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TEATRO TEATRO PRA QUE SERVE? PRA QUE SERVE? DE TEATRO PARA A INFÂNCIA E JUVENTUDE SEMINÁRIO NACIONAL SESC CBTIJ REVISTA DO 2006 REFERENTE AO SEMINÁRIO REALIZADO EM 2005

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TEATROTEATRO

PRA QUE SERVE?PRA QUE SERVE?

DE TEATROPARA A INFÂNCIA

E JUVENTUDE

3º SEMINÁRIONACIONAL

SESC CBTIJ

REVISTA DO

2006 REFERENTE AO SEMINÁRIOREALIZADO EM 2005

APOIO ISSN: 1808-1541

C�digo: 9771808154004

www.sescrio.org.brw w w . c b t i j . o r g . b r

19 de Março • 10h às 15h Abertura com a Mostra de Teatro para Crianças na Lagoa

Rodrigo de Freitas (Local: Parque dos Patins - classificação livre)

20 de Março • 15h às 18h Oficina “Palavras do Silêncio” (Local: sede do CBTIJ)

• 20h Abertura oficial do 4º Seminário Nacional SESC CBTIJ de Teatro para aInfância e Juventude;

Lançamento da Revista do Seminário de 2005;

Lançamento da 6ª Mostra SESC CBTIJ de Teatro para Crianças;

Comemoração do Dia Mundial do Teatro para a Infância e Juventude;

Comemoração dos 10 anos do Centro Brasileiro de Teatro para a Infância eJuventude (Local: Arte Sesc)

21 de Março • 9h às 13h Oficina de Confecção de adereços com material reciclado

(Local: Sede do CBTIJ)

• 14h às 18h Fórum de Leituras Dramatizadas (Local: Arte Sesc)

• 20h Fórum Latino Americano de Teatro para Infância e Juventude (Local: Arte Sesc)

22 de Março • 16h às 18h Fórum de Teatro-educação

(Local: Arte Sesc)

• 20h Mesa-redonda “O Teatro na contramão” (Local: Arte Sesc)

DE TEATROPARA A INFÂNCIA

E JUVENTUDE

4º SEMINÁRIONACIONAL

SESC CBTIJ

2006

www.cbtij.org.br www.funarte.org.br

Apoio:

www.sescrio.org.br

PROGRAMAÇÃO

Sede do CBTIJRua do Catete, 338, sobreloja, sala 18

Tel.: (21) 2205-4483 • e-mail: [email protected]

Arte Sesc Rua Marquês de Abrantes, 99 - Flamengo

www.sescrio.org.br

Centro Brasileiro de Teatropara a Infância e JuventudeCentro Brasileiro de Teatropara a Infância e Juventude

ma entidade para trabalharpela expansão de um teatro

que traduza o respeito à inteligênciade crianças e adolescentes, contri-buindo assim para a inclusão social dainfância e da juventude brasileira. Essaera a proposta de um grupo de artistasque percebeu a importância de umaassociação que permanentemente tra-balhasse pelo interesse de todos nodesenvolvimento e fortalecimento doteatro para crianças e jovens.

Assim surgiu em dezembro de 1995o CBTIJ – Centro Brasileiro de Teatro

para a Infância e Juventude. Aolongo desses dez anos, nossa entidadevem promovendo ações para a divul-

gação e desenvolvimento do teatro, com altonível artístico e técnico, defendendo, além daprofissionalização da classe, a função social que oteatro e seus artistas podem e devem exercer nasociedade brasileira.

O ano de 2005 foi bastante positivo para oCBTIJ. Foram diversas realizações ao longo doano, no campo político mas principalmente noâmbito cultural. Junto a outras entidades, tive-mos forte presença na mobilização da classeartística para que a verba do Ministério daCultura aumentasse de 0,36% para 2% do orça-mento anual da união.

Além de nossa participação na União dasEntidades Teatrais do Rio de Janeiro, um denossos conselheiros foi indicado para representaro Rio de Janeiro na Câmara Setorial de Teatro.Continuamos trabalhando pela oficialização do

Dia Nacional do Teatro para a Infância e Juven-tude. Atualmente, tramita no Congresso umprojeto de lei com essa proposta, já aprovadapelo Senado e aguardando votação na Câmarados Deputados. Com o Governo do Estado doRio de Janeiro conseguimos, em 2004, que adata entrasse na lista de comemorações oficiais.Há cinco anos, a ASSITEJ – AssociaçãoInternacional de Teatro para a Infância eJuventude já o comemora mundialmente no dia20 de Março. Desde então, o CBTIJ realizaeventos para homenagear aqueles que se desta-caram na área do teatro para crianças e jovens.

Participamos do 15e Congrès et Festival

Mondial des Arts pour la Jeunesse, realizado pelaASSITEJ em Montreal, que nos rendeu bons fru-tos para 2006. Um deles é a realização do FórumLatino-Americano de teatro para a Infância eJuventude, presente dentro da programação doSeminário Nacional deste ano. Desde 1996,somos filiados a ASSITEJ, entidade em ativi-dade em mais de 75 países, possibilitando assim que o CBTIJ tenha participação a nível interna-cional em intercâmbios e ações nos mais dife-rentes países.

Através da Mostra SESC CBTIJ de Teatropara Crianças, que em 2006 está em seu sextoano, o CBTIJ, em parceria com o SESC Rio, levateatro de qualidade, em suas inúmeras formas deexpressão, para diversas localidades da capital,da baixada fluminense e do interior do estado.Ao longo desses cinco anos, levamos quasenoventa produções teatrais e saltamos de 17 milexpectadores, na mostra de 2001, para mais de50 mil, em 2005.

U

LUDOVAL CAMPOS

Ao longo desses dez anos, em mostras e seminários,além de diversos projetos como o CBTIJ em Ação e o CBTIJ Criança Feliz, foram realizadas mais de 1.200 apresentações, atingindo mais de 190 mil espectadores. Formamos um público que sabe apreciarteatro de qualidade.

Além das mostras, já realizamos três semináriosnacionais e um internacional, também em parceria com o SESC Rio. Temas, como teatro-educação, dramaturgia e patrocínios culturais foram colocados em debate, enriquecendo assim o conhecimento deprofissionais da área. Neste ano, estamos realizandonosso quarto Seminário, focado na questão do teatro jovem.

Tudo que é sólido desmancha no ar. Quais os caminhosque o teatro jovem está tomando? Este ano, profissio-nais de diversas áreas discutirão questões específicas doteatro jovem. Serão quatro dias de mesas-redondas,fóruns e oficinas.

Considero oportuno o momento para agradecer adedicação de Antonio Carlos Bernardes, tanto comocoordenador da mostra, de nosso site, como também com as outras atividades da entidade. Agradecer à IneBaumann pela Coordenação do Núcleo de Teatro-educação do CBTIJ pela atenção de estar sempre unindoteatro e educação no mesmo palco. Agradecer aos demaisconselheiros, sempre presentes em nossas reuniões edecisões, à dedicação de nossos funcionários, e aos associ-ados, sem os quais não existiria a força de uma associaçãocomo a nossa. E por fim, agradecer aos patrocinadores,apoiadores, e em especial, à FUNARTE e ao SESC Rio,que acreditam e confiam em nosso trabalho.

Sempre haverá muito que se fazer pelo teatro, maisainda pelo teatro para crianças e jovens. Vamos contin-uar caminhando, e se depender de nossos esforços,continuaremos lutando por uma melhor formação denossos futuros cidadãos, e que a cada ano, mais criançasdesfrutem de um teatro de qualidade. Que venhammais dez anos, com novos projetos e novas realizações.

LUDOVAL CAMPOSPRESIDENTE DO CONSELHO DE

ADMINISTRAÇÃO DO CBTIJ

PROTAGONISTAS DO SEU PRÓPRIO TEMPOPROTAGONISTAS DO SEU PRÓPRIO TEMPO

rianças e jovens. Cidadãos do mundo. Singulares sujeitos de sua própriatransformação. Hoje. E não simulacros de adultos que um dia virão a ser. As inquie-

tudes, contradições, tristezas e alegrias presentes no dia-a-dia de cada um não podem seramortecidas com anestesias teatrais estéreis. O teatro está aí para inquietar, transportar,refletir, libertar. Respeitar as potencialidades de crianças e jovens e encará-los com aimportância que eles têm no presente, como autores em constante processo de formação.

É assim que o SESC Rio pensa cultura. Como instrumento de desenvolvimento crítico,reflexivo e autônomo. Como elemento de inclusão social, aproximação entre os povos epromoção da paz. Como catalisador do desenvolvimento humano. Independentemente dafaixa etária que irá acessá-la.

Reconhecer e respeitar a identidade cultural é prerrogativa básica de todo o processo.Assim como estimular a incorporação de valores e atitudes cotidianos de cidadania,cooperação, solidariedade, ética, investigação e experimentação. Possibilitar o acesso atemas contemporâneos e socializar informações é democratizar o fazer cultural para toda apopulação.

Crianças, adolescentes, adultos, em toda sua diversidade e complexidade, juntos naconstrução coletiva do mundo hoje. Como sujeitos da história e da cultura. Sujeitoscriadores. Sujeitos sociais.

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a Antonio Carlos Bernardes

z Mostra de espetáculos na Lagoa Rodrigo de Freitas

e Fachada do SESC Tijuca

r SESC Tijuca

t Fórum de Teatro-educação

y Mostra na Lagoa Rodrigo de Freitas

u Ine Baumann

i Ludoval Campos

o Equipe de produção e Valdevinos de Oliveira

q Mostra na Lagoa Rodrigo de Freitas

s Marcos Malafaia, Maria Helena Kühner, Kil Abreu e

André Brilhante

d SESC Tijuca

f Fórum de leituras dramatizadas: “Uirapuru menino e

outras histórias de passáros”

g Oficina – Suzana Saldanha

EXPEDIENTE

Revista do 3º Seminário Nacional SESC CBTIJ deTeatro para a Infância e Juventude

ISSN: 1808-1541

Ano de 2006

Centro Brasileiro de Teatro para a Infância eJuventude – CBTIJ

Conselho de Administração e Fiscal (Biênio 2004/06)

Presidente:Ludoval Campos

Secretário:Fátima Café

Tesoureiro:Ana Barroso

Conselheiros:Alberto MagalhãesÁlvaro AssadAndré BrilhanteAntonio Carlos BernardesHenrique GonçalvesIne BaumannLeonardo CarnevaleMárcia FredericoMarcos EdonMayra CapovillaMônica BielSérgio Miguel BragaSílvia Aderne

Equipe CBTIJ:Irany OliveiraDenise Dias CoutinhoAndré Bürger

Seminário Nacional 2005

COORDENAÇÃO: Ine Baumann

DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Fátima Café e SérgioMiguel Braga

CONSULTORIA: Antonio Carlos Bernardes

VÍDEO DE ABERTURA: Rico Vilarouca, RenatoVilarouca, Michel Langer, Ludoval Campos,André Bürger e André Brilhante

ASSESSORIA DE IMPRENSA: André Bürger

AUXILIAR ADMINISTRATIVO: Irany Oliveira e Denise Dias Coutinho

FOTOGRAFIAS DO SEMINÁRIO: Paulo Rodrigues

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO DA REVISTA:A 4 Mãos Comunicação e Design

REVISÃO: Paulo Telles

CBTIJ

Rua do Catete 338 - sobreloja 18 - CateteCep: 22221-971 - Rio de Janeiro - RJTel.: (21) 2205-4483www.cbtij.org.br • [email protected]

TEATRO. PRA QUE SERVE?Marcia Frederico 8

A DRAMATURGIA E O TEATRO PARA CRIANÇAS

Carlos Augusto Nazareth 9

FÓRUNS E OFICINAS 11

MOSTRAS E ESPETÁCULOS 13

MESA REALIZADAS 14

FORMAÇÃO, COMÉRCIO E ARTE: A BELEZA DO TEATRO É

O MUNDO VISTO NO GERÚNDIO

Kil Abreu 15

O CONHECIMENTO EM JOGO NO TEATRO PARA CRIANÇAS

André Brilhante 17

TEATRO COMO MEIO

Marcos Malafaia 20

O TEATRO, PARA QUE SERVE?Maria Helena Kühner 23

TEATRO EMPRESA – UMA GRANDE OPORTUNIDADE DE

ENTRAR EM CENA!Alberto José Magalhães Correia 26

A REFLEXÃO PROVOCADA PELO TEMA DO 3º SEMINÁRIO

NACIONAL SESC CBTIJAndrea Alves 28

TEATRO INFANTIL

Maria Arlete Gonçalves 30

O ATOR E A PEÇA RADIOFÔNICA

Mirna Spritzer 32

O CONVITE VEIO POR TELEFONE

Suzana Saldanha 36

PARA QUE SERVE O TEATRO?Fátima Saadi 38

CRIANDO ASAS

Marco Aureh 40

UIRAPURU MENINO E OUTRAS HISTÓRIAS DE PÁSSAROS

Fidelys Fraga 47

SumárioSumário

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Teatro. Pra que serve?Teatro. Pra que serve?

MARCIA FREDERICO

Desde as mais antigas informações sobre as atitudes humanas, ouvimos falar da necessidadeque o homem tem de expressar-se através daarte, e do teatro especificamente.

o tempo das cavernas, era através da mimesis.Imitavam as lutas e os animais. Esse teatro

mimético servia então para comunicar como havia sidoa luta, mas também servia para incorporar a força e aalma do animal a ser conquistado. Deduzimos com issoque o teatro servia tanto a um fim prático – comunicar,como a um fim “mágico” – construir símbolos.

Ao longo da história do teatro podemos observar essasvárias funções. Temos o profano e o religioso, o edu-cativo e o de entretenimento, o político e o alienante, oda arte pela arte. E assim seguede acordo com o contextohistórico-cultural, e com anecessidade de quem o faz ede quem o assiste.

Do mesmo modo queacontece na história geralda arte, ocorre o mesmocom cada ser humano

quando vive a experiência teatral.

A criança apreende o mundo através da imitação davida que a cerca. Dessa forma, ela aprende a andar, a falar,a expressar suas emoções e vai sofisticando o uso destatécnica ao inventar brincadeiras, ao “fingir” o que não sente,ao fazer de conta ser quem não é. E do simples espelhar ooutro, vai aprendendo a ter compaixão, colocando-se nolugar do outro, ou seja, invertendo os papéis.

Podemos dizer, então, que o teatro serve antes de tu-do para nos constituir como humanos, pois somos os

únicos do reino animalcapazes de usar a arte paradesenvolver nossa cria-tividade, essa centelhamágica e misteriosa quenos é, antes de tudo,necessária.

Temos todos a neces-sidade da arte. n

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A criança apreende o mundo através da

imitação da vida que a cerca. Dessa forma, ela

aprende a andar, a falar, a expressar suas

emoções e vai sofisticando o uso desta técnica

ao inventar brincadeiras, ao “fingir” o que não

sente, ao fazer de conta ser quem não é.

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ramaturgia e o Teatro para Crianças >

> Carlos Augusto Nazareth

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CARLOS AUGUSTO NAZARETH

No 3º Seminário Nacional SESC CBTIJ, 2005,pudemos confirmar que o calcanhar deAquiles do teatro para crianças, hoje, é, sem dúvida, a dramaturgia.

a leitura de textos realizada neste terceiro encon-tro foi colocada uma dúvida: “podemos analisar

um texto de teatro para crianças em relação a sua estru-tura, da mesma forma que se analisa um texto para adul-tos? Aqui recorremos a já tão citada frase de ConstantinStanislavsky: “o teatro para criança tem que ser igual aodo adulto, só que melhor”.

Num momento em que a dramaturgia contem-porânea toma força, quando a narrativa oral cênica do-mina os palcos e os contadores de história sobem à cena,utilizando recursos teatrais, fica uma impressão de quetudo pode. E realmente tudo pode, desde que seja inten-cional e competente.

O que se vê no palco, na maioria das vezes, e o que selê nos textos em concursos ou em Cursos de Dramatur-gia, aponta para um desconhecimento dos alicerces clás-sicos primeiros da dramaturgia. Aristóteles, Hegelvivem! Eternos? Eternos enquanto durem, parodiando“o poeta”. Porém, para que se desconstrua essa narrativaem busca de novos caminhos e de novas possibilidades éimprescindível que se conheça e se domine o que jáexiste. O novo se cria como conseqüência, ou mesmoruptura, de uma História.

Na maioria das vezes o argumento é que os autores es-tão em busca de uma nova forma de expressão, mas, naverdade, o que se constata nos textos e nos palcos é quemuitos desconhecem os princípios básicos da escrita teatral.

Tudo que é feito para criança parece fácil. Todos sesentem capacitados a adaptar um texto para criança, aescrever para criança e é evidente que todos têm talpotencialidade. Mas se esta é uma decisão consciente eprofissional, que esta tarefa seja encarada com o mesmoprofissionalismo com que realizariam a escrita de umespetáculo adulto, de um romance.

É a velha questão – um cirurgião consciente, pro-fissional, jamais entraria numa sala de operações semestar preparado para isso, pois é a vida de uma pessoa emrisco. O artista também é responsável pela vida das pes-soas. Tem responsabilidade social, principalmente sendouma pessoa da área da cultura, da arte. O novo es-pectador também corre o risco de morrer ali, na sala deespetáculos, no seu primeiro contato com o teatro, damesma maneira que o paciente corre o mesmo risconuma sala de operações com um médico não preparado.

Os dois textos selecionados para a Leitura Drama-tizada do Encontro são um exemplo de diversidade com-petente. Um dos textos, Criando Asas, do estreante comoautor Marco Aureh, tem uma estrutura dramáticaimpecável. O texto existe por si mesmo, tal a clareza dahistória, a coloquialidade dos diálogos, o humor e, oprincipal, tem algo a dizer. Escrever parte deste ponto –uma necessidade irresistível de dizer algo que se con-sidere importante falar a nosso público.

O outro texto, História de Pássaros, de Fydelis Fraga,

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A dramaturgia e o teatro para criançasA dramaturgia e o teatro para crianças

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autor que se filia, de alguma forma, à dramaturgia con-temporânea, em outros trabalhos seus, consegue tran-çar com absoluta competência o drama e a narrativa oralcênica, que se completam e criam um texto uno, comevidente domínio de técnica, trazendo uma propostaconsciente de uma forma de expressão textual.

Diferentes enquanto caminhos, os dois textos lidos seencontram no domínio da técnica, na escrita dramática,na inventividade, na qualidade literária, na elegância dotexto e, principalmente, por terem algo a dizer.

Este é o caminho: ter algo incontido para dizer.Como dizer é uma questão de estudo, análise, busca,aprofundamento, lembrando que criança é coisa séria eque escrever para criança mais sério ainda e fazer teatroentão... é de uma seriedade absoluta.

Um dos grandes problemas nos palcos, constatadosnestes quase dois anos de exercício da crítica semanal deespetáculos infantis para o JB é, sem dúvida as eternas einúmeras adaptações dos chamados clássicos da literatu-ra infantil. Com certeza por uma questão mercadológi-ca, pela falta de espaçopara se falar do movimen-to teatral infantil no Riode Janeiro, montar“Cinderela” já é um atra-tivo para o mediador, paiou professor que vai levara criança ao teatro, poisele tem um referencial –conhece a história.

No entanto, as adaptações, além de excessivas e repe-titivas, são de muito má qualidade na maioria das vezes.Atém-se à trama e abandonam exatamente a essência doconto, que foi o que fez com que ele se mantivesse vivoaté hoje. É bom deixar bem claro que se fala em relaçãoa grande parte dos espetáculos, mas não todos. O Alfaiatedo Rei, de Maria Clara Machado, direção de CacáMourthé, é um exemplo de excelência, que foge a essebolo de más adaptações. No entanto, em um final desemana havia dezoito espetáculos teatrais a partir doscontos tradicionais. E vários de cada história. QuatroJoãozinho e Maria, quatro Cinderelas e por aí vai.

Nelly Novaes Coelho defende o reconto, como formade preservação de uma literatura primordial, mas aadaptação para teatro tem que ser absolutamente fiel à

essência da história e ao mesmo tempo absolutamenteinfiel à forma, já que se trata de uma transposição delinguagem. Outro exemplo lapidar é As aventuras deRobinson Crusoe, de Eduardo Rieche, um reconto que seutiliza da narrativa oral cênica, teatralizada, num espe-táculo multimídia, onde a qualidade é a matéria-prima.

Na verdade, a dramaturgia se insere num grandecampo que é o da qualidade, o da excelência. O textotem que ter qualidade e, como se diz do cinema, umbom roteiro não significa necessariamente um bomfilme, mas não há um bom filme sem um bom roteiro.O mesmo se pode dizer do texto teatral e do espetáculo.

E a necessidade de excelência não se restringe à dra-maturgia, mas à preparação do ator, do trabalho de estu-do e pesquisa, a excelência de uma luz, um cenário, umfigurino, a pluralidade de linguagens que “tecem” oespetáculo teatral.

Por outro lado, exigir qualidade sem que haja apoioàs produções, sem que haja uma política cultura oficialde promoção do teatro, sem um trabalho permanente de

formação de platéia, sempremiações que estimulemos realizadores e semespaço na mídia para dis-cussão é uma sobrevivênciaquase heróica. De um lado,os realizadores que pensame repensam a sua prática,do outro lado aqueles quefazem e fazem por dife-

rentes razões. E aí se cria um abismo difícil de se trans-por e unir: teoria e prática. Além da dificuldade de selevar esta discussão até os mediadores, pais e professoresque são fator decisivo no processo.

É necessário que a discussão saia do âmbito dos pro-fissionais de teatro e se estenda à população. É necessárioque se tenha uma política oficial de formação de platéia, nãosó para crianças, como para adultos. Que se tenhapatrocínios, subvenções, estímulos, projetos, uma políticacultural e vontade política. Só assim pode-se reverter oquadro, para não se restringir a heróicas ações isoladas,como o Projeto SESC CBTIJ, ou mesmo ações individuaisdaqueles que têm como ídolo o eterno personagem deMonteiro Lobato, Narizinho, e que ainda acreditam que épossível reformar a Natureza, mudar o mundo. n

Este é o caminho: ter algo incontido para

dizer. Como dizer é uma questão de estudo,

análise, busca, aprofundamento, lembrando

que criança é coisa séria e que escrever para

criança mais sério ainda e fazer teatro então...

é de uma seriedade absoluta.

FÓRUNS ABERTOS OFERECIDOSDURANTE O SEMINÁRIO

Dia 18 de maio“Teatro-educação”

Dia 19 de maio “Leituras Dramatizadas”

Com análises e comentários de

Maria Helena Kühner e Fátima Saadi

OFICINAS OFERECIDAS DURANTE O SEMINÁRIO

Dias 17 e 18 de maio “O ator e a experiência radiofônica”

Orientadora:

Mirna Spritzer

Dias 18 e 19 de maio “Caio F. por Gawronski”

Orientador:

Gilberto Gawronski

Dia 19 de maio “Esta tarde arranque a máscara da face e improvise”

Orientadora:

Suzana Saldanha

FÓRUNS ABERTOS OFERECIDOSDURANTE O SEMINÁRIO

OFICINAS OFERECIDAS DURANTE O SEMINÁRIO

a Valdevinos de Oliveira

z Valdevinos de Oliveira

e "A Inenarrável Estória de Bobinaldo e seu Trombone" - Irmãos Brothers

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t "Divino Emaranhado" - Juliana Manhães

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u "A Família Sujo" - Cuidado que Mancha

i "Rádio Maluca" - Zé Zuca

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o "Fuzarca da Lira ataca novamente" - A Fuzarca da Lira

q "As aventuras de Pedro Malazartes" - Será o Benidito?!

