revista philipéia # número 01 (07/2013)

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N 0 01 ANO 01 / NÚMERO 01 / JULHO DE 2013 Philipéia informação + crítica + artes

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A Revista Philipéia é uma publicação independente de cultura, informação e artes.

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Page 1: Revista Philipéia # Número 01 (07/2013)

N001

ANO 01 / NÚMERO 01 / JULHO DE 2013

Philipéiainformação + crítica + artes

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Revista Philipéia / julho de 2013

Coordenação editorial:Ana Monique MouraWênio Pinheiro Araujo

Colaboradores permanentes:Beano RegenhauxJomar Ricardo SilvaRomero Venâncio

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Philipéiainformação + crítica + artes

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ETÉREO

os homens

que nunca

amei

nunca

souberam

o quanto

o amor

que nunca

lhes dei

soube ser

eterno

*Janayna Barão é poeta.

Poema Janayna Barão*

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Imagem: Google (autor não identificado)

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Conto Ângela Calou*

ANTOINE VOLTOU A PÉ

Antoine voltou, sem que nunca eu soubesse como. Verifiquei várias vezes seu triste fim, toquei com os dedos o líquido verde que lhe es-corria pelo nariz, fechei seus olhos para que não assustasse ninguém a vitrina adoecida de sua morte encomendada pelo costume ne-gro de meu espírito.

Colhi as flores, fiz o café, um pouco amargo, é certo. Levei aos ombros a pá mais pesada para garantir o

profundo do lugar de desova de seu corpo inoperante. Eu mesma. Tudo. Inclusive coisas peque-nas como o enlaçar dos dedos sobre o peito fatigado da luta con-tra o travesseiro que usei, outrora, para lhe roubar a corrente de ar. Inclusive a camisa branca com listras pretas e o suspensório sobre a calça xadrez, onde escon-dida no bolso direito, encontrava-se ainda a caderneta amarela que, por anos, salvara no fenômeno as ideias de Antoine, lá, embaixo da escada, à luz imóvel do velho abajur.

Estava morto, nada vivo teria lá-bios tão frios. Ocorre-me, porém, a cruel possibilidade da dúvida, a faca cega do engano afiada na pele, na ausência de pedra-pome. E se Antoine me assistisse com um meio olho aberto, de soslaio, rindo por dentro de minha crença na eficácia de minhas próprias mãos? E se tudo não passasse de erro? E se o frio nos lábios fosse

Imagem: Google (O louco / Maurício Takiguthi)

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coisa dos meus lábios apenas, impressão de minha refratária condição? A morte era um rato metafísico, roedor espectral que rondava agora a minha carne, pois é sabido que, aquele que escapa a uma emboscada, segue tentado invariavelmente a reproduzi-la na condição invertida de arguto algoz. Antoine não me sorriria, pois tam-bém é sabido que, quem não morre de susto, segue tentado a reproduzir no outro esse mesmo susto e, assim, quem espera, como eu, cai num soluço implícito que por nada quer passar – como se soubesse num lugar interno já ser essa hora coisa marcada.

Restava-me a capitulação. De-pois de carregar um corpo morto com o dobro do meu peso por ho-ras, dias, talvez semanas, meses de presença morta, alucinógena, debilitada, tive a impressão de que encontrara um lugar distante. Percebo, agora, que era, pelo con-trário, muito perto, pois vejo que Antoine voltou a pé.

Devia eu ter-lhe quebrado as duas pernas no exercício de minha mal-dade, vê-lo sofrer, banhada de água doce e de veneno e, desse

modo, ter adiado o estranho pro-blema, pois com o trauma de seus membros, ele certamente demora-ria. Não pensei na hora, e assim pago por isso: será este então o meu fim? Nego-me, no entanto, a pagar por isso: em minha bolsa de mão, a solidão de uma última moeda. Aquela que se destina ao jogo de cara ou coroa que terei de fazer a cada bifurcação.

Meus cabelos começaram a cair, meu corpo dança outra vez no vestido de flores que, de repente, pareceu bem maior, como Alice e os pedaços de sonho que a faziam esticar para fora e para dentro. Em meu caso, porém, são pedaços de um pesadelo. Antoine voltara e, mesmo se nunca fosse imagem na minha retina, velado em uma sus-peita obsessiva, seria mais que possibilidade: a irrefutável certeza do assombramento de calafrios.

*Ângela Calou é escritora. Este conto foi extraído de seu livro “Eu tenho

medo de Górki & outros contos”, 2011.

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Leitura Ana Monique Moura*

A FIGURA HEROICA:UMA OBSERVAÇÃO COM O POETA LÚCIO LINS

“Afuera hay sol.Yo me visto de cenizas.”

Alejandra Pizarnik

Que atire a primeira pedra, o morador de qualquer cidade litorânea, que não se deparou com algum velho homem perambulando bêbado e solitário na noite frente à costa do mar.

