revista metamorfose - loucura - finalizada

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Revista produzida por alunos de Comunicação da Unisul Pedra Branca

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Page 1: Revista Metamorfose - LOUCURA - Finalizada
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EXPEDIENTEDiagramaçãoDÉRICK PACHECO CAITANO

Assistentes de DiagramaçãoANA BEATRIZ DE FARIASBIANCA WINDMILLERCLARA CECI GRAHJHENEFER GARCIA CEZARJUNIOR COSTAKAUANA DA SILVA PEREIRAMARIANA SMÂNIAPEDRO PAULO DE OLIVEIRA

Foto de CapaMARIANA SMÂNIA

Produções TextuaisALUNOS DA UNIDADE AUTOR NA COMUNICA-ÇÃO E DAS DISCIPLINAS NARRATIVAS JORNA-LÍSTICAS E PRODUÇÃO AUDIO VISUAL II

Supervisão GeralHELENA SANTOS NETO

CursosJORNALISMO PUBLICIDADE E PROPAGANDA

Coordenação de CursoDANIELA GERMANN

Sorte daqueles que se expressam! De tudo o que pode ser lido, ouvido e assistido, nada se compara a viver. Sentir o cheiro, ter as sensações afloradas na pele. Com essa certeza que os acadêmicos de Jornalismo e Publicida-de e Propaganda propuseram-se a conhecer o cotidiano dos pacientes internos do Hospital de Custódia e Tratamen-to Psiquiátrico de Santa Catarina (HCTP) e visitar o Instituto Psiquiátrico de Santa Catarina (IPQ), antiga Colônia Santana. Os pacientes psiquiátricos são comumente vistos através de um viés culturalmente enraizado. Depois de 300 anos de história de exclusão e abandono, a realidade dessas pessoas ainda é difícil. Os hospitais, que hoje visam à reinserção do sujeito na sociedade, ainda encontram como principal empecilho a dificuldade humana de aceitar o diferente. O homem muitas vezes só respeita o que conhece. Ultrapassar o lugar comum das doenças psiquiátricas foi a maior aprendizagem. As visões sobre os trans-tornos mentais expressas nas narrativas são fruto de uma experiência que foi além dos livros. Agradecemos imen-samente pela receptividade dos pacientes e das equipes de direção e funcionários das instituições visitadas pela oportunidade única de nos possibilitar essa interlocução tão direta. Das nossas cabeças partiu a vontade de refletir sobre o lado humano, de perceber as diversas posições--sujeito, de dar voz ao outro. Interpretamos, exercemos nossa autoria nas mais diversas materialidades. Escreve-mos, mas sabemos de nossas condições de produção, do nosso distanciamento. Se os entrevistados o tivessem feito talvez não fosse assim. Ainda são discursos de fora para dentro. Em meio a discussões de reforma psiquiátrica no Brasil, olhamos para dentro de lugares que tem olhos, que tem alma.

Boa leitura!

EDITORIAL

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ÍNDICE

RELATOS DE UM DETENTO LOUCOS COMO VOCÊMOMENTOS INSANOSDEPOIS DA LOUCURA VEM A CURACONCEITO DE LOUCURAO CRIME DA INSANIDADEROTINAS ESCURECIDASMAKING OFFPÁGINAS DA LOUCURACADA UM COM SUA LOUCURANOSSAS MANIASVIZINHO DIFERENTEA DUPLAMENTE LOUCAAMANDO LOUCAMENTE O MEU TRABALHORÉGIS MALLMANNSUICÍDIO - A ÚLTIMA FUGA?DIÁLOGOS, CORPOS, LOUCURA E GRADESSUBLIME SENTIMENTOLOUCURA POR DETRÁS DA PORTAPOR TRÁS DOS MUROSALGUÉM TÃO PRÓXIMO

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Uma vivência, quatro visitas, parando para conversar no último diaSaber um pouco mais sobre as loucuras da vida.Hospital de Custódia, Tratamento PsiquiátricoGrandes histórias deixadas de ladoUm leito, 16 companheiros, ou só em um quartoTranstornos da vida te deixam isolado

Vivendo sob o olhar atento dos vigiasTiago e Paulo contam sua rotina;O meu cotidiano é um teste de sobrevivênciaJá to na vida, então, paciênciaPra cadeia não quero, não volto nunca mais.Envolvido no tráfico, dinheiro fácilUm ano ganhando bem, agora passa quatro trancado.Coração amargurado pelo tempo perdido na IlhaDa Bahia pra Floripa, De BC pro HCTPFamilia ficou longe, ninguém vem lhe ver.Meta ao sair, uma nova vida construir.

Um interno francês, criado no BrasilEsquizofrenia paranoica, contando histórias aleatórias;Do Exército, para o Governo, do Governo para a NASAHistórias fantásticas, todas criadas.Pra sair depende do sim ou não de um só homemQue prefere ser neutro pelo telefone

Hoje, tá difícil, não saiu o solHoje não tem visita, não tem futebolAlguns companheiros têm a mente mais fracaNão suportam o tédio, arrumam quiacaCada crime, uma sentençaCada sentença, um motivo, uma história de lágrima.Lamentos no corredor, na cela, no pátioAo redor do campo, em todos os lados.Mas quem vai acreditar no meu depoimento?Dia 22 de novembro, relatos de um detento.

por Evelyn Santos

Relatos de um Detento 01 02

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foto: Evelyn Santos

Relatos de um Detento 01 02

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Loucos como Você!Em um lugar repleto de biografias

Corredores gélidos, repletos de portas, por ve-zes, gradeadas. Livres, po-rém apressados, são os su-jeitos de jaleco branco. Os outros que vivem naquele mesmo ambiente, ao pri-meiro olhar, permanecem cruelmente isolados - mas não estão isolados, mui-to menos de forma cruel. Atrás de cada porta, há al-guém que vive em meio a uma insanidade, a um desa-tino, desvario, a uma falta de juízo e senso de discer-nimento, a um transtorno, distúrbio. Enfim, que vive em meio a uma loucura. Loucos, é assim que o sen-so comum os define. Mui-tos deles estão cientes do próprio problema, mas ain-da assim querem voltar para casa e serem acolhidos. Eles são os diferen-tes da sociedade. Não, dife-rentes não. Eles são iguais a qualquer um, sabe por quê? Pela história que carregam nas costas. Antigas histó-rias de percurso, fortes, di-fíceis, humanas. Se quiser entender o que os levou até lá, pergunte-os sobre o seu passado. Os que come-teram algum delito talvez falem sobre alcoolismo ou o vício em drogas que sus-tentavam desde a adoles-cência. Sobre uma casa que

atearam fogo ou sobre al-gum familiar próximo que agrediram. Ainda que com certo receio na fala e des-confiança no olhar, eles se expressam. Cientes de que o erro cometido um tem-po atrás não foi por acaso. Existem os que pos-suem um acompanhamen-to médico maior devido a algum transtorno mental mais acentuado. Eles po-dem jurar que aconteci-mentos foram reais quando, por vezes, não passaram de delírios. Escutam vozes que sequer pertencem à realidade. Agitados, agres-sivos, sem controle de si mesmos. Muitos são extre-mamente introspectivos, o que acaba os tornando soli-tários. Talvez loucos sejam solitários, justamente pela sua loucura. Amargamente abandonados pelas pessoas que costumavam chamar de família. Há os que mantêm esperança de que receberão alta para, logo depois, se-rem levados para casa pela mãe, pelo pai ou por algum outro parente. A expectati-va permanece, mesmo que a realidade prove o contrário. Embora sejam cui-dados por bons profissio-nais, o desejo de um dia poder sair de lá é quase unânime. A vontade de

se recuperar é grande e, diga-se de passagem, ad-mirável. Porém, há os que se acostumam, pois vive-ram uma boa parte da vida como nômades de hospi-tais psiquiátricos e existem até os que comemoraram muitos aniversários den-tro do mesmo hospital. Eles sentem-se protegidos lá dentro, isentos de qual-quer enxurrada de julga-mentos e preconceitos da sociedade. Imunes a qual-quer rejeição da própria família. Esses não sentem necessidade de voltar para casa, pois adotam o meio hospitalar como seu lar. Como qualquer ser humano, eles possuem his-tórias únicas as quais mui-tas vezes guardam para si mesmos. Quando existe, a vontade de inserir-se no-vamente na vida social é gritante. Se não, é porque estão cientes das possíveis consequências de sair de lá. De qualquer modo, eles são loucos. Loucos por ca-rinho e atenção, loucos por quem os acolha, loucos por uma vida menos conturba-da, loucos para concretiza-rem sonhos. Loucos com desejos tão normais que intitulá-los de diferentes da sociedade, seria loucura.

por Isadora Satie

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Loucos como Você!

foto: Mariana Smânia

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Momentos Insanos Em um prédio branco, qua-drado, no meio de um terreno gran-de, é onde mora a tensão de cerca de 140 homens internados. Cada um por uma causa, todos por um único motivo. A entrada é escu-ra, não transmite paz, os barulhos atormentam quem não está adepto aquele tipo de ambiente. Vozes altas, barulhos de ferro, gritos. A ordem é mantida por trás das gra-des e pelos extensos corredores verde escuro. A única coisa que se destaca no ambiente são as co-res laranja forte do uniforme dos internos encontrados por todas as partes. Seja nas enfermarias, nos pátios ou nos corredores, ocu-pando-se de reformas no prédio. Hospital de Custódia e Tra-tamento Psiquiátrico (HCTP), lo-calizado em Florianópolis, Ilha de Santa Catarina. O que os trouxe para cá? Uma condição da mente humana, caracterizada por com-portamentos e pensamentos consi-derados anormais pela sociedade. Segundo a psicologia, a loucura, transtorno ou insanidade mental. “Agressão. Eu agredi meu pai. Já tinha acontecido outra vez quando eu era de menor. Eu fi-quei sem tomar o remédio, o re-médio psiquiátrico. Fiquei sem tomar o remédio e fumei maconha também, aí eu tive um transtorno. Agredi com faca de cozinha, não queria matar. Meu pai quer vir me visitar, mas não veio porque a mi-nha irmã disse que ele era muito xarope. As minhas irmãs e a mi-

nha mãe vêm me visitar, os meus cunhados também”, relata Guilher-me com ar descontraído, 28 anos, internado há um ano e três meses. Em dias de chuva a rotina é mais pacata, alguns internos nem se levantam, outros ficam agitados na necessidade de fazer alguma coisa, andar no pátio, trabalhar na horta, jogar futebol, fazer exercícios, ou só conversar com os colegas. O odor também fica mais acentuado, o cheiro de urina é muito forte quando eles ficam trancados. Os funcioná-rios já se adaptaram à rotina, às con-dições precárias e ao estilo de vida de cada paciente. Quem não tem aptidão para trabalhar num ambien-te pesado como este não consegue nem passar do período de experiên-cia, garante a psicóloga Laura, in-tegrante do corpo clínico do HCTP. Tomás tem 30 anos, natural de Joinville, teve seu processo re-vogado e ficou internado por quatro anos, três meses e vinte nove dias. Recebeu alta em 25 de Novembro de 2013. “Roubei uma delegacia e também usava droga, crack. Lá tem muita arma boa, metralhadora. E uma metralhadora é 50 mil. Queria ela pra assaltar banco.” Esquizo-frênico, já com condições de man-ter seu tratamento em casa, sente necessidade de manifestar a sua fé: “Deixa eu fazer uma pergunta para ti, sabes de onde vem Deus? Do infinito. E da onde o infinito vem é um mistério. Deus é muito bonito”. Com as mãos para o céu, com sentido de agradecimento, To-

más comemora: “Graças a Deus, segunda-feira eu vou embora.” Em um momento de aluci-nação, após o consumo alcoólico e de drogas, Joel de 25 anos, colo-cou fogo na casa onde vivia ele e sua mãe. “Fiquei fora da casinha, chamaram a polícia, eu não sabia o que fazer e me mandei pra cidade. A polícia me pegou e me condenou por tentativa de homicídio. Não sei se tinha alguém dentro de casa, mas falaram que tinha um piazinho de quatro anos e um bebezinho de seis meses da minha irmã. Eu não quis matar eles na verdade, mas eu fugi”, declara Joel. Sua família lar-gou de mão, diz que sua mãe não que saber mais dele. Mesmo assim, ele tem um sonho: sair do hospi-tal, arrumar um emprego e ir para a casa. Para qual casa ele vai ainda não sabe, mas seu desejo é “esque-cer o passado e viver o presente”. Daniel está há cinco me-ses internado, tem 22 anos e é de Chapecó. Foi preso por homicídio. “Mataram meu pai e eu disse que fui eu. As polícias chegaram lá em casa e quando chegaram me aperta-ram, me agrediram pra eu dizer que foi eu. Eu agredi meu pai, mas não quis matar ele. Foi o meu amigo que matou”. Daniel já é aposentado por esquizofrenia, usuário de drogas e fazia tratamentos com remédios. Ao final da entrevista emociona-se: “Eu nunca mais vou ver ele, né? Agora é rezar, ir à igreja, acender vela, orar por ele. Por que agora já pas-sou, tenho que levantar a cabeça”.

por Kamila Porto

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foto: Diego Stefanovichi

Momentos Insanos

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No Brasil, referências a denúncias de insani-dade mental são encontradas no Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Hoje, no Hospital de Custódia, os internos recebem tra-tamento para que possam receber alta a partir de uma lauda entregue à Justiça. Entre todo tratamento espe-cífico psiquiátrico, os internos participam de terapia ocupacional, exercícios físicos, atividades de nivela-mento e, dependendo de suas aptidões e habilidades, trabalham na cozinha, na limpeza, na horta ou em refor-mas, ocupando o tempo livre durante a rotina hospitalar. Em um processo penal, a alegação de insanidade mental é a defesa na qual se argumenta que devido às ques-tões relacionadas à doença mental, o réu não é responsável por suas ações. Essa defesa é realizada pro profissionais que buscam determinar se o réu era incapaz legalmente de distinguir o que é certo do que é errado. Aquele que declarar insanidade pode ser acusado por “não culpado por razão de insanidade” ou “culpado, mas mentalmen-te doente”, resultando que o réu seja sentenciado a cum-prir pena em uma instituição de tratamento psiquiátrico.

* Todos os nomes de personagens presentes neste texto são fictícios.

