo, com um sentido que indique apenas vínculo efetivo
com o uso do imóvel.147
Novamente aqui as vicissitudes das relações familiares impedem que se
denote ao abandono do lar um significado que retrate meramente a ausência de
vínculo efetivo com a coisa (de uso concreto do imóvel). Isto porque, em muitos
casos, o consorte que resta no imóvel não é o que necessita dele para a moradia,
não é o que está com a prole, não é o que foi desamparado pelo outro, não é o que
está fazendo frente às responsabilidades parentais; por tudo isso, não é o que será
merecedor da titularidade plena do lar conjugal.
Corolário disso, por envolver relações familiares que possuem infinitas
delineações, se mostra totalmente descabida a fixação, a priori, de um critério
objetivo e singelo como este: que identifique a expressão abandono do lar com o
mero distanciamento físico do imóvel.
Um exemplo hipotético concreto pode auxiliar na compreensão do que se
está a sustentar: não raro muitas das mulheres vítimas de violência doméstica
simplesmente saem do lar com seus filhos para parar de sofrer tais sevícias; grande
parte delas não ajuíza as competentes ações judiciais no exíguo prazo de dois anos
e sequer registra os competentes boletins de ocorrência (pois muitas vezes estão
mais preocupadas com a segurança e subsistência - sua e dos seus filhos - naquele
difícil momento da vida, ainda mais quando o pai-agressor está sem emprego e
possui ainda vícios de drogas ou álcool). Também não é incomum que o agressor
que restou fisicamente no lar não faça frente as suas responsabilidades parentais:
não pague alimentos, não visite os filhos, não exerça sua autoridade parental, não
permita que a mulher entre em contato e que sequer volte ao lar pegar os seus
pertences e os dos filhos. Este quadro sombrio ocorre com mais frequência em
famílias de baixa renda, desestruturadas e com diversos problemas sociais, mas
atualmente muitas delas são proprietárias de imóvel pelo referido programa
federal Minha Casa, Minha Vida. Sobrevinda uma ação real, imagine-se que tais
fatos se comprovem facilmente (até com confissão de ambas as partes: o pai das
agressões e descumprimentos das obrigações com os filhos; a mãe com seu
147
“É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para famílias com pequena renda mensal, bem
como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade conjugal, mais que ainda reside no imóvel,
dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar. (...) O elemento finalístico da
utilização do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua família, deve estar presente para que
possa ser declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade.
Código Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 1162.
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distanciamento do local por mais de dois anos sem ajuizar qualquer demanda).
Pois bem, seria sustentável no atual direito civil-constitucional brasileiro afirmar
que o consorte-agressor que restou fisicamente no lar por dois anos seguidos, mas
abandonou por completo sua família neste período, descumprindo in totum sua
responsabilidade familiar e parental, venha a receber a propriedade total do imóvel
pelo mero atendimento objetivo dos requisitos formais da usucapião familiar?
Parece que não.
Conceder a aquisição da propriedade a este pai-agressor apenas porque foi
ele quem restou fisicamente no imóvel pelo prazo de dois anos afrontaria
justamente os princípios constitucionais que conferem guarida à usucapião
familiar: dignidade, solidariedade, função social, direito à moradia e direito a um
mínimo existencial. Este é um dos pontos nodais da presente proposta: exaltar
que a significação da usucapião familiar não pode descurar dos princípios
constitucionais que a sustentaram. Ou seja, a caracterização dos requisitos do
instituto não pode olvidar dos comandos que advém dos valores constitucionais
que o fundamentam e, com isso, o integram. Impensável sustentar a
constitucionalidade da usucapião familiar com base na dignidade da pessoa
humana, solidariedade, função social, direito à moradia e, no momento da
aplicação concreta dos seus requisitos, virar as costas para tais questões e se ater
apenas aos elementos estruturais-formais, contrariando os supracitados valores
constitucionais.148
Há que se apurar a adequada função contemporânea desta recente
modalidade de usucapião familiar, de acordo com uma análise unitária do
ordenamento, sempre a partir da Constituição Federal e do Código Civil, com o
intuito de constatar o papel que este instituto deve desempenhar naquela dada
situação jurídica. Gustavo Tepedino esclarece a relação entre o aspecto estrutural e
funcional dos bens jurídicos
Como se pode observar, a disciplina dos bens jurídicos, delineada de maneira minuciosamente tipificadora e abstrata no Código Civil, embora tradicionalmente difundida em seu aspecto estrutural, a desenhar classificação aparentemente neutra de objetos sujeitos ao tráfego jurídico, adquire renovada dimensão e importância no direito contemporâneo. Para tanto, há que se deslocar a análise para perspectiva funcional, de tal
148
“Desse modo, o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como
incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos
casos de atos de violência praticados por cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em
suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono.”. SIMÃO, José
Fernando; TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172.
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modo que a qualificação do bem jurídico se encontre sempre associada à sua função, investigando-se, na dinâmica da relação jurídica em que se insere, a destinação do bem de acordo com os interesses tutelados.149
A percepção da dimensão funcional da usucapião familiar demonstrará,
sem maiores dificuldades, qual o seu efetivo papel na relação jurídica subjacente e
evidenciará mais facilmente qual o bem jurídico que deve ser tutelado.
Consequentemente, nessas condições, impõe-se buscar um sentido compatível de
abandono do lar, que exalte essa função e o permita transitar tanto no direito das
coisas como no direito de família, densificando as normas constitucionais que o
fundamentam.
Resta patente que este sentido não pode significar nem a busca por um
culpado pelo término da relação, nem restar adstrito à mera retirada física do
imóvel, conforme exposto acima (visões que têm sido difundidas). Nenhuma
dessas duas opções permite a consagração das diretrizes da Constituição que
incidem sob a matéria e muito menos destacam o aspecto funcional da inovadora
modalidade aquisitiva.
Diante dessas considerações, o que se mostra indicado é que se traduza a
expressão abandono do lar como um abandono familiar, no sentido de um
desamparo da família por um daqueles que deveria ser seu provedor. Em outras
palavras, retrate o não atendimento das responsabilidades familiares e parentais
incidentes no caso concreto, um desassistir que venha a trazer dificuldades
materiais e afetivas para os familiares que restaram abandonados. Exemplificando:
não prestar alimentos, não contribuir para as despesas do lar, não manter os
vínculos afetivos com os demais integrantes da família, dentre outros.
O foco de análise deve ser a partir da situação jurídica dos entes familiares
que restaram desamparados e podem vir a merecer certa proteção patrimonial.
Substitui-se eventual busca pelo sancionamento de um ofensor pela priorização na
recomposição das vítimas do desamparo.150 Este abandono familiar equivaleria ao
149
TEPEDINO, Gustavo. Regime Jurídico dos Bens no Código Civil. IN: Silvio de Salvo Venosa; Rafael
Villar Gagliardi e Paulo Magalhães Násser (Org.). Dez anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São
Paulo: Atlas, 2012. p. 30. 150
“Essa espécie de usucapião visa à proteção do cônjuge que, abandonado ou, mesmo, privado de
assistência material e do sustento e da moradia, mantém-se no imóvel e se responsabiliza pelos respectivos
encargos, situação que justifica a aquisição da propriedade por usucapião e a alteração do regime de bens
quanto ao respectivo imóvel.” CHALHUB, Melhim Namem. Direitos Reais. 2 ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Editora Saraiva, 2014. p. 90-91.
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sentido contemporâneo de abandono do lar para fins da usucapião e permitiria a
averiguação dos seus demais requisitos legais.151
Consequentemente, só faria jus à aquisição da propriedade quem cumpriu
com suas responsabilidades familiares, ou seja, quem fez frente a sua obrigação
alimentar (ainda que não fixada judicialmente), exerceu efetivamente sua
autoridade parental, visitou os filhos, não agrediu fisicamente o outro consorte ou
demais integrantes da família, dentre outros critérios a apurar na situação
concreta. Com tal sentido de abandono do lar o exemplo hipotético acima descrito
estaria sanado, pois aquele pai-agressor não seria agraciado com a propriedade.
Uma leitura de abandono do lar próxima ao que se descreveu como um
abandono familiar já foi retratada, de algum modo, no enunciado 499 da V
Jornadas de Direito Civil
499 - A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divór . O q “ ” çã que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião.
Nas entrelinhas do enunciado é possível perceber as questões materiais
atinentes ao cumprimento das responsabilidades familiares (assistência material,
sustento do lar), em consonância com o que se ora defende.152
Muito mais do que simplesmente vincular o abandono do lar a um
requisito objetivo de uso do imóvel há que se edificar um sentido ético para a
expressão, único passível de bem retratar a sua função. A própria nomenclatura de
“ ã ” ituto, ao invés de outras nominações,
151
Alguns autores sustentam nesse sentido, como Priscila Maria Pereira Correa da Fonseca: “O abandono
que rende ensejo às consequências previstas no art. 1.240-A é aquele efetivado de má-fé, aquele claramente
levado a efeito com o intuito de relegar à família repudiada ao signo de desamparo moral e/ou material.
Insista-se: não é apenas a falta de assistência financeira daquele que se desligou do antigo lar que
proporcionará o pedido de aquisição do domínio nos moldes do comando sub examine. Há, por igual, de
configurar o abandono referido pelo art. 1240- A, aquele praticado pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro que,
não obstante diligencie satisfatoriamente à mantença dos componentes da família, a eles volta às costas,
passando a ignorar o atendimento assistencial necessário, ainda que não de ordem moral.” FONSECA,
Priscila Maria Pereira Correa da. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre,
Magister/Belo Horizonte, IBDFAM, v. 23,ago./set. 2011. p. 120. 152
Uma única observação quanto a redação do enunciado: prefere-se aqui referir a um desatendimento da
responsabilidade familiar pelo abandonador do que descumprimento dos deveres conjugais, como constou na
ementa.
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pode contribuir para destacar o aspecto que ora pretende se jogar luz (a tutela da
família).
Referir a um sentido de abandono familiar como pressuposto para a
usucapião familiar permite uma aproximação com todos os princípios e valores
constitucionais que foram justificadores da aplicação do dispositivo e, ainda,
atenta para a sua devida função na respectiva relação jurídica. Já há quem defenda
uma leitura arejada e atualizada de abandono do lar, com vistas a bem retratar a
adequada função do instituto
No seio desta perspectiva não se pode aproximar a locução abandono do lar às matizes de um tempo no qual a dissolução das relações era exclusivamente pelo desfazimento do casamento, sempre a partir da conduta culposa de um dos cônjuges. (...) Não parece correto interpretar o termo abandono, nesta singra, como mera saída temporária do lar ou mesmo mudança de endereço, mormente pela flexibilidade da estrutura familiar antes explicitada. O abandono é, efetivamente, o movimento peremptório e unidirecionalmente manifestado de abdicar por ação ou omissão aos vínculos afetivos, cindindo-se a conexão com núcleo intersubjetivo de convergência afetiva. Compreende-se assim como a interrupção do projeto de vida constituído pela coletividade de sujeitos ligados pelo afeto, retirando-se aquele que abandona o lar de todos os vínculos que o conectavam, seja eles financeiros, afetivos ou mesmo de íon livre que se desatrela do papel desempenhado naquele conteúdo coletivo de direitos. Deve-se interpretar a norma, quanto a este tema, em convergência com sentido mais benéfico aos direitos fundamentais que, mediatamente, pretende-se tutelar. Não há que se falar em conceito apriorístico de abandono, demandando-se interpretação casuística construtiva.153
A presente proposta de leitura do abandono do lar como um verdadeiro
abandono familiar, retratado pelo desatendimento da responsabilidade familiar
inerente ao caso concreto, permite ir ainda mais longe, de modo até mesmo a
vislumbrar a possibilidade de se conceder a propriedade para um dos cônjuges ou
conviventes que teve que deixar o imóvel, mas restou desamparado pelo outro
(com a sua prole) por dois anos ou mais, e está a necessitar do lar conjugal para
moradia. Dito de outro modo, eventualmente conceder a usucapião aquisitiva
mesmo para aquele que não está na posse efetiva do bem, mas que tenha sido
abandonado pelo outro e que necessite do bem para sua moradia e sobrevivência
(muitas vezes com os filhos). Acaso presente os demais requisitos, se afigura
153
FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. “10 Anos do Código Civil: O ser e o ter no
Direito de Família a partir da aquisição pela permanência na moradia familiar” IN: LEAL, Pastora do
Socorro Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno
Veloso. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. (p.632-648) p. 641.
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possível esta hipótese. Com isso se permitiria o desacoplamento pontual da
usucapião da posse efetiva do bem.154
Outra questão a ser observada é que sendo a usucapião um modo de
aquisição originário da propriedade, em regra, adere a esfera jurídica do novo
titular sem os gravames que pendiam anteriormente sobre o bem. Face às
peculiaridades desta usucapião, inclusive pela lei vir com o Programa Minha Casa,
Minha Vida parece recomendável se adotar o entendimento de que para esta
modalidade de usucapião permanecem hígidas e plenas as garantias reais que
pendiam anteriormente sobre o bem (até mesmo para se evitar um incentivo à
fraude e preservar o interesse de terceiros).
Estas considerações ressaltam a necessidade de uma hermenêutica crítico-
construtiva na apuração do sentido civil-constitucional da usucapião familiar que
seja, sempre, harmônica com os tempos presentes.
Considerações Finais
O esforço exigido para conceder contornos adequados a esta nova
modalidade aquisitiva da propriedade é prova maior do desacerto do legislador na
colocação do instituto, visto que os equívocos não foram poucos. Ainda assim,
parece possível se extrair um significado constitucional para o dispositivo.
Ciente que uma norma não nasce norma, mas sim se faz norma no dia-a-
dia dos embates jurídicos doutrinários e jurisprudenciais, entende-se possível a
edificação de um sentido funcionalizado da usucapião familiar.
Ainda assim, não sem deixar de anotar as críticas pertinentes. Uma delas,
a descabida escolha da usucapião para proteger os bens jurídicos pretendidos
(tutela da família e do direito à moradia), pois acabou mantenedora do discurso
proprietário que impera no direito brasileiro.155 Isto porque, a forma eleita para
tutelar àquelas situações jurídicas foi a concessão do status proprietário ao
consorte abandonado, o que demonstra a prevalência da outorga da apropriação
154
“Nesse contexto, não há necessidade de que o imóvel esteja na posse direita do ex-cônjuge ou ex-
companheiro, podendo ele estar locado a terceiro; sendo viável do mesmo modo a nova usucapião pelo
exercício da posse indireta.” SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das
Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172. 155
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 259.
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das coisas ao invés da garantia do seu uso, uma lógica de mercado que segue
presente no nosso imaginário coletivo.156
Para preservação da família e garantia do uso do imóvel muito mais
razoável seria se o legislador tivesse conferido apenas a garantia do direito de
moradia, sem ônus, para o membro da família abandonado; ao invés de o permitir
usucapir a totalidade do bem e lhe entregar a propriedade plena. Bastava que
„ h çã ‟ – já de há muito conhecido
dos civilistas - que estaria suficientemente protegido o bem jurídico que se
pretendia tutelar. Com tal proceder priorizaria o uso ao invés da apropriação.
Entretanto, a mentalidade proprietária reinante certamente ofuscou tal
alternativa. O equívoco na eleição da usucapião como solução para estes casos
concretos pode acabar por não proteger nem mesmo um dos seus objetos centrais
(como a garantia da moradia), visto que com o regramento atual nada impede que
quem tenha adquirido o bem com a usucapião o coloque a venda a seguir, ao invés
de permanecer com o mesmo para moradia da família.
Com estas ressalvas, defende-se a tese que é viável prospectar uma
definição contemporânea adequada para esta usucapião familiar, desde que se
perceba a exata dimensão da influência que as vicissitudes jusfamiliares terão
nesta configuração (daí a recomendação para que o foro adequado seja sempre o
do juízo das varas de família). O tratamento desta relevante questão patrimonial
dos litígios familiares não pode, mais do que nunca, ignorar a necessária
prevalência do ser sobre o ter.157
A regra posta pelo legislador é apenas o marco inicial da norma que será
erigida, pois mesmo quando o legislador ordinário permanecer inerte, deve o juiz
156
“Proprietà privata e autonomia privata, dunque, sono i due principi cardine attorno ai quali il diritto
moderno organizza i rapporti giuridici individuali, dando ad essi la forma tipica dei rapporti di mercato: il
diritto di appropriarsi in via esclusiva di una quota della ricchezza sociale non può non comportare anche il
diritto di realizzarne il controvalore mediante un libero atto di scambio, istituendo cioè con chi è disposto a
convenirlo un libero rapporto contrattuale.” (BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e Società Moderna.
Napoli: Jovene Editore, 1996. p. 320) Em tradução livre: “Propriedade privada e autonomia privada, então,
são os dois princípios cardinais em torno dos quais o direito moderno organiza as relações jurídicas
individuais, dando a elas a forma típica das relações de mercado: o direito de apropriar-se de forma exclusiva
de uma parte da riqueza social deve comportar também o direito de realizar a contrapartida mediante um ato
livre de escambo, estabelecendo, com quem estiver disposto a celebrá-la, uma livre relação contratual.” 157
“O evidente artificialismo da noção clássica faz alargar a distância entre o que a lei civil estabelece como
sendo pessoa e o indivíduo homem, este a merecer proteção não pelo que tem, mas pelo que é. Por certo, não
deve a proteção patrimonial suplantar a proteção dos seres humanos”. (MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na
codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.).
Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 92-
93)
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e o jurista proceder ao inarredável trabalho de adequação da legislação civil,
através de interpretação dotadas de particular ‗sensibilidade constitucional‘, que,
em última análise – e sempre – vivifiquem o teor e o espírito da Constituição.158
Com observância desta orientação o trabalho construtivo deixado aos civilistas
poderá ser exitoso.
As dificuldades que se apresentam na adequada significação da usucapião
familiar comprovam que:
será íngreme e necessária, imprescindível mesmo, a tarefa hermenêutica para reconhecer, na investigação teórica e na aplicação prática, o Código Civil que o Século XXI da sociedade brasileira está a demandar, clamando por justiça e igualdade substancial. Impende, pois, nessa quadra, subscrever uma hermenêutica construtiva apta a realizar, na doutrina e na jurisprudência que seguir-se-ão, esse mister.159
As direções apontadas pela bússola da Constituição são as que deverão
orientar a consolidação de um adequado sentido para a usucapião familiar, que
observe sua função no ordenamento e esteja afinado com atual estágio do direito
civil-constitucional brasileiro.
Bem no fundo
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
158
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos sobre direito civil. Op. cit., p.
20. 159
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. Direito das Coisas. (art. 1277 a 1368). Antonio
Junqueira de Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 374.
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extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
Paulo Leminski
Recebido em 22/01/2015
1º parecer em 27/02/2015
2º parecer em 27/02/2015
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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO DIREITO CIVIL: EM BUSCA DA
DISTINÇÃO FUNCIONAL
Lapsing and prescription in civil law: seeking a functional distinction
Thaís Fernanda Tenório Sêco
Mestre em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Professora permanente no curso de pós-graduação lato sensu em direito civil da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais e
Advogada.
RESUMO: Pela ausência de previsão da distinção entre prescrição e decadência na
sistemática do Código Civil de 1916, e pela previsão flexibilizada no sistema atual,
entende-se que a questão da distinção entre os prazos passou por um processo de
“ çã ” q ã trinária sobre o tema. Outros
institutos há muito passaram do jusnaturalismo à exegese chegando, por fim, às
metodologias contemporâneas, como o direito civil-constitucional. Quanto à
distinção entre prescrição e decadência vigora a perplexidade de não se saber se o
poder do legislador sobre o tema é total ou nenhum. O trabalho pretende inscrever
a temática nas premissas metodológicas do direito civil-constitucional pela
investigação de um possível aspecto funcional da distinção a partir da revisitação
ao legado doutrinário sobre o tema.
PALAVRAS-CHAVE: Prescrição; Decadência; Funcionalização; Fireito civil-
constitucional.
ABSTRACT: As there is no distinction between lapsing and prescription on 1916
Brazilian civil code, and for the flexible distinction there is in the actual system, we
h “ ” h wh h q w h
impacts on the way doctrine sees it. Other institutes came over the jusnaturalism
to the exegese, getting on to contemporaneous methods, as the civil-constitutional
approach. About the distinction between lapsing and prescription, although,
prevails some astonishment since we cannot know if the legislator power on the
theme its full or no. The study seeks to attract the problem to the civil-
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constitutional assumptions investigating its possible function, trying to
comprehend it from the doctrinal legacy on the subject.
KEYWORDS: Prescription; Lapsing; Functionalization; Civil-constitutional law.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Efeitos da positivação tardia da distinção entre
prescrição e decadência no direito civil nacional – 3. A inscrição do problema em
uma metodología constitucionalizada (e a insuficiencia do criterio topográfico da
distinção) – 4. O legado civilista com relação à distinção entre os prazos: os
criterios empírico e científico de distinção – 5. Um balanço teórico: os criterios de
distinção e sua crítica rumo a uma compreensão funcional – 6. Conclusão: uma
proposta funcional de distinção – 7. Considerações finais
1. Introdução160
A consulta imediata ao Código Civil de 1916 daria a impressão de que a
decadência não constava na sistemática civil nacional. Por um conhecido equívoco
da técnica legislativa aplicada pela Comissão de revisão extraparlamentar, os
prazos de decadência previstos pontualmente na Parte Especial do Código
Beviláqua foram inteiramente reunidos na Parte Geral juntamente do dispositivo
que tratava da prescrição, pensando-se obter com isso um implemento da clareza
adequada a um projeto de codificação.
Como se sabe, equipararam-se, assim, os prazos de decadência com os
prazos de prescrição no texto legal. No entanto, a doutrina e a jurisprudência não
çã q “
çã ” 161 sendo pois mantida com base no entendimento de
q ã é “ z ”.162
160
Com minha gratidão ao Prof. Gustavo Tepedino que por duas vezes oportunizou enriquecedora discussão
sobre a abordagem ora apresentada do problema, com caras observações, suas e dos colegas, sobre conteúdo
e forma de exposição. 161
AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para
identificar as ações imprescritíveis‟. Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais. (Originalmente publicado em out. de 1960). 162
THEODORO JR., Humberto. „Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código
civil‟. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 23, mai., 2003, p. 3.
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Fato é que diante da carência de previsão legal que distinguisse os prazos,
o ambiente da aplicação do direito quanto a eles se mostrava assistemático.163
Careciam fundamentos que permitissem estabelecer com segurança a distinção
entre os prazos, ainda que esforços doutrinários não faltassem para favorecer uma
solução isonômica do problema.164 Ainda assim, a distinção permaneceu sendo
afirmada e a discussão não dizia respeito a haver ou não uma distinção, e sim a
como identificar a distinção – que obviamente existiria.
Por tratar- “ ” 165 a doutrina buscou seu
embasamento na teoria filosófica disponível para tanto, o jusnaturalismo,
aduzindo tratar-se a distinção de algo necessário, atinente a alguma metafísica dos
prazos que não poderia ser contrariada. Posteriormente, com a positivação da
distinção pelo Código Civil de 2002 e sua flexibilização no direito positivo, o
paradigma filosófico antitético do formalismo jurídico, em confronto com o
paradigma metafísico anterior tem provocado perplexidade na abordagem do
tema. Tratando-se de uma distinção por tanto tempo afirmada a despeito da lei,
não se sabe como lidar com as flexibilizações legais atuais, notadamente quando o
argumento metafísico não se faz mais aceito.
O ã é “I ”
jurídico; um inconsciente que o afirma e a ele se apega ainda que não se possa
conhecer precisamente porque razões. A doutrina contemporânea do direito civil
tem encontrado dificuldades para vislumbrar o caminho pelo qual a temática
poderá ser compreendida conforme as premissas do método civil-constitucional,
buscando compreender em que pode ser importante à concreção dos interesses
humanos.
Neste escopo, a investigação apresentada parte da premissa segundo a
qual a toda distinção estrutural deve corresponder uma distinção funcional,
163
Assim se expressa REALE, Miguel. „Visão geral do projeto de código civil‟. Revista dos Tribunais, v.
752, São Paulo, jun. 1998, p. 23. “Assisti uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo
negar uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava
extinto por força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se
que o prazo era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem (sic) comum olha o Tribunal e
fica perplexo.” 164
Dignos de destaque são os trabalhos de AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a
prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis‟. cit.; e CAMARA LEAL, Antônio Luís
da Da prescrição e da decadência: teoria geral do direito civil. 2ª Ed (1ª Ed. Publicada em 1939). Atualizada
por José Aguiar Dias. Forense: Rio de Janeiro, 1959. 165
AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para
identificar as ações imprescritíveis‟. cit.
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encontrando-se na função, e não propriamente na estrutura, o que pode melhor
explicitar a diferença entre prescrição e decadência.
Acredita-se que a afirmação relutante da distinção entre os prazos mesmo
quando a lei os equiparava pode ser um ponto de partida importante para formular
uma base funcional de diferenciação. Esta pode ser um passo para o
desenvolvimento das temáticas que dizem respeito aos prazos, tanto para as
situações dúbias, ainda carentes de paradigmas interpretativos, quanto para as
inovações ou reformas legislativas relativas à questão, as quais devem também
promover e preservar a coerência no sistema jurídico.
2. A positivação tardia da distinção entre prescrição e decadência no
direito civil nacional e seus efeitos doutrinários
Prescrição e decadência são institutos assemelhados em relação aos quais
são apresentadas distinções quanto ao objeto e quanto aos efeitos.
Diz-se que a prescrição é a perda da ação, ou, como se propagou adiante,
“ ã ” q ó . Q
diferenças de tratamento jurídico, já ensinava Santiago Dantas que:
Enquanto a prescrição geralmente consiste no decurso de um prazo, que se interrompe, que se suspende, que pode, por conseguinte, recomeçar a contar, muitas vezes e que as partes interessadas processam alegar para que o juiz dela tome conhecimento, as decadências, são aquelas que, na linguagem forense, costuma-se chamar de prazos fatais. Nada os interrompe, nada os suspende e quando decorrem, o juiz pronuncia a decadência de ofício sem ser necessário que ninguém alegue.166
Além dessas, tem-se ainda que a prescrição pode ser alvo de renúncia de
quem dela se beneficia depois de exaurido o prazo, enquanto a decadência não
comporta essa faculdade.
Como se pode constatar, tais distinções não dizem respeito propriamente
aos efeitos, já que neste ponto é que se observa a maior semelhança entre os
prazos: ambos provocam uma extinção de algum tipo. As diferenças dizem
respeito, antes, aos pressupostos fáticos para que se opere a extinção e, por tudo,
se inscrevem em aspectos estruturais dos institutos.167
166
DANTAS, San Tiago. „Prescrição e decadência‟. Programa de direito civil: Parte Geral. 4ª Tiragem. Rio
de Janeiro: Editora Rio, 1942, p. 396. 167
Nesse sentido, também Antônio Luís da Câmara Leal entende ser a extinção de um direito ou de uma ação
o efeito da decadência ou da prescrição. Já as típicas diferenças relativas à possibilidade de interrupção,
suspensão ou impedimento e à possibilidade de renúncia e conhecimento de ofício pelo juiz, são classificadas
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Essas clássicas diferenças sempre estiveram na base das distinções
concebidas para os dois prazos. A diferença, por exemplo, em relação à
possibilidade de reconhecimento de ofício é o argumento pelo qual Humberto
Theodoro Jr. entende que existe uma distinção quanto ao objeto dos respectivos
prazos. Para ele, se a prescrição extinguisse o direito não precisaria
necessariamente ser arguida em Juízo para o seu reconhecimento.168
Não havendo, porém, qualquer distinção entre os prazos na lei, e
adotando-se, ainda assim, a ideia de que a prescrição extingue a ação e a
decadência extingue o direito, observa-se que a construção doutrinária
correspondente ao período de vigência do Código Civil de 1916 adotava
implicitamente um pressuposto filosófico jusnaturalista, base para afirmação de
uma distinção metafísica dos prazos.169
Essa visão pode ser percebida na mais importante obra sobre o tema no
Brasil, em que Agnelo Amorim Filho se propôs, em 1960, a estabelecer um critério
científico de distinção, lamentando a equivocada equiparação entre os prazos, do
q “ é h
çã ”.170
Posto em xeque de forma indefensável o pressuposto da racionalidade do
legislador que fundamenta uma afirmação exegética da lei, optou a doutrina por
afirmar a qualquer custo a manutenção da decadência no sistema civil, havendo no
jusnaturalismo o único recurso filosófico para resistir ao desacerto:
por Câmara Leal como “diversidades de consequência”. (CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição
e da decadência: teoria geral do direito civil. cit. p. 394, 395.) 168
THEODORO JR, Humberto. „Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código
civil‟ cit. p. 13: “A simples consumação do prazo prescricional não priva, de imediato e de todo, o interesse
do credor da tutela jurisdicional. O efeito extintivo não opera ipso iure, pela mera ultrapassagem do termo
fixado em lei. Para que a pretensão do credor seja paralisada é indispensável que o devedor, quando
demandado, argúa a prescrição como meio de defesa (art. 193). O que esta, na verdade, gera é uma exceção
que o devedor usará, ou não, segundo suas conveniências.” A construção é interessante, e atende à visão
metodológica que vai “da estrutura à função”, embora tenha se esvaziado depois da reforma processual de
2006 (Lei 11.280/2006). 169
V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 2003, p. 15: “a contraposição entre
„positivo‟ e „natural‟ é feita relativamente à natureza não do direito mas da linguagem: esta traz a si o
problema (que já encontramos nas disputas entre Sócrates e os sofistas) da distinção entre aquilo que é por
natureza (physis) e aquilo que é por convenção ou posto pelos homens (sic) (thésis). O problema que se põe
pela linguagem, isto é, se algo é „natural‟ ou „convencional‟, põe-se analogamente também para o direito.” 170
AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para
identificar as ações imprescritíveis‟. cit., p. 734. O mesmo fato também foi lamentado por THEODORO JR.,
Humberto: “Sobre essa esdrúxula e confusa unificação não chegou a haver debate, de sorte que o planejado
melhoramento acabou por redundar, para os aplicadores do Código num dificílimo problema, pois o que
efetivamente se deu foi um „erro manifesto de classificação‟”. („Distinção científica entre prescrição e
decadência. Um tributo à obra de Agnelo Amorim‟. In Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais. p. 50).
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Ou se adota essa atitude de franca rebeldia contra o texto legal, ou ter-se-á que chegar a conclusão ainda mais absurda, isto é, admitir que certos prazos classificados pelo Código como sendo de prescrição (mas que são, indiscutivelmente, de decadência), podem ser objeto de suspensão, de interrupção e de renúncia.171
Por essa argumentação fica claro que a afirmação de uma distinção entre
os prazos de prescrição e decadência exigiu uma tomada de posição filosófica,
ainda que inconsciente, pois afirmações como essa alimentaram uma premissa
metafísica na abordagem da distinção entre os prazos. 172
Resta aí configurada a perplexidade atual no estudo do tema da distinção
entre prescrição e decadência, pois trata-se de um positivismo tardio que desafia
as construções bem assentadas de um jusnaturalismo igualmente tardio.173
Se, por exemplo, a impossibilidade de reconhecimento de ofício da
prescrição é tão determinante para a compreensão da distinção, como retratar
doutrinariamente a reforma processual da Lei 11.280/06 pela qual o §5º, do art.
219 Có P C q : “ z ciará, de
í çã ”? T -se-ia por este detalhe alterado toda a natureza da
prescrição, que assim passou a referir-se à extinção de um direito? (Ou não
çã “ z ”?)
171
AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência‟, cit. p. 735. No
mesmo sentido, Humberto Theodoro Junior justificou a postura doutrinária contra legem adotada em relação
à distinção entre prescrição e decadência sob a égide do Código de 16: “Como a lei não pode contrariar a
natureza das coisas, doutrina e jurisprudência tiveram de assumir a tarefa de joeirar entre os prazos ditos
prescricionais no texto da lei os que realmente se referiam a prescrição e os que, embora assim rotulados,
representavam, na verdade, casos de decadência”. („Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência
no novo código civil‟. cit., p. 3.). 172
Cabe realçar, novamente, o mérito da formulação de Camara Leal a respeito da distinção, o qual,
diferentemente de outros autores de seu tempo, não justificou em alguma base metafísica a existência da
decadência apesar de sua exclusão do texto da lei, e, sim, em uma autêntica interpretação sistemática que
chamava a atenção para a existência da decadência com base no pressuposto de coerência do sistema: “Não
houve, porém, a eliminação da decadência de nosso Código, porque há, em contraposição a regras gerais,
preceitos especiais estabelecidos pelo legislador, cuja contradição com essas regras só poderá ser explicada
pela sua atinência a um instituto diverso daquele a que as mesmas dizem respeito. Assim, não obstante a
regra geral que veda a prescrição entre cônjuges, na constância do casamento, a ação do marido contra a
mulher para contestar legitimidade do filho prescreve, diz o Código, em dois meses da data do nascimento do
filho, se o marido estava presente, e em três meses da data de seu regresso, se estava ausente, ou da data da
ciência do nascimento se este lhe foi ocultado. Deixará de haver antinomia entre esse preceito especial e a
regra geral, se o legislador assim preceituou atendendo a que, no caso, não se trata de prescrição, rediga pela
regra geral, mas de decadência, não subordinada àquela regra.” (CAMARA LEAL, Antonio Luiz da. Da
prescrição e da decadência. cit. p. 396.) 173
Conforme ensina Norberto Bobbio, o termo “positivismo” é dual, podendo referir-se tanto ao movimento
filosófico-metodológico que buscava conferir cientificidade às Ciências Humanas e Sociais nos idos do
século XX, quanto pode referir-se ao registro escrito da lei tradicional por uma autoridade considerada
legítima para tanto. Em ambos os casos, a palavra comunica a ideia muito comum e aproximada de que a lei
deve ser seguida a qualquer custo, identificando com a norma jurídica o próprio direito. É assim que,
havendo dois sentidos para o termo positivismo, os dois sentidos exprimem uma mesma ideia de
cumprimento da lei positivada – escrita – tomada como fonte privilegiada do direito, senão como única fonte.
(V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. cit., p. 15).