Quem eleva esse fato, que já pode ser colocado como um causo trágico, é o nosso poeta pessoense Lúcio Lins no poema “História de um vencido”. Diga-se de passagem, título mais sugestivo que esse não me viria a mente… quiçá seja o que vem na maioria das vezes em nossa mente quando vemos aquele velho caminhando bêbado na praia…

Este mesmo velho, que em verdade é uma abundância de velhos, é o homem que, com uma vida carregada de exper-iências e narrativas, agora sai a fazer seu pequeno trabalho pessimamente re-munerado e constantemente toma sua pinga barata, ardente, para acalentar o coração sôfrego e sensível e reforça-se como um homem firme, que suporta sua tragédia sorrindo…

E o Velho veio para o labor cotidiano,Triste, do alegre Sol ao grande globo quente

Por seis horas seu braço empenhado na luta,Fez reboar pelo solo, alta e descompassadaA dura vibração incômoda da enxada,Rasgando, do agro solo, a superfície bruta.

Mas o braço cansou! Trabalhou… e o trabalho-Do Eterno Bem motor principal e alavanca-Arrancara-lhe a Crença assim como se arrancaDe um ninho a seda branca e de uma árvore o galho!

Sangrou-lhe o coração a saudade da Aurora!-O Hércules que ele fora! O fraco que ele hoje era!E surpreendido viu que um abismo se ergueraEntre o fraco que era hoje, e entre o Hércules de outrora!

Lúcio Lins parece peremptório, deixa em um só verso: “Sangrou-lhe o coração a saudade da Aurora!” Esta tomada é o motivo para se falar no herói de outrora que agora cambaleia bêbado.

Noite! O silêncio vinha entrando pelo mundoE ele, lúgubre e só, trôpego e cambaleandoFoi-se arrastando, foi aos poucos se arrastando,Para as bordas fatais de um precipício fundo!

O interessante aparece agora sob uma perspectiva cromática. Lúcio Lins fala sobre as cinzas para se referir à morte e a inexistência dos campos da aurora, e ao azul do mar, que aqui significará tam-bém uma espécie de morte. Neste sen-tido, todas as cores correspondem a um

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significado unificado, isto é, se referem a uma alma perdida e vencida, fadada a seu fim. Aqui está vívida a história de um vencido.

E a história de um vencido não é outra coisa que a história de um herói.

O sentido de herói só ganha significado na medida em que existe um passado, um tempo. A figura do herói é a figura do “alguém que foi”… Neste aspecto o herói é uma espécie de figura sempre fugidia e sua contemplação se dá tão somente no terreno da memória. Em outros termos, o estatuto do herói só existe mediante uma memória contem-plativa vivenciada.

O herói que se contempla só o faz na medida em que pensa no “ser que foi” e a postura de pensar no “ser que foi” implica em uma atitude pós-heroica que por sua vez determina ou dar sentido a uma atitude heroica. A figura do herói, assim, é sempre trágica.

Quis um momento ainda olhar para o Passado…E em tudo que o rodeava, oito vezes, funéreoHorrorizado viu como num cemitérioCadáveres de um lado e cinzas de outro lado!

É aqui que as cores adentram-se numa relação fluídica, entre negação e afir-mação. A cores, por fim, correspondem a um cenário dialético do trágico.

Viveria! E a fecunda e deleitosa searaVerde dos campos, onde arde e floresce a Crença,Compensaria toda a sua dor imensaTal qual o Céu a dor de Cristo compensara!

Essa dialética do trágico, com toda certeza diferente da dialética trágica que Goethe defendia, segundo a ideia de que o trágico não representava recon-ciliação, mas precisamente próxima da figura trágica já pensada por Friedrich Vischer ou Nietzsche, segundo a ideia de que o trágico pode significar afir-mação e reconciliação, se revela tam-bém, para além das cores, na atitude do velho a ermo…

Num instante viu tudo, e compreendendo tudo,Quis fazer um esforço – o último esforço, e o braçoPendeu exangue, o peito arqueou-se, o cansaçoEmpolgara-o, e ele quis falar e estava mudo!

Mudo! E a quem contaria agora as suas mágoas?!E trágico, no horror bruto da despedidaAbraçou-se com a Dor, abraçou-se com a VidaE sepultou-se ali no coração das águas!

Este momento trágico corresponde in-teiramente à instância última da atitude heroica. Sem um fim no qual está ven-cido, o herói não existe. Só há vida para herói em sua realização trágica, em seu passado e, mais profundamente, em seu fim, assim como só há sentido para o santo, após qu’ele viva ou tenha sido um mártir.

