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“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente no universo que busca permanentemente conhecê-lo , o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar , sempre . A produção de conhecimento assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico . Este distingue-se pelo seu carácter sistemático , pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise, individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade , através de um conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos deuses a que foi sujeito Sísifo de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.” revista de ciências da educação Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó n.º 08 · Jan | Fev | Mar | Abr · 2009 > Formação de Professores coordenação de Maria Teresa Estrela e Isabel Freire issn 1646-4990 http://sisifo.fpce.ul.pt

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Page 1: revista sisifo

“O título escolhido para a revista também justifica uma explicação breve. A pessoa humana constitui o único ser existente

no universo que busca permanentemente conhecê-lo, o que é inerente à sua sobrevivência e à afirmação da sua

especificidade humana. Como Ser curioso, está condenado a aprender e a interrogar-se. É um trabalho permanente

e inacabado que implica colocar em causa os resultados e recomeçar, sempre. A produção de conhecimento

assume formas diversas, nas quais se inclui o saber científico. Este distingue-se pelo seu carácter sistemático, pela utilização consciente e explicitada de um método, objecto permanente de uma meta análise,

individual e colectiva. O trabalho científico consiste numa busca permanente da verdade, através de um

conhecimento sempre provisório e conjectural, empiricamente refutável. O reconhecimento da

necessidade deste permanente recomeço é ilustrado historicamente quer pela redescoberta de teorias negligenciadas no

seu tempo e recuperadas mais tarde (caso da teoria heliocêntrica de Aristarco), quer pela redescoberta de visionários que

anteciparam os nossos problemas de hoje (Ivan Illich é um desses exemplos). É a partir destas características do trabalho

científico que é possível comparar a aventura humana do conhecimento à condenação pelos

deuses a que foi sujeito

Sísifo de incessantemente recomeçar a mesma tarefa.”

revista de ciências da educação Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Direcção de Rui Canário e Jorge Ramos do Ó

n.º 08 · Jan | Fev | Mar | Abr · 2009

> Formação de Professores coordenação de Maria Teresa Estrela e Isabel Freire

issn 1646-4990

http://sisifo.fpce.ul.pt

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Índice

Editorial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1-2Nota de apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3-6

DOSSIER

Desenvolvimento Profissional Docente: passado e futuroCarlos Marcelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7-22

Desenvolvimento profissional e carreira docente Fases da carreira, currículo e supervisão José Alberto Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23-36

Construção e desenvolvimento das competências profissionais dos professoresManuela Esteves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37-48

Ética profissional e Formação de ProfessoresAna Paula Caetano, Maria de Lurdes Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49-60

Formação de Professores em contextos colaborativosUm projecto de investigação em cursoAna Margarida Veiga Simão, Maria Assunção Flores, José Carlos Morgado, Ana Maria Forte, Teresa Fragoso de Almeida . . . . . . . . . . . 61-74

O lugar da afectividade na Relação PedagógicaContributos para a Formação de ProfessoresJoão Amado, Isabel Freire, Elsa Carvalho, Maria João André . . . . . . . 75-86

Formação de Professores para a prevenção da indisciplinaJosé Espírito Santo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87-100

Especificidades da formação de professores de artes e de humanidadesSara Bahia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101-112

RECENSÕES

Recensão de Handbook of Research on Teacher Education. Enduring questions in changing contexts, de Marilyn Cochran-Smith; Sharon Feiman-Nemser; D. John McIntyre & Kathy E. Demers [2008]. 3rd Edition. New York: Routledge & ATEManuela Esteves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113-114

Recensão de Juventudes e inserção profissional, de Natália Alves [2008]. Lisboa: Educa/Ui&dCEJoão Barroso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115-118

CONFERÊNCIAS

Formação e Supervisão de ProfessoresUma nova abrangência Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, 3 de Maio de 2007Isabel Alarcão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119-128

OUTROS ARTIGOS

Saberes e práticas — Uma experiência de análise sobre dimensões culturais na atividade docente Rejane Penna, Gilberto Ferreira da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129-138

Sísifo, revista de ciências de educação: Instruções para os Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139-140

SÍSIFOREVISTA DE CIÊNCIAS

DA EDUCAÇÃO

N.º 08Formação de Professores

Edição

Responsáveis Editoriais deste número: Maria Teresa Estrela e Isabel Freire

Director: Rui Canário

Director Adjunto: Jorge Ramos do Ó

Conselho Editorial: Rui Canário, Luís Miguel Carvalho, Fernando

Albuquerque Costa, Helena Peralta, Jorge Ramos do Ó

Colaboradores deste número:

Autoria dos artigos: Isabel Alarcão, Teresa Fragoso de Almeida, João Amado, Maria João André, Sara Bahia, João Barroso, Ana Paula

Caetano, Elsa Carvalho, José Espírito Santo, Manuela Esteves, Maria

Assunção Flores, Ana Maria Forte, Isabel Freire, José Alberto Gonçalves, Carlos Marcelo, José Carlos Morgado,

Rejane Penna, Gilberto Ferreira da Silva, Maria de Lurdes Silva, Ana

Margarida Veiga Simão.

Traduções: Mark Ayton, Thomas Kundert, Filomena Matos e Tânia

Lopes da Silva

Secretariado de Direcção: Gabriela Lourenço e Mónica Raleiras

Logotipo SísifoDesenho de Pedro Proença

Arranjo GráficoPedro Serpa

Informação Institucional

Propriedade: Unidade de I&D de Ciências da Educação

da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, da Universidade de Lisboa

issn: 1646 -4990

Apoios: Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Contactos

Morada: Alameda da Universidade, 1649 -013 Lisboa.

Telefone: 21 794 36 51

Fax: 21 793 34 08

e -mail: [email protected]

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Editorial

Este número da revista Sísifo, consagrado à temática da formação de professores, foi pensado e elaborado durante o ano de 2008. Esse ano, no que diz respeito aos professores dos ensinos básico e secundário, em Portugal, foi também o ano de todos os descontenta‑mentos. Em 2008, em resposta ao apelo de todas as organizações sindicais e também de diversos movi‑mentos espontâneos e autónomos, por duas vezes, os professores se concentraram e desfilaram nas ruas de Lisboa. A primeira manifestação realizou ‑se em 8 de Março e conseguiu reunir cerca de 100.000 pro‑fessores, ou seja, dois terços da classe profissional. A surpresa pelo carácter inédito deste nível de ade‑são viria a repetir ‑se no dia 8 de Novembro, quando, por pressão da base sobre os sindicatos, os docentes voltaram a encher as ruas de Lisboa. Neste segundo caso, a adesão foi ainda maior, 120.000 professores, o que corresponde a três quartos da totalidade dos professores, vindos, em condições difíceis, de todos os pontos do país. As duas manifestações tiveram lugar num fim de semana (Sábado) e o número de manifestantes foi confirmado, de forma convergente, por uma diversidade de observadores independen‑tes, nomeadamente a imprensa, a rádio e a televisão. Na sequência destes protestos, os professores reali‑zaram duas greves nacionais (a 3 de Dezembro de 2008 e a 9 de Janeiro de 2009), com taxas de adesão superiores a 90%.

Face a tão eloquentes provas de descontenta‑mento e de revolta, e às medidas adoptadas pelo Ministério da Educação, será oportuno lembrar que em Setembro de 2007, no quadro da Presidência

Portuguesa da União Europeia, decorreu em Lis‑boa a Conferência “Desenvolvimento Profissional dos Professores. Para a qualidade e para a equidade da aprendizagem ao longo da vida”¹. O documen‑to de base dessa conferência explicita os problemas que se colocam e que decorrem, quer de questões demográficas, quer da crescente complexidade da profissão docente, à qual correspondem novos pa‑péis, novas exigências e um alargamento do âmbito da sua missão profissional.

Para dar resposta a uma situação que é problemá‑tica, reconhece ‑se a necessidade de melhorar as po‑líticas e as práticas de formação de professores que, no conjunto dos países europeus, são tidas como in‑satisfatórias. Essa aposta na qualidade da formação, com desejáveis consequências num melhor desem‑penho profissional, é indissociável, como se afirma no documento, de um esforço a fazer para construir uma opção atractiva de carreira. Tal objectivo im‑plica recrutar os melhores, persuadir trabalhadores a mudar de profissão em favor da carreira docente, contrariar saídas da profissão, quer precoces, quer de professores mais experientes.

Em síntese, aponta ‑se como objectivo central motivar profissionalmente os professores, fazendo corresponder a uma elevação dos níveis de exigên‑cia uma aposta na formação e na criação de melho‑res condições de exercício profissional. Enunciam‑‑se, como orientadores da acção a desenvolver, qua‑tro grandes princípios: fazer do ofício de professor uma profissão altamente qualificada, baseada em processos de formação ao longo de toda a carreira,

1

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marcada pela mobilidade e apoiada em dispositivos de parceria.

Do debate realizado foi possível identificar a ne‑cessidade de, no plano político, encontrar respostas adequadas para três grandes desafios:

· O primeiro consiste, como se disse, em tor‑nar a profissão docente uma profissão atrac‑tiva. Está em causa resolver os problemas de recrutamento e de renovação do corpo docente, superando a contradição entre a ge‑neralizada retórica sobre o papel chave dos professores e, por outro lado, a dura realida‑de de uma profissão marcada pelo individu‑alismo defensivo, estratégias de fuga, crise de autoridade, níveis crescentes de sofrimento no trabalho;

· O segundo corresponde a tentar contrariar a invasão da escola pelos problemas sociais que lhe são externos. O crescimento de processos de dualização social e de vulnerabilidade so‑cial de massa confronta escolas e professores com tarefas de carácter “assistencial”, o que prejudica a missão fundamental da escola e é fonte de perturbações da identidade profis‑sional docente;

· O terceiro diz respeito à necessária superação do paradoxo entre a autonomia e o controlo. Estudos comparados recentes, no espaço europeu, vieram evidenciar a emergência de novas formas de regulação que privilegiam o nível local e a autonomia das escolas, mas que é, paradoxalmente, concomitante com um reforço do controlo e a percepção, por parte dos professores, de uma perda crescente da sua autonomia profissional.

Em Portugal, as razões de tão elevados níveis de descontentamento e revolta dos professores radi‑

cam, obviamente, na forma e no conteúdo das medi‑das assumidas pela actual equipa do Ministério da Educação. Os professores sentem na pele a preca‑riedade e o desemprego, vêem reduzidos os salários reais e aumentado o seu período de trabalho, vêem cortada, ou fortemente dificultada, a sua progressão na carreira por via da definição de uma nova estru‑tura da carreira docente, são objecto de um kafkiano processo de avaliação do desempenho.A situação evoluiu num tal sentido que não é mais possível circunscrever o debate às suas dimensões técnicas. O caso assume contornos sociais e políti‑cos de uma acção muito injusta. Aos investigadores em ciências da educação e formadores de professo‑res deveria caber um papel importante no esclareci‑mento da situação actual. Estranhamente, a maioria por omissão (envergonhada ou prudente) ou por acção (precipitada) assume uma atitude veneranda perante o poder e estabelece juízos de valor (depre‑ciativos) sobre os professores. Estes são encarados como os “outros”, com quem não há manifestações visíveis de solidariedade. Por que será?

Notas

1. Cf. portugal 2007. Presidência Portu‑guesa do Conselho da União Europeia. Conferência “Desenvolvimento profissional de professores para a qualidade e para a equidade da Aprendizagem ao longo da Vida”. Lisboa, 27‑28 de Setembro de 2007.

Rui Canário (Lisboa, Março de 2009)

2 sísifo 8 | editorial

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A educação escolar é, actualmente, um campo de acção em constante mutação. Mudanças organiza‑cionais, curriculares, extra‑curriculares e outras, de‑finidas no quadro de sucessivas reformas e políticas educativas, exigem dos professores novos papéis e novas competências. O próprio quadro legislativo da formação inicial de professores, para responder às novas orientações impostas pela Declaração de Bo‑lonha, foi profundamente alterado e os Centros de Formação Contínua, em função do novo quadro or‑ganizativo, foram objecto de grandes reformulações.

Se é certo que esta realidade interpela todos os professores, também as instituições formadoras e, obviamente, os investigadores são chamados a con‑tribuir para a busca de respostas a estes desafios.

A Formação de Professores continua a ser, jus‑tificadamente, uma área importante da investigação educacional. É indubitável que muito se tem publi‑cado neste domínio e que vamos conhecendo um pouco melhor o modo como os professores cons‑troem o seu conhecimento profissional. No entanto, julgamos que para além do conhecimento de reali‑dades locais e da confirmação de quadros teóricos que têm orientado a investigação, esta é ainda muito dependente das grandes temáticas que se desenvol‑vem a partir dos anos 80.

A aposta na qualidade da formação de profes‑sores continua a ser um objectivo central a atingir, quer ao nível político, quer da investigação e das instituições formadoras, quer ainda ao nível das escolas e dos agrupamentos. Por isso, a questão da competência docente, no quadro de um processo

de desenvolvimento profissional responsável e com‑prometido, é crucial para a melhoria da qualidade da educação e também da motivação e da realização profissional dos docentes.

Pensar a formação e a profissionalidade docente levanta‑nos hoje em dia um conjunto vasto de in‑terrogações, que vão muito para além dos lugares comuns e dos grandes chavões da formação. Elas não podem deixar de passar pelos problemas do desenvolvimento e da identidade profissional dos professores, pela clarificação do próprio conceito de competências e de competência, pela diferente natureza das competências requeridas pelo desem‑penho das suas funções na escola, com especial rele‑vo para competências geralmente menos abordadas na investigação e na formação, como as relacionais, éticas e estéticas.

Neste número da revista Sísifo, cuja temática eleita é a da Formação de Professores, trazemos um con‑junto de artigos, com os quais pensamos contribuir para o aprofundamento destas questões. Preten‑demos com estes textos proporcionar aos leitores acesso a alguns dos estudos realizados neste âmbito por investigadores da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Porque investigação é aber‑tura ao mundo e aos outros, quisemos trazer tam‑bém o contributo de outros investigadores.

Assim, no primeiro texto, Carlos Marcelo apre‑senta‑nos uma visão geral e actualizada do desenvol‑vimento profissional e da construção da identidade profissional, articulando a vertente mais pessoal

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Nota de apresentação

Formação de Professores

Maria Teresa Estrela

Isabel Freire

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com a colectiva, que envolve as experiências vividas em contexto laboral, com carácter formal e informal. Nesta última vertente, o autor dá especial ênfase à articulação do desenvolvimento profissional dos professores com o desenvolvimento organizacional das escolas.

No segundo texto, José Alberto Gonçalves ana‑lisa, em particular, o conceito de carreira docente como um percurso relacional e contextualmente construído. Detém‑se depois na formação inicial e, a partir de dois estudos realizados sob sua orienta‑ção na Universidade do Algarve, caracteriza práticas de supervisão de alguns formadores relacionando‑as com a fase da carreira em que se encontram.

Manuela Esteves, no texto seguinte, analisa de‑talhadamente a polissemia do conceito de compe‑tência, em diferentes campos científicos e dentro do mesmo campo, para concluir sobre a necessidade da construção de uma acepção específica de com‑petência em educação e formação de professores. Discute a seguir a construção e o desenvolvimento das competências dos professores em programas portugueses actuais de formação de professores, destacando a importância dos modelos e das estra‑tégias relativamente à importância da estrutura.

O texto de Ana Paula Caetano e Lurdes Silva aborda a questão da ética profissional na docência, apresentando os resultados da primeira etapa de uma investigação realizada no âmbito do projecto “Pensamento e formação ético‑deontológicos de professores”, financiado pela FCT. A partir da aná‑lise de conteúdo de entrevistas semi‑directivas fei‑tas a professores de diferentes níveis de ensino, as autoras caracterizam as concepções éticas, pessoais e profissionais dos professores e a sua atitude face à eventual existência de um código deontológico do‑cente, e perspectivam algumas estratégias de forma‑ção ética desejadas pelos professores.

No quinto texto deste dossier temático, Ana Margarida Veiga Simão e outros, apresentam o projecto “Formação de Professores em Contextos Colaborativos”. Este projecto constitui uma parce‑ria entre investigadores da Universidade de Lisboa (FPCE), da Universidade do Minho e da Univer‑sidade Nova de Lisboa e nele participam, com os seus projectos de doutoramento, dez doutorandas de cursos destas universidades. É um projecto que tem como grandes linhas orientadoras, por um lado,

a da formação de professores em contexto laboral, por outro, a da formação através da investigação‑acção em contextos colaborativos.

Porque a formação de professores tem como referente necessário os alunos, realidade que os escritos sobre a formação muitas vezes colocam en‑tre parêntesis, os dois textos seguintes abordam o problema da formação relacional dos professores, partindo de investigações realizadas sobre compor‑tamentos relacionais dos alunos. O primeiro, da au‑toria de João Amado e outros, partem de duas inves‑tigações centradas na afectividade na relação peda‑gógica, a partir das perspectivas de alunos. Combi‑nando análises de natureza qualitativa e quantitativa e cruzando‑as com a revisão da literatura do tema, os autores discutem os resultados destas investiga‑ções e retiram algumas implicações para a formação de professores.

O texto de José Espírito Santo traz‑nos os resul‑tados de dois conjuntos de estudos realizados a par‑tir de duas abordagens diferentes à problemática da indisciplina, uma inspirada pela corrente de organi‑zação da sala de aula (classroom management), outra assente na criação de dispositivos que promovam o envolvimento do aluno na construção da disciplina. Das experiências formativas realizadas e do estudo dos processos e dos resultados, o autor tece consi‑derações acerca da formação de professores neste domínio.

O conjunto dos textos “fecha” com um artigo de Sara Bahia, no qual a autora foca uma outra di‑mensão que se apresenta como central no traba‑lho dos professores e que Bahia equaciona como crítica e a exigir reflexão na formação de professo‑res – a generalidade e a especificidade do conhe‑cimento veiculado e o modo como os professores em formação dele se apropriam. O texto argumen‑tativo, parte de um estudo de inquérito realizado com professores de humanidades e de artes que frequentaram o Curso de Profissionalização em Serviço da FPCE‑UL.

