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REVISTA O GLOBO O 16 DE MARÇO DE 2014 CIDADE " Um muro entre nós INSTALAÇÃO COLETIVA EM RUA DE LARANJEIRAS REÚNE FRAGMENTOS DE TEXTOS LITERÁRIOS, SELECIONADOS POR GRUPO DE AMIGOS Se alguma página do Paginário estiver daátâcada.Ilegfvel-ou faltando, seja por conta da chuva, do vento, do tempo ou qualquer outro motivo, você pode s: substítuí-la por uma do seu gosto. Vivi assim alguns dias; volúva,mo1 pu:. c~ noite IdC'nlro. DorrniamoS 110 quarto dela, onde eu tic~v"" ocondido ate ;moi~ tecer. Simone me traZ;:! comida.A mie dela. a quem (:aluva21.110- ridadC (no dia do escincWo. ma) começou a gritaria l" ela $.2iu de c.Ul). aceitava a situ:.çio. Quanto aos criados.já fui" muito tem- pO que o dinheiro os nuntinh •• submissos a Simone. G~s ôI eles. ficamos conhecendo 2$ circunstânci:u da inU'rnaçio de' Marcela e o nome da ~ de uúde oride da estava redusa.pesde o primeiro dia. nossa atenção se voltou exclusiva- mente para ela, p2ra'- a SU2 lcccura. a solidão de seu corpo, para as p01Sibilidades de enconerá-la, de aju<ü-la a fugir, talvez. Um,4~centd pegar Simone 2. (orç.a. . _l.eJc~!- gritou ela, - Olhe. meu querido. assim não me interessa, na cama, como uma nüe de fanúlia! Com M2rcela... . - Como? - respondi decepcionado, mas concordando com eu. . . ." . Aproximou-se de novo, afetuo5amen~e,e disse: com um tom / 5Onhador. . - quando ela nos vir fazendo amor ... vai fazer xixi ... mim . ~ Senti um líquido encantador escorrer por minhas pernas. Quando ~ termínoe, foi minha vez de inundá-Ia. Levantei-me, sUbi até Na cabeça e enchi seu rosto de.porra. Suja, ela gozou como 'louca, AspíRva, feliz, nOS$O cheiro. - Você cheira a Marcela - disse. com o nariz debaixo do . meu eu ainda úmido. Éramos tomadoS com fieqüêncu por um desejo doloroso de fazer amor. Mu não nos passava pela ~abeça li idéia de fazê-lo sem eSperar MarccI.a, cujos gritos não p.aravam de excitar nossos ouvi- dos e permaneciam ligados aos nossos desejos.rm.is tu~. N~ &.f.O>i.6es'lJAíA'ut- 'U;$.,....<4. "" OU\!)" Instruções para chorar Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de chorar, entendendo por isto um choro que não penetre .n~ escândalo, que não insulte o sorriso com sua semelhança desajei- tada e paralela. O choro médio ou comum consiste numa contr~~ ção geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lâgri- mas e muco, este no fim, pois o choro acaba no momento em que a gente se assoa energicamente. . .. Para chorar, dirija a imaginação a você mesmo, ~ se isto lhe for impossível por ter adquirido o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca. Quando o choro chegar, você cobrirá o rosto com delicadeza, usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças cho- rarão esfregando a manga do casaco na cara, e de preferência num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos. •.•••.. 1.-10 ~'f;to'C.. \\I~t\tI\ TI ~~60\ei f W f~~ . Basta fazer uma cópia da página de sua escolha, colorir seu trecho favorito, escrever o nome do livro e do autor Iv . na parte de baixo da págin.!'.e colá-Ia aqui, por cima daquela que está danificada ou faltando. pélginario,tumblr,com )7 ria, os trechos de "Moby Díck" de Herman Melville; "Macunaíma', de Mário de Andrade; "Um copo de cóle- ra'; de Raduan Nassar: "Histórias de cronópios e famas'; de Julio Cortázar; "Flícts'; de Ziraldo; e ((O livro das ig- norãças" de Manoel de Barros (entre muitos, muitos outros). A instalação coletiva a céu aberto chama-se "Pagínárío" e parte de uma ideia simples do escritor e tradutor Leonardo Vílla-Forte, de 29 anos: ele pediu que cerca de 20 amigos esco- lhessem passagens dos seus livros preferidos, xerocassem e as envias- sem para colar no muro descascado que já namorava há algum tempo pa- ra a empreitada. O resultado é hípno- tizante - impossível continuar con- versando com Leonardo da mesma forma depois que se lê o verso ((É im- possível viver e pensar ao mesmo tempo'; do autor português Gonçalo -p18- M. Tavares, grifado na parede, ao seu lado, na página do livro ((Ohomem ou é tonto ou é mulher'; que um dos ami- gos selecionou. Ou depois de bater os olhos no seguinte trecho da "Carta ao pai'; de Franz Kafka: ((Oque é vivo não comporta cálculo." - Eu quis inserir outros textos na ci- dade que não fossem só os publicitári- os. Acho um absurdo a onipresença dessas frases imperativas: faça isso, se- ja assim, vista aquilo - observa Leo- nardo, lembrando de uma vez em que viu um anúncio num ponto de ônibus. - Quando li a frase "ouse ser brasilei- ro'; achei que tinham passado do limi- te. Como assim "ouse ser brasileiro"? O que significa esse comando? Será que esses textos passam despercebidos pe- las pessoas? Foi a partir daí que ele teve a ideia da colagem a muitas mãos. Batizou a ideia de "Paginário" deu-lhe um endereço POR MARIANA FILGUEIRAS [email protected] FOTOS CAMILLA MAlA á mais ou menos um mês, quem entra na Rua Gene- ral Glicério, em Laranjei- ras, pode ter a cabeça acertada por um golpe en- furecido do rabo da baleia Moby Dick. Pode assistir ao parto de Macunaíma. Pode ser interrompido pela discussão voraz do casal prota- gonista de "Um copo de cólera': Ou pode aprender a chorar seguindo as instruções do argentino Cortázar. Fe- chando bem os olhos, dá até para pro- curar Flicts no céu ou, não encontran- do, descer e virar árvore com o poeta Manoel de Barros. No dia 15 de fevereiro, foram cola- das no muro que fica na altura do nú- mero 15, onde funciona uma mercea-