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h "Circo Minimal" - Cia. Gente Falante

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MOSTRA DE ESPETÁCULOS PARA CRIANÇAS

LAGOA RODRIGO DE FREITAS

Dia - 15 de maioAbertura

Valdevinos de OliveiraA Inenarrável Estória de Bobinaldo e seu Trombone

Irmãos BrothersDivino Emaranhado

Juliana ManhãesA Família Sujo

Cuidado que ManchaAs Aventuras de Pedro Malazartes

Cia. Será o Benidito?!Fuzarca da Lira Ataca Novamente

A Fuzarca da LiraRádio Maluca

Zé Zuca

ESPETÁCULOS REALIZADOSDURANTE O SEMINÁRIO

SESC TIJUCA

Dias 17, 18 e 19 de maioCirco Minimal

Cia. Gente FalanteA Mulher Gigante

Cuidado que Mancha

MOSTRA DE ESPETÁCULOS PARA CRIANÇAS

ESPETÁCULOS REALIZADOSDURANTE O SEMINÁRIO

MESAS REALIZADAS

Dia 17 de maio“Da formação à contestação”

Mediador:

Kil Abreu (SP)Debatedores:

André Brilhante (RJ), Marcos Malafaia (MG), Maria Helena Kühner (RJ)

Dia 18 de maio“Do institucional ao comercial”

Mediador:

Kil Abreu (SP)Debatedores:

Alberto José Magalhães Correia (RJ), Andrea Alves (RJ), Maria Arlete Mendes Gonçalves (RJ)

MESAS REALIZADAS

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Formação, com

ércio e arte: a beleza do teatro é o mundo visto no gerúndio >

> Kil Abreu

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Formação, comércio e arte: abeleza do teatro é o mundovisto no gerúndio

Formação, comércio e arte: abeleza do teatro é o mundovisto no gerúndio

KIL ABREU

Vou retomar aqui, em algumas notas, os temasque foram propostos em duas das discussões que aconteceram no 3º SeminárioNacional SESC CBTIJ: “Da formação à contestação” e “Do institucional ao comercial”.

ob o tema mais geral do seminário, “Teatro, paraque serve?”, podemos de saída entender o convite

do CBTIJ como um chamado para pensar o lugar sociale a sobrevivência de uma determinada prática artísticaque foi mestiçada, assimilada a diferentes fazeres, atéresultar em arte-comércio, arte-instituição, arte-peda-gogia e algumas vezes até mesmo em arte, ela mesma.Daí que a questão colocada tem todo sentido e urgência,porque quando nos perguntamos para que alguma coisaserve, é na tentativa de testar sua identidade, aqui fra-turada em muitas, e também para verificar sua utilidadee poder de fogo no mundo da cultura.

Se em uma primeira visada aqueles temas iniciaispareceram muito diferentes. Descobrimos no decorrerdas discussões uma rede tecida pelos fios contínuos queamarram uns aos outros. Assuntos como formação deplatéias e o caráter essencialmente contestatório da artenão estão dissociados das condições objetivas, dosespaços e funções que o teatro vem ocupando – ou é le-vado a ocupar – no mundo contemporâneo. Sob o céu deuma temática tão ampliada, evidentemente as conside-rações que seguem dizem respeito não apenas ao teatrofeito para crianças e jovens, mas para o teatro, enfim,sem adjetivações.

A primeira nota, mais geral, é a de que se por umlado a arte é um texto que tem características próprias emodos específicos de expressão, por outro nenhumainvenção poética se constrói à margem da ideologia. E énessa perspectiva, de inserção do fazer teatral comoforma-mercadoria no amplo leque de sugestões espeta-culares oferecidas pelo capitalismo atual, que os temasdo seminário podem ser investigados. Isso porque, comonos lembra o crítico Roberto Schwarz, o capitalismo setornou a verdadeira força de mobilização da sociedade.1

De fato, como a lógica do capitalismo no estágio em quevivemos é sobretudo uma lógica cultural, podemos dizerque até mesmo as áreas mais refratárias à sistematizaçãoforam domesticadas, como a arte e a estética. Os exem-plos dessa estetização da vida estão postos na maior dasevidências, como na publicidade, na espetacularizaçãoda política e da vida cotidiana (basta olhar os reality

shows). Tudo é espetáculo, e como tal, tudo é tratadocomo simulacro potente e vendável. Daí a dor do artista,ou de uma parte deles – porque é como diz o sociólogoFrancisco de Oliveira: no mundo da mercadoria a piorcoisa para o sujeito é não ser mercadoria.

Mas o que tudo isso tem a ver com os temas queforam propostos pelo CBTIJ? Tem a ver que o teatro,

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1 Schwarz, Roberto. A atualidade de Brecht. Revista Vintém, n.1, Fevereiro de 1998.

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para crianças ou adultos, é uma prática artística que seampara decididamente em uma estratégia movida pelacriação de simulacros da vida. Talvez esteja aí a coisa aomesmo tempo mais conservadora e mais genial doteatro, que nesse contexto passa a ser um meio muitopoderoso e muito útil para dar conta dessas tarefas novasque a sociedade vai se colocar.

Ora, até certo tempo parece que não havia grandeinteresse no teatro como mídia de atividades extra-artís-ticas. Mas não há dúvida de que com a expansão desaberes como a arte-educação e sobretudo com o desen-volvimento do conceito de educação não-formal, ouainda com a disseminação de práticas cênicas no ambi-ente empresarial, passamos a viver alguma coisa quehoje podemos chamar de “cultura da criatividade”. Eaqui é preciso entender a cultura de modo ampliado, demaneira que possa comportar, por exemplo, as relaçõesde trabalho e produção. Então, passa a existir tambémuma cultura do “empreendedorismo”, em que a criativi-dade é pedra de toque e o teatro um meio excepcional-mente útil para dinamizar isso.

Em um primeiro momento esse atrelamento soa algoescandaloso, porque obriga a confrontar duas práticasessencialmente distintas. Podemos dizer, em umaproposição radical, que a arte só tem razão de ser quan-do consegue revelar aquilo que a ideologia esconde. Epara revelar é preciso confrontar. Algumas vezes o artistatoma isso tão ao pé da letra que é capaz de levar a arte aosuicídio, ou ao silêncio. Não foi outra a postura de certavanguarda e mesmo de grandes e inventivos mestres doteatro moderno, como Beckett e Grotowski. Preferemsilenciá-la na denúncia da falta de sentido do mundo asubmetê-la a algum tipo de desdobramento utilitário.

Por outro, lado isso a que aqui estamos chamandoinstitucional, seja o ambiente empresarial ou escolar, éalgo quase sempre altamente conservador se comparadoà iconoclastia da arte nesses momentos-limite. Para ainstituição a filosofia de mudança é basicamente umafilosofia de sobrevivência e adequação.

De um modo ou de outro, o teatro “institucional” éum fato, e tem servido às mais diversas tarefas, da peda-gogia aos programas de formação de pessoal, inclusivecom grande empenho dos artistas e com o desenvolvi-mento de técnicas próprias. Trata-se, então, de tarefas

francamente “formativas”, que têm às vezes mais, àsvezes menos interesse na coisa artística em si.

Daí advém, no caso específico do chamado “teatroempresarial”, uma série de questões: como a tarefaformativa é pensada no ambiente institucional? O que émais comum: o foco nos recursos humanos que teminteresse no humano de fato ou na produtividade? Ou, deoutro modo: deve prevalecer a valorização da experiência es-tética que tem como fim a sensibilização do sujeito, ou astécnicas de incremento da produção e da força de trabalho?

Na relação do teatro com a instituição escolar, evi-dentemente, o quadro é mais complexo, dadas as dife-rentes aplicações que têm sido operadas. No aspecto par-ticular e importante da formação de platéias, algumasquestões são também urgentes: que tipo de mediação énecessária e possível nos programas de “formação” deplatéias? É necessário “formar” o formador? Mas em queisso consiste? A relatividade social da noção de infância,que não é homogênea, provoca-nos quais gêneros dequestões quando falamos em formar platéias? Formarpara quê, e formar com quem/a quem? “Formar” platéiassignifica disciplinar crianças e jovens para a apreensão dedeterminados aspectos da linguagem teatral, ou dedeterminados conteúdos?

Neste último ponto, é curioso como permaneceainda, mesmo nos meios informados, a dificuldade emver nos processos formativos que o teatro pode pro-porcionar o espaço para o lançamento de perguntas quenão fiquem à mercê de uma idéia “naturalizada”(portanto, ideológica) do que seja a criança e o jovem,chapados em uma falsa e pouco complexa identidade.É como se, assim como aqueles, o teatro tivesse uma“natureza” a ser compreendida e mapeada.

Um caminho em tudo oposto a isso só pode ser o daprovocação no sentido da autonomia de pensamento. Épreciso fazer ver – como de resto, no mundo social – queo teatro não “é” assim, mas “está sendo”, no gerúndio.Da mesma forma em que vivemos todos em um mundoimpermanente, que carece de uma disposição de mudançapara ser entendido nas suas contradições e necessidades. Sehá alguma lição útil que se pode oferecer às crianças ejovens talvez seja esta: a da busca da autonomia paraentender que o teatro, assim como a vida e as coisas belasou injustas que ela comporta, são mudáveis. n

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muito comum encontrarmos a utilização do termodidático atribuindo um valor pejorativo a algum

objeto. Quando ouvimos falar de um “teatro didático” esta-mos, geralmente, ouvindo falar de um espetáculo chato, quetenta se aproximar de uma aula em cima do palco, e por issoé desagradável e intragável. Mas, se por outro lado, compre-enderemos que a didática é uma ferramenta criada para am-parar o processo educativo e estabelecer mecanismos que ga-rantam a aquisição do conhecimento, como pode ela ser algoentediante? Por que então se constrói esse juízo de péssimosvalores em relação ao “teatro didático”? Será que é uma visãoque coloca a educação como uma atividade chata que deva serpraticada exclusivamente na escola? Não será possível umacomunhão entre conhecimento e diversão? Talvez sejam essasperguntas as grandes chaves da nossa discussão.

A referência fundamental para a discussão das rela-ções entre conhecimento e diversão no teatro para crian-ças, na medida em que exige aprofundamento na ques-

tão pontual da didática no teatro, é Bertolt Brecht.Brecht empreendeu uma reflexão muito valiosa em queo teatro assume, explicitamente, uma proposta pedagó-gica. As discussões de Brecht foram aproveitadas e dire-cionadas para a área da educação e ampliaram as pes-quisas que estabelecem associação entre teatro e apren-dizagem. Ingrid Koudela2 ressalta a importância, para aárea de teatro-educação, da experiência brechtiana comas peças didáticas, em que teatro e pedagogia se encon-tram voltados, a princípio, para o público infantil.

Com a pesquisa, nos aproximamos de definições paradiferenciar o didático e o didatismo como elementosdíspares, que poderiam definir uma boa e uma máutilização do didático no teatro. O didatismo, sim, estariaassociado à colocação de informações em cena de formadesprovida de elementos teatrais, quando a cena perde suascaracterísticas para se tornar aula “chata” no palco, quandoo espectador não é seduzido para a peça e nem para a aula.

ANDRÉ BRILHANTE

É

1 “O Conhecimento em Jogo no teatro para crianças” é também o título da dissertação de mestrado em Teatro defendida em outubro de 2004 por André Brilhante, com a ori-entação da profª drª Beti Rabetti, pelo Programa de Pós-graduação em Teatro (PPGT) na Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO). 2 Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA-USP. Autora de diversos livros naárea de teatro-educação.

O conhecimento em jogo noteatro para crianças

O conhecimento em jogo noteatro para crianças1

A importância do estudo trazido pelapesquisa do mestrado na UNIRIO está emtornar mais discutido o espetáculo teatralcomo uma atividade educativa para o espec-tador; e ampliar a reflexão que ronda os trêstermos que foram as palavras-chave daminha pesquisa: teatro, educação e criança.

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No didático é possível buscar o prazer da reflexão, baseda educação e da construção do conhecimento, quando acriança-espectadora pode despertar seu olhar para umagradável exercício curioso sobre o que lhe é apresentadoem cena. Os elementos cênicos são capazes de gerar lacunase dúvidas que alimentam a construção do saber.

Podemos ver, através de uma análise histórica, comoa instituição escolar vai se construindo e se desenvol-vendo, e como essa passa, nos dias de hoje, a ser sinôni-mo de educação. A escola torna-se responsável pela for-mação do indivíduo cidadão, mesmo não sendo o únicoagente a disso se encarregar. Com isso o termo didático,que se apresenta como ainstrumentalização de umaprática pedagógica, carregaem si a sinonímia mora-

lizante, transferidor de valores;segundo esse sentido, o pro-fessor, ainda pautado pelapedagogia tradicional, trans-mite o conhecimento deforma puramente verbali-zada e afastada da vida, econsidera a criança um serincompleto que precisa absor-ver seus ensinamentos.

Assim, o teatro para criança que tem objetivopedagógico pode utilizar a didática escolar, moralizantee de transferência de valores, para ser “educativo” nacena. No entanto, é preciso esclarecer que existe outradidática, capaz de instrumentalizar objetivos pedagógi-cos no teatro para criança e que tem como referência nãoa estrutura escolar tradicional, mas a educação em seusentido amplo, ou seja, o ato pedagógico que se dá pelaexperiência de vida, ressaltando valores pessoais deordem prática ou subjetiva e valores coletivos sociais,históricos, políticos etc.

É, portanto, de extrema importância para nosso estu-do diferenciar o teatro didático que se utiliza da didáti-ca escolar do teatro didático que pesquisa uma didáticaespecífica para a cena. Nesta última consideram-se os

elementos lúdicos, estéticos e críticos do teatro para suaencenação e prática educativa; em suma, pratica-se anoção de educação em seu sentido amplo. Para análise ediferenciação, denominaremos aqui o teatro baseado nadidática escolar tradicional “teatro escolarizado”.

Parece que a todo o momento temos que afirmar queé possível aprender brincando, se divertindo; e que issonão desmerece a atividade educativa. Parece que o sensocomum quer colocar de um lado tudo que é divertido ealegre, como o teatro, a música e as artes em geral; e dooutro lado todas as atividades sérias e sisudas, que nãotêm espaço para a brincadeira, como o trabalho, o apren-

dizado. Será que estamosainda numa tentativa ro-mana de dividir a vida dohomem em dois tempos:época do ócio e época donegócio? Prazer versusdesprazer? Talvez a soluçãopara não cair nessa ciladaesteja em poder perceberque essas áreas se infiltramuma na outra, e não exis-tem fronteiras tão demar-

cadas para separá-las.

Numa recente publicação da revista Nova Escola,3

podemos perceber que muito se fala sobre o prazer e ohumor como elementos necessários para um bom apren-dizado do aluno. E, o título da matéria já anuncia: É

assim que se aprende, onde o texto fala da importância daemoção para gerar a atenção do aluno sobre o objeto a ser estudado.

Despertar emoções é uma forma de fazer os estudantesprestarem atenção. Sem concentração, o cérebro não ar-mazena. “Estar atento é abrir as portas sensoriais, lingüís-ticas e cognitivas para o novo conteúdo”, afirma SidartaRibeiro, pesquisador da Duke University MedicalCenter, nos Estados Unidos. A atenção é produto da açãoda noradrenalina, que ajuda a deixar os sentidos voltadospara a realização de uma atividade e turbina a superfíciedo cérebro (córtex), onde ficam as memórias.4

3 Nova Escola, São Paulo. Fundação Victor Civita / Editora Abril, Ano XX, n. 179, p. 52, Janeiro/fevereiro de 2005.4 Idem ibidem, p. 55.

A escola torna-se responsável pela

formação do indivíduo cidadão, mesmo não

sendo o único agente a disso se encarregar.

Com isso o termo didático, que se

apresenta como a instrumentalização

de uma prática pedagógica, carrega

em si a sinonímia moralizante,

transferidor de valores;

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Ao ler sobre emoções e humor, na matéria, fazemosconexão diretamente com o teatro e suas potencialidadeseducativas. Apresentar os temas a serem estudadosatravés de espetáculos pode ser um caminho para desper-tar a atenção do aluno para um aprendizado eficaz. Noteatro trabalhamos com os sentidos da platéia, estimu-lando as mais diferentes emoções e podendo abordarcom humor temas que pareçam tão sérios. Isso nos levaa crer que a educação caminha, cada vez mais, paraencontrar sugestões criativas no teatro para sugerir suasnovas estratégias, como já previa Tolstoi:

A escola do futuro não será, talvez, uma escola como nósa conhecemos – com bancos, quadros-negros e tabladopara o professor – ela poderá ser um teatro, uma biblio-teca, um museu ou um debate.5

E, assim Brecht se torna mais oportuno e mais atuala essas discussões, sempre afirmando o teatro com umagrande capacidade educativa, sem que esse precise secorromper ou perder suas qualidades mais nobres:

O teatro permanece teatro, mesmo quando é teatropedagógico e, na medida em que é bom teatro, é di-versão.6

Percebemos que a experiência do teatro didático deBertolt Brecht é uma boa referência para o desenvolvi-mento de produções teatrais, para crianças, comintenções didáticas. Brecht nos mostra o equilíbrio pos-sível entre um espetáculo agradável ao público e suasquestões. A cena brechtiana é divertida sem deixar de ser

instigante e educativa, colocando a platéia numa praze-rosa situação de reflexão.

Para tanto, é preciso compreender também que a cri-ança é um ser complexo, sem clichês, preconceitos oumaniqueísmos, e a infância, uma fase com questões einteresses próprios, repletos de leituras e releituras domundo, sendo nela latentes a curiosidade e o interessepela descoberta.

Penso que um espetáculo para crianças será tão maisdidático quanto mais prazeroso for ao instigar para a des-coberta, ao fazer do exercício cênico espaço de pesquisa e deexperimentação compartilhada, e não depositário de respos-tas claramente prontas e fechadas, muitas vezes sob a más-cara de uma diversão de rotina, bem distante daquele prazerdo conhecimento de que nos falava Bertolt Brecht.

Dessa forma, o “didatismo” (ou o mau-didático) estariaassociado a uma tentativa de simplificar a função educativado teatro, atrelando-o a idéias fixas que não estão sujeitas àparticipação ativa de sua platéia. Acredito ter compreen-dido, por meio desta pesquisa, que os objetivos didáticospodem ser associados ao teatro sem que este último seinstrumentalize ou fique a seu dispor e que o teatro pode serparceiro da educação numa fruição educativa. E, ainda,que, se os elementos principais do teatro didático paracrianças forem respeitados – a criança com seu prazer dedescobrir, o teatro como arte e o conhecimento como jogoprazeroso –, estaremos garantindo um espetáculo dequalidade, capaz de encantar, divertir e informar sua platéia,seja ela de crianças ou de adultos. n

5 Tolstoi apud McCaslin, Nellie. Creative Drama in the Classroom. New York: Longman, Fifth Edition, 1990, p. 283, trad. do autor.6 Brecht, Bertolt. Teatro Dialético. Seleção, tradução e introdução: de Luiz Carlos Maciel, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 99.

BIBLIOGRAFIABENEDETTI, Lúcia. Aspectos do teatro infantil. Rio de Janeiro: SNT, 1969.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise: das origens orientais ao Brasil de hoje. São Paulo: Ed.Quíron; Global, 1982.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.

MCCASLIN, Nellie. Creative Drama in the Classroom. New York: Longman, 1990.

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. No reino da desigualdade: teatro infantil em São Paulo nos anos setenta. São Paulo:Perspectiva, 1991.

CARVALHO, Flávio Augusto Degranges de. O teatro épico e a criança. Dissertação de mestrado em Educação pela UFF,Niterói, 1995.

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Teatro como meioTeatro como meio

MARCOS MALAFAIA

O propósito deste semininário, refletir sobre “para que serve o teatro”, com certeza é uma tarefa difícil efatalmente inconclusiva. As abordagens são tantas,

tão diversas e intrincadamente complexas que desencorajam sínteses. Portanto, antes mesmo de começar, é razoável abandonar a pretensãomais abrangente.

este caso, nos concentraremos em algumas consi-derações, observações e comentários laterais e

superficiais que possam acrescentar, ao corpo da dis-cussão, pontos de entrada para posteriores reflexões,mais consistentes.

De modo geral, as observações a seguir originam-seda experiência prática do grupo Giramundo na criaçãode bonecos, na produção de espetáculos e no treinamen-to de marionetistas, principalmente. Procuramos enfati-zar as singularidades do teatro de bonecos colocando, aolado das características que o definem como pertencentea grande família das manifestações teatrais, outras que otornam uma forma de arte específica. Nessa tentativa dedefinição essencial, talvez possamos encontrar pistaspara uma interpretação das funções do teatro.

Deliberadamente, não nos concentraremos nas in-terpretações antropológicas ou sociológicas que jáencontram trajetória de investigação definida em cor-rentes de pensamento sólidas e conhecidas. Nos ate-remos a uma idéia que se apresentou na prática educa-tiva do Giramundo, mais especificamente na lida comjovens alunos, onde percebemos que o teatro, de ummodo geral, provoca efeitos não esperados, que vão alémdo próprio teatro. A noção do teatro como “atividademeio para outra coisa” será o centro de nossa argu-mentação.

TEATRO COMO MEIO POÉTICO

A questão “para que serve o teatro” possui, pelo pró-prio sentido do verbo “servir”, conotações curiosas. Amais evidente destas perspectivas é a utilitária, ou seja, ade que o teatro se presta a alguma coisa, tem como fina-lidade algo ou satisfaz alguma necessidade. Encontrare-mos diversas proposições nesse sentido variando desde aausência completa de utilidade – o teatro não serve paranada – até utilidades como entretenimento, educação,socialização, politização e outras. Gostaríamos de desta-car, por entre a floresta de explicações, certas funções oupossibilidades que deslocam a interpretação sobre oteatro aproximando-o de um meio para: (1) o exercíciopoético, (2) o desenvolvimento da habilidade de com-posição plástica, (3) a percepção do trabalho comometodologia e (4) para a educação num sentido amplo.

Partiríamos da constatação de que a apreciação e pro-dução poética, em seu sentido mais amplo – como umaforma de distanciamento do cotidiano imediato e rea-lista, repleto de constrangimentos à imaginação e à críti-ca – encontra-se em declínio ou sufocada pelos procedi-mentos da vida contemporânea. Poderíamos até mesmopropor que a habilidade ou capacidade de percepção desensações ou sentidos poéticos, principalmente pelosjovens, foi amortecida e desestimulada. São inúmeras,conhecidas e polêmicas as razões – o desuso da leitura, a

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comunicação de massa, as novas mídias eletrônicas –mas o fato é que os processos sensíveis e significativos dapoesia são ou estão desconhecidos pelo público. Esse fatodificulta a percepção da arte em seu sentido mais pro-fundo, quer seja no campo das artes plásticas, da músi-ca, da literatura, do teatro.

No caso do teatro de bonecos, percebemos que o tra-balho complexo, composto pelos diversos ofícios e tare-fas presentes na montagem de um espetáculo – a adap-tação de um texto, a construção de bonecos, os ensaios esua ênfase na representação através de movimentos –enfim toda a coleção de ações encadeadas que culminamna apresentação teatral, parecem estimular esta sensibi-lidade poética reprimida. Além da natureza artística eartesanal das atividades descritas anteriormente, soma-seuma característica peculiar e central do teatro debonecos que é a precariedade material. Essa redução demeios, quer por motivos econômicos quer por motivospráticos da apresentação ao vivo, força a linguagem doteatro de bonecos a encontrar representações metafóri-cas, simbólicas, lúdicas, fantásticas, enfim, poéticas.

Portanto, pecebemos no teatro em geral e no teatrode bonecos em particular uma propensão a estimular acriação e vivência de situações imaginárias, restabelecen-do um estado de “prontidãopoética”, comum em todos nósquando crianças, uma dis-posição ao jogo, à brincadeira eao prazer da lida com situaçõesinusitadas e não convencionais.O teatro pode se apresentarcomo um movimento que con-trabalança o bombardeio derealismo, racionalismo, prag-matismo, passividade e acriti-cismo de nossa sociedade.

Ao lado do efeito de despertar poético, muitas vezesalcançado pelo teatro em sua prática normal, percebe-mos que a multi e inter disciplinaridade dos processosenvolvidos pelo atividade teatral encontra certo paralelonum estado de diluição de fronteiras que marca a pro-dução artística contemporânea. A criação de comparti-mentos e definições estanques que marcou o olhar sobreas artes na modernidade perde cada vez mais sentido em

relação à realidade, tornando-se um quadro de análiseobsoleto e pouco útil.

TEATRO COMO MEIO PLÁSTICO

Dessa forma, encontramos o teatro como um meiocapaz de diálogo intenso com outros campos através decruzamentos, influências, composições e superposiçõesvariadíssimas, numa geração permanente de novas fron-teiras, cada vez mais matizadas, mais ricas e menosdefinidas. Assim, podemos também entender o teatrocomo uma forma de reorganização de recursos plásticos,onde a matéria principal é a idéia.

Na importância da idéia como habilidade de análiseestrutural e força estruturante capaz de descortinar asaparências através da crítica e de organizar a matériaatravés do planejamento faz do teatro um exercício efe-tivo de organização plástica propenso a desenvolver opensamento crítico e a prática criativa.