O dossier completa‑se, ainda, com o texto da conferência “Formação e supervisão de professo‑res: uma nova abrangência”, proferida por Isabel Alarcão, Professora Catedrática aposentada da Uni‑versidade de Aveiro, no dia 3 de Maio de 2007, in‑tegrada num Ciclo de Conferências organizado pela Unidade de Investigação e Desenvolvimento de Ci‑

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ências da Educação e que se realizou na FPCE‑UL. A autora alarga o conceito de supervisão à formação contínua, situa‑o na escola e liga‑o ao próprio con‑ceito de desenvolvimento organizacional.

Finalmente, na rubrica recensões, Manuela Esteves apresenta a obra Handbook of research on teacher education. Enduring questions in changing contexts (2008).

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Resumo: Entende ‑se o desenvolvimento profissional dos professores como um processo individual e colectivo que se deve concretizar no local de trabalho do docente: a escola; e que contribui para o desenvolvimento das suas competências profissionais, através de experiências de índole diferente, tanto formais como informais. O conceito de desenvolvimento profissio‑nal tem vindo a modificar ‑se durante a última década, sendo essa mudança motivada pela evolução da compreensão de como se produzem os processos de aprender a ensinar. Nos últimos tempos, tem ‑se vindo a considerar o desenvolvimento profissional como um pro‑cesso a longo prazo, no qual se integram diferentes tipos de oportunidades e experiências, planificadas sistematicamente para promover o crescimento e desenvolvimento do docente.

Deve entender ‑se o desenvolvimento profissional dos professores enquadrando ‑o na procura da identidade profissional, na forma como os professores se definem a si mesmos e aos outros. É uma construção do eu profissional, que evolui ao longo das suas carreiras. Que pode ser influenciado pela escola, pelas reformas e contextos políticos, e que integra o compromisso pessoal, a disponibilidade para aprender a ensinar, as crenças, os valo‑res, o conhecimento sobre as matérias que ensinam e como as ensinam, as experiências passadas, assim como a própria vulnerabilidade profissional. As identidades profissionais configuram um complexo emaranhado de histórias, conhecimentos, processos e rituais.

Palavras ‑chave: Desenvolvimento profissional, Identidade profissional, Aprender a ensinar, Formação de Professores.

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Desenvolvimento Profissional Docente: passado e futuro

Carlos [email protected]

Universidade de Sevilha (Espanha)

Marcelo, Carlos (2009). Desenvolvimento Profissional Docente: passado e futuro. Sísifo. Revista de

Ciências da Educação, 08, pp. 7‑22

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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8 sísifo 8 | carlos marcelo | desenvolvimento profissional docente: passado e futuro

A formação de professores ainda tem a honra de ser, simultaneamente, o pior problema e a melhor solu‑ção em educação.

Michael Fullan, 1993

INTRODUÇÃO

Quando falo ou escrevo sobre desenvolvimento profissional docente tenho sempre o hábito de refe‑rir a obra de Linda Darling ‑Hammond, “O Direito de Aprender” (Darling ‑Hammond, 2001). E faço ‑o porque entendo que é necessário recordar que as escolas foram criadas com o intuito de transformar as mentes dos alunos em mentes educadas e que, hoje em dia, para que esse direito se continue a res‑peitar, exige ‑se dos professores um esforço redobra‑do de confiança, compromisso e motivação (Marce‑lo, 2002).

Muito se tem escrito sobre a influência que as ac‑tuais mudanças sociais estão a ter na sociedade pro‑priamente dita, na educação, nas escolas e no traba‑lho dos professores. Sempre soubemos que a pro‑fissão docente é uma “profissão do conhecimento”. O conhecimento, o saber, tem sido o elemento legi‑timador da profissão docente e a justificação do tra‑balho docente tem ‑se baseado no compromisso em transformar esse conhecimento em aprendizagens relevantes para os alunos. Para que este compromis‑so se renove, sempre foi necessário, e hoje em dia é imprescindível, que os professores — da mesma ma‑neira que é assumido por muitas outras profissões

— se convençam da necessidade de ampliar, apro‑fundar, melhorar a sua competência profissional e pessoal. Zabalza (2000) afirmava que convertemos “a agradável experiência de aprender algo de novo cada dia, num princípio de sobrevivência incontor‑nável” (p. 165). Sendo assim, para os docentes, ser professor no século XXI pressupõe o assumir que o conhecimento e os alunos (as matérias ‑primas com que trabalham) se transformam a uma velocidade maior à que estávamos habituados e que, para se continuar a dar uma resposta adequada ao direito de aprender dos alunos, teremos de fazer um esfor‑ço redobrado para continuar a aprender.

Relatórios internacionais recentes têm centrado a sua investigação e destacado a importância do pa‑pel dos professores nas possibilidades de aprendi‑zagem dos alunos. Vai neste sentido o título do rela‑tório recentemente publicado pela OCDE: Teachers matter: attracting, developing and retaining effecti-ve teachers (OCDE, 2005). No título diz ‑se que os professores contam, ou seja, têm que ser tomados em consideração na melhoria da qualidade do en‑sino que os alunos recebem. Neste relatório afirma‑‑se que: “Actualmente existe um considerável volu‑me de investigação que indica que a qualidade dos professores e a forma como ensinam é o factor mais importante para explicar os resultados dos alunos. Também existem evidências consideráveis de que os professores variam na sua eficácia. As diferenças nos resultados dos alunos são, por vezes, maiores dentro de uma mesma escola do que entre escolas. O ensino é um trabalho exigente e não é qualquer

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sísifo 8 | carlos marcelo | desenvolvimento profissional docente: passado e futuro 9

pessoa que consegue ser um professor eficaz e man‑ter essa eficácia ao longo do tempo” (p. 12). Este relatório é reflexo da preocupação, a nível interna‑cional, com os professores: como fazer com que a docência seja uma profissão atractiva, como conser‑var no ensino os melhores professores e como con‑seguir que os professores continuem a aprender ao longo das suas carreiras.

Mais recentemente, no âmbito da II Reunião In‑tergovernamental do Projecto Regional de Educa‑ção para a América Latina e Caribe, que se celebrou em Buenos Aires nos dias 29 e 30 de Março de 2007, apresentou ‑se um documento de discussão sobre políticas educativas, no qual se afirmava que “os do‑centes são actores fundamentais para assegurar o di‑reito à educação das populações e contribuir para a melhoria das políticas educativas da região” (p. 49).

Em paralelo com o estudo da OCDE, a prestigia‑da Associação Americana de Investigação Educacio‑nal (AERA) tornou público o relatório que tenta re‑sumir os resultados da investigação que se tem feito em Formação de Professores, bem como propor po‑líticas educativas que tenham em conta esses resul‑tados. Afirma ‑se que: “em todas as nações existe um consenso emergente de que os professores influem de maneira significativa na aprendizagem dos alunos e na eficácia da escola” (Cochran ‑Smith & Fries, 2005, p. 40). Na mesma linha, Darling ‑Hammond (2000) afirmava que a aprendizagem dos alunos “de‑pende principalmente daquilo que os professores sabem e do que podem fazer”.

Deste modo, centramos o tema deste artigo num aspecto fundamental das discussões sobre a profis‑são docente: os processos usados pelos professores nas suas aprendizagens, processos esses que de‑senvolvem e melhoram o seu reportório de compe‑tências. É importante relembrar que não partimos do zero, o desenvolvimento profissional docente e a análise dos processos do aprender a ensinar têm sido uma preocupação constante dos investigadores educacionais nas últimas décadas. Têm sido feitas centenas de investigações e dezenas de revisões com o intuito de compreender estes processos. Tanto a terceira (Wittrock, 1986) como a quarta edição (Richardson, 2001) do Handbook of Research on Teaching, integram capítulos de revisão e síntese acerca dos professores, da sua formação e evolução. Estas obras, bem como artigos de revisão recentes,

publicados em revistas especializadas (como os de Cochran ‑Smith & Zeichner, 2005; Feiman ‑Nemser, 2001; Putnam & Borko, 1998; Wideen et al. 1998; Wilson & Berne; Zeichner, 1999) permitem ‑nos configurar um panorama bastante actualizado no que diz respeito ao conhecimento acumulado sobre o processo de aprender a ensinar, tanto nos seus as‑pectos consensuais como nos mais discutíveis. Par‑tindo destas revisões, já bastante amplas, podemos fazer o ponto de situação e estabelecer um corpo de conhecimento acumulado suficiente para começar a dar uma resposta à pergunta: Como se aprende a ensinar?

DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DOCENTE: A QUE NOS REFERIMOS?

Neste artigo optamos pelo conceito de desenvolvi‑mento profissional de professores. No nosso con‑texto podemos fazer referência a outras noções: for‑mação permanente, formação contínua, formação em serviço, desenvolvimento de recursos humanos, aprendizagem ao longo da vida, cursos de recicla‑gem ou capacitação (Bolam & McMahon, 2004; Te‑rigi, 2007). No entanto, pensamos que a denomina‑ção desenvolvimento profissional se adequa melhor à concepção do professor enquanto profissional do ensino. Por outro lado, o conceito “desenvolvimen‑to” tem uma conotação de evolução e continuidade que, em nosso entender, supera a tradicional justa‑posição entre formação inicial e formação contínua dos professores

Rudduck referia ‑se ao desenvolvimento profis‑sional do professor como “a capacidade do profes‑sor em manter a curiosidade acerca da sua turma; identificar interesses significativos nos processos de ensino e aprendizagem; valorizar e procurar o diálo‑go com colegas experientes como apoio na análise de situações” (Rudduck, 1991, p. 129). Deste pon‑to de vista, o desenvolvimento profissional docente pode ser entendido como uma atitude permanente de indagação, de formulação de questões e procura de soluções.

De seguida apresentamos algumas das mais recentes definições do conceito desenvolvimento profissional de professores, formuladas por autores de relevo:

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· “O desenvolvimento profissional dos profes‑sores vai para além de uma etapa meramente informativa; implica adaptação à mudança com o fim de modificar as actividades de ensino ‑aprendizagem, alterar as atitudes dos professores e melhorar os resultados escola‑res dos alunos. O desenvolvimento profissio‑nal de professores preocupa ‑se com as neces‑sidades individuais, profissionais e organiza‑tivas” (Heideman, 1990, p. 4);

· “O desenvolvimento profissional de profes‑sores constitui ‑se com uma área ampla ao incluir qualquer actividade ou processo que tenta melhorar destrezas, atitudes, compre‑ensão ou actuação em papéis actuais ou futu‑ros” (Fullan, 1990, p. 3);

· “Define ‑se como todo aquele processo que melhora o conhecimento, destrezas ou ati‑tudes dos professores” (Sparks & Loucks‑‑Horsley, 1990, pp. 234 ‑235);

· “Implica a melhoria da capacidade de con‑trolo sobre as próprias condições de traba‑lho, uma progressão de status profissional e na carreira docente” (Oldroyd & Hall, 1991, p. 3);

· “O desenvolvimento profissional docente in‑clui todas as experiências de aprendizagem natural e aquelas que, planificadas e cons‑cientes, tentam, directa ou indirectamente, beneficiar os indivíduos, grupos ou escolas e que contribuem para a melhoria da quali‑dade da educação nas salas de aula. É o pro‑cesso mediante o qual os professores, sós ou acompanhados, revêem, renovam e desen‑volvem o seu compromisso como agentes de mudança, com os propósitos morais do ensino e adquirem e desenvolvem conheci‑mentos, competências e inteligência emocio‑nal, essenciais ao pensamento profissional, à planificação e à prática com as crianças, com os jovens e com os seus colegas, ao longo de cada uma das etapas das suas vidas enquanto docentes” (Day, 1999, p. 4);

· “Oportunidades de trabalho que promovam nos educadores capacidades criativas e re‑flexivas, que lhes permitam melhorar as suas práticas” (Bredeson, 2002, p. 663);

· “O desenvolvimento profissional docente é

o crescimento profissional que o professor adquire como resultado da sua experiência e da análise sistemática da sua própria prática” (Villegas ‑Reimers, 2003).

Como podemos verificar, as definições, tanto as mais recentes como as mais antigas, entendem o desenvolvimento profissional docente como um processo, que pode ser individual ou colectivo, mas que se deve contextualizar no local de trabalho do docente — a escola — e que contribui para o de‑senvolvimento das suas competências profissionais através de experiências de diferente índole, tanto formais como informais.

O conceito de desenvolvimento profissional do‑cente tem vindo a modificar ‑se na última década, motivado pela evolução da compreensão de como se produzem os processos de aprender a ensinar. Na revisão da investigação que se tem feito em torno do desenvolvimento profissional docente, Villegas‑‑Reimers (2003) mostra que nos últimos tempos se tem vindo a considerar que este é um processo a longo prazo, que integra diferentes tipos de opor‑tunidades e de experiências, planificadas sistema‑ticamente, de forma a promover o crescimento e desenvolvimento profissional dos professores. As‑sim sendo, está a emergir uma nova perspectiva que entende o desenvolvimento profissional docente como tendo as seguintes características:

1. Baseia ‑se no construtivismo, e não nos mo‑delos transmissivos, entendendo que o pro‑fessor é um sujeito que aprende de forma ac‑tiva ao estar implicado em tarefas concretas de ensino, avaliação, observação e reflexão;

2. Entende ‑se como sendo um processo a lon‑go prazo, que reconhece que os professores aprendem ao longo do tempo. Assim sendo, considera ‑se que as experiências são mais eficazes se permitirem que os professores re‑lacionem as novas experiências com os seus conhecimentos prévios. Para isso, é necessá‑rio que se faça um seguimento adequado, in‑dispensável para que a mudança se produza.

3. Assume ‑se como um processo que tem lugar em contextos concretos. Ao contrário das práticas tradicionais de formação, que não relacionam as situações de formação com as

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práticas em sala de aula, as experiências mais eficazes para o desenvolvimento profissional docente são aquelas que se baseiam na escola e que se relacionam com as actividades diá‑rias realizadas pelos professores;

4. O desenvolvimento profissional docente está directamente relacionado com os processos de reforma da escola, na medida em que este é entendido como um processo que tende a reconstruir a cultura escolar e no qual se implicam os professores enquanto profissio‑nais;

5. O professor é visto como um prático reflexi‑vo, alguém que é detentor de conhecimento prévio quando acede à profissão e que vai adquirindo mais conhecimentos a partir de uma reflexão acerca da sua experiência. Assim sendo, as actividades de desenvolvi‑mento profissional consistem em ajudar os professores a construir novas teorias e novas práticas pedagógicas;

6. O desenvolvimento profissional é concebido como um processo colaborativo, ainda que se assuma que possa existir espaço para o trabalho isolado e para a reflexão;

7. O desenvolvimento profissional pode adop‑tar diferentes formas em diferentes contextos. Por isso mesmo, não existe um e só um mo‑delo de desenvolvimento profissional que seja eficaz e aplicável em todas as escolas. As esco‑las e docentes devem avaliar as suas próprias necessidades, crenças e práticas culturais para decidirem qual o modelo de desenvolvimento profissional que lhes parece mais benéfico.

Na mesma linha, Sparks e Hirsh (1997) identifica‑ram algumas das mudanças que se tinham vindo a produzir no desenvolvimento profissional docente:

· De um desenvolvimento profissional orien‑tado para o desenvolvimento do indivíduo, para outro orientado para o desenvolvimento da organização;

· De um desenvolvimento profissional frag‑mentado e desconexo para um coerente e orientado por metas claras;

· De uma organização da formação a partir da administração, para outra centrada na escola;

· De uma focagem centrada nas necessidades dos adultos, para outra centrada nas necessi‑dades de aprendizagem dos alunos;

· De uma formação desenvolvida fora da esco‑la para formas múltiplas de desenvolvimento profissional realizadas na escola;

· De uma orientação baseada na transmissão aos docentes de conhecimentos e das com‑petências feita por especialistas, ao estudo dos processos de ensino e de aprendizagem, pelos professores;

· De um desenvolvimento profissional dirigi‑do aos professores, como principais destina‑tários, a um outro dirigido a todas as pessoas implicadas no processo de aprendizagem dos alunos;

· De um desenvolvimento profissional dirigi‑do ao professor, a título individual, à criação de comunidades de aprendizagem, em que todos — professores, alunos, directores, fun‑cionários — se consideram, simultaneamen‑te, professores e alunos.

IDENTIDADE PROFISSIONAL E PROFISSÃO DOCENTE

Dado que assumimos, claramente, o desenvolvi‑mento profissional como um processo que se vai construindo à medida que os docentes ganham ex‑periência, sabedoria e consciência profissional, gos‑taria agora de aprofundar o papel que a identidade profissional joga no desenvolvimento profissional e nos processos de mudança e melhoria da profissão docente. Esta é uma reflexão que considero neces‑sária uma vez que é através da nossa identidade que nos percebemos, nos vemos e queremos que nos vejam. A identidade profissional é a forma como os professores se definem a si mesmos e aos outros. É uma construção do seu eu profissional, que evolui ao longo da sua carreira docente e que pode ser in‑fluenciada pela escola, pelas reformas e contextos políticos, que “integra o compromisso pessoal, a disponibilidade para aprender a ensinar, as crenças, os valores, o conhecimento sobre as matérias que ensinam e como as ensinam, as experiências pas‑sadas, assim como a própria vulnerabilidade pro‑fissional”. As identidades profissionais configuram

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um “complexo emaranhado de histórias, conheci‑mentos, processos e rituais” (Lasky, 2005).

Temos que considerar identidade docente como uma realidade que evolui e se desenvolve de forma individual e colectiva. A identidade não é algo que se possui, mas sim algo que se desenvolve ao longo da vida. A identidade não é um atributo fixo de de‑terminada pessoa, mas sim um fenómeno relacional. O desenvolvimento da identidade ocorre no terreno do intersubjectivo e caracteriza ‑se como sendo um processo evolutivo, um processo de interpretação de si mesmo enquanto indivíduo enquadrado em deter‑minado contexto. Sendo assim, identidade pode ser entendida como resposta à pergunta: “Quem sou eu, neste momento?” (Beijaard et al., 2004).

Os autores supracitados, através de uma revisão das investigações recentes, definiram as seguintes características:

1. A identidade profissional é um processo evo‑lutivo de interpretação e reinterpretação de experiências. Uma perspectiva que assume a ideia que o desenvolvimento profissional dos professores nunca pára, constituindo ‑se como uma aprendizagem ao longo da vida. Assim sendo, a formação da identidade pro‑fissional não se constrói respondendo à per‑gunta: “Quem sou eu, neste momento? Mas sim em resposta à pergunta: “Quem é que eu quero ser?”