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REVISTA O GLOBO O 16 DE MARÇO DE 2014

CIDADE

"

Um muro entre nósINSTALAÇÃO COLETIVA EM RUA DE LARANJEIRAS REÚNE FRAGMENTOSDE TEXTOS LITERÁRIOS, SELECIONADOS POR GRUPO DE AMIGOS

Se alguma página do Paginário estiver

daátâcada.Ilegfvel-ou faltando, seja por

conta da chuva, do vento, do tempo ou

qualquer outro motivo, você podes:

substítuí-la por uma do seu gosto.

Vivi assim alguns dias; volúva,mo1 pu:. c~ noite IdC'nlro.

DorrniamoS 110 quarto dela, onde eu tic~v"" ocondido ate ;moi~tecer. Simone me traZ;:!comida.A mie dela. a quem (:aluva21.110-ridadC (no dia do escincWo. ma) começou a gritaria l" ela $.2iu de

c.Ul). aceitava a situ:.çio. Quanto aos criados.já fui" muito tem-

pO que o dinheiro os nuntinh •• submissos a Simone.

G~s ôI eles. ficamos conhecendo 2$ circunstânci:u da

inU'rnaçio de' Marcela e o nome da ~ de uúde oride da estava

redusa.pesde o primeiro dia. nossa atenção se voltou exclusiva-mente paraela, p2ra'- a SU2 lcccura. a solidão de seu corpo, para asp01Sibilidades de enconerá-la, de aju<ü-la a fugir, talvez.

Um,4~centd pegar Simone 2. (orç.a. .

