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Revista de Educação Pública

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  • Revista de Educao Pblica

  • UFMT

    Reitor Chancellor Paulo Speller

    Vice-Reitor Vice-Chancellor Elias Alves de Andrade

    Coordenadora da EdUFMT EdUFMTs Coordinator Elizabeth Madureira Siqueira

    Conselho Editorial Publishers Council

    Bernardete A. Gatti Fundao Carlos Chagas, So Paulo/SP Celso de Rui Beisiegel USP, So Paulo/SP Christian Anglade University of Essex, Inglaterra Florestan Fernandes in Memoriam Francisco Fernndez Buey Universitat Pompeo Fabra, Espanha Jean Hbette UFPA, Belm/PA Maria Ins Pagliarini Cox UFMT, Cuiab/MT Martin Coy Univ. Tubingen, Alemanha Moacir Gadotti USP, So Paulo/SP Nicanor Palhares S UFMT, Cuiab/MT Paolo Nosella UFSCar, So Carlos/SP Paulo Speller UFMT, Cuiab/MT Srgio Roberto de Paulo UFMT, Cuiab/MT Walter E. Garcia Braslia/DF

    Conselho Consultivo Consulting Council

    Aumeri Carlos Bampi (UNEMAT / SINOP)Bernardete Angelina Gatti (PUCSP)Clarilza Prado de Sousa (PUCSP)Claudia Leme Ferreira Davis (PUCSP)Jacques Gauthier (Paris VIII-Frana)Denise Meyrelles de Jesus (UFES)Elizabeth Madureira Siqueira (IHGMT)Francisca Izabel Pereira Maciel (UFMG)Jos Carlos de Arajo (UFU-MG)Helosa Szymanski (PUCSP)Luiz Augusto Passos (UFMT) Maria Ignez Joffre Tanus (UNIC-MT)Maria Laura Puglisi Barbosa Franco (PUCSP)Mariluce Bittar (UCDB) Marlene Ribeiro (UFRGS)Pedro Ganzelli (Unicamp) Vera Maria Nigro de Souza Placco (PUCSP)

    Conselho Cientfico Scientific Council

    Artemis Torres Educao, Poder e Cidadania Education, Power and Citizenship

    Daniela de Barros Silva Freire AndradeEducao e Psicologia Education and Psychology

    Lzara Nanci de Barros Amncio Cultura Escolar e Formao de Professores School Culture and Teacher Education

    Nicanor Palhares S Histria da Educao History of Education

    Ministrio da Educao Ministry of Education

    Universidade Federal de Mato Grosso Federal University of Mato Grosso

  • Revista de Educao Pblica Cuiab v. 16 n. 32 p. 1-180 set.-dez. 2007

    2007

    ISSN 0104-5962

    Revista de Educao Pblica

  • Catalogao na Fonte

    R454Revista de Educao Pblica - v. 16 n. 32 (set.-dez. 2007) Cuiab:EdUFMT, 2007. 180 p.Anual: 1992-1993. Semestral: 1994-2005. Quadrimestral: 2006-Publicao do Programa de Ps-Graduao em Educao da UniversidadeFederal de Mato Grosso.

    ISSN 0104-5962

    1. Educao. 2. Pesquisa Educacional. 3. Universidade Federal de Mato Grosso. 4. Programa de Ps-Graduao em Educao.

    CDU37.050z

    FAPEMAT

    Copyright: 2007 EdUFMTPrograma de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato GrossoOs direitos desta edio reservados EdUFMT Editora da Universidade Federal de Mato Grosso,Av. Fernando Corra da Costa, s/n. Coxip. Cuiab/MT CEP: 78060-900Fone: (65) 3615-8322 / Fax: (65) 3615-8325. proibida a reproduo total ou parcial desta obra, sem autorizao expressa da Editora.

    Indexada em: BBE Bibliografia Brasileira de Educao (Braslia, INEP)SIBE Sistema de Informaes Bibliogrficas em Educao (Braslia, INEP)IRESIE ndice de Revistas de Educacin Superior e Investigacin Educativa UNAM Universidad Autnoma del Mxico

    Correspondncia para envio de artigos, assinaturas e permutas: Centro de Tecnologias e Documentao Educacionais - CETEDE Instituto de Educao/UFMT Av. Fernando Corra da Costa, s/n. Coxip. Cuiab/MT CEP: 78060-900 Telefone Secretaria Executiva (65) 3615-8466Fax: (65) 3615-8440 / (65) 3615-8429 E-mail: [email protected] Homepage: http://www.ie.ufmt/revista

    Coordenadora da EdUFMT: Elizabeth Madureira Siqueira

    Editor da Revista de Educao Pblica: Nicanor Palhares S

    Reviso: Eliete Hugueney de Figueiredo e Maria Auxiliadora Silva Pereira

    Secretria Executiva: Dionia da Silva Trindade

    Assessoria: Jeison Gomes dos Santos

    Editorao: Emanuel Santana

    Periodicidade: Quadrimestral

    Projeto Grfico original: Carrin & Carracedo Editores Associados Av. Senador Metello, 3773 - Cep: 78030-005 Jd. Cuiab - Telefax: (65) 3624-5294www.carrionecarracedo.com.br [email protected]

    Comercializao: Fundao Uniselva / EdUFMT Caixa Econmica Federal / Agncia: 0686 Operao: 003 / Conta Corrente 1071-0 e-mail: [email protected] Assinatura: R$55,00 Avulso: R$20,00

    Este nmero foi produzido no formato 155x225mm, em impresso offset, no papel Suzano Plen Print 80g/ m, 1 cor;capa em papel triplex 250g/m, 4x0 cores, plastificao fosca em 1 face.Composto com os tipos Adobe Garamond e Frutiger. Tiragem: 1.000 exemplaresImpresso e acabamento: Bartira Grfica e Editora S/A.

  • Sumrio

    Carta do editor 9

    Cultura Escolar e Formao de Professores 11

    Os cadernos escolares: organizar os saberes, escrevendo-os 13Anne-Marie Chartier

    Relaes entre espaos e pontos no incio da alfabetizao 35Dagoberto Buim Arena

    Dificuldades de aprendizagem resultantes da natureza daMatemtica Moderna: o problema da explicao 51Michael Otte

    Educao e Psicologia 73

    Contribuio do Curso de Pedagogia para o exerccio daprofisso de acordo com os professores nele envolvidos como alunos 75Ana Conceio Elias e Silva Maria Augusta Rondas Speller

    Sujeito psicanaltico e emancipao: possvel uma educao bem sucedida? 89Vera Lcia Blum

    Educao, Poder e Cidadania 103

    Educao, Poder e Cidadania 105Luiz Ribeiro

    Trabalho docente: em debate a profissionalizao do magistrio 119Jorge Najjar

    Histria da Educao 129

    Professores primrios como intelectuais da cidade:um estudo sobre produo escrita e sociabilidade intelectual(Corte Imperial, 1860-1889) 131Alessandra Frota M de Schueler

    Educao e sociedade: o pblico e o privado na Constituio de 1891 145Joo Carlos da Silva

  • Notas de leituras, resumos e resenhas 155

    RISCAROLLI, E. Educao, liderana e conscincia polticade mulheres camponesas. Cuiab: PPGE/ UFMT, 1988. 148 p. 157Edna Fernandes do Amaral

    EINSTEIN, Albert. Mi Vision del Mundo. 6. ed.Barcelona: Tusquets, 2006. 233p 161Carlos Maldonado

    Informes da ps-graduao e da pesquisa 167

    Revista de Educao Pblica julho 2007 169Maria Lcia Rodrigues Mller (Coordenadora do Programa)

    Relao de defesas realizadas no PPGE no perodo letivo de 2007/1 171

  • Contents

    Publishers Letter 9

    School culture and teacher education 11

    The school copybooks: organizing knowledge by writing them 13Anne-Marie Chartier

    Relations between spaces and full stops in the beginningof the alphabetization 35Dagoberto Buim Arena

    Learning Difficulties resulting from the Nature ofmodern Mathematics: the Problem of Explanation 51Michael Otte

    Education and Psychology 73

    Contributions of a pedagogy course for the exercizing ofthe profession according to the teachers involved in it as pupils 75Ana Conceio Elias e Silva Maria Augusta Rondas Speller

    Psychoanalytic subject and emancipation: it is possible a successful education? 89Vera Lcia Blum

    Education, power and citizenship 103

    Media body end the colonization of the imaginary 105Luiz Ribeiro

    Work of teacher: at the date the work of teacher profissionalization 119Jorge Najjar

    History of Education 129

    Primary teachers as city intellectuals:a study about the written production and intellectual sociability (Corte Imperial, 1860-1889) 131Alessandra Frota M de Schueler

    Society and education the public and the privateone in the 1891 constitution 145Joo Carlos da Silva

  • Readings notes, summary and review 155

    RISCAROLLI, E. Educao, liderana e conscincia polticade mulheres camponesas. Cuiab: PPGE/ UFMT, 1988. 148 p. 157Edna Fernandes do Amaral

    EINSTEIN, Albert. Mi Vision del Mundo. 6. ed.Barcelona: Tusquets, 2006. 233p 161Carlos Maldonado

    Pos graduation information and research 167

    Magazine of Public Education-July 2007 169Maria Lcia Rodrigues Mller (Coordenadora do Programa)

    Relation of master defenses in the PPGE, of learning period 2007/1 171

  • Carta do editor

    Segundo ano de periodicidade quadrimestral. H um desejo coletivo de se construir a trimestralidade da Revista de Educao Pblica. Nunca faltou matria de qualidade para a sua publicao, porm o problema principal encontra-se na infra-estrutura da produo, constituda pelas atividades de montagem, reviso, diagramao, impresso e distribuio, das quais boa parte terceirizada median-te o apoio financeiro da FAPEMAT. Pela primeira vez nesses dezesseis anos de existncia uma primeira base montada, consistindo de uma sala e de uma secre-tria executiva, integrante do quadro de funcionrios tcnico-administrativos da UFMT e mestre em educao, permanecendo a expectativa de conseguirmos um bolsista estagirio. Essas condies somadas futura nomeao do Editor Adjun-to, possibilitaro o estabelecimento daquilo que seria necessrio total estabilida-de da Revista.