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Em contradição à fala de Amorim, em que mais absurdo do que
descumprir a lei é aplicar a interrupção, impedimento e suspensão a prazos que
são sabidamente de decadência, o próprio Código Civil de 2002 em seu art. 207 diz
ser possível aplicá-los à decadência se disposição legal expressa o determinar. Mas
se justamente por inadmitir-se essa possibilidade a distinção foi afirmada ainda
que contrariamente à lei, que distinção se preserva diante dessa flexibilização
legal? (Ou não poderá a lei valer nestes termos?)
O jusnaturalismo, como se sabe, está na base da formação dos conteúdos
típicos do direito privado. Entendeu-se, por muito tempo, que a positivação do
direito privado – no momento da codificação – consistia estritamente em
ú é “ z ” ã -
los ou de formulá-los com vistas a atingir propósitos externos ao direito.174 Diante
da positivação tardia da distinção entre os prazos de prescrição e decadência,
tratou a doutrina, portanto, de afirmar a distinção a despeito do direito positivo,
dando entender que a questão remonta a valores fundamentais que não podem ser
contrariados.
Passando-se por uma distinta mentalidade sobre o direito, uma visão
positivista estrita afirmaria, pelo contrário, que não haveria qualquer distinção
entre prescrição e decadência na sistemática do Código Civil de 1916, a qual seria
resgatada com o Código Civil de 2002. Mas o positivismo jurídico é uma
abordagem que opta conscientemente por ignorar alguns aspectos do direito (que
para os positivistas não são propriamente jurídicos).175
174
V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. cit., p. 29: “Todas estas relações sociais [do estado de
natureza] eram reguladas por normas jurídicas (tinha-se, assim, os direitos reais, o direito das obrigações, o
direito de família e aquele das sucessões). Segundo os jusnaturalistas a intervenção do Estado limita-se a
tornar estáveis tais relações jurídicas. Por exemplo, segundo Kant, o direito privado já existe no estado de
natureza e a constituição do Estado determina apenas o surgimento do direito público; contrapõe o modo de
ser do direito privado no estado de natureza àquele característico do mesmo direito na sociedade política,
afirmando que no primeiro momento tem-se um „direito provisório‟ (isto é, precário) e no segundo momento
um „direito peremptório‟ (isto é, definitivamente afirmado graças ao poder do Estado).” 175
Há nas teorias juspositivistas um corte epistemológico que estabelece a partir de que ponto ou de que
plano se estabelece uma análise propriamente jurídica, e não de outros fatores ideológicos, políticos, etc. Na
teoria de Hans Kelsen, o corte é dado pela enigmática Norma Fundamental, mas não só nela. Vê-se, a teor de
suas considerações sobre a teoria da interpretação, que foram conscientemente eliminados outros dados que
sabidamente interferem na aplicação da norma atribuindo-se somente um poder de preenchimento da
“norma-quadro” conforme entendimentos até certo ponto discricionários, na medida em que as razões que
podem fundamentar a escolha do juiz pela interpretação em um ou outro sentido não podem ser apreendidas
pela Ciência Jurídica e seriam estranhas ao seu objeto. (V. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 1ª edição
publicada em 1934. São Paulo: Martins Fontes, 2009). Seria quase como afirmar que a hermenêutica não
compõe a Ciência Jurídica.
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Por opção metodológica, uma abordagem positivista toma como
irrelevante o fato de que o resgate da positivação da prescrição e da decadência
como prazos distintos no Código Civil de 2002 se deu justamente por causa de sua
afirmação insistente na jurisprudência e na doutrina a despeito de sua negação na
lei.176 Neste ponto, tem-se um paralelo com a visão jurídica do momento
imediatamente posterior à codificação no século XIX que reproduziu
substancialmente o direito afirmado ao longo da Idade Média, em um esforço de
enunciação de quais são as regras que regem a vida privada pelo registro estático e
codificado dos entendimentos há muito aplicados e jurisprudencialmente
construídos.177
A percepção da positivação tardia da distinção entre os prazos, atrelada a
um jusnaturalismo igualmente tardio induziria o intérprete, hoje, a retratar o tema
da prescrição e da decadência em suas bases estritamente legais, ou legalistas,
despertando dúvidas somente no que diz respeito ao convincente legado civilista
que, no entanto, abordava o problema em bases jusnaturalistas. Por tudo, a
temática tem sido ainda mantida imune a recursos metodológicos recentes de
compreensão do direito civil, como a consideração do aspecto dinâmico das
situações subjetivas, a superação do dualismo entre norma e fato, e o delineamento
do perfil funcional dos institutos jurídicos.178
Haveria uma questão complicada em torno da indagação sobre estar a lei
“ z ” q ã se adota um
176
Importa lembrar o papel da doutrina e da jurisprudência, senão como fonte de direito – a depender do
sistema jurídico –, de base para a institucionalização de normas jurídicas. Vale dizer que o papel da doutrina
não é somente o de inspirar a jurisprudência, mas também o de, conjuntamente a ela, inspirar a legislatura. A
abordagem funcional da distinção parece relevante não só para a compreensão sistemática do ordenamento
civil, como também para orientar o legislador a respeito da natureza das escolhas feitas no momento da
proposição das leis. Sobre a temática da institucionalização das normas jurídicas a partir de sua cognição e
propagação cultural, veja-se o ensaio esclarecedor de PEREIRA, Flávio Henrique Silva. „Ordem normativa e
institucionalização‟. In: LACERDA, Bruno Amaro; FERREIRA, Flávio Henrique; FERES, Marcos Vinício
Chein (org.). Instituições de direito. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011. 177
V. VAN CAENEGAN, R. C. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 8: “As fontes imediatas usadas pelos autores do Code civil de 1804 foram o direito comum francês
tradicional do século XVIII, que era um amálgama dos direitos eruditos e consuetudinário, parte do qual era
bem antiga; e, em segundo lugar, as inovações feitas durante a Revolução. Essa mistura do velho e do novo
adequava-se ao clima político da nação e, depois da queda do ancien régime, mostrou-se também bastante
adequada à sociedade pequeno-burguesa do século XIX.” 178
Sobre os referidos recursos metodológicos, ver, por todos, PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na
legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; BODIN DE MORAES, Maria Celina. „A caminho
de um direito civil-constitucional‟. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 3 – 20 (originalmente publicado em Direito, Estado e Sociedade, n. 1. Rio
de Janeiro, 1991); TEPEDINO, Gustavo. „Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito
civil‟. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 1 – 22 (aula inaugural do ano acadêmico
de 1992, proferida no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
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ó q “ z ”
contrariada.179 Por isso, há ímpetos de afirmação de alguma ilegitimidade da
reforma processual procedida pela Lei 11.280/2006, por exemplo, querendo
identificar nela uma inconstitucionalidade que não tem, ou uma contrariedade a
princípios e valores jurídicos tais que não contraria em momento algum, ou
acabando por afirmar escatologicamente, no outro extremo, que já não existe mais
distinção entre prescrição e decadência.
3. A inscrição do problema em uma metodologia constitucionalizada (e
a insuficiência do critério topográfico de distinção)
Atrair a temática da distinção entre os prazos de prescrição e decadência
ao método civil-constitucional significa inscrevê-lo na legalidade constitucional.
Não se trata de afirmar, como há muito tem sido feito, que o tema não está à
disposição do legislador, mas ao mesmo tempo em que a legalidade não é reduzida
a legalismo.
Deve a legalidade ser entendida de forma conectada à igualdade e ao
sentido aristotélico de justiça que, na formulação de Claus Wihelm Canaris, está na
base do pensamento sistemático aplicado à Ciência do Direito.
A ordem interior e a unidade do Direito (...) pertencem (...) às mais fundamentais exigências jurídicas e radicam na própria ideia de Direito. A „ ‟ h postulado de justiça, de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da sua diferença. (...) A regra da „ q çã ‟ í primeira indicação decisiva para a aplicação do pensamento sistemático na Ciência do Direito.180
179
Ver, por exemplo, a visão da distinção entre prescrição e decadência contida em NEVES, Gustavo Kloh
Müller. Prescrição e decadência no direito civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008: “hoje, diante do
avanço da ciência jurídica e da sofisticação da atividade legislativa, acrescidos do fato de que o CC/2002
diferencia expressamente a prescrição da decadência, cabe ao legislador, em especial, determinar se um prazo
é de prescrição ou de decadência. Em se tratando de um diploma legislativo de elaboração antiga, no qual não
haja diferenciação precisa entre prescrição e decadência, podemos nos valer desses critérios [propostos por
Agnelo Amorim]; se um diploma, todavia, distingue os institutos, não consideramos possível a interpretação
que um prazo de prescrição, assim denominado no texto da lei, seja de decadência, e vice-versa.” Embora o
autor tenha construído uma base principiológica para a abordagem do tema da prescrição, fundando-o no
princípio da segurança jurídica, que, por sua vez, atrai a legalidade, trata-se, no que diz respeito à temática da
distinção, do brocardo in claris non fit interpretatio, já que o critério científico de Agnelo Amorim seria
usado somente de forma supletiva às lacunas deixadas pela lei. Do ponto de vista filosófico, tem-se
claramente reconhecida a mudança de paradigma, pela qual anteriormente valeria uma abordagem
jusnaturalista do tema, a qual deveria ser dispensada no momento subsequente à positivação. 180
CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 3ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 18.
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Segundo Canaris, a sua referência com relação aos critérios de ordem e
adequação valorativa se reporta a um sentido interno de sistema jurídico e não em
q “ ; ã
visa, ou não visa em primeira linha, descobrir a unidade de sentido interior do
Direito, antes se destinando, na sua estrutura, a um agrupamento da matéria e à
çã ã q í ”.181
Dessas premissas teóricas, parte, em primeiro lugar, a consideração básica
para uma distinção funcional no sentido de que, inscrevendo-se a temática nas
noções de ordem e adequação valorativa, parte-se do princípio de que à distinção
estrutural deve corresponder uma distinção funcional.
Vislumbra-se, assim, a insuficiência do primeiro critério de distinção entre
prescrição e decadência, e que diz re “ ”
localização no código. Este foi apontado por Miguel Reale como apto a eliminar as
dúvidas e perplexidades que pendem sobre o assunto:
Quem é que no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer uma distinção nítida e fora de dúvida entre prescrição e decadência? Há as teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa da outra. (...) Ora, quisemos por um termo a essa perplexidade, de maneira prática, porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado.
Preferimos, por tais motivos, reunir as normas prescricionais, todas elas, enumerando-as na Parte Geral do Código. Não haverá dúvida nenhuma: ou figura no artigo que rege as prescrições ou então se trata de decadência.182
A proposta, em verdade, não é inovadora. Esse tipo de organização era já o
pretendido no projeto do código de Beviláqua. Era também o tipo de organização
constante em códigos predecessores, como o Code Napoleon que regulamenta em
um mesmo dispositivo a prescrição e a usucapião (chamada prescrição aquisitiva)
e nada aduz, em termos gerais, sobre a decadência. Mas o fato de não ser uma
estratégia nova não chega a ser uma crítica. Convém, de fato, que o sistema
externo do direito facilite a assimilação do sistema interno, de forma que a divisão
consiste ao menos em aplicação de boa técnica legislativa. Entretanto, o problema
181
CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. cit. p. 26. 182
REALE, Miguel. „Visão Geral do Projeto do Código Civil‟. In Revista dos Tribunais, v. 752, São Paulo,
jun. 1998, p. 23. Na verdade, o critério topográfico não diz respeito, propriamente, à localização do prazo na
Parte Geral ou na Parte Especial, pois há prazos na Parte Geral. O prazo para anulação do negócio jurídico,
por exemplo, embora esteja na Parte Geral, é de decadência. A ideia do critério topográfico é de distinguir os
prazos que são previstos juntamente das situações que visam extinguir, dos prazos que são previstos em
geral, nas disposições dos art. 205 e 206 do Código.
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hermenêutico da distinção entre os prazos não se resolve. Não é, pois, que se trate
de um critério equivocado, mas insuficiente.
A insuficiência do critério repercute na prática por não explicitar, por
exemplo, quais são as situações subjetivas que não se sujeitam a prazo algum,
sendo imprescritíveis, e quais são as situações que se sujeitam ao prazo decenal do
art. 205, ou porque também não esclarece qual a natureza dos prazos previstos em
outros diplomas que não o Código Civil, como o Código de Defesa do Consumidor
e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por fim, o critério não pode ser tomado
como definitivo sequer para a classificação dos prazos previstos no próprio Código
Civil. Dentro de uma abordagem sistemático-valorativa do direito não é a
localização do prazo que permite dizer se o prazo é de prescrição ou de decadência,
mas o fato de dever ser de prescrição ou de decadência, conforme o distinto perfil
funcional em cada caso, é que deverá servir a identificar qual é ou qual deveria ser
sua melhor localização no código.
4. O legado civilista com relação à distinção entre os prazos: os
critérios empírico e científico de distinção
A partir da distinção prévia quanto ao objeto, os civilistas brasileiros
tributários do Direito Romano ou influenciados pelo direito alemão, herdeiro
direto da Pandectística, adotaram a visão da prescrição como perda da ação. É esse
o caso de Antônio Luís da Camara Leal, responsável pela formulação do chamado
critério empírico.183
A questão se reporta à polêmica entre Windcheid e Müther sobre a função
que a ação (actio nata) cumpria no Direito Romano. Como naquele sistema não
existisse a figura do direito subjetivo, discutia-se se a actio nata cumpria esse
papel.184 O desenvolvimento dessas discussões gerou no direito processual uma
teoria da ação que repercutiu no direito material para transformar a teoria sobre a
183
CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit. p. 23. Foi Agnelo Amorim Filho
quem denominou empírico esse critério já em vias de criticá-lo. 184
Em Roma, um cidadão que buscasse a tutela do Estado precisava, antes, por meio da editio, requerer a
fórmula da ação (actio nata). Essa fórmula designava qual regime jurídico deveria ser aplicado ao caso a ser
pleiteado. Junto dessa designação nomeava-se também um juiz para avaliar o caso que se apresentava a partir
da fórmula que se concedia. Foi da nomeação desse juiz que se passou a conceber a prescrição. No termo
praescriptio está contida, justamente, a ideia do “pré-escrito” que seria uma fórmula prévia dada ao caso
segundo a qual o interessado deve promover o processo em certo tempo, sujeitando-se, caso contrário, a
perder o direito de ver sua demanda apreciada. CARREIRA ALVIM, J. E. Teoria Geral do Processo. – 11ª
Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2007, passim.
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prescrição. Anteriormente, vigorava a chamada teoria imanentista da ação,
propugnada por Savigny, sendo, depois, substituída pela teoria autonomista da
ação.
Na teoria imanentista, não há direito sem ação nem ação sem direito.185
Pensavam os partidários da prescrição como perda da ação que fazia sentido
estabelecer que o que se extingue é a ação, consequência do direito, e não o próprio
direito, asseverando que o direto só é atingido de forma indireta.
Para outros autores, porém, esses ligados à tradição ítalo-francesa, a
ligação entre ação e direito seria tão próxima que não faria sentido falar-se da
manutenção do segundo diante da extinção do primeiro. Para Caio Mário da Silva
Pereira, por exemplo, a distinção não estaria no objeto, mas no fundamento:
O fundamento da prescrição encontra-se (...) em um interesse de ordem pública em que se não perturbem situações contrárias, constituídas através do tempo. O fundamento da decadência é não se ter o sujeito utilizado de um poder de ação dentro dos limites temporais estabelecidos à sua utilização.186
Com a prevalência da teoria autonomista da ação na Teoria Geral do
Processo, ao invés de perder importância a distinção entre os prazos quanto ao
objeto, foi apenas criada uma modalidade intermediária de situação subjetiva, a
pretensão, para explicar que é essa que se extingue com o exaurimento do prazo de
prescrição, e não propriamente a ação.
Essa é a claramente a visão adotada no texto do código de 2002, como
explicitado por Moreira Alves, responsável direto pela redação da Parte Geral:
Adotou-se [para a prescrição], à falta de uma nomenclatura melhor, a figura da pretensão, que vem do Direito germânico. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão que se extingue pela prescrição dos prazos. Pelo sistema do Projeto, há direitos e poderes que dão margem à violação, em decorrência da qual – foi a posição doutrinária que se adotou – surge esse instituto da pretensão.187
Muito embora a adoção do critério de Camara Leal tanto quanto a adoção
do critério de Agnelo Amorim não estejam vinculadas a uma posição quanto à
perda do direito ou à perda da ação ou pretensão, a partir da distinção ou não
quanto ao objeto podem ser despertadas reflexões distintas.
185
V. CARREIRA ALVIM, J. E.. Teoria Geral do Processo. cit. p. 116. Essa teoria foi assumidamente
adotada pelo Código de 16 que dizia em seu art. 75 que “a todo direito corresponde uma ação, que o
assegura.” 186
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Intituições de Direito Civil, Vol. I. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002,
p. 435. Assim, também GOMES, Orlando. Introdução do Direito Civil. 17ª ed. Atualizações e notas de
Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 496. 187
MOREIRA ALVES, José Carlos. „A parte geral do projeto do Código Civil‟. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 5-
11, set./dez., 1999.
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Assim se deu quanto ao critério empírico de Camara Leal, segundo o qual
os prazos são distinguidos casuisticamente, identificando- “ ”
se dá juntamente com um direito ou com a violação de um direito – ou, seja, com a
ação (ou pretensão) voltada a sua tutela. Nessa proposta, o direito que decai nasce
já tendo em seu próprio conteúdo um prazo de exercício. O prazo, porém, que
surge de forma sucessiva a uma violação (e nasce posteriormente ao surgimento do
próprio direito) é de prescrição.188 Para explicitar com mais clareza o critério, o
q z “
”:
1.ª – Focalizar a atenção sobre estas duas circunstâncias:
se o direito e a ação nascem, concomitantemente, do mesmo fato;
se a ação representa o meio de que dispõe o titular, para tornar efetivo o exercício de seu direito.
2.ª – Se essas duas circunstâncias se verificarem, o prazo estabelecido pela lei para o exercício da ação é um prazo de decadência, e não de prescrição, porque é prefixado, aparentemente, ao exercício da ação, mas, na realidade, ao exercício do direito representado pela ação.189
Agnelo Amorim Filho rejeitou o critério proposto por Câmara Leal. Para
atingir seu anseio de estabelecer um critério científico de distinção, utilizou em sua
abordagem as teorias que buscaram a sistematização e a categorização dos direitos
como marco teórico e estabeleceu um fundamento racional com pretensões
científicas para a distinção. Valeu-se da classificação de direitos pensadas por
Chiovenda. A partir delas, defendeu que a prescrição se refere a direitos subjetivos
que têm por finalidade um bem da vida a ser obtido por meio de uma prestação;
enquanto que a decadência diria respeito aos chamados direitos potestativos ou
poderes formativos. Segundo tal classificação, ao direito subjetivo corresponderia,
188
CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit., p. 37: “Há [entre a decadência e
a prescrição] uma substancial diversidade de objetos, recaindo a decadência sobre o próprio direito, que já
nasce condicionado, e recaindo a prescrição sobre a ação, que supõe um direito atual e certo. A prescrição
tem como uma de suas condições a que ação tenha nascido, isto é, se tenha tornado exercitável; ao passo que
a decadência, extinguindo o direito antes que ele se fizesse efetivo, impede o nascimento da ação. Tendo por
objetivo proteger e garantir o direito, a ação tem uma individualidade própria, distinta do direito, em
benefício do qual exerce a sua atividade, e, por isso, diferentes são as suas origens. É assim que o direito
nasce do fato que o gera, jus oritur ex facto; e ação, da violação por ele sofrida. Enquanto nenhuma
perturbação sofre o direito, nenhuma ação existe que possa ser posta em atividade pelo seu titular.” Sobre a
decadência: “Todo direito nasce de um fato a que a lei atribui eficácia para gerá-lo. Esse fato ou é um
acontecimento natural, alheio à vontade humana, ou é um ato, dependente dessa vontade (...). Em ambos
esses casos, a lei ou o agente pode subordinar o direito, para se tornar efetivo, à condição de ser exercido
dentro de um certo período de tempo, sob pena de caducidade. Se o titular do direito assim condicionado
deixa de exercitá-lo dentro do prazo estabelecido, opera-se a decadência, e o direito se extingue, não mais
sendo lícito ao titular pô-lo em atividade.” (p. 119) 189
Ibid. p. 397.
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para sua tutela, uma sentença condenatória, e a extinção da ação pelo prazo de
prescrição; ao direito potestativo, por sua vez, corresponderia uma sentença
constitutiva, e sua subordinação ao prazo de decadência; por fim, ações
imprescritíveis seriam aquelas que buscam sentença declaratória.
O critério proposto por Amorim segue hegemônico na doutrina brasileira,
não se tendo apresentado razão ou argumentação doutrinária que merecesse
superá-lo,190 tendo sido claramente o orientador da positivação subsequente da
distinção no Código Civil de 2002, como se infere da leitura de Moreira Alves:
Não há pretensão justamente porque são direitos não susceptíveis de violação, mas pode haver a necessidade de prazo para o exercício deles, e mais, de prazo para o seu exercício por via judicial, a fim de que se demonstre neles não a sua violação, mas a sua existência para o efeito de seu exercício, como é o caso, por exemplo, da anulação de casamento e, em face do Projeto, da anulação de negócio jurídico. Nesses casos, o que ocorre é a decadência.191
Segundo essa visão, se o objeto da prescrição, que é a pretensão, surge da
violação de um direito, esse direito só pode ser daquele tipo que possui em sua
correlação na relação jurídica um dever de prestação, o que está ao encontro das
construções de Amorim. Os direitos sujeitos à decadência, por outro lado, seriam
insusceptíveis de violação.
5. Um balanço teórico: os critérios de distinção e sua crítica rumo a
uma compreensão funcional
Sendo inegável a clareza da técnica metodológica usada por Amorim, e
ainda que suas bases teóricas tenham sido recepcionadas na sistemática do Código
de 2002, não é certo, ainda assim, que a caracterização da situação jurídica como
direito subjetivo ou potestativo interfira realmente sobre a caracterização do prazo
para o seu exercício.
Tome-se, por exemplo, o inc. II, do art. 1.814 do Código Civil, que prevê a
possibilidade de exclusão da sucessão em face da calúnia praticada pelo herdeiro
contra o autor da herança. Essa prerrogativa pode realmente ser entendida como
direito potestativo, mas não há razões para se dispensar automaticamente a
190
THEODORO JR., Humberto. „Distinção científica entre prescrição e decadência. Um tributo à obra de
Agnelo Amorim‟. cit. 191
MOREIRA ALVES, José Carlos. „A parte geral do projeto do Código Civil‟. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 5-
11, set./dez., 1999.
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possibilidade de ser vista como uma pretensão nascida da violação de um direito
outro, no caso o direito à honra.
Se a exclusão da herança é insusceptível de violação – o que, como se verá
à frente, não é propriamente verdadeiro –, isso não interfere no fato de que a
honra é susceptível de violação e de que a partir de uma violação ao direito à honra
nasce a faculdade de se promover a exclusão da herança. Neste caso, dever-se-ia
inferir que o prazo do art. 1.815 do Código Civil é de prescrição ou de decadência?
A situação subjetiva está sujeita a compreensões variáveis, conforme o
realce ao seu perfil dinâmico, funcional, etc. e pode, inclusive, assumir conotações
especiais em face do caso concreto. A classificação da situação subjetiva como
direito subjetivo ou potestativo e a classificação de um prazo como de prescrição
ou de decadência se reportam a reflexões de tipo diverso – possivelmente (mas não
necessariamente) conectado. Por tudo, o que se mostraria especialmente
equivocado seria cristalizar o entendimento sobre a exclusão da herança, aduzindo
tratar-se notoriamente de direito potestativo, ante o fato de que se sujeita a prazo
de decadência.192
Em uma abordagem dinâmica e funcional das situações jurídicas
subjetivas, e tendo em vista o tipo de valoração que subjaz à juridicidade dos fatos,
é tênue a variação pela qual se diz que um prazo nasce juntamente do direito, ou
posteriormente a um direito, com sua violação, uma vez que a função cumprida em
ambas as hipóteses permaneceria a mesma. Pode-se dizer que a faculdade de
excluir da herança nasce com a calúnia, tanto quanto se pode dizer que nasce pela
violação à honra. Não se trata necessariamente, neste caso, do resultado de uma
profunda reflexão sobre estrutura e função da exclusão da herança. Trata-se, antes,
de uma escolha quanto à organização das palavras que condiz mais com uma
variação de significantes do que de significados.
Não parece, então, funcionalmente adequado estabelecer uma alteração do
tipo de prazo com base apenas em uma alteração das palavras selecionadas para
tratar da situação subjetiva que por ele se extinguiria. Neste sentido, é o
192
Veja-se que, nos termos da proposta do critério científico, se estabelece uma relação lógica do tipo “se e
somente e se”. Quer dizer, embora Amorim faça parecer que a relação é do tipo “Se direito subjetivo, então
prescrição”, e “Se direito potestativo, então decadência”, a ordem inversa do enunciado é também autorizada
por suas análises, de forma que “Se prescrição, então direito subjetivo” e “Se decadência, então direito
potestativo”. A questão está em que, como diz o art. 189 do Código: “Violado o direito, nasce para o titular a
pretensão.” E casos há em que se pode discutir se o direito potestativo em questão não é, na verdade, uma
pretensão, nos moldes do que define o próprio artigo. Ou mesmo se a pretensão não é, por si só, um direito
potestativo.
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entendimento de Pietro Perlingieri, que a respeito do paralelismo entre a
classificação da situação subjetiva e a classificação dos prazos aduziu:
Por vezes, procurou-se individuar uma distinção nítida entre o direito subjetivo e o direito potestativo no fato que somente este último poderia se extinguir por decadência. Uma das distinções que a doutrina apresenta entre o instituto da decadência e o instituto da prescrição extintiva consistiria justamente no objeto dos dois institutos: enquanto a prescrição (não exercício de um direito por um determinado período de tempo) extinguiria os direitos subjetivos, a decadência seria o modo de extinção típico dos poderes formativos. Prescindindo da distinção entre prescrição e decadência, é necessário esclarecer que não é o objeto – direito subjetivo de um lado, direito potestativo do outro – o elemento diferenciador entre os dois institutos. Nem mesmo sob este perfil é útil uma construção unitária do direito potestativo, o qual às vezes se extingue porque a situação mais complexa se extingue por prescrição ou por decadência, às vezes se extingue autonomamente porque ele mesmo se submete à prescrição ou à decadência.193
Observe-se, ademais, que, em que pese a visão comum da exclusão da
herança como direito potestativo, essa pode perfeitamente ser vista como
pretensão. Aliás, a pretensão, por si, não deixa de ser um direito potestativo,
conforme a visão do próprio Chiovenda:
A ação é, pois, no meu entender, um direito potestativo e até se pode dizer um direito potestativo por excelência. Até aqui, a categoria de direitos potestativos foi agrupada em torno da característica comum, isto é, da tendência de produzir um estado jurídico novo perante um adversário.194
Sendo possível substituir ação por pretensão também neste caso, estará
agravada a dificuldade teórica de se distinguir um prazo como sendo de prescrição
ou decadência conforme a caracterização da situação subjetiva por ele extinta, seja
ela o direito potestativo, seja a pretensão. Assim é que, aduz : “O
potestativo não tem nenhuma relação especial com a prescrição; inclusive
comumente o que se prescreve é um direito potestativo – çã .”195
Mediante a classificação de Chiovenda, também a regra sobre a
imprescritibilidade não se sustenta. Ao explicar porque entende ser a ação um
direito potestativo, Chiovenda cita como exemplo outro direito que ele classifica
também como potestativo, qual seja, o direito de impugnar a legitimidade do filho.
Embora esse direito se sujeite a prazo, no entendimento de Chiovenda, a sentença
que resulta do pedido de impugnação não é constitutiva, mas declaratória.196
193
Assim, PERLINGERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit. p. 689, 690. 194
CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 31. 195
Ibid. p. 33. 196
“Quando entre os direitos potestativos estiver compreendido o direito de impugnar a legitimidade do filho,
já se abrem as portas dessa categoria para a ação. O direito de impugnar a legitimidade não é mais do que
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Aduz-se, portanto, que os critérios de Amorim e de Camara Leal não
saturam o problema da distinção e, levados ao extremo, não deixam de apresentar
falhas comuns – sendo notável, aliás, uma semelhança tal entre eles, que é possível
inferir que se reportam a uma mesma compreensão da distinção, embora sob
perspectivas diversas.
É certo, todavia, que tanto a proposta de Camara Leal quanto a proposta
de Agnelo Amorim foram representativas para o sistema civil. A verdade é que
sendo o critério de Camara Leal anterior ao de Amorim, este, ao estabelecer a sua
distinção científica, não deixou de reproduzir a distinção que já era aplicada no
ordenamento jurídico e que, por sua vez, operava segundo a proposta empírica.197
Como é possível compreender atualmente (através de um paradigma
científico pós-moderno)198 enunciados de investigação jurídica não são descritivos,
mas propositivos e, embora Amorim pretendesse sinceramente a cientificidade de
seu estudo, não poderia se dar conta do seu papel de participante, e não de
observador, na ordem jurídica. Assim, ambas as teorias, embora assumissem
implicitamente uma postura metodológica de cientista-observador e embora
bus çã “ ”
z çã “
” í – colaborador na construção dos
entendimentos sobre o direito.199
pura ação, e, exatamente, uma ação de declaração de certeza, que é direito subjetivo por si própria, mas não
exercício de algum outro direito subjetivo” (Ibid, p. 32) 197
CAHALI, Yussef Said. Prescrição e Decadência – 2ª Ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 31:
“A pretendida distinção científica entre os dois institutos não passa, na essência, de um desdobramento
dinâmico da distinção segundo a origem da ação, a que completaria: nos direitos potestativos, o poder
outorgado ao respectivo titular origina-se com o próprio direito; se estabelecido prazo para o seu exercício,
será de decadência; nos direitos subjetivos, a pretensão condenatória nasce posteriormente, com a lesão
representada pelo descumprimento da prestação; assim será de prescrição o prazo para a respectiva ação.” 198
A respeito de um paradigma científico pós-moderno e sua relevância para a Ciência do Direito, v.
SANTOS, Boaventura de Sousa. „Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna‟.
Estudos avançados. 1988, vol.2, n.2, pp. 46-71. 199
Conforme os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos, pode-se perceber que a postura de
participante é mais do que uma opção metodológica que se reporta à superação do positivismo. Ela é um fato
tão verdadeiro com relação à Ciência do Direito, quanto com relação até mesmo a Ciências Naturais ditas
“exatas” como a Física. A superação do paradigma newtoniano na Física diz respeito a uma limitação de que
da nem mesmo Newton poderia se dar conta, já que aprisionado às suas experiências pessoais acerca da
natureza. Na Modernidade, a incerteza é uma preocupação metodológica das Ciências Sociais que, assim,
tentam se valer ao máximo dos métodos precisos das Ciências Naturais. Simbólico da alteração dessa
dinâmica é a comprovação do princípio da incerteza de Heisenberg. Ficou então demonstrado que nem
mesmo na Física, Ciência Natural cujo desenvolvimento teórico é digno de destaque, é possível eliminar a
incerteza em uma experimentação. Lidar com a incerteza é um desafio para a metodologia da ciência, mas a
incerteza sempre esteve lá. A diferença do paradigma pós-moderno é que se trata de um paradigma
consciente da incerteza, e que procura lidar com ela. (SANTOS, Boaventura de Sousa. „Um discurso sobre as
ciências na transição para uma ciência pós-moderna‟. cit.).
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P q ã “ í z ” q ç
essencial de Amorim foi de identificação e articulação de algo que já se encontrava
presente entre os juristas. Tal como Camara Leal, tudo que ele fez foi dar uma das
articulações possíveis para a questão, argumentando, não obstante, que era a única
articulação correta. Uma articulação interessante, na medida em que se baseava
em critérios que faziam sentido, mas ainda assim, uma articulação de certo modo
contingente que, somente por sua própria intervenção como jurista que, pensando
“ ” “ ”
necessária no sistema do ordenamento nacional.
Camara Leal e Agnelo Amorim, então, não elucidaram a distinção que não
era pré-existente. Eles propuseram uma maneira de enxergar a distinção, a qual,
tendo sido aceita, passou a ser aplicada e tornou-se efetivamente a distinção
existente. De tal forma que, como dito, a proposta de Amorim foi acatada por
Moreira Alves na redação da Parte Geral do Código Civil de 2002.
Por tudo, a manutenção dos critérios hoje não significa o reconhecimento
de sua validade, mas a assunção de uma postura segundo a qual neles está prevista
uma maneira adequada e conveniente de retratar a questão.200 Já não parece,
entretanto, ser o caso de manter-se esse mesmo entendimento, havendo a
necessidade de inscrever-se a abordagem do tema no método civil-constitucional.
6. Conclusão: uma proposta funcional de distinção
Na linha do que foi acima exposto, vale destacar que uma distinção
funcional a ser proposta a respeito dos prazos de prescrição e decadência não pode
se afastar sobremaneira da distinção científica, tal qual a distinção científica
também não se afastava da empírica. Isso se dá, em primeiro lugar, porque, de
fato, para se chegar a uma distinção funcional foi revisitado o legado civilista sobre
a questão, sendo o trabalho de Agnelo Amorim a mais importante referência sobre
o assunto no direito civil nacional. Além disso, afastar-se o critério completamente
200
A esse respeito, é inspiradora a passagem conclusiva da obra de DWORKIN, Ronald. O império do
direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 492: “A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no
espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro
melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de
como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é,
de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a
comunidade que pretendemos ter.”
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da proposta de Amorim seria descaracterizar os próprios institutos no direito
nacional, já que veem sendo entendidos e aplicados de acordo com a construção
pregressa sobre o tema. A diferença em relação à distinção funcional que se
constrói e a distinção científica de Amorim, portanto, estará, ao menos, com
relação ao enfoque dado para a questão (mas não só aí, como em breve será
exposto).
Realçar o perfil funcional de um instituto jurídico no ordenamento atual,
em que a dignidade humana é o valor unificador do sistema, é revelar a maneira
pela qual o instituto se presta à realização de propósitos humanos e à proteção da
pessoa. Descarta-se, desde já, a visão pela qual seria a prescrição ou a decadência
uma sanção aplicada a quem tenha se quedado inerte no exercício de um direito,
simplesmente porque, neste caso, não haveria sujeito de direito a ser protegido por
meio dessa sanção, nem mesmo algum interesse público estaria sendo preservado.