2. A identidade profissional depende tanto da pessoa como do contexto. A identidade pro‑fissional não é única. Espera ‑se que os pro‑fessores se comportem de uma maneira pro‑fissional, mas não porque adoptam caracte‑rísticas profissionais prescritas (conhecimen‑tos e atitudes). Os professores distinguem ‑se entre si em função da importância que dão as essas características, desenvolvendo uma resposta própria ao contexto.

3. A identidade profissional docente compõe‑‑se de sub ‑identidades mais ou menos inter‑relacionadas. Estas sub ‑identidades têm a ver com os diferentes contextos em que os pro‑fessores se movem. É importante que estas sub ‑identidades não entrem em conflito. O conflito aparece, por exemplo, quando sur‑gem mudanças educativas ou nas condições

de trabalho. Quanto mais importante uma sub ‑identidade é, mais difícil é modificá ‑la.

4. A existência de uma identidade profissional contribui para a percepção de auto ‑eficácia, motivação, compromisso e satisfação no tra‑balho do professor e é um factor importante para que este se converta num bom profes‑sor. A identidade é influenciada por aspectos pessoais, sociais e cognitivos.

Neste momento, o conceito de identidade profis‑sional docente está sujeito a uma revisão. Do pon‑to de vista de Bolívar, “as mutações das últimas décadas geraram ambiguidades e contradições na situação profissional dos professores. A crise da identidade profissional docente deve ser entendi‑da no quadro de um certo desmoronamento dos princípios da modernidade, que davam sentido ao sistema escolar” (2006, p. 13).

Estas mudanças não têm só a ver com a própria profissão docente, mas também com “um quadro mais geral de transformações sociais, que tem esba‑tido os espaços tradicionais de identificação sexual, religiosa, familiar ou laboral” (Bolívar, 2006, p. 25). Transformações essas em que o local e o global, a estabilidade e a mudança, estão a assumir um pa‑pel desestabilizador, quando comparamos com as certezas que as nossas sociedades tinham noutras épocas. As mudanças e as novas realidades, referi‑das por Bolívar, requerem que se observem as reper‑cussões que estão a ter nos professores.

Qualquer discussão sobre o desenvolvimento profissional deve tomar em consideração o signifi‑cado do que é ser um profissional e qual o grau de autonomia destes profissionais no exercício do seu trabalho. Nos últimos anos temos assistido a uma situação de stress e desmotivação entre os docentes. Em muitos países existem altos níveis de deserção e muita dificuldade em recrutar novos docentes, verificando ‑se situações de erosão da profissão, di‑minuição do status, interferências externas, aumen‑to da carga de trabalho (Bolam & McMahon, 2004).

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O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL E O PROCESSO DE SE TORNAR PROFESSOR

Ser um bom professor pressupõe um longo pro‑cesso. Os candidatos que chegam às instituições de formação inicial de professores não são recipientes vazios. Nas suas investigações, Lortie (1975) afirma que as milhares de horas de observação enquanto estudantes contribuem para a configuração de um sistema de crenças acerca do ensino, por parte dos aspirantes a professores, e, por outro lado, ajuda‑‑os a interpretar as suas experiências na formação. Por vezes, estas crenças estão tão enraizadas que a formação inicial é incapaz de provocar uma trans‑formação profunda nessas mesmas crenças (Pajares, 1992; Richardson & Placier, 2001).

A formação inicial tem sido sujeita a múltiplas investigações e estudos (Cochran ‑Smith & Fries, 2005). De uma maneira geral, nota ‑se uma grande insatisfação, tanto por parte das instâncias políti‑cas como da classe docente em exercício, acerca da capacidade de resposta das actuais instituições de formação às necessidades da profissão docente. As críticas que as consideram como tendo uma organi‑zação burocratizada, em que se assiste a um divórcio entre a teoria e a prática, uma excessiva fragmenta‑ção do conhecimento ensinado, um vínculo ténue com as escolas, estão a fazer com que algumas vozes proponham a redução temporal da formação inicial e o incremento da atenção dada ao período de in‑serção profissional dos professores. Neste sentido vão as conclusões do relatório da OCDE, a que já fizemos referência, que afirma, em concreto, que: “As etapas da formação inicial, inserção e desenvol‑vimento profissional deveriam estar muito mais in‑terrelacionadas, de forma a criar aprendizagens co‑erentes e um sistema de desenvolvimento da profis‑são docente… O assumir a perspectiva de aprendi‑zagem ao longo da vida obriga a maioria dos países a darem um maior apoio aos seus professores nos primeiros anos de ensino e a proporcionarem ‑lhes incentivos e recursos para um desenvolvimento pro‑fissional contínuo. De uma maneira geral, seria mais adequado melhorar a inserção e o desenvolvimento profissional dos professores ao longo da sua carrei‑ra, em vez de aumentar a duração da formação ini‑cial” (OCDE, 2005, p. 13).

Por contraponto, vale a pena recordar o excelen‑te artigo escrito por David Berliner (2000), no qual este refuta uma dúzia de críticas que habitualmen‑te se fazem à formação inicial de professores (que para ensinar basta saber as matérias, que ensinar é fácil, que os formadores de professores vivem numa torre de marfim, que as disciplinas de metodologia e didáctica são dadas de forma superficial que no ensino não há princípios gerais válidos, etc.). Do ponto de vista do autor, são críticas não isentas e que reflectem uma visão bastante limitada acerca da contribuição da formação inicial para o desem‑penho dos professores. Diz Berliner: “penso que se tem dado pouca atenção ao desenvolvimento dos aspectos evolutivos do processo de aprender a en‑sinar, desde a formação inicial, à inserção e à for‑mação contínua” (2000, p. 370). Neste processo, a formação inicial joga um papel importante e não é de pouca importância ou substituível, como alguns grupos ou instituições têm sugerido.

Os professores passam por diferentes etapas no seu processo de aprendizagem. Bransford, Darling‑‑Hammond e LePage (2005) defendem que, para dar resposta às novas e complexas situações em que se encontram os docentes, é conveniente pensar nos professores como “peritos adaptativos”, ou seja, pessoas que estão preparadas para fazer aprendiza‑gens eficientes ao longo da vida. Isto, porque as con‑dições sociais estão em constante mudança e cada vez mais se pede às pessoas que saibam combinar competência com capacidade de inovação. Neste contexto, as investigações que se têm realizado têm procurado estabelecer diferenças entre os professo‑res em função da idade, bem como desenvolver o conceito de perícia. Sendo assim, tem ‑se analisado esta evolução, salvo em casos excepcionais, desde o primeiro ano de experiência docente. Encontra‑mos, igualmente, estudos que tentam compreender o processo de conversão em perito; assim como investigações que analisam o que faz e quais as ca‑racterísticas de um docente perito. Da análise destes estudos ressalta o contraste entre professores peri‑tos e professores principiantes. É importante assina‑lar que, quando falamos de professores peritos, es‑tamos a falar não só de um professor com pelo me‑nos 5 anos de experiência, mas também de pessoas com “um elevado nível de conhecimento e destreza, coisas que não se adquirem de forma natural, mas

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que requerem uma dedicação especial e constante” (Bereiter & Scardamalia, 1986, p. 10). Assim sendo, não é com o mero transcorrer dos anos que o pro‑fessor perito conquista a sua competência profissio‑nal. Como assinala Berliner, não é totalmente seguro que a simples experiência faça o melhor mestre. Se não se reflecte sobre a própria conduta, nunca se atingirá um pensamento e uma acção próprios de um perito (Berliner, 1986).

Segundo Bereiter e Scardamalia, os peritos — em qualquer área — têm as seguintes características em comum: complexidade de competências, ou seja, as acções do perito apoiam ‑se numa estrutura diferente e mais complexa que as do principiante, exercendo um controlo voluntário e estratégico sobre as partes do processo, que se desenvolve de uma forma mais automática no caso dos principiantes. Em segundo lugar, o perito possui uma grande quantidade de co‑nhecimentos, quando comparado com o principian‑te. Em terceiro lugar, assinalam a própria estrutura do conhecimento. Para Bereiter e Scardamalia, “os principiantes tendem a ter, o que podemos descrever como, uma estrutura de conhecimento ‘superficial’, algumas ideias gerais e alguns detalhes relacionados com essa ideia geral, mas não interrelacionados. Por seu lado, os peritos têm uma estrutura de conheci‑mento profunda e de multi ‑níveis, com muitas cone‑xões inter e intra ‑nível” (1986, p. 12). A última carac‑terística que diferencia o perito do principiante é a representação dos problemas: o perito recorre a uma estrutura abstracta do problema e utiliza uma gran‑de variedade de tipos de problemas guardados na memória. Pelo contrário, os principiantes deixam‑‑se influenciar pelo conteúdo concreto do problema, pelo que têm dificuldades em representá ‑lo de forma abstracta (Marcelo, 1999).

Finalmente, e para complementar o que foi dito anteriormente, Bereiter e Scardamalia (1993) fazem uma distinção entre perícia cristalizada e perícia fluida. A perícia cristalizada consiste no desenvol‑vimento de procedimentos que se foram aprenden‑do com a experiência e que se utilizam para resolver tarefas de forma adequada. A perícia fluida con‑siste em capacidades que surgem quando o perito enfrenta novas e desafiantes situações. Esta perícia fluida, ou adaptativa, desenvolve ‑se ao longo da vida, aumentando à medida que as pessoas enfren‑tam novas situações.

Portanto, sabemos que os professores peritos re‑conhecem e identificam características de problemas e situações que podem escapar à atenção dos prin‑cipiantes. O conhecimento do perito é muito mais do que uma lista de factos desconexos acerca de de‑terminada disciplina. Pelo contrário, o seu conheci‑mento está interrelacionado e organizado em torno de ideias importantes acerca das suas disciplinas. Esta organização de conhecimentos ajuda os peritos a saber quando, porquê e como utilizar o vasto co‑nhecimento que possuem numa situação concreta.

Bransford, Derry, Berliner e Hammerness (2005) assinalaram a necessidade de estabelecer a diferen‑ça entre o “perito rotineiro” e o “perito adaptativo”. São ambos peritos que aprendem ao longo da vida. O perito rotineiro desenvolve um conjunto de com‑petências que vai aplicando ao longo da vida, cada vez com mais eficácia. Pelo contrário, o perito adap‑tativo tem uma maior disponibilidade para transfor‑mar as suas competências, aprofundá ‑las e ampliá‑‑las continuamente. Estes autores defendem uma ideia, do meu ponto de vista, muito interessante se queremos entender o processo de inserção profis‑sional e, consequentemente, programar acções de formação para professores principiantes.

Assim, advogam que há duas dimensões relevantes no processo de conversão em professor perito: ino‑vação e eficiência. Desenvolver uma só dimensão pode não apoiar o desenvolvimento da capacidade adaptativa. A investigação mostra que as pessoas que mais beneficiam das oportunidades de aprendi‑zagem são aquelas que articulam as duas dimensões, situando ‑se dentro do corredor de adaptabilidade óptima. Já existem muitos programas que estão a

principiante frustrado

perito adaptativo

perito rotineiro

eficiência

corredor de

adaptabilidade óptima

ino

vaçã

o

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adoptar a ideia de perícia adaptativa como padrão de desenvolvimento profissional.

DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL E PROCESSOS DE MUDANÇA NOS DOCENTES

Como já dissemos, desenvolvimento profissional e processos de mudança são variáveis intrinsecamen‑te unidas. O desenvolvimento profissional procura promover a mudança junto dos professores, para que estes possam crescer enquanto profissionais — e também como pessoas. Muitas investigações se têm dedicado a tentar perceber como se dão estas mudanças e desenvolvimentos, no fundo, como se constroem as aprendizagens. No estudo dos pro‑cessos de mudança, dá ‑se um grande destaque aos preconceitos e crenças dos docentes. Na formação de professores tem ‑se dado uma especial atenção à análise das crenças que os professores em formação trazem quando iniciam o seu percurso profissional. Entende ‑se crenças como as proposições, premis‑sas que as pessoas têm sobre aquilo que consideram verdadeiro. As crenças, ao contrário do conheci‑mento proposicional, não necessitam da condição de verdade refutável e cumprem duas funções no processo de aprender a ensinar. Em primeiro lugar, as crenças influenciam a forma como os professo‑res aprendem e, em segundo lugar, influenciam os processos de mudança que os professores possam encetar (Richardson, 1996).

A literatura resultante das investigações que se têm feito acerca do aprender a ensinar, identificou três categorias de experiências que influem nas crenças e conhecimentos que os professores têm sobre o ensino:

· Experiências pessoais: incluem aspectos da vida que conformam determinada visão do mundo, crenças em relação a si próprio e aos outros, ideias sobre a relação entre escola e sociedade, bem como família e cultura. A origem socio ‑económica, étnica, de género, religião pode afectar as crenças sobre como se aprende a ensinar.

· Experiência baseada em conhecimento for‑mal: o conhecimento formal, entendido como

aquele que é trabalhado na escola — as cren‑ças sobre as matérias que se ensinam e como se devem ensinar.

· Experiência escolar e de sala de aula: inclui todas as experiências, vividas enquanto estu‑dante, que contribuem para formar uma ideia sobre o que é ensinar e qual é o trabalho do professor.

Das descobertas mais divulgadas conta ‑se aque‑la que afirma que as crenças que os professores já trazem consigo, quando realizam actividades de desenvolvimento profissional, afectam directamen‑te a interpretação e valorização que os professores fazem das suas experiências de formação de profes‑sores. Esta modalidade de aprender a ensinar faz‑‑se através da aprendizagem por observação (Lortie, 1975). Uma aprendizagem que, muitas vezes, não se gera de forma intencional, mas que vai penetrando, de forma inconsciente, as estruturas cognitivas — e emocionais — dos futuros professores, chegando a criar expectativas e crenças difíceis de eliminar.

Ainda que, em muitas investigações, se costume confundir crenças de conhecimentos, estes são fenó‑menos que se deveriam diferenciar. Muitas vezes, o conhecimento é descrito como estando baseado em evidências, dinâmico, sem influências emocionais, internamente estruturado e que se desenvolve com a idade e a experiência. O conhecimento conceptu‑al é usado para resolver problemas. A quantidade, organização e acessibilidade do conhecimento con‑ceptual diferenciam os peritos dos principiantes. Pelo contrário, as crenças por vezes são descritas como estáticas, vinculadas a emoções, organizadas em sistemas e sem apoio em evidências. As crenças têm funções afectivas e valorativas, actuando como filtro de informação que influencia a forma como se usa, guarda e recupera o conhecimento. Por outro lado, também predizem condutas (Gess ‑Newsome, 2003, p. 55).

A investigação que se tem feito sobre os siste‑mas de crenças tem tido grande importância, por‑que tem apontado explicações sobre o porquê de muitas acções de desenvolvimento profissional não terem um impacto real na mudança das práticas de ensino e, menos ainda, na aprendizagem dos alu‑nos. Portanto, se se quer facilitar o desenvolvimento profissional dos docentes, devemos compreender

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o processo mediante o qual os professores crescem profissionalmente, bem como as condições que aju‑dam e promovem esse crescimento.

O modelo que está implícito na maioria dos pro‑gramas de desenvolvimento profissional pode ser observado nas etapas da figura seguinte. O desen‑volvimento profissional pretende provocar mudan‑ças nos conhecimentos e crenças dos professores. Por sua vez, a mudança nos conhecimentos e cren‑ças provoca uma alteração das práticas docentes em sala de aula e, consequentemente, uma provável me‑lhoria nos resultados da aprendizagem dos alunos.

No entanto, como demonstraram Guskey e Sparks (2002), os processos não funcionam desta forma. Do ponto de vista destes autores, os professores mudam as suas crenças, não como consequência da sua participação em actividades de desenvolvimen‑to profissional, mas sim comprovando, na prática, da utilidade e exequibilidade dessas novas práticas que se querem desenvolver. A mudança de crenças é um processo lento, que se deve apoiar na percepção de que os aspectos importantes do ensino não serão distorcidos com a introdução de novas metodolo‑gias ou procedimentos didácticos.

Mudança nos resultados

da aprendizagem dos alunos

Mudança nas condutas das turmas

Mudança no conhecimento e

crenças

Formação de

professores

O modelo implícito no desenvolvimento profissional docente

Mudança nas crenças e

atitudes dos professores

Mudança nos resultados

da aprendizagem dos alunos

Mudança de práticas

na sala de aula

Formação de

professores

Modelo do processo de mudança dos professores, de Guskey

Clarke e Hollinsworth têm criticado os modelos anteriores por serem lineares e não representarem a complexidade dos processos de aprendizagem dos professores nos programas de desenvolvimento profissional. Eles propõem um novo modelo não li‑near, mas sim interrelacionado. Segundo este mode‑lo, a mudança ocorre através da mediação dos pro‑cessos de aplicação e reflexão, em quatro âmbitos:

o domínio pessoal (conhecimentos, crenças e atitu‑des do docente), o domínio das práticas de ensino, as consequências na aprendizagem dos alunos e o domínio externo. Estes autores defendem que o de‑senvolvimento profissional se produz tanto pela re‑flexão dos docentes, como pela aplicação de novos procedimentos (evidentemente que nem sempre a reflexão conduz a aprendizagens).

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OS CONTEÚDOS DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL

Sobre o que versa o desenvolvimento profissional docente? Quais são as suas matérias e conteúdos? Esta é uma pergunta incontornável quando abor‑damos a temática do desenvolvimento profissional docente. E, basicamente, esta pergunta leva a que coloquemos outras: o que é que os professores co‑nhecem e o que é que devem conhecer? Quais os conhecimentos relevantes para a docência e para o seu desenvolvimento profissional? Como é que este conhecimento se adquire?