    A Revista de Educao Pblica um dos peridicos cientficos mais tradicio-nais no campo da educao; o mais antigo da Universidade Federal de Mato Grosso. O fato de ter sido avaliado como nacional A pelo qualis da CAPES foi recebido por ns com tranqilidade, pois conhecemos a contribuio que ela j ofereceu rea, ou seja, foi pioneira no campo especfico da educao ambiental, alm de ter protagonizado discusses de ponta, como as mudanas paradigmticas puxadas pelo Seminrio de Educao, evento este que ocorre anualmente, promo-vido pelo PPGE/IE/UFMT.

    O peridico tem sido enriquecido pela participao externa em mbito na-cional, contando tambm com alguma participao em nvel internacional, sem desprezar a produo regional. Apresenta uma rgida periodicidade, o que poucas revistas cientficas universitrias possuem.

    Nicanor Palhares SEditor

  • Cultura Escolar e Formao de Professores

    Revista de Educao Pblica Cuiab v. 16 n. 32 set.-dez. 2007p. 11-72

  • Revista de Educao Pblica Cuiab v. 16 n. 32 set.-dez. 2007p. 13-33

    Os cadernos escolares:organizar os saberes, escrevendo-os1

    Anne-Marie Chartier2

    1 Conferncia apresentada na Sesso Especial Cultura Escrita e Letramentos da 29 ANPEd, GT10 Alfabetizao, Lei-tura e Escrita, realizada em Caxambu, no ano de 2006 A traduo do texto de Artur Moraes (UFPE), a quem a autora agradece imensamente

    2 Pesquisadora do Institut National de Recherche Pdagogique (INRP), Frana. [email protected]

    Resumo

    Os cadernos escolares so um material pouco utilizado nas pesquisas histricas, devido sua extrema fragilidade. Eles fornecem, entre-tanto, testemunhos insubstituveis a respeito dos exerccios escolares, das prticas pedaggi-cas e do desempenho dos alunos no contexto da sala de aula. Concentrando-nos no perodo 1880-1970, buscamos conhecer como esses ob-jetos revelam a cultura escrita visada pela escola republicana atravs dos exerccios cannicos de caligrafia, cpia, ditado e redao, averiguando tambm a evoluo dessa cultura de referncia aps a primeira Guerra Mundial. Questiona-mos, ainda, acerca das articulaes entre o oral escolar e a cultura escrita, comparando cadernos de alunos ao caderno de preparao de aulas de uma professora dos anos sessenta.

    Palavras-chave: Cadernos escolares. Prticas pedaggicas. Cultura escrita.

    Abstract

    The school copybooks are pedagogical ma-terials little used in the historical research, due to their extreme fragility. They provide, however, irreplaceable testimonies regarding the students pedagogical performance and written exercises done in the classroom context. Based on the examples occurred in the period of 1880-1970, we aimed at observing how the school copy-books reveal the written culture marked by the republican school through the canonic exercises of handwriting, copy, dictation and text produc-tion. We also searched for identify the evolution of this reference culture post First World War. We still interrogated ourselves regarding the articulations between oral school and written culture by means of comparing students school copybooks with a class preparation copybook from a school teacher of sixties.

    Keywords: School notebooks. Pedagogical practices. Written culture.

  • 14 CulturaEscolareFormaodeProfessores

    RevistadeEducaoPblica,Cuiab,v.16,n.32,p.13-33,set.-dez.2007

    Les cahiers scolaires sont un matriau peu utilis dans les recher-ches historiques, cause de leur extrme fragilit. Ils donnent pourtant des tmoignages irremplaables sur les exercices scolaires, les pratiques p-dagogiques et les performances des lves dans le contexte de la classe. partir dexemples pour la priode 1880-1970, nous avons cherch com-ment les cahiers scolaires nous donnaient voir la culture crite vise par lcole rpublicaine travers les exercices canoniques de calligraphie, co-pie, dicte et rdaction et quelle tait lvolution de cette culture de r-frence aprs la premire guerre mondiale. Nous nous sommes interrog sur les articulation entre oral scolaire et culture crite, en nous comparant les cahiers dlves au cahier de prparation dune matresse des annes 1960.

    Como saber o que fazem os alunos na sala de aula? Os socilogos, psiclogos e pedagogos podem ir diretamente s escolas, hoje, e observ-los ou interrog-los em seu contexto de trabalho. Os historiadores s dispem de vestgios muito la-cunares das prticas escolares, atravs das fontes impressas (leis, instrues oficiais, revistas pedaggicas, manuais) que nos informam acerca do que a escola prescreve ou probe. graas a essas publicaes que os estudiosos tm podido elaborar uma histria da escolarizao, uma histria geralmente poltica, situada no espao nacional. No entanto, outra histria tem sido construda a partir de figuras de educadores que transformaram os modos de se pensar a questo.

    No entanto, em ambos os casos ficam sombra os alunos reais e o que faziam ou deixavam de fazer. Como chegar a eles? Os cadernos escolares podem nos aju-dar a entender o funcionamento da escola de uma maneira diferente da veiculada pelos textos oficiais ou pelos discursos pedaggicos. Por essa razo, compreende-mos o interesse dos historiadores por essas fontes que escaparam ao seu destino na-tural, a destruio. Como proceder para se passar, graas a esses materiais, de uma viso discursiva do ensino a uma anlise concreta dos processos de escolarizao, que fazem com que o aluno entre no mundo ordenado dos conhecimentos?

    I.Memriaehistria

    Os estudos histricos j realizados sobre os trabalhos de alunos colocaram em evidncia a distncia entre a norma prescrita e sua aplicao. Por exemplo, na Frana, quando as leis republicanas de Jules Ferry substituram o ensino da religio pela educao moral, de que maneira se deu essa aplicao? Jean Baubrot pde seguir as marcas escritas de um ensino da moral que se estabeleceu antes dos anos 1900, mas que retrocedeu entre as duas guerras e desapareceu dos cadernos muito antes de desaparecer dos programas.

    Tais materiais escolares so tambm indicativos dos desempenhos dos estudan-tes. Torna-se possvel saber a que corresponde, numa dada poca, um julgamento

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    Oscadernosescolares:organizarossaberes,escrevendo-os 15

    qualitativo do que uma tarefa medocre ou uma tarefa bem-feita e quais so as expectativas de um professor diante de uma tarefa real. Marie-Madeleine Compre (1992) analisou quase duzentos trabalhos (172) de latim, realizados em um colgio de elite, em Paris, por volta de 1720; Andr Chervel (1992) estudou mais de trs mil ditados, do final do sculo dezenove, para uma investigao em nvel nacional da ortografia na escola primria. Desse modo, tem-se uma com-preenso dos resultados concretos dos alunos diante dos exerccios cannicos de uma disciplina.

    Em todos esses casos, trata-se de encontrar um mtodo de anlise que evite os riscos do anacronismo. claro que olhamos os cadernos antigos atravs de nossas prprias lembranas escolares. Reencontrando a infncia de nossos antepassados, admiramos as belas escritas feitas a pena e lemos com nostalgia os enunciados morais copiados com esmero:

    Ilustrao 1 - O trabalho bem-feito torna o homem feliz

    Ilustrao 2 - Um bem mal-adquirido nunca proveitoso ou Uma boa inteno sem ao uma bela rvore sem frutos

    Fotos: L.B. 22/6/92 eL.B. 13/4/94]

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    RevistadeEducaoPblica,Cuiab,v.16,n.32,p.13-33,set.-dez.2007

    Contrariamente, certos pedagogos encontram nos cadernos do passado, so-bretudo, a repetio indefinida e intil de exerccios estereotipados (ditado, gra-mtica, clculo), alm da insistncia na inculcao autoritria das certezas morais ou patriticas e da brutalidade dos julgamentos emitidos sem precauo pelos professores e que traumatizaram geraes inteiras:

    Ilustrao 3 - Estou muito descontente com o trabalho de Marie Marguerite. Ela no est mais se dedicando

    Fonte: Tarefas mensais, p. 48. Junho, 1942.Foto: M. M. L.

    Essas experincias, muito variadas por sinal, constituem filtros interpretativos bastante duradouros, que funcionam segundo dois princpios.

    1 Familiaridade ou estranhamentoO primeiro princpio o da familiaridade ou estranhamento. Ocorre quan-

    do o leitor contemporneo reconhece de imediato o exerccio, em sua forma ou contedo, por t-lo praticado de uma forma idntica ou muito parecida. Por exemplo, a forma do ditado pode ser reconhecida desde o sculo dezenove at o incio do sculo XXI, como nesta foto dos anos quarenta:

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    Ilustrao 4 Ditado. Maro de 1942.

    A partir desse reconhecimento, volta memria um nmero considervel de informaes implcitas sobre a atividade, sua forma de desenvolvimento e as re-cordaes pessoais, muito variadas, caso se trate de um exerccio temido ou apre-ciado. Devemos lembrar, no entanto, que os exerccios praticados na sala de aula por crianas de dez anos no tinham, em 1900, a mesma finalidade ou valor que tm hoje.

    Numa direo contrria, certas atividades parecem estranhas diante da expe-rincia escolar atual, de modo que s vemos nelas seu carter arcaico e arbitrrio: linhas de crculos e bastes, problemas sobre torneiras que enchem recipientes, apresentao de faturas de compras, entre outras. Na atualidade, por exemplo, que objetivo teria o desenho de Cristo, segundo Rafael, numa escola onde no houvesse ensino de religio nem de histria da arte e que no tivesse por objetivo o desenvolvimento da pintura artstica? Isso parece enigmtico ou absurdo. [Dese-nho, o Cristo segundo Rafael. 1894]. Entre essas duas situaes extremas, abre-se um leque de exerccios mais ou menos distantes dos praticados atualmente.

  • 18 CulturaEscolareFormaodeProfessores

    RevistadeEducaoPblica,Cuiab,v.16,n.32,p.13-33,set.-dez.2007

    2 Julgamento ou preconceito pedaggicoO segundo princpio o da avaliao retrospectiva dos exerccios. Essa percep-

    o mobiliza critrios de julgamento ou preconceitos tanto em relao ao xito na realizao da tarefa, como satisfao do professor ou ao valor atribudo criana. Para um ex-aluno, os critrios formais (aplicao no traado, cuidado, disposio na pgina) so to importantes como o contedo do exerccio. J esse profissional do ensino confronta as exigncias do passado com os critrios atuais ou com suas prprias expectativas. Entretanto, os historiadores mostram que, contrariando tais normas, os professores do sculo XVIII preferiam as tradues do latim um pouco distanciadas do original, mas elegantes e que mostrassem as qualidades do estilo escrito em francs.