A função da prescrição e da decadência deve ser buscada em seu aspecto
positivo, em relação ao indivíduo que se beneficia desses institutos. São, pois,
mecanismos de proteção do interesse daquele que ocupa o polo
(predominantemente) passivo de uma relação jurídica e que, assim, se liberta de
uma situação de incerteza. Para Chiovenda, por exemplo, o direito de impugnar o
í “ q
potestativo, à prescrição ou à decadência, ou como se queira dizer, porque o estado
jurídico indeciso deve cessar o mais rápido”.201
A passagem do tempo somada à inércia do titular constitui um fato
juridicamente valorado de uma forma específica. Onde se pensava haver um
interesse jurídico, a inércia do titular indica haver razões para crer que não há
interesse de fato, deixando de ter sentido o interesse que se atribuía àquela pessoa.
Diante dos fatos, ficam caracterizadas as razões para se retratar os prazos como
um mecanismo de assimilação dos fatos da vida pelo direito.
Bem mais adequada, portanto, é outra perspectiva que trata desses dois
institutos como mecanismo de se promover a segurança e a estabilidade das
relações. Fraçois Ost retrata a prescrição, mais do que isso, como uma
manifestação do perdão na ordem jurídica:
Como para o desuso, a prescrição extintiva surge, assim, como um mecanismo de adaptação do direito ao fato: na falta de ter podido se realizar conforme a sua prescrição, o direito (aqui entendido como direito
201
CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 33 (sem grifos no original).
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subjetivo) alinha-se na situação de fato contrária que se consolidou no intervalo. De novo, ou se pode lamentar o revés do direito que, por preocupação com efetividade e realismo, acaba por consagrar uma injustiça, ou, ao contrário, admirar as capacidades de autoadaptação de uma regulamentação jurídica que consegue finalmente inscrever qualquer fato ou ato à série ininterrupta do tempo, e consagra, assim, uma outra ideia de justiça que quer que se esqueça o que durou demais sem chegar a se realizar.202
Mas para compreender, propriamente, em que consiste a distinção
funcional que se propõe haver entre prescrição e decadência, vale visualizar o
esquema abstrato da relação jurídica, pelo qual existe um polo
(predominantemente) ativo correspondente a um polo (predominantemente)
passivo.
No esquema de compreensão da função dos prazos de prescrição e
decadência, ao polo ativo é conferido um poder tal que sujeita o polo passivo, seja
para constranger-lhe ao cumprimento de uma prestação, seja para submeter-lhe,
de qualquer forma, às consequências de uma decisão que incumbe
predominantemente à vontade do polo ativo e independe da vontade do polo
passivo. Fica então o polo passivo acoplado a uma definição que incumbe ao polo
ativo, restando aprisionado em um estado de incerteza e descontrole de sua
própria sorte.
Se não houvesse um prazo para o exercício desse poder ou faculdade
atinente ao polo ativo, o estado de incerteza seria absoluto e no mínimo
angustiante, pois somente em seu desfavor poderia ter desfecho, podendo este se
passar em qualquer momento até a eternidade.203 Por isso mesmo, é comum que a
lei preveja um prazo í “ ”
pelo polo ativo.
Assim, o estado de incerteza pode cessar (i) pelo exercício da faculdade que
incumbe ao polo ativo, se o fizer, ou, se não o fizer, (ii) pelo decurso do tempo,
conforme a previsão de um prazo legal. O prazo em questão é variável, tanto no
202
OST, François. „Perdão. Desligar o Passado‟. In O Tempo do Direito. Tradução de Élcio Fernandes.
Bauru: Edusc, 2005. 203
Fala-se, neste caso, em “angústia” e não se entende haver aí uma falha metodológica, mas, pelo contrário,
uma observância estrita ao sentido de uma abordagem funcional. A funcionalização das situações jurídicas
subjetivas se reporta, em último grau, à dignidade da pessoa humana, enquanto a consciência da necessidade
de tornar concreta essa funcionalização exige também a consideração de um parâmetro de alteridade que leve
em conta um ser humano concreto, e não um padrão abstracionista de pessoa. Toma-se sempre por referência
a crítica de Costas-Douzinas que aduziu: “O sujeito jurídico, o conceito-chave sem o qual os direitos não
podem existir, é, por definição, altamente abstrato, uma estrutura ou esqueleto que será preenchido com a
carne fraca dos deveres e o sangue desbotado dos direitos. A metafísica jurídica não tem tempo para dor das
pessoas reais.” (DOUZINAS, Costa. O fim dos direitos humanos. 1ª Ed. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p.
165).
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aspecto quantitativo (pelo tempo fixado) quanto no aspecto qualitativo (pelo tipo
de prazo previsto, ou pelas regras fixadas para sua contagem). De qualquer modo,
a variedade de formas pelas quais são previstos os prazos corresponde a uma
distinta valoração do estado de incerteza a que põe termo.
Há casos, porém – talvez a maioria deles – em que existirá ainda uma
terceira forma de cessar o estado de incerteza, a qual poderá se dar (iii) pela
prática de um ato jurídico específico que compete ao próprio polo passivo da
relação. Trata-se do adimplemento ou de outros atos que o equivalham. Neste
caso, a condição de incerteza do polo passivo é qualitativamente distinta da sua
condição no caso em que não se lhe faculta a prática de qualquer ato hábil a
liberar-lhe dessa condição.
O que distingue funcionalmente a prescrição da decadência, conforme a
proposta ora apresenta, é a condição para a liberação do polo passivo nesses dois
casos. No primeiro caso, em que ao polo passivo não é atribuída a legitimidade
para praticar qualquer ato hábil a provocar sua liberação o prazo é de decadência.
No segundo caso, em que ao polo passivo é dado praticar um ato correspondente à
satisfação do interesse do polo ativo na relação jurídica o prazo é de prescrição.
A incerteza neste último caso é, aliás, compartilhada entre os polos ativo e
passivo da relação. Enquanto o polo passivo pode desconhecer a intenção do polo
passivo de constranger-lhe ou não à prática do ato que lhe caberia praticar, o polo
ativo, por sua vez, pode desconhecer a intenção do polo passivo de fazê-lo
espontaneamente ou não. Isso justifica, por exemplo, as hipóteses em que a
prescrição se interrompe por um ato tal do polo ativo que demonstre
inequivocamente a intenção de constranger o polo passivo à prática do ato em
questão, ou pela afirmação inequívoca, por parte deste, seja da existência da
relação jurídica, seja de sua intenção de adimpli-la. A interrupção do prazo não
deixa de corresponder a uma renovação das expectativas quanto ao adimplemento
ou à intenção de exigi-lo, seguindo o impedimento e a suspensão a mesma lógica.
O mesmo não se passa com as circunstâncias em que o prazo previsto é o
de decadência. Como neste não é dado ao polo passivo a prática de qualquer ato,
nem ato algum dele se espera, não faz sentido pensar-se em interrupção,
suspensão ou impedimento do prazo, tanto quanto não faz sentido pensar-se em
renúncia. A renovação do prazo no caso da prescrição faz sentido porque significa
a reafirmação da relação jurídica e da expectativa de que o ato a ser praticado pelo
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polo passivo efetivamente o será. Se nenhum ato se espera do polo passivo, por
outro lado, nem a ele é atribuído qualquer outro papel senão o de se sujeitar ao que
ficar decidido pelo polo ativo, não faz sentido estabelecer uma renovação do prazo
que, assim, toma seu curso linear.
A renúncia, nos casos de prescrição faz sentido, porque importa uma
manifestação da intenção do polo passivo de fazer extinguir a sua condição de
devedor, não pelo decurso do prazo, mas pela prática do ato de adimplemento que
lhe incumbe praticar. No caso da decadência, porém, nenhum ato incumbia ao
polo passivo, nem qualquer poder lhe foi conferido com relação a sua condição de
polo passivo na relação, de maneira que também exaurido o prazo – que era o
único meio de resolver-se o estado de incerteza em seu benefício – este não condiz
com alguma renúncia.
Adota-se, pois, uma visão aproximada à de Moreira Alves que por sua vez
inspirou-se em Agnelo Amorim, mas de forma desprendida dos modelos do direito
subjetivo ou do direito potestativo; atendo-se ao perfil dinâmico das situações
subjetivas (embora não tenha se expressado nesses termos) que se distinguem pelo
fato de serem ou não passíveis de violação.
É de se observar, então, que essa divisão poderia corresponder em linhas
gerais à mesma distinção que se faz entre direito subjetivo e potestativo, nos
moldes em que se baseou Agnelo Amorim.204 Via de regra, será mesmo possível
observar-se um paralelo, já que o objeto prestacional do direito subjetivo é o que se
põe em destaque para afirmar que se conecta a prescrição. No entanto, o
paralelismo, neste caso, não é necessário, mas contingente.
No caso do divórcio, por exemplo, tem-se um direito potestativo que não
se sujeita a prazo. Deveras, entre pessoas casadas, o estado de incerteza é uma
constante que não pode ser suprimida por qualquer regra legal. Em contrariedade
à proposta de Agnelo Amorim (se bem que esta fosse anterior à legalização do
divórcio) ainda que seja este um direito potestativo, não se submete a qualquer
prazo.
204
Vale observar, ainda mais uma vez, que não se trata, neste ponto, de uma proposta “inaugural” de
distinção, nem poderia valer uma proposta deste tipo. A linha adotada, aliás, se assemelha bastante à
abordagem de Moreira Alves sobre o tema, mais do que qualquer outra, mas somente por um
comprometimento com o propósito de identificar uma distinção funcional foi possível formar um
entendimento sobre a adequação dessa construção. (V. MOREIRA ALVES, José Carlos. „A parte geral do
projeto do Código Civil‟. Revista CEJ. cit.).
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Não apenas isso, direitos potestativos podem, sim, estar ligados a um
prazo de prescrição. Pense-se o caso em que um vendedor, ou adquirente
inviabiliza, por qualquer expediente, o exercício de um direito de preferência.
Trazendo-se a incidência dos deveres anexos de boa-fé, tem-se que ao polo passivo,
titular da situação jurídica de sujeição (correlata à situação de direito potestativo),
não é dado obstaculizar o exercício do poder atribuído pelo ordenamento ao polo
ativo.205 S z í . “V
ã ” z z çã
qual se submeterá a prazo de prescrição.
Valendo lembrar que a pretensão por si é também um direito potestativo, o
que, sem dúvida pode provocar confusões, vale também lembrar que se extingue
por prescrição, e não por decadência. De fato, embora seja a pretensão um direito
potestativo, pode perfeitamente ser extinta com base em um ato que o polo passivo
é legítimo a praticar. No caso da violação de um direito, por exemplo, como um
acidente de trânsito que tenha sido causado pelo polo passivo, pode esse se dispor
a arcar com todos os custos de reparos daí advindos. Com o acidente, nasceu a
pretensão, a qual pode ser extinta pelo adimplemento espontâneo e pelo acordo
entre as partes, podendo também ser exercida pelo ajuizamento da respectiva ação
de reparação de danos se necessário e podendo, por fim, se extinguir pela
prescrição.
Retomando-se a citação a François Ost, é possível vislumbrar ainda mais
uma distinção funcional entre os institutos. Ao titular de um direito possivelmente
violado atribui-se um interesse jurídico que este não se mostrou realmente
interessado em exercer. O interesse atribuído não se mostra real ou, se for real,
adiou-se por um tempo tal que já se mostraria excessivamente prejudicial ao polo
passivo o seu exercício. A prescrição se volta a consolidar uma situação de fato
oposta ao que se pensava corresponder à efetivação de um direito. Trata-se de um
processo de assimilação jurídica dos fatos sociais.206
205
V. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit., p. 687: “Se for verdade,
porém, que o titular da sujeição não pode impedir a produção dos efeitos na própria esfera, é também verdade
que ele é titular de um dever específico (obbligo) ou, se se preferir, de um dever genérico de não impedir ao
titular do poder não somente de realizar o ato, mas também de alcançar o resultado. O titular da situação de
sujeição deve também cooperar para que o titular do poder formativo possa exercê-lo utilmente. Não se trata
de simples sujeição: é, ao revés, presente um dever de cooperação. A sujeição é a situação de um momento: o
efetivo exercício por parte do titular do direito potestativo.” 206
Tais considerações são hábeis a fortalecer a tese da imprescritibilidade do dano moral, ou ao menos de sua
flexibilização, tendo em vista que tais presunções não se fazem igualmente lógicas na hipótese de danos à
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A decadência, porém, não se enquadra neste papel, mas diz respeito,
precisamente, a um dos aspectos regulamentares que compõem a própria situação
jurídica subjetiva que visa extinguir.
Essa noção está em sintonia com o próprio critério topográfico, em que a
decadência é prevista juntamente da fattispecie que por ela se extingue,
possivelmente na Parte Especial, devendo ser entendida como parte componente
dessa mesma fattispecie. Assim, não só existe um direito de pedir a anulação do
negócio jurídico, como esse direito existe precisamente quatro anos (art. 178,
Código Civil) e nada mais, o que seria uma das pretendidas distinções entre
negócio nulo e anulável – ultrapassado um termo temporal, a anulabilidade se
convalida.
Essa noção está em sintonia também com critério empírico em que a
decadência nasce juntamente ao direito que com ela se extinguiria. O nascer
juntamente ao direito é compor intrinsecamente o direito e integrar sua própria
estrutura. Seria parte imanente do direito de arrependimento previsto no Código
de Defesa do Consumidor (art. 49) que ele seja exercido no prazo de sete dias. O
prazo compõe completamente o conteúdo do direito de arrependimento no caso e
não condiz com uma expressão externa limitadora do seu exercício. Simplesmente,
não poderia haver direito de arrependimento se este não contivesse um prazo para
o seu exercício, sendo adequado que seja um prazo curto.
A decadência, dessa forma, embora possua, por si, uma função que diz
respeito a excluir um estado gravoso de incerteza, é extremamente afetada pela
função da situação jurídica que integra, estando aí o mais relevante aspecto de sua
adequação valorativa. Esse aspecto explica, por exemplo, a inexistência de prazo
para o exercício do divórcio, já que um prazo seria incompatível com a própria
função do direito.
Analisada em concreto, vê-se que, diferentemente da prescrição que é um
instituto jurídico, funcionalizado à instituição de uma modalidade de perdão, a
decadência não se atribui uma função própria, senão residual. É elemento
pessoa humana. A prescrição, via de regra, diz respeito à situações precisas. Um inadimplemento, por
exemplo, advém de uma obrigação que deveria ter sido paga em certo tempo e não o foi. Fica clara a natureza
da violação tanto quanto as circunstâncias jurídicas que dela surgem. O dano moral, como decorrente da
cláusula geral de tutela da pessoa humana, se sujeita a formas variáveis e mesmo subjetivas de assimilação.
Sua configuração perante o direito depende de argumentação e ponderação. Sua configuração perante a
pessoa depende de um processo muitas vezes lento de racionalização do trauma. A previsão de prazo – ainda
por cima tão exíguo – para o dano moral é possivelmente contrário ao imperativo de tutela da pessoa
humana, provocando um obstáculo disfuncional.
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componente e integrante da situação jurídica que extingue, e revela mais sobre o
aspecto funcional desta situação subjetiva do que de si mesma, como detalhe
isolado e reduzido da situação que se investiga. Por outro lado, o que a decadência
revelará da respectiva situação é, justamente, que ela provoca um estado de
incerteza a outrem, o qual, salvo exceções, não deve durar eternamente.
7. Considerações finais
Por fim, vale destacar que prescrição e decadência não são modalidades
estanques de prazos, os modelos não reduzem as possibilidades pensáveis de
fixação de um termo temporal. São modelos e, como tais, são referências úteis às
quais pode ser válido recorrer em circunstâncias diversas, tendo em vista que
sobre eles já se produziu um legado. Mas o ordenamento jurídico é um sistema
móvel e aberto e se não há qualquer metafísica dos prazos também não há porque
restringir os prazos a esses modelos.
Pode-se, por exemplo, prever um prazo tal que, diante de determinado fato
jurídico, reduz-se à metade ou prolonga-se ao dobro se assim se mostrar
conveniente para a regulamentação de alguma situação jurídica. Não se terá, por
isso, qualquer falha de técnica legislativa. Será possível dizer deste prazo que é de
prescrição ou de decadência, como será possível dizer que é sui generis. A
discussão será, não sobre a compreensão do sistema jurídico, mas sobre o
significado das palavras.
Prescrição e decadência são, sobretudo, palavras. Palavras que expressam
algum sentido que aqui se procurou investigar, mas que não limitam os sentidos
todos que são possíveis e que não foram captados por algum outro significante. E,
ainda assim, como palavras que são, estão também sujeitas à transformação de
seus sentidos, conforme os sentidos variados que assumem ao longo do tempo.
Sendo palavras que expressam normas, estão sujeitas à variações de sua
compreensão, seja como palavras, seja como normas.
Tem-se nelas, hoje, distinções estruturais bem conhecidas e ministradas,
mas que não se ofendem diante de alguma flexibilização, como a prevista no art.
207 do Código Civil.
É possível dizer que com a possibilidade de impedimento, deixa-se de ser
decadência para ser prescrição, mas isso não é certo. O prazo de quatro anos para
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impugnar o reconhecimento de paternidade do filho menor se conta a partir de sua
maioridade do filho, sendo exemplo de impedimento aplicado a um prazo de
decadência. Será possível dizer que não se trata propriamente de um impedimento
com fins de manter-se cristalizado o sentido da decadência, mas isso será uma
escolha sobre palavras e não sobre normas, pois o regramento da questão será o
mesmo.
É possível dizer que, com a possibilidade de impedimento, o prazo não é
de decadência, mas de prescrição. Isso, porém, à custa da melhor compreensão
sobre as normas jurídicas, pois o direito de impugnar o reconhecimento de
paternidade não sofre nenhum dos outros fenômenos atinentes à prescrição, como
a suspensão, a interrupção e o impedimento em todas as demais hipóteses, além
da impossibilidade de renúncia.
Com a reforma processual de 2006 (Lei 11.268/2006) alterou-se
substancialmente o regime da prescrição, que passou a poder ser conhecida de
ofício. Isso, sem dúvida diminui a distinção entre prescrição e decadência, mas
tantas mútuas particularidades se mantêm que não há razões para pensar-se ter
havido uma diluição entre os institutos. Apenas, por essa mudança das estruturas,
vislumbram-se escolhas distintas a respeito das funções a serem ou não
promovidas.
Vale dizer que para novas funções ou para funções distintas devem ser
concebidas novas estruturas, ou devem ser adaptadas as estruturas pré-
concebidas. Os prazos para o exercício de situações jurídicas estão à disposição da
legalidade, para fazer tratar igualmente aos iguais, e desigualmente aos desiguais,
na medida em que se desigualem – “ ” a pelo legislador.
conforme o juízo que se faça de cada caso. Nisso consiste a superação de uma visão
jusnaturalista sobre o tema sem decair, por isso, em um formalismo jurídico.
Recebido em 17/09/2014
1º parecer em 07/01/2015
2º parecer em 02/03/2015
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PARECER
CONTRATO DE SEGURO DE VIDA E O AGRAVAMENTO DO RISCO
Luiz Edson Fachin
Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Pós
Doutor. Pesquisador convidado do Instituto Max Planck, de Hamburg (DE). Professor Visitante do
K ‟ C L . A .
SUMÁRIO: 1. Da consulta – 2. Dos quesitos – 3. Do objeto do Parecer – 4. Breve
escorço fático – 5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida
– 6. Inteligência e aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da necessária
vinculação da intencionalidade de agravamento do risco – 7. Da prova e do ônus
probatório da intencionalidade de agravamento do risco – 8. Das circunstâncias
concretas: ausência de prova que corrobore a intencionalidade de agravamento do
risco – 9. Resposta aos quesitos apresentados
1. Da consulta
Consultam-nos acerca da repercussão jurídica de questões pertinentes ao
pagamento de capital decorrente de contratos de seguro de vida em face de
passamento.
Apresenta-se cópia de documentos, em especial daqueles oficiais atinentes
à investigação da morte e as respostas negativas de cobertura (e consequente
pagamento do valor do capital contratado) de diversas seguradoras com as quais o
de cujus mantinha relação contratual.
2. Dos quesitos
Diante de interesses legítimos decorrentes de contratos de seguro de vida
firmados pelo falecido Sr. X, vêm de nos consultar seus beneficiários, solicitando
análise e a apresentação de parecer a respeito do seguinte:
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(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código Civil ao presente caso?
( ) O q “agravamento do risco” 768 Código Civil?
(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado dirigida ao agravamento do risco e que prova é apta para atender a esse ônus?
(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a alegação do agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante narram as respostas negativas de pagamento das seguradoras?
3. Do objeto do Parecer
Em decorrência dos questionamentos erigidos, o cerne deste parecer
cinge-se às reflexões teóricas, em cotejo com a matéria fática desenhada in casu,
acerca do contrato de seguro de vida e de circunstâncias que autorizem às
seguradoras ao não pagamento do capital contratado em sede de seguro de vida.
Preambularmente, far-se-ão breves considerações teóricas acerca dos
contratos de seguro de vida. Na sequência, ainda em sede de delineamentos
teóricos, debruçar-se-á sobre a análise do agravamento do risco e a necessidade
de sua intencionalidade quanto à percepção do capital contratado, em especial
diante das disposições do art. 768 do Código Civil pátrio, bem como sobre o
sentido que se deve atribuir a essa intencionalidade.
Em um segundo momento, à luz das normas atinentes à distribuição do
ônus da prova e ao sistema de proteção ao consumidor, analisar-se-á a natureza da
prova necessária à eventual desconstituição do direito dos beneficiários à
percepção da prestação da seguradora, bem como a quem caberia o onus probandi
pertinente à intencionalidade no agravamento do risco objetivo do contrato.
Por final, já aportando nas linhas conclusivas deste parecer, ponderar-se-á
sobre a existência ou não, nos documentos submetidos à presente análise, de prova
dessa estirpe no presente caso que tenha condão de afastar o pagamento do seguro
contratado, fornecendo, então, respostas aos quesitos.
4. Breve escorço fático
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Narra-se que X faleceu aos 38 (trinta e oito) anos de idade, em vinte e
quatro de maio no hotel Y, na cidade de W.
Conforme se depreende da documentação apresentada, mormente
inquérito policial, de acordo com depoimento prestado à polícia local pelo Sr. Z,
amigo do de cujus que o acompanhava, o Sr. X chegou naquela localidade no dia
vinte e três daquele mês, motivado por questões de trabalho. Ambos hospedaram-
se naquela localidade no hotel KK.
Verifica-se do inquérito policial a informação de que o Sr. X foi encontrado
morto pela Sr.ª GG, que o conheceu em W. A morte foi declarada no quarto de
hotel da referida senhora, no estabelecimento Y, por volta das seis horas da
manhã, do dia vinte e quatro.
De acordo com o laudo policial oficial das autoridades de W a causa mortis
“envenenamento acidental por exposição a narcóticos e psicodisléticos‖.
Dos documentos recebidos, dentre os quais se destacam declarações
pessoais de saúde complementar feitas de próprio punho pelo de cujus quando da
contratação do seguro, depreende-se que o Sr. X não era usuário de quaisquer
substâncias químicas que causem dependência.
O Sr. X era titular de alguns seguros de vida no Brasil.
De modo sistemático, as seguradoras, diante da requisição de pagamento
feita pela viúva beneficiária, em face do contido em seu atestado de óbito,
negaram-se ao pagamento haja vista que a conduta do de cujus supostamente teria
agravado o risco, elevando-o a patamares que fogem à cobertura contratada.
Da documentação entregue infere-se que companhias de seguros
consideraram indevido o pagamento, nos termos do artigo 768 do Código Civil,
alegando suposto agravamento do risco provocado pela conduta do Sr. X.
Eis a base fática narrada, que se depreende da documentação apresentada,
e que informa a análise a ser efetuada no presente parecer.
A partir desses pressupostos de fato, à luz dos quesitos formulados, passo
a examinar as questões jurídicas que vêm à tona como instrumentais à adequada
compreensão da matéria. Principie-se, nessa toada, com um necessário conjunto
de reflexões preliminares acerca do contrato de seguro de vida, de modo a aferir
quais as consequências jurídicas que dele podem derivar diante das circunstâncias
de fato objeto da Consulta.
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5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida
A compreensão da matéria a que se refere este parecer pressupõe reflexões
preliminares que situem o tema à luz da espécie de relação obrigacional de que se
está a tratar.
Cabe versar a respeito do conceito e dos caracteres fundamentais do
contrato de seguro, de modo a construir os subsídios necessários para a
investigação das repercussões jurídicas que advêm dos fatos narrados na Consulta.
O contrato de seguro, como se sabe, é modalidade contratual típica no
contexto do direito obrigacional pátrio.
Mister advertir que em que pese o objeto das reflexões no presente parecer
seja especificamente o seguro de vida, a especificação do objeto não o faz diferir da
disciplina geral da regulação dos contratos securitários no direito brasileiro.207
Não há consenso ao redor de definição una para os contratos de seguro,
todavia, de modo geral, poder-se-ia apontar, como um delineamento a título de
definição precária, os elementos que conformam esta modalidade contratual, quais
sejam: o interesse segurável, a prestação do segurador, o prêmio e o risco.
Conforme explica Pontes de Miranda:
Contrato de seguro, segunda a definição corrente, é o contrato pelo qual o segurador se vincula, mediante pagamento de prêmio, a ressarcir ao segurado, dentro do limite que se convencionou, os danos produzidos por sinistro, ou a prestar capital ou renda quando ocorra determinado fato, concernente à vida humana, ou ao patrimônio. Aí a falta de unidade na definição resulta de se ter em vista a distinção entre os seguros.208
Nessa moldura especial destaque tem o risco. A aleatoriedade é elemento
essencial das relações securitárias e consiste na superveniência de episódio futuro,
incerto, involuntário, todavia, possível – ou, no caso do seguro de vida
acontecimento certo (morte) de data incerta.
Acerca desse elemento preponderante nos contratos de seguro, a doutrina
h q A q “ é ”209 vez que,
ocorrido o sinistro, nenhum prejuízo advirá ao contratado.
207
O Código Civil anterior trazia no seu artigo 1.471 definição específica sobre o seguro de vida, a saber: “O
seguro de vida tem por objeto garantir, mediante o prêmio anual que se ajustar, o pagamento de certa soma a
determinada ou determinadas pessoas, por morte do segurado, podendo estipular-se igualmente o pagamento
dessa soma ao próprio segurado, ou terceiro, se aquele sobreviver ao prazo de seu contrato”. O código
vigente trata de maneira genérica o contrato de seguro. 208
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Vol. XLV. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. 209
ASCARELLI, Túlio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 173.
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Ademais, o contrato de seguro é essencialmente aleatório vez que não há
equivalência entre as prestações e sua execução, em face da dependência de evento
futuro e incerto. Por meio desta relação contratual entabulada há o translado do
risco do segurado à seguradora em virtude do pagamento de um prêmio.
A matéria geral das relações contratuais de seguro é regida
legislativamente de modo dual: de um lado, apóia-se nas previsões previstas nos
artigos 757, e seguintes do Código Civil, por outro, está albergada dentro do
sistema de proteção ao consumidor, com especial atenção ao Código de Defesa do
Consumidor.210
As previsões do Código Civil têm o condão de fixar as linhas gerais do
instituto, definindo-o e contextualizando-o dentro de acordo com os pilares que
inspiram o codex.
N 757 CC q : “pelo contrato de seguro, o
segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse
í ”.
Em que pese a manutenção dos padrões estruturais do Direito Civil
herdado da tradição moderna, o r. diploma legal aponta a necessidade, já presente
no Código de Bevilacqua, da observância dos princípios gerais informativos da
ordem contratual, a exemplo da boa- é . 765: “O
segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do
contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das
çõ ”.
Pondere-se que o esteio civilístico é apenas parcela do que suporta a
temática.
Consoante já ressaltado, ao lado da previsão do Código Civil, deve o direito
securitário ser mirado, concomitante e harmonicamente, também sob as lentes do
sistema nacional de proteção legal ao consumidor.
Tal baldrame bipartido deve-se às características das relações de seguro,
em especial no que tange à possível diferenciação de posicionamento entre as
partes contratantes, e pelas relações econômicas e sociais que encerram. Por tais
razões os contratos de seguro devem possuir ordenação especial.
210
É complexa a legislação específica que se espraia, para além dos diplomas indicados, em decretos-leis,
leis, portarias e medidas provisórias.
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No contexto consumeirista, o contrato de seguro encontra-se imerso em
paradigma distinto daquele presente na codificação civil hodierna que, em que
pese alguns avanços – a exemplo do artigo 765 supra transcrito – em grande
medida, prestou-se a repetir o modelo codificado anterior, fixando-se no dogma da
autonomia da vontade e do pacta sunt servanda.
A esse respeito, Fernando Noronha anota que:
A teoria jurídica construída pela ideologia liberal assentava em alguns dogmas, que hoje estão em crise: a irredutível oposição entre indivíduo e sociedade (o Estado seria um mal necessário cujas atividades era necessário restringir ao mínimo; o princípio moral da autonomia da vontade (a vontade humana seria o elemento essencial na organização do Estado, na assunção de obrigações, etc.); o princípio da liberdade econômica (laissez faire, laissez passer) e, finalmente, a concepção formalista, meramente teórica, da igualdade e da liberdade política (afirmava-se que os homens eram livres e iguais em direitos, sem se curar de saber se a todos eles seriam proporcionadas as condições concretas para exercitarem tais liberdades).211
Neste paradigma contratual renovado, o Código de Defesa do Consumidor
dispõe expressamente sobre as relações securitárias dentre aquelas por ele
abarcadas. Nessa senda, o § 2° do artigo 3º Código de Defesa do Consumidor fixa
que:
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Nota-se a expressa referência às atividades de seguro como forma de
ressaltar a natureza híbrida – civil e consumidor – de seu alcance legal. Acerca do
R zz N q “
especial, no caso preocupado com que os bancos, financeiras e empresas de seguro
conseguissem, de alguma forma, escapar çã CDC”212.
Pelo exposto não restam dúvidas que no segmento de seguros podem-se
entabular relações jurídicas de natureza tipicamente de consumo. Complementa
211
NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva,
1994. p. 94. 212
NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 95.
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Claudia Lima Marques ressaltando o caráter consumerista das relações
securitárias:
Resumindo, em todos estes contratos de seguro podemos identificar o fornecedor exigido pelo art. 3º do CDC, e o consumidor. Note-se que o destinatário do prêmio pode ser o contratante com a empresa seguradora (estipulante) ou terceira pessoa, que participará como beneficiária do seguro. Nos dois casos, há um destinatário final do serviço prestado pela empresa seguradora. Como vimos, mesmo no caso do seguro-saúde, em que o serviço é prestado por especialistas contratados pela empresa (auxiliar na execução do serviço ou preposto), há a presença do „ ‟ é q õ . 2º parágrafo único.213
É certa, portanto, da localização do contrato de seguro como modalidade
típica que se assenta, respectiva e concomitantemente, na codificação civil pátria e
no microssistema de defesa do consumidor, que tempera a herança oitocentista do
Direito Civil com sua lógica diferenciada e princípios protetivos.
A vinculação dos contratos de seguro à tutela especial de defesa do
consumidor, busca suavizar, por meio da vertente material do princípio da
isonomia constitucional,214 o desequilíbrio entre as partes pertencentes a um
contrato não paritário.
Destarte, a hermenêutica da compreensão do contrato de seguro deve
guardar proximidade teleológica com a ótica protetiva inerente ao Código de
Defesa do Consumidor, destinado este ao abrigo da parte mais vulnerável no
contexto de determinada relação contratual que, pelo desequilíbrio econômico e
financeiro, não se coloca em pé de igualdade em face do outro fornecedor
contratante.
Esta proteção diferenciada deriva também da natureza de contrato por
adesão da qual o seguro é legítima espécie. Esta modalidade contratual
caracteriza-se por apresentar conteúdo preestabelecido por uma das partes
. R “ ”
aceitar as cláusulas já formuladas, sem possibilidade de discussão sobre situação
contratual previamente definida.
213
MARQUES, Claudia Lima. Contratos do Código de Defesa do Consumidor. 4ª edição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002. p. 141. 214
Nesse trajeto de sistemas interdependentes, impende registrar o sentido dessa travessia: “el cambio más
significativo del tránsito Del Estado de derecho al Estado social de derecho lo constituye la superación de
uma concepción formal por uma concepción material de la igualdad. La realización de la igualdad ya no
queda librada así únicamente a las fuerzas del mercado, sino que depende de la contínua y deliberada
intervención de las autoridades públicas para promover personas, grupos, y sectores desfavorecidos”.
ARANGO, Rodolfo. La jurisdicción social de la tutela. In: BETANCUR, Carlos M. Molina. Corte
Constitucional. Bogotá: Centro Editorial de la Universidad del Rosario, 2003. p. 108.
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O consentimento dado pelo segurado contratante é manifestação de sua
adesão ao conteúdo contratual, restando-lhe somente à opção de acatar o contrato
nas condições que lhe é ofertado pelo fornecedor.
Nesse passo, concernente aos contratos por adesão, lança Maria Helena
Diniz:
Os contratos por adesão constituem uma oposição à idéia de contrato paritário, por inexistir a liberdade de convenção, visto que excluem a possibilidade de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas pelo outro, aderindo a uma situação contratual já definida em todos os seus termos. Esses contratos ficam, portanto, ao arbítrio exclusivo de uma das partes – o policitante –, pois o oblato não pode discutir ou modificar o teor do contrato ou as suas cláusulas. É o que ocorre com: os contratos de seguro; os de venda das grandes sociedades; os de transporte; os de fornecimento de gás, eletricidade, água; os de diversões públicas; os de consórcio; os de financiamento bancário. Eis por que preferimos denominar o contrato de adesão de contrato por adesão, verificando que se constitui pela adesão da vontade de um oblato indeterminado à oferta permanente do proponente ostensivo.215
Categoricamente afirma a referida ilustre autora que a modalidade
“é ã -se com a aceitação
pelo segurado, sem qualquer discussão, das cláusulas impostas ou previamente
ó ”216.