TEATRO COMO MEIO EXPERIMENTAL

Com a união destas fundamentais práticas – a davivência poética e a da análise e criação de estruturas atravésdas idéias – o teatro se transforma num campo

experimental. Não ex-clusivamente no sentidogenérico da vivência denovas situações mas,também, num sentidomais próximo dos proce-dimentos metodológicosda ciência: um campo deprovas, de ensaios, detestes, de proposições everificações encadeadas de

modo coerente.

Por este ponto de vista, podemos observar a prática doteatro como um teste permanente e consequente dedeterminadas hipóteses, onde o espetáculo é o argumentofinal que comprova ou não determinadas expectativas. Aprática experimental controlada, circunscrita a parâmetrosdefinidos e regulados e aplicada ao campo da arte, incluio teatro no conjunto de formas artísticas capazes deassumir função de meio experimental.

Além da natureza artística e artesanal,soma-se uma característica peculiar e central

do teatro de bonecos que é a precariedadematerial. Essa redução de meios força a

linguagem do teatro de bonecos a encontrar representações metafóricas, simbólicas,

lúdicas, fantásticas, enfim, poéticas.

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TEATRO COMO MEIO EDUCATIVO

Ora, sendo o teatro capaz de provocar a vivênciapoética despertando-a nos jovens, provocando-os a refle-tir para criar, ao mesmo tempo em que estabelece situ-ações disciplinadas para o desenvolvimento de experiên-cias plásticas, é natural que se apresente também comopromissor meio educativo. Absolutamente não estamosnos referindo ao teatro educativo, transmissor de conteú-dos restritos sob a condução de didatismos cansativos einócuos, ao contrário, apresentamos o teatro como ummeio educativo que contraria essa rigidez informativa epobreza significativa.

Nos referimos, mais exatamente, ao teatro como umaeducação situacional, como aprendizado através dariqueza do cotidiano, do diálogo com os erros, da trans-

missão de processos e saberes através da vivência práticade ofícios. O teatro, assim, alinha-se a todo “saber fazer”e a seus processos de transmissão de conhecimentos,estes tão sutis, complexos e preenchidos de emoção quesão submetidos a verificações duras e precisas diante darealidade do trabalho.

À procura de uma conclusão impossível, poderíamos

ressaltar a importância do teatro como um meio sobretudo

de humanização, de desenvolvimento do indivíduo e de

seu potencial de comunicação com outros indivíduos, mas

também um meio crítico, uma ferramenta de análise e de

criação, uma palheta complexa, capaz de composições e

experiências infindáveis e profundas e também um meio

generoso de educação, de transmissão de saberes,

habilidades e de formação de consciência do mundo. n

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O teatro, para que serve? >

> Maria Helena Kühner>

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Nossa racionalista civlização, também dita ocidental e cristã, como já foi seguidamenteassinalado, viu caírem por terra os paradigmasque nos foram um dia dados, por se teremmostrado cada vez mais inadequados a essemundo em transição em que vivemos.

oje sabemos que a racionalidade que nos ensi-naram como forma única de decifrar a multiplici-

dade de fenômenos não dá conta da complexidade dessemundo globalizado com todos os seus desafios:

n que a lógica não é a medida do ser, nem o discurso racio-nal a sua expressão, pois a finalidade de toda lógica, pormais disfarçada que se apresente, é o controle: lingua-gem, razão, imaginação são hoje vivenciados como lin-güística, ciência, psicanálise, três nomes que abrangemuma mesma atitude: o controle do mistério, o controle dalinguagem, o controle da produção e da sociedade;

n que o universo não pode ser visto como “versão única”, epor um pensamento único, como se todo ele fosseapenas um conjunto constituído pelos mesmos elementose obedecendo às mesmas leis e, como tal, campo deaplicação de ciências ditas “exatas”, tornado objeto deintelecção pelo método, a ordem, o cálculo, a medida;

n que a noção de diferença, que foi usada apenas paralegitimar hierarquias e autoritarismos, dividindoseres e classes em “superiores” e “inferiores”, além dedesrespeitar o outro enquanto tal, nos faz perder todaa riqueza possível de uma diversidade de visão eexpressão; e que a indiferença limita e amesquinhaquem com ela vê e é visto;

n que se essa forma de visão e relação foi um “progresso” naordem das coisas, positivamente não foi um progressopara o ser humano, com o produto tornando-se maisimportante que o produtor e tendo o mercado/amercadoria como definidores da própria noção devalor. E que essa produção e seus meios nos impingemsimulacros e tentam manipular até o desejo e a falta,motores mais profundos de qualquer inovação.

Neste mundo que nos querem fazer ver através deestatísticas e siglas, estamos perdendo a carne das pala-vras. Esquecendo:

• que o próprio pensar é algo concreto, pois pensar < pen-

sum, pendere, é o peso das coisas que faz a balança pen-

der para um lado ou para o outro;

• que a experiência viva e vivida é um experire, o que se ex-traido caminho (ir) aberto ou trilhado por aqueles passos;

• que a palavra tem em sua raiz a parábola, a situaçãoconcreta que lhe deu origem;

• que se história e sabedoria têm a mesma raiz (que o inglêsguarda em seu wisdom) é porque nela não se “abstrai” ovivido de seu contexto concreto: o passado são passos de umcorpo que se se move, com tudo que o con-move, e é dacultura assim gerada e in-corpo-rada que nasce o progresso;

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O teatro, para que serve?O teatro, para que serve?

MARIA HELENA KÜHNER

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• que a acelerada transformação em tudo que vemos nosfala desse impulso de trans, ir além, ultra-passandobarreiras e limites; e o projeto, termo hoje recorrente,é o que nos lança adiante, abrindo espaço à utopia, istoé, o algo que (ainda) está sem lugar.

Ou seja, tudo nos remete a uma situação concreta, etodo e qualquer projeto de transformação exige umamudança de atitude.

O TEATRO (TE-ATRIUM, LUGAR DE VER)

O teatro é o homem em situação na cena do mundo. Nafigura do autor (etimologicamente aquele que gera, fecunda,

faz nascer) a possibilidade do olhar novo, capaz de desvelarmáscaras, de desnudar e exibir atitudes, comportamentos evalores, admiráveis ou ridículos, de (re)descobrir o não-dito, os vazios, de revelar a expressividade dos silêncios.No en-cena-dor, a capacidade de criar a situação concreta, acena, juntando, organizando emum todo coerente e rico todos oselementos expressivos de quedispõe, para o fazer ver que defineo próprio sentido do teatro. Noator, a possibilidade de tornarpresença viva o ser humano emação, con-vivendo com o públicouma situação concreta, (con)movido por suas re-laço-ões deamor ou conflito com o(s) outro(s),buscando o des-envolvimento capazde libertá-lo, ou, se não oconseguir, de perdê-lo. E nessa ação viva e vital

reaprendendo, e mostrando, que além do poder que dominaou coage, existe um poder que é o verbo que todos nósconjugamos (eu posso, nós podemos), cuja força maior oumenor depende de nossa capacidade de sermos inteiros, poistem também fundas raízes no mundo do imaginário, dafantasia, da afetividade, do lirismo um dia desqualificadoscomo ilusórios; e que a busca de sent-ido ou rumo,orientação, inclusive da própria vida, inclui necessariamenteo sent-ir, os sent-imentos, e o sent-ido ou significação do quevemos e fazemos.

Quando Guy Debord criou a expressão “sociedade doespetáculo” para (des) qualificar essa sociedade em quevivemos, estava apontando para tudo que hoje vemos em

torno, da comunicação à política (como o prova o circo-teatro que neste momento ocupa todas as tvs). Mas se aexpressão se tornou lugar-comum, é exatamente porassinalar o potencial e a atualidade da linguagem teatral.Se as mais novas ciências são ciências do homem (psi-cologia, sociologia, antropologia etc.) é por serem re-veladoras da necessidade de o ser humano se (re)ver erecolocar-se, por inteiro, no centro da cena e da ação –tal como acontece no teatro. E por lembrar que apren-dizado do conviver com o outro é tão fundamental em ummundo globalizado, de relações marcadas pela diver-

sidade, que já se afirmou (Huntington) que no século o eixo do mundo não será mais o econômico e sim o cultural.

Portanto, ultrapassar o espetáculo (isto é, algo para os

olhos) para fazer VER é hoje, mais do que nunca, odesafio de quem faz teatro.

E O TEATRO PARA A

CRIANÇA E O JOVEM?

É evidente que asmudanças ocorridas,inclusive no campo daeducação, da cultura eda comunicação, nãopoderiam deixar de tertransformado também acriança e o jovem dehoje, levando à (pré)

maturidade tantas vezesassinalada em seus aspectos positivos e negativos. Pelosnovos meios de comunicação de massa, a criança vê-sehoje colocada desde cedo em contato direto com a reali-dade, formada e informada desde cedo por uma culturaque não é mais transmitida ou mediatizada apenas porpais e professores, e que lhe exige cada vaz mais cedouma atitude responsável, isto é, de responder por aquilo querecebe e faz, de assumir a tarefa e os riscos de seu co-nhecer. Atitude que levou os educadores mais cons-cientes a aproveitar o potencial que encessa esse movimen-

to autodidático na pesquisa orientada, no estímulo à cria-

tividade, na solicitação à reflexão, centralizando a açãoeducativa menos na mensagem em si transmitida e maisna avaliação das mensagens recebidas.

Pelos novos meios de comunicação de

massa, a criança vê-se hoje colocada desde

cedo em contato direto com a realidade,

formada e informada desde cedo por uma

cultura que não é mais transmitida ou

mediatizada apenas por pais e professores,

e que lhe exige cada vaz mais cedo uma

atitude responsável.

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Analisam-se e discutem-se os efeitos daquilo que éoferecido à criança: efeitos afetivos, agindo sobre suacredulidade e encantamento e acionando seus mecanis-mos de projeção, identificação e transferência; efeitosemocionais, de mimese e catarse; efeitos sobre sua per-cepção, deslocando-a de detalhes ou aspectos isoladospara conjuntos maiores e mais distanciados; efeitos in-telectuais, de ampliação e diversificação de informaçõessobre o mundo adulto; efeitos morais, sobre sua visão demundo e escala de valores; efeitos sobre sua socialização,mais desligada do mundo adulto em geral, porém reli-gando entre si os companheiros da mesma iodade querealizam experiências paralelas.

É essa referência à experiência vivida que traz à tona amodificação sofrida no processo de conhecimento: a rea-lidade que não é mais mediatizada pela autoridade doadulto, também não o é mais exclusivamente pelo con-ceito e, sobretudo para a criança e o jovem, adquireenorme importância o papel da informação visual, quemarca nossa “civilização da imagem”: o pensamento verba-

lizante vê-se confrontado com o pensamento imagístico; asmensagens transmitem menos conceitos do que formas ea expressão visual se vê duplamente desafiada, a obteruma visualização dos conteúdos verbais e uma verbalização

dos conteúdos das imagens – desafio que quem faz teatroconhece e vive permanentemente.

Partindo de um fato psicológico da criança – o de

que tudo que ela vê ou sente é por ela vivido como umaexperiência e de que é o conjunto dessas experiências quedá as bases de seu desenvolvimento potencial – temos,portanto, a posibilidade não só de rever o teatro que te-mos diante de nós, em nosso momento e meio, como defazer dos aspectos levantados bússolas para um teatro cadavez mais capaz de dar uma resposta válida e afirmativaao “para que serve o teatro” com que nos interrogamos.

Cabe-nos, para tal, perguntar: em que está con-tribuindo nossa produção para aquela influência sobre amaturação, a socialização, a percepção, o conhecimento eos demais mecanismos psicológicos acima apontados?Que uso podem fazer nossas crianças e adolescentes com o que lhe

oferecemos para organizar e interpretar suas experiências?

O que não só nos levará a empenhar-nos cada vez maiscontra os “produtos de mercado” de desqualificadosprodutores, que partem de estapafúrdias tramas misturandoPeter Pans e tartarugas ninjas, ou pseudo-“adaptações“ decontos clássicos, ou fiapos de enredo que sirvam de pretextoa macaquices, trejeitos, pulinhos e gritinhos de atores (?...)promovidos por um “marketing” que visa apenas abilheteria, e nunca a criança que está na platéia, ou o jovemque cada vez mais dela se afasta. E a valorizar cada vez maisos que, conscientes de trabalhar com uma linguagem damaior riqueza e expressividade, e de grande atualidade,saibam e queiram usá-la para exibir e suscitar o ricopotencial humano que ela faz ver. n

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ENTENDENDO O CONTEXTO DA AÇÃO TEATRAL

EM EMPRESAS

O Teatro-Empresa pode entrar no ambiente or-ganizacional por diversas portas. Vejamos algumas delas:

n Programas de Desenvolvimento de Pessoas

n Palestras Motivacionais

n Lançamentos de Campanhas Institucionais ou de Pro-dutos

n Programas de Qualidade de Vida

n Programas de Segurança e Engenharia do Trabalho

n Ações de Endomarketing

n Participações em ações de Cliente Oculto

Essas são as portas mais visíveis, mas muitas outraspodem levar o profissional de teatro até uma empresa ecom isso estabelecer parcerias de trabalho bastante inte-ressantes no aspecto profissional e no financeiro.

Agora, por que uma empresa buscaria o teatro comouma ferramenta para alguma das ações acima?

De uma maneira geral, metodologias são lançadas nomercado e algumas se tornam um grande modismo. Porvezes, o sucesso da metodologia é o seu próprio início defracasso, já que de tanto ser utilizada termina por esgotar ra-pidamente suas possibilidades. Além disso, poucas

metodologias são adaptáveis e passíveis de reformulações aolongo do tempo. Já com o teatro isso pode ser bem diferen-te, visto a sua capacidade de criação e recriação constantes.

O teatro se mostra uma ótima estratégia para as orga-nizações porque se apresenta como uma ferramenta viva,altamente adaptável ao contexto e as platéias. Por menosinterativa que uma ação teatral possa ser, no mínimo háo encontro de olhares. A platéia dos ambientes organiza-cionais adora tal contato, uma vez que vê humanizada asua própria condição.

No contexto organizacional, o teatro oferece umapossibilidade dinâmica e humanizada de espelhamentoda própria platéia. Faz pensar, mobiliza, alegra, angus-tia, propõe, impulsiona. O universo das empresas peloseu tempo e movimento próprios, por vezes, aliena seustrabalhadores num olhar que apenas olha para dentro,para o business, para o que já se sabe. O teatro, vivoatravés do ator, traz um pulsar que desperta essa alie-nação para um olhar novo da própria realidade, liber-tando-a de antigos paradigmas.

A ação teatral na empresa propicia um afastamentoda realidade para em seguida propor um olhar mais pró-ximo. Os funcionários são convidados ao espetáculo e,dessa forma, a princípio, colocam-se como observadores.Mas, em contato com a proposta da ação teatral, tal pers-pectiva aproxima-os das suas próprias questões cotidi-

Este texto pretende apresentar um pouco do que o teatro pode fazer por uma empresa,bem como fornecer dicas úteis aos atores que pretendem se especializar nesta área.

Teatro empresa: uma grandeoportunidade de entrar em cena!Teatro empresa: uma grandeoportunidade de entrar em cena!

ALBERTO JOSÉ MAGALHÃES CORREIA

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anas. O teatro-empresa bem realizado, geralmente, con-segue gerar o seguinte comentário da platéia de fun-cionários: “Achei que era só uma “pecinha” e no final mevi exatamente naquelas situações!”

Nessas ocasiões, o teatro oferece um ambiente parasimular novas realidades, abrindo espaço para discussõese a visualização de novos cenários, possibilidades. Teatrona empresa é uma estratégia diferente de mobilização,de reflexão e mudança sobre o próprio ambiente organi-zacional e as pessoas que nele trabalham.

Sendo assim, vejamos concretamente algumas con-tribuições que o teatro pode oferecer para uma empresae seus funcionários:

n O teatro pode ENSINARrealizando peças sobreergonomia, DST/AIDS,procedimentos de segu-rança no trabalho.

n O teatro pode SENSIBI-LIZAR sobre a impor-tância de usar EPIs(Equipamentos de Pro-teção Individual), sobreo valor da prevenção adoenças, pode sensibilizar para novos valores de li-derança, autodesenvolvimento, qualidade de vida.

n O teatro pode DESENVOLVER a criatividade e acomunicação através de oficinas e jogos teatrais.

n O teatro pode INFORMAR sobre novos produtos, novasperspectivas institucionais, sobre campanhas internas.

PERFIL DO PROFISSIONAL DE TEATRO PARA

ATUAÇÃO EM EMPRESAS

O profissional de teatro que deseja vender seus serviçospara uma empresa, primeiramente deve procurar entendero que é e como funciona o ambiente organizacional. A bus-ca de leituras de revistas que falam de negócios e mesmo si-tes na internet ajudam bastante na compreensão do cotidia-no organizacional. Para o ator será fundamental, inclusive,se apropriar da linguagem utilizada pelas empresas.

Podemos destacar algumas características fundamen-tais para quem deseja ter sucesso nessa área:

n Flexibilidade para lidar com situações não planejadase num ritmo diferente, o organizacional.

n Interesse e conhecimento mínimo do que ocorre dentro deuma empresa. Falar a linguagem de empresa e não do tea-tro. Lembre-se, o seu cliente talvez nem freqüente teatroe considere que tudo não passará de uma “pecinha”. Nãoespere que ele entenda a sua realidade profissional, maisque isso, mostre que você é capaz de entender a dele.

n Demonstrar velocidade de resposta no relacionamentocom o cliente.

n Possuir uma capacidade excepcional de improvisação,pois vale lembrar que o teatro-empresa não é uma

ação teatral estruturada,com local adequado, palco,iluminação, tempo suficien-te para ensaios etc.

n Ser capaz de interagir com oque se apresenta durante aação teatral, já que elatambém é altamente dinâ-mica para os atores. É comuma platéia intervir e sem quererquase inviabilizar o ritmo do

texto dos atores.

n Saber realizar diagnósticos e interpretar a demandatrazida inicialmente pelo cliente. Não só saberdiagnosticar, mas mostrar-se competente também natradução do que identificou em projetos concretos deresolução das demandas.

n Mostrar-se profissional, antes de ator, diretor ou qualqueroutra função do teatro. Quando se apresentar, o clientedeve vê-lo como uma “empresa parceira” e não comoum ator que está fazendo um “bico”. Sendo assim,cuidado com a aparência, organização, linguagem etc.Empresas dão enorme valor a estes aspectos.

Além de tudo o que já foi mencionado, faça o exercíciode imaginar como utilizar tudo o que aprendeu na suaformação teatral em ações de desenvolvimento organiza-cional. Com certeza, muitas possibilidades poderão serencontradas. Basta imaginar que o palco é o salão deestações de trabalho, que as coxias podem ser as escadariasdo prédio da empresa, que a platéia está doida para sair darotina e, principalmente, que o ator agora é consultor! n

O profissional de teatro que deseja

vender seus serviços para uma empresa,

primeiramente deve procurar entender o que

é e como funciona o ambiente

organizacional. A busca de leituras de

revistas que falam de negócios e mesmo

sites ajudam bastante na compreensão do

cotidiano organizacional.

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Citando como exemplo o Rio de Janeiro, dito pólo cultural do país, as produçõesteatrais têm amargado sucessivos prejuízoscom a ausência de recursos e de público.

reflexão provocada pelo tema do 3º SeminárioNacional SESC CBTIJ nos leva a pensar sobre essa

arte absolutamente necessária para nós, que a realizamos,e em que nível essa necessidade de consumir espetáculosteatrais se encontra na sociedade brasileira. O teatro viveuma forte crise. Ouvimos de algumas pessoas que os pro-dutores e profissionais de teatro vêm repetindo essa frasehá muitos governos. Em diversas discussões, chegamos àconclusão que a classe ficou em silêncio por longos anose hoje tem problemas acumulados de toda ordem.Através de vários grupos, que se reuniram para tentarsanar pelo menos uma parte desses problemas queestavam tornando o fazer teatral inviável, foram criadasalgumas entidades de classe, como a APTR – Associaçãode Produtores Teatrais do Rio de Janeiro. Se analisarmosa cadeia produtiva do teatro, a produção, a distribuição eo público certamente serão os problemas mais graves.

Citando como exemplo o Rio de Janeiro, dito pólocultural do país, as produções teatrais têm amargadosucessivos prejuízos com a ausência de recursos e depúblico. Uma produção profissional de teatro pode ter êxitona captação de recursos necessária à viabilização de suamontagem após dois a três anos de peregrinação entre aaprovação nas leis de incentivo, a inscrição nos poucos

editais públicos disponibilizados para o segmento e atentativa de venda do projeto para profissionais demarketing das empresas. Um estudo feito pelo produtorPaulo Pélico mostra que cerca de R$ 24 bilhões sãodestinados a “um conjunto de renúncias, isenções eincentivos fiscais que visam proteger ou estimular diversossegmentos da economia. Ao todo, em torno de 20 áreassão beneficiadas. A participação da cultura neste montanteé de apenas 1,5 % (R$ 357,1 milhões)”. Mesmo assim,tendo direito a uma fatia ínfima do bolo, fomos alertados noinício do governo Lula para o fim da Lei Rouanet.

Conseguir os recursos é apenas uma etapa. O problema,dependendo do texto a ser montado, pode começar com acompra dos direitos autorais, pois a tradicionalrepresentante dos autores teatrais no Brasil, a SBAT, estápassando por problemas financeiros graves e muitos autores,principalmente estrangeiros, não confiam mais a essaentidade o direito de representá-los. Esse direito acabasendo repassado para entidades privadas, não associativas,que liberam seus autores a preços muito mais altos.

Se a captação obteve êxito, ainda assim nossosproblemas não acabaram, muitos atos com cenas deviolência, tensão, drama e comédia ainda temos pela frente.No 1º ato, os recursos captados raramente representam o

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A reflexão provocada pelotema do 3º Seminário

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valor total da produção, faltando sempre uma fatiaimportante que tem que ser suprida com dezenas de “apoiosculturais”. No 2º ato, dependendo do texto a ser montado,se a produção não é uma Cia. Teatral, mas um grupo deprofissionais convidados, esta tem que fazer todo o proces-so de criação condensados em pouquíssimo tempo de en-saio, pois hoje as produções já planejam seus recursos paraensaiar três meses no máximo, mas na contabilidade final,captados menos recursos, essa estimativa reduz o tempode maturação da criação para dois meses de tensão edesespero. O taxímetro está rodando e os compromissostêm que ser cumpridos com os patrocinadores, sob risco dea produção ser penalizada com multas ou devolução dosrecursos, caso seja necessário adiar a estréia.

Terceiro ato: o teatro.No Rio de Janeiro nãotemos teatros suficientespara atender a demanda. Osteatros da Rede Municipalno Rio estão bem equipa-dos e, por isso, são muitorequisitados. Se a peça é degrande porte, temos hojeapenas dois teatros emcondições de receber a pro-dução de maneira digna: o Carlos Gomes e o SESCGinástico. Uma produção que aceita o desafio de ocuparos teatros de maior porte da Rede Estadual (Villa-Lobosou João Caetano), certamente vai gastar grande parte dosseus recursos não na montagem, mas em locação deequipamentos e infra-estrutura. Cumpridas essas etapascom êxito, a produção decide que poderá permanecer emcartaz dois meses (é o tempo máximo que geralmente osteatros públicos concedem para as produções). Próximoato: a mídia. Uma produção hoje tem que optar entreremunerar dignamente seus profissionais ou executarum belo plano de mídia. Uma boa mídia paga não signi-fica necessariamente ter um bom público. As editoriasdos jornais de grande circulação estão reservando cadavez menos espaço para teatro. As estréias não são mais“notícia”, as polêmicas sim. Passar por toda essa via-cru-cis para chegar ao palco e abrir o pano não representa

nada para a mídia espontânea carioca. Há ainda toda aburocracia, dos alvarás, classificação etária, liberações epedidos de permissão a Deus para estrear a sua peça.

Após a estréia para convidados, chegou o grande dia:o dia do público. Digamos que a sua produção não teverecursos para mídia, teve um pequeno espaço no jornalatravés da assessoria de imprensa, mas seu ingresso custaR$ 25,00, preço médio praticado nos teatros do Rio evocê pensa que isso não será problema porque o seuingresso médio será de 12,50. Acontece que o público vêo valor cheio do ingresso e não sabe que a maioria pagameia-entrada, que você precisa pagar direitos autorais, oteatro, os profissionais que criaram e atuam no espetácu-lo, os técnicos, a manutenção, o aluguel dos equi-

pamentos... Tudo com a bi-lheteria... Lucro? É o quenão precisamos nos preocu-par, ele não vem mesmo.No máximo conseguimosempatar a produção, ouseja, não ter prejuízo já éum sucesso!