Aqui recordo da obra de Ernest Hemin-gway, “O velho e o mar”, uma obra otimista, que traz essa passagem: “…o homem não foi feito para a derrota. O homem pode ser destruído, mas não derrotado”. Mas não seria a destruição tão mais forte que a derrota? A destru-ição é aniquilamento, a derrota não. O problema parece conceber a derrota

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como uma recusa do herói. Mas é esta recusa que o afirma, na memória. A de-struição faz desaparecer, a derrota pro-voca a memória. Isso não implica dizer que o herói almeje a derrota. Não é isso. Antes, ele reconhece a derrota, como natureza da existência, mas valente-mente, ainda assim com ela, tenta ne-gar derrotas menos aceitáveis. Neste aspecto, a derrota heroica se revela como uma espécie de vitória, porque nasce aqui a memória. Ela é, em pouco ou grande grau, histórica.

Posteriormente, no poema, e digo in-spirada por Émille Cioran, a música chega para fazer fingir a dor ser con-soladora… é uma poesia sonora que mente sobre a vida e no entanto é mais verdadeira que ela. É toda a mentira da existência, mas melhorada.

Cantavam muito ao longe uns carmes doloridos!Eram tropeiros, era a turba trovadoraQue assim cantava, enquanto a Terra VencedoraCelebrava ao luar a Missa dos Vencidos!

Como disse Cioran, “A nostalgia da morte eleva todo o universo ao nível da música”. E lembrar com prazer o herói vencido não seria sentir nostalgia da sua morte?

E o cadáver, a toa, a flux d’água, flutua!Ninguém o vê, ninguém o acalenta, o acalenta…Somente entre a negrura atra da terra poentaAlguém beija, alguém vela o cadáver: a Lua!

Por fim, o cinza e o azul, cores aqui casadas, se expõem no cenário trágico do Herói, que por estar morto, vive.

Alguns desses velhos bêbados apare-cem na costa ou no cais, exercem a heroicidade enquanto pensam sobre seu fim, derrotados, perante o azul mar abaixo da lua cinza.

E, reitero o verso,

Mudo! E a quem contaria agora as suas mágoas?!

O velho bêbado, que eu e Lúcio Lins ob-servamos, está ali frente ao mar, sente sede de contar suas mágoas… recon-hece o derrotismo, do qual nossa espe-rança ingênua, penosa e idealista, mui-tas vezes, foge.

O poema de Lúcio Lins traz um herói que se pensa dentro de seu fim, o que nem sempre é tarefa prazerosa em vida. Isto me traz à lembrança também a passagem de “A morte de Danton”, de Buchner, que declara: “O local deve ser seguro, sim, mas para a minha memória, e não para mim; o túmulo me dá mais segurança… Mas no esconderijo minha memória sobrevive e me mata.”

O herói não é nenhum otimista sonhador, sempre tem sido uma figura trágica, cuja luta foi movida por um valente e aguer-rido pessimismo diante das iniciativas estéreis do cotidiano.

*Ana Monique Moura é integrante do Doutorado em Filosofia – UFPB. Autora do

livro “Entre Kant, filosofias & arte” (Sal da terra, 2012) e “O olho e o pensamento”, no prelo.

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Imagem: Google (O velho e o mar / Aleksandr Petrov)

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História & Arte Wênio Pinheiro Araújo*

PARA NÃO ESQUECER DUCHAMP… E LEMBRAR DOS OUTROS

Uma significativa obra da primeira meta-de do século XX possível de identificar questões relativas à arte não objetual é a Fonte (1917), de Marcel Duchamp. Apesar de Duchamp fazer uso de um objeto (um mictório de porcelana), o que importa não é mais o objeto em si, e sim as questões suscitadas pelo uso de um elemento alheio ao universo da arte.

Ou seja, o que é pertinente ali é a ideia de deslocar um objeto do seu espaço familiar (no caso o banheiromasculino) e apresentá-lo como obra de arte em uma exposição. Configura-se assim a importância da obra não pelo que ela é enquanto objeto, mas sim pela ideia de deslocamento que sua presença sugere.

No decorrer do século XX, as ideias sus-citadas por Duchamp foram de influên-cia primordial para artistas que seg-uiram um caminho que se caracterizou acima de tudo por questionar a natureza da arte, tendo na elaboração do con-ceito, da ideia, o ponto central do fazer artístico. Uma e três cadeiras (1965),

de Joseph Kosuth, exemplifica bem essa progressão do objetual rumo ao não objetual. Na obra Kosuth apresenta três elementos: uma cadeira, uma foto da cadeira e a definição de “cadeira” no dicionário, levando-nos assim a refletir sobre a progressão do real rumo ao con-ceitual, e sobre as conexões existentes entre ideia, representação visual e rep-resentação verbal.