    3 Mtodo: relacionar os cadernos s normas de seu tempo As normas mudaram. preciso recordar tambm que os cadernos conservados

    so sempre os dos melhores alunos, de modo que aqueles que revelariam a inca-pacidade no cumprimento das tarefas desapareceram. Um leitor contemporneo, dessa forma, sempre levado a crer que o nvel baixou em relao queles tempos distantes. Mas tal diagnstico remete ou a uma apreciao pedaggica anacrnica ou a iluses da memria. Para uma perspectiva histrica, o importante rela-cionar os cadernos s normas de seu tempo, tanto as escolares como as sociais e culturais. Da surge a questo fundamental levantada nesta comunicao: de que maneira os cadernos escolares manifestam a cultura escrita de seu tempo?

    II.Culturaescritaesaberesescolares

    1 Textos escolares e disciplinas acadmicasNum mundo rural onde os adultos escreviam pouco, as crianas exerciam essa

    prtica durante todo o dia. Executada durante horas e horas, produzia-se uma relao na qual essa atividade em muito se distanciava da experincia familiar. Ao escrever a cada dia, ano aps ano, seguindo normas impostas, as crianas interio-rizavam de maneira indelvel uma certa classificao dos saberes.

    Quer o indivduo tenha vivido uma situao de sucesso quer tenha experi-mentado uma situao de fracasso, era nessa rotina que se plasmava uma percep-o imediata do que era a histria, a geografia, a gramtica. Essa representao das disciplinas estava ligada tanto s formas como aos contedos dos exerccios praticados. A geografia escolar vinculava-se de modo inseparvel aos mapas que os alunos desenhavam a mo e que nem sempre eram mapas da Frana:

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    Ilustrao 5 - Maio de 1894 Ilustrao 6 - Fevereiro de 1894 A ortografia estava vinculada ao ditado; a gramtica, aos exerccios de anlise

    de palavras ou de conjugao de verbos; a aritmtica, resoluo de problemas; a geometria, a figuras traadas com rgua e compasso.

    Outras atividades (cpia de textos, composio de textos, redao) eram menos fceis de ser vinculadas a uma nica disciplina. Por exemplo, as linhas de treino de escrita, que utilizavam mximas como O trabalho bem-feito torna o homem feliz, tinham a ver com a caligrafia, mas tambm com a moral.

    Ao colocar, todos os dias, um ttulo novo para cada exerccio escrito, o alu-no realizava classificaes que se construam no ato e que estruturavam tanto sua experincia como seus saberes escolares. Essa prtica, exercida ao longo da escolaridade, construa uma lista de conhecimentos a que podemos chamar sa-beres de escrita (savoirs dcriture), opondo-os tanto aos saberes prticos como aprendizagem do saber ler e do saber escrever utilizando-se a pena e tinta. Essa lista definia um conjunto fechado e evidente de disciplinas, do qual a religio j no fazia parte desde a repblica, mas a moral estava bem definida como um saber que se escreve, isto , como uma cincia: A moral a cincia que nos ensina a nos conduzir bem na vida; nos ensina o que preciso fazer e o que preciso evitar e, como nossas obrigaes receberam o nome de deveres, a moral pode ser definida como a cincia dos deveres:

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    RevistadeEducaoPblica,Cuiab,v.16,n.32,p.13-33,set.-dez.2007

    Ilustrao 7 - Texto escrito em 1901 por Marie Combs, aluna de uma comu-nidade rural do Sul da Frana

    Foto: M.C. 2/10/01.

    Diramos, atualmente, que a moral uma cincia? Talvez no, mas ela foi consi-derada assim durante geraes. O que a linguagem comum designa com as palavras saber, conhecimento ou cincia tem muito a ver com a experincia usual da escolarizao.

    2 Saberes escolares e livrosComo se caracterizavam os saberes escolares? Eram aqueles cuja realidade e perma-

    nncia estavam objetivadas em livros, no sendo, porm, reduzidos aos textos escritos, j que tambm mobilizam imagens, mapas, esquemas, figuras, operaes. Apesar disso, sua aprendizagem ocorria atravs de marcas que os alunos podiam ler ou escrever em seus cadernos. Esses saberes foram elaborados para ser transmitidos por uma prtica pedaggica formalizada, coletiva e progressiva, dirigida a turmas com muitos alunos, nas quais era preciso manter todos os alunos ocupados ao mesmo tempo, propondo-lhes exerccios coletivos que evidenciassem suas aquisies e progressos individuais. Tais saberes se constituram, desse modo, em disciplinas escolares, apresentadas de modo formal, linear e desvinculadas de seus usos sociais, como bem demonstrou An-dr Chervel (referncia). Estabeleceram, ento, um currculo escolar fixo e exclusivo, dos quais, logicamente, nem todos os saberes podiam fazer parte. Eram as autoridades educativas que definiam aqueles cuja aprendizagem seria considerada necessria.

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    3 Saberes escolares e saberes empricos da prticaDe que maneira a instituio escolar considerava os saberes que permaneciam

    fora da escola? No sculo XIX, os antroplogos descreveram a existncia de saberes transmitidos de gerao a gerao em sociedades nas quais no havia escola ou que eram grafas. Por outro lado, os folcloristas recolheram em zonas rurais contos, canes e parlendas em diversos dialetos. Essa diviso entre o escrito e o oral con-tribuiu para reforar o modelo escolar. Os saberes das prticas tradicionais, trans-mitidos atravs do ver fazer e do ouvir dizer, foram considerados como algo que misturava crenas respeitveis e crenas absurdas, receitas suspeitas e saberes prticos teis. Contra esses conhecimentos arcaicos, a escola republicana devia instituir os da modernidade. Para as autoridades, esse objetivo no era de modo algum incompatvel com o fato de os alunos deverem continuar como camponeses ou artesos, exceto os poucos casos ligados mobilidade social republicana. Os sa-beres escolares, substituindo as prticas empricas, os dogmas religiosos, o folclore rural, as tradies opressivas deviam permitir o progresso dos indivduos e do povo inteiro e podiam ser lidos nos livros didticos e escritos nos cadernos escolares.

    Os cadernos conservados so testemunho desse processo de apropriao, que, de certo modo, arrancava os alunos da cultura oral e da prtica do passado e os in-seria numa prtica de trabalho com os cadernos (e no s nos cadernos). Esses suportes de escrita funcionavam como dispositivos atravs dos quais os educandos organizavam o mundo dos saberes, impondo-se como um marco de referncia no-discutvel, um inconsciente compartilhado por todos que freqentaram as mesmas instituies escolares. Compreendemos, portanto, o lugar marginal, in-certo e s vezes desvalorizado que era atribudo s disciplinas no-redutveis a essa apresentao livresca, s matrias que quase no requisitavam registros nos cadernos a educao fsica, a msica, a costura e os trabalhos manuais e que foram definidas, sobretudo, como prticas. Portanto, da surgiu uma hierarquia tcita das disciplinas no conjunto das aprendizagens, alm de uma separao entre exerccios rotineiros voltados consolidao de um certo saber fazer e outros destinados aquisio dos conhecimentos cientficos.

    A partir dessa diviso, gostaramos de colocar duas questes que considera-mos fundamentais ao esclarecimento do papel desempenhado pelos cadernos na construo de uma cultura escolar fundada sobre a escrita. Por um lado, para nos ajudar a pensar as diferenas entre o passado e o presente na escola, quais textos fi-guravam nos cadernos escolares no comeo da escola republicana? Por outro lado, para nos auxiliar a pensar o papel da lngua materna no processo da escolarizao, como pensar a articulao entre oralidade e escrita na sala de aula nesse perodo?

  • 22 CulturaEscolareFormaodeProfessores

    RevistadeEducaoPblica,Cuiab,v.16,n.32,p.13-33,set.-dez.2007

    III.Textoscopiados,ditadosouredigidosantesde1914

    Quem analisa os cadernos encontrados se surpreende com a quantidade de textos longos que os alunos comeavam a escrever a partir do chamado Cours Moyen (nove - dez anos de idade). Neles encontramos trs exerccios: a cpia, o ditado e a composio (ou redao). Para um olhar contemporneo, as finali-dades de cada uma dessas atividades so muito diferentes: a cpia servia para o aluno memorizar um contedo (por exemplo, um resumo de histria, uma regra de gramtica); o ditado era um exerccio de ortografia; por fim, a composio ser-via para que o aluno mostrasse sua capacidade de compor, sozinho, um texto, por exemplo, uma narrao e/ou uma descrio. No sculo XIX, no entanto, esses trs exerccios constituam trs graus de uma mesma aprendizagem: o saber escrever textos.

    1 Textos copiados Para encontrar alguns exemplos de cpia, abrimos primeiramente o caderno

    de Emile Ract:

    Ilustrao 8 Caderno escolar de Emile Ract. Maio de 1898.

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    A cada dois dias, o aluno copiava, no caderno, um texto de moral ou de ins-truo cvica, s vezes breve (de cinco a dez linhas), s vezes longo (uma pgina ou mais). Copiava tambm outros textos em outros momentos da aula, correspon-dentes s demais matrias ensinadas: histria, economia domstica, agricultura (a variedade de reas revelava-se em ttulos como, por exemplo, O que devemos fazer com os animais domsticos, O cavalo, dentre outros). Apareciam ainda textos de autores reconhecidos (um texto de Buffon sobre o avestruz, um texto de Augustin Thierry descrevendo um tipo de comida dos Gauleses) os quais, porm, eram mui-to menos freqentes que os textos annimos constitutivos de resumos de lies que deviam ser aprendidas.

    Outro exemplo de referncia sobre os exerccios de cpia o caderno de Marie Combs, consagrado moral, o qual tem cerca de cem pginas. A menina copiava dois ou trs textos por semana, que diziam respeito aos diversos captulos do ma-nual de onde eram extrados: deveres para com a famlia, deveres na escola, deveres para com a ptria etc.

    Em decorrncia do exerccio, o aluno podia ser interrogado sobre o contedo dos textos copiados, embora a finalidade da prtica ter sido tambm a apren-dizagem do saber escrever sem erros ortogrficos (?) e sem esquecer nenhuma palavra.