As leis de meia-entradano Rio de Janeiro represen-

tam 80% de nossa platéia.Não haveria o que discordar dessas leis se não fosse umrequisito básico. Os seus autores pensaram no benefíciopolítico, mas esqueceram de prever um subsídio aos pro-dutores, que ficam com a conta negativa.

No ato final concluímos que nós, produtores, cri-adores, técnicos, temos um amor profundo pelo quefazemos: TEATRO. É urgente que retomemos a necessi-dade de sua existência, mostrando ao poder público queé sua obrigação fomentar e dar condições de desenvolvi-mento para o nosso setor econômico, em todas as etapasda cadeia produtiva. Assim, se voltarmos a ter uma fartaprogramação teatral, se o teatro estiver dentro das esco-las, fazendo parte da programação familiar, será um ele-mento básico na construção do cidadão e a própriasociedade terá condições de responder a este questiona-mento: “Teatro, para que serve?”. n

As leis de meia-entrada no Rio de

Janeiro representam 80% de nossa platéia.

Não haveria o que discordar dessas leis se

não fosse um requisito básico. Os seus

autores pensaram no benefício político, mas

esqueceram de prever um subsídio aos

produtores, que ficam com a conta negativa.

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ma experiência vivida na infância pode ficar parasempre na memória de uma pessoa, marcando-a, e

seus gostos e predileções, para o resto da vida. Dissoninguém duvida. Como inquestionável também é opapel da arte na formação do ser humano.

A meu ver, o teatro, como nenhuma outra forma dearte, pode contribuir para o crescimento pessoal e oalargamento do olhar de qualquer ser humano em for-mação. Afirmaria mesmo que o hábito de ir ao teatrodesde cedo ajuda qualquer criança a crescer melhor. E –por que não? – mais rápido.

Falo isso com a autoridade de quem, desde muitopequena, freqüenta, como espectadora, a sala escura deespetáculo. De quem sempre enfrentou, com uma filhapequena, filas, pipoqueiros e flanelinhas para se divertir,alegre, em finais de semana também dedicados às sessões deteatro para crianças. Por último, falo com o prazer e oorgulho de alguém que dirige uma instituição quetambém acredita na transformação das pessoas através daarte. Que tem incentivado a arte feita especialmente paracrianças e jovens. E que tem tido a satisfação de colaborarpara o processo de formação de novas platéias, semeando emnovos espectadores o gosto pela magia do teatro.

Trabalho no Instituto Telemar, entidade do terceiro setor,que coordena o Programa Telemar de Patrocínios Culturais

Incentivados, iniciativa através da qual, anualmente, o GrupoTelemar tem investido em montagens de espetáculosvoltados para a infância e a juventude em diversas partes dopaís. Com isso, temos valorizado a diversidade culturalbrasileira e estimulado artistas e companhias de teatro que sededicam a esse público. Sempre apostando na qualidade e emcriadores que considerem que o público infanto-juvenil não émenos exigente que o público adulto.

Através do Programa Telemar de Patrocínios CulturaisIncentivados temos, sistematicamente, viabilizado a tem-porada de dezenas de espetáculos teatrais, que têm reunidoum número muitíssimo expressivo de espectadores. E, jáque a democratização do acesso à arte é uma das propostasdo Programa, esse público é formado, muitas vezes, poralunos de escolas da rede pública de ensino e por criançase jovens atendidos por projetos sociais. Com isso, temostentado ampliar ainda mais o processo de formação de pla-téia, levando para o teatro um público sempre alijado daagenda cultural.

O ano de 2005 foi especialmente importante para aatuação do Instituto Telemar na área de cultura. Abrimosem maio, no bairro carioca do Flamengo, o Centro CulturalTelemar. Nesse espaço, que tem como palavra-chave aconvergência, unimos de forma especial a arte e a tecnologia,promovendo artistas e manifestações e sotaques diferentes

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Teatro infantilTeatro infantil

Maria Arlete Mendes Gonçalves

A meu ver, o teatro, como nenhuma outraforma de arte, pode contribuir para o crescimento pessoal e o alargamento do olhar de qualquer ser humano em formação.Afirmaria mesmo que o hábito de ir ao teatrodesde cedo ajuda qualquer criança a crescermelhor. E – por que não? – mais rápido.

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em torno das novas linguagens artísticas. Lá, dedicamosespecial atenção ao público infanto-juvenil e a projetoseducativos. Na programação do teatro também fazemosquestão de dedicar espaço ao que é produzido para criançase a juventude.

Dentro das comemorações do Ano Brasil na França,exibimos no Centro Cultural Telemar em tempo real –através de moderno processode transmissão – as sessõesdo espetáculo Sinfonieta

Braguinha, de KarenAcioly, que aconteceramem Paris. A ida – inédita?– de um espetáculo infantilpara a Europa, juntamentecom um grupo seleto deatrações para “adultos”,também foi patrocinada por um pool de instituições cap-itaneado pelo Grupo Telemar.

Em 2005, tornamo-nos, também através do Progra-ma de Patrocínios, parceiros do Intercâmbio deLinguagens para as Crianças, bem-sucedida iniciativaque chegou a terceira edição, com uma programaçãoampliada, somando atrações estrangeiras às brasileiras,promovendo oficinas e espetáculos e reunindo profis-sionais de trajetórias diversas em mesas-redondas. Gentedo mundo inteiro reunida no Rio de Janeiro em torno dadiversidade do teatro que é produzido para o públicoinfanto-juvenil.

Ficamos felizes também com o sucesso dos espetácu-los montados com recursos incentivados do GrupoTelemar. Das dez peças apontadas pelo crítico do Jornaldo Brasil Carlos Augusto Nazareth, como os melhores

da temporada 2005, três foram beneficiados peloPrograma de Patrocínios: Os diferentes, do grupo Hombu,As aventuras de Robinson Crusoé, com direção de JoãoBatista, e A aranha arranha a jarra, a jarra arranha o

trava-lingua, de Demétrico Nicolau.

O mesmo crítico destacou as interpretações de EduardoRieche, em As aventuras de Robinson Crusoé, e de Josie

Antello, em Estação

Drummond, como as melhoresdo ano. Mais motivo deorgulho para a gente. As duaspeças cumpriram temporadano Centro Cultural Telemar.Já O Globo incluiu na listade espetáculos indicados pelojornal, durante várias

semanas, além do já citado As

aventuras de Robinson Crusoé, a peça O Theatro das Virtudes, deSura Berditchevsky, que também fez carreira de sucesso noCentro Cultural Telemar.

As indicações e elogios para as montagens tomamespecial importância quando vêm dos jornais, já que écada vez mais escasso o espaço dedicado ao chamadoteatro infantil na mídia, notadamente na carioca. E,infelizmente, essa falta de visibilidade deve refletir, alongo prazo, em queda de público...

De qualquer modo, tudo isso só faz reforçar em mim– em nós – a convicção de que, mais que nunca, é pre-ciso fomentar a produção voltada para o público infanto-juvenil. Que é preciso estar atento ao que se faz em prolda formação cultural desses novos espectadores.

Acreditando sempre que a arte pode criar também umcidadão melhor. Gente grande, desde pequena. n

As indicações e elogios para as

montagens tomam especial importância

quando vêm dos jornais, já que é cada vez

mais escasso o espaço dedicado ao chamado

teatro infantil na mídia, notadamente

na carioca.

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radioteatro e a radionovela representavam uma ma-nifestação acessível e popular. Tendo por base uma

concepção realista na qual som, ruídos e vozes ilustravamliteralmente ambientes e situações, a radionovela erafacilmente assimilada como a sua descendente direta, atelenovela.

Segundo Ricardo Dias Medeiros (1998, p. 39), “oestilo de novela difundido em toda a América Latinanasceu em Cuba, por volta de 1934, (...) resgatando agênese do folhetim nas ondas radiofônicas”. Ainda paraMedeiros, tanto as novelas radiofônicas cubanas como asAmericanas tinham o patrocínio das empresas multina-cionais de produtos de limpeza (por isso chamadas nosEUA de soap-operas) o que também aconteceu no Brasil.Aqui, ainda somaram-se as grandes indústrias de produ-tos de higiene como Gessy-Lever e Colgate-Palmolive.A estratégia comercial dessas empresas levou o gênero àsemissoras de norte a sul do país. Tanto no Brasil comoem Cuba e EUA, o melodrama e o folhetim do séculoXIX estavam presentes.

A Rádio Nacional no Rio de Janeiro é o melhor exem-plo de produção de esquetes, seriados e peças curtas quepreenchiam a vida dos ouvintes. Da mesma forma com quea dramaturgia televisiva hoje ocupa vários horários da grade

das emissoras brasileiras, o rádio nas décadas de 40, 50 e 60reinava absoluto no Brasil. Radialistas, como CândidoNorberto,1 afirmam que “o rádio que se costuma chamar de‘o rádio de antigamente’ não era nem mais nem menos doque a televisão de hoje. E a seu favor dispunha até mesmodas mais belas e variadas imagens que se conhece – aquelascriadas pela imaginação dos ouvintes acionada pelos sons epelas palavras...”.

“Senhoras e senhoritas, a Rádio Nacional do Rio dejaneiro apresenta EM BUSCA DA FELICIDADE, emo-cionante novela de Leandro Blanco...” assim, em 1941,se iniciava a primeira radionovela no Brasil. A Nacional,a partir de então, passou a ser a ambição de atores e ra-dialistas. Com vinte novelas no ar, um elenco de mais decem atores e atrizes e mais de seiscentos funcionários, aRádio Nacional atraía a todos. As estrelas das radiono-velas da Nacional brilhavam e arrebatavam multidõescomo as estrelas da televisão de hoje. Havia um grandeinvestimento em talentos e equipamentos, ensaiava-seapaixonadamente e com competência e buscava-se a ex-perimentação de novas idéias.

Basicamente catárticas, as radionovelas apresentavamna maioria das vezes o bem vencendo o mal. Melodramasque como os folhetins buscavam a audiência maciça das

1 Em depoimento incluído no livro Bem Lembrado, histórias do radioteatro em Porto Alegre, de Mirna Spritzer e Raquel Grabauska. p. 36.

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O ator e a peça radiofônicaO ator e a peça radiofônica

MIRNA SPRITZER

Durante muito tempo o radioteatro ocupou um espaço importante na programação das rádios

brasileiras. Para Fernando Peixoto (1980, p. 5), “o rádio era um instrumento mágico que

nos transportava para um universo de fuga e fantasia”.

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“senhoras e senhoritas” em quem os patrocinadoresinvestiam pesadamente.

A peça radiofônica aparece na Europa, em especial naInglaterra, França, Espanha e Alemanha, na década de20, como um gênero bem diferenciado.

A Hörspiel alemã apresenta uma outra forma deabordagem do veículo radiofônico. Menos comprometidacom o realismo, com o melodrama ou com a obriga-toriedade dos capítulos, a peça radiofônica alemã trabalhacom liberdade e com recursos menos fáceis. Sem subestimara capacidade imaginativa de quem escuta, permite-se criarmetáforas sonoras e oferecer ao ouvinte autonomia criativa.

Na Espanha, a partir de1925 já se falava num teatroradiofônico e no mesmo anoacontecia um concurso nacio-nal de textos criados especial-mente para a linguagemradiofônica. A partir de entãonão apenas se produz radio-teatro como também cria-seuma importante rede de teóricosque pensam a linguagem radiofônica e a importância doradiodrama, e que chega em Armand Balsebre, PedroBarea, Alfonso Sastre, entre outros.

A BBC de Londres, já em 1925, tem estúdios derádio concebidos para criações dramáticas, de dimensõescinematográficas. Ainda hoje a BBC produz todo tipo depeça radiofônica e também leituras radiofonizadas degrandes obras da literatura.

E no que diz respeito ao Brasil, o Serviço Brasileiro daBBC dedicou-se algumas vezes a estudos sobre o rádio e àprodução de dramas radiofônicos em português.

Vários dramaturgos importantes do século XX en-contraram no rádio um veículo rico para transmissão desuas obras. Samuel Beckett escreveu peças diretamentepara o rádio e acreditava que a radiofonia valorizavaaspectos fundamentais de seus temas como solidão, in-quietação e intolerância. Para María Antonia Rodríguez

Gago (1988, p. 29), “sua arte é apenas uma questão devozes e sons fundamentais. Seus personagens estão obce-cados por uma voz, ou vozes que, vindas da obscuridade,são um fluxo contínuo nas suas mentes. Esta é uma situ-ação que se transfere ao rádio de forma natural”.

Bertolt Brecht não só escreveu para o rádio comocriou uma Teoria do Rádio. Nesses escritos, Brecht pre-tende fazer do rádio um instrumento de conscientizaçãoe participação popular.

Como refere Fernando Peixoto (1980, p. 7), “a visãode Brecht aponta caminhos mais ousados: acentua anecessidade de se buscar uma estrutura expressiva nova,

para experimentar umalinguagem que ganhe suagramática específica, apartir de seus própriosrecursos narrativos”.

Walter Benjaminescreveu sobre e para orádio e foi também locutorde seus programas. Peças

radiofônicas, conferênciasliterárias, programas para crianças e os chamados modelosradiofônicos, textos experimentais que tinham como basesituações cotidianas e ofereciam conselhos práticos aoouvinte. Ângela Materno, em seu artigo Os radiodramas de

Walter Benjamin (1998, p. 37), afirma que “pode-se dizerque eles (os escritos para o rádio) não só reapresentamalguns dos principais temas de sua obra, como também ofazem por meio de composições semelhantes, em váriosaspectos, aos de seus textos ensaísticos”.

Nos Estados Unidos, a histórica radiofonização de AGuerra dos Mundos, de H.G. Wells, por Orson Welles,em 1938,2 marcou definitivamente a criação dramáticapara o rádio. A transmissão levou às últimas conseqüên-cias o imediatismo do rádio e sua capacidade de falar aoouvinte de forma direta. Ao criar uma pretensa repor-tagem da invasão da terra por marcianos, Orson Wellesafirma o presente, tempo privilegiado pelo teatro, comoo tempo da ação também no rádio.

Basicamente catárticas, as radionovelas

apresentavam na maioria das vezes o bem

vencendo o mal. Melodramas que como os

folhetins buscavam a audiência maciça

das “senhoras e senhoritas” em quem os

patrocinadores investiam pesadamente.

2 Em 30 de outubro de 1938, dia das bruxas nos Estados Unidos, a rede de rádio CBS transmitia o programa semanal, Mercury Theatre, que apresentava adaptações daliteratura, sob a direção de Orson Welles, então com 23 anos. Naquela noite, o programa era uma adaptação de A Guerra dos Mundos de H.G.Wells. Com uma audiênciamuito grande, o programa, mesmo anunciado como ficção, criou um clima de pânico em todo o país. Muitos acreditaram que a terra estava realmente sendo invadida por mar-cianos e tentaram fugir de suas casas e cidades. A repercussão foi tal que causou uma convulsão de enormes proporções.

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Como recorda Saroldi (1998, p. 95), “durante 45minutos daquela noite de domingo, os Estados Unidosforam submetidos a uma prova de resistência não anun-ciada. Apesar do programa de Mercury Theater ter tidoa divulgação normal de um entretenimento radiofônico,a dramatização de A Guerra dos Mundos alcançou talgrau de credibilidade que atingiu os temores conscientese inconscientes da população”.

Os diferentes públicos constituem-se como tal, nasrespectivas condições de cada lugar e cada cultura. A radio-novela foi uma forma radiofônica característica da AméricaLatina que se traduziu mais tarde em imagens através datelevisão. Na Europa, a experimentação e a vinculação como texto dramático e literário foram mais evidentes.

Algumas experiências, porém, foram comparti-lhadas. É o caso do seriado O Sombra, vivido nos EstadosUnidos por Orson Welles, que foi produzido e transmi-tido no Brasil, no Rio de Janeiro, em São Paulo, emRecife e em Porto Alegre. Reunindo suspense e crimesdesvendados, o seriado policial em que o personagemprincipal vive aventuras de perigo e heroísmo, atraiumultidões de ouvintes nos dois hemisférios. Como diziaa frase de abertura, “quem sabe o mal que se esconde noscorações humanos? O Sombra sabe!”

Assim, é possível afir-mar que o radiodrama e apeça radiofônica têm estadopresentes nas produçõesradiofônicas praticamentedesde que o rádio existe.Ou ainda, a ficção no rádiocom diferentes formas denarrativa ocupa um espaçoexpressivo desde sempre.

Como expressão estética o rádio é, pois, tempo e lugarde experiência criativa, de criação artística. Recriar seupassado de atividade intensa com o radiodrama é recuperarpara atores e ouvintes, um aprendizado de convivência como poético, com o devaneio, com a fruição.

A experiência radiofônica traz aos atores a sensibi-lização da voz que nesse veículo assume o estatuto docorpo. E é um exercício sensível aos ouvintes quereaprendem a imaginar através da provocação da escuta.

Uma experiência como pedagogia na medida em que dálugar a novas relações com a palavra, diferentes con-cepções de conhecimento e porque inclui falantes eouvintes como sujeitos e objetos deste conhecimento.

Sempre achei que o rádio, para um ator, é um veícu-lo extremamente fascinante e um espaço muito propíciopara exercer aquilo que nós atores fazemos que é tam-bém sedução. Do palco, do corpo inteiro, da forma, domovimento e da voz. Acoplada aos efeitos, aos silêncios,ou sozinha, a voz é um poderoso mecanismo de sedução.

O rádio oferece ao ator a ampliação de seus recursos,de seu repertório e a criação de uma obra insólita na suanão materialidade e na sua vocalidade corporal. A chancede criar um texto-voz sobre o mundo e sobre a experiên-cia de estar nele escutando seus sons e silêncios. Escutaé aprendizado e imaginação. E compondo vozes quedigam as palavras, os sussurros, as interjeições, os sus-piros, os bocejos, as gargalhadas e as lágrimas.

A ação é a essência do teatro e também do rádio. Seno teatro ela gera o movimento dos conflitos, perso-nagens e situações, no rádio ela determina a existênciaou não dos personagens e acontecimentos, através dasvozes e sons. É o câmbio de ritmo, de situação e de som

que motiva a ação radiofôni-ca. E é o que marca a pre-sença de alguém na cena.

O exercício da peça ra-diofônica prepara os atorespara o rádio, mas tambémpara o teatro. Na medidaem que aprende a dependerda voz para criar todos os

elementos do papel, o atoreduca-se para a fala criativa, para a respiração expressiva,para o silêncio que preenche a cena. E redescobre a escu-ta, a fala que faz sentido porque ancorada na fala do par-ceiro. Assim, não há desperdício na atmosfera na cena.Há um corpo que fala e um corpo que escuta. Ambosrespiram e anseiam pelo outro, o parceiro na cena e oparceiro na platéia. Atores e público assim contam jun-tos uma história, constroem em parceria a narrativa.Como lembra o poeta Pessoa (1999, p. 501), “desde quevivo, narro-me”.

A ação é a essência do teatro e

também do rádio. Se no teatro ela gera o

movimento dos conflitos, personagens e

situações, no rádio ela determina a

existência ou não dos personagens e

acontecimentos, através das vozes e sons.

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O ator e a peça radiofônica >

> Mirna Spritzer>

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A possibilidade de trabalhar no rádio é instigantepelo desafio de colocar todas as intenções e ações na voz.E é um exercício privilegiado para os atores, que têmcomo tarefa diária a valorização da palavra. Palavra comosignificado e também como porta voz, como mensagemembalada em ritmo, musicalidade e duração.

O trabalho realizado com foco no tempo e espaçomostra-nos que o parentesco com o teatro pode ser gra-tificante se mantida a concentração em sua conseqüênciasonora sobre a obra. A experimentação de espaços varia-dos para repercutir as sonoridades da voz e das palavrastraz a dimensão prática da idéia de duração em relaçãoao tempo e aos silêncios e pausas. Isso nos obriga a sairda lógica do significado liberando a musicalidade, aimaginação, a textura.

As relações que podemos estabelecer entre tempo,espaço, duração e intenção são conquistas inestimáveis.Mesmo que transposto para a composição de persona-gem de um texto dramático, ou para um texto literáriono qual o ator é o narrador, essas relações constituem oconhecimento que embasa tanto a técnica como a intui-ção. Implica na maneira de dizer e em como relacionar a

extensão da fala com o tempo da respiração. O efeito quea fala produz está influenciado por esse tempo. No tra-balho com o teatro a tendência é que a fala seja uma con-seqüência de como age o personagem. Talvez aqui pos-samos criar um caminho em que a intensidade da falaprovoque a ação.

Quando participo de atividades de ação cultural, ouem escolas, apresentando o trabalho com a peçaradiofônica, constato que todos ficam muito mobiliza-dos com a possibilidade de criar efeitos sonoros. Apesquisa de materiais que produzam sons, a procura porsons que criem atmosferas, enfim, o universo radiofôni-co parece bastante sedutor.

Criar peças radiofônicas com diversas motivaçõessugere uma apropriação muito rica das vozes e efeitossonoros. Assim, num estudo sobre as diferentes lingua-gens, a radiofônica aparece com sua especificidade.

Em oficinas que venho ministrando, reconheço umfascínio pela escuta, pela surpresa de ouvir-se. Umaredescoberta da voz, das palavras e do exercício lúdicoque pode ser a peça radiofônica. o contar ou a leituraradiofonizada. n

BIBLIOGRAFIA

GAGO, María Antonia Rodríguez. Arte Y experimentación en el teatro Radiofónico de Samuel Beckett. In: Escenarios de laradio. Madrid: Centro de Documentación Teatral. Instituto Nacional de Las Artes Escénicas y de La Música. Ministerio deLa Cultura, 1988.

MATERNO, Ângela. Os Radiodramas de Walter Benjamin. O Percevejo, Revista de Teatro, Crítica e Estética. Departamento deTeoria do Teatro, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Rio de Janeiro, UNIRIO, ano 6, n. 6, 1988.

MEDEIROS, Ricardo. Dramas no Rádio. Florianópolis: Insular e Fundação Franklin Cascaes, 1998.

PEIXOTO, Fernando. Descobrindo o que já estava descoberto. In: SPERBER, George Bernard. Introdução à Peça Radiofônica.São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1980.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo, 1999. (1913).

SAROLDI, Luiz Carlos. A Guerra dos Mundos e o outro conflito mundial. In: MEDITSCH, Eduardo (org.). Rádio e Pânico. A Guerra dos Mundos, 60 anos depois. Florianópolis: Ed. insular, 1998.

SPRITZER, Mirna & GRABAUSKA, Raquel. Bem Lembrado. Histórias do radioteatro em Porto Alegre. Porto Alegre: AGE/NovaProva, 2002.

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onvite feito, convite aceito. A oficina seria dada numatarde. Quatro horas sem intervalo, disse eu, só uma

tarde? Teríamos que fazer o tão falado “contrato pedagógico”– deveria ser informado ao grupo o que iríamos trabalhar, oporquê e, além de nos divertir, fazer a auto-avaliação, porescrito no final da oficina. O trabalho seria teórico / prático.

TEATRO, PARA QUE SERVE?

Comece se perguntando – O que é?

1. JOGO – uma atividade livre, inata, regrada, decaráter incerto, que cria ordem, abre espaço para ametáfora, para a criação.

2. JOGO DRAMÁTICO – primo-irmão do JogoTeatral, leva em consideração o contexto em que seencontra o jogador (aspectos psicológicos). Hoje ofrancês Jean-Pierre Ryngaert – professor e diretor – éuma bela referência ao conceito de jogo dramático.

3. JOGO TEATRAL – Theater Game – sistematizado porViola Spolin (Estados Unidos anos 60). Trabalha com aimprovisação teatral. Ela divide em segmentos (Onde?Quem? O quê?) as técnicas teatrais cercando-as de regrasprecisas – acordo grupal, o foco do jogo, a instrução, aavaliação e a relação: jogador-jogador, jogador-platéia.Fonte: Pupo, Maria Lúcia - Revista da ECAP/USP - "Sala Preta" - n.1, 2001

De cara você reviu conceitos e relembrou que: se ojogo é inato e abre portas à metáfora, para a criação; se ojogo dramático e o jogo teatral são parentes, logo, apergunta Teatro, para que serve já está respondida. Bastaapenas não tolher a criança e ela fará o caminho da cri-ação quase sozinha, é claro, que se estimulada passarápor todas as etapas do jogo com chances de ser um bomator e ou uma belíssima platéia.