Mentalmente Doente

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Era a terceira vez que pisava no chão de madeira do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Santa Catarina (HCTP),percebia que muito havia a ser dito daquele lugar tão singular.Podia sentir que, se fosse concedido o dom de falar, os quadradinhos de lenha que esta-vam debaixo dos meus pés, pode-riam me contar a história de cada um que por ali passou. Já que eles ficam ali inertes e silenciosos.. O medo, a insegurança e os precon-ceitos ficaram lá atrás, na porta de entrada.Não os queria como com-panheiros . Nada parecia ter mu-dado, as cadeiras da recepção, a pouca luz, os quartos dos pacientes, os grandes cadeados nas portas. Mas meus olhos já não viam aquele mundo par-ticular da mesma forma. Ao entrar no refeitório da unidade vi pela primeira vez. Um homem alto de pé, em posição de sentido no canto do refeitório do HCTP. Com os olhos cerrados e o rosto com a expressão fechada, era possível en-contrar linhas de expressão tensa. O clima estava pesado para iniciar uma conversa.Ninguém diria que aquele homem sério poderia ser uma das pessoas mais sensível e atenciosa que se pode conhecer. Essa foi a minha impressão ao encontrar pela primeira vez Jorge Senra, o profes-sor de Educação Física dos pacien-tes do hospital. Ao ser convidado para se apresentar, Jorge descons-truiu aquela primeira impressão. Para ele trabalhar naquele lugar foi algo tão inesperado quanto meu convite para o entrevistar. Con-tou-me que para estar ali bastou um telefonema na hora certa.ocasião .A professora de Educação Física do

HCTP estava se aposentando e era preciso que alguém a substituísse. Até o mês de abril deste ano, Joge trabalhava com o treina-mento dos novos agentes do siste-ma prisional do Estado e também com atividades esportivas para detentos do presídio de segurança máxima em São Pedro de Alcânta-ra. “No dia que fui convidado para trabalhar no HCTP, estava à procu-ra de alguns profissionais na área da saúde para realizar um teste com os futuros agentes que eu estava treinando. Foi então que liguei para cá e ao conversar com o diretor da unidade o convite surgiu”. A prin-cípio, o desafio parecia ser gran-de demais para ele. Porém, com o passar dos meses percebeu que não trilharia esse caminho sozinho.Antes de se tornar funcionário do hospital de custódia, Jorge teve uma caminhada com grandes difi-culdades. Sua primeira profissão foi a de bombeiro. O que explica a posição de sentido quando o en-contrei pela primeira vez. Porém, sentia que não era aquela profissão que desejaria ter para o resto da sua vida. Gostaria de zelar e proteger as pessoas, mas, ainda não era desse jeito. Após deixar a carreira como bombeiro, ele optou por ser cami-nhoneiro e assim foi até o fim de sua graduação em Educação Física na Universidade Federal de Santa Catarina. Conta que em muitas oca-siões a correria era tanta que ele ia para faculdade de caminhão, assis-tia à aula e saía para trabalhar nova-mente. “Não me arrependo de nada, hoje vejo que valeu todo o esforço”. Sete meses passaram-se desde a sua chegada e ele relata que mais tem aprendido do que ensinado aos pa-

cientes. Às vezes, nem sabe ao cer-to o porquê de estar ali.Talvez pelo espírito aventureiro que se pode en-contrar em seu olhar. Para Jorge, é desafiador poder passar seus conhe-cimentos a pessoas com particulari-dades tão próprias. “Sou totalmente realizado profissionalmente, é mui-to bom poder ver cada um aqui evo-luir. Aceitar trabalhar aqui foi algo muito diferente, pois, não era minha área de atuação. Confesso que, pra mim, como profissional de Educa-ção Física, é muito mais fácil traba-lhar com eles aqui do que trabalhar com pessoas ‘normais’”. Os meni-nos, como ele chama seus alunos, “gostam e têm disposição para rea-lizar as tarefas propostas, para eles é algo diferente e ajuda a amenizar a realidade que estão vivendo”. Quando chegou pela pri-meira vez ao hospital, Jorge conta que pensava que seria muito com-plicado trabalhar com pessoas que têm algum distúrbio mental; a con-vivência diária com os internos fez ele perceber que a situação era ou-tra. “Com o tempo nós fazemos da dificuldade como um degrau para chegar mais longe”. Para ele não há dificuldades maiores em realizar seu trabalho a não ser o tempo, pois, quando chove as atividades ao ar li-vre não podem ser realizadas porque a área externa não possui cobertura.Jorge traz em seus olhos um brilho singular, uma esperança viva. De-seja ajudar a transformar a realida-de de muitos que estão passando pelo HCTP. A expectativa é muito grande com relação à seus alunos. Ele traz em seu coração o desejo de que todos que ali passam por tratamento possam um dia ser rein-seridos à sociedade e assim tenham

Depois da loucura, vem a cura. 07 08

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Depois da loucura, vem a cura.seu rosto se enche de brilho ao ima-ginar esse desejo se tornando real.Mesmo idealista, com o tempo fui percebendo que meu entrevista-do era um piadista e tanto. Então pedi que ele me contasse alguma situação divertida que presenciou com os internos. Ele olhou pensa-tivo: “são tantas histórias, deixa eu pensar em uma”. Nesse meio tempo que Jorge pensava um de seus alunos se aproximou de nós querendo chamar sua atenção. Ele o acolheu mais uma vez com seu sorriso e exclamou “olha aqui mi-nha história” apontando para ele. A história que Jorge que-ria contar era a de Carlos Mendes, que está em tratamento há quatro anos e tem esquizofrenia paranói-ca. Carlos tem grandes dificulda-des para se comunicar, porém, é só cantar um dos clássicos da música brasileira perto dele que o sorri-so já surge. Jorge conta que an-tes de iniciar o tratamento Carlos era músico profissional, cantava e tocava muito bem. Com o tem-po a doença foi se agravando,mas a música é a melhor forma de to-car e se comunicar com Carlos. Mesmo com pouco tempo de traba-lho, Jorge passa-nos uma segurança muito grande sobre o que está fa-zendo. Ele demonstra que é possí-vel desconstruir certas realidades ereconstrui-las de formas diferen-tes para fazer do mundo um lugar melhor. O professor não tem tantas coisas para contar como o chão de madeira que nos recebeu naquele lu-gar, mas, sua esperança em dias me-lhores é contagiante e faz com que tenhamos outro olhar para aquela realidade. Jorge deixa uma dica ao final de nossa entrevista: “depois da loucura vem a cura, pense nisso”.

por Giovanna Laurea Dutra

foto: Mariana Smânia

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Em seu livro História da Loucura, Michel Foucault inves-tiga e apresenta a loucura desde o Renascimento até o seu total estabelecimento na sociedade. A maneira com que a loucura foi encarada sofreu diversas transfor-mações com o passar dos séculos, assim como a maneira pela qual o homem passou a encarar esse fato. A primeira manifestação de loucura foi com a disseminação da lepra através das Cruzadas, ex-pedições medievais realizadas em nome de Deus. A contaminação deu-se na ida até o Oriente, princi-pal foco da lepra, e de lá traziam a doença que se espalhou significa-tivamente pela Europa. O leproso era excluído da sociedade por conta das marcas que carregava consigo. Segundo a Igreja, a manifestação da lepra nada mais era do que um domínio de Deus sobre esta pes-soa. Foi ele quem criou os lepro-sos e ordenou sua vinda ao mundo. Inúmeros estabelecimentos foram construídos para isolar os contami-nados e, mesmo com o “fim” da le-pra, a estrutura aonde o leproso era isolado foi mantida e essas ficaram conhecidas como um local em que os excluídos ficavam à espera da salvação. Após os leprosos terem habitado esses lugares, a próxima doença que exigia o isolamento foram as doenças venéreas, hoje em dia, conhecidas como Doen-ças Sexualmente Transmissíveis (DST). Apesar da contaminação das DST’s terem sido muito rá-pidas, elas não tiveram repercus-são como a lepra, enquadrando--se junto às doenças costumeiras. Para não carregarem a marca da discriminação e exclusão, as pes-soas acometidas de lepra, doen-

ças venéreas e loucura necessitam desaparecer da visibilidade das pessoas. Essa parte das pessoas representam os excluídos da so-ciedade, segundo Foucault. Por conta da loucura ser uma fraqueza humana, ser visível e não esconder nada, ela atrai as pessoas pelo fato de conseguir manter uma domina-ção sobre as coisas. A loucura diz respeito à realidade que o homem acredita existir. O primeiro sinto-ma de loucura é quando o homem se apega a si mesmo, causando a ilusão. Os alienados não pos-suem atitudes que condizem com a realidade do mundo, possuem atitudes que condizem com a rea-lidade do que ele acredita existir.

LOUCURA NA ARTE

Na metade do século XV, a lou-cura passa a ser tema principal das artes em um todo, e neste espaço o louco é visto como um deten-tor da verdade, segundo Foucault. Inúmeras imagens, telas, quadros enigmáticos, de difícil compreen-são surgem. Essas imagens foram obtidas através dos sonhos e por isso exercem tanto fascínio atra-vés dos tempos. Bosh e Brueghel tinham uma visão de que a loucura está ligada ao homem, suas fraque-zas, ambições e sonhos. As pessoas mais providas de inteligência não aceitavam a ideia de existir demô-nios e feitiçarias. Não acreditavam que os atinados eram corpos que foram possuídos por espíritos ma-lignos. Acreditavam na alienação e na perda das funções da mente. Após esta época passou-se a ver a loucura como um processo mental. Com o movimento renascentista descobriu-se a circulação do san-

gue e nervos, época em que passou a fazer sentido a doença mental surgir por causa do mau funcio-namento da mente e da circulação sanguínea. Para Foucault, a loucu-ra é percebida no meio social infe-rior pela incapacidade ao trabalho e a impossibilidade de integrar--se ao grupo. O internamento é a eliminação espontânea destes. O século XVII foi marcado pela criação de diversas casas de inter-namento. Aumentando significati-vamente o número de internados. Os primeiros hospitais para loucos surgiram no mundo árabe, onde os médicos voltavam-se totalmente à cura dos loucos. Na Europa, a Es-panha teve o seu primeiro hospital fundado por conta da influência árabe no país. Após isto, os hos-pitais espalharam-se pelo mundo. Os desatinados que eram man-tidos nesses lugares tinham pés-simas condições de vida e eram tratados de forma desumana. Esses hospitais ofereciam o atendimento médico e tinham o direito de deci-dir pelos internos. O louco era ex-cluído de todas as formas possíveis no século XVII, além de ter que vi-ver juntos aos miseráveis, pois per-turbavam a ordem social. O parla-mento de Paris passou a humilhar em praça pública aqueles que não retomavam o seu lugar na socieda-de. A sequência era a expulsão da cidade, isto quando não recebiam a força da guilhotina. É durante o sé-culo XVII que surgiu o conceito de que a doença mental é um déficit com a razão. A loucura, nada mais é do que o lado negativo do homem. O homem identificou no sé-culo XVIII uma nova maneira de perceber a loucura. Ela está fora da compreensão com a razão, por

Os marcos históricos da loucura desde suas primeiras manifestações e a formação do seu conceito social

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Os marcos históricos da loucura desde suas primeiras manifestações e a formação do seu conceito social

isso, o homem deixou de se comu-nicar com o louco. Para a ciência, o louco era desprovido da percep-ção da essência e do verdadeiro. A consequência era o isolamen-to, acarretando assim a constru-ção de instituições psiquiátricas. A loucura percorreu todo o his-tórico da humanidade. As mais diversas razões dos seres huma-nos eram tidas como desatino. A homossexualidade não pertencia ao amor racional e sim à loucura. Os blasfememos, que difamavam os deuses, não só eram internados como tinham seus lábios queima-dos com ferro em brasa. As pesso-as que praticavam rituais de magia causavam desordem social, eram punidas, internadas e muitas ve-zes condenadas à morte. Com tan-tos diagnósticos sobre a loucura, o louco perdeu a individualidade. Dentro dos hospitais não se dife-renciavam o louco dos muitos tipos de aberrações da época. A loucura durante séculos vinha alcançando as mais diversas formas de violên-cia, desde desordem da conduta até desordens dos hábitos e cos-tumes, segundo Foucault afirma em seu livro, História da loucura.

FALHA

A Era Clássica (Séculos XVI, XVII, XVIII) ao tratar doente e cri-minoso da mesma maneira, come-teu uma grande falha. Apesar de al-guns insanos receberem tratamento especializado, o número de loucos era muito superior à capacidade e isto causava um amontoamento. Para Foucault, o internamento era mais visto como um “tempo para que o castigo se cumprisse” do que para o tratamento. Os loucos, nessa época, eram vistos como do-entes e criminosos. Na França, no século XVIII, os loucos eram en-contrados nas prisões misturados a detentos criminosos. Instituições recebiam apenas os doentes que

tinham cura, já outras queriam li-vrá-los da discriminação na socie-dade e os mantinham internados. Ainda na Era Clássica surgi-ram as casas de correção, que se-paravam o louco do criminoso. A loucura envolvia diretamente os médicos, somente eles poderiam determinar a natureza da doença após verificar todos os sintomas e a história de vida do paciente. No século XVIII, Philippe Pi-nel, o pai da psiquiatria, rompe com a ideia de que os loucos são demoníacos e passa a considerá--los como doentes mentais. Surgi-ram assim os manicômios, espaços somente destinados a loucos, pes-soas que necessitavam não ape-nas de remédios como principal-mente do apoio de outras pessoas.