O próprio Kosuth, artista fundamental para o aprofundamento da definição de arte conceitual, declarou em 1969: “Ser um artista hoje, significa questionar a na-tureza da arte.”. Outro importante artista conceitual, Sol Lewitt, em um artigo de 1967 escreveu: “é feita para envolver mais a mente do espectador do que seu olhar ou suas emoções”, e disse ainda: “a ideia em si, mesmo que não se torne visual, é uma obra de arte tanto quanto qualquer produto acabado”.

Wênio Pinheiro Araújo é artista visual e graduando de licenciatura em

Artes Visuais pela UFPB.

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Imagem: Google (Fonte (1917) / Marcel Duchamp)

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Música Jomar Ricardo Silva*

SIVUCA PENSADOR E POETA

A música Cabelo de milho (1980) de Sivuca e Paulinho Tabajós traz a per-cepção dialética dos fenômenos em sua composição, cuja letra considera-mos um poema que expressa a situ-ação do homem diante da realidade. Dizia Mario Quintana: “Ser poeta não é uma maneira de escrever. É uma maneira de ser”. E a essa maneira de ser e perceber o mundo em sua volta que acrecentamos ao músico de Ita-baiana uma verve filosófica. Para o pensador italiano Antonio Gramsci as manifestações culturais trazem uma filosofia espontânea e ele afirmava que “deve-se destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito difícil [...] e atividade in-telectual própria de uma determinada categoria [...] de filósofos profissionais e sistemáticos”. Logo, concluiria “que todos os homens são ‘filósofos”.

A canção começa com a constação da existência de água no coco e o se-cura do riacho: “Tanta água no coco e o riacho tão seco e só / o cansaço na rede e uma sede de se estranhar”.

Numa incursão pelo método hegeli-ano, a apreensão da realidade pela consciência inicia-se pela essência, enquanto negação do ser, que em virtude disso deixa-se aparecer. A im-ediaticidade das coisas gera a inquie-tação da consciência que busca além da certeza sensível, e inconformada remete os elementos ao entendimen-to que se faz conhecimento pela força do conceito. Coco cheio, riacho vazio, a rede em que se descansa apanha o cansaço e torna-se prescin-dível quando o cansaço cessa. Cansaço/descanso, ser e nada se negam mu-tuamente, em que um fator traz a negação do outro. A sede, impulso de caráter instintivo, deixa a órbita da naturalidade e, ao se estranhar o que é natural, passa-se a concebê-la no campo da representação e, portanto, na cultura.

Em busca de sua auto-afirmação a consciência percorre o caminho tam-bém da religião: “Um olhar pra parede e uma prece pro céu chorar”. O olhar pra parede é uma deparação com o

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vazio do próprio ser, que não é um nada, mas nada do ser. Um nada de conteúdo, determinado. Para Hegel, “tudo que tem realidade é um momen-to do Absoluto” e este Absoluto pos-sui sua identidade indeterminada e não pode ser concebido, mas apenas sentido. Longe dos tratados teológi-cos, as pessoas humildes expressam a fé pelo sentimento arraigado e in-defectível, sem precisar de nenhuma argumentação razoável de prova da existência de Deus.

No verso “Se pudesse o céu chover só a metade do que chove no meu coração / Dava um lago pra beber e o chão virava neve de tanto algodão”. A chuva que cairia invocada pela prece saciaria a sede estranha e re-sultaria em produção de algodão. Isso porque tanto na intuição de Sivuca e quanto na elucubração de Hegel, o espaço começa com o quantitativo. Expressões tais como “metade do que chove” e “lago pra beber”, indicam que a natureza surge pela quantidade e desse modo, pontua uma parte do todo do coração. O “lago”, na con-dição de recipiente, apanharia uma porção limitada da precipitação plu-viométrica indefinida. Afirmava Hegel que o Espaço “é em geral pura quanti-dade, não mais apenas esta [quanti-dade] como determinação lógica, mas como sendo imediata e exterior”. To-davia, considerado a possibilidade da intuição, o espaço abstraído do tempo é quantitativo, e na sua relação com o tempo, percebe-se nele brotar ele-mentos qualitativos, pois ele não pode ser totalmente abstrato, contínuo e geométrico, mas um espaço físico e repleto.

Então Sivuca revela uma concepção de espaço dialético entre o abstrato e o concreto, entre a Ideia absoluta e o particular, entre o qualitativo e o quantitativo, quando acerta no final do verso que o chão “virava neve de tanto algodão”. O poeta de Itaba-

Imagem: Google (Sivuca / autor não identificado)

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iana acende de forma lírica a fogueira de discussão travada na história da filosofia entre metafísicos e físicos, em que os primeiros defendem o espaço relativo, entendido como uma conse-quência das coisas espaciais que lhe dariam sustentação. Diria Hegel, a partir de Leibniz, “que o espaço é uma ordem das coisas, a qual em nada at-inge os números, e que ele tem suporte nas coisas [...].” Enquanto os segundos defendem o espaço absoluto porque este precede as coisas e seria condição de sua existência. Ou na afirmação de Hegel “caso se diga que ele é algo substancial por si, então deve ser como uma caixa, que, mesmo com nada dentro, se conserva, contudo, como algo particular por si”. Assim, na canção, o chão representa o absoluto que pode se perder de vista na divisa do horizonte, mas adquire dimensão relativa da percepção do algodão que o preenche o espaço vazio do espaço geométrico, tornando-o físico.