* * *

Sempre me perguntam: – Como começo a dar aula deTeatro? Como é o 1º dia de aula? (mesmo os alunos comdidática têm lá as suas dificuldades com o primeiro dia).E o segundo?

Vamos lá?

– Comece, depois do famoso “bom-dia”, Como é oseu nome? Você gosta do seu nome? Tem apelido? Comogostaria de ser chamado pela turma? etc. etc. Comece es-tabelecendo regras.

C

AS REGRAS SÃO LIBERTADORAS.

VOCÊ SE SENTE AMPARADO POR ELAS E

PODE JOGAR LIVREMENTE.

SUZANA SALDANHA

Nós gostaríamos que você desse uma Oficina no 3o Seminário Nacional SESC CBTIJ de Teatro para aInfância e Juventude. O objetivo, este ano, é discutir– “Teatro, para que serve”?

O convite veio por telefoneO convite veio por telefone

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O convite veio por telefone >

> Suzana Saldanha

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1ª Regra: Roupa adequada (eu uso preto, tem colegasque gostam do branco ou bege). Todos ficam neu-tros imediatamente – disponíveis para jogar. O tra-balho com roupa preta aparece – o aluno e a platéiavêem o resultado. Experimente com o seu grupo deteatro. Ouse. Você viu como foi bom, na nossa ofi-cina, vocês já terem chegado com a roupa preta?

Obs.: Não se assuste com as observações dos parti-cipantes: “Roupa preta tira energia”, “Eu não produzocom preto”.

2ª Regra: Cada aluno deve ter um “caderno/registro”do que foi trabalhado em aula/em casa e jamaisesquecer das observações pessoais sobre o seu cresci-mento.

3ª Regra: Todos observam o espaço onde vão trabalhare escolhem um lugar para abrigar os objetos pes-soais: mochilas, sapatos, cadernos etc... É sempre omesmo lugar (Lecoq diz: “Se a sala não estiver orga-nizada não posso jogar”).

O passo seguinte é fazer um planejamento onde tenhaum objetivo a ser desenvolvido. Os jogos/as improvisaçõesdevem ser sistemáticos/cumulativos. Os alunos-atorespodem não intelectualizar num primeiro momento maslogo perceberão que os exercícios propostos obedecem auma graduação crescente de obstáculos.

O VER e o OUVIR em cena são os objetivos quepersigo, sem eles eu não jogo, não improviso, não res-pondo ao AQUI, agora.

Depois das regras estabelecidas, vamos aos jogos:

1ª – Sessão de Orientação/Exposição (Viola Spolin –“Improvisação para o Teatro”). Sempre começo poresse exercício porque ele estabelece logo regrasclaras/o grupo entende e logo concluirão que esse“ter alguma coisa para fazer” será substituído por

um problema de atuação, que será chamado dePOC-ponto de concentração. O grupo fica solto,receptivo para jogar.

2ª – Também os jogos são de Viola Spolin (estão todosclaríssimos no seu livro).• Vendo um esporte• Vendo um esporte-relembrar• Ouvindo o ambiente• O que estou ouvindo• Cabo de guerra• Jogo de orientação n. 1• Jogo de orientação n. 2

3ª – Do jogo dramático, pego os já conhecidos• Estátua (telefone sem fio) desenvolve o ver/aobservação• Quadro vivo (ver/observar/perceber/visão pe-riférica)• Quadro vivo em aparente movimento• Quadro vivo onde apareça um estranhamento• O elevador (7 pessoas)• Na pista

Na pista: dois grupos em diagonais opostas. Um passapelo outro. Passa. Só passa. Se acontecer alguma coisa.Aconteceu. É de verdade, é jogo. Pode até surgir a palavramas não o lero, lero. Isso é jogo/é espontâneo. Esseexercício é de Jacques Lecoq – os alunos passam a amá-losó depois de descobri-lo, aqui não tem truque. Esse jogoé o pós-graduação para chegar na improvisação.

TEATRO, PARA QUE SERVE?

n Faça o teste, professor.

n Comece por você.

n “Esta tarde, tire a máscara da face e improvise” – nãoé Senhor Pirandello? n

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ealmente, o teatro não faz baixar o preço do feijão,não apressa a cassação de político corrupto e às

vezes, ao contrário, até serve para corruptos fazerem dasCPIs o seu palco... o que é mais uma forma de não servirmesmo para nada.

No entanto, quem foi tomado pela paixão do teatrosabe que ele é um modo de ver a vida em perspectiva eque ele não dispensa a concretude do real, porque lidacom espaço, tempo e com a figura (humana ou humani-zada) em situação. Ou seja, ele re-maneja a vida e a re-presenta tornando sensíveis os seus diversos compo-nentes e os diversos níveis de profundidade em que elesse articulam.

Por apresentar publicamente figuras em situação, em

relação, o teatro tem um caráter originariamente políti-co, ligado à polis e a seus muitos modos de organização eoperação1. O teatro seria então político em sua estrutura.Isso posto, não podemos esquecer que uma série de con-seqüências deriva da co-presença de atores e espectadoresnum lugar público, onde partilham a experiência coleti-va do espetáculo. Em primeiro lugar, as reações indivi-duais são confrontadas ou potencializadas pelas reações

coletivas. O público não é simplesmente a soma dosespectadores tomados em sua individualidade, mas umadada forma segundo a qual aquele grupo se articula eque é provocada pelo espetáculo a que aquela platéia estáassistindo (disposição do espaço teatral em relação àcidade; disposição espacial dos espectadores em relação àcena; tipo de atuação; temática do espetáculo etc.).2

De todas as operações empreendidas pela contempo-raneidade no campo da arte, acho que a mais evidente éa que desmonta a pretensão naturalista de cópia do real.Essa cópia não se restringe, evidentemente, ao desejo dereprodução exata de detalhes nos cenários e figurinos,mas se empenha na busca de uma causa suficiente paraexplicar as situações apresentadas. Na época do natura-lismo histórico, por exemplo, as explicações oscilavamentre o determinismo genético e o determinismo social.Hoje as explicações mudaram um pouco, mas o sistemabipolar, maniqueísta, ainda predomina.

E o que isso tem a ver com o teatro feito para criançase jovens? É que tenho observado que o melhor teatro feitopara esse público no Brasil, nas últimas décadas, trabalhacom um conceito amplo de real, um conceito que abarca o

R

1 Ver, a esse respeito, GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras. Uma idéia (política) de teatro. Trad. Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto,2003.2 Para um excelente estudo dos elementos cênicos e extracênicos envolvidos na criação de um espetáculo, ver UBERSFELD, Anne. École du spectateur. Paris: ÉditionsSociales,1991.

Para que serve o teatro?Para que serve o teatro?

Ao ser abordada, em pleno Largo do Machado, por váriaspalhaças que queriam que eu respondesse a essa

pergunta, leit-motiv do 3º Seminário Nacional, aresposta que me veio foi muito pouco conclusiva: oteatro não serve para nada e serve para muita coisa.

FÁTIMA SAADI

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Para que serve o teatro? >>

Fátima Saadi>

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393 Em La littérature et le droit à la mort, texto que integra a coletânea de ensaios La part du feu, Maurice Blanchot afirma que “O imaginário não é uma região estranhasituada para além do mundo, ele é o próprio mundo, mas o mundo como conjunto, como todo.” (Paris: Gallimard, 1949, p. 307.)

imaginário, o simbólico e o cotidiano,3 procurando, dealgum modo, recuperar a estrutura plástica de pensamentoe evitando o didatismo e o maniqueísmo. A partir de umasituação de base, vão se desenvolvendo perspectivas variadase a transformação do pensamento para abarcar novas idéiase atitudes vai ampliando o foco da questão. Nesse sentido,muitas vezes diante de espetáculos realmente significativosde nosso repertório para criançase jovens, pensei em autorescomo o americano Paul Austerque, em seus contos e novelas,apresenta-nos um mundo es-tranho, a cuja estranheza ele fazcom que nos habituemos aopropor que empenhemos emsua compreensão outras faculdadesalém da lógica racional, sem, no entanto, dispensá-la (bastapensar no caráter detetivesco de muitas de suas narrativas).

No nosso melhor teatro para crianças e adolescentes,o maior trunfo é o caráter plástico dos espetáculos, tantono sentido imagético como no sentido da transformação.E a contemporaneidade se manifesta ainda pelo fato deesse caráter plástico aparecer não apenas no texto, masem todos os elementos envolvidos na encenação.

A co-presença entre espectadores e atores era o quefazia minha filha, quando pequena, distinguir teatro decinema. “Teatro é de gente. Cinema é de tela”. E, porcausa das características técnicas da cena teatral que, emprincípio, a afastam de certos “efeitos especiais”, algu-mas crianças têm “preguiça” de ir ao teatro porque jásabem que uma série de coisas lá não serão como no ci-

nema e na TV. No entanto, vencida essa barreira, o tea-tro coloca aos espectadores (adultos e crianças) o enigmada sua forma de apresentação. O real ali é verossímil, e aficção é verdadeira. Como se para além do quadro apre-sentado, intuíssemos algo mais. A apresentação cênicanão se fecha num único nível de decodificação e colocasempre e sempre a questão da relação entre o palco e a

realidade extracênica, re-presentada, em primeirainstância, pela platéia.

O fato de as criançasterem tanta vontade de seaproximar dos atores evasculhar o cenário e osadereços ao fim de cada

apresentação não deve ser compreendido apenas como umamanifestação de tietagem explícita, mas como umairresistível curiosidade pelo desvendamento da mágica daoperação ficcional no teatro. O que as crianças não sabem éque elas são parte daquela mágica, que só se dá na cena ouna memória. E, ao fazer a mágica e, ao mesmo tempo, atépela natureza de seus recursos, desvelar o artifício, o teatroretoma o caráter político de que falávamos no início, pondoem evidência os atos e as decisões dos homens dentrodaquele pequeno lapso de tempo em que se suspende aincredulidade para crer naquilo que o pacto entreespectadores e espetáculo propõe. Essa decalagem, estacesura entre a verdade ficcional, a apreensão da platéia e arealidade cotidiana é uma poderosa arma contra a visãounilateral, o autoritarismo e a apatia. Acho que, pelo menospara isso, serve o teatro. n

No entanto, vencida essa barreira,

o teatro coloca aos espectadores

(adultos e crianças) o enigma da sua forma

de apresentação. O real ali é verossímil,

e a ficção é verdadeira.

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PERSONAGENS

ZELDA – É a personagem central da trama. Zelda é umaformiga diferente, inconformada, subversiva, extrovertida,amante da liberdade. É dotada de uma determinação quebeira à teimosia. Possui um desejo profundo: voar.

CLEMENTINO – Um sapo. Amigo de Zelda. Tempera-mento calmo, ponderado, quase filosófico, por vezesconservador. Sente uma atração afetiva por sua formigacompanheira. O ator que fizer esse papel poderá comportambém o do narrador.

FORMIGUINHAS – Formigas normais, trabalhadoras,ordeiras, sistemáticas. Podem ser resolvidas com fan-toches ou outro tipo de animação.

BORBOLETA LEDA – Vaidosa, pedante. A cena pode serinterpretada pelo narrador que assume o diálogo das duascomo um contador de histórias. Também pode ser bonecode vara, fio, alegoria de mão ou teatro de sombra.

NARRADOR – Personagem opcional. Interfere na ação.Narra alguns trechos. Representa a figura do contador deHistórias. Funciona como gancho e reflexão. O ator que fazo Clementino poderá fazer também o Narrador que é in-visível aos demais personagens, mas poderá em dado mo-mento dialogar com eles de forma sutil e cômica, “que-brando o protocolo”. Pode ser feito por um dos músicos.

MÚSICOS e BAILARINOS – Podem, a critério da di-reção, assumir algum diálogo com os atores.

O TEXTO (SINOPSE)

É uma fábula teatral infantil protagonizada por duascriaturas de espécie e gênero distintos: uma formiga e umsapo. A história gira em torno de uma formiga (Zelda)inconformada. Ela deseja voar a todo custo e vai em buscada realização desse sonho, vivendo situações inusitadas. Elarecebe a cumplicidade de seu amigo, o sapo (Clementino),que na sua ingenuidade, acaba por fim se apaixonando pelalouca amiga. A estrutura dramatúrgica apresenta umaalternância de narração, dialogo e ação. A linguagem é sim-ples, objetiva e direta. A intenção dessa objetividade étransmitir a história com o máximo de clareza possível. Amúsica tocada ao vivo é recomendada.

Texto teatral registrado na ABRAMUSTodos os direitos reservadosRua Voluntários da Pátria, 360/3º andar – Botafogo – Riode Janeiro – cep – 22270-010Tel : 2226.1391 / Fax: 2226.1392

1 Marco Aureh é músico, compositor e arranjador, instrumentista, ator e diretor musical. Musicou dezenas de espetáculos infantis e conquistou diversos prêmios neste setor.Destaque para o prêmio Coca-cola de Teatro (1996-RJ). Escreveu em diversos jornais como Culturarte, Vertente e Poiésis (do qual atualmente é integrante do conselho editori-al). Lançou sete CDs, três deles para crianças. Possui outros textos teatrais inéditos como “A Casa” e “Boneca de Pano”.Informações: www.marcoaureh.com.br / [email protected].

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TEXTO E MÚSICAS DE MARCO AUREH1

“Uma fábula teatral infantil sobre o desejo, a determinação e a metamorfose”.

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CENA 1 – O DESEJO PROFUNDO (MÚSICA INSTRUMENTAL)(Em cena, Zelda, escrevendo em seu diário)

u ZELDA – (escrevendo com uma pena ou uma caneta-folha)Querido diário, hoje resolvi que não vou mais carregar folhinhas nempedrinhas (para o público) – pedrinhas de açúcar (retorna ao diário). Euquero experimentar uma outra sensação, eu quero VOAR!Estou cansada dessa vida de formiga. Cansei de só trabalhar, trabalhar,trabalhar; a vida é muito mais que isso! Quero criar uma aventura dife-rente, quero VOAR!Hoje é lua cheia e estou sentindo uma coisa por dentro que nem consigoexplicar... Quero VOAR! Isto é um desejo profundo e vou tentar realizareste meu sonho de qualquer maneira. (Introdução da música se inicia)Vou procurar meu amigo Clementino, que é um sapo muito inteligente,talvez ele possa me ajudar(mudança de clima, música cantada por elenco de apoio, músicos, baila-rinos, coreografia e etc.).

DESEJO PROFUNDOAm7FORMIGA NÃO VOAFORMIGA SÓ ANDAFORMIGA TRABALHAG Am7FORMIGA NEM CANTA E NEM VOA / NÃO VOA

MAS ZELDA É FORMIGA E NÃO FICA ATOAELA TEM UM DESEJOG Am7ELA TEM UM DESEJO QUE VOA, AVOA, AVOAGSEU DESEJO É VOARAm7SOLTA NO AR

(música instrumental prossegue ao fundo enquanto é armada a cena seguinte)

CENA 2 – O DIÁLOGO(Em cena, a formiga Zelda e o sapo Clementino)

u CLEMENTINO – A sua história é muito louca, Zelda. Não tem cabi-mento! Olhe pra mim... Eu também tenho minhas limitações. Nasci des-tinado a viver colado ao chão – o máximo que eu consigo é dar unspequenos pulos (pula) – mas não vou mais longe que isso. Esse é o meujeito, é a minha forma... Pra dizer a verdade, eu até gosto de viver pró-ximo à terra, próximo à água. A natureza é múltipla. Cada um nasce deum jeito, não tem como mudar. A gente tem que se conformar, e quan-do não se conforma, é bem pior. Aí vem a tal da frustração, a dor de nãoquerer ser o que se é. Imagine se um sapo como eu, cismasse de comercomida de girafa? É, aquelas folhas que ficam lá no alto das árvores –brincadeira! Nem dando o meu maior pulo... (ameaça pular). Mas comoeu ia dizendo, cada ser tem a sua importância, por menor que pareça. Avida, é... (olha para Zelda que se encontra em outro mundo – pensativa).Zelda! Eu aqui falando contigo igual uma besta, a mais de meia hora,filosofando sobre a vida e a individualidade de cada um, e você aí para-da, não dando a mínima bola. Você está viajando em outro mundo?

u ZELDA – Ah, Clementino me desculpe. Eu estava viajando sim. Mas nãoé bem dessa forma que eu quero viajar. Não! (se levantando) Em pensamentosomente não me basta. Eu quero viajar sim, mas de verdade. Eu quero viajarno ar, Clementino – voar no céu, voar pelas nuvens como um pássaro, comoum avião... como uma grande formiga voadora. (Canta e dança)

EU POSSO VOARCEU ACREDITOEU POSSO VOARMILAGRES ACONTECEM

EU POSSO VOAR EU SEIFVOU ABRIR ESSA PORTA FECHADA

E NADA PODERÁ ME IMPEDIR (NADA)G7O CÉU É MINHA ESTRADA, EU SEIFEU VOU CONSEGUIRCI BELIEVE F C b i sI CAN FLY I CAN FLY

u CLEMENTINO – Minha querida…u ZELDA – Humm... minha querida?u CLEMENTINO – Sim, minha querida Zelda, contente-se com a suanatureza. Formigas não voam. u ZELDA – Que isso!! Deixa de ser besta. Eu vou voar sim senhor!u CLEMENTINO – Olha, mosca voa, abelha voa... barata voa...u ZELDA – (Zelda canta o óbvio de forma cômica)(Imagens de vôos projetadas)

VOADORESA MOSCA VOA, VOA , VOAVOA MOSCA VOA BEMA ABELHA VOA, VOA, VOAVOA ABELHA VOA BEMA MARIPOSA VOA TAMBÉM“ “ “ “

A ÁGUIA VOA, VOA, VOAVOA ÁGUIA VOA BEMA BRUXA VOA, VOA VOA BRUXA VOA BEMO SUPER-HOMEM VOA TAMBÉM“ “ “ ‘

O PIPA VOA, VOA, VOAVOA PIPA VOA BEMO PATO VOA, VOA, VOAVOA PATO VOA BEM ...

u CLEMENTINO – (Entra cantando, cortando Zelda no meio dacanção)... SUA IMAGINAÇÃO VOA TAMBÉM. Pare de sonhar Zelda.Você sabe que formigas não voam. Formigas trabalham, isso sim.u ZELDA – Não me importa. Não quero ser igual às outras formigas.Não tem sentido ficar acomodada naquela vidinha de escrava, carregan-do folhinha pra cá, folhinha pra lá. Eu gosto da vida com sabor. Da vida

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bem temperada. Não quero viver só para trabalhar. Quero ter prazer tam-bém. Quero ir mais longe, muito mais longe. u CLEMENTINO – (Para si mesmo) Eita formiguinha danada! Nuncavi tanta teimosia junta.u ZELDA – Clementino, Clementino. Você bem que podia me ajudar comessa sua inteligência. Essa tua capacidade de raciocínio que vale mais doque mil computadores juntos... (exagera) essa tua inteligência emocional...u CLEMENTINO – Bem... Nem tanto.u ZELDA – Não se faça de modesto. Não é você que sempre disse quedetesta a falsa modéstia? (Sedutora) Use toda essa tua sabedoria e me dêuma idéia. O que eu posso fazer pra conseguir realizar o meu sonho de voar?u CLEMENTINO – Mas eu não faço a mínima idéia e, depois, essesonho maluco não é meu, é seu, eu não faço parte dele. (Zelda canta àcapela rodeando o sapo)

O SONHO REALSONHO QUE SE SONHA SÓÉ SÓ UM SONHO QUE SE SONHA SÓMAS SONHO QUE SE SONHA JUNTOÉ REALIDADE (b i s)

u CLEMENTINO – (Emociona-se. Interrompendo o canto no meio dobis), Está bem. Deixe-me pensar... Uma formiga que não tem asasquerendo voar...u ZELDA – (beija-o). Clementino você é o sapo mais maravilhoso queexiste, e então?(Introdução da música “A FÓRMULA” começa e Zelda interrompe)Clementino, que absurdo! Eu estou aqui esperando uma solução e vocêainda vai cantar. E eu que pensei que você pudesse me ajudar!u CLEMENTINO – Nossa! Mas que formiguinha ansiosa. Isso é umteatro infantil e o que eu vou lhe dizer está na letra da música.u ZELDA – Ah, me desculpe (para o público. Meio cínica), meu desejoé tanto que eu já havia me esquecido desse detalhe. Canta. Canta paramim, meu lindo. (Clementino canta)

A FÓRMULAOBS: Entre parênteses, contraponto cantado por Zelda

EU SEI É BEM DIFÍCILUMA FORMIGA VOARÉ QUASE IMPOSSÍVELNÃO DÁ PRÁ ACREDITAR (NÃO DÁ, NÃO DÁ)PARA ACREDITAR

MAS EU TENHO A FÓRMULAPRÁ ZELDA VOAREU TENHO UM JEITOPRÁ ESSA FORMIGA DECOLAR (ENTÃO DIZ, ENTÃO DIZ)SOLTINHA NO AR

PEGUE DUAS FOLHASFOLHINHAS DE PLANTACOLE COM DUREX B I SPARA NÃO DESCOLAR (AH, REPETE)

u ZELDA – Duas folhinhas de planta. Durex... Claro, eu posso construiras minhas próprias asas!!?! Como eu não pensei nisso antes? Clementino,você é o sapo mais maravilhoso que existe! (beija-o)u CLEMENTINO – Já vi esta cena antes.

u ZELDA – Não, antes eu beijei primeiro (beija) e depois falei: Clemen-tino, você é o sapo mais maravilhoso que existe; mas na segunda vez eu faleiprimeiro: Clementino, você é o sapo mais maravilhoso que existe e depois bei-jei (beija antes de sair e pergunta). Mas Clementino, onde posso con-seguir duas folhinhas?!u CLEMENTINO – Ah, meu santo cristo! (para o público) Nunca vi isso,essa é uma formiga diferente mesmo! Não sabe onde conseguir folhas!?!...u ZELDA – Não.u CLEMENTINO – Ah, peça para suas amigas formigas.u ZELDA – Claro, claro, claro!! Valeu!(Clementino fica com um ar meio espantado. Música Instrumental introduz acanção seguinte)

CENA 3 – FORMIGUEIRO(Cena com formiguinhas carregando folhas. Pode ser resolvida com fantoches ououtro tipo de animação – música à capela, coreografia).(Zelda e músicos cantam)

TRABALHOTRABALHA, TRABALHATRABALHA FORMIGUINHATRABALHA, TRABALHA NÃO PÁRA, NÃO

É PRECISO TRABALHOÉ PRECISO DINHEIROMAS CUIDADO PARA NÃO SE ATOLAR NO FORMIGUEIRO, FORMIGUEIRO

(Zelda tenta estabelecer um contato com as formigas, mas é rejeitada)

u ZELDA – (Chamando) Alou! Minhas queridas amigas! Alô, Alôdonas formigas!(para o público) ...Hum, estão tão concentradas no trabalho que nem me ouvem.Hei, Por favor, poderia me arranjar duas folhinhas?u FORMIGA 1 – Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece.Eu aqui dando um duro danado, carregando uma folha que pesa 30 vezesmais do que eu e vem uma formiga vagabunda me incomodar! Ta que-rendo moleza é? Toma sopa de minhoca! (sai)u ZELDA – Que grosseria!

MÚSICA RETORNATRABALHA, TRABALHATRABALHA FORMIGUINHATRABALHA, TRABALHA NÃO PÁRA, NÃO

u ZELDA – (para outra formiga) Hei minha senhora, por favor, poderiame arranjar duas folhinhas?u FORMIGA 2 – Ô minha filhinha, você quer duas folhinhas, quer? u ZELDA – Ahã. (balançando a cabeça afirmativamente)u FORMIGA 2 – Vai caçar no mato!!! u ZELDA – Que velha estúpida!

MÚSICA RETORNAÉ PRECISO TRABALHOÉ PRECISO DINHEIROMAS CUIDADO PARA NÃO SE ATOLAR NO FORMIGUEIRO, FORMIGUEIRO

u ZELDA – Será que não tem ninguém nessa Porrrrrrrr.... caria deformigueiro que possa me dar duas folhinhas?(As duas formigas cantam e dançam feito dupla caipira)

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VAGA BUNDACG7VAI TRABALHAR SUA VAGABUNDACVAGA BUNDAG7VAGA VAGACBUNDA BUNDA (bis)

u ZELDA – Vagabunda, mas feliz, bunda-mole é quem me diz!(Cena de conflito envolvendo Zelda que fica atordoada com tantas vozes alea-tórias. Recusa. Discriminação. Clima musical tenso)u FORMIGA 1 – Se você precisa de folhas? u FORMIGA 2 – Vá buscá-las.u FORMIGA 1 – Vagabunda!u FORMIGA 3 – Quer moleza!u FORMIGA 4 – Vai caçar no mato!u FORMIGAS – Hahahahahahahahah(Zelda perplexa, em silêncio. Música em tom menor)u ZELDA – Ah, eu mesma vou buscar essas folhinhas, não nasci praisso, mas tudo bem.