DEPÓSITOS DE POBRES

Na Idade Clássica o louco pas-sa a ocupar o lugar dos pobres. Era difícil determinar o motivo pela internação das pessoas, bem como para descobrir as doenças que elas tinham. Nesta época conclui--se que a loucura e o crime não se confundem, mas são tratados com a mesma racionalidade. A loucura involuntária, que não possui o con-sentimento do homem e a intencio-nal, que é usado como “disfarce” pelos lúcidos, são os dois tipos de loucura propriamente dita. O in-ternamento vale para as duas, pelo fato de terem a mesma origem e por ser a forma mais eficaz de evi-tar escândalos. Para a área do Di-reito, a loucura quando ocorre com consciência dos seus atos, torna-se um crime. E aquele que atingido pela loucura involuntária não será punido, pois o louco vai ao encon-tro com a sua vontade e desejos. Para Foucault, o conceito de loucura começou a se estruturar a partir do momento em que se criou a distância entre razão e não ra-zão. Qualquer forma de liberdade

na loucura era banida, para que o louco não fosse uma ameaça para a sociedade, ele era vigiado em qualquer situação. Conclui-se que a internação não foi criada como medida médica, mas sim como prática de exclusão. Além de ex-cluídos e humilhados, Foucault afirma que “ser internado como os loucos, significava receber uma punição adicional”. O louco se destacava comparado a outras pes-soas. As manifestações de loucu-ras mostram a sua diferença com o meio em que vive, assim como mostram a incapacidade de um ser se relacionar. Por conta dessas diferenças, os insanos eram obje-tos de curiosidade. Na Renascen-ça a loucura era exibida publica-mente, hospitais como Bethleem e Bicetrê, exibiam os internados aos domingos para a população que pagava uma taxa pela visita.

ÁGUAS QUE CURAM

As causas da loucura não para-vam de aumentar nunca. Motivos como emoções, crises, tristezas e amores eram causas distantes do desatino. As crises, por sua vez, quando ocorriam com frequência, levavam as pessoas ao delírio. Para acalmar o espírito da loucura e dos delírios, acreditavam-se em benze-deiras. Até a água, na Idade Mé-dia, era usada como forma de cura. Costumavam mergulhar os insanos para que eles perdessem a agita-ção que dominava o seu corpo. A crença de cura pela água tem-se desde o Renascimento, quando os loucos eram colocados em navios e barcos e carregados para outras cidades, em busca da razão. O fato de serem levados através da água tinha o efeito purificador e causava a sensação de incerteza da sorte. Somente no ilusionismo que a loucura começa a “retomar” o seu lugar na sociedade. Via-se o lado inofensivo que os loucos tinham,

foto: Mariana Smânia

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permitindo, na Idade Clássica, uma relação limitada entre o louco e o racional. Porém, a angústia que a loucura trazia junto de si, nunca sumiu. Os loucos traziam na sua essência aquilo que oS diferencia-va dos outros. Muita coisa mudou na loucura no século XVIII. O número de internados oscilava e dependia da miséria. Em momen-tos de recuperação econômica a diminuição era significativa. Ou-tro fator importante para a queda brutal de internamento foram as casas que recebiam apenas os in-sensatos, não permitindo que eles se misturassem aos criminosos. Ainda no século XVIII, iniciaram--se os protestos em prol dos alie-nados e suas condições de vida durante a internação. A loucura passou a ter uma imagem social positiva, e isso se deu quando ela foi separada do crime e de outras formas de desatino. O internamen-to para o louco se dava apenas em casos complexos. O hospital não era mais visto como criador de do-enças e sim como o curador dela. Com a diminuição de internamen-tos a família passou a ser respon-sável pelo alienado. Para aqueles que continuavam internados, a de-dicação ao trabalho era a forma de pagarem pelos seus erros. Por mais que os maus tratos contra os loucos não fossem de tanto conhecimento público, o conceito social de lou-cura permanece até os dias atuais.

Os loucos traziam na sua essência aquilo que os diferenciava dos

outros.

por Junior Costa

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foto: Mariana Smânia

Os loucos traziam na sua essência aquilo que os diferenciava dos

outros.

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O crime da Insanidade A loucura é completamente variável. Que ser humano não tem um pouco de insanidade dentro de si? Há por exemplo, pessoas que rasgam dinheiro e são considera-das loucas, assim como pessoas que pegam este mesmo dinheiro e gastam desesperadamente em shoppings. Ser louco pode ser uma questão de opinião, ou não. Quem nunca ouviu falar sobre o famoso “crime passional”? Aquele em que a pessoa mata por amor? Mas quem ama, mata? Matar. Este é o ponto. É possível matar por ser louco? É possível matar por ser insano de-mais para evitar o crime? O que acontece a quem comete uma lou-cura a esse ponto? O que a lei diz? No processo jurídico, ale-gar insanidade mental permite ao sujeito ser declarado isento de suas atitudes. Há quem realmen-te pode ser considerado louco e completamente impossibilitado de ser condenado como um meliante comum, outros parecem utilizar esse fato somente como desculpa para evitar que sejam condenados. Quando se visita o Hospital de Custódia e Tratamento Psiqui-átrico de Santa Catarina (HCTP), é possível ouvir histórias que po-dem em certo ponto parecer cruéis demais. Histórias que classificarí-amos como absurdas, se elas não fossem tão reais. O hospital foi inaugurado em 1971 para, inicial-mente, 42 pacientes. Lá são consi-deradas três vertentes principais da doença mental, uma delas é quan-do o juiz, embasado em um laudo pericial que comprove a insanida-de, absolve o réu do delito cometi-do. Este meio nada mais é do que uma medida de segurança e um método de propor o tratamento do sujeito. Outro caso é o sentencial,

quando o preso é condenado e en-tão cumpre a pena como paciente do hospital, numa das celas do es-paço, mas com tratamento psiqui-átrico a fim de promover a reabili-tação em sociedade. O último caso é quando, em um exame de rotina, de um encarcerado já sentenciado, o perito mental constata que o pre-so tem de permanecer no hospital para que possa ser acompanhan-do de perto, ou quando já preci-sa realmente de um tratamento. Existem três casos para diagnósticos do exame: o impu-tável, inimputável, ou semi-impu-tável. O primeiro é quando o réu é culpado pelo crime cometido, sabendo daquilo que estava fazen-do; o segundo, quando ele não ti-nha consciência do ato cometido, estando passível de uma prisão comum, mas sendo levado a tra-tamento psiquiátrico; o terceiro, quando o sujeito é parcialmente culpado, quando ele sabia do que estava fazendo, mas não totalmen-te, situação em que também recebe tratamento psiquiátrico em para-lelo ao cumprimento da pena pela qual foi sentenciado. Há quem considere o HCTP uma “institui-ção de sequestro”, um exemplo de reality show, onde cada passo é acompanhando regularmente, desde o acordar até o adormecer. Um povo que não frequenta livre-mente o mesmo espaço do restan-te da população não é notado. As pessoas não ligam, não procuram, pois não importa. O quanto isso dificulta na inclusão do sujeito novamente em sociedade? Essas pessoas merecem uma segunda chance? Após recuperados, podem tornar-se pessoas completamente sociáveis novamente, de modo que possam se misturar aos considera-

dos sãos, na visão médica e social.

Da Boca de Quem Vive

Um jovem, o qual usaremos o nome fictício de Luiz, conta um pouco de sua história e, indepen-dente da culpabilidade, deixa estu-pefato qualquer pessoa que a ouve. Acusado de assassinar o próprio pai, o jovem afirma não ser o cul-pado pelo crime. O caso corre em julgamento, ainda após, segundo ele, já terem descoberto o verda-deiro culpado, e este culpado já estar cumprindo pena em regime fechado. O uso regular da maco-nha reforça, para a promotoria, o fato de Luiz estar envolvido. Mas será que o jovem teria coragem de matar o próprio pai? Até que pon-to a droga pode afetar a sanidade mental? A médica Shirley de Cam-pos, especialista em neurologia, afirma, em seu blog pessoal, que o que influencia no desempenho neurológico ao ponto de causar ilusões ou alucinações, as quais podem provocar uma agressão não planejada, seria a alta quantidade de THC (Tetrahidrocanabinol). Esta substância é responsável pe-los maiores efeitos da planta no or-ganismo. O efeito da planta pode durar até 12 horas, mesmo depois de um período de espera de uma hora para o início das sensações. O jovem conta também que a vi-sita de alguns parentes ao HTCP acontece sempre que possível. Ge-ralmente a visita se dá por parte da irmã. Uma frase dita por Luiz nos faz refletir: “Não parece que estamos presos”. Frase marcan-te dita pelo jovem que está em regime fechado há cinco meses. A história de Luiz não é a única.

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HTCP, pode-se ouvir outros rumo-res ou até histórias dos próprios encarcerados. Outro jovem, a este atribuiremos o nome de Gustavo, conta-nos que sua prisão é devida a ter ateado fogo na própria casa. Ele afirma que ouvia vozes. “Elas queriam me matar”, afirma o jovem de 25 anos de idade. Questionado sobre o relacionamento com a fa-mília, ele fala que hoje sobra sau-dades e a vontade de ser perdoado. Existem, claro, pessoas que es-tão prestes a serem liberadas do tratamento, como é o caso de um senhor de 57 anos, encarcerado por cometer delitos por conta do álcool. Ele é alcóolatra desde os 15 anos de idade. Paulo é um dos mais antigos paciente do HTCP, está desde 2008 em tratamento e cumprimento de pena. A sauda-de do filho é a parte mais dura do tratamento; este afastamento foi a parte mais dolorosa que a bebida trouxe. O jovem, de 15 anos de

idade, mora em Lages com a mãe. O pai só gostaria de ter uma chance de poder falar com ele novamente.

Crimes Insanos na MídiaA mídia já trouxe muitos casos de crimes ligados à insanidade. Quem não se lembra do “Atirador do Ci-nema”, “Suzane Von Richtofen”, o mecânico “Francisco de Chagas Rodrigues de Brito”, considera-do o maior assassino em série do país, condenado a 250 anos de prisão? Pelo mundo, há muitos casos de pessoas que declararam insanidade para que fossem isen-tados da cela comum e ganhas-sem um outro tipo de reclusão. Em outubro de 2012, o casal Ri-chtofen foi encontrado morto em sua mansão em São Paulo. Na épo-ca com 18 anos de idade, a filha do casal, Suzane Von Richtofen, con-fessou o crime. Seu intuito era fi-car com a herança da família. Jun-to com ela, mais dois envolvidos,

o namorado e o cunhado. Quatro anos depois, eles foram conde-nados por homicídio triplamen-te qualificado. Uma reportagem exibida na Rede Globo mostrou o momento em que o advogado de Suzane pede para que ela chore na entrevista. Neste caso, quando solicitado um habeas-corpus, ale-gando que Suzane era portadora da oligofrenia, que afeta as capa-cidades intelectuais do sujeito e que, se comprovada, pode causar a inimputabilidade do criminoso, o advogado teve-o negado. Em en-trevista dada ao Portal Terra, o de-sembargador que negou o pedido do advogado fala que em momen-to algum houve dúvida a respeito do entendimento e determinação da ré. Suzane cumpre pena na Pe-nitenciária Feminina Santa Maria Eufrásia Pelletier, no complexo do Tremembé. Já se passaram 10 anos desde o assassinato cometido por Suzane e os irmãos Cravinhos.

foto: Mariana Smânia

por Dérick Pacheco Caitano

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Rotinas Escurecidas

A grafia do sentimento

A fotografia é concreta e subjetiva ao mesmo tempo. O autor de uma fotografia precisa entender que nem sempre o sentido primário dado à imagem será entregue para to-dos da mesma forma. A fotografia é sensível e metamórfica. Pode repre-sentar algo vazio, duro, e ao mesmo tempo estar recheada de sentidos fervorosos. Uma foto não é como um texto, que diz o que diz. Tex-tos podem até dar margem à futuras reflexões, mas a fotografia obriga o observador a refletir no momento em que percebe a imagem captada.A sensibilidade no olhar e a ne-cessidade que o fotógrafo tem de mostrar seu trabalho para o maior número de pessoas possível está li-gado diretamente à pluralidade de olhares e sensibilidades. Cada ser possui uma forma de pensamento diferente. Cada indivíduo interpre-ta o mundo de acordo com a sua vivência. E cada fotógrafo tem o dever e a missão de proporcionar momentos de pura introspecção por parte do observador, possi-bilitando até mesmo uma maior compreensão sobre si mesmo.

A vida na escuridão

O Hospital de Custódia e Trata-mento Psiquiátrico (HCTP) abriga homens em conflito com a lei, mas que, ao mesmo tempo, foram diag-nosticados com algum transtorno mental. Esses pacientes vivem em celas individuais ou conjuntas. Du-rante o dia eles vão ao pátio para ter um mínimo de convivência social.

As paredes verdes e frias aumentam em muito o desejo de ir para casa. As luzes fracas combinadas com o teto alto escurecem as chances de resgatar a vida anterior. Família e amigos são contatados, mas pou-cos são os que mantêm a conexão. Os dias vão passando e a escuridão vai invadindo a alma. Aos poucos os olhos transbordam a agonia pre-sente nas paredes da construção. Tudo o que eles querem é sair dali.

Fotos e Matéria por Mariana Smânia

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Making OfRazão para chegar ao amanhã

A loucura está presente na nossa sociedade, mas, às vezes, passa-nos despercebida. Nossos vídeos demonstram a participação de futuros jornal-istas e publicitários tentando entender uma outra realidade neste mesmo mundo. Procura-mos gravar informações que passassem a nossa visão de con-traste entre o sofrimento e a es-perança de um mundo melhor.

“Só porque você está con-denado em uma sala do tri-bunal não significa que você é culpado de alguma coisa.”

Charles Manson

por Anderson Almeida

Lucas Golfetto

Matheus Hoffmann

Pedro Padilha youtube.com/revistametamorfoses

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Páginas da Loucura Dom Quixote, Chapeleiro, Máscara, Coringa, todos são lou-cos! Veem coisas inexistentes, ali acham que tem gente. Esses são alguns dos mais conhecidos loucos da nossa cultura, quem nunca ou-viu falar deles? Ou quem nunca leu uma história em quadrinhos deles? O tema loucura é amplo, tem vários assuntos a serem tra-tados a serem explorados, experi-mentados. Na literatura foi muito bem utilizada, chegando a criar um estereotipo do louco, uma pessoa de aparência judiada, olhar per-dido, que comete as “loucuras”. Mas o louco não é exclusi-vo apenas da literatura estrangeira, na literatura nacional temos alguns casos, talvez o mais conhecido seja “O Alienista”, de Machado de Asis. A história do livro se passa na ci-dade de Itaguaí. O Dr. Simão Ba-camarte abre a Casa Verde, uma casa de custódia para os loucos da cidade, não só para cuidar de-les, mas para os estudar de forma mais minuciosa. Com o passar dos dias, o número de internos vai aumen-tando, até mesmo sua esposa vai presa. No decorrer da história os loucos são soltos e os sãos vão para a Casa Verde onde serão estuda-dos. No fim, o Dr. Simão chega à conclusão de que os cérebros bem organizados recém curados eram desequilibrados como os outros e que em cada cérebro havia os

dois. Achou nele o perfeito equi-líbrio mental, convencido disso se prendeu na Casa Verde e se pôs a estudar. Morreu dezessete meses mais tarde. “Boatos diziam que o único louco que havia em Ita-guaí foi o Dr. Simão Bacamarte.”