    2 Textos ditados Lucien Boucherie era um aluno de dez anos que morava numa cidadezinha do

    Sudoeste da Frana. Praticamente todos os dias seu professor ditava um texto, cuja extenso era de uma pgina ou mais e cujo contedo se relacionava com geografia, histria ou cincias naturais e tambm com a instruo cvica, a instruo moral e patritica (seus ttulos, por exemplo, eram: As obrigaes profissionais, A excita-o do combate, Sobre a clera, A tempestade, A Revoluo Francesa etc.). Trata-va-se de textos annimos ou de autores cannicos: por exemplo, na pgina ditada de Michelet, o aluno aprendia que a Revoluo o acontecimento fundador da histria da Frana: Ao convidar o campons aquisio dos bens nacionais, ao vincul-lo terra, a Revoluo de 1789 passou a ser slida, durvel, eterna.

    como se a finalidade do ditado no fosse (ou no fosse exclusivamente) o cuidado com a grafia, mas constitusse tambm a iniciao numa cultura escrita ao mesmo tempo instrutiva e literria. Quer o aluno copiasse um texto de um livro, quer escrevesse o que lhe ditasse o professor, tratava-se sempre de guardar na memria o contedo do texto, respeitando sua forma literal, para que se familia-rizasse com a sintaxe e o lxico francs. Essa escrita encontrava-se, porm, muito distanciada da lngua oral, numa poca em que a a comunicao dos alunos ainda se fazia, muitas vezes, atravs de um dialeto.

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    3 Textos redigidosOs exerccios que levavam o aluno a redigir inscreviam-se na continuidade

    desses modelos. Ele deveria faz-lo apoiando-se em um texto que era, ao mesmo tempo, repertrio de informaes e modelo de estilo. O tema a ser tratado forne-cia uma trama a ser desenvolvida pelo aprendiz.

    Tomemos alguns exemplos daquilo que se chamava, na poca, redao, com-posio ou tarefa de estilo. Citamos aqui quatro conjuntos de temas: 1: Tarefa de redao: Necessidade do trabalho. O trabalho manual e o trabalho intelectual. Dignidade do trabalho de todos os tipos. 2: Tarefa de estilo: A bandeira da Fran-a. Os emblemas de nosso pas. A bandeira tricolor: sua origem, sua histria. Os sentimentos que inspira. 3: Tarefa de estilo: Uma guerra desastrosa. Dizer quais so as guerras que a Frana empreendeu sob o reinado de Luis XV. Qual dessas guerras foi desastrosa para a Frana e quais foram suas conseqncias. 4: Tarefa de estilo: A imprensa. Dizer em que poca se deu a descoberta da imprensa e quais foram as suas vantagens para os homens.

    Em alguns casos, tratava-se apenas de recitar por escrito a lio que os alu-nos conheciam de cor. Em outros, o momento de escrita acontecia precedia uma aula durante a qual o professor fornecia os dados necessrios para que pudessem memorizar a matria e escrever em bom francs suas composies. Ao lermos os cadernos, geralmente fcil distinguir, de incio, as duas situaes: quando o alu-no devia pr, por ele mesmo, as informaes ouvidas, mas no lidas, apareciam indicadores de oralidade, visveis na redao final, na qual freqentemente ignora-va as vrgulas, repetia as mesmas palavras e no utilizava pronomes, demonstrando que ele no sabia bem como articular as frases.

    As dificuldades relativas sintaxe marcavam a lenta e progressiva apropriao de uma lngua escrita preparada para a memorizao de textos copiados ou escritos sob a forma de ditado. Para os professores era evidente que a cpia, o ditado, a lio recitada por escrito ou parafraseada a partir do livro eram vrias etapas que preparavam a etapa final, a mais difcil e mais paradoxal: encontrar, a partir da ora-lidade escolar, as formas sintticas especficas da escrita. Isso explica por que, nessa primeira fase, os contedos tratados na cpia, no ditado ou na composio de um texto escrito ou de uma lio oral eram os mesmos, tinham a ver com todas as dis-ciplinas discursivas e instrutivas da escola: moral, histria, geografia e cincias.

    Desse modo, ao pedir uma restituio escrita da lio ensinada, o professor propunha um exerccio prximo da recitao oral qual os alunos estavam habi-tuados desde o incio de sua escolarizao, mas podia controlar, ao mesmo tempo, as aquisies do grupo todo, enquanto que oralmente s era possvel interrog-los um a um. Tal possibilidade era essencial em todas as escolas rurais onde vrias s-ries funcionavam em paralelo, dentro da mesma sala de aula: enquanto um grupo escrevia em silncio, o professor ficava livre para dar aula aos menos avanados. por isso que os textos escritos nos cadernos no nos falam de todo o trabalho es-

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    colar. Devem ser interpretados tambm em relao aos momentos da prtica oral, que neles no deixaram nenhuma marca. Da surge outra pergunta: como se fazia e como se faz, atualmente, a articulao entre oralidade e escrita na sala de aula?

    IV.Oralidadeeescritaescolares:continuidadeoudescontinuidade?

    1 As finalidades do ensino de lngua antes e depois de 1970Graas lingstica, sabemos que todas as lnguas, orais e, em alguns casos,

    tambm escritas, desempenham dois papis: expressar e comunicar. Na Frana, a partir dos anos de 1970, os textos oficiais passaram a definir as finalidades do ensino como a aprendizagem dessas duas funes: As finalidades do ensino do francs [so] dar a todas as crianas e adolescentes o domnio da expresso oral e escrita na lngua utilizada atualmente e lhes permitir, desse modo, a comunicao (referncia).

    Essa afirmao, que insiste na (estreita ligao?) entre o oral e o escrito, hoje em dia um lugar comum quase no mais enunciado. Certamente a escrita recorre a um cdigo especfico, cujo funcionamento adquirido atravs de diver-sas etapas, como demonstrado pelos psiclogos. Tambm certo que as situaes de interlocuo face a face se diferenciam das situaes de leitura e escrita que separam o autor dos destinatrios. Entretanto, entre uma lngua oral e a prpria lngua escrita existe mais proximidade que entre uma lngua materna e uma lngua estrangeira. Conseqentemente, parece agora impossvel fazer com que os alunos entrem no domnio do escrito sem se apoiar no que eles sabem e querem dizer.

    Essas evidncias so recentes e muito distanciadas das concepes que prevale-ciam no comeo do sculo XX. A escrita, como mostram os cadernos, no se apia nem se apoiava sobre a palavra viva da lngua cotidiana. Ao contrrio, sobre o escrito que se apia a oralidade escolar, que por sua vez no a das conversaes.

    2 A evoluo da redao: como escrever a experincia?Tomemos o exemplo da redao e a evoluo de seus contedos ao longo

    dessa mesma poca. Ao lado dos textos nos quais o aluno devia restituir os conhe-cimentos que havia adquirido, apareceram outros temas de que ele deveria tratar, apoiando-se em saberes relativos a sua experincia. Os ttulos desses assuntos ado-tavam formulaes que implicavam um olhar subjetivo: voc foi a..., escreva a um amigo para lhe contar..., aconteceu que voc... etc.

    Mas os temas que podiam ser objetos de escrita na sala de aula no eram numerosos, sendo necessrio evitar todos os que pudessem desagradar s famlias ou os que levariam os alunos a apresentar condutas ou opinies imprprias para a neutralidade da instituio. Assim, nem a religio, nem a poltica, nem os testemu-nhos mais pessoais sobre a vida e os costumes entravam no repertrio dos tpicos aceitveis. Era impossvel, por exemplo, pedir s crianas que descrevessem uma

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    vida familiar em que sua experincia comum fosse, muitas vezes, da me que batia nos filhos, do pai que chegava bbado em casa etc. O possvel era falar dos alunos na escola (os companheiros, os jogos) ou da natureza. Esses temas no pareciam dizer respeito aos saberes da escrita, mas sim aos saberes da experincia. Todos os alunos, bons ou fracos, teriam ento algo a dizer, j que lhes bastaria apoiar em suas vivncias para encontrar o contedo em sua lngua oral cotidiana, para express-las e comunic-las, transformando-as em textos escolares. Tal concepo, que foi defendida por Clestin Freinet (referncia), atravs do conceito de texto livre, contraria totalmente a pedagogia da escrita tal como aparece nos cadernos escolares que passaremos a apresentar.

    Primeiro exemplo: antes de 1914O que encontramos nos cadernos antes da primeira Guerra Mundial? De fato,

    a maior parte dos temas que envolviam o aluno como redator s o fazia de maneira formal: Conte, sem mencionar o autor, um ato de egosmo que tenha presencia-do (LB, ago. 1892); Conte um ato de caridade do qual tenha sido testemunha (LB, 29 jul. l893); Jules escreve a seu irmo que entrou no exrcito. O que diz a ele?; Faa o retrato de uma criana bem-educada ou de um bom aluno que conhea (LB, 9 maio 1895).

    Em todas essas passagens, a instruo conte foi imediatamente interpretada como imagine ou invente. Lendo as observaes dos professores, percebemos claramente que o objetivo no era a expresso singular ou o relato de uma ex-perincia. O aluno devia apenas mostrar que podia enunciar um texto na primei-ra pessoa, para ilustrar uma verdade ou um valor admitido por todos na escola (condenao do vcio e elogio da virtude, relaes fraternas ideais, retrato da boa conduta escolar etc.). O eu da escrita no era de modo algum o do testemunho, mas um eu universal, abstrato. Assim, a escrita de experincias era tratada sob o modelo dos saberes escolares habituais, como um relato histrico ou literrio.

    Segundo exemplo: por volta de 1930 As coisas mudaram depois da primeira Guerra mundial, talvez pela influncia

    das novas pedagogias. Os professores sabiam vincular melhor a escrita e a experi-ncia, o oral e o escrito. Por exemplo, eis um tema dado numa escola de meninas: Voc observou uma mame guiando os primeiros passos de um beb. Conte, descrevendo a me. Mostre as atitudes da me e do beb: gestos, palavras. Faa seus comentrios (referncia).

    Do mesmo modo, em 1930, todos os alunos de uma turma tinham visto, pela primeira vez, um avio sobrevoando o povoado, e a professora aproveitou a oca-sio para transformar o acontecimento em exerccio. Uma menina de doze anos, Denise, contou essa experincia real, que misturava recordao (ela estava no jardim da casa, com sua me), a descrio daquilo que viu (Na longa fuselagem

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    distingo muito bem as pessoas que esto nas janelas do avio, vejo as rodas porque no est muito alto) e a opinio pessoal (ela conclui: Eu no gostaria de viajar de avio). Em seu caderno, podemos ler as expresses e o lxico que utilizou (rudo de trovo, asas, fuselagem, rodas, a hlice d voltas como as ps de um moinho, rapidez prodigiosa, um grande pssaro com as asas rgidas). Essas palavras ou expresses foram escritas durante o trabalho desenvolvido pela professora com toda a turma.