O quantitativo tornou-se qualitativo at-ravés de um processo natural “Via o trapiá crescer” e do processo do trabal-ho “o gosto de rever moringa na janela / tanto milho pra colher de nunca mais se ver o fundo da panela”. Os homens produzem cultura em suas relações com a natureza e com outros homens. Enquanto a natureza age silenciosa-mente pelo crescimento do fruto, o homem trabalha fazendo cultura na manufatura da moringa para reserva

d’água. O cabelo de milho que reluz com o brilho da luz do sol, passou por fases de transformação até chegar a sua fase de maturação, chegando ao ponto de ser colhido. Ao encher o es-paço da panela vazia, tem-se o fim da tensão criada pela escassez e sua su-peração estaria na opulência, resolvi-da na satisfação das necessidades de sobrevivência.

Oportuno se faz mencionar Paulo Freire que identificou a precedência da leitura do mundo à leitura da palavra. Para o educador nordestino o signo – “a palavra”, “a letra”, “o texto” – es-taria impregnado nas cores da natu-reza que se modificam na medida em que seus frutos, a exemplo da manga, amadurecem. O poeta dizia: “o verde da manga espada verde, o verde da manga espada inchada; o amarelo es-verdeado da mesma manga amadure-cendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre essas cores, o desenvolvimento do fruto, a resistência à nossa manipu-lação e seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação amolegar.” Aprendemos desse modo com o educador que se aprende observando o movimento da natureza, que não nos permite ver o processo, muito lento por sinal, mas apenas seu resultado de amadurecer através das cores que indicam a mudança. Pri-meiro veio a constatação, depois uma

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leitura do aprimoramento do fruto e, por fim, um conhecimento conceitual de “amolegar”.

Hegel, conhecido pelo estilo intrin-cado, escreveu a metáfora da flor em agradável linguagem poética: “O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o re-futa; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lu-gar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, to-dos são igualmente necessários.” Na figura apresentada, o botão, a flor, o fruto são momentos de ultrapassagem contínua. Apesar de haver negação das várias partes constitutivas, numa mesma relação de superação suces-siva das fases, o fruto encontrava-se em potência no botão, que foi suprim-ido pela flor e da qual se fez nascer o fruto, numa ordem natural das coisas.

Cada um a seu modo, nas especifi-cidades de seus ganha-pães, Sivuca com a música, Hegel e Paulo Freire com a filosofia, demonstram a con-cepção de Mario Quintana que ser poeta é uma maneira de sentir a vida. Os pensadores profissionais mencio-nados, sem perder a rigorosidade do método de perscrutar a realidade, ex-

pressaram essa condição ao analisar de forma lírica, a dialética incrustada na própria vida. Por sua vez, Sivuca e Paulinho Tabajós se filiaram ao postu-lado de Antonio Gramsci de que “todos são filósofos”, ao trazerem ao som de uma linda poesia as contradições iner-entes a natureza. Trouxeram o saber pensado para a harmonia de acordes que enriquecem a razão e a sensibili-dade.

Jomar Ricardo Silva é Sociólogo e professor da UEPB.

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Crítica Roberto Bandeira*

CANGACEIRO SANGUINÁRIO

Lançado para apro-veitar o êxito (mere-cido) de “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” este “Cangaceiro Sangui-nário”, de Osvaldo de Oliveira, nada acres-centa ao “ciclo do cangaço”, cujos me-lhores exemplaressão mesmo os filmes de Glauber Rocha e o de Lima Barreto.

O filme de Osvaldo de Oliveira, apenas de sem novidades, pode ser visto pelos menos exigentes, há bons mo-mentos (a morte de Jofre Soares, o final) e um elenco apreciável: Maurí-cio do Vale, do filme de Glauber Ro-cha é a principal chamariz para o êxito comercial atual do filme, mas não con-segue atuação acima do nível médio; ao contrário, seu “Capitão Jagunço” em certos instantes beira o ridículo. Dos outros maior destaque para Isa-bel Cristina, Carlos Herbet e Sergio Hingst.

Realizado em cores, “O Cangaceiro Sanguinário” cumpre as suas funções de filme comercial.

Texto extraído da obra “Minicríticas de Cinema”, 1984.