Realidade x Ficção

Na literatura a figura do louco tem um valor, mas na vida real não foi assim. Pessoas com deficiência ti-nham sua existência negada, os “insanos” eram jogados em asilos, presos em porões, abandonados à própria sorte ou até mesmo mor-tos por seus parentes, já que os tempos eram difíceis para as fa-mílias dos séculos XVI ao XVIII, poucas tinham condições o sufi-ciente para cuidar de seus entes. Se pegarmos o ano em que as obras Dom Quixote de La Mancha e Ali-ce no País das Maravilhas que fo-ram escritas em lugares e séculos diferentes, Dom Quixote em 1605 na Espanha e Alice que foi 200 anos mais tarde, em 1865 na In-glaterra, a realidade dos deficientes mentais não mudou. Ainda não re-conhecidos e não respeitados pela sociedade e mesmo com o aumen-to no numero de casas de custódia o tratamento ainda era de forma grosseira e primitiva. Consistia em punições físicas, a cada “erro” cometido, o deficiente apanhava. Nesse período de tempo,

nestes 200 anos de diferença en-tre as obras, acreditava-se que a única maneira de corrigir a lou-cura era através das punições fí-sicas, toda e qualquer ação consi-derada imprópria cometida pelo interno era corrigida, alguns li-vros chegam a comparar o trata-mento com as torturas medievais do tribunal da Santa Inquisição. Com os avanços da medi-cina, as coisas mudaram de figura, os tratamentos de punição foram caindo no desuso, o uso de medica-mentos, terapias construtivas como aulas de artes, educação física, tra-balhos manuais garantem um me-lhor desenvolvimento do interno.Mas a recuperação, a melhora pro-gressiva dessa pessoa só ira se dar por completo se houver apoio da família, não basta larga-lo numa clinica, num hospital num institu-to, a família tem que estar presen-te sempre que possível para que o interno se sinta seguro e progrida cada vez mais em seu tratamento. Não importa o quanto avance a medicina se não houver participação da família encora-jando, apoiando e comemorando cada conquista. Os medicamentos, recreações, atividades não iram fazer total efeito se não forem ad-ministradas junto da convivên-cia, do apoio que vem da família.e duas horas sem dormir. O tempo que tinha para descansar ia visitar os cavalos com fisionomia animada.

por Luiza Chiquetti Henrique

Making OfRazão para chegar ao amanhã

por Anderson Almeida

Lucas Golfetto

Matheus Hoffmann

Pedro Padilha youtube.com/revistametamorfoses

foto: Mariana Smânia

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Cada um com sua Loucura A loucura pode simples-mente ser uma maneira diferen-te de ser julgado pela sociedade, porque a constatação da insanida-de mental de uma pessoa só pode ser feita por especialistas. A lou-cura é, segundo a psicologia, uma condição da mente humana carac-terizada por pensamentos consi-derados anormais pela sociedade. Segundo o livro, O que é loucu-ra? Do autor Darian Leader, não há duvidas de que, às vezes, a loucura é acompanhada por uma sintomatologia impressio-nante. Mas, o que dizer do homem que cuida calmamente de suas atividades, de sua vida familiar e, um dia, vai para um local públi-co, saca uma arma de fogo e atira numa figura pública? Não há nada de errado na sua conduta até este momento. Na verdade ele pode ter sido um cidadão modelo, res-ponsável e equilibrado. Mas, será que, no momento em que aconte-ceu o ato homicida, poderíamos dizer realmente que ele não era louco? Isso por certo nos convi-da a refletir sobre as estâncias de loucuras que são compatíveis com a vida normal. Trata-se de uma loucura silenciosa e contida, até o momento do ato de violência. O conceito psiquiátrico de loucura nem sempre pode expres-

sar o que de fato uma possível loucura exteriorizada no corpo e mente de uma pessoa represen-tam as ditas loucuras. Muitas ve-zes, são formas atípicas dentre a normalidade existente nos qua-dros sociais, ou seja, uma forma diferente daquilo que é comum, e isso diante da sociedade podem ser classificados como loucura. As formas da loucura são maneiras de viver libertas de cli-chês, de conceitos e parâmetros so-ciais, é como se fosse uma válvula de escape para não sofrer com os males da vida no cotidiano normal e com todas as imposições sociais. Loucura pode ser um ato mais in-teligente do que se possa parecer.

ALCOOLISMO E DROGAS

Em Palhoça vive o jovem Marcelo Schimidt, 22 anos: “Mi-nha infância foi de muita alegria, porém, nunca fui um bom aluno, na minha adolescência frequen-tei muitos bares, aprendi a fumar, beber, virei usuário de drogas; quando dei por mim, já era um de-pendente químico, minha família sofreu muito com isso, principal-mente minha mãe. Procurei vários tipos de tratamento, não adiantou, até que por fim me internaram

no IPQ Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina, em São José.“Após dois anos internado conse-gui voltar para minha casa, junto de minha família, hoje faz quatro anos que não bebo nada de álco-ol, cigarros e muito menos dro-gas, por fim fiquei com algumas sequelas, mas voltei a viver”.Cada um de nós carrega dentro de si um tipo de loucura, ou seja, existem vários sintomas que se movimentam de varias maneiras dentro das pessoas, onde a própria família, amigos e sociedade con-vivem na maioria do tempo nor-malmente. Quem sabia numa data próxima com o avanço da medici-na chegaremos a um grande enten-dimento dos sintomas “ Loucura”.

por Leandro Lima

foto: Leandro Lima

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Cada um com sua Loucura

por Leandro Lima

foto: Leandro Lima

Cada um de nós, carrega dentro de sí uma loucura.

foto: Mariana Smânia

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Nossas Manias Todos nós temos manias, “esquisitices”, perfeccionismos, comportamentos estranhos, o jei-to de se comportar ou pensar, particulares, que cada indivíduo leva consigo, e que muitas ve-zes pode gerar dependências com objetos, pessoas e/ou situações.Algumas dessas relações são sa-dias, como entrar no campo de futebol sempre com o pé direi-to ou posicionar objetos encima da mesa nunca de maneira para-lela a outros objetos. Esses são comportamentos simples, muitas vezes até estranhos ou sem sen-tido para as outras pessoas, mas pode trazer satisfação, confian-ça e prazer para quem a pratica, e isso não traz transtorno algum. Mas, esquisitices quando levadas ao extremo, podem cau-sar prejuízos como perda de auto-nomia e até depressão. É quando as manias se tornam doenças, “se não fizermos de determinado jei-to, nós paralisamos ou nos senti-mos muito angustiados”, afirma a psicóloga Kely Schettini. São pensamentos obsessivos, ideias persistentes, impulsos ou imagens que ocorrem de forma invasiva na mente da pessoa, gerando muita ansiedade e angústia. O indivíduo distorce a realidade de modo a não enxergar os riscos e perigos em-butidos em suas ações. E l e precisa fazer algo de determinada maneira, jeito, para então se sen-tir bem. Esse estágio já se confi-gura como doença, onde a pessoa tem ações repetitivas. São vícios, compulsões que torna o indivíduo escravo delas, ele precisa realizar esses comportamentos para se sen-tir aliviado, caso contrário, é toma-do pelo medo e ansiedade intensa.

Em 1895, o pai da psicaná-lise, Sigmund Freud, já afirmava que “manias são desordens lutan-do contra algum tipo de comple-xo”, e que “as defesas maníacas protegem o ego do desespero total e muitas vezes consistem na única forma de superar o sofrimento”.Geralmente, os sintomas são acompanhados de ansiedade, medo e culpa, causam muito so-frimento e interferem nas rotinas pessoais, na vida social e da fa-mília. Muitas vezes não são reco-nhecidas como sintomas de uma doença e por isso não busca-se tra-tamento ou acontece muito tarde. Abaixo seguem alguns exemplos (tirados do blog prati-candopsicologia.blogspot.com.br) do que seriam comportamen-tos normais e outros quais já pas-saram o limite e podem preci-sar de tratamento especializado.

• Permanecer na internet 1 ou 2 horas está dentro do normal, mais que isso (fora quem depen-de dela para o trabalho) já deve ser observado mais atentamente;

• Checar se a casa está fecha-da antes de sair é normal, ter que fazer isso repetidas vezes para só assim conseguir sair é sinal que algo não está bem;

• Lavar as mãos antes de co-mer e depois de chegar da rua é normal, ter que lavar várias ve-zes já, devemos prestar mais atenção neste comportamento;

• Fazer coleções é normal, guar-dar objetos sem deixar que nin-guém jogue fora, como se depen-desse deles já é um problema;

É a repetição dos comportamen-tos sem finalidade nenhuma e a falta do controle dos pensamentos e de tais atos, transfigurando-se como doença, que precisa de tra-tamento com medicamento e psi-coterapia, afirma os especialistas. Onde os medicamentos irão di-minuir a ansiedade e as angústias sentidas e a psicoterapia irá aju-dar a pessoa a desmistificar suas crenças ao comportamento repe-titivo, se desvincular dos “vício” e se libertar das ações das quais ela se tornou prisioneira, seja em comportamento ou pensamento.Em entrevista, a jovem Sabrina Freitas, 20 anos, revela que so-freu com o distúrbio em boa parte de sua infância, e a fazia subir na balança diariamente para confe-rir seu peso. Afirma que “perdia a autoestima, a balança era meu pior pesadelo, tinha medo de olhar o resultado ao terminar a pesagem, mas ao mesmo tempo era o que aliviava a minha angústia”. A ba-lança era a vilã e ao mesmo tempo, a única ferramenta capaz de ame-nizar sua baixa estima, era o objeto de obsessão que poderia lhe trazer um pouco de tranquilidade. “Tinha ânsia, sentia uma angústia em pen-sar ficar fora do meu peso. Sempre fui ‘fofinha’ para não usar o termo ‘gordinha’, e isso me incomodava, pois não conseguia perder peso fá-cil e não conseguia parar de comer. Então, subir diariamente na balan-ça era um meio de me policiar para diminuir meu peso, e quando ve-rificava diferença para menos, eu comia guloseimas para satisfazer meus desejos, sem peso na cons-ciência por causa dos exageros”.Preocupados com casos do tipo

“Vícios” normais que podem transfigurar-se em doença

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“Vícios” normais que podem transfigurar-se em doença

por Evandro Thiesen

de vários estados do Brasil fez um estudo aprofundado do caso e che-gou a conclusões importantes sobre as características e as formas de tra-tar o problema. “Temos evidências de que tanto a terapia cognitivo--comportamental quanto os medi-camentos, usados de forma inde-pendente, são igualmente eficazes para os casos leves e moderados”, diz a psiquiatra Roseli Shavitt, do Instituto de Psiquiatria da USP.Em casos mais graves, é preciso combinar a psicoterapia com uma classe de antidepressivos, os inibi-dores de recaptura de serotonina. “Os medicamentos não mudam o comportamento diretamente, mas diminuem a ansiedade e o des-conforto causados pelos medos. Já a terapia incentiva o paciente a enfrentar a situação ou pensa-mento amedrontador sem recorrer aos rituais”, diz a psiquiatra Al-bina Rodrigues Torres, da Unesp.Estudos também mostram que 5% dos pacientes têm melhora completa e espontânea sem tra-tamento e 20% alternam perío-dos sem aparecimento de sinto-mas com fases agudas da doença.O que os pesquisadores ainda não sabem de maneira precisa, quais são as causas do transtorno.Nossos vícios podem gerar ansie-dade, angústia e comportamentos repetitivos, mas o fato é que “es-quisitices” são relações que fa-zem parte da natureza do homem. Desde nossa existência, vivemos em um estado de dependências. Cabe a nós nos policiarmos para que tais desordens e ações não nos aprisionem em nossos próprios comportamentos e pensamentos. E quando necessário, procurar um es-pecialista para tratar do complexo.

foto: Mariana Smânia

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Vizinho DiferenteHá mais de dez anos o Hospital Co-lônia Santana (HCS) tem o nome de Instituto de Psiquiatria de Santa Ca-tarina (IPQ), em São José, mas apa-gar da memória dos moradores do bairro – e não apenas do bairro, mas de todo o estado de Santa Catarina – o nome “Hospital Colônia Santana” e todos os sentidos que ele carrega consigo, não parece ser tarefa das mais fáceis. Se você caminhar por alguns metros nas proximidades do IPQ e perguntar por algum hospital, provavelmente receberá como res-posta: “Ah, o Hospital Colônia San-tana? Fica logo ali”, com a indicação da direção onde ele está localizado.Durante décadas o IPQ ficou muito conhecido por ser a única instituição no estado a tratar doentes com trans-tornos mentais, neurológicos - dentre eles a epilepsia -, usuários de drogas e, em outras épocas, até mesmo ten-tar curar criminosos e homossexuais. Em sua dissertação de mestra-do, Ana Maria Espíndola Koeri-ch busca retratar esta realidade :

“O HCS, por mais de meio século, assumiu integralmente a assistência psiquiátrica no Estado. Essa realida-de começou a se modificar somen-te na metade dos anos 90, em razão dos reflexos da nova política de saú-de mental, advinda do movimento da Reforma Psiquiátrica no país.”

Acerca dos pacientes da instituição, já discorreu em seus escritos particu-lares Frei Antônio Wilhelm Frinken, padre franciscano alemão que mo-rou no local entre a década de 1960 e o ano de 1994, da seguinte forma :

“Nem todos os internados são do-entes mentais no sentido próprio da

palavra. Há uma certa porcentagem de criminosos que estão em obser-vação ou para lá se transladaram com o fim único de fugir ao regime da Penitenciária Estadual. Depois há os alcoólatras, que são, via de regra, internados à força por seus fami-liares. Facilmente pode-se deduzir que estão lá contra a vontade e, por isso, negam redondamente qual-quer colaboração, o que invalida por completo qualquer tratamento”.