    Podemos, ento, considerar essa ajuda como um molde limitador da expres-so pessoal do aluno e que o levava a uma escrita estereotipada? Ou, ao contr-rio, devemos consider-la um recurso necessrio, sem o qual muitas crianas no escreveriam quase nada? Nesse caso encontramos algo excepcional: a professora ditou vrias concluses, copiadas por todos os alunos, para mostrar que existem diversos pontos de vista aceitveis: [Primeiro] Eu no gostaria de andar de avio porque os jornais dizem que muitos se incendeiam, que outros caem na gua ou se destroam no cho porque no tm mais gasolina. [Segundo] Tenho inveja dos que esto num avio. Devem se deleitar com um belo espetculo e, alm dis-so, podem ir muito longe e conhecer muitos pases. Mas essa mquina deve ser terrvel durante a guerra! [Terceiro] Admiro esses homens que o grande pssaro leva ao desconhecido.

    Essa diversidade de afirmaes no seria imaginvel numa gerao anterior, quando a escola ensinava claramente o que cada um deveria aprovar ou desa-provar. Pelo contrrio, depois da primeira Guerra Mundial, os modelos literrios passaram a oferecer um leque maior de reaes, sentimentos ou opinies diante de um mesmo acontecimento.

    Contudo, o status escolar do relato de experincias no se confundia com o testemunho. Os extratos literrios serviam como referncia para ajudar os alunos a contar e descrever cenas realistas, expressar desejos, sentimentos e julgamentos singulares, seno pessoais. Os bons alunos geralmente eram os que aderiam to bem aos modelos escolares, que suas prprias expresses se conformavam perfeita-mente s esperadas pela instituio.

    Terceiro exemplo: por volta de 1960Em 1960, esse modelo ainda era dominante. Jean-Paul tinha sete anos quando

    descreveu em dez linhas um piquenique familiar com o ttulo s margens do rio no vero: Hoje domingo e toda a famlia vai passear s margens do rio. Ma-me remenda uma toalha, o beb puxa a linha do carretel. Papai pesca, um peixe morde a isca, papai logo joga a rede. Monique olha o peixe que tirou da cesta e o admira. Logo faro um piquenique beira dgua. Trouxeram uma grande cesta. Que lindo dia tiveram as crianas!:

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    Ilustrao 9 Exerccio de escrita. Junho de 1962.Foto: JPT, 23/06/1962.

    Lendo esse texto, poderamos pensar que o relato de uma experincia pes-soal. No o caso. De fato, a professora colocou sobre o quadro uma grande imagem representando um piquenique. Depois de um momento de oralidade, no qual todos os alunos falaram, descreveram e comentaram a figura, a mestra pediu que formulassem oralmente frases corretas, aps o que cada um fez um rascunho de seu texto completo. Jean-Paul teve sete erros grficos, mas compreendeu per-feitamente as regras da composio, entendida como um gnero literrio no qual o aluno deveria escrever a cena como se ele mesmo fosse um dos protagonistas. No faltou nada nesse texto para que se aparentasse ao relato de uma experincia pessoal, nem mesmo o nome atribudo menina (o mesmo da irm de Jean-Paul), nem a concluso sob a forma de exclamao de jbilo.

    3 Oralidade escolar e aquisio de conhecimentos na primeira srie graas ao fichrio no qual uma professora anotou seu preparo de aulas que

    podemos compreender como essa aprendizagem da norma escrita comeava mui-to antes que os alunos fossem capazes de ler e escrever. O documento, datado de l962, refere-se s atividades planejadas para uma turma com dois nveis, corres-pondentes aos dois primeiros anos da escola primria, denominados Cours prpa-ratoire - CP e Cours lementaire - CE:

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    Ilustrao 10 Fichrio de uma professora. Novembro de 1962.

    Segundo comentou a professora, ela trabalhava ento numa escola de perfil muito popular na periferia parisiense. As crianas chegavam ao primeiro ano sem saber ma-nusear um livro, sem saber segurar o lpis, nem tomar a palavra na sala de aula. Em seu plano de trabalho para as quatro semanas do ms de novembro (na Frana, o segundo ms de aulas do ano), ela colocou, como podemos ver, as atividades coletivas (por exemplo A famlia,A me) e as especficas de cada nvel (leitura, escrita e clculo), as nicas que lhe exigiam disponibilidade para metade da turma. A coluna ento dividi-da em duas partes: esquerda, as atividades do CP e, direita, as atividades do CE.

    O programa comum para os dois nveis, na segunda semana, era o seguinte: moral (a me), vocabulrio (a chuva), gramtica (o feminino de palavras em eur [chanteur-chanteuse; voleur-voleuse, mas tambm instituteur-institutrice etc.]), conjugao (ver-bo chanter no presente), recitao (uma poesia sobre o outono), histria (a civilizao da Glia romana), geografia (o outono e o inverno), observao cientfica (o leo e a gua), desenho ou trabalho manual (colorir ou recortar rvores sob a chuva).

    Em novembro, nenhum aluno do primeiro ano sabia ler ou sequer decifrar (o qu?). No entanto, graas existncia de dois nveis, esses alunos receberam uma ins-truo oral que poderamos chamar de intensiva, dividida segundo as disciplinas escolares. Por isso, no deveriam escrever depois de cada lio, tal como faziam os alunos do segundo ano. No entanto, ao olhar os cadernos, poderamos pensar que eles passaram todo o tempo decifrando, traando letras, copiando palavras e contando, como pudemos ver no caderno de 1960:

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    Ilustrao 11 Caderno escolar, 1960.Foto: MT, p. 2

    No entanto, ao lado dos contedos abordados, esses alunos ainda no-alfabetiza-dos observaram e descreveram ilustraes em histria e geografia, escutaram leituras e s vezes memorizaram vrias palavras desconhecidas e vrios saberes novos. A pro-fessora comeou sua carreira antes da segunda Guerra Mundial, e toda sua formao levou-a a acreditar que a escola devia fazer com que as crianas entrassem na cultura escrita dos livros. Uma certa concepo de articulao oral-escrito, tal como foi con-cebida ao final do sculo XIX, ainda visvel nesse caso. Essa iniciao, sistemtica e muito diretiva, no deixa em absoluto espao para a expresso e a comunicao oral e escrita no sentido definido pelas instrues oficiais dez anos depois.

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    Concluso:culturaescrita/culturaoralnaescola

    O que devemos entender como cultura escrita? Ao fim desse rpido percurso pelos cadernos franceses, preciso definir mais rigorosamente o que chamamos cultura oral, cultura escrita e cultura escolar.

    Primeira observao: Os contedos da cultura escolar transformam-se ao longo do tempo, o que refletiu na modificao da hierarquia dos saberes e das prticas de escrita. No fcil apreender essa evoluo nos textos nem nos programas oficiais, mas ela visvel nos cadernos dos alunos. Algumas matrias esto presentes nesses materiais dos anos 1900: a moral, a histria, a geografia, as cincias. Aparecem em textos copiados, ditados ou redigidos. Depois da primeira Guerra Mundial, com o surgimento de uma aprendizagem focada na lngua francesa, os exerccios de gramtica e de conjugao ocuparam um lugar cada vez maior nas prticas escola-res. As cpias ou os ditados de composies instrutivas desapareceram, e os textos lidos ou ditados eram descries realistas ou relatos de experincias extrados de produes literrias. Os temas sobre os quais os alunos deveriam escrever seguiam a mesma evoluo. Atravs dos textos que precisavam ser lidos e escritos, a escola primria buscava fazer com que as crianas do povo adquirissem uma cultura geral mais literria e no s saberes instrutivos bem memorizados.

    No entanto e essa a segunda observao , se essa importante evoluo das prticas de escrita modificou os contedos ensinados, ela no transformou a rela-o da escola primria com a cultura escrita. A lngua dos saberes de escrita no servia prioritariamente para a expresso nem para a comunicao, mas sim para a representao do mundo. Essa ltima funo eliminar efetuava-se, numa primeira etapa, atravs das disciplinas cientficas. Era preciso compreend-las e aprend-las. Efetivava-se tambm, numa segunda etapa, atravs das fices literrias que enunciavam os valores e o sentido das experincias, das relaes e das condutas. Era preciso compreend-las, porm, igualmente aos conhecimentos cientficos, era preciso aprend-las, j que no haviam sido adquiridas pelas crianas atravs de suas experincias familiares, tal como ocorria nas famlias burguesas cultas.

    A oralidade escolar tratava de fazer com que os alunos das escolas pblicas escutassem a lngua escrita que no conheciam, os contedos dos saberes e as for-mas da referida modalidade que por eles eram ignoradas. A leitura em voz alta era um dispositivo essencial desse aprendizado. No podemos, entretanto, considerar como parte da cultura oral tudo o que tem a ver com a fala efetiva. Existem formas especficas da oralidade que pertencem essencialmente cultura escrita como o caso da que ocorre em mbito acadmico, onde a conferncia, a aula expositiva, os seminrios, os colquios s fazem sentido com referncia aos livros, aos artigos e aos textos de que falam. Mas esse tambm o caso da escola popular, embora as pedagogias da expresso e da comunicao nos tenham levado a esquecer ou subestimar esse dado.

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    Terceira observao: preciso que indaguemos sobre o desaparecimento desse modelo nos anos de 1960, numa conjuntura em que todo o mundo ocidental se urbanizou, a escolaridade se prolongou para todos e a escrita, onipresente no mun-do social (como os livros de bolso, os jornais, as revistas), competiu com as novas tecnologias da comunicao udio-visual. Com a televiso, a escrita deixou de ter o monoplio da transmisso dos saberes e das fices. Essa nova cultura cidad, udio-visual, desacreditou, se no o mundo dos saberes, pelo menos as modalida-des que a escola do povo tinha inventado para transmiti-los.