O consentimento indiscutido conferido pelo segurado, marca dos contratos
por adesão, é elemento que consolida o desequilíbrio contratual e a posição de
hipossuficiência que o segurado assume diante da seguradora uma vez que não há
possibilidade ordinária de se alterar o estabelecido.
Pode-se dizer que nos contratos por adesão, ainda que exista a liberdade
“ ” h ã
“ ” q çã
contrato.
Enquanto a parte que formula o contrato exerce plenamente sua
autonomia privada, ao aderente resta sujeitar-se ao disposto previamente na
proposta, sem efetiva possibilidade de modificação das cláusulas que lhe são
submetidas.
Há, portanto, claro desequilíbrio entre as partes contratuais nesses casos,
ainda que ambos sejam entes privados. Diante da questão concernente ao
215
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 3° volume. 23. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.
89. 216
Ibidem, p. 520.
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desequilíbrio contratual presente nos contratos de adesão, parece possível – e, no
mais das vezes, necessário – regular nos casos concretos, de acordo com os
parâmetros legais constitucionais, o conteúdo e a interpretação das cláusulas
contratuais. Isto porque a existência da liberdade negocial não afasta a atuação
estatal protetiva da ordem constitucional e, em consequência, de um conjunto de
direitos fundamentais.
No mesmo sentido a paradigmática jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal aponta que:
As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.217
Eis, portanto, em breves linhas, alguns dos alicerces constitutivos da
disciplina jurídica dos contratos de seguro da qual o presente parecer parte.
6. Inteligência e Aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da
necessária vinculação da intencionalidade de agravamento do risco
Consoante o acima exposto, a problemática que abrolha das relações
securitárias deverá ser mirada sempre no cotejo civilístico-consumeirista para
conformação de hermenêutica que melhor atenda aos anseios jurídicos
contemporâneos.
É nesse influxo que o artigo 768 do Código Civil deve ser analisado. O r.
q : “o segurado perderá o direito à garantia se agravar
intencionalmente o risco objeto do contrato‖.
Sublinhe-se que, consoante acima destacado, o risco é a essência do
contrato de seguro de vida, sendo ônus de o segurador assumi-lo, diante do
pagamento do prêmio como acontecimento futuro e incerto, tanto no que se refere
à concreta realização, quanto ao momento em que ocorrerá.
Para uma melhor interpretação do artigo ora em foco, mister sublinhar
que, nos termos legais do artigo 757 também do Código Civil, pela análise do risco
(“riscos predeterminados”)
calcula e cobra o prêmio que considera devido, proporcionalmente.
217
STF, Segunda Turma, RE nº 201.819/RJ, Relator p/ acórdão Ministro Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006.
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Em Silvio Rodrigues se explana de forma concisa a maneira de análise do
referido cálculo de proporcionalidades entre o prêmio e os riscos apresentados:
O cálculo das probabilidades é o elemento a que recorre o segurador para fixar, de antemão, o prêmio que será pago pelo segurado. Pelo exame das estatísticas, observando por vários anos e incidência dos sinistros num determinado risco, verifica o analista, com extraordinário grau de precisão, qual será a referida incidência no ano em estudo. É a aplicação da lei dos grandes números. Um exemplo. Ainda que elementar, servirá para esclarecer a hipótese: examinando os casos de homicídios culposos resultantes de atropelamentos automobilísticos, durante alguns anos, e tendo em vista, digamos, dez mil segurados, verifica-se que sua incidência é de determinada razão percentual. Daí deduz o calculista que todas as coisas remanescendo as mesmas, tal razão deve perdurar no ano seguinte. Com base nessa lei estatística, fixa o segurador a taxa de seguro, taxa que será suficiente não só para pagar todas as indenizações, como também para proporcionar um lucro razoável àquele.218
Isto posto, a fixação do valor a ser pago pelo prêmio leva em sua base
constitutiva a equação risco/valor e deve ser estipulada com base em juízos de
probabilidade.
A importância paga leva em consideração o risco médio previsto para
aquele conjunto de variáveis não podendo ser revisto consoante flutuações para
mais ou para menos conforme o desenrolar da vida humana, salvo em hipóteses
quantitativamente expressivas nos termos do artigo 769 do Código Civil. Episódios
singulares, portanto, não devem ser considerados para este fim.
O segurador, em face do prêmio recebido, assume os riscos inerentes à
pessoa ou bens do segurado e, por sua vez, calcula o valor de sua remuneração em
função dos riscos assumidos.
S S R “ é
constitui o seu próprio objeto. (...) No seguro de vida o risco consiste no fato de a
”.219
Conclui-se, portanto, o dever de suportar o risco assumido pelo segurador
em razão do acordado entre as partes contratantes. Neste sentido, poder-se-ia
q “ çã é q
seguro, o contratante transfere à seguradora, e não as circunstâncias de sua
”.220
Orlando Gomes confirma tal pensamento e alude:
A noção de seguro pressupõe a de risco, isto é, o fato de estar o indivíduo exposto à eventualidade de um dano à sua pessoa, ou ao seu patrimônio,
218
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Volume 3. 28. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 331 e 332. 219
Ibidem, p. 336. 220
TJ-PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 0485604-0, Relator Des. Sérgio Luiz Patitucci, DJ 11.01.2010.
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motivado pelo acaso. Verifica-se quando o dano potencial se converte em dano efetivo. Quando o evento que produz o dano potencial é infeliz, chama-se sinistro. Assim, o incêndio. Tal evento é aleatório, mas o perigo de que se verifique sempre existe. Por isso se diz, com toda procedência, que o contrato de seguro implica transferência de risco, valendo, portanto, ainda que o sinistro não se verifique, como se dá, alias, as mais das vezes.221
A fixação do prêmio e a análise dos riscos devem observar o dever de boa-
fé e veracidade que as partes contratantes guardam entre si. A esse respeito, ensina
Caio Mário:
O segurado e o segurador são obrigados a observar, tanto na fase das tratativas, quanto na conclusão e execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade. A boa-fé objetiva é elemento essencial deste tipo de contrato, em razão de a fixação do prêmio depender de informações prestadas pelo segurado, e em razão de sua aleatoriedade, tendo em vista sempre haver a possibilidade de agravamento da álea do contrato durante a sua execução, por fato que possa ou não ser imputado ao segurado.222
É com esteio no dever de boa-fé que o agravamento do risco pode ser
excludente do dever de pagamento da garantia, em circunstâncias que estejam
preordenadas à obtenção, em favor do beneficiário, do capital a que se obrigou a
seguradora. Isto porque o agravamento intencional do risco, após a celebração do
contrato, acaba por acarretar prejuízos financeiros para com o segurador.
Todavia, impende esclarecer, em primeiro lugar, que consoante a proteção
do consumidor nos contratos de seguro, cabe à seguradora contratada, com base
nas probabilidades, sopesar os riscos e a eles atribuir valor respectivo do prêmio.
Em segundo lugar, importa ressaltar que, com base na equação risco/valor, o
cálculo do prêmio é feito com base em risco médio previsto, sem levar em conta
circunstâncias pontuais para além deste padrão. Haja vista a natureza de adesão
dessa forma contratual, não há, via de regra, possibilidade de discussão material
por parte do contratado.
O dever de boa-fé exposto no artigo 765 do Código Civil impõe que se leve
em consideração, na interpretação do contrato, a situação díspar existente entre as
partes, pois, tratando-se de contrato por adesão, a liberdade contratual é
evidentemente reduzida ou, quiçá, eliminada no que tange ao aderente. Com
ç “ ”
celebração ou não do contrato, ainda que esteja presente, não é suficiente para
221
GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Marino. São
Paulo: Forense, 2008. p. 505. 222
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.
457 e 458.
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çã ç “ ”
definir o conteúdo do contrato.
Daí porque a boa-fé objetiva, em sua função integrativa, impõe em
contratos dessa natureza especial dever de proteção ao aderente imposto ao
contratante que formula as cláusulas.
Demais disso, não se pode olvidar que no âmbito dos contratos por adesão,
mormente tratando-se de relação de consumo, nem sempre é atendido em sua
plenitude o dever de informação e clareza imposto às seguradoras.
À z é q ã “agravar
intencionalmente o risco‖ incrustada na disposição supramencionada.
Não é qualquer majoração a que se refere este artigo. Note-se que o
próprio artigo 768 afirma que o agravamento em questão não é de qualquer risco,
q “risco objeto do contrato‖. Ou seja, colhe-se da mens legis o
liame entre majoração do risco e o contrato de seguro.
Pelo exposto resta claro que o próprio legislador vinculou o risco agravado
em tela ao contrato de seguro.
Portanto, a elevação da alea apta a afastar o pagamento do valor previsto
na apólice é aquela relacionada a obtenção desta mesma garantia – ou seja,
obtenção do pagamento relativo ao contrato de seguro.
Destarte, deve haver, para a finalidade prática de aplicação do artigo 768,
um nexo causal223 que oriente o agravamento do risco ou, genericamente, a
conduta do segurado, à percepção do pagamento atinente ao contrato de seguro
pactuado.
Para que a seguradora exonere-se do pagamento, nos termos do r. artigo,
há de haver conduta que importe no voluntário e consciente agravamento do risco
por parte do segurado para receber a quantia indenizatória acordada.
No vocabulário jurídico a intencionalidade a que faz referência o artigo
“ .
É o que se quer de modo consciente, de modo voluntário, sem nenhuma pressão ou
co çã q q ç ”.224
223
Acerca da necessidade da comprovação do “nexo de causalidade” da intenção do segurado com o sinistro
eis, a título exemplificativo, a jurisprudência do TJ/PR nas apelações cíveis nº 0461452-4; 0403914-9 e
0293542-6. 224
DELGADO, José Augusto. Comentários ao Novo Código Civil. Volume IX. Tomo I. Coordenador Sálvio
de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 247.
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Isso significa que não basta que a conduta tenha sido praticada
voluntariamente pelo segurado, ainda que com culpa grave: mister é que haja a
intenção preordenada de obtenção do capital (objeto do dever da seguradora) em
favor do beneficiário, e que essa conduta tenha, nessa medida, ensejado
incremento do risco segurado.
Não é qualquer conduta culposa que enseja aumento do risco, e, do mesmo
modo, não é qualquer elevação do risco por conduta, ainda que voluntária, que
permite à seguradora eximir-se do pagamento da indenização ou do capital
constantes da apólice. É o direcionamento do elemento subjetivo da conduta do
segurado à obtenção da indenização ou do capital, para si ou para outrem, que
qualifica a hipótese de afastamento do dever de prestação da seguradora.
Esta interpretação que exige tal liame – agravamento do risco/percepção
da indenização – mostra-se mais adequada porque, em primeiro plano, deriva da
própria literalidade de sentido colacionada no r. dispositivo legal que menciona
“agravar intencionalmente o risco objeto do contrato‖225. Em segundo plano, a
senda hermenêutica aqui esposada é mais apropriada à observância constitucional.
Supor que todas as atitudes praticadas em vida interviriam no contrato de seguro
geraria intromissão indevida à esfera da liberdade individual.
Isto porque a liberdade de agir dos sujeitos, em todas as searas de sua
existência, restaria condicionada pelo pacto econômico securitário celebrado,
configurando, destarte, violação injustificada a direitos fundamentais.
Há ocorrências da vida humana que naturalmente geram insegurança –
tais como viajar de avião, trafegar de automóvel, utilizar-se de transporte
rodoviário, submeter-se a serviços médicos e de odontologia, entre outros – nem
por isso podem ser consideradas como agravadoras de risco para fins de seguro.
Não se pode, a conta de suposto agravamento do risco, tolher indivíduo
contratante de seguro da prática de tais atividades, ainda mais se não se
configuram como habitualidade.
225
“O legislador deu ênfase à intencionalidade do agravamento do risco, de onde se depreende que, na falta
desse elemento de vontade, sobrevive o espírito do artigo 1.453 do Código Civil”. In: CASES, José Maria
Trepat. Comentários ao Código Civil. Vol. VIII. Coord. Álvaro Vilaça de Azevedo. São Paulo: Atlas, 2003.
p. 240.
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Ness “ ã h q
angustiosamente atento a todo perigo, para evitá-lo. Ele contrata, em regra, o
qü ”.226
É q “ é co
causado por vontade própria, isto é, com intenção de se beneficiar do valor da
”.227 S “ q
exima do pagamento do seguro, é necessário que comprove que houve voluntário e
consciente agravamento do risco por parte do segurado e, mais ainda, que esta
”.228
O risco apto a sustentar extinção do dever de prestação do capital por
parte da seguradora é aquele gerado de forma preordenada pelo segurado para o
fim de desencadear o pagamento da prestação devida. Não se caracterizando a
intencionalidade, a partir desse baldrame interpretativo pautado no nexo causal
entre conduta de agravamento de risco e obtenção do pagamento do capital
contratado, o dever da seguradora se mantém hígido e íntegro.
Deve, consequentemente, ser restritiva a interpretação deste artigo que
apenas pode ser levado a efeitos práticos quando da existência de prova cabal que
demonstre vontade preordenada do segurado em dolosamente obter o pagamento
da seguradora.
Eis o sentido que se pode atribuir à culpa grave ou ao dolo do segurado:
não se trata de culpa grave ou de dolo direcionados à conduta em si, mas ao
resultado dessa conduta frente ao contrato celebrado. Vale dizer: não se afere
culpa ou dolo do segurado com base na vinculação do seu elemento subjetivo ao
resultado material do ato por ele praticado, como fato da vida, mas, sim, no liame
entre esse resultado e eventual intenção de impor à seguradora o pagamento do
capital contratado.
O liame entre conduta e resultado, na apreciação da existência ou não de
dolo ou culpa grave, está pautado no resultado jurídico, qual seja, o
desencadeamento do dever de prestação da seguradora. Se na prática da conduta
pelo segurado, seja ela voluntária ou acidental, não há a intenção dirigida ao
resultado jurídico pertinente à obtenção, para si ou para outrem, da indenização
226
BEVILACQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. Volume V, p. 215. 227
DELGADO, José Augusto, op. cit., p. 247. 228
TJ/PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 651148-6, Relator Des. Francisco Luiz Macedo Junior, julgado em
29.04.2010.
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ou do capital a ser pago, não se apresenta hipótese apta a desobrigar a seguradora
do seu dever contratual.
A jurisprudência majoritária aponta a necessidade dessa ligação entre o
agravamento do risco, intencionalmente, e voltado à percepção do valor pago pela
seguradora. Eis o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, naquilo que é
relevante para o caso em tela:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. SEGURO. MORTE. SUICÍDIO NÃO PREMEDITADO. ACIDENTE PESSOAL. SÚMULA 83/STJ. INCIDÊNCIA. PRECEDENTES.
I. Os embargos declaratórios, ainda que opostos com a intenção de prequestionamento, devem ater-se às hipóteses de cabimento do art. 535 do CPC.
II. Esta Corte Superior firmou seu entendimento no sentido de que o suicídio não premeditado encontra-se abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo nula, porque abusiva cláusula excludente da responsabilidade da seguradora, à qual cabe, ademais, o ônus de provar eventual premeditação.
III. Agravo desprovido.229
DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. ACIDENTE PESSOAL. ESTADO DE EMBRIAGUEZ. FALECIMENTO DO SEGURADO. RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA. IMPOSSIBILIDADE DE ELISÃO. AGRAVAMENTO DO RISCO NÃO-COMPROVADO. PROVA DO TEOR ALCÓOLICO E SINISTRO. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. CLÁUSULA LIBERATÓRIA DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. ARTS. 1.454 E 1.456 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916.
1. A simples relação entre o estado de embriaguez e a queda fatal, como única forma razoável de explicar o evento, não se mostra, por si só, suficiente para elidir a responsabilidade da seguradora, com a consequente exoneração de pagamento da indenização prevista no contrato.
2. A legitimidade de recusa ao pagamento do seguro requer a comprovação de que houve voluntário e consciente agravamento do risco por parte do segurado, revestindo-se seu ato condição determinante na configuração do sinistro, para efeito de dar ensejo à perda da cobertura securitária, porquanto não basta a presença de ajuste contratual prevendo que a embriaguez exclui a cobertura do seguro.
3. Destinando-se o seguro a cobrir os danos advindos de possíveis acidentes, geralmente oriundos de atos dos próprios segurados, nos seus normais e corriqueiros afazeres do dia-a-dia, a prova do teor alcoólico na concentração de sangue não se mostra suficiente para se situar como nexo de causalidade com o dano sofrido, notadamente por não exercer influência o álcool com idêntico grau de intensidade nos indivíduos.
4. A culpa do segurado, para efeito de caracterizar desrespeito ao contrato, com prevalecimento da cláusula liberatória da obrigação de indenizar prevista na apólice, exige a plena demonstração de intencional
229
STJ, Quarta Turma, AgRg no Ag 647568/SC, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, DJ 26.06.2006.
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conduta do segurado para agravar o risco objeto do contrato, devendo o juiz, na aplicação do art. 1.454 do Código Civil de 1916, observar critérios de eqüidade, atentando-se para as reais circunstâncias que envolvem o caso (art. 1.456 do mesmo diploma).
5. Recurso especial provido.230
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná já se pronunciou a
respeito deste assunto no sentido de que:
APELAÇÃO CÍVEL - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS - PREVISÃO DE INDENIZAÇÃO POR MORTE ACIDENTAL - HIPÓTESE DE COBERTURA CONFIGURADA - EMBRIAGUEZ E PORTE DE ARMA DE FOGO - NEXO DE CAUSALIDADE NÃO COMPROVADO - INCUMBÊNCIA DO RÉU - AGRAVAMENTO DO RISCO - ATO INTENCIONAL - NÃO COMPROVAÇÃO - DISPARO ACIDENTAL - INABILIDADE DO SEGURADO - DEVER DE INDENIZAR RECONHECIDO. 2. CLÁUSULA EXCLUDENTE DO RISCO - PRÁTICA DE ATO ILÍCITO - NULIDADE RECONHECIDA - MATÉRIA ABRANGIDA PELO EFEITO DEVOLUTIVO. APELAÇÃO DESPROVIDA.
1a. A nominação do contrato como sendo de seguro por acidentes pessoais não afasta o dever de indenizar diante da expressa previsão de cobertura de morte acidental.
1b. Constitui ônus da seguradora a comprovação da existência de nexo de causalidade entre o evento e os fatores que seriam determinantes para a sua ocorrência.
1c. O estado de embriaguez e o disparo de arma de fogo, ainda que o porte fosse ilegal, não configuram hipótese de agravamento intencional do risco, especialmente quando o disparo decorre de mera inabilidade do segurado no manuseio do revolver.
2. É nula a cláusula contratual que prevê como excludente de responsabilidade da seguradora, de forma genérica, a prática de ato ilícito, pois coloca o consumidor em posição de desvantagem exagerada, deixando-o ao alvedrio do fornecedor.231
No entendimento sumular do STF, súmula nº 105, a ausência de
premeditação, até mesmo em casos de suposto suicídio, não exclui o dever de
pagamento. Não é outro o entendimento do STJ que pacificou jurisprudência na
súmula nº 61 que o seguro de vida cobre o suicídio não premeditado que deve ser
interpretado como morte acidental232.
A lógica em que se pauta o dever da seguradora em caso de suicídio é a
mesma em que deve se compreender qualquer outra conduta que enseje risco de
morte. Com efeito, se a produção do evento morte pelo próprio segurado, como
230
STJ, Quarta Turma, REsp 780757/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ 14.12.2009. 231
TJPR, 8ª Câmara Cível, AC 0396020-9, Relator: Juiz Subst. Gil Francisco de Paula Xavier F Guerra, DJ
15.05.2008. 232
Precedentes do STJ nesse sentido: Ag. Inst. nº 1150431/RS; AgRg no RESP nº 1047594/RS; AgReg no
Ag nº 632735/RS; RESP nº 472236/RS et ali.
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fato objeto do seguro, não afasta o dever de prestação do capital contratado se não
for preordenado ao percebimento desse capital, com maior razão deve-se entender
que se mantém hígido o dever da seguradora em outras hipóteses que não a prática
voluntária de suicídio.
Mister destacar caso análogo ao narrado na Consulta, relacionado à
intoxicação exógena do segurado, em que a Corte de Justiça do Estado do Paraná
fixou este entendimento sumulado, a saber:
AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE SEGURO. MORTE DO SEGURADO. INTOXICAÇÃO EXÓGENA AGUDA POR COCAÍNA (OVERDOSE). EQUIPARAÇÃO A SUICÍDIO INVOLUNTÁRIO E NÃO PREMEDITADO QUE, PARA FINS DE SEGURO, É ABRANGIDO PELO CONCEITO DE ACIDENTE. MÁ-FÉ DO SEGURADO. NÃO COMPROVAÇÃO. 1. A morte por overdose de cocaína equipara-se a suicídio involuntário, ou seja, a vítima não premeditou sua morte, não desejou o resultado e não tinha intenção consciente e racional de matar-se. 2. A jurisprudência é pacífica ao considerar, para fins de seguro, o suicídio involuntário e não premeditado como acidente. (Súmulas n° 105 do STF e n° 61 do STJ)
3. A má-fé do segurado traduz-se na omissão de informações que estava obrigado a prestar. Não tendo sido questionado acerca do uso de drogas, não se pode concluir que agiu de má-fé. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.233
Por todo exposto, diante da melhor interpretação, não há que se falar na
hipótese de agravamento de risco ligada à conduta involuntária e não planejada –
e, portanto, de boa-fé – do segurado, visto que a essência do contrato de seguros é
a aleatoriedade.
É a intenção de fraudar o seguro que afasta a responsabilidade da
seguradora. Consoante já demonstrado, as Cortes Jurisdicionais têm unissonante,
q q “
configuração de hipótese de exclusão da cobertura securitária, exige-se que o
segurado tenha agido propositada e diretamente de forma a aumentar o risco
contratual (colocando-se deliberadamente frente à morte ou ao risco concreto de
)”.234
A possibilidade de um risco futuro e incerto para com o segurado,
resultando na morte não voluntária nem premeditada deste, autoprovocada ou
não, é o cerne do contrato de seguro transferido à seguradora mediante o
233
TA/PR, 4ª Câmara Cível, Ap. Civ. 0155998-2, Rel. Juiz Fernando Wolf Bodziak, Julg. 11.12.2002. 234
TA-PR, 10ª Câmara Cível, AC 0214875-0, Relator Des. Lauri Caetano da Silva, D.J. 12.09.2003. No
mesmo sentido os precedentes: AC 0426882-0; 0281770-9; 0393482-7; 0311081-8 et ali.
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pagamento do prêmio. Exonerá-la do pagamento, nestas hipóteses, gera
descumprimento contratual e desequilíbrio da relação entabulada.
Ainda, cumpre registrar que eventual cláusula de exclusão da cobertura
contida no contrato de seguro per se não possuí o condão de afastar o dever de
pagamento da seguradora haja vista que seus contornos estão juridicamente
vinculados pelo modelo de adesão na contratação e pela assimetria marcante em
sua formação e execução.
Neste influxo, impende registrar o enunciado nº 370, aprovado na 4ª
Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal,235 que afirma que os
riscos avençados, nos contratos de seguro por adesão, devem ser interpretados de
acordo com o princípio da dignidade humana, a função social dos contratos, a boa-
fé objetiva e, em especial consonância, com o artigo 424 do Código Civil que
ç q “ ã ã s cláusulas que estipulem a
ú z ó ”.
É legítimo concluir, à luz do paradigma traçado, que apenas se admite o
não pagamento da indenização, independente da literalidade contratual, nos casos
em que for constatada claramente a premeditação juntamente com a má-fé do
segurado. Tais situações nem sempre são fáceis de serem provadas e trazem a
lume importante questão atinente ao ônus probatório nas relações de consumo,
consoante considerações que seguem.
7. Da prova e do ônus probatório da intencionalidade de agravamento
do risco
Examinada a questão atinente ao sentido da intencionalidade do
agravamento do risco, impende analisar o tema pertinente à prova do que se pode
denominar de agravamento intencional, de modo a aferir se no caso concreto há ou
não demonstração de fato hábil a eximir as seguradoras do pagamento do capital
contratado.
Cabe, porém, preliminarmente, examinar com a devida atenção em que
consiste o thema probandum derivado da distribuição do ônus probatório entre as
partes.
235
A literalidade do enunciado afiança: “Nos contratos de seguro por adesão, os riscos predeterminados
indicados no artigo 757, parte final, devem ser interpretados de acordo com os artigos 421, 422, 424, 759 e
799 do Código Civil e 1º, inc. III da Constituição Federal”.
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Com efeito, antes de se analisar a prova a respeito da intencionalidade do
agravamento do risco, impende aferir a quem cabe a produção dessa prova.
Trata-se de investigação que vai além da qualificação desse tema como
objeto de prova, mas, sobretudo, a quem caberia produzir prova sobre a existência
ou inexistência do fato apontado pela seguradora como supostamente apto a
eximi-la do dever de pagamento do valor da apólice.
A matéria atinente à prova do fato jurídico transita entre o direito material
e o direito processual, uma vez que diz respeito ao emprego dos meios legal e
moralmente admissíveis para o convencimento do magistrado sobre afirmações de
fatos formuladas pela parte, as quais, a seu turno, dizem respeito aos fatos que
servem de suporte à formação da relação jurídica.
É do convencimento ou não do magistrado sobre as afirmações de fato
formuladas pela parte que pode defluir a conclusão sobre a quem assistem ou não
direitos ou atribuem-se deveres – dependendo, por evidente, da eficácia da norma
que incide sobre os fatos.
A inserção da questão da prova na seara processual a vincula
inexoravelmente às alegações formuladas pelas partes como causas de pedir ou
defesas pautadas no direito material. Trata-se, aqui, menos de prova do fato
propriamente dito, mas, sim, prova sobre alegações de fato, como sustentam Luiz
Guilherme Marinoni e Sergio Arenhart, sendo que são essas alegações que definem
qual será o thema decidendum.236
Tema relevante que emerge da questão atinente da prova é aquele
pertinente à distribuição, no âmbito do processo, do ônus de sua produção.
Aquele que a quem cabe formular a afirmação de fato como causa de pedir
ou como defesa é aquele que, em regra, tem o ônus de provar a veracidade da
afirmação.
Ônus, como se sabe, não se confunde com obrigação: quem tem o ônus de
provar um fato e não o cumpre não viola dever, mas arca com as conseqüências
negativas do descumprimento: no caso, a impossibilidade de se tomar por
verdadeira uma afirmação de fato realizada pela parte que não se desincumbiu de
seu ônus probatório.
236
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio. Curso de Processo Civil: Processo de
Conhecimento. vol. 2. São Paulo: RT, 2008, p. 265.
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A lógica da distribuição desse ônus é, portanto, a mesma que define aquilo
que é matéria de alegação quando da dedução da pretensão e aquilo que integra a
defesa a ser formulada pelo réu.
Tem-se, nessa toada, a incidência do artigo 333 do Código de Processo
Civil, que dispõe:
Art. 333 - O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Emerge da norma em comento que cabe ao autor fazer prova do fato
constitutivo do seu direito, e ao réu fazer prova de fato modificativo ou extintivo
desse mesmo direito. Ou, na lógica antes explicitada, cabe ao autor provar suas
afirmações acerca dos fatos constitutivos do seu direito, e ao réu, as afirmações
sobre fatos modificativos ou desconstitutivos.
Coloca-se em pauta, a partir dessa premissa, a questão concreta pertinente
à Consulta formulada, em que ocorreu o fato morte do segurado com negativa de
pagamento do capital contratado por parte da seguradora, sob a alegação de
agravamento do risco segurado.
Trata-se de investigar se a exceção oposta extrajudicialmente pela
seguradora para negar-se ao pagamento do valor contratado seria ou não bastante
para impor à parte autora em eventual demanda (vale dizer, a quem ocupar a
posição de beneficiário do seguro de vida) um recrudescimento do seu ônus
probatório, por meio da imposição ao pólo ativo do ônus de provar a ausência de
agravamento intencional do risco.
A resposta a essa questão é, à luz da adequada distribuição do onus
probandi, necessariamente negativa. Ou seja: não cabe ao beneficiário de seguro
de vida provar que o segurado não agravou intencionalmente o risco.
A alegação de agravamento intencional é matéria integrante do jus
defensionis atribuído à seguradora, e que pode ser apresentado como exceção de
direito material no âmbito do processo em que se venha a exigir o pagamento do
capital contratado.
É o que explicam Marinoni e Arenhart:
Não há racionalidade em exigir que alguém que afirma um direito deva ser obrigado a se referir a fatos que impedem o seu reconhecimento pelo
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juiz. Isso deve ser feito por aquele que pretende que o direito não seja reconhecido, isto é, pelo réu.237
O fato de a alegação ter sido levada a efeito como fundamento da negativa
de pagamento do seguro, em âmbito extrajudicial, não a desnatura como exceção a
ser apresentada e provada na seara processual. Em outras palavras: a alegação, por
parte da seguradora, de agravamento intencional do risco por parte do segurado,
não impõe ao beneficiário do seguro de vida o ônus de provar o fato negativo da
não ocorrência desse agravamento intencional do risco.
O ônus probatório que se impõe à parte autora de uma demanda que vise
ao recebimento do seguro de vida se restringe à demonstração (a) da existência do
contrato de seguro de vida; (b) da ocorrência do evento segurado; (c) da condição
de beneficiário do seguro de vida.
A articulação lógico-temporal do nascimento do direito e do exercício da
pretensão dele derivada é útil à compreensão do tema probandum integrante do
ônus atribuído à parte autora, a saber:
- Ocorrido o evento segurado (morte) nasce o direito subjetivo de o
beneficiário obter o pagamento do valor contratualmente previsto;
- Requerido o pagamento desse capital contratado, caso venha a ocorrer a
negativa por parte da seguradora, restará caracterizada a violação do direito
subjetivo, com a caracterização da pretensão a ser deduzida em juízo;
- Deduzida em juízo a pretensão, cabe à parte autora fazer prova do fato
constitutivo do seu direito, que consiste no evento segurado mediante contrato,
bem como sua condição de beneficiário;
- Caso a seguradora entenda que o valor contratado não é devido, deve
fazer prova de fato extintivo do direito afirmado e provado pela parte autora,
valendo-se da defesa que entender cabível – e que pode consistir na exceção oposta
extrajudicialmente como justificativa para o não pagamento da indenização.
Tem-se, aqui, conclusão que deflui da correta aplicação do inciso II do
artigo 333 do CPC, a prova da ausência de agravamento intencional do risco não
integra o fato constitutivo do direito do beneficiário do seguro, mas, ao contrário, a
prova da eventual existência do agravamento intencional é precisamente o que se
subsume à dicção da norma processual quando se refere a fato extintivo do direito
do autor.
237
Ibidem, p. 266.
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Trata-se de entendimento respaldado pela jurisprudência:
SEGURO DE VIDA. MORTE ACIDENTAL. CARACTERIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE AGRAVAMENTO DO RISCO PELO SEGURADO. EMBARGOS DESACOLHIDOS NESSE PONTO. APELAÇÃO NÃO PROVIDA.
É da companhia seguradora o ônus de provar o agravamento do risco pelo segurado, por se constituir o comportamento incorreto do co-contratante fato extintivo do direito à indenização ou ao capital segurado. Apelação não provida.238
APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL - SEGURO DE VIDA EM GRUPO - ADICIONAL POR MORTE ACIDENTAL - MORTE DO SEGURADO -ACIDENTE DE TRÂNSITO - ALEGAÇÃO DE AGRAVAMENTO DO RISCO, DEVIDO À EMBRIAGUEZ DO SEGURADO - CIRCUNSTÂNCIA QUE, POR SI SÓ, NÃO ENSEJA EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA, PREVISTA NO CONTRATO - PRECEDENTES DO STJ E DESSA CORTE - NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A EMBRIAGUEZ DO SEGURADO E O ACIDENTE NÃO COMPROVADO - ÔNUS DA PROVA QUE INCUMBIA À SEGURADORA - REFORMA DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE RECURSO PROVIDO.239
Reforça esse entendimento a relação entre boa-fé subjetiva e boa-fé
objetiva que se pode identificar no âmbito dos contratos de seguro.
A boa-fé subjetiva deverá presumir-se nos contratos de seguro de vida, até
que consiga se provar o oposto.
Vale dizer: não se presume má-fé do segurado, cabendo à seguradora, se
entender que esta estaria presente, dela fazer a prova cabível.
Para além da boa-fé subjetiva (pertinente ao estado de boa-fé), há, como se
sabe, a boa-fé dever, ou boa-fé princípio, que se impõe a ambos os contratantes
tanto no momento de celebração do contrato, quanto no momento em que ocorrer
– se vier a acontecer – o sinistro. À luz do art. 765, do código civil vigente, temos o
q : “ urado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na
execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto
çõ ”.
Há, aqui, o encontro entre o proceder conforme a boa-fé objetiva e o
estado de boa-fé subjetiva: do dever de agir conforme a boa-fé emergem tanto a
presunção de boa-fé (subjetiva) do segurado como a exigibilidade frente à
seguradora de condutas que atendam aos deveres laterais decorrentes do
princípio.
238
TJPR, 10ª Câmara Cível, AC 0612049-0, Rel. Juiz Albino Jacomel Guerios, DJ 11.03.2010. 239
TJPR, 9ª Câmara Cível, AC 0590916-0, Rel. Des. José Augusto Gomes Aniceto, DJ 10.12.2009.
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A repercussão da presunção de boa-fé para a matéria em comento é
evidente: o ônus de provar eventual ausência de boa-fé cabe a quem afirma a má-
fé.
Se para eximir do dever de indenizar a seguradora tem de demonstrar má-
fé por parte do segurado na realização do risco segurado, é evidente que a ela cabe
o ônus probatório respectivo.
Releva atentar para o fato de que, se fosse necessária para fazer prova dos
fatos constitutivos do direito do autor, seria viável a inversão do ônus da prova,
haja vista tratar-se de relação de consumo.
Demonstrada a verossimilhança das alegações ou, alternativamente, a
hipossuficiência do consumidor, cabível é a inversão do onus probandi¸ de modo a
tomarem-se como presumidos os fatos que constituem o direito do autor (com
base na afirmação de fato por ele formulada), impondo-se ao réu (fornecedor) o
ônus de desconstituir a presunção de veracidade dessa afirmação de fato.