CENA 4 – ASAS DE FOLHAS(Música. Zelda entra com as “Asas de folhas”. Cena da colagem nas costas)

u ZELDA – Pronto. Finalmente consegui duas folhinhas, nem muitosecas, nem muito verdes, no ponto! Bem, colei com Durex, espero queestejam bem firmes. Agora subirei a mais alta montanha e de lá voareicomo um pássaro.u CLEMENTINO – (voz ao fundo com eco)Tome cuidado Zelda... da... da. Colou bem as asas, asas, asas. Reze parao seu anjo da guarda, guarda, guarda...(vai ouvindo a voz de Clementino enquanto escala a montanha)u ZELDA – (rezando) Meu santo Dumont... Por favor, me proteja nessevôo... Eu lhe prometo 500 velas, 200 ave-maria, 300 pai-nosso... ah, 300já é demais, 200 tá de bom tamanho.u CLEMENTINO – (voz ao fundo)Estarei aqui torcendo por ti...(mudança de luz e clima. Zelda pronta para se atirar)u ZELDA – Nossa! Como tudo é tão pequeno lá em baixo! Daqui decima só vejo formigas, é engraçado! (Para si mesma) Bem Zelda, tome co-ragem, tome fôlego, tome distância... Tome um copo d’água. (suspira) Aimeu Deus do céu, meu santo Dumont, onde é que foi parar aquela vontadetoda, aquele desejo profundo. Que seja o que tiver que ser (Clima de sus-pense). Pela liberdade vale correr riscos, correr perigo. (música) É agora oununca. Lá vou eu.

CENA 5 – A PRIMEIRA TENTATIVA(Alça um vôo na ponta do praticável – clima de luz e de música) (Clementino acompanha o vôo com uma luneta)(Cena do vôo de Ícaro em teatro de sombra ou outra resolução cênica – MÚSICA)(Os músicos cantam “Sonho de Ícaro”)

SONHO DE ÍCAROGSOL, SOLD7 GIMENSO SOL, SOLC D7 G SOL DE FOGO

EU QUE SEMPRE TE AMEIMEU DEUS E MEU REI (estribilho)CRIEI MINHAS ASASE AO TEU COLO EU VOEIMAS MINHAS ASAS DE CERAQUER QUEIRA OU NÃO QUEIRASÃO FRÁGEIS ARGILASLÁGRIMAS DERRETIDASNO CALOR DO TEU CORPOASAS PARTIDASDE UM SONHO TORTO

SOL, SOL, SOL DE FOGO

CENA 6 – O SONHO DE ÍCARONARRADOR (músico ou Clementino)(Música suave se “dissolvendo” em tom menor. Clima etéreo. Momento mítico.Narrador (ou Clementino) em tom de fábula, conta a história de Ícaro. Climamágico. Projeções ou animações)Era uma vez um jovem chamado Ícaro. Ícaro tinha um sonho: voar.Dédalo, o pai de Ícaro, era um artesão, construía coisas. E num dia deinspiração resolveu inventar asas. Juntou penas, uniu-as com cera e fezum par de asas para seu filho e outro para ele. Asas prontas, lá se forameles, pai e filho voando pelos ares. O pai de Ícaro logo alertou seu filho:– Ícaro não voe muito baixo para não mergulhar as asas no mar... e nemmuito alto para não queimar suas penas no fogo do sol.Mas o jovem Ícaro se encantou com a beleza do céu e a música dos pás-saros e foi voando cada vez mais alto, cada vez mais perto do céu... (músi-ca cresce em dinâmica) mais perto do sol... pra cima, pro alto, subindo,subindo... e quando chegou perto daquela imensa bola de fogo... o calor foi aumentando... aumentando...E o belo e imenso sol, o mesmo sol que deixou Ícaro apaixonado,o mesmo sol que despertou o seu desejo de voar,o mesmo sol que o alimentava...derreteu a cera daquelas asas... sim, a frágil cera de suas asas se derreteu... eo corpo de Ícaro mergulha nas águas e vai morar lá no fundo do mar. Cadapena de suas asas se transformou numa ilha, e cada ilha representa um sonhode liberdade.(Clementino volta a olhar o vôo pela luneta. A cena do tombo é assistida por Clementino)u CLEMENTINO – Zelda... cuidado... Zelda... Zeeeeeeee eeeel....... da!(KABRUM. Som de tombo)

CENA 7 – A OBSTINAÇÃO(Fim do clima de encantamento. Luz clareia. Zelda aparece toda cheia de ataduras)

u CLEMENTINO – Oh, Zelda. (Abraça a formiga. Clementino acodeZelda, dá-lhe chá, colo, carinho etc.) Eu chego a ficar com sentimento deculpa por ter te dado esse conselho de construir asas de folha, cada vez euchego a conclusão de que só há uma forma de voar sem asas.

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u ZELDA – Qual é?u CLEMENTINO – Com o pensamento. (canta, como quem nina:“Felicidade” de Lupicínio Rodrigues)

FELICIDADEA MINHA CASA FICA LÁ DE TRÁS DO MUNDO AONDE EU VOU EM UM SEGUNDO QUANDO COMEÇO A PENSARMEU PENSAMENTO PARECE UMA COISA ATOAMAS COMO É QUE A GENTE “VOA” QUANDO COMEÇA A PENSAR

u ZELDA – (levantando) O que!? Voar em pensamento? (torna a deitarno colo dele) Não é a mesma coisa.u CLEMENTINO – Para quem tem imaginação é possível voar parabem longe sem sair do lugar.u ZELDA – É bem diferente (levantando. Enfática). Quero voar decorpo e alma!u CLEMENTINO – Eu não sei de onde veio esse teu louco desejo, essa ânsiade querer voar a qualquer preço (puxa ela novamente para o seu colo).u ZELDA – Nem eu mesmo sei Clementino, é uma coisa assim, esquisi-ta, que vem lá de dentro... A única certeza que eu tenho é que um dia euvou conseguir.u CLEMENTINO – Bem, existe uma forma de você voar que...u ZELDA – (Erguendo-se num pulo) O que?!? Diga-me! Como? Como?u CLEMENTINO – Xiii, acho melhor eu ficar calado.u ZELDA – Ué, ficar calado por quê? Se você tem uma boa idéia, mediz logo qual é.u CLEMENTINO – Parece que você já se esqueceu da última idéia queeu te dei? Acabou dando tudo errado.u ZELDA – Acidentes acontecem. u CLEMENTINO – É, mas quanto mais a gente se arrisca, mais elesacontecem.u ZELDA – Ah, o que tiver que ser será. Conte-me Clementino, por favor,vai.u CLEMENTINO – Eu pensei numa coisa que no fundo não resolveriamuito o seu problema.u ZELDA – Diz logo o que é, Clementino! Já estou ficando nervosa.u CLEMENTINO – (Bancando o difícil) Ah, é bobeira, deixa pra lá.u ZELDA – Agora que você começou com essa história, vai ter que falar.Vai ter que me dizer de qualquer maneira. Diga-me, o que eu faço praconseguir voar?u CLEMENTINO – Não é nada de mais, a solução é bem simples.u ZELDA – Ótimo! Aí mesmo é que eu quero saber.u CLEMENTINO – Zelda, ao invés de formiga, você deveria ter nasci-do como um jumento.u ZELDA – Mas jumento não voa.u CLEMENTINO – Oh, sua burra, não é disso que eu estou falando. Éque você é tão teimosa, mas tão teimosa, que parece mais um burrico quecisma com uma coisa e não há santo que o faça mudar de idéia.u ZELDA – Isso não é teimosia. Isso se chama determinação, meu caro.u CLEMENTINO – E que determinação!?!u ZELDA – Você tá enrolando, enrolando e tá se esquecendo que temuma idéia pra me dar. u CLEMENTINO – (Fingindo-se de bobo) Sabe que eu esqueci mesmo.u ZELDA – (Salta em cima dele) Seu cretino!! É isso mesmo, até o seunome CLEMENTINO rima com CRETINO. Seu Clementino safado/vocêjá ouviu falar em sapo assado/ virando ensopado/dentro do caldeirão da

bruxa/ num instante você murcha...u CLEMENTINO – Calma, calma, eu só estava brincando.u ZELDA – Com desejos não se brinca.u CLEMENTINO – É o seguinte, você quer voar não quer?u ZELDA – Quero muito!u CLEMENTINO – Se você quer voar e não tem asas, peça ajuda aquem tem. u ZELDA – Como assim?u CLEMENTINO – Ora, é simples, basta pedir carona na asa de alguémque tenha asas de verdade, deu pra entender?u ZELDA – Claro, claro! Excelente idéia! Clementino, você é o sapomais maravilhoso que existe. (Beija-o)u CLEMENTINO – Já vi esse filme antes.u ZELDA – Deixe-me ver, eu conheço alguns animais que voam, o patoRomualdo. Não, ele é grande demais. Dona Enir a coruja, não, ela já estámuito velha e além do mais, só voa à noite. Ah! o passarinho PintaSílvio... Não, ele só quer saber de cantar e namorar a Pinta Sílvia, não vaidar certo. Tá difícil (desolada e cabisbaixa, pensa). Já sei!! (música –intro) É claro, a borboleta Leda, é ela, só pode ser ela, tamanho ideal,inseto como eu, flutua no ar como uma pluma... (sai).

CENA 8 – A BORBOLETA E A FORMIGA(Música. Dança. Imagens de vôos)

LEDA BORBOLETALEDA BORBOLETALEDA, LEDA BORBOLETABORBO, BORBO LETALEDA, LEDA

u ZELDA – Leda, Leda... u LEDA – Quem me chama? u ZELDA – Sou eu, Zelda.u LEDA – Quem? Onde? Não vejo ninguém por aqui?u ZELDA – Eu, aqui em baixo.u LEDA – Eu quem?u ZELDA – Sou eu, Zelda a formiguinha.u LEDA – Espere-me, vou descer.u ZELDA – Oi Leda, lembra-se de mim?u LEDA – Para dizer a verdade, não.u ZELDA – Não? u LEDA – Não, eu sou muito sincera. Não sei quem é você, mas diga oque você deseja? u ZELDA – Sabe...?u LEDA – Não.u ZELDA – É que... u LEDA – Diga logo o que você quer de mim, eu não tenho muitotempo a perder aqui em baixo.u ZELDA – Sabe o que é Leda? Excitar. u LEDA – Já disse que não sei, eu só posso saber se você falar.u ZELDA – É que eu queria lhe pedir um favor.u LEDA – Que favor?u ZELDA – É só um favorzinho.u LEDA – Bom, se você não disser, eu tenho mais o que fazer.u ZELDA – Não! Espere. Eu queria uma carona.u LEDA – Uma carona? Pra onde menina?

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u ZELDA – Para o ar.u LEDA – Não estou entendendo?!u ZELDA – É que desde pequena eu tenho um desejo profundo, umavontade imensa de voar.u LEDA – Voar? (rindo) Você voar, isso é muito engraçado.u ZELDA – É, até asas de folha eu já fiz, sabe, o Clementino, meuamigo sapo, me deu uma idéia de fazer duas asas de folhas colar comdurex e... (fala rápido e sem parar) u LEDA – (interrompe o falatório) Sei, sei.u ZELDA – Mas não deu certo.u LEDA – E agora você quer que eu te dê uma carona? u ZELDA – Sim, Leda, eu subo nas suas asas...u LEDA – Nas minhas asas!?!u ZELDA – É.u LEDA – Nas minhas maravilhosas asas, de forma alguma, e além domais é muito arriscado, você pode cair.u ZELDA – Não caio não, eu seguro bem firme.u LEDA – Nãou ZELDA – Ah, por favor...u LEDA – Não. u ZELDA – Ah deixa? Eu preciso muito. u LEDA – Já disse que não. Você nasceu para viver no chão e não no arcomo eu.u ZELDA – Ah, tá. Até parece que há bem pouco tempo atrás você nãose arrastava pelo chão!u LEDA – Como assim!?u ZELDA – É isso mesmo que você ouviu. Ou já se esqueceu que umdia você foi uma lagarta e vivia se arrastando feito uma cobra pelo chão?u LEDA – Ah... humm... nem me lembro muito dessa época.u ZELDA – Num lembra porque não quer.u LEDA – O que passou, passou.u ZELDA – (mudando o clima) Então tá. Agora você voa e sendo assim,pode muito bem me dar uma carona.u LEDA – Humm... não acho isso uma boa idéia. u ZELDA – Ah, Leda, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...u LEDA – Ai que saco! u ZELDA – Isso é um “sim”?u LEDA – (estressada) Está bem, pode subir.u ZELDA – Pronto, subi.u LEDA – Segure bem.u ZELDA – Pode ir!u LEDA – Não largue as mãos.u ZELDA – Ta bom, vai!u LEDA – Coloque o cinto de segurança.u ZELDA – Está bem!u LEDA – Colocou?u ZELDA – (mentindo) Coloquei, vai!

CENA 9 – A SEGUNDA TENTATIVA(música instrumental – teatro de sombras)

u ZELDA – Que maravilha!!! Parece um sonho! Estou voando! Voando!(Dança e cantarola “Volare, cantare”) Olha quanta formiguinha lá embaixo.u ZELDA – Voa mais alto, Leda. Faz uma curva. Outra curva, outra, maisoutra... Voa mais alto, faz um loop, faz outro, um triplo, mais um rasante...

(cena do tombo)(Depois de muita curva pra cá, muita curva pra lá... Leda num vôo rasantefez uma pirueta radical e Zelda cai. (jogo de luzes, suspense... som cromáticodescendente seguido de som estrondoso de queda. Com tantas dores. Zeldaadormeceu por ali mesmo. Adormeceu e sonhou. Clima musical.)Cena da transformação que pode ser feita em teatro de sombra ou outrotipo de recurso

CENA 10 – CRIANDO ASASOBS: A cena da transformação pode ser resolvida em ação dramática e música oque dispensaria a intervenção do narrador.(músicos cantam)

O SONHO NO ARAm7TEM DESEJOS QUE A GENTE TEMFQUE NÃO SABE EXPLICAR O PORQUÊCVÊM DE LONGE VÊM DO ALÉME FNOS ARRASTA E NÃO QUER NEM SABERCDE UM LUGAR QUE NÃO EXISTEFELE NASCE E INSISTEC ECRESCE COMO ONDAS NO MAR

Am G F UM SONHO DE QUERER VOARC G F b i sVOA MEU SONHO NO AR

C GVOA, VOA MEU SONHOF CVAI ENQUANTO EU COMPONHOAm EmPRA TI UMA BELA CANÇÃOF EmPRA MIM UMA BREVE ILUSÃOF G7VAI QUE TUA FORÇA É MAIS FORTEF C QUE AS BATIDAS DO MEU CORAÇÃO

C G7 FVOA MEU SONHO NO ARAm7 G7 FUM SONHO DE QUERER VOAR

CENA 11 – O DESPERTAR DE UM SONHO(Zelda acorda depois da música que acompanhou a cena do sonho)

u ZELDA – Puxa que sensação estranha! Tive um pesadelo e um sonho.Primeiro foi o pesadelo de um tombo, um tombo enorme. Depois sonheio sonho mais lindo da minha vida. (Entusiasmada) Sonhei que eu podiavoar. Voar com minhas próprias asas, isso mesmo, minhas próprias asas,asas de verdade! (Muda o clima) Quanta bobagem, imaginem só, eu, umaformiguinha vagabunda voando!?! Acho que está na hora de cair na real.Essa história de voar é um sonho impossível. Não dá pra mim.(E Zelda com estranhas dores nas costas, vai até o riacho lavar seu rosto para des-pertar. Enquanto lava o rosto se assusta ao ver as pontas de suas verdadeiras asasrefletidas na água)

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u ZELDA – Meu Deus!! O que é isso em minhas costas? Parecem...(Exitante. Gaguejando) asas!?Eu estou com asas? Eu estou com asas! Que coisa incrível!! (desiludida) Bobagem, eu ainda estou dormindo. É claro, meu sonhoainda não acabou. Mas como eu queria que fosse verdade... (canta)

MEU SONHOEm7/9

(si lá sol lá sol fá# mi)SINTO NO FUNDO DE MIM

Si(grave) mi fá# sol lá si)QUE JÁ NÃO SEI QUEM SOUC7m/G (lá si sol lá sol mi)NÃO SEI DE ONDE VIMEm7/9 (mi sol mi lá sol si)NÃO SEI PRÁ ONDE VOU

Entra bandaG G/B C D7

(sol si dó (agudo) sol (g) mi (g) ré (g))VOU SAIR OUTRA VEZG D7 C

(lá si si si si ré si sol)EM BUSCA DO QUE QUERO SERAm7 (sol lá lá lá lá sol lá) D7MEU SONHO NÃO ACABOU b i s

Am7(dó si lá sol lá)

MEU SONHO NÃO (diminuindo)dá si lá lá

MEU SONHOdó lá

MEUlá

EU

(Vai ao encontro de Clementino)

u ZELDA – (desolada) Clementino! Clementino!u CLEMENTINO – Zelda, que saudades! (Cena romântica) Você estálinda. (Vê as asas. Silêncio) u ZELDA – Você acha? É (para o público), estou realmente sonhando.u CLEMENTINO – Zelda!?! u ZELDA – O que foi!!??u CLEMENTINO – Você criou asas!!!u ZELDA – Asas de verdade?!?u CLEMENTINO – Asas de verdade !!u ZELDA – Ahhh...?!u CLEMENTINO – Você se transformou!!u ZELDA – Como assim?u CLEMENTINO – Você é uma Tanajura!!?! u ZELDA – Tana o que?u CLEMENTINO – Tanajura.u ZELDA – Jura?u CLEMENTINO – Juro.u ZELDA – Ah Clementino (abraça-o). Isso é um sonho, mas como eugostaria que fosse realidade...u CLEMENTINO – Mas é realidade, Zelda, isso não é um sonho!u ZELDA – Não é um sonho? u CLEMENTINO – Claro que não.u ZELDA – Tem certeza? (se belisca para conferir) Mas eu estava

dormindo e sonhando...u CLEMENTINO – Enquanto você dormia, as asas foram nascendo. Éisso mesmo, estamos em pleno verão. Você é um tipo de formiga que criaasas nessa estação...u ZELDA – Eu sonhei que estava voando!u CLEMENTINO – Enquanto você sonhava que estava voando, amudança aconteceu. Você foi criando asas.u ZELDA – Meu Deus! Obrigada meu santo Dumont!u CLEMENTINO – Agora já pode realizar por você mesma o seu velhodesejo de voar – voar com as suas próprias asas!u ZELDA – Eu criei asas, asas de verdade! No fundo eu sabia, nenhumdesejo é à-toa Clementino, todo o desejo tem sempre um porquê. (Cantarola)

VOA MEU SONHO NO ARUM SONHO DE QUERER VOAR

Meu Deus, eu posso voar... u CLEMENTINO – Pode, pode sim...u ZELDA – Adeus Clementino, adeus...u CLEMENTINO – Adeus... (Zelda se arma para alçar vôo, Clementinointerrompe) Espere Zelda!u ZELDA – Ah?u CLEMENTINO – Posso te fazer um pedido?u ZELDA – Pode, diga.u CLEMENTINO – Voe bastante, aproveite ao máximo a liberdade quea natureza te deu... Sentirei muito a sua falta... mas mesmo assim euquero que você voe, eu quero que você vá, eu quero que você seja feliz...(Zelda se prepara novamente para alçar seu primeiro vôo)u CLEMENTINO – (Meio tímido) Espere um pouco! u ZELDA – (Impaciente) Fala logo Clementino, anda! (clima musical suave)u CLEMENTINO – Zelda, se um dia, qualquer dia que seja, com sol oucom chuva, com frio ou calor, seja lá como for, até mesmo... (pausa) comasa ou sem asa... Se você voltar, estarei te esperando... E se você quiser...u ZELDA – Quiser o que Clementino? u CLEMENTINO – Se casar comigo...u ZELDA – (Beijo apaixonado) Clementino, você é o sapo mais maravilhosoque existe! Mas agora eu só penso em uma coisa.u CLEMENTINO – Eu sei, eu sei, você tem que cumprir seu velhodesejo de voar. Vá!u ZELDA – Esse desejo é mais forte do que eu, é mais forte do que tudo...Adeus... (Voa. Música instrumental meio romântica introduzindo “O sonho no ar”)u CLEMENTINO – Adeus, meu grande amor. Adeus! (música cresce.Clementino com ar nostálgico e feliz, observa o vôo de Zelda)(Zelda, enquanto voa, canta a música “O sonho no ar”)

FIM(Atores cantam o refrão da música “Meninos”, “desmontados” de seus personagens)

MENINOS (...)NÃO SOU TANAJURA MAS EU CRIO ASASCOM OS VAGALUMES EU QUERO VOAR, VOARO CÉU ESTRELADO HOJE É MINHA CASAFICA MAIS BONITA QUANDO TEM LUAR, LUARQUERO ACORDAR COM OS PASSARINHOSCANTAR UMA CANÇÃO COM O SABIÁ

Nota: TANAJURANome das fêmeas ovadas de certas formigas tipo SAÚVA. Possuem asas, e, todos os anos, em outubro ou novembro, saem voando de seus formigueiros para serem fecundadas noar pelos machos, ou BITUS. Nesse vôo, levam consigo uma pequena cultura de cogumelo, que irão desenvolver posteriormente, pois este é o seu alimento. Perdem, logo em segui-da, as asas e põem-se a construir novos formigueiros. Em certas regiões, índios e caboclos comem a parte do abdome da tanajura onde estão os ovos.

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PERSONAGENS

VELHA – Artesã. Com seu acordeão, ela faz músicas inspiradapelo canto dos pássaros.

MENINO – Órfão criado pela velha. Sabe imitar vários cantos depássaros e com seu instrumento de sopro acompanha a velhanas canções.

SEU MOÇO – Turista que chega da cidade para comprar algunspássaros artesanais. Professor de música, traz seu violão.

O TEXTO (SINOPSE)

A história se passa num lugar indefinido do interior do brasil, emmeio a uma mata. Ao fundo, vemos a parede de trás de uma casade sapê, com uma porta e uma janela. O centro do palco é consti-tuído pelo quintal da casa que se mistura à mata. Nas laterais dopalco, vemos a mata adentrando o quintal. Esse quintal deve dar

uma idéia de clareira no meio da mata. Há alguns bancos feitos detroncos de árvores pelo espaço, assim como utensílios domésticostípicos do interior, como caçambas, uma vassoura feita de galhos,enxada, panelas de barro etc. Em algum ponto vê-se uma pequenafogueira, usada para preparar chás, caldos e assados. Numa das la-terais há uma rede de dormir. No centro à esquerda estão pendura-dos por fios individuais vários passarinhos de espécies variadas,feitos de barro, pintados e com penas coladas. Eles estão pendura-dos para secar e alguns ainda estão sem acabamento. Perto desse“móbile”, há uma estrutura feita de bambus, como um grandepoleiro, oferecendo níveis diferentes de altura, para que o móbilepossa ser alcançado. Na frente do palco à direita estão os materiaise utensílios utilizados para a confecção dos pássaros; um banqui-nho, tigelas de barro e a máquina usada para modelar o barro. Ochão é de terra batida, com alguns pontos onde nascem plantas; háfolhas secas caídas por toda parte. Do alto aparecem galhos deárvores que penetram na cena.

1 Fidelys Fraga é integrante da Nova Dramaturgia Brasileira, escreveu “TERESA D’ÁVILA, A SANTA DESCALÇA”, que também produziu, contemplado com oSHELL de cenário e iluminação. Em 2004, “FORA DE FOCO” foi montado na Sala Paraíso do Teatro Carlos Gomes. Em 2002 escreveu o infantil “CORES, CANTOSE CONTOS DO BRASIL”, musical transformado em CD.

Uirapuru menino e outrashistórias de pássarosUirapuru menino e outrashistórias de pássaros

TEXTO DE FIDELYS FRAGA1

MÚSICAS DE FÁTHIMA RODRIGUES

LETRAS DAS MÚSICAS DE CARLOS VALOURA E FÁTHIMA RODRIGUES

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Música de abertura.Os atores-músicos entram, com seus instrumentos, cantando pelo meio da platéia.