Imagem: Google (frame do VHS / Dir. Osvaldo de Oliveira)

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Dança & Cinema Romero Venâncio*

O CORPO COMO CRIAÇÃO: LINGUAGEM E LIBERDADE OU SOBRE PINA

Em um pouco mais de duas horas um espectador atento fica mais do que des-lumbrado com a beleza e a plasticidade do documentário de Wim Wenders so-bre a coreógrafa Pina Bausch. Com uma direção impecável e um movimento de câmara que parece querer mimetizar os corpos em dança constante, o diretor fez uma obra prima que marcará o cin-ema documental para sempre. Filmado em 3D para melhor precisar os detal-hes dos movimentos dos dançarinos e dançarinas da Companhia Tanztheater de Wuppertal e deixando bem claro uma posição estética: a tecnologia não pode substituir a arte, Wenders nos co-move e nos politiza, sem tirar nem pôr. Porém, a arte de Pina Bausch não se limitava a apenas uma “forma de arte” (o que já era extraordinário o que fazia com os corpos em sua companhia), mas ensaiava sempre uma “disposição libertári a” de cada corpo e isto como se quisesse transmitir uma visão radi-cal de mundo. Era como se Pina tivesse compreendido e coreografado três conterrâneos seus: Marx, Nietzsche e Reich. Pina/Marx: um corpo não é mer-cadoria. Os corpos na genialidade da coreógrafa alemã não se limitam a mera exposição mercantil. Por isto sua arte

trabalhava com jovens e idosos sem a discriminação imposta pela moda das celebridades idiotas do nosso mundo contemporâneo. Os corpos da arte de Pina não vem das academias contem-porâneas de ginástica, mesmo que se-jam esguios e fortes, são corpos com inteligência e leveza. Numa academia contemporânea se prepara os corpos para mostrá-los enquanto negócio, seja o “negócio amoroso”, seja o “negócio da celebridade exibida e estúpida”, tan-to faz. Na lógica do mercado um corpo é um negócio. Na arte de Pina Bausch é uma potencialidade criativa e libertária. É um Marx num palco em movimento. Possivelmente a coreógrafa não tenha lido a obra O Capital (vol . I) do pensa-dor alemão comunista, pouco importa isto agora.

O que realmente conta é o que ela fez com os corpos ao mostrar como nin-guém um corpo massacrado, oprimido, mas altivo e em movimentos mágicos a ponto de nos fazer esquecer o sis-tema opressor destes mesmos corpos lá fora. Pina/Nietzsche: a coreógrafa herdou algo deste seu patrício que em muito aparece na sua maneira de diri-gir e inventar movimentos corpóreos, a

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saber, o corpo é linguagem e criação. Isto é Nietzsche! Uma “arrebatamento dionisíaco” nos acomete ao vermos uma obra como “Café Müller”. A paixão incontida, amargurada, violenta e sem-pre retornada na sua cruel e deliciosa forma de ser, tornou-se uma marca in-confundível desta apresentação única no seu gênero. Os corpos na imagi-nação de Pina não são meros corpos, mas dinamites (parafraseando o citado Nietzsche). Como afirmou um estudio-so brasileiro do pensador alemão: “Ni-etzsche era um leitor interessado em anatomia e fisionomia cerebral” (Oswal-do Gaicoia. In: Nietzsche como Psicól-ogo). Mas a anatomia em Nietzsche como em Pina está a serviço da eman-cipação e não do confinamento mer-cantil. Pina/Reich: na leitura de José Ângelo Gaiarsa, Reich foi o que Freud não viu, a saber, que o inconsciente é inteiramente visível nas expressões não-verbais das pessoas, no jeito de pôr algo, no modo de gesticular, no tom da voz ou na expressão do rosto, e ain-da que o inconsciente vai aparecendo ao longo das palavras. Tudo isto pode ser visível mesmo quando não há pala-vras. Aqui está a forma de coreografar

de Pina Bausch. Porém, vemos mais coisas de Reich no seu trabalho. É ex-atamente naqueles momentos em que percebemos os corpos em estado de gozo, onde desferem com seus movi-mentos um golpe mortal nas diversas formas de repressão cotidiana vivida por todos os corpos num mundo cada vez mais moralista e pobre em criativi-dade. O gozo como momento libertário, pensaria Reich vendo a dança da vida de Pina Bausch.

Por fim, destacamos uma elemento no documentário de Wim Wenders mar-cante enquanto cinema: a relação entre dança e cenário. As locações filmadas foram fabulosas e em lugares atípicos. Nas praças, ruas, metrô, penhascos. Foi muito interessante ver alguns tra-balhos de Pina Bausch sair do palco para lugares aparentemente sem vida e inóspitos ou desérticos. A transposição de lugares para a dança libertária da coreógrafa ampliou mais as possibi-lidades da dança enquanto a arte e a vida ficaram mais ricas. Um filme sober-bo sobre uma artista absoluta.