Respaldando esse entendimento, Rizzatto Nunes explana a respeito desta
inversão do ônus da prova em face do fornecedor:
A possibilidade de inversão do ônus da prova está prevista no inciso VIII do art. 6º do CDC. Ela é norma adjetiva que se espalha por todas as situações em que, eventualmente, o consumidor tenha que produzir alguma prova. Logo, respondendo à questão: é ao consumidor a quem incumbe a realização da prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano e o serviço, com a indicação do responsável pela prestação do serviço. Contudo, o ônus de produzir essa prova pode ser invertido nas hipóteses do inciso VIII do art. 6º. Concluída pelo consumidor essa fase da prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano sofrido e o serviço prestado, com a indicação do responsável pela prestação de serviço, deve este último pura e simplesmente pagar o valor da indenização que for apurada, sem praticamente possibilidade de defesa.240
Conforme já se demonstrou, todavia, a correta aplicação da distribuição do
onus probandi levada a efeito pelo Código de Processo Civil já seria bastante, por
si só, para atribuir à seguradora o ônus de provar aquilo que reputa fato
desconstitutivo do direito dos beneficiários do seguro.
Mediante o exame da doutrina e de entendimento jurisprudencial, é,
portanto, evidenciado que em casos de alegação de agravamento de risco, para
afastar o dever de prestação do capital contratado, é ônus da seguradora provar a
má-fé e desvinculação dos princípios basilares norteadores do contrato de seguro
de vida. Cabe a quem tiver interesse provar o contrário, de modo a destruir tal
240
NUNES, Rizzatto, op cit., p. 314.
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presunção. Trata-se, conforme exposto, de decorrência direta da distribuição do
ônus da prova advindo do inciso II do artigo 333 do Código de Processo Civil.
Cabe, assim, identificar os critérios nos quais deve se pautar operador do
direito, mormente o magistrado, no intuito de aferir o atendimento ou não desse
ônus probatório por parte do segurado.
A chave para a compreensão do tema reside na constatação de que a recusa
do pagamento da indenização ou do capital importa na frustração do programa
obrigacional derivado do contrato de seguro. Ou seja, o não pagamento da
indenização mesmo diante da ocorrência do sinistro importa a não realização do
telos contratual.
Embora não se afaste a matéria da regra geral atinente à admissibilidade
de qualquer meio de prova moral e legalmente admitido, não se pode olvidar que, a
par da questão atinente à admissibilidade está o tema da apreciação da prova.
Em outras palavras: a prova pode ser admissível, por não ser proibida (ou
por não haver previsão legal de prova específica sobre certo fato ou dada alegação
de fato), mas pode não ser idônea à sua primordial finalidade, que é o
convencimento do magistrado a quem se dirige – matéria que diz respeito,
portanto, à apreciação da prova.
A apreciação da prova, em hipótese de afirmação de fato apto a gerar a
frustração do programa obrigacional, não pode conduzir a uma prevalência prima
facie do não atendimento do telos obrigacional. Isso significa que a prova apta a
demonstrar a eventual ausência do direito à indenização ou do capital securitário
deve ser robusta, cabal, não bastando a mera presença de dados indiciários.
A formação do convencimento, não se pode olvidar, pressupõe a prova
prévia a respeito da ocorrência do sinistro e da condição de beneficiário do seguro,
da qual decorre, em princípio, o direito ao capital contratado. Para afastar esse
direito, necessário se faz que se prove cabalmente o agravamento preordenado e de
má-fé do risco contratado.
Não basta, nessa toada, que o risco tenha sido elevado por conta de
conduta do segurado: é necessário provar que essa conduta estava dirigida à
obtenção do pagamento do capital pactuado. Não se trata essa intenção de algo que
se possa presumir ipso facto de uma conduta que realize o risco segurado, mesmo
que ela seja voluntária (como já se demonstrou mais acima ao se examinar a
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questão atinente ao dever das seguradoras mesmo em hipóteses de suicídio, o que
não é o caso presente).
A exigência de prova cabal é reconhecida pela jurisprudência, como se
colhe do pronunciamento abaixo transcrito:
AÇÃO DE COBRANÇA - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS - AMPUTAÇÃO DO DEDO POLEGAR ESQUERDO - COBERTURA CONTRATUAL - INDENIZAÇÃO DEVIDA - APELAÇÃO 01 - RELAÇÃO TÍPICA DE CONSUMO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - ALEGAÇÃO DE FRAUDE E AGRAVAMENTO DE RISCO POR PARTE DO AUTOR - AUSÊNCIA DE PROVA CABAL - RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 2 - PREVISÃO CONTRATUAL DE INDENIZAÇÃO PELA PERDA 'TOTAL' DO USO DE UMA DAS MÃOS - PRETENSÃO DE COBERTURA PROPORCIONAL AO GRAU DE GRAVIDADE - IMPOSSIBILIDADE - PEDIDO ALTERNATIVO - REALIZAÇÃO DE PERÍCIA - PRECLUSÃO - RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 3 - COMPENSAÇÃO DE HONORÁRIOS - POSSIBILIDADE - SÚMULA 304, DO STJ E ART. 21, DO CPC - SENTENÇA MANTIDA - RECURSOS A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. "A seguradora só pode negar o pagamento da cobertura do seguro com prova inequívoca de que tenha o segurado agido com culpa grave, dolo ou má-fé." (TJPR - Nona Câmara Cível- AC nº 358749-5, Rel. Juiz Sergio Luiz Patitucci, j. 16/11/2006)
2. Não há que se falar em cobertura proporcional ao grau de gravidade, como pretendido, vez que o contrato prevê apenas indenização pela perda 'total' do uso de uma das mãos.
3. "É defeso à parte discutir no curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão". (Art. 473 do Código de Processo Civil)
4. Possível a compensação de honorários de sucumbência, a teor da Súmula 304, do STJ, e do art. 21, do CPC.241
Assim, a prova da natureza do elemento subjetivo da conduta do segurado
(ou seja, se havia ou não a intenção de realizar o risco segurado para fins de
obtenção do pagamento do seguro), e de seu nexo causal frente ao resultado
consumado (realização do risco) integram o thema probandum que pertinente ao
ônus atribuído à seguradora.
Em suma: qualquer alegação das seguradoras pertinente à conduta do
segurado que tenha por escopo eximi-las do dever de pagamento do seguro impõe
a elas, inexoravelmente, o ônus de comprovar que a conduta do segurado estava
preordenada à realização do risco segurado, com o manifesto intuito de obtenção
do capital contratado em favor dos beneficiários. Assim, indispensável a
comprovação de que a conduta, seja ela eivada ou não de culpa, foi realizada de
241
TJPR. 8ª C.Cível, AC 0392154-4, Rel. Des. Carvilio da Silveira Filho, DJ 13.11.2008.
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má-fé, com a intenção de desencadear o surgimento do dever por parte da
seguradora.
Assentadas essas premissas, cabe, por derradeiro, examinar o material
probatório disponível até o momento em que é exarado este parecer, de modo a
aferir se as afirmações de fato formuladas extrajudicialmente pelas seguradoras
para se negarem ao pagamento do capital contratado encontram ou não respaldo
probatório.
8. Das circunstâncias concretas: ausência de prova que corrobore a
intencionalidade de agravamento do risco
Após a análise pertinente à repercussão do direito probatório sobre o
exame da matéria em comento, cabe investigar se, diante da documentação
apresentada com a Consulta, seria ou não sustentável a negativa das seguradoras
em pagar o capital contratado com base em argumento centrado na conduta do
segurado.
À luz desse escopo, e considerando que a eventual demonstração das
afirmações das seguradoras se qualifica como prova de fato desconstitutivo do
direito ao capital contratado, principio pelo exame da prova dos fatos constitutivos
do direito dos beneficiários dos seguros.
Com efeito, o que existe até o momento é requerimento formulado junto a
seguradoras visando ao pagamento do capital contratado pelo segurado, com
respostas negativas da seguradora que, sem embargo, em momento algum negam
a condição da beneficiária nem, por evidente, o fato (morte, comprovada por laudo
de necropsia e certidão de óbito) que desencadeia o dever de prestar. Tampouco há
controvérsia sobre o pagamento do prêmio, do que decorre da apreciação da
documentação a nós submetida.
O que se observa é que não há controvérsias acerca dos fatos que,
abstraída a exceção formulada extrajudicialmente pelas seguradoras, ensejariam o
direito da beneficiária ao recebimento do capital.
Há, entretanto, como exposto, múltiplas negativas por parte das
seguradoras quanto ao pagamento da prestação contratada, todas elas centradas
na qualificação da conduta do segurado como ilícita e apta a gerar agravamento do
risco.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 108
Ocorre que, como exaustivamente exposto, não basta para eximir a
seguradora de seu dever de prestação, a qualificação da conduta como culposa, ou
mesmo ilícita, nem, tampouco, a demonstração de sua aptidão para gerar
incremento nos riscos. É indispensável a prova cabal do elemento subjetivo da
conduta do agente, direcionada à produção do evento que gera o dever de
pagamento do capital contratado.
Antecedeu esse exame daquilo que integra o ônus probatório da
seguradora a constatação, já afirmada em passagens anteriores deste parecer, de
que a conduta do segurado somente pode ser apta a afastar o dever de prestar da
seguradora se for intencionalmente dirigida à produção do evento que enseja o
pagamento do seguro. Se não houver esse liame causal como marca inafastável da
intencionalidade, pouco importa a qualificação que se dê à conduta, se foi culposa
ou não, lícita ou ilícita, apta ou não a agravar os riscos.
O que é determinante para a exclusão do dever de pagar o capital é a
intenção preordenada e de má-fé de encetar a realização do evento que
desencadeia o dever por parte da seguradora. Se essa intenção preordenada não
estiver provada, o capital deverá ser pago aos beneficiários.
Assim, passando ao exame da prova dos fatos extintivos do direito dos
beneficiários, tem-se óbice preliminar: as alegações das seguradoras se restringem
ao agravamento do risco, sem, todavia, qualificá-lo como agravamento intencional,
ao menos nos termos aqui explicitados. Vale dizer, todas as negativas se limitam a
afirmar que a morte decorreu do uso de substância ilícita o que teria agravado o
risco de morte.
Não há nas negativas, porém, sequer a afirmação de que teria havido a
intenção de gerar a morte para o fim de obter o pagamento do capital contratado
ou, mesmo, o intuito consciente de agravar esse risco de morte.
Vale dizer: eventual prova sobre o que se alega nas negativas de
pagamento, nos termos estritos ali explicitados, não tem o condão de afastar o
dever de indenizar, pela ausência de prova cabal da intenção maliciosa, da
preordenação da conduta do segurado que se tem por necessária ao afastamento
do dever da seguradora.
Para atender ao escopo deste parecer, todavia, é necessário investigar se
haveria na documentação apresentada, mormente o inquérito policial, algum meio
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de prova a respeito de preordenação ou de má-fé por parte do segurado que
pudesse qualificar a intencionalidade nos termos aqui expostos.
O que se observa dos depoimentos tomados pelas autoridades de W, e que
constam do inquérito policial, inexiste qualquer espécie de indício de que o
consumo da substância cujos efeitos adversos conduziram à morte tenha se dado
com o fim de produzir a morte nem, tampouco, para a obtenção de pagamento do
capital contratado.
As narrativas convergem para a utilização episódica da substância que
conduziu à morte, sem estar caracterizado histórico de abuso de drogas –
conforme deflui do laudo de necropsia. Não houve, portanto, violação de dever de
informação por parte do segurado a respeito desse tema.
Ausentes, pois, até mesmo indícios de intencionalidade dirigida seja à
morte seja à obtenção do pagamento do seguro à beneficiária. À luz do inquérito
policial, por conseguinte, não há elementos aptos a sustentar a recusa no
pagamento do capital contratado.
Cabe enfatizar, por oportuno, que tampouco a pluralidade de contratos de
seguro teria qualquer aptidão para, sequer, qualificar-se como indício de
intencionalidade. A existência de múltiplos seguros no caso concreto não tem o
condão de per se comprovar intencionalidade ou preordenação de agravamento do
risco para percepção da garantia.
A O G : “
q z ”.242 Assim, também quanto a esse aspecto
não há qualquer demonstração, nem mesmo indiciária, de intencionalidade
dirigida à obtenção do capital em favor dos beneficiários.
De tudo o que se pôde examinar, tem-se que o dever de pagamento do
capital contratado não é elidido pelo material fático-probatório submetido a este
parecer.
9. Resposta aos quesitos apresentados
(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código
Civil ao presente caso?
242
GOMES, Orlando, op. cit., p. 512.
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Resposta: A adequada aplicação do dispositivo legal em comento importa afirmar
que não é qualquer majoração do risco que enseja a exclusão do dever de
pagamento pela seguradora, mas apenas aquela voltada à percepção da prestação
do capital contratado. Ainda, apenas pode ser levado a efeitos práticos o presente
dispositivo quando existir prova cabal que demonstre vontade preordenada do
segurado em dolosamente obter o pagamento da seguradora.
(ii) O que configura o “agravamento do risco” elencado no artigo 768
do Código Civil?
Resposta: A fim de configurar o agravamento do risco previsto no artigo 768 do
Código Civil é necessário que o ato de majoração praticado pelo segurado seja fruto
de sua vontade consciente, sem nenhuma coerção exógena, predeterminada à
obtenção da finalidade do pagamento pela seguradora. Imperativo ressaltar que
deve de haver liame que oriente o intencional agravamento do risco à percepção do
pagamento atinente ao contrato de seguro pactuado.
(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado
dirigida ao agravamento do risco e que prova é apta para atender a
esse ônus?
Resposta: À luz da distribuição do ônus probatório à luz do artigo 333 do Código
de Processo Civil, corroborado pelas regras a respeito do direito probatório nas
relações de consumo, à seguradora cabe produzir essa prova. A prova apta a
comprovar agravamento de risco seria a prova cabal a respeito de conduta do
segurado dirigida especificamente a esse agravamento, não bastando, para tanto,
meros indícios ou circunstâncias indicativas.
(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a
alegação do agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante
narram as respostas negativas de pagamento das seguradoras?
Resposta: Do rol documental apresentado a este subscritor, composto pelo
inquérito policial pertinente às investigações sobre a morte de X e pelas negativas
de pagamento do capital pelas seguradoras contratadas, depreende-se não haver
meio de prova hábil a sustentar a posição das seguradoras em negar-se ao
pagamento do valor contratado, haja vista inexistir prova cabal de agravamento
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 111
intencional nem, tampouco, indícios de que tal intencionalidade estaria presente,
nos termos expostos neste parecer.
É o Parecer.
Professor Doutor Luiz Edson Fachin, Titular da Faculdade de Direito da UFPR.
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O CONTRATO EPC E O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO
Luiz Gastão Paes de Barros Leães
PARECER
I. OS FATOS
1/1. A Consulente - E (“E”) - é uma empresa brasileira, cujas sócias fazem
parte do grupo E, com atuação em diversos países, nas áreas de energia,
engenharia, transporte, logística e serviços. Por sua vez, A (“A”) - a outra
protagonista da controvérsia objeto do presente parecer - é uma sociedade de
propósito específico (SPE), criada com a finalidade de construir e explorar uma
usina termoelétrica em Camaçari, Bahia, contando inicialmente, com os seguintes
: “C S/A” 50% çõ ; “P S/A”P 30%; “G L .” m
20%.
1/2. E 2011 A N E E é (“ANEEL”)
expediu Portaria, autorizando a A a estabelecer-se como produtora independente
de energia elétrica, prevendo um cronograma de implantação que permitiria que
as obras da usina s “até 7 de janeiro de 2012”, e que
çã “em janeiro de 2013”.
1/3. Antes dessa Portaria, já em janeiro de 2011, as empresas C e P se
í “chamada de propostas”
cotação de preços, incluindo o fornecimento de moto-geradores e transformadores
de potência, com vista à construção, não de uma, mas de duas usinas
termoelétricas, tomando por base o detalhamento técnico preparado pela empresa
XY Projetos. Naquela oportunidade, o termo de referência previa que os motores
seriam fornecidos pelas empresas M&M Diesel ou W&T, razão pela qual tais
empresas assumiram a iniciativa das negociações, alinhando-se com a TT
E h S/A (“TT”) E para atenderem ao restante dos serviços.
1/4. Depois de meses de negociação, E e W&T apresentaram uma proposta
conjunta, que seria a seguir alterada, em julho de 2011, com o fim de rever os
prazos de entrega dos motores, incluindo a tancagem de combustível. Nessa
ocasião, E foi informada de que a proposta da TT teria triunfado. Tal informação
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seria, porém, logo no mês seguinte, retificada, quando a E foi instada pela P a
apresentar nova proposta, desta feita com motores H, que seriam adquiridos
diretamente pela A da H Co. Ltd. Convite idêntico foi estendido à TT.
1/5. Também nesse caso a proposta apresentada pela TT, com a inclusão
dos motogeradores HH e transformadores de potência DEU, estava a indicar que,
de novo, se sagraria vencedora do certame, visto que o preço ofertado para a
construção da referida usina, excluído o fornecimento dos motores, girava em
torno de R$ 73 milhões, abaixo da cifra proposta pela E (R$ 75 milhões). Nessa
altura, a TT começou a apresentar sinais de debilidade financeira que a levaria,
posteriormente, a requerer recuperação judicial. Diante desse quadro, C e P
convocaram E, quando lhe transmitiram o interesse em consagrá-la vencedora do
certame licitatório, desde que procurasse se avizinhar do patamar estabelecido na
proposta da TT.
1/6. Na realidade, E já fora anteriormente contratada para implantar duas
outras usinas na região nordeste, e, agora, a P se mostrava categórica em sua
convocação para a assunção das obras de Camaçari, sinalizando que eventual
recusa por parte da E em assumir os serviços, em termos aproximados aos da
proposta da TT, poderia ser interpretada como falta de cooperação em momento
delicado, eis que a construção de Camaçari, segundo a portaria da ANEEL, deveria
iniciar-se em 7 de janeiro de 2012. Ademais, considerando o peso da P em termos
de Brasil, a reticência poderia colocar em risco a continuidade dos serviços que a E
vinha prestando, e almejava continuar a prestar, àquela empresa.
1/7. N çã P “fato necessário”
que compelia a E à aceitação do negócio, tanto mais que entre elas tinha havido,
paralelamente, consenso no sentido de que – dada a premência do tempo para
reformulação do orçamento – ambas as partes se dispunham a implementar os
ajustes que se revelassem indispensáveis para a execução do contratado. Nesse
contexto, os entendimentos travados com a P foram reduzidos a um documento
“termo de compromisso” q é q
fossem observados os mesmos prazos e condições pactuados anteriormente com a
TT, foi previsto um limite de preço da obra superior ao oferecido por esta empresa,
no valor de R$ 75.000.000,00.
1/8. Em 2 de outubro de 2011, a A “formalizou” a licitação privada e
promoveu a publicação de edital de chamada de propostas para construção da
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Usina Termoelétrica, cerca de pouco mais de dois meses antes da data prevista
para o início das obras, em 7 de janeiro de 2012. Em observância às condições do
termo de compromisso, E apresentou a sua proposta formal, que inicialmente não
incluía serviços de terraplanagem, mas que, ao depois, em nova redação, os
incluiria, com acréscimo do valor do preço combinado (de R$ 75 milhões para R$
80.000.000,00). No final de outubro, as partes deram início às tratativas finais
para a contratação, que se prolongaram até o segundo mês de 2012 (quatro meses,
portanto). Nessa altura, dado o exíguo prazo para a entrega da obra, a A se
antecipou, iniciando em dezembro de 2011 a disponibilização de recursos
financeiros (cerca de 20% do valor do Contrato, em duas parcelas, segundo consta
da cláusula 6.2(1) do Contrato) para que a E pudesse de imediato se condicionar
para dar início às obras, antes mesmo da assinatura do instrumento contratual.
1/9. S 15 2012 “Contrato de
Engenharia, Suprimentos e Construção” çã
ç (“turn key”) R$
80.000.000,00, de todos os serviços que se fizessem necessários para que a A
recebesse a usina na data aprazada, ou seja, em 30 de novembro de 2012,
devidamente testada, comissionada e apta a iniciar a sua operação comercial
(“Contrato”).
1/10. Mal firmado o Contrato, logo a E se deu conta de que havia sido
z q “base do
negócio” q çã A, viu-se envolvida com a
introdução de alteração no arranjo geral conceitual do empreendimento,
para acolher a adequação do lay-out às estruturas que comporiam a futura usina,
como postulado pela A. Não bastasse isso, esta ainda determinou a modificação
das condições do acesso principal de caminhões e a construção de ligação do pólo-
plástico ao site da futura usina, com acréscimo de serviços de terraplenagem,
drenagem e pavimentação. Ora, como é curial, a alteração no lay-out da usina,
com tais ampliações, implicava modificação substancial de todo o
empreendimento, comprometendo, por consequência, a base sobre a qual fora o
negócio pactuado. Com efeito, a alteração no design da planta resultou em
diferentes platôs, com declives acentuados, impactando tanto o tempo para a
execução das obras de formação dos taludes, quanto os custos das mesmas,
majorados com o significativo acréscimo de serviços e materiais.
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1/11. A esses fatos, somou-se o atraso por mais de um mês por parte da A
na obtenção das licenças ambientais, municipais e estaduais, necessárias aos
serviços de terraplenagem, pois, para que as obras se iniciassem em 7 de janeiro de
2012, fazia-se mister que tais licenças fossem obtidas até essa data. Foi necessário,
ainda, implementar soluções técnicas para contenção de deslizamentos e erosões
dos taludes, sem falar que se mostrou imperiosa a aquisição de terra mais
consistente para essas obras, proveniente de regiões afastadas.
1/12. Definidas tais alterações no arranjo geral conceitual, a E foi ainda
surpreendida, no período de março a julho de 2012, com chuvas torrenciais
imprevisíveis, provocando grande incidência de deslizamentos durante a
movimentação de terra. Nessa altura, as partes decidiram contratar a SSSS
G (“SS”) h çã z
empresa a revisão de todos os trabalhos efetuados e implantando nova forma de
medição dos serviços; alteração esta que, além de retardar também a obra, não foi
formalizada em Aditivo. Isso não bastasse, verificou-se, nesse período, aumento
abrupto e imprevisível nos preços dos insumos (aço, concreto, cobre),
comp “equilíbrio econômico-financeiro do
Contrato”. T q í çõ
“excessivamente oneroso” E. Acresce ainda o fato de que a Hyundai
igualmente atrasou na entrega dos equipamentos, afetando o curso das obras.
1/13. A vista disso, a E, em 27 de agosto de 2012, cinco meses da
assinatura do Contrato, encaminhou à A a Proposta Técnica nº 000.001, com o
objetivo de promover a adequação do preço contratual, em valores calculados até
aquele mês de referência. Após a apresentação de mais duas versões da referida
proposta, a A sinalizou que concordaria em parte com os aspectos financeiros, os
quais deveriam ser ajustados. Em função disso e à luz do agravamento das
circunstâncias, E formulou a a Proposta Técnica nº 000.003, em 3 de outubro de
2012, a qual não apenas reiterou os termos da proposta anterior, mas também
ressaltou as medidas necessárias para se buscar a recuperação dos atrasos naquela
altura.
1/14. Em reunião realizada em 9 de outubro de 2012, A acatou apenas
parcialmente o pleito financeiro de E, o que ficou registrado em ata que passou a
“aditivo contratual” é q é
preço do Contrato da ordem de R$ 25.000,000,00, majorando o valor contratado
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R$ 80.000.000 00 R$ 105.000.000 00 (“Aditivo”). O
em reunião da qual participou apenas um representante da E e, na ocasião, fez-se
constar que dependeria da aprovação de E até 13 de outubro de 2012. Esse fato
importava, inegavelmente, por si só, no reconhecimento cabal por parte da A de
q í h “excessivamente
onerosa” E, justificando- “correção” q
infelizmente, não restou de todo materializada com essa majoração, como logo se
verificaria.
1/15. Advirta-se que, no segundo semestre de 2012, quadra em que esses
eventos se desenrolavam, o aumento dos insumos persistia em níveis ainda mais
desnorteantes, em razão da crise econômica que assolava a economia mundial. Em
meio a essa conjuntura, eis que A solicitou a alteração da capacidade dos tanques
de combustível de 900m3 para 1.100m3, o que atrasaria ainda mais a construção
da usina, demandando acréscimo de mão-de-obra para cumprimento do prazo do
Contrato a fim de atender a essa nova modificação de escopo. Durante essa etapa,
entre outubro e novembro de 2012, a E se viu também na contingência de
enfrentar movimentos grevistas, que, se não constituem, em si, fatos imprevisíveis
numa construção, assumiram, na ocasião, magnitude que fugia da normalidade.
Todos esses eventos foram acompanhados pela A através da presença do
“engenheiro do proprietário”.
1/16. Em dezembro de 2012, A e E acordaram que, não obstante os
percalços, o empreendimento teria condições de ser concluído, no cenário mais
pessimista, até março de 2013, já que mais de 80% das obras estava concluído,
sendo necessário, no entanto, reunir mais recursos adicionais para fazer frente à
contratação de pessoal para recuperar os atrasos - a que, de resto, a E, como
apontado, não dera causa. Eis que, nesse momento, foi a E surpreendida com a
mudança de comportamento da A, a qual manifestou a decisão de abandonar a
idéia do novo cronograma e iniciar tratativas no sentido de realizar um distrato
amigável, visando a assumir, ela própria, a responsabilidade pela conclusão da
obra por sua conta e risco. Em reunião de 12 de dezembro de 2012, ficou acertado
que a partir dessa data a A assumiria os serviços, cabendo à E colaborar no
período de transição.
1/17. Não obstante esse acerto, combinado em 15 de dezembro de 2012,
em meio a uma reunião em que se discutia dita transição, a A enviou notificação à
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 117
E q “resolvido” o Contrato, por conta de alegado
inadimplemento (atrasos) por parte da empreiteira de suas obrigações contratuais,
ao mesmo tempo em que notificava os diversos fornecedores indicados pela E,
informando que havia rescindido o Contrato e que estava assumindo a obra. Ao
mesmo tempo em que participava a muitos fornecedores que não tinha interesse
em continuar contando com a prestação de seus serviços. Numa conduta
contraditória em relação às tratativas que vinha desenvolvendo, desconsiderava
o fato de que, em dezembro de 2012, a E já havia executado por volta de 80% da
totalidade do Contrato, como o confirmariam as planilhas de medição da SS,
contratada por ambas as partes. Ademais, em vistoria realizada no local da obra, a
pouco mais de um mês dessa notificação, em 30 de janeiro de 2013, a ANEEL
consignaria que a A h q “o empreendimento encontrava-se
com avanço de aproximadamente 86%”.
1/18. Oito meses depois, em 14 setembro de 2013, a A, em lugar de quitar
os débitos ainda pendentes, enviou notificação à E, reclamando (i) multa diária
por atrasos nos marcos parciais e (ii) multa por atraso na entrada da operação da
usina, e (iii) devolução de valores que teriam sido pagos em excesso e pagamento
de custos que defluiriam da retomada da obra, incorridos até agosto de 2013.
Nesse sentido, fez cobrança no valor de R$ 98.642.242,95, sendo que R$
80.643.568,99 a título de custos despendidos com a obra remanescente realizada
após a retirada da E - cifra que excedia o preço original pactuado para a obra
inteira, e só por si, evidenciaria que o Contrato, todo ele, estaria econômica e
financeiramente desequilibrado. Em 24 de setembro de 2013, a E respondeu,
apresentando contra-notificação.
1/19. Diante desse quadro, E resolveu submeter a controvérsia à
arbitragem, para que fosse declarada a improcedência das pretensões da A,
arguindo que a resilição do Contrato não decorreria de qualquer conduta a ela
imputável, como alegado, mas sim de decisão unilateral da A, que, sobre
encontrar-se inadimplente em suas obrigações contratuais, enriqueceu-se
indevidamente com o desequilíbrio econômico-financeiro do referido Contrato.
Nesse sentido, fazia-se necessária a revisão do mesmo, restabelecendo esse
equilíbrio, comprometido pela ocorrência de fatos imprevisíveis e de força maior,
reconhecidos pela A e dos quais resultaria um crédito a favor da E.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 118
1/20. Nesse sentido, requereu a E que o tribunal arbitral (i) declarasse a
ilicitude da resolução unilateral do Contrato por parte da A, à míngua de
inadimplemento a ela imputável, assim como das aplicações das penalidades por
atrasos de marcos contratuais suscitadas pela A, em manifesta contrariedade a
comportamento anterior; (ii) condenasse a A ao pagamento de reparação por
danos morais no valor mínimo de R$ 1 milhão, em virtude do aviltamento de sua
imagem perante subcontratados e fornecedores; (iii) condenasse a A ao
pagamento de indenização por danos materiais, decorrentes da desmobilização
antecipada da obra, quando já se avizinhava a sua conclusão; (iv) condenasse a A
ao pagamento de R$ 10.477.189,00, relativos a serviços prestados e ainda não
quitados à E, gerando enriquecimento sem causa em favor da primeira ; (v)
recompusesse o equilíbrio econômico-financeiro do Contrato, condenando a A a
reparar a E prejuízos por esta sofridos em montante não inferior a R$
21.386.071,35, que derivaria da diferença entre os custos orçados e os valores
realmente despendidos na execução do Contrato; e (vi) condenasse a A a ressarcir
custas, despesas processuais e honorários incorridos processo arbitral.
1/21. Em sua resposta, a A salientou que a discussão do procedimento
prescindiria da qualificação dos argumentos fáticos e jurídicos aduzidos pela E, na
medida em que o cerne da controvérsia se concentraria, fundamentalmente, na
natureza do Contrato EPC, de sorte que o exame das razões deduzidas para
justificar o aumento de preço e o atraso da usina seria até dispensável. De qualquer
forma, aduzia que tais razões não procederiam, visto que as alegadas alterações no
objeto original do Contrato foram expressamente aceitas pela E por meio do
Aditivo, sem que tivesse havido qualquer mudança no que toca ao prazo de entrega
da usina, livremente pactuado.
1/22. Abordando, no entanto, as questões fáticas e jurídicas alinhadas pela
E para esclarecer as circunstâncias em que se deu a celebração do Contrato e
explicar os atrasos ocorridos na conclusão da obra, a A arguiu, inicialmente, que a
contratação da E para a realização da obra da usina não se deu em substituição à
da TT, como alega a E, visto que não teria havido qualquer prévia contratação
dessa empresa, mas meras tratativas comerciais ocorridas anteriormente ao
certame em que a E se sagrou vencedora. Por outro lado, o termo de compromisso
que E enviou por e-mail à A, e no qual não haveria a aposição das assinaturas dos
diretores desta última, é de 15.8.2011, data anterior, portanto, e não posterior, ao
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processo de concorrência, no qual a E se sagraria vencedora, visto que este só teria
sido formalizado pela diretoria da A em reunião de 24.10.2011, e, dessa forma, não
desfrutaria de qualquer caráter vinculante.
1/23. Rejeita, a seguir, a alegação da E de que teria sido induzida em erro
pela A a respeito das condições básicas do negócio, já que não só foram
promovidos sucessivos encontros prévios entre todos os proponentes do certame e
a H, fornecedora dos equipamentos, como também as necessidades para a
implantação da usina teriam sido desenhadas em conjunto pela fornecedora e pela
empreiteira, cabendo sempre aos proponentes, supostos experts no assunto,
detalhar o escopo do empreendimento, motivo pelo qual não lhes assistiria o
direito de suscitar tais questões. De resto, eventuais alterações no projeto básico
são normais, visto que, no referido plano, apenas se estabelecem as linhas cardeais
do empreendimento. Mas mesmo que assim não fosse, as alterações do lay-out
foram previstas no Aditivo e acordadas pelas partes contratantes, (a) com
robusta majoração do preço, e (b) sem que se admitisse outra data
para a entrega da usina.
1/24. Ademais, não concorda a A com a alegação de que os serviços de
terraplenagem da nova área de tanques, objeto da negociação dos termos do
Aditivo, tenham comprometido o prazo pactuado para a entrega da usina, ou que
tenha havido demora na obtenção das licenças ambientais, até porque a obtenção
dessas licenças era, pelo Contrato, da responsabilidade da empreiteira. Também
não concorda com a invocação da ocorrência de chuvas a índices pluviométricos
extraordinários e do aumento abrupto nos preços de insumos, encarados como
casos de força maior que justificariam atrasos e alterações no preço, pois que ainda
que tivessem ocorrido tais eventos, houve expressa exclusão dos mesmos em
disposições contratuais na caracterização do fortuito (cláusula 6.4), sendo certo
que a A teria admitido a inclusão desses fatores na alteração de preço operada no
A 9 2012 “mera liberalidade”, mantendo-se, porém,
inalterado o prazo de conclusão da obra.
1/25. Não aceita, também, a alegação de que o atraso na entrega de
equipamentos pela H e a alteração na capacidade dos tanques de combustíveis
tenham provocado prejuízos à E, já que, de um lado, a entrega de tais
equipamentos teve de ser postergada em razão de atrasos imputáveis à própria E
que não providenciara, a tempo e hora, espaço onde depositá-los, e, de outro, a
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alteração da capacidade dos tanques de combustível fora contemplada no Aditivo,
mantendo-se sempre nesse instrumento, repita-se, inalterado o prazo de entrega
da usina. Quanto aos movimentos grevistas, seria sabido que não consubstanciam
fatos imprevisíveis.
1/26. Conclui, por fim, asseverando que, em momento algum, acordou
com qualquer novo cronograma em que se tenha previsto a entrega da usina até
março de 2013, registrando apenas, nas reuniões realizadas em dezembro de 2012,
que, com base no que se via nos canteiros, constatara que não seria possível à E
entregar a usina no tempo estipulado, não concebendo outra solução senão a
rescisão do Contrato, avocando para si a responsabilidade pelo término da obra.
Rejeita também a alegação de que, quando da rescisão do Contrato, as obras
encontravam-se 86% concluídas, asseverando que o relatório da SS, invocada pela
E para chegar a esse percentual, apresenta graves inconsistências, sendo que o
estágio dos avanços nos marcos contratuais, por ela apontado, não guarda sequer
proporcionalidade com a tabela do mesmo relatório, nem levam em consideração
critérios de pesos adequados.