_ l.eJc~!- gritou ela, - Olhe. meu querido. assim não meinteressa,na cama, como uma nüe de fanúlia! Com M2rcela.... - Como? - respondi decepcionado, mas concordando comeu. . . ." .

Aproximou-se de novo, afetuo5amen~e,e disse: com um tom /5Onhador.

. - quando ela nos vir fazendo amor ... vai fazer xixi ...mim .

~ Senti um líquido encantador escorrer por minhas pernas.Quando ~ termínoe, foi minha vez de inundá-Ia. Levantei-me,sUbiaté Na cabeça e enchi seu rosto de.porra. Suja, ela gozoucomo 'louca, AspíRva, feliz, nOS$O cheiro.

- Você cheira a Marcela - disse. com o nariz debaixo do. meu eu ainda úmido.

Éramos tomadoS com fieqüêncu por um desejo doloroso defazer amor.Mu não nos passava pela ~abeça li idéia de fazê-lo semeSperar MarccI.a, cujos gritos não p.aravam de excitar nossos ouvi-dos e permaneciam ligados aos nossos desejos.rm.is tu~. N~

&.f.O>i.6es'lJAíA'ut-'U;$.,....<4. "" OU\!)"

Instruções para chorar

Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira corretade chorar, entendendo por isto um choro que não penetre .n~escândalo, que não insulte o sorriso com sua semelhança desajei-tada e paralela. O choro médio ou comum consiste numa contr~~ção geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lâgri-mas e muco, este no fim, pois o choro acaba no momento em quea gente se assoa energicamente.. . .Para chorar, dirija a imaginação a você mesmo, ~ se isto lhe forimpossível por ter adquirido o hábito de acreditar no mundoexterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos doestreito de Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca.

Quando o choro chegar, você cobrirá o rosto com delicadeza,usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças cho-rarão esfregando amanga do casaco na cara, e de preferência numcanto do quarto. Duração média do choro, três minutos.

•.•••..1.-10 ~'f;to'C..

\\I~t\tI\ TI ~~60\ei f W f~~

. Basta fazer uma cópia da página de sua

escolha, colorir seu trecho favorito,

escrever o nome do livro e do autorIv .

na parte de baixo da págin.!'.e colá-Ia

aqui, por cima daquela que está

danificada ou faltando.

pélginario,tumblr,com

)7

ria, os trechos de "Moby Díck" deHerman Melville; "Macunaíma', deMário de Andrade; "Um copo de cóle-ra'; de Raduan Nassar: "Histórias decronópios e famas'; de Julio Cortázar;"Flícts'; de Ziraldo; e ((O livro das ig-norãças" de Manoel de Barros (entremuitos, muitos outros).A instalação coletiva a céu aberto

chama-se "Pagínárío" e parte de umaideia simples do escritor e tradutorLeonardo Vílla-Forte, de 29 anos: elepediu que cerca de 20 amigos esco-lhessem passagens dos seus livrospreferidos, xerocassem e as envias-sem para colar no muro descascadoque já namorava há algum tempo pa-ra a empreitada. O resultado é hípno-tizante - impossível continuar con-versando com Leonardo da mesmaforma depois que se lê o verso ((É im-possível viver e pensar ao mesmotempo'; do autor português Gonçalo

-p18-

M. Tavares, grifado na parede, ao seulado, na página do livro ((Ohomem oué tonto ou é mulher'; que um dos ami-gos selecionou. Ou depois de bater osolhos no seguinte trecho da "Carta aopai'; de Franz Kafka: ((Oque é vivo nãocomporta cálculo."- Eu quis inserir outros textos na ci-

dade que não fossem só os publicitári-os. Acho um absurdo a onipresençadessas frases imperativas: faça isso, se-ja assim, vista aquilo - observa Leo-nardo, lembrando de uma vez em queviu um anúncio num ponto de ônibus.- Quando li a frase "ouse ser brasilei-ro'; achei que tinham passado do limi-te. Como assim "ouse ser brasileiro"? Oque significa esse comando? Será queesses textos passam despercebidos pe-las pessoas?Foi a partir daí que ele teve a ideia da

colagem a muitas mãos. Batizou a ideiade "Paginário" deu-lhe um endereço

POR MARIANA [email protected] CAMILLA MAlA

á mais ou menos um mês,quem entra na Rua Gene-ral Glicério, em Laranjei-ras, pode ter a cabeçaacertada por um golpe en-furecido do rabo da baleia