*Romero Venâncio é professor de Filosofia da UFS.

Imagem: Google (Win Wenders e Pina Bausch / autor não identificado)

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Cultura Beano Regenhaux*

TÉLOS, VOLUPTUOSIDADE E REDUNDÂNCIA

Acessando o site youtube, para ouvir uma canção do Belle & Sebastian, deparei-me com uma propaganda de um medicamento EFERVESCENTE utilizado para aliviar e inibir os sintomas da RESSACA, com jov-ens se divertindo a valer, com tal panaceia, para antes e depois de suas celebrações. Em uma conversa sobre sexualidade, com militantes do movimento LGBTT de João Pessoa, num famoso bar próximo a UFPB, entro em contato com algumas versões so-bre tal fenômeno, reducionistas, no mínimo, em que suas realizações da libido limitam-se a “ver a linguiça crescendo, saindo e entrando”, ou num “leilão” de pessoas sex-ualmente dispostas a arranjar encontros sexuais imediatos com total desenvoltura e o maior despojamento possível. Um dos presentes relatou sobre sua facilidade em obter um sexo orgíaco em eventos estu-dantis.

Pensei comigo sobre o que proporciona tais situações, qual catarse é desencadeada nestes sujeitos, que, a meu ver, é a mesma dos que reproduzem diariamente a mesma litania dos dias, cumprindo com prazos e horários empregatícios para, escatologi-camente, absorver a fruição de um gozo futuro no final de semana, chamada des-opilação ou na subsistência de sua célula-mater familiar. Qual a sutileza, a arte invest-ida na rotina em meio a tanta repetição dos mesmos termos, caracteres e procedimen-

tos, apenas com ligeiras variações de ger-ação a geração, visando a concretização da ficção que é a sociedade? Para tornar a minha preocupação mais acentuada, reli o poema D. Sebastião, rei de Portugal de Fernando Pessoa, que transcrevo aqui:

Louco, sim, louco, porque quis grandezaQual a Sorte a não dá.Não coube em mim minha certeza;Por isso onde o areal estáFicou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomemCom o que nela ia.Sem a loucura que é o homemMais que a besta sadia,Cadáver adiado que procria

A minha preocupação não é uma crítica puritana aos excessos juvenis ou um estoi-cismo barato condenando os atos carnais e reificando a privação material, mas uma chamada de atenção para a semelhança clara entre o ciclo de procriação evidenci-ado no poema de Fernando Pessoa, para o homem comum, operário ou patrão, que sustenta a estrutura social, sem o daimon estético, apenas com sua potência viril, e a suposta realização catártica encontrado pelas pessoas – jovens, em específico – nos finais de semana, em orgias, raves, botequins, rituais religiosos e mantras, ou seja em rituais de fusão com o coletivo. Tais processos são um o corolário do outro?

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As pessoas que participam de tais circun-stâncias contentam-se, resumem-se, em aparecer como naturezas mortas para os artistas e poetas? Será que há um télos, uma significação interior para elas, ou elas buscam por isso, e se satisfazem com o devir que é tentar encontrar isto? O télos, como coloca Heidegger, não é uma con-solidação da perfeição, uma estagnação, um serviço pronto, mas uma estrutura que oportuniza a ação, um fornecimento de condições para a satisfação dos projetos pessoais. E tal dimensão teleológica do té-los, não como fim ou meta – pois se realiza no presente, a partir da significância de sua vida interior e não num futuro próspero ou prometeísmo esperado-, mas como sentido para ação e estrutura para encontro con-sigo mesmo, com o outro e com o cósmico, “o ser do sendo”, imagino que esteja mais ou menos turva para quem a busca ou para quem nunca sequer, ao menos uma vez, por um mísero insight, tenha perfilado tal ideia.

A minha preocupação é um sintoma do in-cômodo que sinto ao presenciar pessoas que defenestram suas vidas em nome da construção do social, da procriação ou da rotina corporificada na estimulação mecânica da fricção sexual. Tantas, várias, bilhões, quase todas. Qual o télos delas? Elas apenas sentem-no de forma difusa, sem formulação? Ou planejam-no como a personagem de “Viajo porque preciso, volto porque te amo’’, ao enunciar “Eu quero ter uma vida lazer’’? Será que as pessoas que buscam a satisfação interior ao investirem suas vidas em farras do final de semana, orgias, carnavais, fusões coletivas, roti-nas, ocupações, já pararam para pensar num télos ou isso destruiria a sociedade? A alienação – ou o destino de aranha ni-etzscheano – é necessária mesmo? Será que o prazer tem que ser assim mesmo em doses certas compartimentalizadas em eventos específicos que celebram uma noção social de vida, como se constata na

afirmação clichê “felicidade está em alguns momentos’’, como se os mecanismos de poder que operam a manutenção da ordem social, estivessem controlando o acesso à felicidade de cada um a partir de rações paliativas de distração? Casamentos, fes-tividades, cerimônias, missas, blocos car-navalescos, tudo isto como alegoria do ciclo de vida, morte e reprodução? As pes-soas “comuns’’ tem consciência da arte que permeia suas vidas ou estão conformadas em serem objetos artísticos para a contem-plação alheia e preferem continuar crendo na repetição da reprodução dos anos, dias, ocupações e celebrações?