Cochran ‑Smith e Lytle (1999) diferenciaram este tipo de conhecimento — o conhecimento para o en‑sino — tendo em consideração a origem, processo e papel dos professores no processo de produção desse mesmo conhecimento. Assim, estabeleceram diferenças entre:

· Conhecimento para a prática: nesta primei‑ra concepção entende ‑se que a relação entre conhecimento e prática é aquela na qual o conhecimento serve para organizar a prática e, desta forma, conhecer mais (conteúdos,

teorias educativas, estratégias instruccionais) conduz, de maneira mais ou menos directa, a uma prática mais eficaz. O conhecimento para ensinar é um conhecimento formal, que deriva da investigação universitária, ou seja aquele de que se fala quando os teóricos di‑zem que o ensino gera um corpo de conhe‑cimento distinto do conhecimento comum. Nesta perspectiva, a prática tem muito a ver com a aplicação do conhecimento formal às situações práticas de ensino.

· Conhecimento na prática: a ênfase da inves‑tigação sobre aprender a ensinar tem sido co‑locada na procura do conhecimento na acção. Pensa ‑se que aquilo que os professores co‑nhecem está implícito na prática, na reflexão sobre a prática e na indagação e narrativa des‑sa prática. Um pressuposto desta perspectiva resulta da convicção de que o ensino é uma actividade envolta em incerteza, espontânea, contextualizada e construída como resposta às particularidades do dia ‑a ‑dia das escolas e salas de aula. O conhecimento emerge da acção, das decisões e juízos que os professo‑res tomam. Este é um conhecimento que se

Resultados obtidos

Experimentação profissional

Fontes externas de informação

ou estímulo

Conhecimentos, crenças

e atitudes

domínio externo

domínio pessoal

aplicação

reflexão

domínio das práticas

domínio das consequências

Modelo inter ‑relacional de desenvolvimento profissional (Clarke & Hollingsworth, 2002)

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adquire através da experiência e deliberação, sendo que os professores aprendem quando têm a oportunidade de reflectir sobre o que fazem.

· Conhecimento da prática: esta última ten‑dência está incluída na linha de investigação qualitativa, mas próxima do movimento de‑nominado “o professor como investigador”. Parte ‑se da ideia que em ensino não tem sen‑tido distinguir entre conhecimento formal e prático, mas que o conhecimento é constru‑ído de forma colectiva no interior de comu‑

nidades locais, formadas por professores que trabalham em projectos de desenvolvimento da escola, de formação ou de indagação cola‑borativa (Cochran ‑Smith & Lytle, 1999).

Um dos contributos que continua a ser utilizado para compreender o conhecimento dos professores é o de Grossman (1990). Morine‑Dershimer e Kent (2003) alteram o modelo proposto por Grossman, incorporando as descobertas de investigações mais recentes. No seu modelo, o conhecimento dos pro‑fessores inclui os seguintes elementos:

Categorias que contribuem para o Conhecimento Didáctico do Conteúdo (Morine‑Dershimer & Kent, 2003).

Conhecimento didáctico

do conteúdo

Conhecimento de contextos específicos

Conhecimentos de contextos

educativos gerais

Conhecimento do currículo

Conhecimento do conteúdo

Procedimentos de avaliação de resultados

Fins educativos, propósitos e valores

Conhecimento pedagógico

Conhecimento sobre os alunos e sua

aprendizagem

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Em primeiro lugar, destaca ‑se a necessidade de que os professores possuam um conhecimento pedagó‑gico geral, relacionado com o ensino, com os seus princípios gerais, com a aprendizagem e com os alu‑nos, assim como com o tempo académico de apren‑dizagem, o tempo de espera, o ensino em pequenos grupos, a gestão da turma, etc. Inclui, também, o conhecimento sobre técnicas didácticas, estruturas das turmas, planificação do ensino, teorias do de‑senvolvimento humano, processos de planificação curricular, avaliação, cultura social e influências do contexto no ensino, história e filosofia da educação, aspectos legais da educação, etc.

Para além de conhecimento pedagógico, os pro‑fessores têm que possuir conhecimento sobre as matérias que ensinam. Conhecer e controlar com fluidez a disciplina que ensinamos, é algo incontor‑nável no ofício docente. A este respeito, Buchmann diz que “conhecer algo permite ‑nos ensiná ‑lo; co‑nhecer um conteúdo em profundidade significa que, de uma maneira geral, se está mentalmente or‑ganizado e bem preparado para ensiná ‑lo” (1984, p. 37). Quando o formador não possui conhecimentos adequados acerca da estrutura da disciplina que está a ensinar, pode representar o conteúdo aos seus alunos de forma errónea. O conhecimento que os formadores possuem do conteúdo a ensinar tam‑bém influencia o quê e como o ensinam.

O Conhecimento Didáctico do Conteúdo apa‑rece como um dos elementos centrais do saber do formador. Representa a combinação adequada en‑tre o conhecimento da matéria a ensinar e o cor‑respondente conhecimento pedagógico e didáctico

necessário para o fazer. Nos últimos anos, tem ‑se trabalhado em diferentes contextos educativos com o intuito de clarificar quais os elementos deste tipo de conhecimento profissional do ensino. Como li‑nha de investigação, o Conhecimento Didáctico do Conteúdo representa a confluência de esforços de investigadores do ramo da didáctica com investiga‑dores de matérias específicas preocupados com a formação de professores. O Conhecimento Didácti‑co do Conteúdo leva ‑nos a um debate sobre a forma de organização e de representação do conhecimen‑to, utilizando analogias e metáforas. Coloca a neces‑sidade de que os professores que se encontram em formação adquiram um conhecimento próprio de um perito do conteúdo a ensinar, para que possam desenvolver um ensino propício à sua compreensão por parte dos alunos.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento profissional docente é um campo de conhecimento muito amplo e diverso, do qual ten‑támos mostrar algumas das suas ideias gerais. Apro‑fundar requer uma análise mais pormenorizada dos diferentes processos e conteúdos que levam os do‑centes a aprender a ensinar. E não existe apenas uma resposta a esta questão. Mas, seja qual for a orienta‑ção que se adopte, é necessário que se compreenda que a profissão docente e o seu desenvolvimento constituem um elemento fundamental e crucial para assegurar a qualidade da aprendizagem dos alunos.

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Referências bibliográficas

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Resumo: O presente artigo toma como ideia central e ponto de partida o conceito de que a carreira profissional docente é um percurso relacional e contextualmente vivenciado e construído, em que a pessoa ‑professor se vai diacronicamente desenvolvendo, segundo um conjunto de etapas ou fases com características próprias, em espaços e tempos diferenciados e com necessidades específicas de formação.

No processo contínuo de “tornar ‑se professor”, cada docente, face aos desafios e exi‑gências da sociedade, da escola, dos alunos, das famílias e das comunidades, assume múl‑tiplas funções. Entre estas estão as de construtor e de gestor do currículo e as de formador, designadamente como supervisor das práticas pedagógicas dos cursos de formação ini‑cial, cujo desempenho depende e traduz a pessoa e o professor que cada docente é, pelo que, para as investigarmos e melhor compreender, não podemos deixar de as situar no momento da carreira em que o mesmo se encontra, com as suas características e necessi‑dades específicas.

Palavras ‑chave: Etapas da carreira, Formação de Professores, Currículo, Supervisão.

s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 8 · j a n / a b r 0 9 i s s n 1 6 4 6 ‑ 4 9 9 0

Desenvolvimento profissional e carreira docente — Fases da carreira, currículo e supervisão

José Alberto Gonç[email protected]

Universidade do Algarve

Gonçalves, José Alberto (2009). Desenvolvimento profissional e carreira docente — Fases da carreira,

currículo e supervisão. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 08, pp. 23‑36

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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INTRODUÇÃO

É hoje inquestionável que a formação ao longo da vida é uma resposta necessária aos permanentes desafios da inovação e da mudança e, simultanea‑mente, condição de promoção do desenvolvimento pessoal e profissional dos professores.

Importa, assim, que nos preocupemos em compre‑ender como os docentes se vão “tornando professores” ao longo da sua carreira, para, deste modo, se encontra‑rem as respostas formativas mais adequadas às caracte‑rísticas específicas de cada momento da sua condição de pessoas ‑profissionais, tendo presentes, ao mesmo tempo, as diferentes conjunturas sócio ‑educativas.

Esta foi uma preocupação que sempre marcou a minha actividade tanto na formação de professores como na investigação, designadamente nos estudos que constituíram a minha dissertação de Mestrado (Gonçalves, 1990) e a minha tese de Doutoramento (Gonçalves, 2000) e ainda em dissertações e teses que tenho vindo a orientar, cujas linhas de investiga‑ção se têm centrado quer em dimensões específicas da acção docente quer em campos da formação ini‑cial de educadores e professores.

No presente artigo, tomando como ponto de partida o “itinerário ‑tipo” da carreira que delineei e considerando dois campos correlativos da forma‑ção — o currículo e a supervisão —, integrarei numa reflexão mais global alguns dos resultados obtidos em duas dissertações de Mestrado que orientei (Gaspar, 2003; Severino, 20041), após o respectivo enquadramento conceptual.

A CARREIRA DOCENTE COMO PERCURSO DE DESENVOLVIMENTO E FORMAÇÃO

A carreira docente configura ‑se como um processo de formação permanente e de desenvolvimento pes‑soal e profissional do adulto ‑professor, que compre‑ende não apenas os conhecimentos e competências que o mesmo constrói na formação, mas também a pessoa que ele é, com todas as suas crenças, idiossin‑crasias e história de vida, e o contexto em que exerce a actividade docente (Hargreaves & Fullan, 1992).

Assim sendo, necessário se torna compatibilizar o desenvolvimento do professor com o desenvolvimen‑to organizacional da escola, processo que, segundo Day (1999), deve atender a seis princípios: i) o desen‑volvimento do docente é contínuo, realizando ‑se ao longo de toda a vida; ii) deve ser auto ‑gerido, sendo contudo da responsabilidade conjunta do professor e da escola; iii) deve ser apoiado e dispor dos recursos materiais e humanos necessários à sua concretização; iv) deve responder aos interesses do professor e da escola, embora nem sempre em simultâneo; v) deve configurar ‑se como um processo credível; e vi) deve ser diferenciado, de acordo com as necessidades dos professores, designadamente as específicas da sua etapa de desenvolvimento profissional.

A maneira de ser professor varia, pois, ao longo da carreira, configurando um processo evolutivo em que é possível identificar momentos específicos, marcados por diferenças de atitude, de sentimentos e de empenhamento na prática educativa, resultantes

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do modo como ele percepciona as relações com os seus pares e com os alunos, a sua prática e o sistema educativo em geral (Gonçalves, 1990; Gonçalves & Simões, 1991).

Em síntese, podemos afirmar que cada docen‑te se torna no professor que é como resultado de um processo idiossincrático e auto ‑biográfico de desenvolvimento pessoal e profissional que, tendo por base as suas características pessoais e a sua per‑sonalidade, se realiza através de transições de vida, para que concorrem factores de natureza pessoal e sócio ‑profissional que compreendem o ambiente de trabalho na escola, as características específicas da profissão (Glickman, 1985), os contextos históricos e organizacionais e as culturas em que os professo‑res desenvolvem o seu trabalho, bem como as res‑pectivas fases de desenvolvimento cognitivo e emo‑cional (Day, 1999; Hargreaves, 1998).

São muito diversificados, porém, os pressupostos teóricos e metodológicos e as formas que podem re‑vestir e configurar os estudos sobre a vida profissional ou a carreira dos professores, tal como se torna evi‑dente na sistematização que deles faz Nóvoa (1992).

Deste modo, e considerando que “o comporta‑mento profissional dos professores, e o seu desen‑volvimento, só pode ser convenientemente com‑preendido quando situado no contexto mais lato de uma carreira e de uma história de vida pessoal” (Kelchtermans & Vandenberghe, 1994, p. 45), optei, nos processos investigativos que desenvolvi e que, no seu conjunto, assumem uma perspectiva de in‑vestigação longitudinal, por considerar o conceito de carreira como uma sucessão de ciclos de vida profissional, no quadro teórico ‑metodológico da abordagem biográfica, e tomando por referente os trabalhos de Huberman (1989, entre outros).

Em concreto, procedi à análise dos percursos profissionais de 42 professoras do 1º. Ciclo do En‑sino Básico do concelho de Olhão, obtidos por re‑memorização retrospectiva, através de entrevistas semi ‑estruturadas de cariz auto ‑biográfico, com o fim de i) identificar os aspectos temáticos e/ou “traços” caraterizadores da carreira, genericamente entendi‑da, e ii) encontrar as “regularidades” dos respectivos vividos profissionais que me pudessem facultar o es‑tabelecimento de um “modelo” de desenvolvimento dessa mesma carreira, bem como os “traços” que me

permitissem caracterizar cada um dos respectivos “momentos”, “fases” ou “etapas”. Este conjunto de procedimentos permitiu ‑me, assim, elaborar um pri‑meiro “itinerário ‑tipo” de carreira.

Seis anos depois, levando em linha de conta que, ao longo do seu percurso profissional, o professor acumula e reinterpreta a experiência que vai adqui‑rindo (Ball & Goodson, 1985), processo que o leva, em função dos contextos envolventes, a (re)definir e a modificar as suas atitudes e valores acerca do ensino, dos alunos e da educação em geral, reelaborando e redimensionando as suas perspectivas profissionais, voltei a entrevistar as mesmas docentes, recorrendo a idênticos procedimentos metodológicos.

Analisados os dados obtidos, foi ‑me possível (re)delinear, no plano diacrónico, as respectivas tra‑jectórias profissionais e, ainda, através de sucessivos processos de comparação e triangulação, reconcep‑tualizar o “itinerário ‑tipo” que havia construído (Fi‑gura 1), composto por cinco fases ou etapas, a saber:

Fonte: Gonçalves, 2000, p. 438.

Fase 1: O “início”Esta primeira fase, cuja designação se ficou a dever ao modo como as entrevistadas se referiam à sua entrada na profissão, prolonga ‑se até cerca dos 4 anos de ser‑viço e é caracterizada por uma “variação” entre a luta pela “sobrevivência”, determinada pelo “choque do

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divergência (+)empenhamento,

entusiasmo

renovação do “interesse”

renovação do entusiasmo

divergência (‑)descrença, rotina

desencantodesinvestimento

e saturação

anos de experiência

1-4

5-7

8-14

15-22

≥ 23

etapas/traços dominantes

o “início”choque do real, descoberta

estabilidadesegurança, entusiasmo, maturidade

serenidade

reflexão, satisfação pessoal

figura 1 — etapas da carreira

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real”, e o entusiasmo da “descoberta” de um mundo profissional ainda algo idealizado, que se abre às pro‑fessoras que estão a iniciar a sua carreira.

Aquelas para quem o primeiro aspecto se consti‑tui como determinante, o início do percurso profis‑sional pauta ‑se por uma luta pessoal entre a vontade de se afirmar e o desejo de abandonar a profissão, onde pesam, de acordo com as suas palavras, a “fal‑ta de preparação”, real ou suposta, para o exercício da docência, as “condições difíceis de trabalho” e o “não saber como fazer ‑se aceitar como professora”, fruto da inexperiência.

Quando o “traço” determinante é o entusiasmo da “descoberta”, a entrada na carreira é vivida “sem dificuldades”, dada a convicção ou o sentimento de se “sentirem preparadas”, ainda que essa “facilida‑de” inicial — tal como algumas rememoraram — não seja mais que aparente ou ilusória.

Fase 2: EstabilidadeA segunda etapa, que oscilará entre os 5 e os 7 anos do percurso profissional, podendo prolongar ‑se, em alguns casos, até cerca dos 10 anos, caracteriza‑‑se por um assumir de confiança, a que não são alheios a tomada de consciência de que se “é capaz” de gerir o processo de ensino ‑aprendizagem, a sa‑tisfação pelo trabalho desenvolvido e um gosto pelo ensino, por vezes até então não pressentido.

É uma fase de “acalmia”, relativamente uniforme para todas as professoras, quer o “início” tenha sido “fácil” ou problemático.

Fase 3: DivergênciaDe cerca dos 8 aos 14 anos de serviço, o “desequilí‑brio” torna ‑se dominante, divergindo a carreira das entrevistadas, por referência à fase anterior, pela po‑sitiva ou pela negativa, independentemente do sen‑tido do início do seu percurso profissional.

É esta “divergência” que leva umas a continua‑rem a investir, de forma empenhada e entusiástica, na carreira, procurando uma cada vez maior valo‑rização profissional, enquanto outras, pelo contrá‑rio, se alheiam, alegando “cansaço” e “saturação”, deixando ‑se, mesmo, cair na rotina.

Fase 4: SerenidadeA quarta fase situa ‑se entre os 15 e os 22 anos da car‑reira, caracterizando ‑se, tal como a sua designação

expressa, por uma “acalmia” distendida, fruto não propriamente de uma quebra no entusiasmo profis‑sional da etapa anterior, mas, sobretudo, por um “dis‑tanciamento afectivo” e por uma capacidade de refle‑xão e ponderação, determinadas tanto por um proces‑so de “reinteriorização” como pela experiência.

O sentimento dominante é, nesta altura, a satis‑fação pessoal por saber “o que se está a fazer”, na convicção de que “se faz bem”, o que, por vezes, já não será alheio a um certo “conservadorismo”.

Fase 5: Renovação do “interesse” e desencantoEm “fim de carreira”, isto é, entre aproximadamente os 23 e os cerca de 31 anos de serviço, os percursos profissionais podem voltar a divergir em sentidos opostos. A maior parte das entrevistadas demons‑trou, então, cansaço, saturação e impaciência na es‑pera pela aposentação, enquanto algumas, segundo as suas próprias palavras, já não se sentiam mesmo “capazes de ouvir e aguentar as crianças”. Outras, por seu lado, em número bem menos significativo, pareciam ter “reinvestido” na profissão, revelando um interesse renovado, mostrando ‑se “entusiasma‑das” e desejando “continuar a aprender coisas no‑vas”. Refira ‑se, ainda, que algumas destas últimas acabaram por “derivar” para o desencanto, mas que tal nunca se verificou em sentido contrário.

Resta ‑me acrescentar que, sendo os percursos pro‑fissionais pessoalmente vivenciados e socialmente construídos, neles pesando, por vezes, de modo de‑terminante, factores de natureza aleatória, o desen‑volvimento da carreira docente não deve ser tomado num sentido determinístico, dada até a sua possibi‑lidade de alteração configuracional, designadamen‑te em termos de “limites” temporais das etapas ou fases, sempre que a estrutura da carreira e/ou algu‑mas das suas condicionantes se modificam.