    Entretanto ltima observao , a escola continua tendo por misso fazer com que os alunos entrem na escrita e ensin-los a organizar o mundo dos saberes, graas escrita. Em que se convertero os cadernos escolares, agora que os teclados e as telas penetram, de forma mais ou menos rpida, nas escolas do planeta? Que pedagogia popular podero conceber os docentes em tempos de Internet? A fron-teira que opunha, ao final do sculo XIX, a cultura oral das sociedades camponesas arcaicas e a cultura escrita das sociedades urbanas modernas esto, mais uma vez, em processo de deslocamento. talvez a experincia viva dessa mudana cultural, cujas conseqncias ainda no podemos prever, que torna urgente uma certa re-flexo sobre a histria das relaes entre as culturas escritas e as culturas escolares nos diferentes pases. Apesar de sua humildade, ou, talvez, graas a ela, os cadernos escolares ainda tm muito a nos ensinar.

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    Recebimentoem: 12/03/2007

    Aceiteem: 18/05/2007

  • Revista de Educao Pblica Cuiab v. 16 n. 32 set.-dez. 2007p. 35-50

    Relaes entre espaos e pontos no incioda alfabetizao

    DagobertoBuimArena1

    1 Dagoberto Buim ARENA. UNESP de Marlia. Professor Assistente Doutor do Departamento de Didtica e professor do Programa de Ps-Graduao em Educao

    Publicaes: Nem hbito, nem gosto, nem prazer. 2003. O astro Ansio Teixeira na galxia de Gutenberg. 2004. Palavras grvidas e nascimentos de significados: a linguagem na escola 2006.

    End. Rua Guinetti Grassi, 255, Ap. 133. 17527.432. Marlia-SP. [email protected]

    Resumo

    Este artigo, apropriando-se dos procedi-mentos metodolgicos da micrognese, inves-tiga, em uma narrativa escrita por uma criana no estgio inicial do processo de alfabetizao, a ausncia de espaos indicadores de pargrafo no incio das linhas e a sua presena no final, acom-panhados ou no de sinal indicativo de ponto, e examina, ainda, a transgresso ou no da mar-ca vertical da margem esquerda. As concluses apontam para hipteses sobre as operaes utili-zadas pela criana para lidar com a tenso entre distanciar e manter prximos elementos consti-tutivos da narrativa, atravs de decises singu-lares. Tais movimentos, por parecerem bvios, escondem-se do olhar investigativo de pesquisa-dores e docentes.

    Palavras-chave: Alfabetizao. Pontuao. Pa-ragrafao.

    Abstract

    The school copybooks are pedagogical ma-terials little used in the historical research, due to their extreme fragility. They provide, however, irreplaceable testimonies regarding the students pedagogical performance and written exercises done in the classroom context. Based on the examples occurred in the period of 1880-1970, we aimed at observing how the school copy-books reveal the written culture marked by the republican school through the canonic exercises of handwriting, copy, dictation and text produc-tion. We also searched for identify the evolution of this reference culture post First World War. We still interrogated ourselves regarding the articulations between oral school and written culture by means of comparing students school copybooks with a class preparation copybook from a school teacher of sixties.

    Keywords: Iteracy. Punctuation. Arrangements in paragraphs.

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    Introduo

    Em 2005, professores da UNESP, campus de Marlia, com seus projetos finan-ciados pela Reitoria/FUNDUNESP/Ncleo de Ensino, decidiram partilhar suas aes com uma escola da rede municipal local, prxima da universidade. Instalada no incio do ano, em prdio recm-construdo, o estabelecimento de ensino aco-lheu a oferta de um trabalho conjunto, embora, como apontarei adiante, em aes dessa natureza as negociaes sejam inevitveis e nem sempre o planejado por um segmento pode ser implementado sem alteraes, devido natureza diversa das instituies.

    Organizados e combinados para que fossem realizados quinzenalmente na es-cola, os encontros entre os professores da universidade, os alunos bolsistas e a equi-pe escolar teriam como objetivos tematizar as prticas docentes, discutir a colabo-rao desses estudantes e desencadear as aes contidas nos projetos apresentados ao Ncleo de Ensino. Porm, nas primeiras reunies, os professores entenderam que no deveriam definir, antecipadamente, os temas a serem desenvolvidos nas salas de aula, porque a escola e a secretaria municipal j os haviam estabelecido desde o planejamento do incio do ano letivo.

    Pela estreita interao com os profissionais da escola, foi possvel aos demais evolvidos compreender as orientaes metodolgicas da secretaria, o sistema de acompanhamento do trabalho docente e os critrios de avaliao de alunos, deter-minantes dos procedimentos didticos. Em relao didtica da lngua materna, os professores, para atender s recomendaes previstas, deviam oferecer aos alu-nos a oportunidade de escrever, por semana, dois textos de qualquer gnero e cujos registros seriam remetidos para a coordenao da escola e para a coordenao geral do municpio.

    O intuito, segundo depoimentos verbais coletados, seria provocar a necessida-de de se ensinar a lngua materna como prtica discursiva. Concludos os trabalhos no final de 2005, foi possvel coletar dados a respeito do desempenho de crianas em processo de alfabetizao e de leitura, do ponto de vista pedaggico, cujos comentrios sero feitos adiante.

    Ensinar a escrever, colocando as crianas na situao de leitores e escreventes de textos, exigiria uma preparao mais aprofundada sobre aspectos importantes da lingstica textual, das estruturas dos gneros, das metodologias especficas e, sobretudo, da concepo de linguagem que v o processo de aprender a ler e a escrever como sendo de elaborao social, cultural e histrica nas relaes com o outro. Como esse outro seria, na sala de aula, o professor, dele se esperaria o domnio ou o desejo de compreender a natureza da lngua e seus usos e, ainda, as condutas metodologicamente conseqentes para assumir a posio socialmente definida de ensinar o aprendiz.

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    Sem um bom domnio de seu prprio fazer, restaria ao docente utilizar as informaes e as experincias que tm organizadas para poder empreender uma atividade que almeja ser plena de significao tanto para quem ensina, quanto para quem aprende. Como a situao de sala de aula e o processo de formao no contemplam a possibilidade de lidar com atividades que tenham os seus objetivos claramente definidos, resta ao professor oferecer aos alunos textos para leitura e provocar situaes de escrita, sempre no limite de seu conhecimento, sem ter cla-reza do que cada educando, em seu movimento singular e idiossincrtico, quer se apropriar.

    Desse modo, parece possvel afirmar que as investigaes sobre os dilogos ou as condutas de sala de aula indicam situaes nas quais os professores nem sempre tm conhecimento terico acerca do que ensinam, mas os alunos sabem buscar as informaes de que precisam para avanar no domnio da leitura e da escrita, desde que a oferta de dados seja generosa. Entre essas situaes, a compreenso dos equvocos da criana como indicadores ou apontamentos no processo de escrever textos ainda necessita de avano, e, para que isso acontea, uma definio clara da concepo de linguagem ser decisiva. Sua compreenso como uma forma padro-nizada e universal, predominantemente pela relao grafo-fnica, tem desenvol-vido, entre os docentes, a segurana em categorizar suas etapas de aprendizagem, conforme proposies de Ferreiro e Teberosky (1986). As orientaes oficiais, de um lado, recomendam a oferta de textos a todos os alunos para a leitura e a produ-o textual escrita, porm, de outro lado e ao mesmo tempo, solicitam a categori-zao das crianas, a fim de se quantificar o processo avaliativo, tambm de acordo com os princpios defendidos por Ferreiro e Teberosky (1986).

    Formados em mltiplos cursos de formao, contaminados pela prpria po-ltica oficial do pas, e mergulhados na cultura escolar construtivista dos ltimos exatos vinte anos no Estado de So Paulo, os docentes dispem desses instrumen-tos de avaliao utilizados para verificar os equvocos praticados pelas crianas, ou os chamados erros construtivos. A contradio se estabelece na medida em que solicitada a prtica textual, sem que se conheam os aspectos mltiplos que esse processo ininterrupto, instvel e singular pode desencadear.

    Nos ltimos tempos, ganharam mais impacto as noes de coeso e coerncia, aliadas s configuraes da macroestrutura textual, por terem sido incorporadas nos cursos de formao e nos documentos oficiais de avaliao de redaes em exames regionais ou nacionais. Outros aspectos de construo textual tambm comeam a receber ateno, entre eles, a pontuao e a paragrafao.

    Embora estejam presentes em recomendaes didticas, a compreenso dos indicadores das aes das crianas durante o processo de aprender ainda inci-piente do ponto de vista da lingstica da enunciao, porque, em obedincia lgica j aqui comentada, a proposta de escrita avaliada pelo velho modo de olhar: a pontuao vista como marcas no papel, claramente concretas, e a para-

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    grafao, como o uso do espao em branco antes da primeira letra maiscula da linha. Estudos recentes de Cardoso (2002) abordam com profundidade hipteses a respeito da pontuao nas produes dos alfabetizandos que contribuem para a anlise dos procedimentos utilizados para a construo do sistema de ruptura textual, entre eles, o uso dos espaos em branco para indicar blocos de significado organizadores dos enunciados.

    Para compreender esse processo idiossincrtico e singular de aprender, seria necessrio recorrer aos estudos de Ges (2000), sobre os procedimentos da anlise microgentica nos estudos de linguagem, e aos de Abaurre (1996) e de Perroni (1996), sobre o paradigma indicirio.

    Portanto, este trabalho primeiramente dever discutir esses procedimentos de anlise, para em seguida, dirigido por esses olhares investigativos de busca do de-talhe, do singular, analisar, hipoteticamente, aes de um aluno de primeira srie ao reproduzir uma das verses da histria do lobo e dos trs porquinhos. O foco de ateno sero as marcas de ruptura do texto, em especial a utilizao dos espaos no final dos enunciados, e sua conexo com outras marcas, principalmente com a pontuao e as conjunes.

    1.Aanlisemicrogentica

    Ges (2000) destaca a importncia de uma metodologia de anlise conhe-cida entre os pesquisadores como anlise microgentica, vinculada psicologia histrico-cultural vigostkyana, mas estendida aos estudos educativos. As conclu-ses da pesquisadora, em artigo que procura discutir o paradigma indicirio e essa categoria de investigao, revelam que

    [...] a caracterizao mais interessante da anlise microgentica est numa forma de conhecer que orientada para mincias, detalhes e ocorrncias residuais, como indcios, pistas, signos de aspectos relevantes de um pro-cesso em curso; que elege episdios tpicos ou atpicos [no apenas situa-es prototpicas] que permitem interpretar o fenmeno de interesse; que centrada na intersubjetividade e no funcionamento enunciativo-discursivo dos sujeitos; e que se guia por uma viso indicial e interpretativo-conjetural (p. 21).