A meu ver, a vida se torna um erro de re-dundância cíclica, utilizando uma metáfora do que ocorre com as mídias utilizadas para gravar a partir dos dados nos computado-res, tentando-se fixá-los para a eternidade ou incorporando a pretensão da “validade indeterminadado produto, quando se tenta consolidar, fundar uma formatação rígida de seu sentido. E as pessoas padecem disso ao acreditarem firmemente na necessidade de mantras e repetições representadas nos finais de semana, festas, orgias e cultos religiosos, para, desta forma, congelar e suportar a rotina diária. Estou descartando a vida social por inteiro? Não, apenas estou chamando a atenção para a percepção da arte, da vida interior do ser, da sutileza e do sublime no plano da existência, e não proclamando uma necessidade de uma transcendência (como que é buscado nos rituais citados). A linguagem e as técnicas, enquanto instrumental social, jamais anu-lam ou sequer limitam a percepção de tais instâncias, mas fornecem um recurso para o télos em sua concepção.

Porque não se buscar a arte no “ser sendo” e no que existe ao redor, o que faz o ser “estar sendo”? Porque ter acesso apenas a uma arte fria e frívola das galerias, dos setores determinados, dos eventos especí-ficos? Porque acreditar que só artista tem

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direito à arte, que só existe arte no que ele faz ou no que é reconhecido como tal pela crítica especializada? Se há muita arte potencial no interior de cada um e na realidade, então porque as pessoas insis-tem em acreditar apenas nos rituais sociais ou em algumas formas de processos fisi-ológicos para obter catarse? A forma é iner-ente, não estou negando-a, mas para quê embalsamá-la, cunhar uma forma fordista, só porque apenas funciona e não se tem outras, ainda? Ou isso é prerrogativa dos inventores e artistas, enquanto as pessoas ditas comuns apenas ajudam a manter a ordem social, internalizando uma metáfora dos funcionalistas que se sacia em repre-sentar um organismo social e um cérebro social? O poder tentar fazer o sujeito parar de pensar e o direciona para o que se deve sentir prazer, no ponto de deslocar sua par-ticipação na intensidade e sinceridade do sentimento, delimitando este sentir como uma prerrogativa dos artistas e irrespon-sáveis?

A busca por uma transcendência celebrada e proclamada na fusão coletiva dos rituais religiosos, raves, carnavais e desopilações de final semana, nada mais é do que uma estratégia do poder em limitar a ação das pessoas, para evitar que estas, em arre-

batamentos místicos ou filosóficos, tentem desacreditar as instituições ou promover atos contestadores. Panis et circenses. Se alguém argumentar acerca do potencial cri-ativo ou da subversão presente nos rituais e orgias carnavalescas, onde ocorrem in-versões da ordem social, digo-lhe que tudo isto é permitido porque é um lugar para tal, tratando-se, como já dissera de uma ração paliativa concedida pelos detentores do poder na estrutura social para promover a crença num formato de felicidade mo-mentânea, que vale a pena, na retomada ao vigente. A transcendência evocada em tais situações nada mais é do que um ar-tifício para dizer que a felicidade é impos-sível em sua vida interior, que só lhe resta a condescendência e ponderabilidade em ser uma criatura obediente.

A única maneira de burlar tal sistema de transcendência e redundância ou domes-ticação da voluptuosidade para assim jus-tificar a civilização, é meditar, refletir, na busca de um télos para si mesmo. Achando tal télos, negocia-se com a estrutura, uma vez que esta fornece meios, linguagens, recursos para a realização pessoal, ar-tisticamente, liricamente e poeticamente. Cabe ao sujeito transgredir as formas de transcendências produzidas pelos outros, e buscar a sua forma interna e imanente de satisfação, em sua maneira de encarar o mundo, a menos que ele queira continuar sendo uma besta sadia, vítima da normose. Escrevi tudo isto, porque não consigo per-ceber a satisfação ou um télos pessoal nos indivíduos que tem a capacidade de proferir uma assertiva como a que ouvi no famig-erado bar, referido do começo do texto, que “poderia morrer numa orgia, que estaria feliz”, acreditando-se muito subversiva e original, ou dos que endeusam suas rotinas concursadas…

*Beano Regenhaux é mestrando do Programa de Pós-graduação em Antropologia - UFPB

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