1/27. Nesse sentido, a A impugna todas as afirmações, pedidos e valores
que compõem as pretensões deduzidas pela E na notificação de instituição de
arbitragem, acima reproduzidas (item 1/20, supra), assim como aduz, em
reconvenção, os seguintes pleitos contrapostos: (i) requer a devolução dos valores
pagos à E em razão de não ter sido concluída a usina conforme obrigada, nas datas
pactuadas, tendo esta, no entanto, recebido a totalidade do valor global
originalmente pactuado; (ii) o ressarcimento do quanto foi necessário empregar
para a conclusão dos trabalhos, por força do inadimplemento da E, por rescisão
por justa causa do Contrato; (iii) a declaração do limite máximo de aplicação da
penalidade por atraso correspondente ao percentual de 20% sobre o valor global
do Contrato, correspondendo ao valor original, mais aditivo; (iv) condenação da E
na indenização pelos danos morais e materiais suportados pela A; (v) condenação
da E nos ônus da sucumbência.
1/28. Levando em conta todos os fatos acima sumariados, que nos foram
apresentados pela Consulente e que defluem também de documentação que nos
foram presentes, fomos honrados com uma longa série de indagações que serão
respondidas à medida que forem sendo aqui reproduzidas.
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II. OS PRINCÍPIOS
2/1. O cerne da controvérsia reside, segundo a A, na natureza do Contrato
firmado entre E e A. Trata-se de um ajuste complexo do tipo contratual conhecido
ô EPC (“Engineering, Procurement and
Construction Contract”)
a preço certo e com data determinada de conclusão de uma usina térmica, chave-
na- ã (“turn-key”) çõ (C
2).243 Como toda empreitada, trata-se de um contrato comutativo, quer dizer,
um contrato em que as prestações das partes são de antemão conhecidas e
guardam entre si uma relativa equivalência de valores. Nele não se exige igualdade
rigorosa entre as prestações recíprocas, mas é imperioso que aproximadamente se
correspondam. Por outro lado, como ambas as partes, desde o início, sabem a
tarefa que será desenvolvida por uma e quanto a outra irá receber por ela,
q “salvo estipulação em contrário” ro, que se
incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou,
“não” “acréscimo do preço” (CC/2002 . 619). E
princípio, portanto, a empreitada em questão era sem reajustamento.
2/2. Isso não quer dizer que na empreitada, seja qual for o tipo, não haja
sempre uma margem de risco para os contratantes. Projetando os seus efeitos para
o futuro, todas as relações contratuais duradouras ou sucessivas contêm uma
“álea” í çã in abstracto, pois todo contrato comporta
sempre riscos para as partes, muitos deles exclusivos da operação concretamente
. C M B “Il contratto stesso è um rischio”
posto que o risco é elemento inerente à atividade econômica.244 Mas como é
co “álea normal do contrato” - conceito
introduzido pelo art. 1467 [2] do CC/italiano - é prioritariamente determinada
pelo contrato in concreto, fornecendo o tipo negocial apenas elementos
circunstanciais para efeito de sua configuração.245
243
José Emílio Nunes Pinto, “O Contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo
Código Civil”, Revista Jus Vigilantibus, acesso segunda feira, 30 de dezembro de 2002; cf. modelo de
Contrato EPC proposto pela FIDIC (International Federation of Consulting Engineers),
http://www.fidic.com. 244
Mario Bessone, Adempimento e rischio contrattuale, Milão, Giuffrè, 1975, p. 4. 245
Agostino Gambino, “Eccessiva onerosità della prestazione e superamento dell‟alea normale del
contratto”in Rivista del diritto commerciale, n. 58, p. 448, 1960.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 122
2/3. Nos contratos de empreitada, mormente naqueles contratos a preço
global e fixo, em que há a aceitação de um plano prévio por parte do dono da obra,
o risco contratual se acentua e se reflete no preço contratual, que, regra geral, é
pactuado sem possibilidade de revisão (CC/2002, art. 619). A formação de um
contrato de EPC deve, portanto, procurar antever tanto os custos quantos os riscos
a que empreitada, normalmente, está sujeita e, consequentemente, otimizar a
alocação de ambos no processo de definição consensual do preço. Mas é curial que
essa regra comporta exceções, relativos aos riscos que extravasam a álea contratual
normal, que ocorrem quando dizem respeito a eventos (i) que sejam
comprovadamente alheios à vontade do empreiteiro, de acordo com os princípios
de força maior e caso fortuito (CC/2002, artigos 625, I, c/c artigo 393, § único), ou
(ii) que se enquadrem nas hipóteses de imprevisibilidade e onerosidade excessiva,
elevadas a categorias legais pelos artigos 317 e 478 do CC/2002, inclusive na sua
versão aplicada à empreitada (CC/2002, artigo 625, II).
2/4. Em escólio ao artigo 625, II, do CC/2002, que admite que o
ç “suspenda a obra” q
decorrer dos serviços, se manifestem dificuldades imprevisíveis na execução,
Fátima Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Vera Andrighi observam que essa regra é
expressão do princípio do equilíbrio econômico que deve prevalecer na
maior parte dos contratos.246 E Ruy Rosado de Aguiar Júnior acrescenta em
comentário ao mesmo artigo que o dispositivo em referência permite que o
empreiteiro, nas aludidas circunstâncias, suste a obra e possa ir a juízo pleitear a
resolução do contrato, na via autorizada pelo artigo 478 do CC/2002. Ou a revisão
das cláusulas contratuais, já que quem pode o mais, pode o menos.247
2/5. Em suma, seja qual for o tipo de empreitada, com ou sem
reajustamento, é pressuposto que, no curso da execução da obra, deverá ser
mantido o equilibro econômico entre as prestações recíprocas, sem o qual o
contrato, de matriz comutativa, se desfigura, convertendo-se em negócio
aleatório, com incerteza em relação à verdadeira extensão das prestações. Pois é
no contrato aleatório que a contraprestação tem a chance de ser desproporcional
ao valor da prestação, seja em relação às duas partes, seja apenas a uma delas
(CC/2002, artigo 458 usque 461). Assim, na empreitada sem reajustamento,
246
Fátima Nancy Andrighi e outros, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2008, v. IX, p. 347. 247
Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2011, v. VI, p. 324.
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“acréscimo no preço” o uma álea
ilimitada, não fosse sua submissão ao princípio geral do equilíbrio econômico do
contrato, que constitui um dos dogmas nucleares do direito contratual atual.
2/6. N “justo”
que, sendo querido pelas partes, resultaria de uma livre apreciação dos respectivos
interesses pelos próprios contratantes, de onde lícito seria presumir o equilíbrio
das prestações. Sendo justo o contrato e presumido o equilíbrio, seguia-se que aos
contratantes deveria ser reconhecida ampla autonomia de vontade, limitada tão-
somente por considerações de ordem pública e pelos bons costumes.
2/7. E “autonomia de vontade” -se, então, os
três princípios informativos do direito contratual: (i) o princípi “liberdade
de contratar” -se como tal a aptidão dos contratantes de auto-
regulamentar os seus interesses, estipulando o que lhes aprouver, dentro dos
: ( ) í “intangibilidade do conteúdo” q
contrato, uma vez firmado, adquire força de lei entre as partes, só podendo ser
alterado em sua substância por novo encontro de vontades: e (iii) o princípio da
“relatividade do contrato” q z
exclusivamente entre as partes, não aproveitando, nem prejudicando terceiros.
2/8. A esses três princípios tradicionais, que gravitam em torno do
conceito de autonomia de vontade, foram acrescentados três outros, que, sem os
eliminarem, vieram amoldá-los às novas demandas. Operou-se uma mudança de
z ( ) í “função social” ( )
í “boa-fé objetiva” ( ) í “equilibro econômico”
contrato. O Código Civil de 2002 deu guarida, explícita ou implicitamente, a esses
novos princípios. Explicitamente, no caso da função social do contrato, através do
artigo 421, e da boa-fé objetiva, através do artigo 422, combinado com os artigos
113 e 187. No que tange ao princípio do equilíbrio econômico do contrato, embora
não tenha sido exteriorizado em um dispositivo individualizado, manifestou-se
“estado de perigo” ( . 156)
“lesão” ( . 157) “onerosidade excessiva” ( . 478 usq. 480) e do
“enriquecimento sem causa” ( . 884 usq. 886).248
248
Cf. Antônio Junqueira de Azevedo, “Princípios do novo Direito Contratual e Desregulamento do
Mercado”, in Revista dos Tribunais 750/115.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 124
2/9. A autonomia de vontade já tinha, na teoria contratual clássica, como
ó “paridade dos contratantes” q ó h
em liberdade de contratar e imprimir força obrigatória ao ajuste quando uma das
partes não se visse na contingência de simplesmente se submeter à vontade
exclusiva da outra, pois, caso contrário, a sua autonomia de vontade seria apenas
formal. Para que o contrato fosse livremente concluído e executado, força seria que
o mesmo resultasse de um encontro de vontades, de partes que se mantivessem
dentro de certo nível de paridade, ou seja, providas de iguais poderes negociais.
E é q q “princípio do equilíbrio econômico do contrato”.
Esse princípio visa a impedir que as prestações contratuais expressem, seja na sua
conclusão seja na sua execução, um desequilíbrio real e injustificável entre as
vantagens obtidas por um e por outro dos contraentes. Ou, em outras palavras, que
“sinalagma contratual” l funcional.
2/10. Ora, como se depreende dos fatos narrados, é evidentemente que
não se observou, seja na celebração do Contrato, seja na sua execução, esse
equilíbrio funcional entre A e E, a que se alude. Primeiramente, cumpre recordar
que a celebração do Contrato entre a A e E foi precedida pela tentativa de
contratação de outra empresa, a TT, sendo certo que o processo de substituição
“real” E, consumiu meses, atropelado ainda pela mudança dos
fornecedores dos motores e transformadores da usina. Reduzido, por fim, o
“compromisso”
correspondência da E de 15 de agosto de 2011, somente em 2 de outubro de 2011 a
A formalizaria a licitação privada, prevendo o início da obra para 7 de janeiro de
2012. Por seu turno, o Contrato da A com a E, vencedora do certame, só seria
firmado em 15 de fevereiro de 2012, com data aprazada para a entrega da usina em
30 de novembro de 2012.
2/11. Sendo o prazo de entrega da usina, portanto, extremamente exíguo, e
prevendo a licitação um cronograma com início das obras no máximo em 7 de
janeiro de 2012, a A se dispôs a disponibilizar substancial recursos financeiros
(20% do preço original) para que a E desse início imediato às obras, vale dizer, em
15 de dezembro de 2011, mesmo antes de firmado o Contrato, o que somente
ocorreria em 15 de fevereiro de 2012. Ao acelerar o início das obras antes da
formalização do Contrato, a fim de cumprir o cronograma, adiantando os recursos
à empreiteira, lícito é inferir que se firmou entre as partes um consenso tácito
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 125
no sentido de que – dada a premência do tempo para a formulação do orçamento e
para a realocação dos riscos de acordo com o prazo exíguo – ambas se dispunham
a implementar todos os ajustes que se fizessem necessários para a execução em
tempo das obras contratadas.
2/12. Tanto é verdade que, logo que apareceram os primeiros sinais de que
a falta de reexame da avença afetaria a execução das obras, as partes se
movimentaram no sentido de lograr uma composição, atestando a A, ao firmar
com a E o Aditivo que majorava com um acréscimo de quase 1/3 (um terço) do
preço original do Contrato, que a E agira sempre de boa-fé, mesmo diante dos
infortúnios com os quais se deparava. Ao mesmo tempo em que reconhecia,
implicitamente, o desequilíbrio econômico intrínseco da avença, passando o valor
“fixo e global” R$ 80.000.000 00 R$
105.000.000,00.
2/13. Esse desequilíbrio econômico do Contrato ainda mais se acentuaria
com a superveniência de fatos e dificuldades imprevisíveis no curso de sua
execução, que subverteram as bases do negócio originalmente pactuadas. A
própria A, aliás, corroboraria esse entendimento ao cobrar, em sede de
reconvenção, a vultosa quantia de R$ 116.798.223,65 (inicialmente estimada em
R$ 57.602.549,28) a título de supostos custos adicionais que teria incorrido
quando, rescindido o Contrato e já à testa da empreitada, dera remate ao restante
da obra (14% a 20%) – cifra esta que corresponde ao dobro do valor total do
Contrato original.
2/14. Ao empolgar a gestão das obras de construção da usina e tolher o
epcista de cumprir as suas obrigações para a entrega da obra, quando esta já se
avizinhava da sua finalização, negando-se a responder pelo aumento dos custos
decorrente de fatos extraordinários e de dificuldades imprevisíveis, resta evidente
que a A abusou do seu poder negocial. Com isso provocou uma mutação na
natureza do Contrato, pois confinou todo o risco do negócio, nele incidente,
como de exclusiva responsabilidade da empreiteira, emprestando, assim, caráter
aleatório a um ajuste que se requer seja essencialmente comutativo.249
2/15. À vista dessas observações, vejamos os quesitos formulados pela
Consulente, respondendo-os à medida que forem sendo reproduzidos.
249
Na vigência do CC/1916 houve quem sustentasse que a empreitada seria, acessoriamente, um contrato
aleatório (como E.V. de Miranda Carvalho, Contrato de Empreitadas, Rio, Freitas Bastos, 1953, p. 8), no que
era por outros contestado (Almeida Paiva, Aspectos do Contrato de Empreitada, Rio, Forense, 1955, p. 21).
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III. QUESITOS
1º) O contrato de engenharia, suprimento e construção em
questão (―Contrato‖) pressupõe ser uma avença comutativa.
Essa comutatividade foi afetada pelo fato de a negociação
do instrumento contratual e sua assinatura ter ocorrido
cerca de 4 (quatro) meses após o fim da concorrência
privada, durante as quais as partes alteraram o projeto,
mas não modificaram o preço e nem o cronograma para a
conclusão da obra?
3/1. Nos contratos comutativos, a relação entre vantagem e sacrifício
entre as partes é subjetivamente equivalente, havendo sempre certeza quanto às
prestações. Quer dizer, ambas são certas e se compensam (CC/2002, art. 441 e
seguintes.). Na ideia de comutatividade está implícita, portanto, a de equivalência
das prestações, de antemão conhecidas das partes, cada parte só consentindo num
sacrifício se aquilo que obtém em troca for do mesmo porte. Quer dizer, as partes
comutam vantagens, guardando entre si um nível razoável de igualdade de valores.
E nessa composição de sacrifícios e vantagens mútuas, a equivalência das
prestações é determinada em função do volume relativo das prestações recíprocas
e do prazo para executá-las.250
3/2. No caso em exame, o prazo para a entrega da obra de Camaçari era
extremamente exíguo, em se considerando que se cogitava da construção e da
entrega de uma usina termoelétrica em condições de operar em 9 (nove) meses, a
contar da data da assinatura do Contrato. Esse instrumento foi firmado em 15 de
fevereiro de 2012 e a data para a entrega da usina em condições de operar findava
em 30 de novembro de 2012. É verdade que as primeiras tratativas entre as partes
remontam aos primeiros meses de 2011 e tiveram alinhamento final em 15 de
agosto de 2011, depois de várias etapas, já narradas, quando o resultado final foi
reduzido a escrito em um compromisso informal. Em 2 de outubro de 2011, a A
formalizou a licitação privada, sagrando-se a E vencedora Contratos do certame.
250
Domenico Rubino, L‟Appalto, 2ª edição, Turim, 1951, PP. 129/132; Orlando Gomes, Contratos, Forense,
4ª edição, 1973. P. 333.
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Somente 4 (quatro) meses depois, ou seja, em 15 de fevereiro de 2012 é que seria,
por fim, celebrado o Contrato.
3/3. Ao longo desse intervalo que permeia a abertura dos resultados da
licitação e a assinatura do Contrato, foram introduzidas significativas alterações no
projeto, sem que essas alterações tenham se refletido em majoração do preço e em
mudança do cronograma de forma compatível com a realidade dos fatos,
comprometendo, assim, a comutatividade originalmente buscada pelo Contrato.
3/4. Advirta-se que as modificações introduzidas não pararam aí: uma vez
assinado o Contrato, a A decidiu promover uma mudança no projeto básico do
empreendimento, com a finalidade de operar a adequação da obra ao novo lay-
out, de forma a propiciar melhores condições de acesso à usina para os
caminhões. Ao lado disso, obras complementares foram adicionadas para permitir
maior estocagem de combustível. Não obstante preveja o Contrato a introdução de
alterações desse naipe por parte da A ( 9) é q “equilíbrio
do negócio” q ncia entre prestações e contraprestações
das partes, foi severamente afetado, agravando-se a posição da E.
3/5. Por outro lado, o fato de a E ter concordado com a introdução de tais
alterações quando da assinatura do Contrato não elimina a existência de
desequilíbrio econômico na avença, tanto que, meses depois, as partes celebrariam
A ç “fixo e global”
um terço do valor contratado, passando de R$ 80.000.000,00 para R$
105.000.000,00, embora sem alteração da data prevista para a conclusão da obra.
A comutatividade fora, portanto, abalada e é indiscutível que através desse Aditivo
se procurava simplesmente restaurá-la.
2º) A realização de serviços preliminares antes da
assinatura do Contrato, inclusive com o pagamento de
adiantamentos pela Contratante, implica que o cronograma
deve ter efeitos retroativos a outubro de 2011, inclusive para
responsabilizar a parte Contratante pelo não cumprimento
de marcos contratuais? As modificações de projeto
solicitadas pela Contratante entre outubro de 2011 e março
de 2013 impõem que esta assuma o ônus desse atraso?
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3/6. Uma vez firmado, todo e qualquer contrato passa a produzir efeitos
obrigacionais a contar do momento do consentimento (ex nunc), podendo,
porém, por vontade das partes, retrotrair, abrangendo relações passadas,
concernentes a um período pretérito (ex tunc).251 O Contrato, celebrado entre a E
e a A, se filia à primeira categoria, inscrevendo-se na modalidade dos contratos de
duração, cuja execução diferida e continuada tinha o seu termo inicial com a
assinatura do instrumento contratual em 15 de fevereiro de 2012 e termo final com
a entrega da obra, em 30 de novembro de 2012, em conformidade com
cronograma de trabalho anexo ao contrato (Anexo C). Gerava, portanto, efeitos
para o futuro.
3/7. É verdade que no próprio corpo do Contrato, embora firmado em 15
de fevereiro de 2012, a empreiteira reconheceu, em cláusula expressa (cláusula 6.2,
“ ”) h 15 z 2011 15 de janeiro de 2012,
respectivamente 5% (cinco por cento) e 15% (quinze por cento) do preço
contratual. Não obstante esses pagamentos antecipados, não há nenhuma
cláusula dando efeito retroativo às obrigações decorrentes do Contrato, de sorte
que as mesmas só passaram a ser vinculantes e coercíveis após a sua celebração,
sempre dentro do cronograma anexo ao instrumento contratual.
3/8. Quer dizer, embora possa ter havido a prestação de serviços
anteriores (o que, em parte, explicaria os referidos pagamentos adiantados), o
marco inicial da empreitada era indubitavelmente a data da assinatura que selou o
negócio, gerando obrigações de parte a parte, a serem futuramente cumpridas.
Vale aqui o significado semântico (ex-sequor) da expressão, podendo dizer-se
q “execução” z çã
“qualcosa che segue, che vien dopo” z G q .252
3/9. Assim, a eventual realização de serviços preliminares por parte da E,
antes da assinatura do Contrato, inclusive com o pagamento de adiantamentos do
preço desses serviços pela A, não implica que o cronograma para a construção da
usina deva ter efeitos retroativos. Mormente quando esses efeitos tenham por
objetivo responsabilizar a empreiteira pelo não cumprimento de marcos
contratuais ajustados para mensurar o avanço físico da obra ao longo do processo
de execução do Contrato, que inicia com o consentimento.
251
Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, Forense, 1960, p. 220; Adolfo de Majo Giaquinto,
L‟esecuzione del contratto, Giuffrè, 1967, p. 242 ss. 252
Obra citada, p. 3.
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3/10. Por outro lado, se entre outubro de 2011, antes da assinatura do
Contrato, e, dezembro de 2012, quando, já assinado o Contrato, as partes
negociavam o segundo aditivo, até com mudança do cronograma, impunha-se que
A assumisse o ônus dos atrasos decorrentes das alterações por ela propugnadas.
Assim, podemos responder à segunda parte do presente quesito, dizendo que os
encargos ligados às alterações introduzidas no projeto original por determinação
da comitente, entre outubro de 2011 (quando a E se sagrou vencedora do certame
licitatório), e 15 de dezembro de 2012 (quando a A assumiu a obra), devem correr
exclusivamente por conta da dona da obra. Até porque, em sendo a esta imputáveis
os atrasos provocados pelas modificações no plano original, haveria, à época,
justa causa “suspende ” çã ç (arts. 476 e
625, I, do CC/2002).
3º) A assunção de obrigação pela Contratante perante a
autoridade governamental de iniciar a operação comercial
da Usina em determinado prazo impede que o Contrato
sofra alterações que importem na modificação da data para
a entrega da Usina após a data prevista perante o órgão
regulador para início da operação comercial? A recusa da
Contratante em estender o Prazo nesse contexto constitui
abuso de sua posição contratual?
3/11. Em 18 de abril de 2011, a Agência Nacional de Energia Elétrica
(“ANEEL”) P 63 z A a estabelecer-se como
produtora independente de energia elétrica, prevendo um cronograma de
implantação de uma usina termoelétrica em Camaçari, Bahia, iniciando as obras
“até 7 de janeiro de 2012” çã
“em janeiro de 2013”. E 15 2012 A celebrou com a E o
Contrato EPC, assumindo a empreiteira a obrigação de executar os trabalhos de
construção da usina, de forma a entregá-la concl í “até a
data assegurada de conclusão” - “até 30/11/2012” (
1,verbetes, 3.1 e 5.1).
3/12. Tendo em vista a extrema exiguidade dos prazos estabelecidos pela
ANEEL para a empresa autorizada tanto para dar início às obras da construção da
usina, como para a sua conclusão e entrada em operação, compreende-se porque
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as partes acederam em celebrar o Contrato em 15 de fevereiro de 2012,
antecipando o pagamento ao empreiteiro de 20% do futuro preço contratual, em
duas parcelas, em 15 de dezembro de 2011 e em 15 de janeiro de 2012.
Compreende-se também porque, logo depois, passariam elas a negociar a
introdução de alteração do projeto básico do empreendimento, para adequação do
lay-out às estruturas que comporiam a futura usina. Com essas medidas,
imprimia-se velocidade às obras.
3/13. Daí porque, à vista desses acontecimentos, a E encaminhou à A, em
agosto e setembro de 2012, propostas técnicas, objetivando promover a adequação
do preço contratual, a qual só viria a ser materializada em 9 de outubro de 2012,
com a celebração de um aditivo contratual que contemplava um acréscimo
superlativo, da ordem de 1/3 (um terço) do preço, sem que se promovesse, porém,
a alteração do prazo para a conclusão da obra . Ocorre, porém, que já em
novembro de 2012 as partes passariam a discutir a redação de um segundo
aditivo, com novas modificações no projeto, dando prioridade à alteração do
cronograma original. Nessa altura, mais de 80% da obra já estava concluído -
ocasião em que a A manifestou interesse em assumi-la, promovendo a rescisão do
Contrato.
3/14. Dentro desse contexto é formulada a pergunta acima reproduzida: a
assunção pela A perante a autoridade reguladora da obrigação de dar início à
operação comercial da usina em determinada data impediria (indaga-se) que o
Contrato, por ela firmado com a E, sofresse modificações que importassem em
alteração da data de conclusão da obra, postergando-a para data posterior ao
termo acertado junto ao órgão governamental para a entrada em operação
comercial da usina? Ora, embora a construção e a operação da usina dependam de
autorização da ANEEL, essa autorização não consubstancia nem pressuposto,
nem elemento constitutivo do Contrato, formando-lhe a estrutura e
fornecendo-lhe a substância.253
3/15. Com efeito, a ANEEL é pessoa estranha ao Contrato EPC, tendo em
vista o princípio da relatividade das convenções, segundo o qual os efeitos
dos contratos se produzem exclusivamente entre as partes, não aproveitando nem
prejudicando a terceiros. Para a ANEEL, o contrato de construção da usina é res
inter alios acta, visto que, como ato de autonomia privada, ele não pode atingir
253
Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, ob. Citada, p. __.
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senão as esferas jurídicas das partes contratantes, comitente e empreiteira. Por
conseqüência, a recusa da A em estender o prazo contratual sob o pretexto de que
estaria presa a prazo mais rígido determinado pela autoridade reguladora
constituiria, na verdade, abuso do seu poder negocial, pois a determinação
administrativa não poderia interferir na execução do ajuste entre a empreiteira e a
empresa autorizada a fornecer energia elétrica. Não se cogita aqui de fato do
príncipe.
4º) A modificação do método de aferição do cumprimento
dos marcos contratuais, sem a celebração de aditamento
contratual, mas acordada entre as partes mediante a
contratação de Terceiro para tal tarefa, deve ser
considerada válida, eficaz e irrevogável, nos termos do
artigo 614, § 1º, do Código Civil, uma vez que a Contratante
conferiu as medições por meio de engenheiro do
proprietário e efetuou os pagamentos respectivos?
5º) À luz do que determina o artigo 614, § 2º, do Código
Civil, a Contratante tem direito ao ressarcimento por
eventuais vícios na obra reclamados no prazo de 30 (trinta)
dias, a contar das respectivas medições? Em caso
afirmativo, a quem incumbe o ônus da prova das falhas na
realização das atividades? O fato de eventuais vícios terem
sido suscitados apenas após a conclusão da obra constitui
violação à boa-fé pela Contratante?
3/16. Versa o artigo 614 do Código Civil a hipótese de empreitada em que a
fixação do preço atende ao fracionamento da obra, considerando-se as partes em
que ela se divide, ou são mensuradas. Essa hipótese não é incompatível com a
empreitada em que a retribuição é estipulada para a obra inteira, nem deixa de ser
fixo e global o preço face ao fato de ter sido ajustado o seu pagamento de forma
escalonada, desde que este seja determinado em função da obra encarada como
um todo. O Contrato entre E e A é um contrato de empreitada por preço fixo e
global, a ser pago, de maneira parcelada, em 11 (onze) prestações sucessivas, sendo
1 (uma ) de 20% e 10 (dez) outras de 8% (oito por cento) do preço cada uma,
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correspondendo essas parcelas do preço aos marcos contratuais previstos no
cronograma de trabalho (cláusula 6.2).
3/17. Com efeito, na cláusula 6.2, in fine, do Contrato, acima citada, ficou
estabelecido que o dono da obra verificaria (cláusula 8) e certificaria por
escrito (cláusula 10) se os eventos previstos no cronograma teriam ou não sido
cumpridos pela empreiteira dentro da data de pagamento de cada uma das
parcelas, reservando- “suspender” é q
atingidos os marcos contratuais representativos dos avanços da obra. Assim,
embora se trate de uma empreitada por preço fixo, o pagamento deste é parcelado,
çã çã h (“obra por medida”). Daí a
pertinência da incidência no caso do artigo 614 da lei civil.254
3/18. Lembre-se que, no curso da execução do Contrato, a A promoveu a
çã SS G E (“SS”)
h q “engenheiro do proprietário” çã
obra, realizando a revisão de todos os trabalhos efetuados e a implantação de uma
nova forma de pagamento atrelado não mais a marcos contratuais, mas sim à
medição do avanço físico dos serviços. Assim, a modificação do método de aferição
do cumprimento dos marcos contratuais, introduzida por iniciativa da SS, ainda
que não tenha sido objeto de aditamento formal entre as partes, foi entre elas
acordada mediante a contratação de uma empresa exatamente com o objetivo de
exercer tal tarefa, motivo pelo qual a introdução de novo método de aferição é,
para todos os efeitos, válido, eficaz e irrevogável.
3/19. Por outro lado, nos termos do disposto no §§ 1º e 2º do artigo 614 do
CC/2002 “de natureza das que se determinam por
medida” ( ) ( ) q e, em todos os
pagamentos efetuados pelo dono da obra, se presume que os resultados da
empreitada foram adrede verificados, e (ii) de que, em todas as medições,
igualmente por ele efetuadas, se presume que os marcos contratuais foram
conferidos, exceto se, em trinta dias, a contar da medição, o dono da obra, ou
quem estiver incumbido da sua fiscalização, vier a denunciar a existência de algum
vício ou defeito na obra executada.
3/20. Nas duas hipóteses a presunção legal é relativa (iuris tantum) e se
dá em prejuízo do comitente e em benefício do empreiteiro, podendo, na primeira
254
Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, Rio, 2006, vol. II, p. 350 ss.
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hipótese, ser elidida pelo dono da obra mediante a prova de que, a despeito do
pagamento, via de regra a título de adiantamento, não foi feita a verificação do
andamento da execução dos serviços; e, na segunda hipótese, se, realizada a
medição, houve a denúncia por parte do comitente, no referido prazo de trinta dias
a contar da medição, da ocorrência de vícios na obra executada. Quer dizer, no
primeiro caso, o pagamento implicaria a aceitação da obra pelo comitente, que se
presumiria satisfeito; no segundo caso, a medição, por si só, não geraria essa
presunção, entendendo-se, porém, que, transcorrido o prazo de trinta dias sem
impugnação do dono da obra, seria de presumir essa aceitação. Em ambos os
casos, isso significa dizer que, por força do pagamento ou da medição, o dono
entendeu estar a obra a seu contento.
3/21. Advirta-se que o prazo de trinta dias a contar da medição, para efeito
da impugnação da obra, é de natureza decadencial, motivo pelo qual, uma vez
transcorrido o lapso de tempo referido, caduca o direito do dono da obra de
postular o ressarcimento por eventuais vícios ou defeitos verificados na obra
executada.255 Ademais, cabe a ele, na impugnação, o ônus da prova das falhas de
execução da obra cometidas pelo empreiteiro. Nessas condições, caso o dono da
obra se mantenha inerte em relação ao defeito ou vício identificado, deixando de
requerer, de forma tempestiva, a correção ao empreiteiro e se reservando para
suscitá-lo somente na conclusão da obra, não só decai desse direito, como viola o
princípio de boa-fé contratual a que está obrigado a guardar, seja na conclusão do
contrato, como em sua execução (CC/2002, art. 422).
6º) A celebração de aditamento contratual que acresceu
serviços adicionais e majorou o preço dos serviços originais,
em outubro de 2012, atesta que essas hipóteses constituem
força maior para fins da cláusula 18 do Contrato? A
referida revisão contratual de preço impede que a
Contratada pleiteie posteriormente a extensão do prazo,
caso os planos de recuperação acordados com a engenharia
do proprietário não surtam efeito?
3/22. C Có C ç “fato
necessário” ã h evitar ou impedir, motivo pelo qual o
255
Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, vol. II, 2006, p.353.
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devedor não responde pelos prejuízos dele resultantes, a menos que tenha por eles
expressamente se responsabilizado (CC/2002, art. 393). Para sua prova, que deve
ser feita por quem a alega, exigem-se dois elementos: um objetivo - a
inevitabilidade do evento – e o outro subjetivo – a ausência de culpa.
Inevitabilidade traduzida na impossibilidade absoluta de superar o acontecimento,
à luz das circunstâncias em que o obrigado se encontra envolvido; e ausência de
culpa, porque, não podendo a dificuldade no cumprimento da obrigação ser
evitada, não se caracterizaria a culpa do contratante.256
3/23. É dentro desse contexto que deve ser encarada a definição de força
maior constante da cláusula 18.1 do Contrato de 15 de fevereiro de 2012. Para os
efeitos do Contrato, foi pactuado nessa cláusula que as partes estarão liberadas da
responsabilidade pela inexecução de suas obrigações contratuais quando o
ç “tenha
afetado a capacidade da parte em questão de cumprir tais
obrigações”. O q fato irresistível
que impede o cumprimento da obrigação seja apreciada em concreto, levando em
consideração as condições pessoais da parte devedora para adimpli-la.
3/24. A çã “aditivo contratual” 9
2012, que acresceu serviços adicionais e majorou significativamente o preço dos
serviços pactuado no Contrato de 15 de fevereiro de 2012, comprova que tais
aditamentos, se não fossem acertados como o foram, constituiriam fatos
irresistíveis que liberariam a empreiteira do cumprimento de suas obrigações
ã “comprovadamente”
a capacidade da empreiteira de adimpli-las. Por outro lado, como o escopo desse
“equilíbrio econômico-financeiro
do Contrato” ã ç ã q
empreiteira viesse a pleitear posteriormente a extensão do prazo para a entrega da
obra, como de fato o faria ao postular um segundo aditivo, tendo em vista que os
planos de recuperação acordados com a engenharia do proprietário não surtiram
os efeitos almejados.
7º) A proibição de alteração do Preço contida nas cláusulas
6.3(b), 6.3(c) e 6.4 do Contrato deve ser conciliada com a
256
Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, 3ª edição, Rio de Janeiro, Forense,
1958.
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possibilidade de alteração do Preço por Força Maior
prevista na cláusula 18 da referida avença? No caso de
incompatibilidade de tais cláusulas, a vedação ao
enriquecimento sem causa faz com que prevaleça a cláusula
18 em detrimento das cláusulas 6.3(b), 6.3(c) e 6.4?
3/25. Tendo em vista que o Contrato diz respeito a uma empreitada por
ç (“turn-key”) “reconheceram”
cláusulas 6.3 e 6.4 que o p ç ç “todos os
custos e despesas” q çã
ç (6.3 “ ”) “que
porventura ultrapassassem” (6.3 “ ”). N
q ã h “nenhuma alteração no
preço do contrato ou nos prazos previstos” (6.3 “ ”) ç
aumento no custo de equipamentos e mão de obra, seja em virtude do aumento
nos custos diretos e indiretos incorridos pela empreiteira para honrar as suas
obrigações, seja ainda, por decorrência de condições climáticas que viessem
interferir nos serviços prestados (6.4).
3/26. É claro que a natureza fixa e global do preço do contrato e a
consequente proibição de alteração do preço contratual, contida nas cláusulas
6.3(a),(b) e (c) e 6.4, acima citadas, devem ser entendidas em combinação com a
possibilidade de ocorrer modificação desse mesmo preço em decorrência de evento
de força maior, tal como essa expressão é conceituada na cláusula 18 do Contrato.