QUERO Ê, QUERO ÁO SENHOR DONO DA CASA / FOI QUEM MANDOU ME CHAMAR /Ó DE CASA, ABRE A PORTA / ACABAMOS DE CHEGAR.

QUERO Ê, QUERO Ê, QUERO Á / Ó SENHOR DONO DA CASA /O QUE É QUE TEM PARA ME DAR?

VOU CORRENDO MUNDO AFORA / VOU CUMPRINDO UMA MIS-SÃO / CANTO E CONTO MUITA HISTÓRIA / PRA ALEGRAR SEU (O)CORAÇÃO.

QUERO Ê, QUERO Ê, QUERO Á / TRISTEZA POR ALEGRIA /SE QUISER PODE TROCAR.

MINHA PROSA É BANDOLEIRA / MINHA PROSA É BANDOLÁ /MINHA PROSA NINGUÉM TIRA / SÓ SE DEUS MANDAR TIRAR.QUERO Ê, QUERO Ê, QUERO Á / ASSIM CANTA A MINHA GENTE /ASSIM TAMBÉM QUERO CANTAR.

AS HISTÓRIAS QUE EU TRAGO / SÃO DE AMOR, SONHO E BELEZA /SÃO DO TEMPO EM QUE O HOMEM / ERA IRMÃO DA NATUREZA.

QUERO Ê, QUERO Ê, QUERO Á / NESSE TEMPO O SER HUMANO /ENTENDIA OS ANIMAIS.

OLHA SÓ COMO É QUE FICA / OLHA SÓ COMO É QUE ESTÁ /QUEM VEM CONTAR UM CONTO / UM PONTO VAI ACRESCENTAR.

QUERO Ê, QUERO Ê, QUERO Á / LUA NOVA ME ALUMIAQUE JÁ VAMOS COMEÇAR.

Os atores-músicos saem de cena. A luz cai.

PARTE I – NA CASA

Tênue escuridão que precede o amanhecer. Ouvem-se uns poucos e espar-sos pios de pássaros. A luz sobe um pouco. Entra em cena o menino,vindo da lateral da casa; ele traz um lampião. Ele se espreguiça, olha paratodos os lados, e solta alguns pios, se comunicando com os pássaros dafloresta; há algumas respostas e ele sorri. A luz sobe mais um pouco emais cantos enchem o espaço. O menino apaga o lampião. Os primeirosraios de sol atravessam as copas das árvores, traçando linhas no espaço emarcando pontos no chão. O menino vai para o poleiro de bambu ecomeça a verificar o acabamento dos pássaros artesanais e a conversar comeles, enquanto fala, vai se movimentando pelo poleiro. A luz continuasubindo, bem lentamente.u MENINO – (Enquanto fala vai se dirigindo aos vários pássaros queestão pendurados) – Dia, Seu Sanhaço! Já vou lhe trazer sua banana. Podedeixar, uma inteirinha pro sinhô. Mas nada de meter o bico na dos ou-tros, seu guloso. (A outro) – Dia, Seu Tié-do-Mato! Mas o que é isso? Porque esse mal-humor já de manhã cedo? Vamos melhorar essa cantilena.(A outro) – Dia, Seu Coleirinho. Dormiu bem? (A outro) – Dia, SeuTico-tico! (A outro) – Dia, Dona Corroíra! (A outro) – A benção, meuCardeal! Sim, sinhô, tenho feito minhas orações todo santo dia, quandome deito e quando me levanto. Mas de vez em quando eu minto um

pouco. (A outro) – Olá, Dona Saíra! Como está vistosa hoje! Já fez amuda? Essas cores estão uma beleza, mesmo! (A outro) – Dia, Tié-Preto!(A outro) – Seu Chupim, que cheiro é esse? Andou revirando a bosta dogado de novo, né? (A outro) – Dia, Dona Juriti! (A outro) – Calma lá,seu Quero-quero! Não me aponte esses esporões, homem! Só vim lhe darbom-dia. Não precisa se agitar assim. (A outro) – Dia, seu Pintassilgo!Que animação! Assim vão ouvir o seu canto lá na vila. (Vai cumprimen-tando vários) – Dia, Dona Rolinha! Dia, Seu canário! Dia, Seu Bem-te-vi! Como vai, Sabiá? Dia, Azulão! Olá, Beija-flor! Cambaxirra! A janela da casa se abre e aparece a velha.u VELHA – Dia, Menino!u MENINO – Dia!u VELHA – O dia nem amanheceu e você já tá aí empoleirado! Vemtomar seu café, anda.u MENINO – Dia amanheceu, sim. Não ouviu os passarinhos cantando?u VELHA – Cantaram mais cedo hoje.u MENINO – Mesma hora. A senhora é que despertou mais tarde.u VELHA – Deixe de trelelê e venha tomar o café, já falei.A velha entra pela porta da casa trazendo uma caneca de café e um pedaçode pão. O menino desce do poleiro e vai até ela.u VELHA – (Entregando a caneca e o pão) Custei a dormir essa noite.Tava abafado que só! Nem uma brisa pra balançar a folhagem.u MENINO – (Comendo o pão) Senti, não. Dormi pesado. Só acordeiquando o Urutau cantou.u VELHA – Você ouviu também?u MENINO – Cantou alto o bicho. Será que é coisa ruim?u VELHA – Besteira! Pássaro que é pássaro tem que cantar. u MENINO – Mas nem sempre a gente tem que ouvir.u VELHA – Quando terminar com o café, tem muito que fazer. Vamoslimpar esse quintal e depois tem tarefa da escola pra aprontar.u MENINO – Não vamos trabalhar nos passarinhos hoje?u VELHA – Mais tarde.u MENINO – E a cantoria não vai ter?u VELHA – Acaso você já me viu começar o dia sem cantoria? Tá abes-tando, moleque? (Eles cantam)

ENCANTO DA PASSARADAQUANTA ALEGRIANO CANTO DE UM PASSARINHOFAZENDO UM NINHOOU CANTANDO POR CANTARISSO É QUE É FELICIDADE SEMPRE EM LIBERDADE A VOAR PELOS CÉUS

E NA FLORESTAOU NO CAMPO ABERTOPODE ESTAR BEM CERTOQUE VAI ENCONTRARUM JOÃO-DE-BARROFAZENDO A CASINHA UMA ANDORINHA NO VERÃO A VOAR

UIRAPURU MENINO E OUTRAS HISTÓRIAS DE PÁSSAROS

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UM GAVIÃO VOANDO SOLITÁRIO PELO ARO BARULHO ALEGRE QUE FAZAQUELE BANDO DE PARDAISO CANTO HARMONIOSO DO CANÁRIOO LAMENTO NOTURNO DO BACURAU

BEM-TE-VI, BEM-TE-VI, BEM-TE-VIUMA FLOR AGRADECENDO O BEIJO DO COLIBRI.

u MENINO – Ainda tá com sono, Velha?u VELHA – Já tô cansada de estar acordada.u MENINO – Pois não parece; deu uma cochilada na última estrofe.u VELHA – Tá falando o quê, o tabaréu?u MENINO – Deu uma desafinada.u VELHA – Deixe de presunção, menino.u MENINO – Escorregou, que eu ouvi.u VELHA – Ainda não nasceu o dia que vai ver você me ensinar cantoria.u MENINO – Foi naquela parte assim...u VELHA – (Interrompendo) Deixe de conversê que temos mais o quefazer. Venha, me ajude aqui no quintal.u MENINO – (Para si) Eu ouvi muito bem, subiu invés de descer.u VELHA – Vamos parar com os resmungos.(a velha começa a varrer o quintal e o menino a recolher alguns galhos secos) u MENINO – (Segurando um grande galho escuro) Ei, Velha! Veja só,não parece um Uiraçu?u VELHA – Não é que parece mesmo? E dos grandes!u MENINO – Ah, se eu fosse vivo naquela época, não ia deixar esseSANGUINOLENTO aprontar tanta maldade com os passarinhos. Aí ochupim estaria fazendo seus ninhos e criando seus filhotinhos até hoje. u VELHA – Não fale besteira, menino. Naquele tempo o bicho homemnem pensava em pisar na terra. E todos os animais viviam em perfeitaharmonia. u MENINO – (Balançando o mesmo galho) Até que um dia, os gaviõese os falcões resolveram dominar todas as outras aves. E o rei dos reis erao Uiraçu, o mais temido dos falconídeos.u VELHA – Tá falando bonito, moleque.u MENINO – Aprendi na escola.u VELHA – Pois é, quando esses passarões declararam a guerra, os pas-sarinhos não se acovardaram. Fizeram uma grande reunião para decidirquem seria o líder na batalha. A passarinhada toda compareceu. A ara-ponga ficou de vigia para dar o alerta caso aparecesse algum inimigo.(Sons de pássaros enchem o espaço, como numa assembléia) – O João-de-Barro, com sua mania de organização, assumiu a chefia da reunião.(A partir de agora o menino e a velha farão as vozes dos passarinhos, segurandoos pássaros artesanais que estão fincados em varetas para secar)u VELHA – (Voz do João-de-Barro) “Ordem na assembléia. Ordem!!!Assim não vamos conseguir escolher o líder da batalha.” u MENINO – O beija-flor, tão pequenininho, mas muito brigão, acha-va que podia vencer os gaviões. (Voz do Beija-flor) – “Deixem comigo,esses bandidos vão ver o que é bom pra tosse. Não vamos dar molezapraqueles grandões.”u VELHA – Mas a rolinha, que não gostava nada de violência, quis acal-mar os ânimos. (Voz da Rolinha) – “Acho que nós devíamos convidá-lospara uma conversa civilizada. É conversando que a gente se entende”.

u MENINO – O chupim, muito preguiçoso, achava que a melhorsolução era esperar as coisas se resolverem sozinhas. (Voz do Chupim) –“Vamos deixar as coisas como estão. Se nos metermos com esses gaviões,é bem capaz de piorarmos tudo”. u MENINO – (Voz do Beija-flor) “De jeito nenhum, seu covardão. Nóstemos que lutar pela nossa liberdade. Votem em mim. Eu vou acabarcom a raça desses malvadões.”u VELHA – (Voz da Rolinha) “Eu é que não voto em você, seu beija-florestouradinho. Não concordo com a batalha, vamos tentar selar a paz,tomando um bom chazinho.”u MENINO – (Voz do Beija-flor) “Você é uma bobona, rolinha. Essesgaviões não querem papo. Vão fazer picadinho da gente. O que você achaChupim?”u MENINO – (Voz do Chupim) “Se é para escolher um líder, vamosvotar no urubu. Ele é grande, feio e fedorento. Vai assustar os gaviões”.u MENINO – (Voz do João-de-Barro) “Chega de discussão. Eu, João-de-Barro, como presidente da reunião, digo que está na hora de escolher olíder da batalha.”Sobe o som da assembléia de pássaros. Mais alto ainda soa o piado da araponga.u MENINO – Foi quando soou alto o piado da araponga. O chupim quislogo fugir. (Voz do Chupim) “Essa não, os gaviões estão chegando. Euvou me esconder no meu ninho e esperar a confusão passar”.u VELHA – Foi uma batalha terrível. Os passarões eram muito mais fortese os passarinhos não estavam organizados. Muitos saíram machucados. u MENINO – No fim o Uiraçu gritou: (Segurando o grande galho e fazendo avoz do uiraçu) – “Não deixem nenhum escapar. Vamos bicar a cabeça detodos eles , arrancar as suas penas e colocar fogo nos seus ninhos”.u VELHA (ela começa a cantar a música do chupim)

CHOPIM MALANDRODIZ A LENDA QUE O FALCÃOE O GAVIÃOINCENDIARAM TUDO DO CHUPIMELE FUGIU TODO APRESSADOCOM O CORPO BEM QUEIMADOPOR ISSO É PRETINHO ASSIMDE LÁ PRA CÁ ESSE CASALNÃO CARREGA GALHO NEM PAUNA PONTINHA DO BICOPREFERE BOTAR OS OVINHOSQUASE SEMPRE ESCONDIDINHOSNA CASA DO TICO-TICO.

(início) VOA AQUI, VOA ALI, VOA LÁO CHUPIM NÃO QUER TRABALHO NEM OS FILHOS QUER CRIAR

MARIA PRETA OU VIRA-BOSTATEM LUGAR QUE GENTE GOSTADE CHAMAR O COITADINHOMALANDRINHO COMO ELE SÓCOME FRUTAS E JILÓE NÃO GOSTA DE FAZER NINHO.

u VELHA – Pobrezinho do chupim, ficou com as penas queimadas.u MENINO – Pobrezinho, coisa nenhuma! Onde já se viu ficar botandoovos nos ninhos dos outro.u VELHA – Bom, já que ele não faz ninho, precisa usar o ninho de ou-tros passarinhos.

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u MENINO – São muito desnaturados, esses chupins. Nem se preocupamcom os filhotes. Abandonam os ovos em qualquer ninho e vão embora, semmais nem menos.u VELHA – (Puxa o menino para si e recosta a cabeça dele em seu peito)Eles sabem que os outros passarinhos vão chocar os ovos e cuidar dos fi-lhotes, como se fossem seus.Pela direita entra o moço, que traz um violão nas costas. Ele veste traje da cidade.u MOÇO – (Batendo palmas) Oh, de casa!u MENINO – Chegou freguês, Velha.u VELHA – Tô vendo. (Para o moço) – Pode chegar, seu moço.u MOÇO – Dá licença. Desculpe incomodar tão cedo.u VELHA – Incomoda não. Aqui levantamos antes do sol. A essas horasjá estamos na lida.u MOÇO – Isso aqui é quase mata fechada.u VELHA – Prefiro assim. Desse jeito só chega quem é bem chegado ouentão muito mal intencionado. Distraído e descuidado por aqui nãopassa. Visita e freguês só querendo muito. Não tem aquela de “tava porperto e resolvi dar uma passadinha”.u MOÇO – Vocês devem gostar mesmo de sossego. u VELHA – É melhor pra trabalhar. Faça o favor de se sentar. É largo ocaminho e o senhor deve tá cansado. Aceita um pouco d’água?u MOÇO – Por favor.u VELHA – (Para o menino) Vá buscar água pro moço.u MOÇO – Confesso que lá na cidade não costumo caminhar tanto. u VELHA – De onde o senhor vem?u MOÇO – Do Rio, mas nasci em Minas e meus pais são nordestinos.Me chamo João. E a sua graça qual é?u MENINO – (Trazendo um copo com água) Olha a água.u VELHA – Há muito tempo que deixei de lado essa coisa de nome. Poraqui me chamam só de Velha. (Indica o menino) – E esse aqui é o menino.u MOÇO – Também não tem nome.u VELHA – Ter tem, mas não usamos aqui. u MOÇO – Quase me perdi vindo pra cá. Só achei o caminho por causada música. u MENINO – Começamos o dia sempre com uma cantoria.u VELHA – (Indicando a viola) O senhor, pelo visto, também gosta demúsica. u MOÇO – É um amor antigo. Toco desde criança. Acabei virando pro-fessor de música. Não dizem que quem não saber fazer, ensina? u MENINO – Deve ensinar errado, então.u VELHA – Tá falando demais. Fica quieto. (Para o moço) – Mas o quelhe traz de tão longe? u MOÇO – Estou à procura de um presente especial para uma pessoa especial.u VELHA – Uma pessoa?u MOÇO – Uma mulher.u MENINO – Namorada?u MOÇO – Ela não é mais minha namorada. A gente brigou e depoisapareceu um outro fulano. Um partido melhor. Afinal, não é tão difícilencontrar um partido melhor que um professor de música.u VELHA – No meu tempo, um homem jovem, bonito, trabalhador eque tocava viola era um partido mais do que bom.u MOÇO – É, os tempos mudaram.u MENINO – Aqui tem presente bonito.

u MOÇO – Pois é. Me contaram lá na vila dos pássaros que vocês fazem.(Vai até o móbile) – São esses pendurados aqui? u MENINO – Tem muito mais lá dentro. Esses aqui ainda não tão prontos.u MOÇO – Uma beleza! São pássaros aqui da região?u MENINO – Tem de tudo quanto é lugar do país. u MOÇO – E como vocês conhecem todas essas espécies?u VELHA – Quando meu marido ainda era vivo, nós corremos esse paísde norte a sul. E por onde a gente passava, dava um jeito de conhecer ospassarinhos. Hoje, com barro, tinta e penas, vou trazendo de volta asaves que vivem aqui, na minha memória.u MOÇO – É incrível o seu trabalho. Mesmo sem estarem prontos, jáparecem vivos. Tem alguma coisa neles... eu não sei o que é, mas... pare-cem habitados por espíritos.u MENINO – Qual o seu passarinho preferido?u MOÇO – É a rolinha. Ela me inspira coisas boas; me faz lembrar domeu tempo de criança, quando a meninada lá da rua se juntava detardinha pra brincar de roda.

(CANTIGA DE RODA)ROLINHA VOOU, VOOUCAIU NO LAÇO SE EMBARAÇOUOI ME DÁ UM ABRAÇO QUE EU DESEMBARAÇOA MINHA ROLINHA QUE CAIU NO LAÇO.

u VELHA – O senhor deve ter bom coração pra gostar tanto assim derolinha. A maioria nem liga pra ela. Mas é pássaro de Deus, abençoado. Moço canta

ROLINHA ABENÇOADAROLINHA, ROLINHA, ROLINHAA CABOCLA OU A CINZA CLARINHACONVIVE BEM COM TICO-TICO E PARDALE NO QUINTAL, BRINCANDO VAI E VEM

TEU CANTO É TRISTE E SUAVEABENÇOADO PELO CÉUROLINHA, MEIGA ROLINHAME EMBALA NO CANTO TEU

VOA FELIZ SOLITÁRIAOU EM BANDO DE MAIS DE CEMROLINHA, MEIGA ROLINHATUA PAZ ME ENSINA TAMBÉM

ROLINHA, MEIGA ROLINHATÃO TRANQÜILA, TÃO MANSINHAVEM AQUI NA MINHA MÃOQUE EU TE DOU MEU CORAÇÃO.

u MOÇO – Pois é, minha mãe me contou essa história quando eu erapequeno e nunca mais esqueci. Nossa Senhora e São José estavam fugin-do com o menino Jesus. Os soldados romanos já estavam quase osalcançando quando apareceram as rolinhas, centenas delas, e começarama ciscar o chão apagando as pegadas da família. Os soldados iam matar oMenino Jesus; foi graças à rolinha que ele sobreviveu.

POUSAM NO QUINTALCISCAM, COMEM E VÃO EMBORAFOI A ROLINHAQUE AJUDOU NOSSA SENHORA.

u MENINO – Como é que pode, né? Um bichinho tão pequenininho foiquem salvou o salvador.

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POUSAM NO QUINTAL...

u MENINO – (Entrando na casa) Nós temos uma rolinha lá dentro. Voupegar pro senhor ver.u MOÇO – (A sós com a velha) Muito esperto esse garoto. Está na escola?u VELHA – Claro que sim. Vai todo dia até a vila pra aula. E só tira nota boa.u MOÇO – Mas não é muito cansativo esse vai-e-vem todos os dias? Adistância até a vila não é pequena.u VELHA – Ele tá acostumado com a lonjura. u MENINO – (Entrando com a rolinha de barro) Olha só que beleza.u MOÇO – É linda mesmo. Essa vai pra minha casa. u MENINO – E pra sua namorada? Vai ter que escolher outro.u MOÇO – Ela não é mais minha namorada. Mas pra ela quero um pás-saro muito especial. Você me ajuda a escolher?u MENINO – Pra escolher presente tem que conhecer a pessoa.u MOÇO – Eu tenho uma foto dela aqui. (Pega a foto na carteira) –Olha, não é bonita?u MENINO – Bonita mesmo.u MOÇO – E você tem namorada?u MENINO – As meninas são muito bobas; têm medo de mim.u MOÇO – Medo?u MENINO – (Após uma pausa) Acho que eu sei o passarinho que a suanamorada vai gostar.u MOÇO – Por que as meninas têm medo de você?u VELHA – Bobagem. Crendice do povo. Gente ignorante é um peri-go. Tão sempre imaginando coisa. u MOÇO – (Para o menino) Por que as meninas têm medo de você?u MENINO – O povo acha que antes de ser menino eu era passarinho.u MOÇO – Passarinho?u MENINO – É, eles acham que eu não nasci de gente; que foi a velha queme fez.u VELHA – Já falei pra não ficar repetindo essa história. Boato é quenem erva daninha, quanto mais se mexe, mais se espalha. Essa gente émuito fuxiqueira, gosta de inventar. Por isso que eu gosto de viver aquino meio da mata, longe do povo. u MOÇO – Se esconder às vezes até que é bom...u VELHA – E eu lá sou mulher de me esconder? Vivo aqui por escolha.Já andei por esse mundão todo aí fora; e vi muita coisa, moço. Conhecimuita gente, muitos lugares, mas só me encontrei foi aqui, no meio damata. Aqui a gente pode viver em paz. u MOÇO – Menino, será que você pode me trazer os outros passarinhos?Precisamos escolher o presente. u MENINO – (Saindo) Vou pegar, então.u MOÇO – (Depois que o menino sai) – Esse menino não é seu filho, é?u VELHA – É meu filho no papel; fui eu que registrei. Mas não temmeu sangue, não.u MOÇO – E a mãe dele?u VELHA – Morreu logo que ele nasceu. Tava muito doente, a coitada.Acho que era a malária. Ela apareceu aqui e pediu pra eu tomar conta do ne-ném; ele também tava doentinho. Eu levei ele pra dentro, pra dar água e elaficou sentada ali na porta esperando. Quando eu voltei, ela tinha sumido. Euquis ir atrás dela, mas não podia deixar o menino sozinho. Tinha que cuidar. u MOÇO – E ela nunca mais apareceu?

u VELHA – Não. O mais estranho é que ninguém nunca ouviu falardessa mulher. Ela apareceu do nada e sumiu pro nada também. Por issoo povo fica inventando história. Às vezes eu acho que foi um anjo quetrouxe ele pra mim. Quem vê esse menino hoje, forte, esperto, cheio desaúde, nem imagina. Quando chegou aqui, era uma coisica de nada; fra-quinho, quase nem comia. Tão miudinho que parecia até um...(Interrompe-se). u MOÇO – Passarinho.u VELHA – É, parecia um passarinho, mas é gente; nascido de gente.u MENINO – (Entrando com uma caixa grande) Tive que tirar as caixas deencomenda de cima. Esses daqui ainda não têm dono.u MOÇO – (Abrindo a caixa) Nossa! São tantos que eu nem sei por ondecomeçar. Acho que vou levar vários.u MENINO – (Pega um outro) Esse aqui o senhor tem que levar; é o seuxará, o João, João-de-barro.u MOÇO – Você acha que ele se parece comigo? u MENINO – Parece até que são da mesma família. Acho que Deus talhouvocês do mesmo barro.u MOÇO – E por que você acha que somos tão parecidos?u MENINO – É que esse passarinho adora trabalhar; e trabalha semprecantando, sem perder nunca a alegria. Ele gosta de construir sua casinhaperto da cidade; não tem medo do ser humano. Ele também vive apaixonado;e depois que se casa, fica com a mesma namorada a vida toda.u MOÇO – Agora sim tô vendo a semelhança. Será que eu já fui umJoão-de-barro em outra encarnação?u MENINO – Não duvido nada. Dizem que o joão-de-barro era homemantes de ser passarinho. Conta pra ele aquela história, Velha. u VELHA – Tá certo. Sente-se aí, seu moço, e faça silêncio.Com um galho, a velha traça um grande círculo no chão. Ela se senta num tron-co, dentro do círculo e o menino e o moço sentam-se do lado de fora.u VELHA – Contam os guaranis, que há muito tempo atrás vivia umcurumim com seu velho pai no meio da mata, afastados do restante da tribo.Até que chegou o dia do ritual em os curumins se transformam em índiosadultos. Todos os jovens daquela idade tinham que passar por três provas:uma corrida a pé, uma corrida a nado e por último, a mais difícil de todas,a prova do jejum. O vencedor receberia como prêmio a filha do cacique emcasamento. Acontece que o curumim já estava apaixonado por uma outraíndia e não queria se casar com a filha do cacique. No dia do ritual, mesmosem esforço, ele venceu fácil as duas primeiras provas, deixando os outrosmuito pra trás. Passou então os nove dias do jejum paradinho, dentro da taba,bebendo apenas suco de milho. Quando foram buscar o curumim parafestejar a vitória e apresentar a noiva, ele começou a ficar pequenininho,pequenininho, diminuía cada vez mais. Até que se transformou num João-de-barro. Ele voou para uma árvore e de lá soltou o seu canto alegre, comose risse das caras assustadas de todos. A bela índia que ele amava, quando viuessa prova de amor, foi correndo ao feiticeiro e pediu que a transformassetambém num passarinho. E até hoje eles vivem juntinhos, felizes econstruindo suas casinhas. Por isso que a gente costuma cantar assim: “João-de-barro é alegre e cantador; dos passarinhos é o mais trabalhador...”u MOÇO – E o mais romântico também. Gostei. “João-de-barro é ale-gre e cantador; me ensina como conquistar o meu amor”Os três Cantam

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PEDREIRO JOÃO-DE-BARRONO BIQUINHO TRAZ O BARROVAI E VOLTA SEM PARARNUMA CASA BEM BONITACOM SEUS FILHOS ELE VAI MORAR.