PERSPECTIVAS CURRICULARES AO LONGO DA CARREIRA

Mudando, como referi, em diversos aspectos, o pensamento e a acção dos professores, ao longo das diferentes fases ou etapas da sua carreira, para isso concorrendo também a “formação contínua” e o

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conhecimento experiencial construído ao longo do tempo como resultado da prática educativa desen‑volvida e do trabalho com os pares, lógico é admitir que também se alterará diacronicamente o modo como os mesmos perspectivam e gerem o currículo.

Foi este o “tema” central do estudo, que orien‑tei, realizado por Gaspar (2003), cujos objectivos principais visavam a identificação e caracterização das perspectivas curriculares de 15 professoras do 1º Ciclo do Ensino Básico do concelho de Mértola e a compreensão da influência do seu percurso pro‑fissional na construção dessas perspectivas, pela lei‑tura triangulada destas com as características do seu percurso profissional, tomando como referencial de análise o “itinerário ‑tipo” de carreira descrito no ponto anterior.

Em termos conceptuais, o currículo é entendido, neste estudo, como “um campo crítico de aquisição de saberes de referência e de competências para aprender (...) que viabilizem processos realistas de formação ao longo da vida” (Roldão, 1999a, p. 17) e, ao mesmo tempo, como um projecto integrado de cultura e de formação, que “fundamenta, articula e orienta todas as actividades e experiências educa‑tivas realizadas na escola, dando ‑lhes um sentido e intencionalidade e integrando todo um conjunto de intervenções diferenciadas num projecto unitário” (Alonso, 1996, p. 11).

Tomado como projecto, o currículo implica tomadas de decisão, a diversos níveis, contextos e práticas, que supõem diferentes momentos (con‑cepção, desenvolvimento e avaliação), no âmbito de um tempo e espaço próprios, e opções, de acordo com três aspectos essenciais: modelo curricular a adoptar, organização interna que o currículo pode assumir e papel a desempenhar pelos professores (Pacheco & Paraskeva, 2000).

Assim sendo, compete à escola o reajustamen‑to e a definição dos instrumentos curriculares que consubstanciam a concretização das orientações de‑finidas a nível nacional, delineadas no âmbito da po‑lítica educativa adoptada, competindo ao professor a sua adequação à realidade singular de cada turma e de cada aluno.

Estamos, assim, no campo do desenvolvimento curricular, dizendo Roldão (1999b, p. 38), a propó‑sito, que o mesmo corresponde a um “processo de decisão e gestão curricular, o que implica construir

e fundamentar propostas, tomar decisões, avaliar re‑sultados, refazer e adequar processos — ao nível da escola e dos professores”.

Os professores assumem ‑se, então, neste contex‑to, como construtores e gestores do currículo, papel não alheio, por certo, ao seu processo de desen‑volvimento profissional, na medida em que as suas concepções pessoais sobre o mesmo dependem dos valores que defendem e do seu conhecimento práti‑co, de acordo com a sua maturidade e as suas expe‑riências profissionais (Brazão, 1996).

Em termos de resultados, o estudou permitiu não só caracterizar, na generalidade, as perspecti‑vas curriculares das 15 professoras (3 por cada uma das cinco etapas do “itinerário ‑tipo”), mas também a “evolução” destas ao longo da carreira, dimensão que, de modo específico, agora nos interessa.

Numa análise interpretativa global e transver‑sal dos dados, obtidos através de entrevistas semi‑‑estruturadas de natureza retrospectiva, passarei, de imediato, a referir apenas os aspectos mais signifi‑cativos da “evolução” das perspectivas curriculares das protagonistas do estudo ao longo da sua carrei‑ra, tomando por referência as quatro categorias que emergiram no processo de análise de conteúdo das entrevistas: “início da carreira”, “momento actual”, “momentos considerados de mudança na sua práti‑ca” e “expectativas profissionais futuras”.

Quanto à primeira, todas as entrevistadas se pro‑nunciaram, sobretudo as da quarta e quinta etapas da carreira (serenidade e renovação do “interesse” e desencanto), como resultado, porventura, do maior distanciamento em termos temporais relativamente ao início do seu percurso profissional. Relevam das afirmações proferidas, em termos de valores percen‑tuais, os seguintes indicadores: “utilizava muito os manuais escolares”, numa nítida e tradicional “co‑lagem” do conceito de currículo a manual, e “era menos criativa”, querendo por certo significar uma ainda menor competência na gestão e operacionali‑zação dos princípios e conteúdos curriculares. Me‑recem ainda referência os indicadores “só pensava no que tinha que ensinar”, que traduz uma centra‑ção na tarefa, fruto da inexperiência e de um ainda pouco elaborado conhecimento experiencial, e “tra‑balhava mais de modo individual”, significando um fechar ‑se em si próprias fruto da insegurança e do individualismo docente ainda não vencido.

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A categoria “momento actual”, compreende “vi‑vências” positivas e negativas. As primeiras, com muito maior peso relativo, ficaram a dever ‑se, prin‑cipalmente, às entrevistadas que se situavam nas fases da divergência e da renovação do “interesse” e desencanto, talvez como resultado de alguns tra‑ços caracterizadores que as “aproximam”. Curiosa‑mente, as professoras que se encontravam na fase da serenidade não se pronunciaram sobre o aspecto. Os indicadores mais expressivos desta subcategoria são: “gosto daquilo que faço”, “tenho muito entu‑siasmo” e “tenho mais experiência”, significando um assumir ‑se definitivo como profissional e uma competência construída de gestão do processo edu‑cativo, nas suas diferentes dimensões.

No que às “vivências” negativas se refere, devem‑‑se as mesmas, quase exclusivamente, às entrevista‑das da primeira fase da carreira, expressando ‑se, so‑bretudo, em referências a “ansiedade”, “indecisão”, “cansaço” e “pouca experiência”, sentimentos e/ou atitudes perfeitamente compreensíveis para quem está a iniciar o seu múnus profissional.

Passando à referida terceira categoria de análi‑se — “momentos considerados de mudança na sua prática” — nela se destaca, por presente no discurso de todas as entrevistadas, o indicador “tenho vindo a mudar”, que traduz a sua tomada de consciência quanto à “evolução” na sua actividade docente. Mais especificamente, identificam como momentos de mudança no plano curricular: o aparecimento da Área ‑Escola, as alterações dos programas e a intro‑dução/alteração do “modelo de gestão das escolas”. Sem negar a importância efectiva destes aspectos, a sua prevalência em termos de referências, traduz, na verdade, que os professores mudam as suas práticas curriculares mais por “imposição” externa do que por um processo natural de desenvolvimento in‑trínseco ao funcionamento pedagógico da escola e a uma auto ‑reflexão sobre a sua prática.

Quanto a esta categoria, detenhamo ‑nos, ainda, na identificação dos “aspectos mudados na sua prá‑tica”, que constitui uma das respectivas subcatego‑rias. Deles relevam, como mais indicados e pelo seu significado curricular: “diminuição da importância do manual escolar” (devido a entrevistadas de to‑das as fases da carreira, excepto, como é natural, da primeira), “valorização com colegas/comunidade” e “valorização das vivências dos alunos” (presentes

nos discursos das professoras das três últimas fases da carreira) e, ainda, “valorização da participação dos alunos no processo de aprendizagem”, de acor‑do com as afirmações das protagonistas das etapas da estabilidade, da divergência e da renovação do “interesse” e desencanto. Todos estes indicadores indiciam uma descentração de si e da tarefa, uma maior abertura ao trabalho cooperativo e uma aten‑ção redobrada às condições de aprendizagem e aos problemas dos alunos, resultantes não só de uma maior mestria educativa, para que concorre, por certo, uma leitura compreensiva mais aprofundada dos princípios, conceitos e orientações curriculares e uma acrescida capacidade de os operacionalizar e implementar, construídas diacronicamente, mas também da “descoberta” do significado e importân‑cia formativa do trabalho inter ‑pares.

Centremo ‑nos, por último, na categoria “ex‑pectativas profissionais futuras”, cujos indicadores mais significativos são: “quero aprender mais” e “gostava de continuar entusiasmada”, que expres‑sam, respectivamente, um sentido de construção permanente do ser professor e um sentimento de satisfação e/ou realização profissional.

Uma análise de conjunto dos dados, feita em função das etapas da carreira, permite ‑nos, então, evidenciar os seguintes aspectos, em termos de “evolução” das perspectivas curriculares das entre‑vistadas:

∙ a primeira fase da carreira caracteriza -se, principalmente, pelo reconhecimento de uma menor participação no desenvolvimento do currículo, a que não é alheio o relevo dado aos manuais escolares, e por uma menor “preocu-pação” com os alunos, congruentes, aliás, com as características desta etapa do seu percurso profissional, marcada por uma centração nas suas pessoas e/ou nos conteúdos; é nesta etapa também que o trabalho conjunto com as enti-dades locais é menos valorizado;

∙ nas três primeiras etapas da carreira (“início”, estabilidade e divergência) é mais valorizado o trabalho realizado em grupo pelos alunos, in-fluência, porventura, das alterações sobrevin-das, desde 1974, na formação dos professores;

∙ as três últimas fases do percurso profissional são aquelas em que o “trabalho com os colegas”

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é mais considerado como importante em ter-mos de aprendizagens e formação;

∙ as etapas da divergência e da serenidade são aquelas em que mais se afirma o protagonismo das entrevistadas quanto ao desenvolvimento curricular, dada, porventura, a experiência acumulada, o entusiasmo que caracteriza a primeira, se vivida pela positiva, e o distan-ciamento reflexivo que a segunda pressupõe;

∙ a valorização dos alunos aumenta ao longo da carreira, sendo, sobretudo, nas duas últimas fases que as entrevistadas os consideram como “parceiros do processo educativo”; é igualmen-te nestas duas últimas etapas que as protago-nistas do estudo denotam maior tendência para considerarem os pais como parceiros educativos e em que assumem algum protago-nismo face a outros agentes educativos locais com que a escola desenvolve projectos;

∙ nas três últimas fases do percurso profissional, mas sobretudo nas da serenidade e na da reno-vação do “interesse” e desencanto, as entrevis-tadas revelam uma maior capacidade de refle-xão e de sentido de mudança, o que não deve ser alheio a um certo distanciamento afectivo e sentido crítico acerca do vivido, facilitado pelo fenómeno de (re)interiorização sócio--psicológica que começa, então, a definir -se.

SUPERVISÃO E FASES DA CARREIRA

Reportando ‑nos, agora, à formação inicial e, mais exactamente, ao campo da supervisão das práticas pedagógicas, Severino (2007) desenvolveu, sob mi‑nha orientação, um estudo, cujos objectivos princi‑pais eram: i) identificar e caracterizar os estilos de supervisão das educadoras cooperantes do Curso de Formação de Educadores de Infância da Escola Superior de Educação da Universidade do Algarve e ii) conhecer se e como os estilos de supervisão das mesmas são influenciados pelo desenvolvimento das respectivas carreiras.

Este estudo parte do pressuposto de que a prá‑tica pedagógica ou iniciação à prática profissional e a respectiva supervisão são componentes essenciais do processo formativo docente. Toma a primeira na acepção de componente curricular da formação

que tem por finalidade explícita a iniciação dos fu‑turos educadores/professores no mundo da prática docente e proporcionar ‑lhes o desenvolvimento de competências necessárias a um desempenho ade‑quado e responsável (Formosinho, 2001). Entende a segunda como “supervisão sinérgica”, na concep‑tualização que dela fazem Janosik e Creamer (2003), quando a perspectivam como um processo que re‑conhece as necessidades de desenvolvimento dos formandos e as metas das organizações educativas, numa relação dual em que supervisor e supervi‑sando têm que aprender a utilizar confluências de energias e de esforços e uma comunicação bi ‑lateral com enfoque nas competências e metas necessárias ao desenvolvimento interpessoal e construtivo de todos os sujeitos envolvidos.

Na formação inicial, o supervisor (tanto o da instituição de formação como o educador/profes‑sor cooperante, isto é, aquele em cuja sala/turma o formando realiza a sua prática pedagógica) deverá assumir ‑se como um mediador entre o supervisando e o seu ambiente formativo, salientando dados po‑tencialmente relevantes, a partir dos quais o forman‑do poderá construir novos significados (Garmston et al., 2002). Para tal, e dando corpo substantivo ao processo supervisivo, deverá o supervisor criar situ‑ações geradoras de uma interacção verdadeiramente educativa que favoreçam “a comunicação, a nego‑ciação, a argumentação e a actuação estratégica dos interlocutores” em presença (Vieira, 1995, p. 56).

Assim sendo, e sem menosprezo pelas suas di‑mensões científica e pedagógico ‑didáctica, a su‑pervisão deve configurar ‑se como um processo humanista e desenvolvimentista, de natureza es‑sencialmente relacional, cuja essência se traduz no estabelecimento de relações facilitadoras do desen‑volvimento dos futuros educadores/professores, ba‑seadas em atitudes de ajuda, disponibilidade auten‑ticidade, encorajamento e empatia dos superviso‑res, as quais se constituem, afinal, como factores de promoção do crescimento e da aprendizagem dos formandos (Gonçalves, 1998).

Em congruência, para que se produza uma co‑municação autêntica, de colaboração, compreensão e encorajamento, o supervisor deve ser detentor de uma vasta gama de competências, a que Glickman (1985) chama skills interpessoais e que Acheson e Gall (1993) consideram que se expressam nos se‑

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guintes comportamentos comunicativos: i) escutar primeiro, falar depois, ii) aceitar e utilizar as ideias dos formandos, iii) colocar questões de clarificação e iv) felicitar os formandos pelos seus sucessos.

São estes comportamentos que configuram a consecução da interacção comunicativa, consubs‑tanciada em quatro processos: o diálogo de acon‑

selhamento e os seus enfoques, o feedback, como estratégia construtiva da comunicação, a comunica‑ção não ‑verbal, como factor de compreensão do for‑mando e a metacomunicação e o seu papel no pro‑cesso de supervisão, na sistematização de Gonçal‑ves e Gonçalves (2002), que a Figura 2 representa.

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Os enfoques do diálogo de aconselhamento

A comunicação não verbal como factor de compreensão

do formando

A metacomunicação e o seu papel no processo de

supervisão

O feeddback como estratégia construtiva da comunicação

processos comunicativos nasrelações de supervisão

desenvolvimento pessoal e profiss ional dosupervisor e do supervisado

figura 2 processos comunicativos nas relações de supervisão

Fonte: Gonçalves e Gonçalves, 2002, p. 498.

De forma sintética, caracterizemos, então, cada um destes processos comunicativos:

a) O diálogo de aconselhamento deve ser colabo‑rativo, aberto, franco e empático e perspecti‑vado como uma forma de ajudar o formando a desenvolver o pensamento reflexivo sobre a sua prática, a relacionar conhecimentos teó‑ricos com situações experienciadas e a cons‑truir um estilo pessoal de actuação.

b) O feedback, enquanto estratégia construtiva da comunicação, deve ser objectivo, descri‑tivo, construtivo, formativo e não apenas crí‑tico, salientando os aspectos mais positivos da acção do formando, ajudando ‑o a tomar decisões sobre a sua acção futura.

c) A comunicação não -verbal, como factor de compreensão do formando, possibilita ao supervisor interpretar as mensagens não‑‑verbais do supervisando, no sentido de o ajudar a superar as dúvidas, anseios e pre‑ocupações que não manifesta verbalmente, por inibição ou receio de ser mal compre‑endido.

d) A metacomunicação significa a relação de compreensão, a nível superior, entre o có‑digo digital da comunicação (o “conteúdo” ou mensagens verbais) e o respectivo códi‑go analógico (formas de comunicação não‑‑verbal).

Na realidade, o supervisor deve ser, antes de mais, um perito em relações humanas, gerando uma co‑municação dialéctica, que passe pelo saber ouvir e pelo desejar compreender, com o intuito de pro‑mover o desenvolvimento dos formandos. Segun‑do Glickman (1985), são três os pré ‑requisitos que devem estar presentes na acção do supervisor: o conhecimento, as competências interpessoais e as competências técnicas, os quais configuram e se ex‑pressam no seu modo de actuação, dando corpo ao respectivo estilo de supervisão.

Distintas são as conceptualizações acerca dos estilos de supervisão, tendo Severino (2007) adop‑tado a de Zahorik (1988), esquematicamente repre‑sentada na Figura 3.

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Sinteticamente, são três os estilos de supervisão:

i. prescritivo: o supervisor realiza uma supervi‑são activa, preocupando ‑se, fundamentalmen‑te, com os comportamentos a desenvolver pe‑los formandos, isto é, privilegia a competência técnica, traduzida, sobretudo, no desenvolvi‑mento de skills instrucionais e de técnicas de gestão do grupo/turma. Está, assim, particu‑larmente atento à quantidade e solidez dos conhecimentos do formando (o académico), prescreve comportamentos, apresentando ‑se como especialista e modelo (o mestre), acon‑selha como tutor, não abdicando, porém da sua autoridade (o mentor) e elenca, analisa e interpreta os comportamentos dos supervi‑sandos, sugerindo e apoiando acções que os mesmo devem ter em conta (o crítico);

ii. interpretativo: o supervisor desenvolve tam‑bém uma supervisão activa e valoriza mais as próprias ideias, em que se centra, do que os pontos de vista dos formandos, levando‑‑os, no entanto, a tomar consciência do que ocorre na sala de aula, questionando a sua prática e sugerindo processos que conduzam à mudança (o humanista), e enfatizando as acções que devem desenvolver, prescrevendo e exemplificando comportamentos (o refor‑mulador);

iii. apoiante: o formador usa uma supervisão re‑activa, valorizando a pessoa, o que o leva a analisar e a aceitar os pensamentos e as ac‑ções dos supervisandos. Em conformidade, é

afectivo, empático e encorajador, centrando‑‑se na pessoa do formando e ajudando ‑o a projectar o seu plano de acção (o terapeuta), serve de mediador e coopera com o supervi‑sando, que impele a tomar decisões respon‑sáveis, eliminando ou reduzindo as dificulda‑des com que este se depara na sala de aula ou na escola (o defensor) e assume ‑se como questionador, visando conhecer em porme‑nor as práticas de ensino do supervisando, avaliando a eficiência destas e decidindo ca‑minhos futuros para a acção (o investigador).