Em havendo conflito entre tais dispositivos contratuais, a vedação ao
enriquecimento sem causa, que na lei civil figura como princípio geral ao lado
dos negócios jurídicos (CC/2002, art. 884), fará com que a cláusula de força maior
se sobreponha às cláusulas contratuais citadas que tolheriam as alterações no
preço da empreitada, a fim de que se preserve o equilíbrio econômico-financeiro
da avença.257 O contrato deve ser encarado como um todo orgânico, cujo conteúdo,
posto que integrado por várias peças, configura-se como uma unidade, e as
cláusulas devem ser ligadas umas às outras, numa interpretação sistemática.
3/27. Na realidade, ao longo do CC/2002, o princípio do equilíbrio
contratual é consagrado seja através de normas gerais que maculam com
257
Cf. Giovanni Ettore Nanni, Enriquecimento sem Causa, São Paulo, Saraiva, 2004.
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anulabilidade os negócios jurídicos atingidos por lesão (art. 157), resolvendo ou
reajustando os contratos em que se evidencia onerosidade excessiva (arts. 317 e
478 usq. 480), seja através também de normas específicas relativas à revisão do
preço na empreitada (arts. 619, 620 625, I e II).
8º) A exigência contida na cláusula 9.7.2 do Contrato de
que a Contratada permanecerá responsável pela execução
dos trabalhos enquanto as partes não cheguem a um acordo
sobre eventual Pedido de Alteração e seus impactos no
Cronograma de Trabalho e no Preço torna abusiva a
rescisão da avença por iniciativa da Contratante enquanto
ainda não estava encerrada a negociação sobre o pedido de
alteração?
9º) A proposta de reprogramação do Cronograma
contratual apresentada pela Contratada e negociada de
boa-fé com a Contratante impede que esta última se valha
da faculdade prevista na cláusula 17.1(vii) do Contrato para
assumir a obra dez dias após o prazo fixado originalmente
para entrega da Usina?
10º) O fato de a Contratante ter despendido o equivalente a
200% do preço original para concluir a Usina após a
rescisão da avença e ter demorado mais dezessete meses
para executar o restante dos Trabalhos aponta que a
condução da obra após a rescisão não se pautou pelo
parâmetro de eficiência estabelecido na avença em questão?
A Contratada deve suportar os custos adicionais que
tenham sido influenciados por tal ineficiência?
3/28. Dispõe a cláusula 9.7 que, caso a E conclua que a ocorrência de
determinado evento, com características de força maior, poderá comprometer o
prosseguimento do projeto, poderá ela formular um pedido de alteração do
instrumento contratual, com o objetivo de modificar o preço e a data de conclusão
das obras. Para atingir esses objetivos, deverá descrever detalhadamente o fato,
fazendo uma estimativa dos impactos do mesmo no preço contratual e na data de
entrega da obra. Nesse sentido, estabelece a cláusula 9.7.1 que, ao receber o
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pedido, caberá à A entrar em tratativas com a empreiteira, formalizando um
termo aditivo. Acrescenta a cláusula 9.7.2 que, caso as partes não cheguem a um
acordo no prazo em tela, deverá a empreiteira permanecer à testa dos trabalhos,
responsável pela obra.
3/29. À vista desses dispositivos contratuais, lícito é concluir que deverá
ser considerada abusiva a rescisão unilateral da avença por iniciativa da
comitente enquanto as partes não deem por encerrada a negociação a respeito da
matéria. A simples leitura da cláusula contratual conduz a essa interpretação. Em
síntese, não cabe rompimento unilateral sem que haja motivo relevante,
decorrendo tal afirmação da bilateralidade e da comutatividade, características do
contrato de empreitada que implicam obrigações recíprocas e sinalagmáticas,
sendo a prestação de um contratante a causa da prestação do outro.
3/30. Por via de consequência, cumpre concluir que a proposta de
reprogramação do cronograma contratual, apresentada pela E e negociada de boa-
fé com a A, impediria que esta última se valesse da faculdade que lhe era
outorgada pela cláusula 17.1.(vii) do Contrato, rescindindo-o e assumindo a obra.
Na realidade, esse permissivo dizia que a A poderia rescindir o Contrato, caso a E
q q “obrigação substancial”
descumprimento não fosse sanado no prazo de 15 (quinze) dias contados da data
de notificação a ser enviada pela A, ou dentro de qualquer outro prazo negociado
pelas partes de boa-fé. Na hipótese, esse descumprimento não ocorreu.
3/31. Por fim, dispõe a cláusula 17.5.5 do Contrato que em caso de rescisão
por inadimplemento por parte da empreiteira, a A “terá o direito de concluir
(ou fazer que sejam concluídos) os Trabalhos” “com o
direito de receber da Contratada os custos efetivamente incorridos
pela Contratante na conclusão dos Trabalhos”. S
incorridos pela Contratante na conclusão dos trabalhos superar o saldo do preço
contratual em aberto, a Contratada será obrigada a pagar à Contratante a diferença
entre o saldo a receber e o total dos custos incorridos. In casu, levando em conta
que a Contratante (A) alega ter despendido o equivalente a 200% do preço original
para concluir a usina após a rescisão da avença, consumindo mais de dezessete
meses para executar o remanescente da obra, tudo aponta no sentido de que a
condução da obra, por ela feita após a rescisão, não se pautou propriamente pelo
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parâmetro de eficiência estabelecido na avença. É óbvio que a E não deve suportar
os custos adicionais que tenham sido introduzidos por tão grande ineficiência.
11º) A expressão ―desde que tais custos sejam atribuíveis
diretamente à rescisão por evento de inadimplemento da
Contratada‖, incluída na cláusula 17.5.5 da avença, exclui a
responsabilidade da Contratada por eventuais custos
adicionais incorridos pela Contratante em condições
daquelas estabelecidas no Contrato?
3/32. A cláusula 17.1 do Contrato estabelecia, como se observou, que a A,
dona da obra, poderia rescindir a avença em várias circunstâncias, dentre as quais
na hipótese de a E “obrigações
substanciais” C z
( “ ”). N q A poderia
concluir a obra, reservando o direito de receber da E “custos adicionais
efetivamente incorridos” – “ q
“diretamente” ã .
3/33. É o que expressamente está previsto na cláusula 17.5.5 do Contrato,
z “rescisão por Evento de Inadimplemento da
Contratada” “Evento de Inadimplemento da
Contratada” õ 17.1( ) “qualquer outra
obrigação substancial do presente Contratada não sanada”. O q
equivale a dizer que a cláusula em pauta exonera a E “custos adicionais”
incorridos pela A em decorrência de condições distintas daquelas constantes do
Contrato.
12º) A cláusula 16.5 do Contrato pode ser considerada uma
cláusula válida de não-indenizar danos indiretos e lucros
cessantes? Em caso afirmativo, essa limitação de
responsabilidade seria aplicável à rescisão por evento de
inadimplemento da Contratada definida na cláusula 17.5.5
da referida avença?
3/34. Pela cláusula 16 do Contrato, ficou estabelecido que à empreiteira
(E) “indenizar e manter indene” (A), e que esta, vice-
versa, deverá indenizar e manter indene a empreiteira, com relação a danos que,
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 139
na execução da empreitada, uma venha a provocar na outra. Ficou, porém,
16.5 q “as partes não serão responsáveis, uma com
relação outra, por quaisquer danos indiretos ou lucros cessantes, que
venham a sofrer”.
3/35. Cláusulas desse naipe - destinadas a afastar a responsabilidade das
partes contratantes com relação à inexecução de obrigações contratualmente
assumidas - são válidas em nosso Direito,258 desde que o seu campo de incidência
se restrinja ao chamado ilícito contratual e desde que não se caracterize no ato
danoso dolo ou culpa grave. No caso do Contrato entre E e A, essa exoneração
convencional da obrigação de indenizar diz respeito, portanto, aos lucros cessantes
e aos danos indiretos, entendidos aqueles como ganhos frustrados, e estes, como
prejuízos sofridos como conseqüência remota.
3/36. Na cláusula 17.5.5, ficou ajustado que, em caso de rescisão do
Contrato por inadimplemento por parte da E, a A teria o direito de assumir a
gestão das obras, recebendo da empresa inadimplente os custos adicionais
efetivamente incorridos pela dona da obra na conclusão dos trabalhos, desde que
“diretamente” ã
empreiteira. Tais custos adicionais, provocados em ricochete, configuram danos
materiais reflexos, ou seja, indiretos, e estão também cobertos pela exoneração da
responsabilidade convencionada na cláusula 16.5, in fine. Ou seja, são danos que
não decorrem senão remotamente da conduta empreiteira, não havendo um nexo
de causalidade direta e imediata que, de acordo com a lei (CC art. 403),
determinaria a responsabilidade contratual da E.
S.M.J.
São Paulo, 29 de agosto de 2014
Luiz Gastão Paes de Barros Leães
258
José de Aguiar Dias, Cláusula de não indenizar, 4ª edição, Rio de Janeiro, Forense; Sérgio Cavalieri
Filho, Programa de Responsabilidade Civil, São Paulo, Atlas, 7ª edição, p. 497 ss.
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ATUALIDADES
A QUESTÃO DA CONFIGURAÇÃO DE FRAUDE NAS ALIENAÇÕES
ENVOLVENDO BEM DE FAMÍLIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS:
ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA A PARTIR DO RECURSO ESPECIAL Nº 1.227.366
Fraud identification on disposing of homestead property and its
consequences: study of precedents issued by the Brazilian Superior
Court of Justice (Superior Tribunal de Justiça) inspired by Special
Appeal 1,227,366.
Vivianne da Silveira Abílio
Mestre em Direito Civil pela UERJ
RESUMO: O artigo analisa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a
respeito da possibilidade de configuração de fraude em alienações envolvendo
bens alcançados pela proteção consagrada na Lei n.º 8.009/1990 e as possíveis
consequências de seu eventual reconhecimento a partir do Recurso Especial nº.
1.227.366. Para tanto, enfrenta a função exercida pela impenhorabilidade do bem
de família no direito brasileiro e seu consequente tratamento nos Tribunais.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil; Bem de família; Boa-fé; Direito à moradia; Fraude
ABSTRACT: Th y h S T J ç ‟
regarding the possibility of recognizing fraud in the disposing of assets that are
protected by the homestead right law (Lei n.º 8.009/1990) and the consequences
of this recognition from the perspective settled in one precedent of the Court
(Recurso Especial n.º 1.227.366). To accomplish this purpose, the paper studies
the role of the homestead right in the Brazilian law and its approach on the
Brazilian courts.
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KEYWORDS: Private Law; Homestead Right; Good Faith; Right to housing; Fraud
SUMÁRIO: 1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366 – 2. A proteção
ao bem de família como expressão do direito constitucional à moradia e seu reflexo
na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – 3. A questão da configuração
de fraude na alienação do bem de família e seus efeitos sobre a impenhorabilidade
em julgados do Superior Tribunal de Justiça – 4. À guisa de conclusão: em busca
do equilíbrio entre a proteção à moradia e a tutela da boa-fé
1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366
Sylvio Carlos Sobrosa da Rocha e sua esposa compraram, em 31.5.1995,
imóvel residencial que passaram a habitar com seus filhos. Alguns anos após a
aquisição, entre junho e agosto de 1997, Sylvio tornou-se réu em ações judiciais
indenizatórias em que, ao final, restou condenado.
Enquanto estavam em curso as aludidas demandas, Sylvio e sua esposa
separaram-se, celebrando acordo (verbal) em relação aos bens do casal, do qual
resultou a doação (efetivada mediante escritura pública) à filha do casal do bem
adquirido em 1995, no qual ex-mulher os filhos permaneceram residindo após a
dissolução da sociedade conjugal.
Sobrevieram em 2000 e 2001 as execuções das condenações sofridas por
Sylvio. Em decorrência de não encontrarem os Exequentes bens a penhorar,
pleitearam a declaração de fraude à execução e consequente ineficácia da
mencionada doação, requerendo a penhora do imóvel.
Acolhidos os pedidos em ambas as execuções,259 opuseram mãe e filha
embargos de terceiro para obstar a ultimação da venda do imóvel, que foi julgado
(i) extinto sem julgamento do mérito em relação à primeira, por não possuir
legitimidade, já que procedera à alienação de sua meação e (ii) parcialmente
259
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou haver diversos processos contra Sylvio em razão
de ter supostamente repassado menos do que deveria aos seus clientes com a venda de ações da CRT e de ter
o casal sonegado outros imóveis nos autos da separação judicial. Compreendeu haver alienação fraudulenta e,
por isso, impossibilidade de premiar com a impenhorabilidade o devedor que obrou de má-fé, além de que o
valor do imóvel permitiria o pagamento das dívidas sem prejuízo da aquisição de outro bem para a residência
familiar com o restante do valor obtido com a alienação.
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procedente quanto à segunda, salvaguardando 50% do imóvel da constrição,
parcela decorrente da doação feita por sua mãe, considerada lídima.
A questão foi, então, levada à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça
para que se avaliasse (i) a inocorrência de fraude à execução, tratando-se de bem
de família antes mesmo da alienação e da própria condenação; e (ii) a
impossibilidade de cindir o bem de família, a impedir sua alienação forçada, já que
o Tribunal de origem reconheceu a exclusão de metade do imóvel.
Consoante se procurará detalhar no item 3, infra, ao julgar o caso no
âmbito do Recurso Especial nº. 1.227.366, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão
deu provimento ao apelo extraordinário para, seja por reconhecer incidir à
hipótese o benefício da impenhorabilidade previsto no art. 1º da Lei nº.
8.009/1990 à totalidade do imóvel, seja por compreender incindível o bem de
família, reformar o acórdão recorrido, levantando a penhora que recaía sobre o
imóvel.
Cuida-se de relevante precedente que, ao evocar a necessária ponderação
na análise da possibilidade de configuração de fraude na alienação de bem de
família, permite avaliar o cenário jurisprudencial relativo à funçao da proteção do
bem de família, bem como as consequências de eventual conduta fraudulenta
sobre a impenhorabilidade.260
2. A proteção ao bem de família como expressão do direito
constitucional à moradia e seu reflexo na jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça
O advento da Lei nº 8.009/1990 representou relevante inovação na
proteção das entidades familiares: embora houvesse previsão no Código Civil de
1916 do instituto do bem de família convencional (ou voluntário) – por meio do
qual o proprietário poderia estabelecer que o imóvel de residência familiar ficaria
“ çã í ” (Có C 1916 . 70) te registro
no ofício de imóveis competente261 –, o bem de família legal, por se tratar de
260
Trata-se de questão polêmica, como se consignou no próprio acórdão: “No ponto, aliás, a configuração do
próprio instituto da fraude à execução relacionado a bem de família não é matéria unívoca na jurisprudência
desta Casa.” 261
O instituto permanece positivado no Código Civil de 2002, com disciplina mais ampla, nos artigos 1.711 a
1.722, dos quais se extraem os requisitos para sua instituição, como se tratar de imóvel destinado à habitação
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proteção automática que independe de qualquer ato do proprietário, implicou
evidente ampliação das hipóteses em que se blinda o imóvel residencial de
expropriação por dívidas.262
Estabelece o aludido diploma a regra da impenhorabilidade do bem de
í q “ ã q q í
z ” ( . 1º) çã q
também aos be ó q “ ” ( . 1º ú )
que observadas as exceções previstas no artigo 2º. Cuida-se de mecanismo que
assume papel essencial na concretização dos objetivos traçados pela Constituição
da República – que alçou a pessoa humana a fundamento do ordenamento (art. 1º,
III) –, vez que possui como vocação garantir condições materiais mínimas à
entidade familiar,263 relacionando-se de forma íntima com a promoção do direito
(fundamental) à moradia.264
O reconhecimento do exercício de tais funções ao instituto resultou em
interpretação tendente a ampliar e reforçar a proteção ao bem de família,265 seja
por meio da defesa da aplicação direta das normas constitucionais às relações
da família e que “não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição”
(VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado. Vol. XVII. São Paulo: Atlas, 2003, p. 79). 262
“Como resta evidente, nesse conceito, o instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por
norma de ordem pública, em defesa da célula familial. Nessa lei emergencial, não fica a família à mercê de
proteção, por seus integrantes, mas é defendida pelo próprio Estado, de que é fundamento” (AZEVEDO,
Álvaro Villaça. Bem de família (Penhora em fiança locatícia e direito de moradia). NERY, Rosa Maria de
Andrade; e DONNINI, Rogério (orgs.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao professor Rui
Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 70). 263
“À guisa de definição da expressão, reúne-se uma série de conceitos que, aglutinados, formam aquilo que
se logrou entender como um complexo absolutamente indispensável à estrutura de segurança material e
moral do sujeito de direito. É o bem que impede ao credor o acesso às coisas indispensáveis à vida do
devedor. Assim, pode-se considerar o bem de família como o bem empregado para assegurar a sobrevivência
digna dos integrantes da família, no mínimo existencial, já que a família é a célula menor e fundamental da
sociedade” (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Penhorabilidade do bem de família „luxuoso‟ na
perspectiva civil-constitucional. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 77, p.
282, jul 2014).
Tal função pode também ser evidenciada na análise do art. 4º, §2º da Lei n.º 8.009/1990, em que se observa
que, tratando-se de pequena propriedade rural, o legislador procurou resguardar não apenas o imóvel
residencial propriamente dito, mas também o suficiente para o desenvolvimento da agricultura de
subsistência. Veja-se o teor do dispositivo: “Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a
impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º,
inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural”. 264
“A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990, consectária da guarida
constitucional e internacional do direito à moradia, não tem como destinatária apenas a pessoa do devedor.
Protege-se também sua família, quanto ao fundamental direito à vida digna” (STJ, REsp 1.433.636, 4ª T.,
Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 2.10.2014). 265
É o que se observa em significativo excerto da ementa do REsp 1.134.427, 2ª T., Rel. Min. Humberto
Martins, julg. 22.6.2010, publ. 1.7.2010: “deve ser dada maior amplitude possível à proteção consignada na
Lei n. 8.009/90, que decorre do direito constitucional à moradia estabelecido no caput do art. 6º da
Constituição Federal de 1988”.
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privadas, seja pela interpretação ampliativa do conceito de entidade familiar.266
Nessa direção, estabeleceu-se que a impenhorabilidade do bem de família deve ser
aplicada a entidade familiar constituída apenas por irmãos,267 e, como amplamente
difundido, alcança o devedor que habita sozinho o imóvel – entendimento que
restou consubstanciado no Enunciado n. 364 da Súmula de Jurisprudência
Dominante do Superior Tribunal de Justiça.268
A amplitude da interpretação do instituto não se limita, contudo, apenas às
pessoas que podem desfrutar da impenhorabilidade, mas também do próprio
objeto em relação ao qual recai a proteção: guiado pela finalidade de garantir
condições de vida mínimas para a família que permeia o instituto previsto na Lei
nº. 8.009/1990, o Superior Tribunal de Justiça compreendeu que a
impossibilidade de execução forçada ali prevista estendia-se também à poupança
cuja destinação estivesse afetada à aquisição do bem de família. Asseverou-se, na
266
“Para além da discussão teórica quanto à aplicação direta ou indireta da norma constitucional, a Corte
Especial, com base na Lei nº 8.009 de 1990, definiu como prioritária a proteção do direito à moradia e da
dignidade do devedor, expandindo o conceito de bem de família, de modo a alcançar, em praticamente todas
as hipóteses, o imóvel residencial, agora impenhorável para pagamento de dívida” (TEPEDINO, Gustavo.
Bem de família e direito à moradia no Superior Tribunal de Justiça. Revista Trimestral de Direito Civil, vol.
36, p. iii, out/dez 2010). 267
“Execução. Embargos de terceiro. Lei 8009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros.
Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o
apartamento onde moram goza da proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei 8009/90, não podendo ser
penhorado na execução de divida assumida por um deles. Recurso conhecido e provido” (REsp 159.851/SP,
4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julg. 19.3.1998, publ. 22.6.1998). O fundamento empregado pela
Corte constitui-se na configuração de entidade familiar: “Estes filhos (...) constituem eles mesmos uma
entidade familiar, pois para eles não encontro outra designação mais adequada no nosso ordenamento
jurídico. Se os três irmãos são proprietários de um apartamento e ali residem, esse bem está protegido pela
impenhorabilidade pois a alienação forçada dele significará a perda da moradia familiar.” Igual base foi
empregada no âmbito do REsp 57.606, 4ª T., Rel. Min. Fontes de Alencar, julg. 11.4.1995, publ.DJ
15.5.1995). O entendimento vai ao encontro do defendido em doutrina: “A impenhorabilidade alcança o
imóvel em que vivem irmãos ou pessoas que configurem desenho jurídico familiar, numa concepção aberta e
plural da família” (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 146). 268
Em doutrina, a aplicação ao devedor que habitava sozinho seu imóvel era defendida, antes da edição da
Súmula, por Anderson Schreiber: “A proteção ao imóvel residencial, à moradia da pessoa humana, deve ser
garantida mesmo nos casos de devedores solteiros, em que não há qualquer entidade familiar a ser tutelada.
Habitar é fundamental para a dignidade de qualquer indivíduo, esteja ele integrado a uma família ou não.”
(SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para a impenhorabilidade do imóvel
residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira et. al. (orgs.). Diálogos sobre Direito
Civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 87).
A título exemplificativo, veja-se expressivo precedente do STJ, em que a questão foi amplamente debatida,
assim ementado: “Processual. Execução. Impenhorabilidade. Imóvel. Residência. Devedor solteiro e
solitário. Lei 8.009/90. A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se
limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa
humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o
indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito
contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário”. (STJ, EREsp
182.223, Corte Especial, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. p/ acórdão Min. Humberto Gomes de
Barros, julg. 6.2.2002).
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ã q “ h ç q çã
í ” q “ autorização para a penhora esvaziaria a
q çã ” “ ã í
h ”.269 Do mesmo modo, garante-se a impenhorabilidade de
bem que, embora não seja diretamente habitado pela entidade familiar, destina-se,
ainda que indiretamente, a garantir o acesso à moradia, como ocorre na hipótese
de bem cujos frutos são empregados para alugar o bem em que moram,
entendimento que restou consagrado no Enunciado n. 486 da Súmula da
Jurisprudência Dominante do Superior Tribunal de Justiça.270
A elogiável construção jurisprudencial, como se observa, encontra-se
permeada pela função exercida pelo bem tutelado no caso concreto,271
identificando a proteção conferida pela lei com a tutela da pessoa humana.272
Aludida orientação também orienta a interpretação dos bens móveis abrangidos
pela impenhorabilidade, a definir em que circunstância contribuem para a
proteção mínima da família e da pessoa ou se tratariam de bens suntuosos
(abarcados, portanto, pela exceção consagrada no art. 2º).273 Já se demonstrou em
269
Trata-se do STJ, REsp 707.623, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 16.4.2009, em cuja ementa se lê:
“Processual Civil e Tributário. Execução Fiscal. Penhora. Poupança vinculada diretamente à aquisição do
bem de família. Impenhorabilidade. 1. O Tribunal de origem indeferiu a penhora de dinheiro aplicado em
poupança, por verificar a sua vinculação ao financiamento para aquisição de imóvel caracterizado como bem
de família. 2. Embora o dinheiro aplicado em poupança não seja considerado bem absolutamente
impenhorável – ressalvada a hipótese do art. 649, X, do CPC –, a circunstância apurada no caso concreto
recomenda a extensão do benefício da impenhorabilidade, uma vez que a constrição do recurso financeiro
implicará quebra do contrato, autorizando, na forma do Decreto-Lei 70/1966, a retomada da única moradia
familiar. 3. Recurso Especial não provido”. 270
“É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda
obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família”. 271
Justamente por isso a própria Corte exclui a proteção em hipóteses nas quais o bem não se mostra
essencial para a moradia e sustento da família, como ocorre quando se trata de imóvel desocupado (AgRg no
REsp 1.232.070, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julb. 9.10.2012); que não se reverta sob nenhum aspecto
para a renda familiar (REsp 1.035.248, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julg. 16.4.2009); ou, ainda,
há indícios de que se busca apenas salvaguardar patrimônio, sem atender aos pressupostos da lei (v., nesse
sentido, STJ, REsp 1.417.629, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.12.2013). 272
STJ, REsp 1400342, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 8.10.2013: “Civil e processo civil. Recurso
especial. Indicação do dispositivo legal violado. Ausência. Súmula 284⁄STF. Bem de família. Imóvel
desocupado, mas afetado à subsistência dos devedores. Impenhorabilidade. (...) 4. A regra inserta no art. 5º
da Lei 8.009⁄1990, por se tratar de garantia do patrimônio mínimo para uma vida digna, deve alcançar toda e
qualquer situação em que o imóvel, ocupado ou não, esteja concretamente afetado à subsistência da pessoa
ou da entidade familiar”. 273
Tal lógica parece inspirar o entendimento de que os móveis em duplicidade não são abarcados pela
impenhorabilidade. É ver-se: “Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Execução. Penhora. Móveis
que guarnecem a casa em duplicidade. Bem de família não configurado. Revisão. Impossibilidade. Súmula
7/STJ. Agravo regimental improvido. I. A aferição da essencialidade do bem, para que seja considerado
impenhorável, exigiria o reexame do conjunto fático exposto nos autos, o que é defeso ao Superior Tribunal
de Justiça, nos termos da Súmula 07/STJ. II. Os bens encontrados em duplicidade na residência são
penhoráveis de acordo com a jurisprudência do STJ. Agravo Regimental improvido” (STJ, AgRg no Ag
821.452, 3ª T., Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 18.11.2008, publ. 12.12.2008). Em seu inteiro teor, ao reiterar
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doutrina a evolução da jurisprudência da Corte Superior que, após debate entre
correntes restritivas e ampliativas da impenhorabilidade dos bens móveis que
guarnecem o bem de família, se consolidou no sentido de que abrange o que
normalmente se encontra em uma residência, tais como computador, televisão e
eletrodomésticos em geral,274 asseverando- q “
”.275 Também em relação à definição da
suntuosidade do bem móvel parece ser central avaliação funcional276 – única
forma capaz de definir, à luz das peculiaridades do caso concreto, a relevância do
objeto para a garantia de moradia digna. Compreende-se, assim, a diversa
qualificação do mesmo objeto, ora compreendido como abarcado pela
impenhorabilidade, ora passível de execução.277
os termos do julgamento do Agravo, asseverou-se que a ausência de proteção de tais bens se justificaria “por
não serem absolutamente necessários à manutenção básica da unidade familiar”. No mesmo sentido: “Bem
de família. Equipamentos que guarnecem o bem de família. Precedentes da Corte. 1. Não está sob a cobertura
da Lei n° 8.009/90, nos termos de precedentes da Corte, um segundo equipamento, seja aparelho de televisão,
seja videocassete. 2. Recurso especial conhecido e provido, em parte” (STJ, REsp 326991, 3ª T., Rel. MIn.
Carlos Alberto Menezes Direito, julg. 18.12.2001). 274
COSTA, Pedro Oliveira. O „bem de família‟ na jurisprudência do STJ. Revista Trimestral de Direito Civil,
vol. 3, p. 172-175, jul/set 2000. 275
STJ, REsp 875.687, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 9.8.2011. No mesmo sentido:
“Reclamação. Divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do STJ.
Embargos à execução. Televisor e máquina de lavar. Impenhorabilidade. I. É assente na jurisprudência das
Turmas que compõem a Segunda Seção desta Corte o entendimento segundo o qual a proteção contida na Lei
nº 8.009/90 alcança não apenas o imóvel da família, mas também os bens móveis que o guarnecem, à
exceção apenas os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. II. São impenhoráveis, portanto,
o televisor e a máquina de lavar roupas, bens que usualmente são encontrados em uma residência e que não
possuem natureza suntuosa. Reclamação provida” (STJ, Rcl 4.374, 2ª S., Rel. Min. Sidnei Beneti, julg.
23.2.2011). 276
A respeito da avaliação funcional dos bens jurídicos, confira-se: “a noção de bens jurídicos, embora se
situe na estrutura da relação jurídica, só poderá ser compreendida de acordo com a função desempenhada
pela situação jurídica que serve de objeto. (...) O significado do bem jurídico depende essencialmente do
interesse que o qualifica e, portanto, sua classificação há de ser apreendida na esteira da função que o bem
desempenha na relação jurídica” (TEPEDINO, Gustavo. Regime jurídico dos bens no Código Civil. In:
VENOSA, Sílvio de Salvo et. al. (coords.). 10 Anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São Paulo:
Atlas, 2012, p. 50). 277
Sobre o tema, seja consentido relembrar precedentes do Superior Tribunal de Justiça que, ao avaliar a
possiblidade de penhora de piano em distintas situações, concluíram de forma diametralmente diversa.
Enquanto, por um lado, considerou-se abrangido pela proteção legal o instrumento musical por se tratar de
bem essencial para o estudo e a possibilidade de seu emprego no futuro para sustento das filhas da devedora,
por outro, na ausência de circunstâncias capazes de caracterizar a essencialidade desse mesmo bem para a
entidade familiar, entendeu-se não abarcado o móvel pela proteção legal. Veja-se os respectivos precedentes:
“Processual civil. Embargos à execução. Penhora. TV. Piano. Bem de família. Lei 8.009/90. Art. 649, VI,
CPC. A Lei 8.009/90 fez impenhoráveis, além do imóvel residencial próprio da entidade familiar, os
equipamentos e móveis que o guarneçam, excluindo veículos de transporte, objetos de arte e adornos
suntuosos. O favor compreende o que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o
indispensável para fazê-la habitável, devendo, pois, em regra, ser reputado insuscetível de penhora aparelho
de televisão. II. In casu, não se verifica exorbitância ou suntuosidade do instrumento musical (piano), sendo
indispensável ao estudo e futuro trabalho das filhas da Embargante” (STJ, REsp 207.762, 3ª T., Rel. Min.
Waldemar Zveiter, julg. 27.3.2000); “Processual civil. Embargos à execução. Impenhorabilidade dos bens
móveis e utensílios que guarnecem a residência, incluindo computador e impressora. Precedentes. Piano
considerado, in casu, adorno suntuoso (art. 2º, da Lei 8.009/90). (...) Quanto ao piano, não há nos autos
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 147
3. A questão da configuração de fraude na alienação do bem de família
e seus efeitos sobre a impenhorabilidade em julgados do Superior
Tribunal de Justiça
Como consequência das restrições à execução forçada dos bens albergados
pela proteção garantida pela Lei nº. 8.009/1990, afigura-se possível que
determinado crédito reste insatisfeito, muito embora o devedor seja proprietário
de determinados bens, por vezes valiosos.278 Com o intuito de evitar que o credor
ficasse à mercê de posturas abusivas do devedor, previu o legislador hipótese
í çã çã q “ -se
insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência
familiar, desfazendo- ã ”. O – que,
principalmente por tratar de casos em que nem sempre haverá prejuízo aos
credores, mas também em decorrência da solução apresentada em seu parágrafo
primeiro, sujeita-se a críticas279 – denota a preocupação com o desvirtuamento da
tutela do bem de família.
Trata-se, todavia, de hipótese específica, a suscitar dúvidas a respeito da
possibilidade de intervenção para superar a impenhorabilidade em outros casos
nos quais se configure comportamento abusivo ou fraudulento do devedor. Sobre o
qualquer elemento a indicar que o instrumento musical seja utilizado pelo Recorrente como meio de
aprendizagem, como atividade profissional ou que seja ele bem de valor sentimental, devendo ser
considerado, portanto, adorno suntuoso. Incidência do disposto no artigo 2º da Lei 8.009/90” (STJ, REsp
198370, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, julg. 16.11.2000). 278
Conquanto controvertida (v., por todos, REDONDO, Bruno Garcia. Impenhorabilidade no Projeto de
Novo Código de Processo Civil: relativização restrita e sugestão normativa para generalização da mitigação.
Revista de Processo, vol. 201, p. 221 e ss., nov. 2011), verificam-se decisões que consideram desimportante
o valor do imóvel que se caracteriza como bem de família, rejeitando-se pedidos para alienação forçada em
que se garantiria ao devedor montante suficiente para a aquisição de novo imóvel: “A Lei nº 8.009/90 não
estabelece qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família no que toca a seu valor nem prevê
regimes jurídicos diversos em relação à impenhorabilidade, descabendo ao intérprete fazer distinção onde a
lei não o fez” (STJ, REsp 1.397.552, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.11.2014). V. tb.: STJ,
REsp 1.320.370, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 16.6.2012. 279
“Todavia, a solução do legislador, neste caso, é complicadíssima, pois não há necessidade de anular a
alienação do primitivo bem de família, se o novo é mais valioso do que o antigo. Basta, isto sim, permitir a
execução do novo imóvel, no valor que ultrapassar o do antigo, restando esse valor antigo impenhorável,
ainda que contido no imóvel mais valioso. Em caso de execução do imóvel mais valioso ou de ser objeto de
concurso de credores, pelo aludido saldo, o incômodo de ter, com esse valor restante, de comprar novo
imóvel, no mesmo valor do antigo, é do mencionado adquirente de má-fé. Tudo, para que se evite anular a
alienação anterior, realizada a terceiro de boa-fé, no mais das vezes. Nem se diga que este terceiro estaria
sujeito à mesma anulação; pois, sendo comprador ou permutante, dinheiro ou bem seu, substituiu, no
patrimônio do alienante, o valor do imóvel por esse terceiro adquirido. Aliás, como visto, nos casos
analisados, existe acréscimo no patrimônio do alienante o que não se coaduna com a ideia de fraude”
(AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito de Família. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 377).