SUA COR NÃO É BONITAE O CANTO TAMBÉM NÃOMAS FAZ CASA BEM FIRMEPERTO DA CIVILIZAÇÃO.

JOÃO-DE-BARROÉ ALEGRE E CANTADORDOS PASSARINHOSÉ O MAIS TRABALHADOR.

JOÃO-DE-BARRO É BEM MANSINHOTRATA OS FILHOS COM CARINHOCOM CARINHOPORÉM NÃO DÁ MOLEZA NÃO.

VENDO SEUS FILHOSTODOS BEM CRIADOSSE QUISEREM FICAR ENCOSTADOSELE EXPULSA DA MANSÃO.

EH! PREGUIÇA NÃO.

u MOÇO – Não sabia que ele expulsa os filhos de casa, depois que estãocriados.u MENINO – É por que se deixar eles ficam lá, na boa vida. Desse jeito,eles aprendem a construir suas próprias casas.u VELHA – Bom, moço, se o senhor já escolheu os passarinhos que querlevar, a gente pode embrulhar. O senhor me desculpe, mas o dia correrápido e eu tenho que preparar o almoço.u MOÇO – (Começa a separar alguns pássaros) Já escolhi alguns, masfalta o principal. Ainda não achei um especial, capaz de reconquistar aminha amada. O que a senhora me sugere?u VELHA – Não conheço passarinho capaz de conquistar coração demulher caprichosa.u MOÇO – Tem certeza? Lá na minha cidade eu ouvi dizer que existeum pássaro encantado, que com o feitiço certo consegue fazer qualquerum se apaixonar. Eu cruzei o país seguindo o rastro dessa lenda. A se-nhora já ouviu falar desse pássaro? Dizem que o nome dele é Uirapuru. Vindo da floresta, ouve-se um canto de pássaro longo e triste, depois, faz-se silêncio total.u VELHA – Uirapuru não é um, são muitos. Cada tribo costuma chamarde Uirapuru aquele que canta mais bonito de todos. Alguns dizem que éum espírito que vive na mata, protetor das aves. u MOÇO – Então não existe Uirapuru?u MENINO – Existe sim; e quando ele canta todos os outros passarinhosficam em silêncio, por respeito e admiração.u MOÇO – Eu sabia! Então, é esse que eu quero. u VELHA – Mas desse eu nunca fiz.u MOÇO – Que pena. Mas eu não posso voltar para casa sem, pelomenos, ver um Uirapuru.u MENINO – A gente podia ir lá na mata. Eu sei de um local...u VELHA – Nada disso. Você tem lição da escola pra aprontar.u MENINO – Eu posso fazer mais tarde.

u VELHA – Já disse que não.u MOÇO – Eu posso ir sozinho, não tem problema. Onde é?u MENINO – Mas o senhor vai se perder.u MOÇO – Acho que eu vou ter que arriscar. Além do mais, eu tenhoum bom senso de direção.u VELHA – Tá falando bobagem. Essa mata aí é muito perigosa. Povoda cidade se perde fácil.u MOÇO – Mas eu fiz uma promessa a mim mesmo de conhecer oUirapuru e vou cumpri-la de qualquer jeito.u VELHA – Adulto quando é teimoso, é pior do que criança.u MOÇO – (Saindo) Deve ser essa trilha aqui que dá na mata fechada.Não se preocupem, eu vou num pé e volto no outro.u MENINO – Ele vai se perder, velha.u VELHA – Espere aí, seu moço. É melhor esse menino acompanhar osenhor. u MOÇO – Muito gentil da sua parte, se preocupar comigo.u VELHA – Daqui a pouco tá na hora do almoço. Vou colocar qualquercoisa no fogo.u MOÇO – Por mim não precisa se incomodar.u VELHA – O senhor é que pensa, vai voltar da caminhada com umabaita fome.u MOÇO – (Indo pela esquerda) Até mais então.u MENINO – Por aí não, por aqui.O menino sai puxando o moço pela mão. a velha fica observando. depois vai sesentar no banco de modelar pássaros.u VELHA – (Começa a trabalhar em alguns pássaros) É, meu menino tácrescendo. Daqui a pouco vai deixar de ser um curumim. O tempo passarápido, mesmo aqui na mata. Debaixo desse céu, no meio dessas árvores,a gente pode até se enganar e pensar que o tempo tá parado, que nãomuda nada. Mas isso é cegueira. Os sinais tão por aí em todo lugar. Umamuda nova que nasce, um galho que cresce, uma flor que murcha. Porque ia ser diferente com a gente? Ontem mesmo ele era um bebezinhodesse tamanhinho. Chegou aqui tão pequenininho que parecia até umbeija-flor, como esse aqui na minha mão (Enquanto trabalha no Beija-flor,vai contando a história). Tão pequenininho e tão rápido. Sabiam que ele éo único que consegue ficar paradinho no ar? É por que suas asinhas batemmuito rápido. E também é o único que consegue voar pra frente e pratrás, como de marcha ré. E sabem como foi que ele aprendeu a fazer isso?Foi há muito tempo atrás, num dia que a mamãe Beija-flor resolveu daruma festa. Cada passarinho foi levando uma comida. Menos as sobreme-sas, que eram a especialidade da Sra. Beija-flor. Ela fazia cada uma maisgostosa que a outra. Tinha de um tudo. Quando a filhinha Beija-flor, queera muito comilona, viu todos aqueles doces na cozinha e não resistiu,comeu unzinho, depois mais unzinho, outrozinho, mais outrozinho, maisunzinho só, mais outrozinho só e por aí foi. Quando a mamãe Beija-florfoi buscar as sobremesas para os convidados, levou um susto daqueles, suafilhinha tinha comido tudo. Que vergonha! Como ela ia fazer com os con-vidados? Disse então à sua filhinha comilona que fosse buscar néctar deflores para fazer mais doces. Como a filhinha Beija-flor era muitopequenininha, teve que ir e voltar muitas e muitas vezes. E tão rápido iae vinha, que nem chegava a fazer curva. Foi assim que aprendeu a voarpra frente e pra trás. A Velha canta:

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MIMOSO BEIJA-FLORBEIJA-FLOR É MIMOSOÉ TÃO PEQUENININHODENTRO DA CAIXA DE FÓSFOROSPODE DORMIR SEU FILHINHO.

TEM UMA RARA BELEZAESSA CRIATURINHASÃO MAIS DE MIL POR MINUTOAS BATIDAS DE SUAS ASINHAS.

SÓ ELE CONSEGUE E FAZVOAR PRA FRENTE E PRA TRÁS.

Ainda cantando ela vai entrando na casa.

PARTE II – MATAO menino e o moço chegam no meio da floresta.

u MOÇO – Como é que você consegue se guiar por aqui? Quase não dápra ver a trilha. Depois de um tempo fica tudo igual; parece que estamosdando voltas.u MENINO – É o costume; conheço isso aqui como a palma da minha mão.Eles ouvem um canto de pássaro.u MOÇO – É esse o Uirapuru?u MENINO – Você não entende nada de pássaros mesmo, né? Esse foi oJaó. Não ouviu ele chamando a Perdiz?u MOÇO – Como é que é?u MENINO – O Jaó quando canta chama pela Perdiz e a Perdiz quan-do canta chama pelo Jaó.u MOÇO – Não tô entendendo nada.u MENINO – É que agora eles vivem separados, mas antes só andavamjuntos.u MOÇO – Pra mim você tá falando tupi-guarani. Continuo não entendendo.u MENINO – Espere um momento que vou lhe contar.O menino canta:

FIM DA AMIZADEOS ANTIGOS CONTAM UMA HISTÓRIA QUE ASSIM DIZANTIGAMENTE O JAÓERA AMIGO DA PERDIZ.

DIZIAM QUE A PERDIZ SEMPRE LÁ NA MATA IAE O JAÓ NO DESCAMPADOLHE FAZIA COMPANHIAMAS UM DIA ELES BRIGARAMJAÓ MUITO INDIGNADOFICOU NO MATO FECHADODE LÁ NUNCA MAIS SAIUA PERDIZ ABORRECIDAFOI VIVER NUM CAMPO ABERTONA MATA NEM CHEGA MAIS PERTOE O JAÓ NUNCA MAIS A VIUDIZ A LENDA QUE O JAÓESTÁ MORRENDO DE SAUDADEMAS A PERDIZ É ORGULHOSANÃO QUER MAIS SUA AMIZADE.

u MENINO – E o Jaó fica na beirada da mata chamando, com uma vo-zinha triste – Vamos fazer as pazes? E a perdiz responde, decidida – Eununca mais.

OS ANTIGOS CONTAMUMA HISTÓRIA QUE ASSIM DIZANTIGAMENTE O JAÓERA AMIGO DA PERDIZ.

u MOÇO – Gostei. Parece até a minha história. Antes eu e minha namo-rada nos dávamos tão bem! De repente, por causa de umas bobagens,começamos a nos desentender. E agora parece que falamos outra língua,que vivemos em mundos diferentes.u MENINO – O senhor gosta muito dela, né?u MOÇO – Demais. E ela vai voltar a gostar de mim. Custe o que cus-tar. Você precisa me ajudar a encontrar o Uirapuru.Ouve-se o canto do Uirapuru.u MENINO – Falando nele...u MOÇO – O Uirapuru?u MENINO – Ele mesmo. (Apontando) – Deve ter ido pra lá. Venha.(Eles andam um pouco tentando não fazer barulho) – Olhe, ele tá ali,naquela árvore.u MOÇO – Estou vendo. É lindo!u MENINO – Não pode fazer barulho, se não ele foge.u MOÇO – (Retirando uma gaiola da mochila) – Eu preciso pegar essepassarinho, menino.u MENINO – Tá maluco? Não pode pegar passarinho. É maldade.u MOÇO – Eu sei, mas me falaram que se eu pegar o passarinho e fizero feitiço certo consigo conquistar a minha amada.u MENINO – E você por acaso sabe fazer feitiço?u MOÇO – Não, mas conheço gente que sabe. Depois que o feitiço ficarpronto, a gente solta ele. Você me ajuda a pegar?u MENINO – Não sei, não. A velha disse pra nunca pegar passarinho.u MOÇO – Mas a gente não vai deixar ele preso. E você? Não gosta denenhuma menina? A gente pode usar o feitiço arranjar uma namoradapra você também.u MENINO – Não quero namorada, não. As meninas são muito bobas.u MOÇO – Mas não tem nenhuma de que você goste mais?u MENINO – Bom, tem a Ritinha, né. Ela é legal. Até divide a meren-da comigo.u MOÇO – Então? Depois a gente solta o bichinho. Aí eu fico com aminha namorada e você com a Ritinha. Você não sabe imitar o cantodele? Pode atraí-lo.u MENINO – Tá certo. Me dá essa gaiola aqui. Eu vou lá perto e o se-nhor fica quietinho aqui.A atriz que faz a velha canta por entre as árvore do cenário.

CAÇADORBICHOS FUJAMOLHA O PERIGO, FUJAM.

OS BICHOS DA FLORESTA ESTÃO TREMENDO DE PAVORENTROU NA MATA AGORAUM TERRÍVEL CAÇADOR.

SE TEM CANTO BONITONA GAIOLA QUER PRENDERSE TIVER CARNE GOSTOSA VAI MATAR PARA COMER.

O menino some no meio da mata com a gaiola. O moço fica observando. Depois de um tempo, o menino aparece no alto de uma árvore cantando como o Uirapuru.

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Ele pode estar com um figurino de pássaro. Alguns sons estranhos surgem; a mata se agita. Depois de um tempo tudo fica quieto e o silêncio pesa na cena.Após um tempo o menino reaparece com o Uirapuru dentro da gaiola. Ele vemcambaleando.u MENINO – Tá aqui o seu passarinho.u MOÇO – Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?u MENINO – Sei não, só lembro de ter subido na árvore. Depois apagoutudo. (Ele se apóia no braço do moço).u MOÇO – Você tá quente, menino. Tá passando mal?u MENINO – Eu nunca passo mal. (Desmaia).u MOÇO – (Tentando reanimá-lo) – Não faça isso comigo, menino. Acorde.Você não pode desmaiar aqui. Como eu vou achar o caminho de volta? Eunão sei andar nessa mata. Menino, menino! (Pega o menino no colo).

PARTE III – A VOLTA PARA CASAA velha entra pela porta da casa com um avental e uma colher de pau na mão.

u VELHA – Aconteceu alguma coisa, eu tenho certeza. Aquele apertono peito que eu senti foi um pressentimento. Eles já deviam ter voltadohá muito tempo. A melhor coisa a fazer é rezar, para eles encontrarem ocaminho de volta. (Puxa um amuleto que esta pendurado num cordão ecomeça a rezar).u MOÇO – (Entrando com o menino no colo) – Ajuda aqui, velha.u VELHA – (Indo até ele e ajudando a colocar o menino no chão) –Minha Nossa Senhora! Mas o que aconteceu?u MOÇO – Eu não sei. Ele estava bem, e de uma hora pra outra des-maiou. A gente tava lá no meio da mata fechada. Quase não conseguivoltar. Errei o caminho três vezes. u VELHA – (Fala enquanto examina o menino) Ainda bem que o senhormanteve a calma. u MOÇO – Eu só pensava que tinha que trazer ele pra casa. Como ele está?u VELHA – Não tá nada bem. A respiração tá fraquinha. Me conte tudoque aconteceu. Isso não pode vir do nada.u MOÇO – Bom não foi nada demais...u VELHA – O que foi que vocês aprontaram, desembuche logo.u MOÇO – Ele só subiu na árvore para pegar o passarinho...u VELHA – Passarinho?u MOÇO – É, o Uirapuru.u VELHA – Mas então foi isso! Onde já se viu prender Uirapuru? Ele éum pássaro sagrado! É o guardião da mata e protetor de todas as aves.Quem pega o Uirapuru fica amaldiçoado. u MOÇO – Não foi culpa dele, eu é que pedi. u VELHA – E onde está o Uirapuru?u MOÇO – (Tirando o uirapuru da mochila) – Tá aqui. u VELHA – Ainda bem que o senhor trouxe o passarinho. (Retira o pas-sarinho da gaiola) – Agora se afaste. (Pode entrar novamente a música douirapuru) (ela murmura ao ouvido do passarinho, executa uns gestos deritual, encosta a cabeça do passarinho na cabeça do menino e depois opassa pelo corpo dele. Depois vai até a lateral e solta o passarinho emdireção a mata e volta para junto do menino. fala para o moço) – Agorame traga água.u MOÇO – (Levando a água) Ele está melhor?u VELHA – Ele já vai voltar.

u MOÇO – Graças a Deus. A gente não fez por maldade. Era só profeitiço, depois ia soltar.u VELHA – Mesmo assim é maldade. Ninguém pode pegar passarinho,principalmente esse menino. u MOÇO – Por que principalmente ele?u VELHA – Esse menino tem alma de passarinho.u MOÇO – Então o povo está certo, esse menino não é como os outros.u VELHA – Ele é um menino como outro qualquer. Todo mundo temdentro de si a essência de algum bicho. Onça, macaco, cobra. A dessemenino é o passarinho. Quando ele aprisionou o Uirapuru, foi como setivesse aprisionado a sua própria alma. u MENINO – (Acordando) Para de inventar história, velha. O moço vaificar impressionado.u VELHA – (Abraça-lhe e lhe dá muitos beijos) Meu menino, que sustovocê me deu. Não me faça mais isso. Nem sei o que eu faria se aconte-cesse alguma coisa com você. u MENINO – Não aconteceu nada, Velha. Mas agora pare de me beijarque está me deixando melado.u VELHA – Eu vou trazer a comida, você precisa se alimentar. u MENINO – Eu já estou bem.u VELHA – Mesmo assim, tem que comer e depois você vai se deitar.A Velha sai para buscar a comida. u MENINO – Não acredite em tudo que ela diz, essa Velha é uma con-tadora de histórias.u MOÇO – Histórias vou ter eu para contar, quando voltar para casa.A Velha volta com os pratos de comida.u VELHA – Tome aqui, seu moço. Não repare, é comida de gente humilde.u MOÇO – Deve ser gostosa, então. u MENINO – E lá na cidade, moço, tem muito passarinho?u MOÇO – Muito menos que aqui. Mas se tiver árvore por perto, dá praencontrar. O problema é que não sobraram muitas árvores por lá. Temtambém os que vivem presos em gaiolas. u VELHA – Pois é, né moço? Maldade prender passarinho. Não seicomo é que pode.u MOÇO – Também acho. Só pode ser gente que não tem coração, pragostar de ver os bichinhos presos. Canário, então, que canta bonitomesmo na gaiola, tem aos montes. Mas isso vem de muito tempo atrás,antes do Brasil ser Brasil. Foram os espanhóis que descobriram esses can-tadores lá na África, nas Ilhas Canárias. Começaram então a aprisionar ospassarinhos e a levarem de navios para o resto da Europa. Todos queriamum canarinho para enfeitar a sua casa. Ganharam rios de dinheiro comisso. Mas um dia um navio carregado de canarinhos afundou, e a passa-rinhada toda voou livre e se espalhou pelo mundo. O seu canto e a suabeleza até hoje encantam o homem. u VELHA – O homem também não mudou muito nesse tempo todo.Ainda hoje quando vê alguma coisa bonita, quer logo pra ele, mesmo quetenha que prender numa gaiola.u MENINO – (Levanta-se e começa a dançar) Ainda mais o canário quecanta bonito assim: tiriri tiri rim, do princípio ao fim.u VELHA – Sossega, moleque.u MENINO – Eu já tô bem, Velha. O seu canto é raro, TEM muito valor. u VELHA – Melodia linda, sabe o meu cantor.Os três cantam.

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istórias de pássaros >>

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CANARINHO CANTADORO MEU CANTO É RARO / TEM MUITO VALORMELODIA LINDA / SABE O MEU CANTOR.

EU SOU O CANÁRIOVIM DE LONGE PRA FICARNEM ME IMPORTA O TEMPOGOSTO DE CANTAR.

ELE CANTA ASSIM / TIRIRI TIRI RIMDO PRINCÍPIO AO FIM / TIRIRI TIRI RIM.

NÓS VIEMOS DE UMA ILHAPERTO LÁ DE PORTUGALE NO MARMUITA CHUVA E FRIOVENTO FORTE NO NAVIO.

VEIO UM TEMPORAL.

E UM RAIO BRILHOUNO NAVIO CAIU.

A GAIOLA VIROUE A GRADE SE ABRIU.

O CANÁRIO ASSUSTOUCOM MEDO FUGIU.

PRA TERRA AVUOUE CHEGOU NO BRASIL.

NOSSA COR AMARELA PARECEMADURO LIMÃOE GOSTAMOS TANTO DESTA TERRAPOIS ÉCANARINHO AGORA VIROUO APELIDO DA SELEÇÃO.

CANARINHO Ô / CANTO POR AMORCANARINHO Ê / CANTO PRA VOCÊCANARINHO A / EU VOU TE ENSINAR.

TAMBÉM QUERO CANTARVEM, VEM CANTAR PRA MIM.

TIRIRI TIRI RIM / BEM BONITO ASSIMTIRIRI TIRI RIM / TIRIRI TIRI RIMTIRIRI TIRI RIM /TIRIRI TIRI RIM.

u MENINO – Olha, que o senhor também sabe contar histórias.u MOÇO – Não são tão boas como as de vocês, mas eu sei algumas, sim.u VELHA – (Apanha na caixa dois passarinhos) Leve esse casal decanários de presente para a sua amada. Pode não ser enfeitiçado, mas éromântico demais.u MOÇO – São lindos, com certeza ela vai adorar, mas acho que não vaiser o suficiente para reconquistá-la.u VELHA – Escuta aqui, moço. O senhor saiu da sua cidade, cruzou o céu,atravessou os rios, roubou passarinho, se perdeu na mata. Tudo isso peloamor de uma donzela. Pois conte tudo isso a ela. Não tem moça que não sederreta por um amor assim. Aposto como vocês vão fazer as pazes. E dapróxima vez que nossos caminhos se cruzarem, o casório vai estar marcado. u MOÇO – Será? É, acho que a senhora pode ter razão. Assim que chegar

lá, escrevo para vocês contando se deu certo. Bom, acho que já vou andan-do. A caminhada até a vila é longa e já está anoitecendo.u MENINO – Não esqueça os outros pássaros.u MOÇO – Quanto fica tudo isso?u VELHA – É cortesia, não posso cobrar de um amigo.u MOÇO – Faço questão, é o seu trabalho.u VELHA – Dê então o que o senhor achar que deve.u MOÇO – (Tirando algumas notas e colocando na caixa) Está certo então.Até a vista. Se um dia forem à minha cidade não deixem de me procurar. Eeu prometo que um dia volto aqui. Espero que muito bem acompanhado,com a minha namorada. E você menino, quem sabe, vai estar com a Ritinha.u VELHA – Quem é Ritinha?u MENINO – Assunto de homem, Velha. Adeus, seu moço.u MOÇO – Adeus. E até a próxima.Eles se despedem e o moço sai.u MENINO – Hoje o dia foi cheio.u VELHA – É verdade. Agora me diga, essa tal de Ritinha...u MENINO – (Saindo para a casa) Acho que eu vou lá pra dentro, temlição da escola pra fazer. Depois a gente conversa.u VELHA – Volte aqui, moleque, e me conte essa história.u MENINO – (Já fora de cena) Já chega de histórias por hoje, Velha.u VELHA – (Fala para dentro da casa) Está certo, mas depois quero saberde tudo direitinho...Após a saida do menino, a luz vai caindo, trazendo o anoitecer. A velha fica emcena recolhendo alguns objetos e cantando a música do Beija-flor. Logo ela sai eapós alguns instantes vem o menino de dentro da casa. Ele vai até o móbile de pás-saros e começa a conversar com eles.u MENINO – Viu, Seu Sanhaço, como o moço da cidade gostou de vocês?É, lá não tem passarinho bonito como aqui. (Se dirige a outro) – Não, Donarolinha, ele não foi pra sempre, não. Ele vem visitar a gente. (A outro) – É,seu Cardeal, quando ele voltar, vai trazer a namorada pra gente conhecer. (Aoutro) – Eu? Quem sabe! É, seu Bem-te-vi, quem sabe um dia eu vou láconhecer a cidade grande e visitar ele? (A outro) É seu, Beija-flor, deve serbom correr o mundo. (A luz vai caindo enquanto a voz do menino vaisumindo e o som dos passarinhos vai aumentando) – Se eu fiquei com medodo Uirapuru? Claro que não, seu chupim, não sabia que nós somos irmãosde alma? (A outro) – Já vai dormir, dona Corroída? É mesmo, já estáanoitecendo. Como o tempo passa rápido. Mais um dia se foi. (A outro) –Boa noite, Seu Tico-tico, eu também já vou dormir, amanhã tem escola.Durma bem, seu Tié Preto. (A outro) – Noite, Dona Juriti. (A outro) – Boanoite, Sábia. Noite, Cambaxirra. Noite Canarinho.A escuridão toma conta da cena e ouve-se apenas o som dos passarinhos muito alto.Aos poucos o som de instrumentos vai se misturando ao som dos passarinhos,transformando-se numa música, entram os personagens, com seus instrumentos,cantando a mesma música da abertura.

FIM

Texto Registrado no Escritório de Direitos AutoraisFundação Biblioteca NacionalMinistério da CulturaN° do Registro 323.377 - livro 592 - folha 37Título Original: Uirapuru Menino e Outras Histórias de Passarinhos

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