Foi tomando este modelo como referente que a au‑tora do estudo, de acordo com o primeiro dos dois objectivos atrás enunciados e recorrendo à técnica do questionário, identificou e caracterizou os es‑tilos de supervisão do universo de 15 educadoras de infância cooperantes do 4º. Ano do Curso de Formação Inicial de Educadores de Infância da ESE da Universidade do Algarve. Feito isto, e pelo recurso a tabelas de configuração sucessivas, selec‑cionou os quatro “casos” considerados como mais representativos dos estilos de supervisão identifi‑cados, com base no seu posicionamento nas etapas da carreira do “itinerário ‑tipo” por nós construí‑do, com vista à consecução do segundo objectivo anteriormente referido (Ana, do estilo apoiante e que se encontrava na fase da estabilidade, Joana e Inês, ambas na fase da divergência, mas a primeira do estilo prescritivo e a segunda do interpretativo e, por último, Matilde, na fase de serenidade e do estilo prescritivo).

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estilos de actuação do supervisor

tipo de supervisão praticada

o que valoriza t ipos de supervisor

Prescritivo

Interpretativo

Apoiante

Supervisão activa

Supervisão activa

Supervisão reactiva

Os comportamentos a desenvolver

As ideias

A pessoa

∙ académico ∙ mestre∙ mentor∙ crítico

∙ humanista∙ reformulador

∙ terapeuta∙ defensor∙ investigador

figura 3 estilos de supervisão

Fonte: Severino, 2007, p. 58.

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Ora, não havendo estilos “puros” de supervisão, na medida em que todos os supervisores, indepen‑dentemente da sua experiência pessoal, profissional e no campo da formação apresentam, transversal‑mente, características de uns e outros estilos, em‑bora havendo um que é sempre dominante, seria, no entanto, de esperar que, acompanhando o fluir natural da sua carreira, até pela sua crescente matu‑ridade, segurança, mestria e saber experiencial dia‑cronicamente construído, designadamente na prá‑tica da supervisão, se verificasse uma passagem do estilo prescritivo para o interpretativo e deste para o apoiante. A ser assim, verificar ‑se ‑ia a existência de um processo progressivo de descentração pessoal e de sentido acrescido de ajuda, acompanhamento, encorajamento e relação empática das supervisoras com os formandos, ao longo das suas carreiras.

Todavia, na análise interpretativa dos dados rela‑tivos aos quatro “casos” estudados, recolhidos com recurso a entrevistas semi ‑directivas, tais expectati‑vas, não sendo negadas, também não se confirmam, tal como, de seguida, se evidencia:

Supervisora AnaEncontra ‑se na fase da estabilidade (6 anos de servi‑ço). Tem, portanto, pouca experiência profissional e evidencia o estilo apoiante, que significará uma ca‑pacidade de análise, de reflexão e de relacionamento aberto pouco comum numa fase ainda relativamente inicial da carreira.

Supervisora JoanaSitua ‑se na etapa da divergência, pela positiva (9 anos de percurso profissional), e apresenta caracte‑rísticas que a situam no estilo prescritivo, embora com um peso já sinificativo das que configuram o apoiante e não o interpretativo, como seria “lógi‑co” esperar se o processo evolutivo fosse linear. Tal circunstância poder ‑se ‑á, porventura, ficar a dever a uma estabilização supostamente alcançada e que agora é posta em causa pela “divergência”, que abre caminho à diversificação de pontos de vista, aspira‑ções e actividades.

Supervisora InêsEncontra ‑se na fase da divergência (14 anos de car‑reira), agora pela negativa, evidenciando o estilo apoiante, embora tendendo, ainda que moderada‑

mente, para o interpretativo. De acordo com os da‑dos, este “caso” poderá constituir ‑se como expres‑são de um agudo sentido crítico, que leva simulta‑neamente, mas de forma antitética, tanto a uma visão humanista da supervisão como a um “desencanto” profissional.

Supervisora MatildePosicionada na fase da serenidade (20 anos de servi‑ço), deveria evidenciar, de acordo com a nossa hipó‑tese de estudo, o estilo apoiante, quando apresenta o prescritivo, embora evidenciando algumas carac‑terísticas do apoiante.

Sumariamente, este estudo, ainda que de nature‑za exploratória, leva ‑nos a afirmar que os estilos de supervisão das suas protagonistas dependerão mais das suas características pessoais do que pro‑priamente das respectivas fase da carreira, embora, numa leitura mais fina dos dados, se encontrem in‑dícios evidentes de uma interpenetração de factores e circunstâncias que apontam para uma certa ‘com‑plementaridade’ entre os dois campos.

CONCLUSÃO

O “itinerário ‑tipo” da carreira, que elaborei, não deve ser considerado como uma inevitabilidade, mas, sim, como um “percurso tendencial”, que aju‑da, não só a sistematizar os diferentes momentos e circunstâncias que dão sentido e forma e ainda legi‑bilidade investigativa e interpretativa à carreira dos professores, mas também a compreender melhor as suas reais necessidades de formação, nos diversos campos da sua acção educativa, designadamente na suas funções de gestores curriculares e de formado‑res (supervisores).

Constituindo a pessoa e o profissional uma unidade intrínseca, natural se torna admitir que o professor que cada docente é, em cada momento do seu vivido, contextualmente situado, seja o con‑junto idiossincrático da pessoa e do professor, com a sua personalidade, conhecimentos, competências, crenças, atitudes e experiências, que marcam, deci‑sivamente, a sua posição na sociedade, na docência e nas relações com os outros, designadamente com os alunos, com os pares e com a comunidade.

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Deste modo, tal como evidenciámos, através da breve síntese de alguns resultados de dois estudos empíricos, embora de carácter exploratório, é possí‑vel estabelecer um certo paralelismo “evolutivo” en‑tre as etapas da carreira genericamente entendida e a perspectiva e a acção curricular dos professores, por

um lado, e, por outro, ainda que de forma pouco mais que indiciada, daquela com o exercício da fun‑ção de supervisor da formação inicial de educado‑res de infância, processo em que pesam, de maneira decisiva, as características pessoais, designadamen‑te as competências relacionais.

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Notas

1. Publicada em 2007. Vide referências bi blio ‑gráficas.

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Resumo:O conceito de competência é definido e interpretado de múltiplas formas, quer entre cam‑pos científicos diferentes, quer mesmo dentro de um único desses campos. Defende ‑se no presente artigo que há a necessidade de forjarmos uma acepção especializada de “com‑petência” em educação e em formação de professores, em torno da qual os investigadores possam convergir e que contribua para intervenções mais consistentes dos profissionais. A construção e o desenvolvimento das competências dos professores no contexto dos actuais programas portugueses de formação são discutidos e é defendida a ideia de que, mais do que da estrutura desses programas, importa cuidar do modelo ou modelos que os inspiram e das estratégias que são postas em marcha.

Palavras ‑chave:Competência, Competência profissional, Conhecimento profissional, Formação de Pro‑fessores.

s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 8 · j a n / a b r 0 9 i s s n 1 6 4 6 ‑ 4 9 9 0

Construção e desenvolvimento das competências profissionais dos professores

Manuela [email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Esteves, Manuela (2009). Construção e desenvolvimento das competências profissionais dos profes‑

sores. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 08, pp. 37‑48

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Como sucede com quase todos os conceitos em educação, também o conceito de “competência” é susceptível de múltiplas formas de definição e de in‑terpretação, quer nos coloquemos numa perspecti‑va sincrónica e consideremos o seu uso num mesmo tempo mas em espaços diversos, quer observemos a evolução histórica dos sentidos dominantes que foi adquirindo.

É nesta perspectiva que se compreendem os epí‑tetos de conceito “nómada”, “volátil”, “bastardo” com que tem sido qualificado, como recorda Jonnaert (2002, p. 26). Para alguns autores, seria então o caso de, em Educação, se dever pura e simplesmente aban‑donar um termo que se presta a tão grandes confusões. Obviamente não nos reconhecemos em tal posição, e daí este artigo com o qual pretendemos (imodesta‑mente) contribuir para a análise crítica e a discussão do conceito de competência profissional dos profes‑sores e, simultaneamente, dar nota dos resultados de alguns trabalhos portugueses recentes de investigação que se orientaram para esta problemática.

Utilizada pela psicologia, pela linguística, pelas ciências do trabalho, pelas ciências da educação e da formação, a noção de competência muda de sen‑tido consoante o domínio em que é utilizada. Em‑bora nesta oportunidade pretendamos focar o con‑ceito de competência quando usado a propósito da profissão docente e da formação para essa profissão, será inevitável referir outros campos de saber cien‑tífico e de acção onde o mesmo é utilizado, até para operarmos a sua distinção, por oposição, no campo que nos interessa.

COMPETÊNCIA(S) E EDUCAÇÃO

O conceito de competência ressurgiu em força no campo educacional, nos anos 90 do século passado, relacionado com a aprendizagem dos alunos, a for‑mação dos professores e a formação profissional em geral, assumindo conteúdos e sentidos não neces‑sariamente idênticos nessas diferentes áreas e, com isso, contribuindo para dissonâncias importantes mesmo entre os investigadores dos campos men‑cionados, para já não falar dos sentidos ainda mais díspares presentes nos discursos dos professores e dos formadores.

Como se constroem as competências? E as com‑petências profissionais? Como se desenvolvem? Quais as mais importantes no desempenho docen‑te? Podem as competências ser avaliadas? E, se sim, como? Afinal, de que falamos quando falamos em competências? Tais são algumas das questões que hoje estão no centro de muitas discussões tanto na acção profissional dos professores em relação aos seus alunos como na formação para a docência e na gestão das carreiras docentes.

Uma primeira aclaração que nunca é despicien‑do tentar fazer, embora de há muito tenha sido as‑sinalada, é a da diferença entre o conceito no sin‑gular (a competência) e o conceito usado no plural (competências). Na primeira forma, a competência, o conceito remete para a qualidade que separará profissionais competentes de profissionais incom‑petentes, profissionais mais e menos competentes. Nesta acepção, competência é tomada como um

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traço global inerente à acção do indivíduo ou do grupo profissional, traço sobre o qual é possível emitir um juízo de valor.

Já nas formas “uma competência”, “as compe‑tências”, o conceito remete para um certo número de traços particularizáveis evidenciados na acção, que podem ser observados e descritos sem que neces‑sariamente se lhes tenha que atribuir um valor. Em exemplos como “questiona os alunos”, “diversifica os materiais”, “usa recursos tecnológicos”, estamos perante traços sobre os quais nos podemos limitar a constatar a presença e a respectiva frequência, ou a ausência, sem os qualificarmos. O somatório destas competências entendidas em sentido analítico tão pouco habilitará por si só à emissão de juízos de va‑lor sobre a competência global de um profissional.

Dizer, então, a competência, em sentido global, ou uma competência, em sentido analítico ou par‑ticular, faz toda a diferença em termos conceptuais.

OS PROGRAMAS P/CBTE (PERFORMANCE / COMPETENCY BASED TEACHER EDUCATION)

Existe um consenso alargado entre os especialis‑tas de que o movimento de formação baseada nas competências teve o seu início nos EUA, no campo específico da formação de professores, nos anos 60 do séc. XX, movimento que posteriormente viria a alastrar a outros campos de formação profissio‑nal (Burke et al., 1975; Elam, 1971; Houston, 1980). Embora se possam encontrar casos de formação profissional baseada nas competências desde os anos 20, no quadro da aliança entre desenvolvi‑mento industrial e formação profissional, parece fora de dúvida que foi sob a influência da psico‑logia behaviorista triunfante nos anos 50 que se assistiu, sucessivamente, a reformas dos currículos escolares de forma a centrá ‑los em objectivos com‑portamentalistas de aprendizagem (corporizando o que ficou popularizado como pedagogia por ob‑jectivos) e às reformas dos programas de formação de professores centrados ou baseados na aquisição de competências entendidas como comportamen‑tos observáveis que tivessem uma correlação posi‑tiva com o aumento ou a melhoria dos resultados dos alunos.

Discutiu ‑se então (e, em outros termos, ainda hoje se discute) se uma competência é o mesmo que uma performance, mas na acepção dominante em que a competência era tomada até aos anos 80 (comportamento directamente observável), conve‑nhamos que ambas se confundiam efectivamente. E, desse modo, os programas que começaram por se designar uns como CBTE, outros como PBTE, rapidamente passaram a ser conhecidos mais sim‑plesmente como P/CBTE (Performance/Compe‑tency Based Teacher Education), como se de uma só entidade se tratasse.

O sucesso do movimento, particularmente assi‑nalável nos EUA e no Reino Unido entre os anos 60 e 80, deveu ‑se em boa parte ao apoio e à consagra‑ção que recebeu das políticas educativas levadas a cabo pelos governos respectivos.

Swanchek e Campbell (1981) sintetizaram as ca‑racterísticas dos programas P/CBTE nos seguintes traços:

· a especificação precisa das competências ou comportamentos a serem aprendidos;

· a modularização da instrução;· a avaliação e o feedback;· a personalização;· a experiência de campo.

A selecção das competências a adquirir era feita de entre aqueles comportamentos dos professores que a investigação científica de natureza experimental tivesse mostrado que estavam positivamente corre‑lacionados com aprendizagens dos alunos.

Para as autoridades governamentais, a formação centrada nos comportamentos observáveis dos pro‑fessores era uma garantia de maior exigência em ter‑mos de qualificação e certificação para a entrada na profissão e, por isso, em alguns casos, impuseram ou induziram fortemente o desenvolvimento uni‑versal de programas deste tipo. Tal imposição en‑controu sempre reacções por parte de instituições do ensino superior que não se reconheciam nesse modelo de formação. Mas os problemas também existiam entre os que se mostravam dispostos a ade‑rir ao movimento.

Burke et al. (1975, p. i), anotaram que “um dos problemas persistentes enfrentados pelas institui‑ções que pretendem redefinir os seus programas de

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formação de professores na direcção de actividades baseadas na competência é a falta geral de definição e de critérios sobre o que constitui exactamente um programa de formação de professores baseado nas competências”.

O mesmo autor, Burke, viria mais tarde, em 1989, a considerar que se mantinham válidos os critérios para descrever e avaliar os programas baseados na

competência, desenvolvidos pelo National Consor-tium of Competency Based Education Centres, nos anos 70.

Trata ‑se de um conjunto de vinte e quatro crité‑rios que vale a pena aqui transcrever na medida em que iluminam de modo muito preciso o que foi (é?) o movimento de inspiração behaviorista de forma‑ção de professores baseado em competências.

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Especificações das competências

1. As competências baseiam ‑se numa análise do papel ou papéis profissionais e/ou numa formulação teórica das responsa‑bilidades profissionais.

2. As afirmações sobre as competências descrevem resultados esperados da performance de funções relacionadas com a profissão ou aqueles conhecimentos, skills e atitudes que se considera serem essenciais para a performance dessas funções.

3. As definições das competências facilitam uma avaliação referida ao critério.4. As competências são tomadas como preditores potenciais da eficácia profissional e são sujeitas a procedimentos de valida‑

ção contínua.5. As competências são especificadas e tornadas públicas antes da instrução.6. Os formandos que completam programas de formação baseada nas competências mostram uma vasta gama de perfis de

competências.

Instrução

7. O programa de instrução deriva de e está articulado com competências específicas.8. A instrução que suporta o desenvolvimento de uma competência está organizada em unidades com uma extensão tal que

possa ser gerida.9. A instrução é organizada e concretizada de modo a acomodar o estilo de aprendizagem do formando, a sua preferência por

uma dada sequência, o ritmo e as necessidades detectadas.10. A progressão do formando é decidida após ter demonstrado uma competência.11. A extensão do progresso do formando é dada a conhecer a este ao longo do programa.12. As especificações da instrução são revistas e modificadas com base nos dados do feedback.

Avaliação

13. As medidas de uma competência estão validamente relacionadas com a definição dessa competência.14. As medidas de uma competência são específicas, realistas e sensíveis a flutuações.15. As medidas de uma competência discriminam, com base em padrões (standards), o cenário para a demonstração das com‑

petências.16. Os dados proporcionados pela medição das competências são utilizáveis e úteis para a tomada de decisões.17. As medidas e os padrões das competências são especificados e tornados públicos antes do processo de instrução.

Governo e gestão

18. São produzidas declarações políticas escritas para orientar, em termos gerais, a estrutura, o conteúdo, a operacionalização e a base de recursos do programa.

19. As funções, responsabilidades, procedimentos e mecanismos de gestão são definidos claramente e tornados explícitos.

Programa global

20. O pessoal docente associado ao programa tem a intenção de modelar as atitudes e os comportamentos desejados da parte dos estudantes do curso.

21. São tomadas medidas para orientação, avaliação, aperfeiçoamento e recompensa do pessoal docente.22. A investigação e as actividades de disseminação são parte integrante de todo o programa de instrução.23. É necessária flexibilidade institucional em relação a todos os aspectos do programa.24. O programa é planeado e operacionalizado como um sistema completamente unificado e integrado.

Critérios para descrever e avaliar os programas baseados na competência

Fonte: Burke et al., 1975, citado em Burke, 1989, pp. 13‑14.

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Apesar de longo, este quadro tem o mérito de tornar extraordinariamente claros o conceito de compe‑tência adoptado, os papéis atribuídos aos forman‑dos, aos formadores e às instituições de formação, bem como o lugar reservado à investigação.

Os conhecimentos e atitudes dos formandos, tal como referido no tópico 2, parecem representar uma concessão àqueles que entenderiam excessivo consi‑derar a competência como sendo exclusivamente da ordem da performance. Nesse aspecto, já anteriormen‑te Elam (1971) tinha sido nítido no mesmo sentido, ao afirmar que “a avaliação de uma competência exige a performance como primeira evidência, mas também toma em consideração o conhecimento” (p. 7).

Os micro ‑ensino na sua feição inicial (anos 60‑‑70), a simulação, particularmente a do tipo jogo de papéis, a supervisão concebida num cenário beha‑viorista concorreram, como opções metodológicas, para a concretização de programas em que as com‑petências a desenvolver pelos professores em for‑mação se confundiam inteiramente ou quase com a respectiva performance.