    As observaes apresentadas pela autora merecem ateno porque apontam para caminhos pouco trilhados na pesquisa acadmica, ou, no caso da rea em que se inscreve este trabalho, nos cursos de formao docente e nos materiais de orientao destinados a esses professores. Tm-se, aqui, de algum modo, ferra-mentas para lidar com as contradies apontadas no corpo desta investigao a respeito das orientaes e das avaliaes no trato textual. Ges tambm afirma que o ato de conhecer, de saber, portanto, de pesquisar ou de analisar as escritas

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    infantis deve ser orientado para o detalhe de uma criana nica envolvida em um processo nico e em episdios tambm nicos, necessrios compreenso do as-pecto que se quer conhecer melhor. Essa abordagem, todavia, s poderia se apoiar nas concepes de linguagem e de aprendizagem cujas matrizes se encontram na escola de Bakhtin (1895-1975) e de Vigostky (1869-1934), centradas no processo enunciativo-discursivo da linguagem e na intersubjetividade, ambos constituintes do sujeito em suas relaes sociais, culturais e histricas.

    Amparado por esse referencial terico, um texto escrito por uma criana, cons-tituda a partir das relaes culturais, sociais e histricas mediadas pelo professor que a ensina, poderia ser analisado conforme o interesse do analista. Poderia ser examinado com o olhar orientado para a compreenso do processo de pontuao ou de paragrafao; ou ser investigado no interior da situao criada e do episdio recortado para anlise; ou, ainda, ser observado pelos sinais, explcitos ou no, indicadores do processo de apropriao dos modos de escrever reveladores de rela-es intersubjetivas e intrasubjetivas, peculiares daquela criana, naquele episdio. Esses procedimentos no poderiam ser adotados no interior de um conjunto de orientaes em que so privilegiadas, predominantemente, as categorias previa-mente definidas, universais, centradas na palavra, pelas quais seriam consideradas as aquisies subjetivas na relao com o objeto em situao no enunciativa. Nesta perspectiva, como afirma Ges (2000, p. 12), no que concerne ao mtodo, a investigao no pode descolar-se de uma viso sociogentica, histrico-cultural e semitica do ser humano, sendo que as proposies metodolgicas devem ser interdependentes e congruentes teoricamente.

    2.Aobservaonaturalsticaeoparadigmaindicirio

    Nos anos iniciais da dcada de noventa do sculo XX, um grupo de pesquisa-dores do Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) desenvolveu e publicou investigaes apoiadas em dois princpios bsicos da metodologia de pesquisa preocupada com detalhes singulares produzidos pelos atos dos sujeitos. O primeiro apia-se na coleta de dados conhe-cida como observao naturalstica, atravs da qual dados de linguagem so anali-sados com base em escritas realizadas em situaes normais e naturais de trabalho pedaggico, cuja condio de produo tambm descrita pelo pesquisador, que poder ou no a ter acompanhado. Para os defensores dessa conduta metodolgi-ca, cujas razes se encontram na dcada de setenta dos anos 1900, so flagrantes suas vantagens em relao metodologia de natureza experimental, pois a quali-dade vem substituir a quantidade, j que no se trata de provocar respostas, mas de deixar falar a criana (PERRONI, 1996, p. 22). Visto por uma outra tica, o da construo de categorias, Perroni (1996, p. 22) considera que ela

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    [...] permite tambm que as categorias, antes impostas, emerjam dos dados. Ao recuperar a histria do dado, por meio da descrio de suas condies de produo, podem permitir identificar a constituio histrica do sentido. O objeto de estudo a lngua em atividade e a relao da criana com ela [...]. Por outro lado, o no-controle de variveis pode permitir uma aproximao maior da naturalidade, reconhecendo que o dado o que acontece, no o que deveria acontecer, nem o que est faltando.

    Essas observaes sobre o dado naturalstico comportam a possibilidade de se ousar analisar as informaes produzidas durante o prprio uso da linguagem, em respeito ao fluxo e dinamismo da enunciao. A anlise microgentica, ao encontrar esses ele-mentos, podem buscar o detalhe nos vos da relao entre a criana e sua manifestao escrita e trazer, para a compreenso deles, as informaes produzidas no conjunto dessas relaes humanas, sociais e histricas.

    No interior desse mesmo conjunto de princpios metodolgicos, encontra-se o segundo princpio: o paradigma indicirio. Trazido discusso pelo grupo do IEL da UNICAMP, tem sua matriz nas pesquisas, segundo Abaurre (1996), do historiador Carlo Ginsburg. Ao discutir esse elemento nos estudos de linguagem, essa pesquisa-dora procura opor uma conduta de de valorizao do episdico, residual, singular e idiossincrtico a dados coletados experimentalmente, com base em mtodo clnico e com categorias previamente construdas, que excluem os dados no confirmados re-petidamente, como apontam as pesquisas iniciais de Ferreiro (1986). Enfaticamente, aquela mesma autora defende essa posio, ao afirmar que [...] em todas as sees deste trabalho, argumentei, de forma s vezes bastante apaixonada, em favor da lin-guagem preocupada com a natureza da relao sujeito/linguagem, um estatuto terico aos eventos singulares, aos dados episdicos, aos comportamentos idiossincrticos (p. 157).

    Ao se referir contribuio de Ginsburg, acentua ser ele

    [...] um historiador moderno, defensor convincente da necessidade de desen-volvimento de um paradigma indicirio, assentado no detalhe, aquilo que apa-rentemente carece de relevncia, mas que , na verdade, muitas vezes o elemen-to fundamental para se atingir o grau de adequao epistemologicamente mais valorizado na aplicao de qualquer modelo terico, o da adequao explicativa (ABAURRE, 1996, p. 159, grifo da autora).

    So essas as condutas metodolgicas que sero empregadas adiante para hipoteti-zar sobre as tentativas de rupturas de um enunciado, cujas marcas indicam os primei-ros ensaios de paragrafao de um texto mediante a utilizao de espaos.

    Em trabalho a respeito de operaes de segmentao textual com base nas ten-tativas de pontuao, como a operao de conexo e segmentao de texto, Cardoso (2002) destaca, em seus estudos, que os elementos lingsticos tendem a obedecer na superfcie textual ao princpio de proximidade.

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    Isso quer dizer que, no processo de materializao para a resoluo do con-flito entre a natureza multidimensional do pensamento em palavras e a natureza da estrutura materialmente linear do discurso, o escrevente busca, por decises sucessivas, aproximar os segmentos textuais necessrios finalidade da exposio, mas, ao mesmo tempo, procura estabelecer bloqueios ou isolamentos de certos elementos. H, portanto, uma tenso entre proximidade e distanciamento que impede movimentos de sobreposio, de um lado, e de esgaramento da trama, por outro. Essa tenso, necessria para a construo textual, traz para a superfcie as marcas de sinalizao de proximidade e de distanciamento, ou de ligao e de ruptura de blocos de significado, em processo de interdependncia. Nas palavras de Cardoso (2002, p. 117):

    A hiptese central de Fayol a de que existe uma estreita relao entre a tra-ma textual e a pontuao. Para ele, a pontuao o indicador de superfcie do grau de distncia [ou de ligao] entre os constituintes da representao mental subjacente ao texto: quanto mais os estados/acontecimentos fossem intimamente ligados, mais raro e mais fraco (isto , ausncia de marca ou vrgula) seria o nvel da pontuao; quanto mais os estados/acontecimentos fossem interdependentes uns dos outros, mais freqentemente e mais alto seria o nvel da pontuao (isto , alnea). De fato, ele encontra uma corre-lao importante entre fora de pontuao (alnea, ponto, ponto e vrgula, vrgula) e grau de ruptura entre as aes adjacentes: quanto mais forte a ruptura, mais forte a pontuao, tanto nos dados com crianas como adultos.

    Esses sinais ou marcas seriam [...] diretamente portadores de sentido (CAR-DOSO, 2002, p. 120) e, por isso, pela funo e pelo sentido com que so utiliza-das pelas crianas ou adultos, merecem do investigador de linguagem, amparado pela viso microgentica e pelos princpios do paradigma indicirio, a ateno para o que seria um detalhe menor e residual, prprio de um aprendiz das letras em um episdio de sua vida. Essa considerao teria o intuito de desvendar a funo e o sentido tais marcas e de, no caso dos espaos utilizados na enunciao, entender o seu uso em exerccios hipotticos, porque,

    [...] levando-se em conta a funo das marcas, sua freqncia, natureza e posicionamento, pode-se levantar a hiptese de que a utilizao de sinais de pontuao traduz a inteno das crianas de intervir em seus prprios textos. Na perspectiva bakhtiniana traduz, portanto, a construo do inter-locutor, inerente ao processo de autoria.

    Neste trabalho, o olhar sobre as marcas em um texto escrito por uma criana ser orientado para os espaos no final da linha, indicando, hipoteticamente, a tentativa de ruptura mais forte da enunciao, que poderamos entender como lances primrios de paragrafao.

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    2.Hiptesessobreasmarcasdeparagrafao

    O texto abaixo, de autoria de V., aos sete anos de idade, foi reescrito em sala de aula aps os alunos terem ouvido a leitura de A verdadeira histria dos trs por-quinhos (SCIESZKA, 1993). Ser possvel perceber que houve interferncias de um adulto, revelando-se, portanto, uma situao normal em sala de aula. Como o foco de ateno dessa pessoa foi direcionado para aspectos ortogrficos, as mar-cas indicadoras de paragrafao continuaram preservadas, constituindo o alvo de interesse investigativo neste trabalho, que de certo modo permite ao investigador dialogar com a criana por meio dos indcios deixados por ela, assim como um antroplogo pode olhar para as pistas deixadas em um objeto por um antigo ha-bitante do planeta.

    A cpia do texto respeitou a sua configurao original, mas cada linha foi nu-merada para facilitar a anlise, sua exposio e a compreenso do leitor. Apresento, inicialmente, o resumo da histria de Scieszka (1993) e, em seguida, a verso do referido aluno. Na narrativa de Scieszka, o lobo conta a histria de que estava fa-zendo um bolo de aniversrio para a av, quando percebeu que no tinha acar. Dirigiu-se a casa de seus vizinhos, porquinhos, para tomar-lhes emprestada uma xcara. Como estava resfriado, espirrou no momento em que abriam a porta, des-truindo suas casas. Mortos, os animaizinhos foram devorados, exceto o terceiro que chamou a polcia.