Moby Dick. Pode assistir ao parto deMacunaíma. Pode ser interrompidopela discussão voraz do casal prota-gonista de "Um copo de cólera': Oupode aprender a chorar seguindo asinstruções do argentino Cortázar. Fe-chando bem os olhos, dá até para pro-curar Flicts no céu ou, não encontran-do, descer e virar árvore com o poetaManoel de Barros.No dia 15 de fevereiro, foram cola-

das no muro que fica na altura do nú-mero 15, onde funciona uma mercea-

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. autor da "obra" e ).' textos tOTT} tre~'hos em

d~staq"ue~àesquerda)

virtual (o tumblr paginario. tumblr.come a página homônima no Pacebook),imprimiu as páginas enviadas, fez umaprimeira em outubro passado no Cen-tro (na Praça Cruz Vermelha) e partiupara a segunda, em Laranjeiras. Pediuautorização ao dono da mercearia e aosíndico do prédio ao lado. Diluiu umbocado de cola branca num balde d'á-gua, pegou escadas emprestadas emontou o quebra-cabeça de excertosna parede, grifando com marca-textoscoloridos as frases mais impactantes.- Tem um Rílke, um Milton Ha-

toum, pelo menos dois Paulo Henri-ques Bríto, e várias outras coisas quevale a pena ir procurando. Tem um re-cado dizendo que se alguma daquelaspáginas estiver danificada pela chuvaou pelo vento ou pelo tempo você (eu,ele, ela, a gente, aquela pessoa ali, pas-sando ...) pode colar uma outra da qualvocê goste, marcando em cor a parte a

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se destacar e colocando o nome do au-tor e do livro. É tão bom! - escreveuem sua página na internet o ator e dire-tor Enrique Diaz, morador do bairro,assim que topou com a arte urbana pe-la primeira vez.A ideia agora é fazer outros "paginá-rios" na cidade, e para isso Leonardo jáestá de olho no muro que fica na saídado metrô Siqueira Campos, em Copa-cabana, em um na Gávea e em outro noHumaitá. Também já recebeu um con-vite para realizar uma versão pocket naFosfobox, durante a festa ObaOba, quevai convidar dez artistas para fazer in-tervenções na casa para comemorar osdez anos do espaço.- As crianças adoram. Os turistas ti-

ram fotos. Muita gente já veio me dizerque descobriu um livro bacana depoisde ler um trecho aqui - diz Leonardo,formado em Psicologia e mestrandoem Letras na PUC, que até arrisca uma

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tese a partir dos textos que recebeu. -Notei muita coisa nova. Apareceram osclássicos, claro, vieram páginas de"Dom Casmurro'; "Ovelho e omar'; Sê-neca. Mas há muita leitura contem-porânea, como Marjane Satrapi("Frango com ameixas"), Adriana Lu-nardi ("Vésperas"), valter hugo mãe("O filho de mil homens").Seu preferido é um trecho da peça"Muito barulho por nada'; de WilliamShakespeare, no qual o personagem Be-nedicto diz a Beatriz: "Tue eu somos in-teligentes demais para namorar em paz';ao que responde Beatriz: "Não parece,por essa confissão; não há homem inte-ligente entre os vinte que se elogiam a simesmos:' Não por simples identificaçãopessoal, mas pela surpresa:- Você começa a pensar de que ma-

neira aquele texto foi parar nas mãosde quem te enviou, como se tornou seupreferido. Émuito interessante ...•