DAS MICRO ‑COMPETÊNCIAS ÀS COMPETÊNCIAS GENÉRICAS

As críticas ao conceito de competência de recorte behaviorista e aos programas de formação a ele as‑sociados foram permanentes mas tornaram ‑se parti‑cularmente vigorosas a partir dos anos 80.

Dois argumentos foram mais persistentemente invocados: a inadequação da definição analítica das competências para retratar o perfil dos profissionais mais bem sucedidos, perfil esse que não se limita‑ria ao mero somatório de competências isoladas; a falta de evidências científicas que corroborassem a superioridade dos programas baseados nas compe‑tências em relação a outros.

Entretanto, estudos realizados na Europa con‑tinental em diversas áreas da formação profissio‑nal que não exclusivamente a de professores foram pondo em evidência que os profissionais excelentes apresentavam um conjunto de competências genéri‑cas ou globais bem mais importantes para explicar o seu sucesso do que as competências analíticas mui‑to numerosas a que a análise das funções laborais tinha conduzido.

Esta abordagem pelas competências genéricas focou sobretudo os modos como os profissionais se tornam competentes e destacou um conjunto de qualidades pessoais relevantes, para além das carac‑terísticas científico ‑técnicas inerentes à acção.

Em lugar de centenas ou mesmo de milhares de competências associadas a um dado desempenho profissional, nesta corrente foram identificadas lis‑tas bem menos numerosas de competências gené‑ricas (geralmente, entre oito e quinze) que estariam em condições de retratar o perfil de profissionais competentes.

Uma dessas listas, proposta por Boyatzis (1982), foi construída a partir do estudo de uma amostra de cerca de 2000 gestores que actuavam em 41 tipos de empregos diferentes. A título de exemplo, vejam ‑se as doze competências que foram enunciadas:

· Preocupação com o impacto· Uso diagnóstico de conceitos· Orientação para a eficiência· Pro ‑actividade· Conceptualização· Auto ‑confiança· Uso de apresentações orais· Gestão de processos grupais· Prática de um poder socializado· Objectividade perceptiva· Auto ‑controlo· Energia e adaptabilidade

Mais do que no movimento CBE, nesta perspectiva de adopção das competências genéricas discutiu ‑se se estas seriam inatas, aprendidas ou ambas as coi‑sas. O que não obstou ao desenvolvimento de pro‑gramas de formação orientados expressamente para a construção e o desenvolvimento de competências deste tipo, em relação a muitas profissões. A este propósito, refira ‑se, por exemplo, a lista de dez com‑petências para ensinar no ensino fundamental, em torno das quais se organizou o programa de aperfei‑çoamento dos professores e professoras de Genebra e de que Perrenoud (2000) dá notícia detalhada:

· Organizar e dirigir situações de aprendizagem· Administrar a progressão das aprendizagens· Conceber e fazer evoluir os dispositivos de

diferenciação

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· Envolver os alunos na sua aprendizagem e no seu trabalho

· Trabalhar em equipa· Participar na administração da escola· Informar e envolver os pais· Utilizar novas tecnologias· Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da

profissão· Administrar a sua própria formação contínua.

QUALIFICAÇÃO, CONHECIMENTO E COMPETÊNCIA: QUE RELAÇÕES?

Jonnaert (2002) defende a tese de que a noção de qualificação profissional foi evoluindo nas últimas décadas até se aproximar muito da de competência.

Num primeiro momento (anos 50 a 80), a qua‑lificação era definida como “o conjunto de capaci‑dades e de conhecimentos socialmente definidos e requeridos para realizar um determinado trabalho” (Jonnaert, 2002, p. 14). Tratava ‑se de entender a qualificação como conjunto de qualidades eviden‑ciadas pelo sujeito antes de desenvolver uma acção profissional — concepção que, segundo Jonnaert, sustenta uma visão instrumentalista e prescritiva da profissão (e, por inerência, da formação para a profissão).

Num segundo momento (anos 80), a qualifica‑ção passou a ser definida preferencialmente como a capacidade individual para dominar uma dada situ‑ação de trabalho, mobilizando cada profissional, o seu próprio potencial. Há aqui já uma nítida aproxi‑mação à noção de competência, pela associação do campo de trabalho concreto à evidência da qualifi‑cação do profissional.

Num terceiro momento (sobretudo desde os anos 90), a qualificação é definida como aquilo que acompanha a estruturação da acção. O fim e o espa‑ço da acção do profissional, bem como a autonomia que este tem, passam a fazer parte integrante da no‑ção de qualificação.

Segundo De Terssac (1996, citado por Jonnaert, 2002, p. 15), a competência ultrapassará, contudo, mesmo esta terceira acepção de qualificação, por re‑presentar “tudo o que é posto em jogo numa acção e tudo o que permite dar conta da organização da acção”.

As competências são então definidas por Jonna‑ert como as formas como os sujeitos gerem os seus recursos cognitivos e sociais na acção, numa dada situação.

É muito frequente encontrarmos quem consi‑dere que, sempre que se fala em competências, em formação baseada nas competências, isso significa o menosprezo e a subalternização do conhecimento, em favor da mera aprendizagem e treino de perfor-mances, com um sentido utilitário imediato.

A evolução do conceito de competência que acima acabámos de evocar retira legitimidade a este ponto de vista. Tal posição não é sequer autorizada à luz da concepção comportamentalista das compe‑tências e muito menos à luz das concepções sobre as competências de inspiração construtivista. Umas e outras aceitam, ainda que com graus diferentes de relevância atribuída, que o conhecimento e a com‑preensão, e o desenvolvimento de disposições cog‑nitivas de ordem mais elevada, de análise, de síntese, de avaliação, de crítica, de pensamento divergente que os currículos de educação escolar são supostos estimular e fazer desenvolver, são pilares fundamen‑tais da construção das competências, tanto mais quanto maior for a complexidade dos problemas a resolver e/ou da profissão a desempenhar.

O que ocorre, e é importante assinalar é que nas formações orientadas para o desenvolvimento de competências, a conceptualização que se fizer destas bem como a selecção das que devem ser desenvol‑vidas num dado cenário de formação, subordinam a definição dos objectivos de aprendizagem, a selec‑ção e organização dos conteúdos e, especialmente, as metodologias a utilizar. Os conhecimentos que os currículos proporcionam não valem por si mesmos, mas pela possibilidade de ajudarem a desenvolver as competências de cada sujeito e de serem, por este, investidos na acção.

M. Éraut (1996), na sequência de muitos outros autores que se dedicaram ao exame e análise da re‑lação entre conhecimento e competência, oferece al‑gumas perspectivas que consideramos interessantes para a discussão dos conceitos de conhecimento e de conhecimento profissional. O autor apercebeu ‑se de que só parte daquilo que um profissional compe‑tente faz, encontra raízes no programa de formação orientado para o desenvolvimento de competên‑cias que lhe possa ter sido proporcionado. Haverá

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largas áreas do saber ‑fazer omissas nos programas de formação, e mesmo quando há coincidências, o conhecimento comum a ambos os cenários — o da formação e o da acção profissional — é estruturado, nomeado e percebido de formas diferentes.

A prática profissional reclamará o concurso, ora de sequências fixas de acções para enfrentar situa‑ções de rotina, ora de combinações originais de ac‑ções para enfrentar e resolver problemas novos ou inesperados, situações estas últimas em que avulta a competência para tomar decisões pertinentes. A situação pode ainda variar em complexidade conso‑ante o problema a resolver esteja bem definido ou se apresente mal definido nos seus contornos.

Falar simplesmente em “teoria” e “prática”, como tradicionalmente se fez e, muitas vezes, por facilidade e rotina, se continua ainda a fazer em muitos discursos relativos à formação, é redutor da complexidade dos conhecimentos postos em jogo na acção profissional.

As teorias (e não a teoria) que o profissional usa, integram seja as teorias com valor universal que a ciência produziu, seja teorizações que esse profis‑sional construiu — generalizações que revestem a forma de teorias implícitas, crenças, convicções, de que, por exemplo, os estudos sobre o pensamento do professor nos foram dando conta e ajudando a distinguir e analisar.

Conhecimento proposicional (ou declarativo), conhecimento processual, conhecimento procedi‑mental, conhecimento prático, conhecimento tácito, são categorias que permitem dar conta da complexi‑dade do conhecimento profissional e que nos levam a compreender melhor as dificuldades, tantas vezes sentidas em trabalhos de investigação sobre a acção prática e as competências dos professores, em des‑velar tanto conceptual como empiricamente os tipos de conhecimento e modos de cognição associados às performances. Mesmo sabendo destas dificuldades, Éraut sugere que só se pode caracterizar o conheci‑mento profissional se o entendermos e analisarmos contextualizado no modo como é aprendido e no modo como é usado em situação de trabalho.

Seguindo estas reflexões, pensamos que predo‑mina hoje um cenário bem distinto do que prevale‑ceu nos anos 60 ‑80 (ainda que as concepções deste período não tenham desaparecido por completo), na medida em que parece incontornável:

· Assumir que não há competências sem co‑nhecimento e sem conhecimento profissio‑nal, mesmo que parte deste seja tácito ou im‑plícito;

· Assumir que o conhecimento profissional é mais complexo do que a dicotomia tradi‑cional conhecimento teórico ‑conhecimento prático levaria a pensar;

· Assumir que o conhecimento profissional é ou pode ser fundamento e resultado do exer‑cício de competências, seja para os que se preparam para a profissão, seja para os pro‑fissionais já em exercício.

Estamos ainda na fase de testar diferentes hipóteses sobre quais os tipos de conhecimento e de conheci‑mento profissional que melhor servem o propósito de contribuir para a construção das competências dos professores, com alguns resultados por vezes espantosos em relação ao que algumas ideias per‑sistentemente repetidas ao longo de décadas nos tinham levado a acreditar (Kennedy, 2008).

“COMPETÊNCIA”: FORJAR UMA SIGNIFICAÇÃO ESPECÍFICA EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO E DA FORMAÇÃO

Le Boterf (1995, 1997, 2001), fazendo a distinção entre profissões simples e profissões complexas, interessa ‑se, a certo passo, especialmente pelo tipo de competências necessárias ao desempenho das profissões complexas. Define estas últimas, como aquelas profissões em que os profissionais devem enfrentar o desconhecido e a mudança permanente (1997, p. 21). O aumento da complexidade dos pro‑blemas a tratar, o carácter incerto do contexto de trabalho, as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias e pelas novas formas de organização do trabalho, a evolução dos sistemas de valor e das as‑pirações dos indivíduos, são aspectos aduzidos para alicerçar a tese de que a eficácia do trabalho não consente que o profissional simplesmente se limite a executar instruções que lhe sejam dadas (1997, p. 27). Embora o autor não esteja a referir ‑se especifi‑camente à profissão docente mas a uma gama diver‑sificada de profissões, julgamos que aquela preen‑

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che largamente os atributos mencionados, integran‑do portanto o leque das profissões complexas.

Inscrevendo ‑se na linha de pensamento dos que preferem definir as competências como um conjun‑to pouco numeroso de traços genéricos, Le Boterf (1997, pp. 37 ‑94) identifica seis competências ine‑rentes aos profissionais que sabem gerir a comple‑xidade:

· Saber agir com pertinência;· Saber mobilizar num dado contexto;· Saber combinar;· Saber transpor;· Saber aprender e saber aprender a aprender;· Saber empenhar ‑se.

Não só se está longe das listas de competências ana‑líticas propostas no âmbito do movimento P/CBTE, como a definição de cada competência associa ex‑plicitamente o saber ou conhecimento, a acção e o contexto da acção. Contextos e situações de traba‑lho que, como se disse, são marcados pela indeter‑minação, pela incerteza, muitas vezes também pela urgência e, sempre, pela necessidade de encontro de respostas que tenham algum grau de originalida‑de em relação ao já sabido, ao já feito anteriormente. Importa ainda sublinhar a natureza da última das competências listadas — saber empenhar ‑se — que remete para um domínio eminentemente social ou socio ‑afectivo, onde a motivação, o interesse, a von‑tade do profissional, avultam.

Na mesma senda de Le Boterf quanto à concep‑tualização da competência em educação e forma‑ção, Perrenoud (1997) sugere que nos libertemos da significação do conceito recebida da linguística (potencialidade inata do sujeito que se actualiza na performance) e procedamos a uma reapropriação específica do conceito quando usado no âmbito das ciências da educação. Indo um pouco mais longe, Jonnaert (2002, p. 31) sugere, então, a seguinte defi‑nição: “uma competência faz, no mínimo, referência a um conjunto de recursos que o sujeito pode mobi‑lizar para tratar uma situação com sucesso”.

Desta concepção importa reter que:

· A competência não se refere exclusivamente a recursos cognitivos, mas também a uma sé‑rie de outros recursos de origem diversa;

· A competência está subsumida numa acção contextualizada — não é uma disposição do sujeito anterior à acção (o que a distingue de capacidade e de saber ‑fazer genérico);

· Entre os recursos que o sujeito mobiliza na acção poderão estar disposições inatas;

· A mobilização de recursos pelo sujeito é feita segundo redes operatórias e não por simples adição ou numa lógica de sequência linear;

· A competência não se confunde, portanto, com a performance.

Parte dos programas educativos e formativos que visam o desenvolvimento de competências dos alu‑nos/formandos dirigir ‑se ‑ão apenas à promoção de competências virtuais — disposições que poderão vir a ser activadas pelo sujeito no futuro, sem se sa‑ber bem onde nem quando. Outros programas lidam com a promoção de competências efectivas — ou seja, a situação formativa incorpora cenários reais ou simulados onde o sujeito deve enfrentar e resolver com êxito problemas de acção contextualizados.

Os conhecimentos, as capacidades, os saberes‑‑fazer, as habilidades ou skills, as motivações, ainda que sendo elementos constitutivos das competên‑cias efectivas, não se confundem com estas, por fal‑tar a situação contextualizada onde a sua mobiliza‑ção em rede seja de facto feita.

UMA LINHA DE PESQUISA SOBRE SABERES E COMPETÊNCIAS DOCENTES

Nos últimos anos, tem ‑se desenvolvido na Faculda‑de de Psicologia e de Ciências da Educação de Lis‑boa uma linha de pesquisa empírica em torno dos saberes profissionais e das competências dos pro‑fessores. Os resultados dos trabalhos que em segui‑da referiremos ajudam a aprofundar e sistematizar o conceito de competência, ao mesmo tempo que proporcionam uma visão sobre os modos como as competências se constroem e modificam.

M. Fryxell, num trabalho concluído em 2003, ocupou ‑se das representações de professores do ensino secundário de línguas estrangeiras, sobre os saberes profissionais de que os mesmos eram por‑tadores. Sem surpresa, os professores inquiridos

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realçavam o papel primordial da experiência, da ac‑ção contextualizada, como tendo sido o esteio mais importante da constituição desses saberes. Ainda que reconhecendo a importância dos saberes científicos adquiridos antes de passarem à prática profissional, sublinharam o papel incontornável da experiência para a apropriação e consolidação das competências de que se consideravam detentores no momento em que foram inquiridos. Um outro aspecto que julga‑mos de sublinhar foi o facto de, nas entrevistas, esses professores recorrerem com grande frequência a nar‑rativas de casos específicos ocorridos em determina‑dos momentos das suas carreiras, para conseguirem elucidar melhor competências novas que pensavam ter passado a possuir. Tal facto, a nosso ver, reforça a ideia de que as situações e os contextos de traba‑lho são imprescindíveis se se quiser compreender a génese e a natureza das competências, corroboran‑do opiniões de Jonnaert, Le Boterf ou Perrenoud já acima mencionadas, ou ainda de M. Éraut quando afirmou: “Não se pode caracterizar conhecimento profissional sem ter em conta o modo como este é aprendido e como é usado”¹ (1996, p. 19).

Num outro estudo, concluído em 2005, H. Ber‑nardes obteve alguns resultados que vão no mesmo sentido. Ao inquirir professores do 1º ciclo para es‑clarecer quais as fontes dos seus saberes profissio‑nais e das suas competências constatou que aque‑les valorizavam predominantemente a aquisição/construção desses saberes realizada em contexto pedagógico e na interacção com os pares, e faziam uma relativa secundarização das aprendizagens re‑alizadas em ambientes formais de formação, como são os cursos de formação inicial. Aliás, convergen‑temente, a componente mais valorizada nesses cur‑sos era a do estágio pedagógico enquanto fonte mais relevante da formação das competências.

E. Mesquita (2005) ocupou ‑se do estudo das re‑presentações de alunos/futuros professores, na fase de conclusão da sua formação inicial, acerca das competências mais necessárias para a docência e do modo mais adequado de as construírem. Os inquiri‑dos caracterizavam o exercício da profissão docente como tendo por base um saber específico e multi‑dimensional. Na acção do professor destacavam sobretudo os aspectos relacionais com os alunos, as famílias, os colegas e a comunidade em geral. Outros domínios de competências também consideradas re‑

levantes eram as de administrar a sua própria forma‑ção, enfrentar deveres e problemas éticos, conceber dispositivos de diferenciação pedagógica, adminis‑trar as aprendizagens dos alunos, envolver estes no processo e organizar as situações de aprendizagem. Quanto ao dispositivo de formação que lhes tinha sido proporcionado, destacavam a componente de prática pedagógica supervisionada como a mais rele‑vante para a construção das suas competências.

G. Barreira (2006), embora trabalhando sobre as concepções de professores cooperantes de esco‑las do 1º ciclo, chegou a resultados idênticos aos de Mesquita acima citados.

L. Lousada (2006) pretendeu comparar concep‑ções de professores principiantes e de professores experientes no que respeita à competência docente. Constatou que tanto uns como outros destacavam o primado dos valores éticos no exercício da profis‑são e atribuíam à acção do professor as finalidades de instruir e de educar. Registou diferenças de opi‑nião quanto às competências mais valorizadas pelos inquiridos: os professores principiantes tendiam a dar maior importância à manutenção da disciplina na aula e à motivação dos alunos, e a competências de ordem científica e técnica; os professores expe‑rientes tendiam a valorizar mais fortemente compe‑tências de ordem pessoal e relacional (segurança, auto ‑confiança, proximidade em relação aos alunos e aos seus problemas, tolerância). O papel da expe‑riência para o desenvolvimento das competências foi reconhecido por todos.