    Em aula, V. escreveu:

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    O olhar investigativo ser dirigido para as manifestaes de tenso entre pro-ximidade e distanciamento na enunciao, cujas evidncias sero os espaos em branco ou sinais marcados, vistos pelos adultos ora como ausncia ora sem fun-o.

    preciso destacar, contudo, que a marca do ponto , para o adulto em situa-o de no-investigao, um sinal de pontuao, mas a sua ausncia, substituda por uma outra marca, o espao, deixa de ser pontuao. Quero tentar entender, neste trabalho, que o sinal grfico e tambm a sua ausncia podem ser tanto indi-cadores de pontuao como tambm instrumentos que articulam a tenso entre distanciar elementos lingsticos e, ao mesmo tempo, aproxim-los.

    3.Configuraodotexto

    No haveria, do ponto de vista do professor em sala, sinais de paragrafao no texto de V., porque no existem espaos destacados no incio das linhas prximas margem esquerda. Em relao pontuao, as marcas seriam cinco e estariam relacionadas ao ponto, como possvel observar nas linhas 1, 3, 8, 14 e 15.

    A hiptese seria a de que o espao no final da linha tambm indicaria ruptura, portanto, tentativa de paragrafar. Para o aluno, reiterar a inteno, acrescentando um outro espao no incio da linha, seria, de certo modo, uma aceitao conven-cional de praticar a redundncia. Quero ressaltar que h duas aes sobrepostas na conveno do escrever que, como ocorre com certa freqncia em outros casos, no pela criana. Nesse sentido, para ela parece ser redundante indicar a ruptura da enunciao com o uso do espao no final da linha e tornar repetir a operao no incio. bem possvel que para o adulto essas aes sejam normais, todavia, para uma criana aprendiz da linguagem escrita, que procura entender a lgica do adul-to, a repetio da mesma operao pode ser suprimida sem que a inteno deixe de ser cumprida. Nessa mesma linha de raciocnio hipottico, seria possvel supor que o ponto marcado e o espao se equivalham, podendo ser, portanto, tambm marcas redundantes que podem ou no aparecer juntas. Desse modo, o espao no final da linha seria, para o aluno, indicao de ruptura, razo pela qual dispensaria o uso do ponto. Para o adulto no seriam redundantes, mas o que pensa a criana? E a conjuno E, utilizada no incio da linha, marca de pargrafo? Junta-se ao ponto e ao espao como marcas de funes semelhantes? Funes de lidar com as tenses entre aproximar e distanciar segmentos textuais?

    possvel notar, tambm, algumas letras ou palavras inseridas ou reescritas pela criana, num processo de troca com algum adulto professora ou estagirio no momento da produo. Apagamentos, inseres e outras aes semelhantes so vistas, pela investigao baseada na microgentica e no paradigma indicirio, como indicadoras de atividade mental discursiva no processo de enunciao.

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    4.Asmarcas,linhaporlinha

    Linha 1. Era uma vez um lobo.No h espao inicial, existindo um grande espao final, precedido por um

    ponto. Espao e ponto juntos indicam tempo e personagem apresentados e que no podem se juntar introduo e aos dilogos colocados na linha seguinte. Nesse caso, o ponto e o espao no final do enunciado so duplos indicadores, por isso, redundantes, da ao de isolar do resto do texto a apresentao do persona-gem. Essa deciso revela a tenso entre o distanciamento e a aproximao, isto , um elemento no pode se distanciar do outro porque deve permanecer prximo para ser compreendido. Para manter a proximidade, mas ao mesmo tempo indicar o distanciamento, apareceram as marcas de ponto e de espao. A ao do adulto, claramente percebida, deu-se na correo da slaba nho, possivelmente para indicar lobinho.

    Linha 2. E o lobo falou que precisava de buscar acar na casa do lado.A linha foi introduzida com a conjuno E, indicando conexo e ruptura,

    simultaneamente, j que conecta o dado anterior ao prximo e, tambm, marca o incio de um novo enunciado. No h espao final, mas a linha demarcatria da margem direita foi transgredida. Um olhar mais acurado pode perceber que um adulto sugeriu a reescrita das palavras acar e xcara no final da linha, que, na verdade, seria finalizada com a palavra dunascaslad, possivelmente buscar acar na casa do lado.

    Linha 3. E o lobo foi pedir uma xcara de acar para o vizinho. Interferncia do adulto: a escrita de xcara fora da ordem da enunciao,

    mas respeitando as normas ortogrficas. Como foi treze o nmero de linhas in-troduzidas pela conjuno E, possvel compreender que seu uso foi freqente como recurso conjugado ao ponto ou ao espao em branco e sempre com funes semelhantes, caracterizando, assim, redundncia. O emprego da marca de ponto no limite da transgresso da margem direita aponta o fechamento da ao do lobo de deslocamento para o vizinho.

    Linha 4. [...] porquinhos e o lobo bateu na porta Foi deixado um pequeno espao entre a ltima letra e o trao da margem

    direita, significando marca de pargrafo no final da linha, portanto, sem a neces-

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    sidade de repetir a operao no incio da linha seguinte, que recorrentemente ser comeada pelo conector E.

    Linha 5. E a porta caiu e o lobo falou e o lobo falou t em casa As aes nessa linha assemelham-se s da anterior at no tamanho do es-

    pao no final. Por que V. ora usou, conjugadamente, ponto, espao final e E inicial e ora no usou o ponto? Haveria razes de construo enunciativa que induziriam o aluno a renunciar marcao ostensiva, alternando redundncias entre trs ou duas indicaes? So perguntas espera de respostas.

    Linha 6. E o porquinho falou v embora lobo e o lobo continuou e [...]

    Nessa linha houve transgresso da margem, sem espaos, porque V., ao que parece, queria concluir o enunciado. Essa operao tambm uma indicao de que a ausncia do espao e a deciso pela transgresso do trao da margem expres-sam que no poderia haver ruptura, configurando-se, desse modo, a prpria trans-gresso como indicador de pargrafo, ou seja, de distanciamento do enunciado da linha seguinte. Quero com isso dizer que a criana demonstra de vrias formas suas intenes e tenses entre aproximar e distanciar, entre conectar e apartar. Aqui, a indicao se deu pela extrapolao da margem, que ao primeiro olhar pareceria uma atitude extremamente banal.

    Linha 7. E a casa o lobo e o porquinho tava la mortinho da Linha 8. silva e o lobo foi e comeu. V., possivelmente, pensou em ocupar toda a linha, porque era essa a sua

    hiptese para um enunciado completo, mas notou que seria impossvel: transgre-diu o trao marcador da margem direita mesmo sem conseguir incluir a palavra silva. Optou, dessa forma, por invadir a linha seguinte e colocar a conjuno E no seu interior e no no incio. Nesse caso, seu papel foi articular dois ou trs elemen-tos, colaborando para a construo de um perodo maior. O ponto no final desse pargrafo, o espao largo deixado no final e o E inicial da linha nove marcam com absoluta definio o fecho de um segmento. Houve, portanto, aes redundantes, mas com marcas distintas, ponto, espao e conjuno E, no com as mesmas mar-cas.

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    Linha 9. E o lobo foi pedir uma xcara de acar [...] Novamente h registros grficos inseridos talvez por influncia de um

    adulto (xcara) no meio do enunciado. V. utilizou a conjuno E como elemento de conexo com o enunciado anterior e o espao final como ligao com a prxi-ma conexo, sempre empregando E. Enquanto o aprendiz lutava com o enuncia-do e contra as dificuldades textuais que o desafiavam, o adulto focava seu olhar para a materialidade, para o elemento de maior visibilidade: a palavra. Um olhar pouco investigativo nem sempre consegue ver alm da superficialidade, porque a construo textual muito mais complexa e, por isso mesmo, nem sempre com-preendida pelo adulto professor ou investigador da linguagem.

    Linha 10. Encontrou o vizinho e [...] encontrou o vizinho Houve interferncia do adulto no momento da escrita de vizinho no meio

    do enunciado, mas no final da linha V. escreveu essa mesma palavra livremente, deixando o espao de ruptura claramente marcado.

    Linha 9. E o lobo foi pedir uma xcara de acar [...]

    Linha 11. Encontrou com a porta da casa o lobo falou porquinho V. no introduziu o enunciado com o conector E, mas utilizou pela pri-

    meira vez o discurso direto, entretanto, sem marcao grfica. Terminou a linha com um vocativo e iniciou a linha seguinte assumindo a funo de narrador, agora com a conjuno E, para ento tornar empregar o discurso direto. Concluir a linha com um vocativo parece ser uma marca de fecho e de ruptura da ao, desse modo, uma outra marca de ruptura textual e, ao mesmo tempo, de conexo, de aproximao de elementos lingsticos, com funes semelhantes ao ponto ou ao espao ou transgresso da margem.

    Linha 12. E o porquinho falou v embora lobo e o lobo sentiu um espirro Em uma linha V. narrou a cena, novamente lanou mo do discurso dire-

    to e voltou, no final, a assumir a narrao da histria. Creio que para no romper o fluxo da enunciao, transgridiu o trao da margem direita.

  • RevistadeEducaoPblica,Cuiab,v.16,n.32,p.35-50,set.-dez.2007

    Relaesentreespaosepontosnoinciodaalfabetizao 47

    Linha 13. [...] ele e atchim e a casa caiu no cho No utilizou, nessa linha, a conexo com a conjuno e a concluiu com

    razovel espao indicador de trmino expresso na ao de queda da casa, sem pon-to.

    Linha 14. E o porquinho tava l no meio da palha mortinho da silva. Marcou com ponto o final da ao do lobo em relao casa, mas no

    em relao a porco, o que ocorrer na linha seguinte. interessante notar que a marca grfica, nesses dois casos, foi registrada com maior volume. Por qu? No h razes para se debruar sobre um detalhe como esse? As marcas grficas do ponto com volume maior dizem mais do que as outras com volume menor? Novamente perguntas espera de respostas.

    Linha 15. e o lobo pegou o porquinho [...] vizinho e comeu. Iniciou de novo com E e fechou com ponto e largo espao. Ponto e espa