Assim, durante quase meio século, o bairro levava a fama de dar abri-go a loucos (utilizando um termo do jargão popular), pessoas depres-sivas e viciados nos mais diversos tipos de drogas. Em toda a Grande Florianópolis, quando alguém tem algum amigo ou conhecido que fala muitas bobagens ou conta muitas histórias ‘sem pé nem cabeça’, é normal surgir a brincadeira: “Vamos internar você na Colônia Santana”, não diferenciando o bairro Colônia Santana do Hospital Colônia Santa-na. Se alguém diz que está indo para a Colônia Santana – por qualquer motivo que seja -, muito provavel-mente será motivo de chacota, com questionamentos, se está indo para lá para ficar internado ou se ficou maluco e não vai mais sair de lá.Mas, será que essas brincadeiras e a associação do nome Colônia Santana com a loucura, a depressão, o vício e os diversos transtornos mentais inco-moda aos moradores do bairro? Foi esta a pergunta a que foram submeti-dos alguns moradores da localidade.Para a professora Raquel Passos, que atua na Creche Frei Antônio, exatamente em frente ao Instituto, o nome Colônia Santana não atrapa-lha nem incomoda. Ela diz que an-

tigamente ninguém queria morar no bairro, “mas o Estado passou a doar a terra e dar um incentivo àqueles que labutavam no hospital para mo-rarem próximos do local de traba-lho”. Assim, ela destaca que muita gente veio morar na região e trouxe suas famílias em função do hospital, o que considera “um impacto posi-tivo”, já que eram trabalhadores e, supostamente, pessoas de bem. Ela não enxerga qualquer negatividade no fato de viver na Colônia Santana.Já para Patrícia Estevão, diretora da Creche Frei Antônio, a região rece-beu uma miscigenação de culturas muito interessante, pois num deter-minado momento vieram para a re-gião colonos da Alemanha, em outro período chegaram funcionários para o hospital. Num momento posterior, funcionários da Macedo Koerich – hoje com o nome Tyson Foods, uma empresa de produção de frangos – também passaram a morar na locali-dade e, por fim, com a instalação do Complexo Penitenciário do Estado em São Pedro de Alcântara (muni-cípio que faz limite com o bairro), também veio uma nova leva de mo-radores para a região – tanto de poli-ciais e funcionários da Secretaria de Segurança Pública do Estado, como familiares daqueles que estão encar-cerados. Patrícia afirma que entre os alunos da creche que adminis-tra há filhos e netos de todos esses “ramos” que colonizaram o bair-ro Colônia Santana. Para ela, hoje chama mais a atenção a quantidade de pessoas provenientes da região Nordeste do Brasil que veio morar no bairro para trabalhar na Tyson, do que propriamente a fama do bair-ro por abrigar o hospital psiquiátri-co. Patrícia considera a presença do

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Vizinho Diferente

por Leonardo Costa

IPQ positiva, pois gera emprego e renda não apenas aos trabalha-dores da instituição, como para as redondezas (lanchonetes, merca-dos e outras pequenas lojas que lu-cram com os pacientes e visitantes).E é exatamente nesse sentido a afir-mação da costureira Veranda Kess. Ela morou no bairro na década de oitenta e voltou a viver na região há cerca de dois anos: “antigamente, quando morei aqui, havia uma certa vergonha de dizer que você vivia na Colônia Santana. Tinha muita cha-cota e zombaria com a gente, pois diziam que aqui só viviam loucos”, mas, ela destaca que hoje não sente mais isso: “Como ter vergonha de viver num local bonito como esse, que abriga um hospital, escolas, fá-bricas e tantas lojas de comércio?” Ela explica que o hospital deixou o bairro com uma fama negativa no passado por tantas histórias sem fundamento e invenções que eram feitas, de que “os loucos fugiam do manicômio e se infiltravam nas ca-sas”, ou de que “todos os que mora-vam na localidade eram um pouco doidos”. Ela garante que era tudo lenda e diz ainda preferir “a vizi-nhança de um hospital do que de uma cadeia ou delegacia aonde pode sair tiroteio a qualquer hora do dia”.

As lendas citadas por dona Veranda incomodam um pouco a aposentada Ana Elisabeth Lohn, que mora na região desde que nasceu, há mais de setenta anos, como ela prefere dizer, sem revelar a idade exata. Para ela, o hospital trouxe benefícios, por ter médicos, enfermeiros e bons pro-fissionais por perto, mas ao mesmo tempo trouxe um clima ruim, pela fama – que considera negativa – e por tantas histórias de dor e sofri-mento que ouviu falar que teriam acontecido no local. Apesar da fama negativa, ela diz que os benefícios são maiores do que qualquer tipo de prejuízo que o hospital, por ventura, tenha trazido: “sem dúvidas a pre-sença do hospital é benéfica. Surgi-ram brincadeiras no passado, mas não passaram de histórias. A reali-dade é que muita gente teve opor-tunidade de ganhar uma nova vida após a passagem pelo hospital”.Outros moradores foram ouvidos sobre a presença do IPQ no bairro. Alguns não quiseram falar, outros apenas responderam que sim ou que não, quando questionados se a pre-sença do hospital no bairro era boa ou ruim e como o enxergavam. A conclusão, porém, nestas quase dez conversas com moradores da loca-lidade, é de que as novas gerações,

em especial as pessoas com menos de 40 anos de idade, não vêem pro-blemas na presença do IPQ e tam-bém não se incomodam com as brincadeiras sobre os “loucos” ou “malucos”. A imagem negativa e al-gum tipo de vergonha ou constrangi-mento foram observados apenas em pessoas mais velhas, que convivem com o hospital no bairro há mais tempo. Mesmo assim, elas pontuam mais benefícios do que malefícios sobre a presença do IPQ. As novas gerações encaram na esportiva as brincadeiras, levam o assunto com naturalidade e vêem apenas pontos positivos na presença do hospital. Sem dúvida, se houver uma análi-se sócio-econômica mais apurada, será possível observar que muitos comerciantes da região (e conse-quentemente muitos empregados também) se ergueram e construí-ram seu patrimônio justamente pela presença do IPQ. Bares, restau-rantes, lojas de roupas e calçados, farmácias e outros tantos pontos comerciais lucram todos os dias com os pacientes e com as visitas que recebem. Qualquer fama ne-gativa de piadas ou chacotas com o nome do bairro não supera os benefícios trazidos pelo hospital.

foto: Mariana Smânia

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A dupla mente louca Antes de chegar à casa nova Alicia adormeceu com sua boneca favorita nos braços. Bone-ca de pano, cabelos coloridos, com olhos de botões que cheirava ca-momila quando foi dada à menina. Jandira era nova na vizinhança e ti-nha passado por uma turbulenta fase que havia lhe causado muita dor e sofrimento. Enquanto terminava de desempacotar as coisas da mudança, a doce Alicia brincava no quintal. O casebre daquela cida-dezinha deserta conservava suas estruturas originais e um declive nos assolhados pouco menor que o gramado do quintal. Não havia vizinhança muito próxima. Isso se puder dizer que existia uma vi-zinhança, já que a distância de uma casa para outra era grande. Ao entardecer daquele dia, Jandi-ra já tinha acabado de desempa-cotar as coisas da mudança, en-tão, chamou sua filha para dentro. Ela apareceu com um sorriso re-luzente estampado no rosto e aparentava estar histericamen-te feliz. Os profundos olhos castanhos da menina brilhavam de tanta felicidade. Alicia queria brin-car de um jogo chamado “Você viu o ganso?”, que sempre brincava. Neste jogo Alicia me perguntava:– Você viu o ganso? – Que ganso? – respondia.– O ganso... – ao mesmo tempo em que se faz um gesto como bater pal-mas ou bater os pés, por exemplo. – “Ah! O ganso...”, imitan-do o gesto. Quem não con-

seguia imitar o gesto perdia. As duas ficaram até a madruga-da brincando enquanto em risa-das profundas, imitavam os gestos uma das outras. Jandira não de-cifrava o olhar vazio da infância da sua filha. Talvez porque não conseguisse recordar a resposta de seu próprio olhar na infância.Com treze anos começou a traba-lhar em um quartinho pequeno nos fundos de uma casa velha que abri-gava mais doze meninas. O cheiro de mofo, as mar-cas na parede e as goteiras do te-lhado intensificavam a crueldade daquele lugar que tirava a inocên-cia das meninas que ali chegavam. Em seu primeiro dia de trabalho a jovem menina ouvira a estória de um rato que tinha medo de gato. Nisso eu não era diferente dos ou-tros ratos. Pavor, tremor, ânsia, vida incerta. Mas iguais a todos outros de sua espécie, aquele rato teve, no entanto, um fato diferente em sua vida – encontrou-se com um mági-co, que permitiu que aquele rato vi-rasse um gato. Mas o rato passou a temer animais maiores: como leão, tigre, onça e boi. O mágico surgiu mais uma vez e resolveu transfor-má-lo então, em um leão, o mais poderoso dos animais. O ratinho re-ceoso com a classe animal começou a recear os passos dos caçadores. Então o mágico chegou, transfor-mou-o de novo em um rato e disse:– Meu filho, quem tem cora-ção de rato, não adianta ser leão.E Jandira passou o inverno inteiro

pensando na história do rato que tinha medo. A cada animal que ali iria se satisfizer usando as meninas como pobres objetos, Jandira dese-java ser maior do que eles. Qual a mais importante expe-riência que existe na vida de um rato? Durante sete anos Jandira sobrevi-veu à sombra da luz vermelha. No segundo andar, sentada diante da janela dos quartos que trabalhava, ficava contemplando os flocos de neve que nunca caíram na grama seca aos fundos daquela casa notur-na. Jandira desenhava no espelho sua própria face magra, de ossos salientes, ampla testa reta e escuros cabelos encaracolados, olhos cor de pinho, muito afastados e de pesadas pálpebras. A cada noite que caía o mesmo olhar consternado marca-va o começo de uma nova jornada de trabalho. Apesar da dor, Jandira acordava cedo para ir ao mercado e esfregar o chão todos os dias. Eram as atividades domésticasque lhe permitiam receber o banho quente, as refeições e sua melhor amiga. Quando estava com ela o medo ia embora e preenchia o es-tranho vazio que assolava seu pei-to. O pó branco e a garrafa de 51 expulsavam os sentimentos ruins. As colegas de trabalho, o patrão e os clientes a consideravam louca. Tudo inveja de sua beleza. Jandira não se importava com o que eles diziam. Ela não era louca. Nun-ca pensou que sentiria falta dos ani-mais da casa da luz vermelha. Era comum que Jandira ficasse setenta

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A dupla mente louca

“Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a ideia de que não é louca, só fará mostrar-se duplamen-te louca. Segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se apresente.”

Elogio da Loucura- Erasmo de Roterdã

foto: Mariana Smânia

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e duas horas sem dor-mir. O tempo que ti-nha para descansar ia visitar os cavalos com fisionomia animada. Os únicos animais que haviam por perto eram os próprios humanos.Em uma noite de outo-no, enquanto o vento batia as janelas e portas incessantemente, apa-receu Lourival. Aos 40 anos de idade tinha um rosto rígido que pare-cia ter sido esculpido em pedra, queixo qua-drado, nariz de pontas longas e narinas maio-res ainda, olhos cas-tanhos e uma floresta de cabelos negros. Era

mais baixo que alto e mantinha uma boa for-ma. Jandira sabia que era a mulher mais bo-nita sob a luz vermelha.Andava com Jandira de mãos dadas pela casa, elogiava seu trabalho e dizia que a mulher es-tava no frescor de sua juventude. Voltava to-das as semanas cantan-do feliz logo que avis-tava a moça. Jandira nem cobrava mais por seus serviços. Guardava cada pétala de rosa que o rapaz nunca levou. Com a chegada do tem-po úmido, Lourival pa-rou de frequentar a casa noturna e Jandira parou

de visitar os cavalos no jardim. Os dias come-çaram a se tornar mais compridos. E seu tempo havia se tornado pó e seus sentimentos trans-formados em ferro. Será que Lourival nunca te-ria prestado a atenção? Se queria que ela fos-se sua mulher porque não a levou embora? As colegas de quarto não a poupavam e ras-gavam em pedacinhos seu coração. O pó bran-co não a aliviava mais, ela sentia um profundo desgosto. Contava para si a história do rato que tinha medo e o rato con-tava para mágico a his-

tória de Jandira. A barri-ga começou a crescer e junto um medo assusta-dor vindo de seu íntimo. Foi para uma zona mais pobre da cidade, onde as mulheres tra-balhavam na calçada confeccionando cadei-ras de vime, assentos de palinha ou capas de garrafas com os filhos no colo. Jandira sabia que logo seria ela ama-mentando seu bebê. Enquanto Alicia crescia a pobre mulher embo-lava seus pensamentos em uma confusão dolo-rida que tocava o pró-prio nervo da nostalgia.

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O dinheiro que ganhava mal dava para ela, quem dirá para as duas. Ela precisava do pó branco. E ele escorria sob suas mãos. Então Jandira co-nheceu a pedra. O contato com a pedra deu-lhe a sensação de que seu mundo se endireitava de novo. As noites se torna-vam luminosas e cintilantes.Acima de todas suas alegrias ficava uma satisfação negati-va: não se pode ser um leão com um coração de rato. Logo teria a prova disso. O jogo do ganso com Alicia era um pas-satempo para descarregar com-pridos dias de tristeza e enfado.Ensinava Alicia a escovar os dentes, pentear os cabelos, amarrar os sapatos. Mas o que a menina gostava mais era de jo-gar o jogo do ganso e empinar pipa. Não tinha força suficien-te para segurar a linha quando o vento puxava. Achava graça quando a pipa perdia um pedaço da rabiola, ficava doida e caia. Era o momento que contava para sua mãe as histórias que apren-dia. Todos os dias contava uma história sobre aventuras. Jan-dira gostava de imitar o ganso.Ensinar a filha a ler e escrever era um dos seus momentos pre-feridos, pequenos detalhes que faziam uma grande diferença. Lembra com lágrimas nos olhos de quando a filha fez seu pri-meiro desenho: um cavalo. As comemorações eram sempre iguais: mãe e filha. Jandira não podia fazer a festa que deseja-va, pois o pó sempre consumia boa parte do seu dinheiro. Mas sempre havia o bolo de choco-late, favorito da menina e pen-durava alguns balões na parede. Nos poucos momentos em que a lucidez invadia seu corpo, Jan-

dira sentia-se feliz por poder oferecer algo bom para a filha.Nos momentos em que se en-contrava sozinha Jandira pro-curava às cegas uma resposta para tantas perguntas. Qual a mais importante experiência que existe na vida de um rato? As colegas de trabalho advertiram que Jandira precisa-va de ajuda e aconselharam-na que fosse procurar algum médi-co que pudesse curar a mente. O primeiro diagnóstico: esqui-zofrenia. É uma destas desco-bertas cujo pensamento leva a tudo menos uma conclusão. Duas pessoas diferentes passa-ram a habitar o mesmo corpo, provocando conflitos entre si. Houve um momento em que a sua mente se desintegrou com-pletamente. Jandira perdeu o controle do próprio corpo. Ele foi possuído por ansiedades intensas que se tornaram mais tarde em fobias intensas. Até aquele momento ela se conside-rava uma pessoa normal, igual a todas as outras, mas aque-le seria o ponto que marcava a desintegração da sua men-te, ela não foi mais a mesma. Alucinações visuais, sinestési-cas e auditivas, delírios, fala de-sorganizada (incompreensível), catatonia, sintomas depressivos, confusão mental, embotamento afetivo e a apatia começaram a fazer parte do seu dia a dia. Talvez já fizessem antes. O que mudou foi o excesso de antipsi-cóticos, antidepressivos e ansio-líticos que provocaram um efei-to colateral pior que o outro. As vozes diziam sempre o pior: sui-cídio. Humilharam-na. Compa-raram-na com o que ela era e o que é hoje. Mas tinha certeza que ainda era uma mulher bonita.