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assunto, identificam-se duas orientações tendencialmente divergentes no âmbito
da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Por um lado, verificam-se precedentes que determinam a superação da
proteção conferida ao bem de família em casos de fraude. É o caso do Recurso
Especial 1.299.580,280 em que se avaliou a possibilidade de penhorar residência do
devedor que, ao longo da execução (inicialmente movida em face de empresa da
qual era sócio, à qual passou a responder após a desconsideração da personalidade
jurídica), alienou seu patrimônio de modo a manter apenas o bem de família em
sua propriedade.281 A execução originou-se do descumprimento de obrigação da
entrega de imóvel, adquirido na planta pelo Exequente e jamais construído pela
empresa do Executado, referindo-se à devolução dos valores pagos, tendo
observado a Ministra Relatora Nancy Andrighi, que, após quinze anos, nenhum
valor houvera sido reavido e o adquirente, que buscava adquirir novo imóvel,
enfrentava dificuldades financeiras.282 Ao apreciar o caso, asseverou a 3ª Turma
que a conduta do devedor violava os padrões impostos pela boa-fé objetiva e a
própria finalidade da proteção legislativa.283
O entendimento foi mais uma vez expressado em precedente da 4ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça, em que se consignou a ausência de violação ao
artigo 1º da Lei nº. 8.009/1990 por se ter determinado a penhora de imóvel
adquirido com proventos decorrentes de doação efetuada pelos sócios da
280
STJ, REsp 1.299.580, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 20.3.2012. 281
“Cinge-se a lide a estabelecer se é possível ao Tribunal afastar a proteção conferida a bem de família com
fundamento em que o devedor alienou, no curso da execução, outros bens imóveis de que era proprietário,
remanescendo apenas com o de sua residência”. 282
“Na hipótese dos autos, pelo que se depreende da análise das peças processuais, o recorrido, de boa-fé,
procurou adquirir do recorrente, na planta, um imóvel para sua residência. Esse imóvel não foi construído,
motivando a propositura da ação judicial. Mais de quinze anos depois, o credor não logrou êxito em receber o
valor que investiu na compra de sua casa. Há notícia no processo, inclusive, de que ele se casou e tentou,
novamente, adquirir um imóvel para residir com sua nova família, tendo atravessado dificuldades e se
tornado inadimplente, sob o risco de perder esse novo imóvel (fl. 55, e-STJ), não obstante mantenha, perante
o réu, o crédito aqui discutido em aberto. Há, portanto, o interesse de duas famílias em conflito, não sendo
razoável que se proteja a do devedor que vem obrando contra o direito, de má-fé, segundo apurou o TJ/RJ,
em detrimento da do credor que, até onde se pode constatar, vem atuando nos termos da Lei”. 283
“Não há, em nosso sistema jurídico, norma que possa ser interpretada de modo apartado aos cânones da
boa-fé. Todas as disposições jurídicas, notadamente as que confiram excepcionais proteções, como ocorre
com a Lei 8.009/90, só têm sentido se efetivamente protegerem as pessoas que se encontram na condição
prevista pelo legislador. Permitir que uma clara fraude seja perpetrada sob a sombra de uma disposição legal
protetiva implica, ao mesmo tempo, promover uma injustiça na situação concreta e enfraquecer, de maneira
global, todo o sistema de especial de proteção objetivado pelo legislador. (...) Ao alienar todos os seus bens,
menos um, durante o curso de processo que poderia levá-lo à insolvência, o devedor não obrou apenas em
fraude à execução: atuou também com fraude aos dispositivos da Lei 8.009/90. Todo o direito tem como
limite o seu regular exercício, de boa-fé. O abuso do direito deve ser reprimido”.
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executada (pessoa jurídica) após o regular conhecimento da execução.284
Consignou a Minis R I G q “ C
origem não destoa do entendimento deste Tribunal, no sentido de que é afastada a
proteção conferida pela Lei 8.009/90, quando está caracterizada a fraude à
çã ”.285 Invocou o julgado orientação consagrada na Corte a partir de
entendimento adotado ainda sob a égide do Código Civil de 1916,286 segundo a qual
não há que se considerar impenhorável bem de família que retorna ao patrimônio
do devedor em decorrência do reconhecimento de fraude em sua alienação.287
T é “ çã í
a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo
⁄ çã í h
q í ó ” 288 o Superior Tribunal de
284
Veja-se trecho do acórdão do Tribunal de origem: “Em termos mais específicos e, a fim de corroborar o
posicionamento adotado pelo Juízo, é de se dizer que seu entendimento se mostrou plenamente adequado ao
conjunto encartado aos autos, uma vez que, como bem definido por força da r. sentença, a alienação do bem
discutido nos autos se deu em evidente fraude à execução, uma vez que, conforme resultou demonstrado por
meio do todo processado, notadamente pelo que diz a Matricula do Imóvel carreada ao feito (fls.20/21), o
bem foi adquirido pelas embargantes em 22/05/2003, ou seja, após a propositura da executiva embargada
(25/04/2002), bem como da promoção da regular citação dos devedores (31/03/2003), esta que se deu na
pessoa dos sócios da executada (fls. 132, dos autos da executiva), sendo importante salientar, ademais, que a
aquisição do bem constrito se deu com recursos provenientes de doação promovida pelos pais das
adquirentes da coisa e, ora embargantes, enquanto sócios da executada (...)” (TJSP, Ap. Cív. 9081478-
33.2007.8.26.0000, 16ª Câmara de Direito Privado, julg. 28.2.2012). 285
STJ, AgRg no AREsp 334.975, 4ª T., Rel. Min. Isabel Gallotti, julg. 7.11.2013. 286
“Processual Civil. Lei 8.009/1990. Superveniência. Penhora levada a efeito antes de sua vigência.
Desconstituição. Direito transitório. Bem que retornou ao patrimônio dos devedores por força de ação
pauliana. Irrelevância. Recurso não conhecido. I. A Lei 8.009/1990, de aplicação imediata, incide no curso da
execução se ainda não efetuada a alienação forçada, tendo o condão de levantar a constituição sobre os bens
afetados pela impenhorabilidade. II. Tendo o bem penhorado retornado ao patrimônio do devedor após o
acolhimento de ação pauliana, é de se excluir a aplicação da Lei 8.009/1990, porque seria prestigiar a má-fé
do devedor. III. Segundo a conhecida lição de Clóvis, „não é ao lado do que anda de má-fé que se deve
colocar o direito; sua função é proteger a atividade humana orientada pela moral ou, pelo menos, a ela não
oposta‟” (STJ, REsp 119.208, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 18.11.1997). No mesmo
sentido: STJ, REsp 337.222, 4ª T., Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, julg. 18.9.2007; REsp 170.140, 4ª T.,
Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julg. 7.4.1999; REsp 123.495, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira,
julg. 23.9.1998. 287
Ao avaliar também hipótese semelhante ao REsp 1.227.366, descrito no item 1, isto é de doação de bem
de família a filho dos executados (mas sem enfrentar se haveria configuração de fraude à execução em razão
da verificação de preclusão sobre a matéria), asseverou a 6ª Turma do STJ: “O bem que retorna ao
patrimônio do devedor, por força de reconhecimento de fraude à execução, não goza da proteção da
impenhorabilidade disposta na Lei nº 8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé do executado” (STJ,
AgRg no REsp 1.085.381, 6ª T., Rel. Min. Paulo Gallotti, julg. 10.3.2009). 288
STJ, REsp 1440786, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 27.5.2014. Em precedente que enfrentou
hipótese semelhante, asseverou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior: “Se a proprietária resolve se
desfazer do bem (...) é porque dele não necessita, ou porque pretende aplicar o produto da venda na aquisição
de outra moradia. Recebendo a integralidade do preço e ficando com o imóvel que prometera vender, estará
se locupletando, pois com os recursos auferidos não adquire outro bem, não paga a dívida resultante da
resolução do negócio, nem oferece dinheiro para a penhora, mantendo íntegro o seu patrimônio graças à lei
de impenhorabilidade do bem de família. Fica prejudicado o promissário comprador, cumpridor do contrato.
Nestas circunstâncias, a impenhorabilidade não pode prevalecer, porquanto a sua proprietária foi a primeira a
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Justiça determinou ser penhorável imóvel no caso de execução decorrente da
ausência de devolução de sinal entregue em promessa de compra e venda relativa
ao próprio imóvel, na hipótese de inexistirem outros bens capazes de satisfazer o
credor. Nada obstante se fundamentar a orientação na exceção prevista no art. 3º,
inciso II da Lei nº. 8.009/1990, verifica-se a intenção de coibir comportamentos
incompatíveis com o princípio da boa-fé objetiva.289
Em outra hipótese na qual entendeu o STJ que teria ocorrido fraude à
execução capaz de determinar a penhora de bem em que residia entidade familiar,
afirmou- q “ q ú ó
onde reside com a família, está, ao mesmo tempo, dispondo daquela proteção
”.290 Cuida-se de precedente nos qual se avaliou doação efetuada pelos
genitores – que já sabiam responder por execução – a seu herdeiro, por meio de
terceira pessoa, com quem celebraram contrato de promessa de compra e venda
não registrada.291 Afirmou-se no acórdão que, a despeito do bem já abrigar a
residência familiar antes da doação (e que, portanto, não seria penhorável antes da
operação), estaria configurada conduta maliciosa pelos executados, de modo a
mitigar sua impenhorabilidade. Indicou-se, em sua conclusão, que (i) o
ordenamento não poderia t “ çã
”; ( ) çã ó çã
– gratuita ou onerosa – do bem de família e depois alegar sua proteção
incluí-lo entre os bens alienáveis. Recebido o preço previsto no contrato, é irrecusável o direito do
promissário comprador buscar o que desembolsou, pois ele poderia – reunidos os pressupostos – exigir a
própria adjudicação compulsória e obter do juiz a transferência da propriedade do imóvel que adquiriu, ou
pelo menos a cessão da posição contratual da promitente junto ao instituto de previdência que construiu o
prédio. Além disso, é preciso garantir a prevalência do princípio da responsabilidade pelo ilícito contratual
que teve por objeto o próprio imóvel, além da necessidade de o Direito proteger a boa fé nos negócios”
(REsp 51.480, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julg. 20.6.1995). 289
Veja-se trecho do inteiro teor: “a devedora claramente se aproveitou da proteção conferida pela Lei nº
8.009/90 para compromissar a venda do próprio bem de família, sabedora de que o negócio seria desfeito e
na predisposição de reter indevidamente o sinal adiantado pelo comprador, ora recorrente. Não cabe dúvida
de que a proteção legal foi desvirtuada, propiciando o enriquecimento ilícito do proprietário do imóvel em
detrimento de terceiro de boa-fé”. 290
STJ, REsp 1.364.509, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.6.2014. 291
Em sentido semelhante, a 4ª Turma manteve orientação fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,
embora não tenha apreciado a questão em decorrência do Enunciado n. 7 de sua Súmula de Jurisprudência
Dominante: “Execução. Bem de família. Impenhorabilidade. Aplicação da Lei n. 8009, de 29.03.90, afastada
em virtude da má-fé com que se houveram os executados. Requisito do art. 5º do citado diploma legal não
demonstrado. Matéria de fato. Má-fé dos executados proclamada pela decisão recorrida em razão de
peculiaridades da causa, dentre elas a circunstância de que, por decisão judicial, se declarou ineficaz a doação
pelos mesmos feita aos filhos. Matéria que se insere no plano dos fatos. Precedentes da Quarta Turma no
sentido de que não se deve prestigiar a má-fé do devedor. Requisitos exigidos pela Lei nº 8.009/90 que estão
a depender, por igual, do reexame de matéria fática (súmula nº 07-STJ). Recurso especial não conhecido”
(STJ, REsp 187.802, 4ª T., Rel. Min. Barros Monteiro, julg. 7.12.1999).
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configuraria comportamento contraditório; e (iii) sendo evidente o propósito do
devedor de blindar seu patrimônio – como no caso, já que a doação foi feita dias
ó çã é “ ” – há
de se reconhecer a fraude à execução e rejeitar a conduta maliciosa, determinando-
se a penhora.
Por outro lado, em sentido oposto aos precedentes acima descritos,
verifica-se posicionamento de acordo com o qual, diante da proteção conferida ao
bem de família, não haveria que se cogitar de fraude à execução e a consequente
constrição do imóvel. Nessa esteira, a 1ª Turma do STJ, ao enfrentar hipótese na
qual se verificou alienação após a citação do devedor em execução fiscal e que
çã é q “
imóvel familiar é revestido de impenhorabilidade absoluta, consoante a Lei
8.009/1990, tendo em vista a proteção à moradia conferida pela CF, e de que não
há fraude à execução na alienação de bem impenhorável, tendo em vista que o bem
de família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o
q q q í z”.292
Orientação semelhante foi traçada no REsp 976.566, em que, entre outros
argumentos, se afirmou inexistir qualquer interesse do credor no desfazimento de
negócios jurídicos de alienação envolvendo bens de família, na medida em que se
caracterizam pela impenhorabilidade e, logo, jamais poderão ser excutidos para o
í . E : “ ã h çã lienação de
bem impenhorável nos termos da Lei n.º 8.009/90, tendo em vista que o bem de
família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o exequente
h í z”.293
A inexistência de prejuízo para o credor também permeou acórdão
proferido pela 2ª Turma da Corte Superior, em que se avaliou a legalidade de
alienação de bem de família enquanto em curso execução fiscal. Na esteira dos
precedentes anteriores, destacou- q “ F ã prejuízo com o
afastamento da fraude à execução em razão de o bem objeto da execução ser
292
STJ, AgRg no AREsp 255.799, 1ª T., Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julg. 17.9.2013, grifou-se.
Em seu inteiro teor, o acórdão reproduz trecho da decisão proferida pelo Tribunal de origem (TJRS) em que a
impenhorabilidade absoluta é justificada da seguinte forma: “a proteção do bem de família pela
impenhorabilidade tem como pauta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III da
Constituição Federal) e valor primordial do ordenamento jurídico pátrio, do qual deriva diretamente o direito
fundamental à moradia (art. 6º da Carta)”. 293
STJ, REsp 976.566, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.4.2010.
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h ç ”.294 Segundo argumentou o Ministro Relator Castro
M “ q ã q
anulação s ô ” h
que lhe caracterizaria – não tendo o julgado enfrentado as ressalvas estabelecidas
nos precedentes relativos à penhorabilidade do bem de família que retorna ao
patrimônio do devedor por anulação decorrente de ação pauliana (v. nota 28).
A hipótese de doação pelos genitores a seu herdeiro do bem de família que
habitavam foi novamente enfrentada no REsp 1.227.366, consoante descrito no
item 1, supra. Ao contrário do decidido no âmbito do REsp 1.364.509 – o que foi
explicado no acórdão como consequência das peculiaridades daquela hipótese, em
q çã “ ” –, entendeu a 4ª
Turma do STJ que a operação não poderia ser considerada fraudulenta, vez que
inexistentes os requisitos necessários para tanto, notadamente o prejuízo para os
credores, na medida em que o imóvel já consubstanciava bem de família
anteriormente à operação. Consoante expôs o Ministro Relator Luis Felipe
Salomão:
É que o parâmetro crucial para discernir se há ou não fraude à execução é verificar a ocorrência de alteração na destinação primitiva do imóvel – qual seja, a moradia da família – ou de desvio do proveito econômico da alienação (se existente) em prejuízo do credor.
Além de tal fundamento – como visto, também empregado pelos
precedentes da 4ª e da 1ª Turma –, procurou demonstrar o julgado que à luz da
finalidade atribuída pelo ordenamento à proteção do bem de família –
“ ntidade familiar e,
portanto, indispensável à composição de um mínimo existencial para uma vida
” –, que representa orientação legislativa no sentido de que a
impenhorabilidade se afigura mais relevante que a satisfação do credor, o
reconhecimento de fraude envolvendo os imóveis que atraem a proteção legal deve
ser verificada com prudência pelo intérprete, se caracterizando apenas em
hipóteses excepcionais, já previstas na própria Lei n. 8.009/1990, de modo a
excepcionar a impenhorabilidade do bem de família apenas quando configuradas
as circunstâncias previstas nos artigos 3º e 4º.295
294
STJ, REsp 846.897, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 15.3.2007. 295
No caso concreto, indicou-se, ainda, outro fundamento para a manutenção da impenhorabilidade, relativo
à indivisibilidade do bem. Assim, na medida em que a proteção visa a salvaguardar a moradia da família, não
já o patrimônio do devedor, o reconhecimento, no Tribunal de origem, que 50% do imóvel não seria
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4. À guisa de conclusão: em busca do equilíbrio entre a proteção à
moradia e a tutela da boa-fé objetiva
Diante do destacado papel das funções atribuídas à impenhorabilidade do
bem de família no ordenamento brasileiro, impõe-se ao intérprete cautela na
avaliação da possibilidade de superação da proteção com base em conduta
fraudulenta do devedor.
Consoante se procurou demonstrar no item 2, supra, cuida-se de
importante instrumento para a proteção da pessoa humana, a espancar
interpretações açodadas que representem a superação imotivada da tutela legal.
Nada obstante, não se pode ignorar as diversas hipóteses em que o devedor se vale
de forma reprovável do benefício.
Nesse cenário, parece ser recomendável evitar o recurso a fórmulas
genéricas na determinação da possibilidade de superação da impenhorabilidade do
bem de família em casos de fraude. Cabe ao intérprete avaliar todas as
circunstâncias relacionadas ao caso concreto e identificar, à luz dos diversos
interesses envolvidos, a solução que melhor atenda aos objetivos
constitucionais,296 não se podendo olvidar que, se por um lado a proteção ao bem
de família traduz concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, há
que se prestigiar também o princípio da boa-fé objetiva, expressão, por sua vez, da
solidariedade constitucional297 (e, assim, do próprio conceito de dignidade)298 –
penhorado por não estar envolvido na fraude deveria levar à impenhorabilidade total do bem, na esteira de
remansosa jurisprudência do STJ, que determina a impossibilidade de penhora parcial no caso de
descaracterização do imóvel (v., por exemplo STJ, REsp 1405191, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg.
3.6.2014). Nos termos da decisão: “ainda que, em última instância, fosse caracterizada a doação fraudulenta,
o benefício da impenhorabilidade estender-se-ia à totalidade do bem, mormente ante a sua incontroversa
destinação”. 296
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
201. 297
“Como se sabe, a boa-fé objetiva constitui-se em um dos princípios fundamentais do regime contratual
contemporâneo, consagrada nos arts. 113 e 422 do CC/2002, como expressão do princípio constitucional da
solidariedade social” (TEPEDINO, Gustavo. Caução de créditos no direito brasileiro: possibilidades do
penhor sobre direitos creditórios. In: Soluções Práticas de Direito. Vol. III, São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012, p. 451, grifou-se). 298
“A pessoa é inseparável da solidariedade: ter cuidado com o outro faz parte do conceito de pessoa”
(PERLINGIERI, Pietro, cit., p. 461). Para Maria Celina Bodin de Moraes a solidariedade social representa
um dos aspectos da dignidade da pessoa humana (O princípio da dignidade humana. In: BODIN DE
MORAES, Maria Celina (org.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
1 - 61).
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igualmente identificada pela Constituição como objetivo fundamental da
República (art. 3º, I da CRFB).
Portanto, conquanto não haja dúvidas que, na esteira do estabelecido no
REsp 1.227.366, a ocorrência de fraude à execução apenas se mostra possível
quando a alienação importar efetivo prejuízo aos credores,299 de modo que a mera
alienação de bem de família não implica, por si só, alteração no panorama
patrimonial do devedor – seja por possuir o devedor outros bens para arcar com a
obrigação, seja pelo bem envolvido já estar albergado pela impenhorabilidade
antes da alienação (o que, ao fim e ao cabo, não implica prejuízos aos credores que
já não poderiam se valer daquele imóvel), há de se reconhecer hipóteses
excepcionais em que, ainda assim, o benefício deve ser suplantado em virtude de
comportamento do devedor capaz de incutir no credor legítima expectativa de
executá-lo.300
299
“Especificamente no que concerne à hipótese prevista no inc. II (...) exigem-se, cumulativamente, três
requisitos fundamentais para a deflagração da fraude à execução, quais sejam: (a) o prévio ajuizamento de
ação capaz de reduzir o devedor à situação de insuficiência patrimonial, instaurada pela sua citação valida;
(b) o dano, isto é, efetiva situação de insuficiência patrimonial oriunda ou agravada direta e necessariamente
do ato de alienação; e (c) o conhecimento do processo por parte do adquirente, a fim de tutelar a situação
jurídica de terceiros de boa-fé” (TEPEDINO, Gustavo. Desconsideração inversa da personalidade jurídica no
direito brasileiro. In Soluções Práticas de Direito, vol. III, cit., p. 134). Cuida-se de requisito também
reconhecido na fraude contra credores: “O êxito da pauliana, em qualquer hipótese, depende da configuração
do prejuízo sofrido pelo credor que a propõe. Além, pois, da prova de seu credito, haverá de demonstrar a
insolvência do devedor, criada ou agravada pelo ato impugnado. Esse déficit patrimonial é que afeta a
garantia de exequibilidade do credito do promovente, gerando a impossibilidade de realizá-lo, no todo ou em
parte (...) Para configurar o eventus damni é, outrossim, necessário que o ato de disposição praticado pelo
devedor tenha como objeto bem penhorável, pois somente assim terá comprometido a garantia genérica de
seus credores quirografários. Se se alienou bem legalmente impenhorável, como a casa de moradia (Lei n.
8009, de 29/3/1990), ou o instrumento necessário ao trabalho ou profissão (CPC, art. 649, VI), nenhum
decréscimo sofreu o patrimônio excutível do devedor. Logo, prejuízo algum adveio do ato de disposição para
os credores do alienante. E, sem prejuízo, não cabe falar em fraude contra credores” (THEODORO JÚNIOR,
Humberto. Fraude contra credores: A natureza da sentença pauliana, 2ª ed., Belo Horizonte: Editora Del
Rey, 2001, p. 141) 300
Há que se valorar, em tal apuração, se o comportamento do devedor era capaz de legitimamente fazer
surgir no credor tal expectativa. Consoante se esclarece em doutrina: “não são todas as expectativas, mas
somente aquelas que, à luz das circunstancias do caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos (e
não somente indícios) praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na
manutenção da situação assim gerada. Mais que isso, o comportamento contraditório só será alcançado pela
boa-fé objetiva quando não for justificável e, ainda, quando a reversão de expectativas assim ocorrida gere
efetivos prejuízos à outra parte cuja confiança tenha sido traída” (NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-
fé contratual. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit., pp.
239-240).
Ressalte-se que já se defendeu que a proteção do bem de família seria sempre prevalente em relação à boa-fé:
“o argumento de torpeza, baseado na boa-fé subjetiva e, por isso, essencialmente privado, não pode
prevalecer sobre a proteção do Bem de Família Legal, que envolve ordem pública. (...). (...) a prevalência do
direito à moradia sobre a boa-fé serve para afastar o argumento de aplicação da vedação do comportamento
contraditório (venire contra factum proprium). A partir da idéia de ponderação ou pesagem deve entender
que o primeiro direito tem prioriedade e prevalência sobre a boa-fé objetiva. (TARTUCE, Flávio. A polêmica
do bem de família ofertado. Revista da Emerj, v. 11, nº 43, p. 242-243, 2008, grifos no original).
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Identifica-se na própria jurisprudência do STJ casos nos quais se apontou
justamente a necessidade de reconhecer a inaplicabilidade da proteção ao bem de
família em decorrência da conduta do devedor. A título exemplificativo, ao analisar
o comportamento de casal que oferecera voluntariamente em garantia para adesão
a REFIS imóvel que se caracterizava como bem de família, entendeu a 2ª Turma
por não aplicar o benefício da impenhorabilidade em função da reprovabilidade da
conduta dos executados.301 Conforme descrito no acórdão, os proprietários, em
operação anterior à adesão ao REFIS, já haviam hipotecado o imóvel e, quando
executados, alegado se tratar de bem de família impenhorável, argumentação da
qual intentavam, uma vez mais, se valer, dessa vez para não arcarem com os
valores do benefício tributário. Entendeu-se, nesse cenário, na medida em que a
indicação de bem em garantia era condição para usufruir de benefício legal302 e
q h “ h q ”
inadimplementos planejados, pela execução do bem.303 Em outra hipótese,
avaliando-se estar diante de fraude realizada por devedores que, ademais,
expressamente abdicaram do benefício da impenhorabilidade, compreendeu a 3ª
Turma ser imperioso determinar a penhora do imóvel.304
301
STJ, REsp 1.200.112, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 7.8.2012. 302
“No caso de que ora se cuida, o proprietário do bem agiu de maneira deliberada, consciente de que a
garantia ofertada era iníqua, mas suficiente para permitir-lhe desfrutar de benefício fiscal sabidamente
indevido. Não se pode tolerar que da utilização abusiva do direito, com violação inequívoca ao princípio da
boa-fé objetiva, possa advir benefício para o seu titular que exerceu o direito em desconformidade com o
ordenamento jurídico. Segundo consta do acórdão recorrido, não foi a primeira vez que Ricardo Pereira
Marques e Flávia Pereira Marques ofertaram o bem em garantia para a obtenção de benefício legal e, quando
executada a garantia, simplesmente alegaram a impenhorabilidade do bem. Dito de outra forma, disse o
acórdão recorrido que os proprietários tem atuado de maneira reiteradamente fraudulenta, valendo-se do bem
de maneira abusiva, com consciência e vontade, para a obtenção de benefício sabidamente indevido”. 303
Confira-se eloquente trecho do acórdão: “Um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico
brasileiro é o da boa-fé objetiva que deve reger todas as relações jurídicas, de modo que nenhum ato, contrato
ou direito pode ser exercido sem observância deste princípio. É nesse contexto que deve ser examinada a
regra de impenhorabilidade do art. 1º da Lei 8.009/90, que, antes de ser absoluta, comporta temperamentos
ditados pelo princípio da boa-fé objetiva. Quando o patrimônio do devedor é alienado de maneira fraudulenta
no curso da execução, por exemplo, é difícil admitir que possa ele se escudar na regra protetiva de
impenhorabilidade do bem de família”. 304
SJT, REsp 554.622, 3ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, julg. 17.11.2005. Veja-se expressiva passagem do
voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito: “o bem de família que foi retirado por um ato que configurou
uma enganação, um rompimento da boa-fé objetiva, não está alcançado por aquele precedente que, de forma
geral, entendeu que, na verdade, não pode haver a renúncia do bem de família, mas isso, é claro, admitindo-
se a hipótese da normalidade. Quando se enfrenta uma peculiaridade dessa natureza, que está configurada nos
autos, ou seja, três famílias pobres e, portanto, sem cultura, sem saber específico, que habitam em uma
mesma casa pequena e são procuradas por uma empresa de engenharia, que lhes oferece uma permuta de
bem, pega o terreno para construção e lhes oferece dois apartamentos nesse mesmo prédio, não vindo a
cumprir a obrigação, e já tendo sido retirado o bem de família dessas pessoas, que hoje são as credoras,
evidentemente não se pode aplicar a solução técnica adotada em um caso no qual não havia tal
peculiaridade”.
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Em síntese, embora não se questione que a Lei nº. 8.009/1990 possui
sólida inspiração em objetivos centrais à Constituição e, como argutamente
RE 1.227.366 “ í
” -se evitar conclusões generalizantes a respeito da
impossibilidade de superar a proteção ao bem de família em decorrência da
conduta do devedor que, excepcionalmente, pode justificar a exclusão do
benefício.305
Cuida-se, enfim, de entender, como se concluiu no acórdão comentado,
q “ h ocorrência de fraude à execução e sua influência na
disciplina do bem de família deve ser aferida casuisticamente, de modo a evitar a
perpetração de injustiças – deixando famílias ao desabrigo – ou a chancelar a
conduta ardilosa do executado em desfavor d í ”.
305
Embora dissertando sobre a proteção do bem de família do fiador, Álvaro Villaça Azevedo emprega
raciocínio semelhante: “Também seria procedimento de alta má-fé que o proprietário de um bem o conferisse
em garantia de uma relação jurídica, para não cumprir o avençado ou já sabendo da impossibilidade de fazê-
lo. O direito não pode suportar procedimento de má-fé, ou de quem alegue nulidade a que tenha dado causa.
Quem viola a norma não pode invocá-lo em seu benefício (nemo auditur turpitudinem suam allegans)”
(AZEVEDO, Álvaro Villaça, cit., p. 72).
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RESENHAS
Resenha a Arnoldo Wald (organizador), Doutrinas Essenciais –
Mediação e Arbitragem, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,
2014.
Gustavo Tepedino
Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ
A coleção Doutrinas Essenciais – Mediação e Arbitragem, publicada pelos
elegantes tipos da Editora Revista dos Tribunais, congrega em sete volumes e
alguns milhares de páginas duas verdadeiras instituições do direito brasileiro. De
um lado, os 100 anos de tradição doutrinária da Revista dos Tribunais, com
extraordinário acervo representativo do que de melhor já se publicou no cenário
jurídico no último século. De outra parte, o seu organizador, Prof. Arnoldo Wald,
esse notável jurista e intelectual, professor catedrático da Faculdade de Direito da
UERJ, cuja arguta sensibilidade permitiu, mediante criteriosa seleção, reunir os
mais refinados textos em matéria de mediação e arbitragem, constituindo assim
antologia única no panorama editorial brasileiro.
Em divisão didática e eficiente, o primeiro volume é dedicado à
principiologia, bem como à consolidação normativa, jurisprudencial e doutrinária
da arbitragem. O segundo volume volta-se para a convenção de arbitragem, a
cláusula compromissória e o compromisso arbitral: sua dogmática, elementos e
efeitos essenciais. O terceiro volume incorpora toda a matéria procedimental,
incluindo as diversas fases do processo, a produção probatória e a eficácia da
sentença. O quarto volume orienta-se para os domínios específicos em que a
arbitragem se espraia: do direito empresarial – contendo problemas atinentes aos
litígios de construção civil, societário, contratual e falimentar – ao direito
econômico; direito administrativo e tributário; direito do trabalho; do consumidor,
direito desportivo e o ambiental. O quinto volume congrega textos relacionados à
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arbitragem internacional, homologação e eficácia da sentença, arbitragem estatal e
de investimentos estrangeiros. O sexto volume, finalmente, passa em revista os
modos alternativos de solução de conflitos, no Brasil e no exterior, enfrentando as
técnicas de mediação, conciliação e processos híbridos – a cláusula med-arb,
dispute board e assim por diante. O sétimo volume reúne cuidadosos índices; por
texto e capítulo, por autores, onomástico e alfabético-remissivo.
Os sete volumes da coleção buscam oferecer ao leitor o que de melhor já se
produziu na literatura jurídica brasileira sobre o tema, permitindo traçar
interessante histórico do desenvolvimento da arbitragem, identificar os problemas
atuais e propor perspectivas para seu fortalecimento nos próximos anos. A obra
contém contribuições de ilustres autores de todas as especialidades e domínios do
conhecimento jurídico, de Rui Barbosa a Miguel Reale a, no cenário internacional,
Tullio Ascarelli, René David e Mauro Cappelletti – cujas saudosas memórias se
tornam, assim, de alguma forma, resgatadas em suas lições inexcedíveis –, unindo
também, na doutrina contemporânea, as diversas gerações de estudiosos que
integram a coleção.
O procedimento arbitral tem sido crescentemente utilizado no Brasil,
sobretudo em áreas de elevado nível de especialização, destacando-se questões
relacionadas à energia, petróleo, infraestrutura, construção civil, entre outras. Tais
litígios normalmente abrangem valores vultosos e temas complexos que, por conta
do dever de confidencialidade, acabam por não se tornar de conhecimento público,
inexistindo jurisprudência arbitral brasileira que pudesse ser fonte de consulta.
Daí a importância dessas contribuições doutrinárias essenciais, que franqueiam
aos leitores não somente informações dogmáticas mas, ao mesmo tempo, o retrato
da evolução da arbitragem e de suas controvérsias na experiência brasileira.
Na atualidade, a arbitragem tem contribuído para desafogar o sistema
judiciário nacional, que conta com cerca de 100 milhões de processos em
andamento, e cujos julgamentos são precedidos, em regra, por excessivamente
longos períodos de tempo, notadamente nas matérias de elevada complexidade
técnica. A eclosão da arbitragem no Brasil mostra-se ainda recente, já que a
afirmação pelo STF da constitucionalidade da Lei 9.307/1996 ocorreria apenas ao
final de 2001. De todo modo, o fortalecimento progressivo do procedimento
arbitral tem sido incentivado pela dedicada atuação de respeitadas Câmaras de
Arbitragem e de talentosos árbitros, bem como pela intervenção positiva da
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magistratura, que reconhece, reiteradamente, a força vinculante e definitiva das
decisões arbitrais, nas hipóteses em que se procura invalidar o laudo arbitral
perante o Poder Judiciário.
A Arnoldo Wald a cultura jurídica brasileira deve muitíssimo, seja por sua
pujante produção acadêmica dos últimos 60 anos, seja por sua formidável
liderança científica e comprometimento institucional, ocupando numerosos e
operosos postos de destaque no florescimento da arbitragem no Brasil, tais como
Membro da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio
Internacional; Vice-Presidente do Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio
Internacional; Presidente da Comissão de Arbitragem do Comitê Brasileiro da
Câmara de Comércio Internacional, além de idealizador e coordenador da
festejada Revista de Arbitragem e Mediação.
Por tudo isso, tais doutrinas essenciais configuram obra fundamental na
biblioteca jurídica, ponte entre a memória do direito nacional e o alvissareiro
futuro da arbitragem no Brasil.
Petrópolis, fevereiro de 2015
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SUBMISSÃO DE ARTIGOS
Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil –
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deve estar pendente em outro local.
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Word. É permitido, contudo, utilizar qualquer processador de texto, desde que os
artigos sejam gravados no formato .rtf (RichTextFormat), formato de leitura
comum a todos os processadores de texto.
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entre 15 e 35 laudas.
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Não se deve utilizar o tabulador "TAB" para determinar os parágrafos: o próprio
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New Roman, corpo 12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de
3cm no lado esquerdo, 2,5cm no lado direito e 2,5cm nas margens superior e
inferior. O tamanho do papel deve ser A4.
6. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título
do trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço,
telefone, fax, e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a
principal atividade exercida.
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6023/89 (Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência
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ponto; número da edição; ponto; palavra edição abreviada; ponto; local; dois
pontos; editora (suprimindo-se os elementos que designam a natureza comercial
da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo: DAVID, René. Os grandes
sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
8. As referências deverão ser feitas em notas de fim, isto é, ao final do
artigo, com a indicaçã “N ”.
9. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe
que não ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e
português e por um Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada
divisão da outra por um travessão.
Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2.
Regras jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O
Código Civil – 5. A Constituição – 6. A chamada descodificação.
10. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia,
deve ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.
11. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor
modificações ou devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os
trabalhos recebidos serão submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual
cabe a decisão final sobre a publicação.
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