Em meio a um dos seus surtos, Jandira tentou suicídio,fracassou e isso se procedeu. Na segunda tenta-tiva, porém, algo a impediu. Sua filha, Lourival, o mági-co ou o ganso? Não se sabe.Hoje Jandira vive perambulan-do pela casa, chamando pela fi-lha que nunca aparece. Não pre-cisa mais ganhar dinheiro com o corpo, sobrevive agora geren-ciando meninas que optam por levar suas vidas à sombra da luz vermelha. Mas os ratos continu-am a aparecer, alimentando seus vícios, só que com menos fre-quência. A imagem da filha fica cada vez mais distante em sua memória. Jandira acha que sabe das coisas. Mas a única coisa que Jandira não soube é que Ali-cia foi uma criança natimorta.

“Um dia, ela descobriu sozinha que era duas!A que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite,e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo,balançada num céu de estrelas invisíveissem contato com o chão”.

Cecília Meireles

por Bianca Queda foto: Mariana Smânia

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Amando loucamente meu trabalho! Rogério é um homem alto, forte, com o corpo definido e vi-sivelmente saudável. Poucos lhe dariam sua verdadeira idade – 49 anos –e facilmente poderia ser ilus-trado como um homem que aca-bou de chegar à casa dos 40. Ca-sado e pai de dois filhos, Rogério já foi caminhoneiro e se diverte ao lembrar-se da época da faculdade de Educação Física, onde parava seu caminhão dentro do campus universitário. “Terminei a faculda-de para ter um diploma, porque se eu quisesse, poderia continuar nas estradas. O caminhão era meu!”.Formado em Educação Física e uma família para sustentar, resolveu prestar concurso para agente peni-tenciário para garantir um futuro a sua filha. Trabalhou na Penitenciá-ria de São Pedro de Alcântara, onde lidou com presos de alta periculo-sidade e, segundo ele, lá aprendeu a malandragem do seu trabalho.Rogério conta que, em seu primeiro trabalho, os presos que incomodam dentro da penitenciária são conhe-cidos como “chinelo”. São esses que arranjam brigas, tentam fugir e se fazem de durões. Mas os in-ternos que são mais perigosos são extremamente educados e obede-cem às ordens sem retrucar. “O ob-jetivo desses é sair da prisão para continuar seu ‘trabalho’ na rua”. A malandragem do traba-lho penitenciário não está escrita e deve ser vivida para a entender. Mas, segundo Rogério, o importan-te é estar disposto a aprender. Em suas experiências, seu objetivo foi tentar “sugar” ao máximo os co-nhecimentos do seu dia a dia para aplicar permanentemente em seu trabalho. Para ele, existe uma troca de sabedoria entre todas as pesso-as, sejam elas agentes penitenciá-

rios, médicos, psicólogos, psiquia-tras, enfermeiras ou internos. Mesmo trabalhando como agente penitenciário, Rogério sen-tia a necessidade de incluir seus conhecimentos da Educação Físi-ca às pessoas com quem convivia. Passava pelos corredores onde fi-cavam as celas e dava dicas de exercícios e posturas aos presos que gostavam de manter a forma. E com este pequeno gesto plantou uma semente que despertou o de-sejo em um dos detentos em cursar faculdade de Educação Física. “Pra mim, não existe melhor recompen-sa do que estimular uma pessoa que tinha um futuro incerto”, diz ele.Com essa mistura de sentimen-tos pelos dois tipos de trabalho, Rogério deu um novo passo em sua vida profissional no ano de 2013. “Quando fiz o concurso para agente penitenciário, nun-ca passou pela minha cabeça que chegaria aonde estou hoje”. Con-vidado a trabalhar no Hospital de Custódia e Tratamento de Flo-rianópolis, ele aceitou o desafio.Rogério conta, com o sorriso no rosto, sobre um emprego que lhe faz muito bem. “Aqui eu pos-so trabalhar as minhas duas áreas profissionais e ainda tive a opor-tunidade de conhecer pessoas que mudaram minha vida”. Hoje, como educador físico dos pacien-tes psiquiátricos, Rogério trabalha ofere-cendo mais qualidade de vida a pessoas com uma tentativa de re-socialização e reinserção à socie-dade. Mesmo, por vezes, com di-ficuldades de coordenação motora ou na linha do raciocínio rápido, os pacientes que passam pela ati-vidade coletiva apresentam sen-sível melhora na convivência em

grupo. Além disso, a saída da ro-tina do pátio e da medicação traz a eles um momento de liberdade. Rogério não procura saber o motivo de cada interno para estar dentro da instituição, segundo ele, o importante é passar seus conhe-cimentos sobre atividade física e saúde e deixá-los experimentar um pouco de alegria. Seu cenário não é um dos melhores. Entre pacientes psiquiátricos, agentes, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiras e professoras, ele busca a felicidade por trás do sofrimento. Por isso, gosta de conhecer os pacientes, conversar, saber o que eles gostam de fazer e o que não gostam. Amil-ton é um dos exemplos que fazem os olhos do professor de Educação Física encher de lágrimas. Ele conta que Amilton era um dos pacientes e tinha um retar-do mental. Alemão, ossos largos, com um andar torto e a fala enrola-da, pois não tinha dentes, sempre se deu bem com o professor. Rogério conta que decidiu dar um par de tê-nis de basquete, já esquecido dentro de casa, para Amilton. Ao entregar o presente, deixou-o tão feliz que ele fez questão de mostrar para to-das as pessoas do hospital e ainda ligou para sua mãe para contar.Amilton é apenas um dos pacientes que estampam a felicidade no ros-to de Rogério por estar trabalhan-do com essas pessoas especiais. Segundo ele, chega a esquecer de que é um agente penitenciário. “Ser professor aqui é muito gratificante, mas tentar entender a loucura é uma grande loucura”, diz ele. Rogério acredita que encontrou um lugar em que toda a troca de experiência é va-lida: “todos têm um mundo a me en-sinar, principalmente os pacientes”.

por Maria Luíza Bolzan

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Amando loucamente meu trabalho!

por Maria Luíza Bolzan

Régis Mallmann, um louco pelo jornalismo. “Isso mesmo, na esqui-na da Rua Búzius com a Rua La-gosta.” Depois de uma QUEDA e de ter ido ao endereço do seu antigo reduto parece que final-mente o dia em que falaríamos sobre sua obra tinha chegado. – Régis, Tô na esqui-na, mas acho que da rua errada!– Não faz mal, não tem problema. Vou até aí. A solicitude em falar sobre jorna-lismo, literatura, teatro, arte, mú-sica, gastronomia, gênios, mesmo em um domingo com o tempo nu-blado, com um céu que anunciava uma chuva de verão a qualquer momento, condizia com toda sua fama a mim relatada anteriormente. “Ele foi meu primeiro chefe no jornalismo”. Felipe Alves, agora repórter, relembra a época em que chegou ao Diário Catarinense como assistente de redação, caiu na edi-toria de variedades para trabalhar com Régis. “Ele sempre foi meu colega, mesmo sendo meu chefe. Sempre queria minha opinião.” Na última das seis passagens pelo jornal, em 2009, Régis Mallmann trabalhou como editor do caderno de Variedades do Diário. “Ele foi pauteiro de geral por muito tempo. A cabeça dele não para”. Antes de ser chefe do Felipe, o menino que queria ter feito história e que se ins-creveu no vestibular para jornalis-mo por optar estudar sob a luz da lua, alternativa indisponível para o curso planejado, saiu de Estrela, 30 mil habitantes e a 92 Km de da capital gaúcha, para formar-se em 1985, na PUC de Porto Alegre. Logo os livros já não eram sufi-cientes para que ele conhecesse o mundo, teria de tomá-lo com as próprias mãos. Começou sua cami-

nhada profissional pelo periódico O Informativo do Vale em Lajeado - RS, cidade que tem o rio Taquari como fronteira para sua terra natal. O próximo passo seria o primeiro dos seis dados em direção ao DC, primeiramente em Joaçaba quando o jornal completava seis meses de edição em Santa Catarina, depois o A Notícia de Joinville em 1988, e logo após ter cansado da cidade mais populosa do estado e chegado na capital como repórter do mesmo jornal, resolveu pedir demissão. Foi procurar emprego no O Estado. Ao sair do primeiro dia como repórter desta redação parou em um bar na rua Esteves Júnior, próximo ao local de trabalho, para conversar com o garçom, amigo e confessor a quem contara sobre a decadência anunciada. Seu ouvinte lhe ofereceu um vinho, o frio e todo o pessimismo em relação ao empre-go novo eram sugestivos. Depois de dizer sim, algumas taças e ho-ras de conversa, resolveu que não voltaria a trabalhar no outro dia. Em 1990, preparou um jan-tar para o editor chefe do DC, foi contratado novamente, lá permane-ceu por quatro anos até ser contra-tado para cobrir sua amiga Silvia Quevedo como correspondente da sucursal da Folha de S. Paulo em Santa Catarina, agora mais presti-giado por estar escrevendo nacio-nalmente. Problemas, revelados depois, fazem-no pedir demissão em nome do desejo de viajar e conhecer outros lugares. Quando volta de viagem retorna para a sua quarta escala na redação do DC, em primeiro de janeiro de 1995. Iria para a editoria de cultura, mas re-gências internas o fizeram repórter de geral até que o pauteiro fosse

demitido após o carnaval. Solici-taram e ele aceitou ocupar o cargo. Em março do ano seguinte tornou--se editor do caderno de variedades, aos trinta e um anos. Demitiu-se. “Ele conta piada o tempo todo, sério. O motorista é quem deve ter boas histórias”. Felipe, o ex-assistente de redação, justifica o fato dele conhecer muita gente e ter muitos amigos. “Ah! Eu já fui em altas festas na casa do Régis, o cara sabe dar uma festa. Vai gente de tudo que é canto, toda imprensa. Ele conhece muita gente”, diz Vil-mar de Souza, que foi responsável por levá-lo até seus entrevistados enquanto trabalhavam no A Notícia, sucursal de Florianópolis. “Quando ele descia do carro ele já sabia o que ia fazer”. Vilmar trabalhou por 21 anos naquele jornal e hoje con-tinua como motorista de um veícu-lo de comunicação, mas desta vez presta serviços ao Notícias do Dia, e continua com o carro repleto de jornalistas. “Jornalista tem muito de dupla personalidade, lá em cima é um e no carro é outro. O Régis sempre foi o mes-mo cara, passa pela rua e cumpri-menta.” Cheio de histórias para contar sobre tudo o que houve e ouviu dentro do carro enquanto dirigia, ele parece ter uma admi-ração pelo exercício da lida diária: “O motorista faz parte da equi-pe, se o fotógrafo não viu alguma coisa, e nem o repórter, eu posso avisar.” A fase que eram da mes-ma equipe corresponde ao tempo que Régis chegou ao AN depois de ter saído de Joinville e antes de trabalhar por um dia n’O Estado. “De repente dá uma loucura nele e ele desce o morro a pé mesmo. No AN ele era repórter de variedades

foto: Mariana Smânia

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Suicídio, a última fuga?Quem nunca pensou em morrer para escapar de uma sensação de dor? E quando o desespero é insu-portável? A cada dia, o sofrimento torna-se mais intenso e viver passa a ser um fardo pesado e angustian-te. A vida perde o sentido. O mundo torna-se cinza. E a possibilidade de fechar os olhos e tudo que incomo-da ser resolvido é tentadora. Mas, será que a morte é a melhor opção? Diariamente milhares de pes-soas de diferentes idades retiram suas vidas, movidos pelas mais diversas circunstâncias, mas todas têm o mesmo interesse: dar um fim em seu sofrimento, nem que para isso seus corações parem de bater. Uma das principais causas de morte entre os humanos, o suicídio estarrece, incomoda, silencia. E mesmo atualmente, o assunto ainda é visto por muitos, como um tabu, motivo de condenação, sinônimo de loucura. Mas dados revelam que o suicídio precisa ser enten-dido e discutido, pois esta “ideia” pode fazer parte da mente de pes-soas próximas e você nem imagina.

Quando viver vale à pena

Quando somos jovens, com saúde e felizes, a morte parece ser algo sombrio e indesejável. Afi-nal, ninguém quer deixar de ser feliz para encarar o desconheci-do ou mesmo o nada. Mas quan-do a velhice chega trazendo con-sigo doenças ,dores,depressão, a morte muda completamente de conceito e passa a ser algo de-sejável, quase uma eutanásia. O suicida se sente assim, “ve-lho” o tempo todo não importan-do a idade,etnia ou classe, ele

não consegue identificar alterna-tivas viáveis para a solução de seus conflitos, optando pela mor-te como resposta de fuga.Eles se tornam criaturas despersonaliza-das, e muitas vezes não conse-guem conviver com as angústias e dores que acometem sua alma. Morrer parece ser o ultimo golpe contra o sofrimento, contra uma vida aparentemente sem sentido, contra um futuro amedrontador. Mas o que faz uma pessoa vi-sivelmente feliz e satisfeita seja na vida pessoal e profissional, aban-donar tudo e todos? Talvez no seu mais íntimo, trancado a sete cha-ves, exista algum desespero que,em um dia qualquer, explodiu a ponto de ele pôr uma corda no pescoço e chutar o banquinho, ou esta pes-soa guardava uma insatisfação pe-rante a vida que ele só considerou resolvida depois que a bala de uma arma perfurouo próprio crânio. Segundo a psicologia, exis-tem vários comportamentos que indicam a possibilidade de idea-ção suicida. Dentre eles o relato de querer desaparecer, dormir para sempre, ir embora e nunca mais voltar ou mesmo objetivamen-te o relato do desejo de morrer, mesmo quando falado num tom de brincadeira,podem ser fortes indícios de que algo está errado e que não podem ser ignorados. Algumas pessoas são levadas a esse ato por desespero, outras che-gam a premeditar o fim da própria vida. O que os motiva é a falsa idéia de que sua vida não tem mais valor nem para si mesmo nem para os outros. E incapazes de comunicar a própria dor,usam fantasias para justificar sua atitude. O indivíduo vê no suicídio a oportunidade de

interromper uma existência infeliz e recomeçar, com uma nova chan-ce para acertar. Também pode ser um jeito de acelerar o reencontro com pessoas queridas já mortas – o pai, a avó, um amigo, o cônjuge. Às vezes, o suicida respon-sabiliza as pessoas à sua volta por sua decisão, assim sua morte vale como um castigo para os que o cer-cam, como se ele estivesse se vin-gando de atitudes recebidas. Quan-do escolhem este caminho, alguns se justificam e se despedem através de cartas, telefonemas ou peque-nos, enquanto outros, simplesmen-te se vão no mais absoluto silêncio. Uma passa-gem só de ida, por favor!Se por algum segundo,seja la qual for o motivo,um indi-viduo pensa em se matar, ele precisa entender três coisas: Suicídio NÃO tem volta.Depois de realizado, será o seu fim e isso é tudo. Não há restart oupossibilidade de arrependimento. Pense nos prós e contras, nas consequências para a sua família, para os amigos, para o seu trabalho e para a sociedade. Suicídio exige RESPONSA-BILIDADE. Tem pessoas que tentam suicidar-se e acabam fi-cando vivos, vegetando e dando trabalho para a família. E outros que correm o risco de matar ou-tras pessoas se jogando de prédios, explodindo coisas ou mandando balas perdidas. Não existe ga-rantia de que o método que você escolher vai ser rápido e indolor, talvez possa apenas entrar num sonho permanente, como também pode passar horas e mais horas- quem sabe um ou dois dias?- ago-nizando lentamente até a morte.

Quando morrer torna-se uma opção na solução de um problema

por Débora Laurindo

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Suicídio, a última fuga?Quando morrer torna-se uma opção na solução de um problema

A palavra suicídio vem do latim sui, “próprio”, e cae-dere, “matar” é o ato intencional de matar a si mesmo.O suicídio nada mais é do que uma forma de escolher como, onde e quando a pessoa irá morrer. Mas não é uma ma-neira garantida de que não se vá sofrer ao morrer ou mes-mo que você vai obter êxito ao tentar tirar a sua própria vida. Sendo que as influências mais comuns são os transtornos men-taisou os psicológicos como, por exemplo, o transtorno bipolar, a esquizofrenia, o abuso de drogas, a depressão, sendo que esta é res-ponsável por 30% dos casos relatados em todo o mundo segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) no ano de 2000. Dificuldades financeiras e também emocionais desempenham um fator significativo. Os tipos normalmente são classificados como: Suicídio primário é cometido em geral por pesso-as com quadro psicótico agudo (esquizofrênicos, usuá-rios de drogas pesadas) que por culpa de alucinações co-metem o suicídio, como se estivessem sendo ameaçados ou perseguidos pelas alucinações. É perda de juízo da realidade. Suicídio secundário existe quadro depressivo grave, onde a idéia de negatividade, desesperança absoluta, faz com que a mente em trevas não enxergue luz nem motivação alguma para viver. Morrer torna-se uma ideia menos dolorosado que a de vi-ver cada dia angustiante e sem sentido, tendo na morte um alívio. O suicídio reativo é um ato extremo em que pesso-as fragilizadas afetivamente, seja por luto, por perda afe-tiva, ou falência financeira ou até por vergonha e cul-pa (comum em japoneses) cometem o autoextermínio. Suicídio por acidente ocorre com pessoas que sem-pre “tentam se suicidar”, mas não querem tal objetivo, algu-mas buscam chamar a atenção por teatralidade ou chanta-gem emocional, outras o fazem por impulso, assim acabam errando o tipo de “calmante” e,consequentemente,falecendo. Não podendo esquecer é claro, do suicídio medicamente assistido, a Eutanásia ou o “direito de morrer” que é atualmente uma questão ética muito discutida pois que envolve um determinado paciente que esteja com uma doença terminal, ou em dor extrema, que tenha uma qualidade de vida muito mínima através de sua lesão ou doença

Pequenas categorizações

sobre morrer

por Débora Laurindo

foto: Mariana Smânia

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A escada, o corredor tão frio que quase congela o coração. A decepção dos meus pais, a ver-gonha de quem me esqueceu por-que estou aqui, mas que algum dia na vida, nem que por instantes, já demonstrou grande afeto pelo que aqui vos fala. A questão não sou eu, nem vocês. Meus pais me criaram, uma criança amada e até com um capricho demasiado que beirava o mimo. Somos engoli-dos pela vida ou engolimos a ela?O que dói nesse mundo dos lou-cos é a linha, fina como uma li-nha de uma teia de aranha, que nos faz iguais aqui. Porque somos todos loucos como as bulas de re-médio, a nossa tarja preta assusta todo mundo, sem exceções. Não há o queridinho, não há o esper-to e nem o brincalhão. Há loucos. Aqui não há santo ou assassino, há malucos. Há pessoas de clas-se baixa, cheiro ruim, unhas dos pés sujas, carinho jogado. Digo que o carinho é jogado, pois sim-plesmente ganhamos ele de quem nos ama, ele vem no contrato de trabalho de pessoas que, muitas vezes, nem sabem quem somos. O carinho, antes de chegar até nós se perde no ar, mas, no lugar, dele, marmitas com feijão, arroz e bife; beliches e banheiros em quartos que possuem grades nas janelas e nas portas nos são concebidos. A nós tudo e todos se es-quivam. Até eu me esquivo deles, e se eu me esquivo deles, eu sou um deles, eu me esquivo de mim mesmo. Como exigir amor de funcionários que fazem exercício e baixar punho, em uma busca incessante ao momento de olhar para as horas e ver, pontual a hora de ir embora. Não há conversa ou santo que me faça acreditar que alguém tenha amor verdadeiro por mim. Nem mesmo minha mãe que mantém as visitas constantes não

consegue tirar do outdoor dos seus olhos a angustiante situação de ter um filho aqui. O beijo no rosto e o tempo que passamos juntos só causam dor, por ter eu feito sofrer a mulher que um dia já foi menina e que não merece de maneira algu-ma perder tempo e vida sofrendo com um fantasma vivo que tem nome e sobrenome, que, naquela manhã de amor, entre ela e meu pai, fui justo eu o esperma vence-dor. Coitada da minha mãe e coita-do de mim! Porque vejo aqui, tão feliz e atenciosa, já meio bronzea-da do verão, com certeza uma me-nina que vive muito a liberdade, só pela expressão no rosto. E vejo a mim, no que o meu futuro guarda-va dentro do nada, quando algum dia eu pensei besteiras, besteiras e besteiras. Culpei-me com aqui-lo, tanto que ocupei em esquecer, mas um dia tranquilo, andando, fui eu estuprar duas e três meninas.

-Não consigo eu como a menina que sou, beirando a nor-malidade, não sentir nojo do que ouvi e a confusão mental estava feita. Amar ou odiar aquele ser hu-mano que está ali, só não sozinho porque carrega com ele a solidão e as lembranças dos três estupros que contemplaram a história da praça verde do bairro onde mo-rava em Florianópolis. Razão, emoção, um meio termo, talvez? Posso eu simplesmente ignorar esse lugar e essa história, como to-dos os moradores que fazem parte de uma sociedade com cadeiras ocupadas onde para um não ser padronizados a resposta será o de-javú viciante repetido e repetindo e repetido: - cadeiras ocupadas; - cadeiras ocupadas. Como um eco.Se fossem bonecos, poderíamos guardar na estante para enfeite. O meu entrevistado, é até um pou-co bonito, poderia sim ir para a

estante, enfeitar a sala. Mas, não dá, além das necessidades bási-cas, ele sonha, pensa e vive. Um tamagoshi de pele e osso. Um hu-mano que, ainda por cima, tem sentimentos, como eu e você! No HCTP ele vive o mundo paralelo, ele participa quase que de uma seita, não! Melhor dizendo: ali vivem os homens da sociedade secreta. Algum genezinho, algum azão – azinho, que não cruzou no coito e pumba! Vamos todos para a sociedade secreta. Terror! A mi-nha mais sincera confissão, estilo verdade nua e crua é que me sin-to tranquila em saber que, depois dessa aula, não preciso mais bem ler esse texto, nem lembrar desse homem, nem pensar na confusão mental ou no nojo que tive ali. A minha sincera verdade que em co-ragem voz digo que desejo não ter mais que voltar lá. A minha sin-ceridade jogada na cara dos bons cidadãos que pregam a ajuda ao próximo, mas que nunca estive-ram por lá, ou aqueles que foram algumas vezes e nunca mais volta-ram. Nossa verdade? Eu não faço parte da sociedade secreta, nem você! E estamos muito ocupados vivendo na nossa sociedade públi-ca, seguindo horários, padrões e tentando não matar ninguém para que, assim, não viremos um tarja preta qualquer, sem passado, pre-sente ou futuro. Que os comedores de arroz, bife e feijão fiquem bem longe de nós. A nossa sociedade é assim, e essa não sou eu falando, somos nós, você faz parte disso e, tenho certeza, que nas próximas horas, dias, semanas, meses, não voltará tão cedo a “dar uma aten-ção” aos órfãos da vida, aos des-providos de padrão que choram como criança e imploram mais do que tudo o inatingível perdão!

Diálogo, corpos, leitura e grades.

por Bruna Moraes Silva

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Diálogo, corpos, leitura e grades.

por Bruna Moraes Silvafoto: Mariana Smânia

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Sublime sentimento. Todos nós temos um pouco de louco, pois, afinal, o que é ser louco? É ter uma mania que mais ninguém tem? Gostar de coisas es-tranhas aos olhos dos outros? Ou ter um sentimento reprimido den-tro do peito, de forma que ninguém mais consiga sentir ou entender aquela angústia? São perguntas que não têm respostas precisas, mas ao menos cada sujeito tem a sua própria opinião sobre a loucura.Em um corredor escuro, assombra-do pelos fantasmas, bruxas e outras criaturas presentes em um espelho antigo com ornamentos em volta, estava sentada a menina loira de ca-belos curtos, olhos verdes, pequena e frágil, com os seus cinco ou seis anos. Suas mãozinhas tapavam seus ouvidos para abafar o som dos ber-ros e choros que vinham ao encon-tro das suas lágrimas também. Esta cena tornara-se frequente por uns tempos, até que certo dia a solu-ção foi encontrada no Instituto São José, localizado no centro históri-co do município de mesmo nome.Os gritos eram de sua mãe. Desde que nascera esta menina enfrentava muitas coisas na vida, situações que poderia nunca ter passado, não fos-se o erro médico que sua mãe havia passado durante seu parto. Na sala do parto estava a mãe dando à luz a sua primeira filha, enquanto o mé-dico que deveria lhe dar assistência naquele momento preferiu conver-sar sobre sua doce lua de mel com as enfermeiras. Este tempo sem a presença médica foi crucial. Um bebezinho pequeno e frágil que chegaria ao mundo como qualquer outra criança, teve falta de oxige-nação no cérebro, fator que com-

prometeu seu crescimento e desen-volvimento em alguns aspectos.Aos sete anos a menina aprendeu a dar seus primeiros passos, após muito rastejar pela casa para po-der brincar com seus outros quatro irmãos que vieram após sua che-gada ao mundo. Sua fala continua até hoje um pouco enrolada, assim como seus passos atrapalhados. E como se não bastassem estes per-calços da vida, a menina cresceu. Ao vinte anos ela também se apai-xonou, como qualquer outra mu-lher. Uma paixão que não era es-perada pelos seus familiares e que só chegou ao conhecimento de seus entes no sexto mês de gestação, após ter tido uma queda no banhei-ro durante o banho. Junto à queda veio a notícia de que estava grávida. Desde então muitas espe-culações sobre quem seria o pai daquela criança que carregava em seu ventre vieram a lhe atormen-tar. Vários vizinhos foram alvo de questionamentos. Quem teria sido o homem que usou daquela paixão, daquele corpo, sem ter nutrido um sentimento real por ela, indefesa e irracional em algumas questões da vida. Seu único confidente sobre aquele nome foi um velho ami-go que sempre estava lá, sentado na vendinha da casa de interior.Certo dia ele não se conteve e con-tou aos familiares da moça o nome de quem fez aquilo. Cinco dias após completar os vinte e um anos nasceu a filha, fruto de uma pai-xão e de um amor não correspon-dido, de um homem que teve cin-co filhos com a mulher com quem era casado; sim, ele era casado!Esse foi o estopim para que a mãe

da menina loira chegasse mais tar-de ao que seria a sua ‘loucura’. Ela não compreendia porque as outras pessoas podiam se separar de seus cônjuges e juntar-se a outro amor, sendo que com ela isto não acon-tecia. Seus sonhos eram como o de qualquer outra pessoa român-tica: casar, construir uma família, trabalhar. Porém, nada daquilo lhe era possível devido as suas condi-ções e também por não ter corres-pondido o amor por quem nutria.Sua fúria aumentou de tal forma, que ela chegava a ameaçar a sua mãe: gritava, queria extravasar a sua dor, seus sentimentos. A filha pequena presenciava aquelas cenas diariamente. A avó da menina pedia para que ela ficasse quietinha em seu quarto, que fosse brincar com os vizinhos, enfim, queria proteger aquela doce infância das cenas roti-neiras. Até que certo dia a solução foi a internação da mãe no Instituto. A menina sempre que podia ia com sua avó visitar sua mãe, o presente que mais gostava de levar para a mamãe era uma bandeja de Danoninho. Sua mãe até hoje gos-ta de Danoninho. Os corredores do lugar pareciam longos para a pe-quena garotinha, tudo era grande para seus olhos pequeninos. Ha-via um lindo jardim no local, com banquinhos e árvores que faziam sombras acolhedoras, mas ela via a tristeza nos olhos de sua mãe por estar naquele local, longe de seus parentes e do fruto de seu amor.Lembra-se de ouvi-la reclamar de sua colega de quarto, mas tudo muito vagamente, pois era pe-quena demais para guardar tan-tos detalhes em sua memória.

A mulher que amou demais na visão de uma criança

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por Mariana Eli

A mulher que amou demais na visão de uma criança

Foram uns dois meses de visitas ao local, até que sua mãezinha pudesse retornar. Desde então ela toma doses diárias de fluoxetina, um remédio controlado usado como antidepressi-vo; quanto faltam essas doses diárias a situação fica conturbada novamente.Quando a menina estava com doze anos, recebeu de sua vó a notícia de que seu pai, que nunca viria a co-nhecer, havia se matado com vene-no de rato. Seu corpo foi encontrado em um posto de gasolina, por um de seus irmãos. Este acontecimento conturbou novamente os sentimentos da mãe da menina, que até hoje guar-da esta paixão no seu interior, em segredo, mas que deixa transparecer alguns traços de suas lembranças.A loucura que vemos nos outros não pode ser compreendida por nós sem que entendamos o contex-to de suas vidas, a sua trajetória, pois ninguém passa por situações deste tipo sem um motivo ou algo que lhes aflija. Você provavelmen-te já cometeu alguma ‘loucura’ ou pensou em algo do tipo também,

foto: Mariana Smânia

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Loucura por detrás da porta. Do lado de lá daquele gran-de portão branco tem gente. Pas-sando pelo estreito corredor, entre telas da pra ver a horta à direita. Ali tem alguém que capina, um dos únicos que se recusou a usar uma roupa laranja. Mais alguns passos e entramos por uma porta de madeira escura em uma “sala de espera” de onde se ouve gritos. Uma voz cala todas as outras. Da pequena entra-da da pra reparar algumas portas a direita e à esquerda uma grade do chão ao teto. Alguém passa com a mão cheia de cartelas de remé-dios. E esse cheiro de abafado? Parece que o vento não quis entrar. Passando pela grade, um corredor, portas de madeira escura fechadas por cadeado, os homens com as chaves não vestem jalecos. As paredes são verde claro. Nada de luz fluorescente iluminando grandes corredores brancos, nada “Hollywoodiano”. Os que estão atrás das portas na antiguidade eram brinquedos dos deuses, na era cristã eram os possuídos por demônios, na Idade Média foram leprosos. Quem são eles agora? Um refeitório de azulejos brancos onde os pratos são potes redondos, parece que a comida não é tão boa. Um jardim interno, mais uma porta de onde se vê camas. Logo à frente uma sala pequena

com obras de Tarsila do Amaral, Romero Britto, Van Gogh e al-guém cujo nome ainda não se sabe. Naquele lugar não há quem seja certo ou errado, porque no mundo particular de cada um, to-dos são reis. Esses homens tran-caram-se dentro da própria mente e foram julgados por quem estava de fora. O mundo além do portão convencionou que para estar fora das grades não se pode pensar tão diferente assim. Lá fora, ao con-trário do mundo daqui de dentro, é você quem controla a sua mente e não sua mente que controla você. Todo dia de manhã alguém acorda, lava o rosto, escova os den-tes e troca o pijama porque aquela roupa não foi feita para sair à rua. Toda dia alguém nasce e vai cres-cer para estudar, trabalhar e acordar pela manhã repetindo uma rotina na maioria dos dias de sua vida, por-que assim é dito por muitos como normal. Dentro do lugar de paredes verdes há poucos homens e mulhe-res que estabelecem que há hora certa para cada atividade. Enquanto loucos são assim chamados por vi-verem o mundo único de suas ideias e alucinações, as pessoas sãs vivem o mundo único de suas convenções. Talvez não se consiga ver saúde nas pessoas, apenas doenças. Tome um remédio para dormir, um

para acordar, um para ficar feliz e outro pra ficar calmo. Tristeza é doença e a sua vida perfeita está a alguns passos, na farmácia mais próxima. Seu comportamento deve ser semelhante ao dos seus pais, ir-mãos, amigos e vizinhos. Todos lou-cos por dentro e normais por fora. Tudo leva a crer que o destino de todas as Casas Verdes, como aque-la atrás do portão branco, seja o de fechar as portas e pôr fim a suas histórias de mais de 300 anos. Sé-culos em que parte da sociedade defendeu que uma parte dos seus membros não pode conviver com os demais. Por que não podem vi-ver como nós, conosco, em nosso meio? Por que são negros? Por que são índios? Por que são loucos? Saber lidar com o diferente nun-ca foi o forte do ser humano, nós idealizamos uma vida, uma socie-dade e comportamentos. Dizemos que assim é certo e diferente é er-rado, enfeitamos a realidade e nos colocamos numa zona de conforto. Transtornos psiquiátricos nos tiram desse marasmo. Ver o que tanto se tentou esconder dá medo, talvez de nos aproximar demais dessa reali-dade a ponto de se ver no outro. Afi-nal, quem gostaria de se ver espelha-do em quem é chamado de louco?

por Manoela Nascimento

Memórias e reflexões de uma visita ao hospital de custódia

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Loucura por detrás da porta.Memórias e reflexões de uma visita ao hospital de custódia

foto: Mariana Smânia

A psiquiatria nasceu com o nome de alienismo, ciên-cia dedicada ao estudo da alienação mental. Aliena-do tem a mesma origem etimológica de alienígena, alien, estrangeiro, de fora do mundo e da realidade, mas também pode ser entendido como perturba-ção mental, na qual se registra uma anulação da personalidade individual. Quem tem personalidade individual no mundo dos iguais?

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Por trás dos muros. Rua Delminda da Silveira, nº 260, Agronômica. Este é o ende-reço da Penitenciária de Florianópo-lis onde em anexo está o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Em um primeiro momento-cera percebida uma tensão dos tra-balhadores com relação aos visitan-tes, o cuidado principal era para que as fotografias não identificassem o lugar e as pessoas que faziam tra-tamento. A primeira parada foi em uma espécie de recepção separada de um corredor por um portão de ferro. Ao atravessá-lo um cheiro extrema-mente forte invadia as narinas, não era possível definir o que era ou de onde vinha mas, era um odor único. Em toda a extensão do cor-redor havia portas trancadas lado a lado, e olhando através delas se via uma cama ao lado de uma mureta de aproximadamente um metro e meio onde atrás estava um chuveiro. Algo diferente das expectativas, embo-ra não soubéssemos o que iríamos encontrar, aquilo era diferente. No final do corredor estava o refeitório. Organizado, com mesas e bancos de cor branca alinhados lado a lado. Os sons se misturavam, tanto da conversa que acontecia na-quele ambiente, quanto da “pelada” que acontecia entre os pacientes do lado de fora e gritos que espo-radicamente cortavam o corredor e

invadiam o espaço. Era uma sensa-ção estranha. São vidas de pessoas desconhecidas que acabaram co-metendo crimes por um devaneio. Ao sair do refeitório atra-vessamos mais uma vez o corredor, aquele cheiro forte ficou impregna-do nas narinas de uma forma que mesmo em outro lugar era possível senti-lo. O grupo dirigiu-se a um pá-tio em que um grupo de pacientes conversava. No fundo desse pátio havia uma porta que, ao ser trans-posta, revelava o universo artístico. Pelas paredes, versos e desenhos. Carteiras escolares alinhadas ocu-pavam a maior parte da sala. Qua-dros de palhaços e releituras de obras de pintores famosos dividiam os espaço com livros, e o mais im-portante: alunos atentos e aplicados prestando atenção aos ensinamen-tos de uma professora que dava aula com o coração. Um ambiente inesperado dentro de um lugar onde as grades garantem o bloqueio dos espaços. A tensão da chegada ia dando espaço a uma alegria con-tagiante e as lágrimas da profes-sora que falava como funcionava a escola de arte davam aconche-go aos corações de quem a ouvia. Saindo de lá, outra vez o cor-redor aparecia mas, dessa vez dan-do adeus. Ou apenas, um até logo.

por Adriana Calazans

foto: Mariana Smânia

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Por trás dos muros. Alguém tão próximo. Um assunto abordado de uma maneira diferente, onde te-mos cinco mulheres em uma luta triste mas com muita perseveran-ça contra uma doença incurável. Tive a honra de poder entrevistar uma dessas mulheres que viven-ciou isso de muito perto e teve que ter muita força pra ver a irmã passar por tudo que passou. Co-meçamos a conversa tranquila-mente, foi bem fácil falar sobre o assunto que é, ao mesmo tempo, tão delicado. Vamos às perguntas:- Como ela era na infância, se era como as outras meninas, se era mais quieta que as outras, como ela agia? _ Cristiane sempre foi uma me-nina bem quieta. Somos cinco mulheres em casa, além dos ho-mens, mas das filhas ela sempre foi mesmo a mais quieta. Mas, nunca percebemos que esse jeito dela de ser pudesse ter qualquer outra explicação, a não ser uma coisa de personalidade mesmo, ou seja, cada um tem um jeito di-ferente. Ela sempre foi a mais re-clusa, a de falar pouco, de não se enturmar muito. Brincava como qualquer criança, com a ressalva de se resguardar um pouco mais. - Quando que a família co-meçou a perceber a doença? - Foi por volta dos 15 anos dela, quando atendemos a um pedido de matriculá-la em uma aula de tea-tro. De repente, ela que era bem quieta começou a falar e a gesti-cular desordenadamente, falando muito o tempo inteiro, como se fosse uma vitrola descontrolada. Achamos aquilo muito estranho para um comportamento que até então era de uma menina paca-ta e tranquila. Começamos a no-tar a intensidade de gesticulação, alguma tremura nas mãos, voz desordenada e rápida demais.

Dali para o diagnóstico da doen-ça foi um pulinho: esquizofrenia. - Como a família lidou com o caso? Deve ter sido bastante di-fícil, como foi o tratamento?- Foi muito difícil todo o processo, até porque as crises iam e vinham intermitentemente. Ela passou por várias internações no Instituto Psi-quiátrico São José, e, no fim, até foi parar na Colônia Santana. Nas vezes em que a mantínhamos em casa, ela se desgovernava total-mente: queria bater em todo mun-do, se morder, andar nua pela rua, quebrar coisas dentro de casa... Foi muito difícil, bem complica-do mesmo. Lembro-me de que ela tomava um remédio punk, um tal de Haldol, forte, que a deixa-va mais transtornada ainda. Minha mãe já não sabia o que fazer para controlá-la. Quando ficava um pouco melhor, vinha para casa. Houve uma época em que nós nos revezávamos para ficar com ela fim de semana. Ela esteve comigo uns finais de semana, mas eu via claramente na tremura das mãos o transtorno de que era acometida.- E como ela vive hoje em dia, namora, cursa faculdade, traba-lha, sai para festas, tem amigos? - A Colônia Santana foi o fundo do poço. Quando ela foi para lá, já ti-nha arranjado um marido na fase da melhora e estava grávida de cinco meses. Tomava chute na barriga, batiam nela. Quando íamos visi-tar, estava sempre suja, com pio-lhos, não lavava as mãos depois que evacuava, era uma aberração, muito, muito triste. Pensávamos que a criança ou não sobreviveria ou viria com sérios problemas de saúde. Rezamos. E te digo uma coisa: a fé tem razões que a ciên-cia desconhece totalmente. Minha mãe, que é devota fervorosa de

Nossa Senhora Aparecida, foi à Basílica em São Paulo e fez uma promessa para minha irmã me-lhorar. Até hoje sabemos que foi a força da fé de minha mãe que a curou. Um tempo depois ela apre-sentou melhoras e foi para casa. Teve um filho lindo e saudável, o Kalled, e nunca mais teve quadros da doença. Hoje é uma pessoa nor-mal. No ano passado engravidou de novo e teve mais uma menini-nha linda e saudável, a Ester. Tem uma vida regrada no que diz res-peito à alimentação, come muita fruta, verdura e grãos, não conso-me carne vermelha ou branca. Do jeitinho dela, é feliz. E está bem, o que mais importa para a gente. - E como a você lidou com tudo isso? Eu cheguei a ter princípios de de-pressão cada vez que ia visitá-la. Foi uma experiência muito trau-mática. Em várias das visitas ela tinha de usar camisa de força. Era amarrada feito um bichinho. Às vezes vinha dopada, toda mor-dida, a pele lastimada pelos den-tes ou pelas unhas. Eu via minha irmã definhando, suja, malcui-dada e não podia fazer nada. Era uma sensação de impotência mui-to grande. Foi um período muito triste para nossa família, todos nós sofremos muito. E eu, por ser mais sensível, ficava muito mal. Graças a Deus hoje está tudo bem, ela está bem. Foi a fé que a sal-vou, até porque as crises iam e vi-nham constantemente. Depois da promessa, ela não teve mais nada. Nunca mais teve crises. Hoje tem 30 anos e depois do nascimento do primeiro filho, que tem seis anos, nunca mais a doença vol-tou. E que continue assim. É isso.Posso dizer que essa mulher que passou por tudo isso e que qua-se teve momentos de depressão é

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minha Madrinha. Minha família, mesmo que distante, assim como eu sentia a tristeza que era tudo o que estava acontecendo e ver que foi dada a volta por cima, que hoje ela tem uma vida tranquila tem dois fi-lhos e que a família toda está bem, deixa-nos e deixa-me muito feliz.Assim com o testemunho de al-guém tão próximo e poder mos-trar para outras pessoas que sim, existe uma saída, tem sim como se tratar e viver uma vida “nor-mal” que termino essa matéria.

por Anderson Almeida

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foto: Mariana Smânia

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