A. Reis e C. Teixeira concluíram em 2006 estu‑dos em que os inquiridos eram professores super‑visores da prática pedagógica de candidatos à do‑cência no 1º e no 2º ciclos do ensino básico, respec‑tivamente.

Reis visou esclarecer as concepções de compe‑tência reflexiva sustentadas pelas suas inquiridas. Estas destacaram tratar ‑se de uma competência manifestada através do questionamento, da proble‑matização, da análise das práticas e das suas conse‑quências, mediante a qual se descobrem nexos entre prática e teoria e se alcança uma relativização dos saberes. Falando do modo como os seus formandos desenvolvem essa competência, referem tratar ‑se de uma construção gradual que apenas começa na for‑mação inicial e que encontra um suporte adequado na produção de narrativas pelos estagiários.

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Teixeira ocupou ‑se das concepções de pro‑fessores supervisores acerca das competências necessárias ao exercício dessa função. Os inquiri‑dos discriminaram competências em dois planos: o do saber científico e o das qualidades pessoais, tendo atribuído à experiência e à auto ‑formação a origem das competências de que se julgavam por‑tadores.

Outros estudos desenvolvidos no âmbito da formação de enfermeiros e focados nas competên‑cias dos supervisores da prática clínica chegaram a resultados convergentes com os que acabam de ser referidos, no que se refere às competências profis‑sionais dos formadores.

FORMAÇÃO E COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS DOS FUTUROS PROFESSORES

A digressão breve que acaba de ser feita por algu‑mas etapas marcantes da evolução do conceito de competência, até à reclamação contemporânea de um significado específico do campo das ciências da educação, ajuda a examinar a uma nova luz alguns dos velhos problemas com que nos defrontamos re‑correntemente na formação de professores.

A formação profissional de professores é, por definição, uma formação compósita para a qual con‑correm diversas componentes.

Se admitirmos que a competência ou as compe‑tências só se verificam na acção profissional contex‑tualizada (ponto de vista que defendemos), há que admitir que nem todas essas componentes da for‑mação estejam orientadas, de forma imediata, para a construção e o desenvolvimento de competências dos professores. O que não significa que não se deva discutir estratégias e condições para uma re‑orientação dos programas de formação de forma a que todas as componentes contribuam efectivamen‑te para a construção das competências necessárias aos profissionais do ensino.

No caso português, em 2007, a nova legislação sobre habilitações para a docência consagrou seis componentes de formação inicial, cuja relevância passará pela superação de problemas com que nos temos defrontado e que estão devidamente identi‑ficados.

A componente de “formação na área da do-cência”, que contempla a aprendizagem do conhe‑cimento relativo aos futuros conteúdos a ensinar, organiza ‑se com independência (por vezes, excessi‑va, como é notório nos casos da preparação para o 3º ciclo do ensino básico e para o ensino secundário) em relação ao uso que esse conhecimento virá a ter por parte daqueles que irão ser professores. Conti‑nuará a repetir ‑se muito provavelmente aquilo que alguns trabalhos de investigação mostraram em rela‑ção ao passado: lacunas graves de preparação cien‑tífica dos professores recém ‑formados em relação a determinados conteúdos constantes dos programas de ensino básico ou secundário; uma relação com o saber mais do tipo “consumidor do saber” do que de “produtor” do mesmo (Estrela et al., 2002, p. 24). Falta, também, do conhecimento pedagógico do conteúdo, noção de que Shulman (1986) fala para significar a combinação adequada entre o conheci‑mento da matéria a ensinar e o modo pedagógico de a fazer aprender pelos alunos. Será aqui já o caso de contemplarmos uma segunda componente de for‑mação, a da “didáctica específica”, onde deveria ser procurada essa aliança mais forte e bem sustentada entre a matéria de ensino (sem ignorar a sua natureza epistemológica particular), por um lado, e, por ou‑tro, os conhecimentos relevantes sobre os processos de aprendizagem de crianças, jovens e adultos, pú‑blicos diferenciados com os quais os professores são chamados a trabalhar regularmente.

A investigação realizada em Portugal nos anos 90 sobre a formação inicial de professores assinalou, em alguns casos, deficiências importantes no desen‑volvimento de competências de ordem didáctica em programas oferecidos por instituições de ensino superior, especialmente por escolas superiores de educação, no que respeitava às disciplinas de Mate‑mática, Ciências da Natureza, Línguas Estrangeiras, Tecnologias da Informação e da Comunicação, Físi‑ca e Química (Estrela et al., 2002, pp. 32 ‑34). O saber pelo “amor do saber” com desprezo total pelo uso que os estudantes de ensino superior virão a fazer desse saber, a prevalência de uma lógica transmissi‑va do saber entendido como património estático e a inerente não iniciação dos estudantes nas questões epistemológicas da sua área de conhecimento nem na investigação científica, que ainda marcam muitos dos cursos de licenciatura, constituem limitações

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sérias na preparação de quem vai ser professor. É a partir de cenários como estes que, depois, não seja de admirar que haja professores que não desenvol‑vem o ensino experimental das ciências com os seus alunos, ou que não têm nenhuma noção de como se podem usar os saberes das humanidades ao serviço de projectos de promoção de competências efecti‑vas dos seus alunos.

Outras componentes de formação como as de “formação educacional geral” e “formação cultural, social e ética”, formalmente mais próximas do de‑sempenho profissional específico de um professor, poderão não conduzir ao desenvolvimento de com‑petências profissionais efectivas se nelas também prevalecer a lógica que acima referimos como afec‑tando pelo menos parte, se não mesmo boa parte, das formações superiores.

Alguns trabalhos de investigação têm assinalado lacunas de formação no âmbito das ciências da edu‑cação, desarticulação entre os diversos saberes que estas proporcionam, desfasamentos temporais entre o momento em que esses saberes são adquiridos e o momento em que devem ser usados ao serviço das práticas profissionais, e, consequentemente, falta de significado desses saberes para os formandos por não percepcionarem a sua relevância para o campo de trabalho profissional.

Do mesmo modo, poucos têm sido os programas de formação que se ocupam deliberadamente do de‑senvolvimento pessoal, social e ético ‑deontológico do formando. Em regra, não são reconhecidos nem tidos em conta nos espaços formativos os pré‑‑conceitos e preconceitos, as crenças, as atitudes e os valores que os estudantes desenvolveram en‑quanto alunos, muito antes de terem decidido ser professores.

A quase unanimidade de declarações quanto à intenção de formar profissionais reflexivos tem, de‑pois, pouca tradução ao nível das estratégias e méto‑dos usados na formação, levando a presumir que, na melhor das hipóteses, a reflexividade de que se fala

não ultrapassará a área das competências do profes‑sor como um técnico que aplica conhecimentos que outros produziram.

Resta referir as componentes de “iniciação à prática profissional” e de “formação em metodolo-gias de investigação educacional” como últimos re‑dutos de que se deverá legitimamente esperar que proporcionem o desenvolvimento de competências necessárias ao desempenho de uma profissão com‑plexa. Para que tal aconteça, importa superar as li‑mitações, por vezes graves, que os antigos estágios apresentavam: falta de articulação entre instituições e formadores do ensino superior e do ensino não superior; uma visão predominantemente técnica da acção do professor; a falta de formação especiali‑zada de muitos supervisores e orientadores para a função que estão a desempenhar.

A iniciação dos futuros professores nas metodo‑logias de investigação educacional poderá, por seu lado, não vir a ter a relevância esperada para o de‑senvolvimento da autonomia dos mesmos, se a for‑mação nessa área se apresentar afastada da procura de soluções para problemas da prática profissional real com que cada formando se esteja a confrontar num dado contexto escolar concreto.

Em síntese: por muito interessante que seja (e é) observar as componentes da formação dos pro‑fessores que num dado momento histórico são consideradas necessárias para a construção e o de‑senvolvimento de competências, aquilo que se nos afigura como mais elucidativo da profissionalidade que efectivamente se perspectiva e estimula é o mo‑delo conceptual e a estratégia que se adopta, não em abstracto mas no campo das práticas de formação efectivamente postas em marcha. Mutatis mutandi, também as competências das instituições de forma‑ção e dos formadores serão o conjunto de recursos de diversas naturezas que umas e outros podem mo‑bilizar e mobilizam de facto para tratar com sucesso o problema da formação dos professores como pro‑fissionais competentes.

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Notas

1. No original: “Professional knowledge cannot be characterized in a manner that is independent of how it is learned and how it is used”.

Referências bibliográficas

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Resumo:Inseridas num projecto de investigação sobre pensamento ético ‑deontológico, no qual, numa primeira fase, se entrevistaram trinta e seis professores dos diversos níveis de en‑sino, consideramos neste artigo as questões relativas à ética e à formação. Identificamos alguns aspectos que dizem respeito à formação ética de professores e que relacionam esta formação com as outras dimensões em estudo, nomeadamente com a regulação e a elabo‑ração de um código deontológico e com as concepções éticas, pessoais e profissionais, dos professores. Para além de uma análise interpretativa dos dados e de uma breve revisão dos estudos e da legislação actual, tecemos reflexões em torno de perspectivas e estratégias a considerar na formação ética dos professores.

Palavras ‑chave: Ética, Formação de Professores, Deontologia, Dilemas.

s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 8 · j a n / a b r 0 9 i s s n 1 6 4 6 ‑ 4 9 9 0

Ética profissional e Formação de Professores

Ana Paula [email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Maria de Lurdes [email protected]

EB 2,3 Fernando Pessoa, Lisboa

Caetano, Ana Paula & Silva, Maria de Lurdes (2009). Ética profissional e formação de professores.

Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 08, pp. 49‑60

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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INTRODUÇÃO

As questões éticas, entendidas como dimensões complexas e integradoras, onde se imbrica o racio‑nal e o emocional, o afectivo e o intuitivo, o pensa‑mento e a acção, o objectivo e o subjectivo, extra‑vasam a reflexão sobre os valores e intersticiam ‑se no quotidiano dos indivíduos e das comunidades, contribuindo para que aí equacionem os seus senti‑dos individuais e colectivos.

A educação, como empreendimento social, me‑diadora entre um passado que se pretende veicular e um futuro que se visa preparar, em tensão entre a socialização e conservadorismo, por um lado, e a transformação e desenvolvimento, por outro, é ela própria intérprete, construtora e difusora de sen‑tidos. Deste modo, os seus intervenientes, organi‑zados em torno de estruturas de diversos níveis e abrangências, ao confrontarem ‑se com as questões do sentido e das finalidades, mas também dos meios e dos processos, implicam ‑se de modo mais ou me‑nos consciente com as questões éticas. Trata ‑se de um diálogo que cada um tem de fazer, nos contextos diversos onde essas dimensões se evidenciam. Des‑de os normativos legislativos que determinam e re‑gulam o sistema, até às interacções particulares que se estabelecem nas escolas e nas salas de aula, há um encadeamento de decisões que importa conscien‑cializar e aprofundar.

Consideraremos neste artigo as questões relati‑vas à ética e à formação e iremos identificar alguns aspectos que dizem respeito à formação ética de

professores e que relacionam esta formação com as outras dimensões em estudo, nomeadamente com a regulação e a elaboração de um código deontológi‑co e com as concepções éticas, pessoais e profissio‑nais, dos professores.

ÉTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Sendo embora poucos, os estudos realizados em Portugal e que se debruçaram sobre a concepção da docência e a regulação da profissão já permitem afirmar que os professores portugueses vêem a sua ocupação como eminentemente ética. Esses traba‑lhos de natureza empírica dão ‑nos a conhecer que os professores, quando lhes é pedido para se expri‑mirem acerca do que pensam que é ser professor, de‑finem a sua profissão como uma actividade constitu‑tivamente ética: ética porque o professor deve agir na observância de um conjunto de princípios de natu‑reza moral e também porque o que se espera do pro‑fessor é que ele recorra a uma estratégia, desenvolva um método e disponha de recursos para promover a formação ética dos alunos. Com efeito, “relativamen‑te ao modo como os professores definem a docência, assume particular relevo a função de educar, formar os alunos e contribuir para o desenvolvimento pes‑soal e social das crianças e jovens”, sublinhando ‑se que “ser professor (…) obriga a um modo particular de ser e de estar” (Silva, 1994, p. 93). Pensam assim, tanto os professores mais jovens, e que se encon‑tram no início da carreira, como os professores mais

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velhos, já no topo ou no meio da carreira, que cola‑boraram no estudo de Silva. Para todos eles, a ideia de docência organiza ‑se em torno de dois pólos: um, a afirmação que o desempenho da profissão recla‑ma dos profissionais características especiais e lhes impõe exigências de comportamento e, outro, que a docência se realiza na transformação do aluno com vista a que se conduza por referência a valores de na‑tureza ética. Para estes docentes parece ser claro que “levar cada pessoa à descoberta do que em si é huma‑no e a constituir ‑se, desse modo, como sujeito moral e ético autodeterminado é, propriamente falando, a tarefa educativa” (Seiça, 2003, p. 37). A educação é, e deve ser, concebida “como formação global do indivíduo para a cidadania e, indirectamente, como construtora da coesão da cidade, sendo, nessa medi‑da, um verdadeiro instrumento político (…) uma ac‑ção política” (Seiça, 2003, p. 37). Como para Platão, ética, política e pedagogia estão assim estreitamente ligadas. Ao entenderem que a profissão de professor tem essencialmente estas dimensões, tal não significa que considerem que a docência não tenha por fun‑ção a transmissão ‑aquisição de conhecimentos. Cla‑ro que tem, mas a dimensão ética da docência parece ser sublinhada. Também vão nesse sentido os resul‑tados de uma investigação levada a cabo por Aline Seiça que, ao estudar as representações de profes‑sores sobre a sua praxis, visando compreender “se é possível encontrar (…) uma conceptualização éti‑ca comum capaz de fundamentar uma deontologia profissional”, conclui que as referências aos deveres profissionais, pelos professores, parecem sugerir, à luz de uma ética da virtude, de inspiração aristotéli‑ca, um elenco de “virtudes” pessoais e profissionais a desenvolver pelos professores e apontam para a necessidade de “formar os alunos mediante a trans‑missão de valores” (Seiça, 2003, pp. 235 ‑236). Num outro estudo, ao procurar saber ‑se, junto de profes‑sores estagiários, qual a interpretação que atribuíam à acção educativa, “salientam ‑se aspectos que confir‑mam o carácter eminentemente ético e moral da pro‑fissão [… que] tem portanto uma base ou substrato axiológico” (Mourinha, 2003, p. 72). Estes professo‑res consideraram fundamentais os papéis relativos à organização de aprendizagens curriculares “mas, de facto, o maior número de referências situa ‑se ao nível da categoria professor educador moral e axiológico” (Mourinha, 2003, p. 72).

Em artigo de síntese publicado em 2003 e des‑tinado a caracterizar o pensamento ético deonto‑lógico de professores portugueses do ensino pós‑‑primário a partir de estudos de natureza empírica, Maria Teresa Estrela diz que “ressalta a evidência que a quase totalidade dos docentes por eles abran‑gidos se identifica com a função de educador dos seus alunos e (…) descrevem a sua função em ter‑mos morais” (Estrela, 2003, p. 11).

Estes estudos apontam, nas suas conclusões, para a necessidade de promover uma formação éti‑ca dos professores, bem como para a reflexão e in‑vestigação sobre esta. Para Maria Teresa Estrela “a formação ética dos professores, quer inicial, quer contínua, poderá dar um contributo decisivo para o salto qualitativo que representa a passagem da cons‑ciencialização para a conscientização (…) e poderia partir da reflexão sobre as situações de ensino que devem ser exploradas e questionadas à luz da ética pessoal e profissional, elas próprias sujeitas a refle‑xão e questionamento (…), e ser confrontadas com o pensamento de grandes pensadores da ética” (Es‑trela, 2003, p. 18).

Verifica ‑se, no entanto, que “as escolas de forma‑ção de professores e educadores têm concedido um lugar menor ou ignorado totalmente à formação éti‑ca dos seus formandos” (Estrela, 1999, p. 27), sendo a investigação nessa área quase omissa. Também são muito poucos os estudos a nível internacional que se debruçam sobre estas questões. Tal é confirmado por revisões da literatura de Oser (1994), Hansen (2001), Colnerud (2006), Willemse et al. (2005).

O estudo a que este artigo reporta visa precisa‑mente aprofundar as questões associadas à ocorrên‑cia e necessidades de formação ética dos professo‑res, bem como promover práticas de investigação‑‑formação nesta área.

ÉTICA E SISTEMA EDUCATIVO

A natureza propriamente ética da docência já asso‑ma na legislação portuguesa, ainda que timidamente.

As dimensões éticas são consideradas como im‑portantes no nosso sistema educativo e estão presen‑tes em vários documentos legislativos, quer no que respeita à formação dos alunos, quer no que respei‑ta à formação dos professores, sendo consideradas

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componentes relevantes para o exercício profissio‑nal. Veja ‑se, por exemplo, a Lei de Bases do Sistema Educativo, onde as questões éticas, associadas aos valores sociais, espirituais, morais e cívicos, estão implícitas, quer como princípios organizativos, quer como objectivos do ensino básico e secundário.

Assim, nos princípios organizativos faz ‑se refe‑rência a uma preparação para “uma reflexão cons‑ciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos (…); c) assegurar a formação cívica e moral dos jovens (…) contribuir para desenvolver o espí‑rito e prática democráticos” (Lei nº 49/2005, de 30 de Agosto, artigo 3º, alíneas b), c) e l)).

Também ao nível da formação dos professores, no Decreto ‑Lei que aprova o regime jurídico da habilitação profissional para a docência na educa‑ção pré ‑escolar e nos ensinos básico e secundário surgem como componentes da formação inicial a “formação cultural, social e ética (…) que abrange, nomeadamente: c) a preparação para as áreas cur‑riculares não disciplinares e a reflexão sobre as di‑mensões ética e cívica da actividade docente” (De‑creto Lei nº 43/2007, de 22 de Fevereiro, artigo 14º). Para a formação contínua, uma das áreas privilegia‑das é a “formação ética e deontológica” (Decreto‑‑Lei 15/2007, de 19 de Janeiro, artigo 6º, alínea d).

Esta formação pretende, por um lado, ajudar os professores na formação ética dos seus alunos, e, por outro lado, apoiá ‑los no exercício de uma pro‑fissão eminentemente ética: veja ‑se o Decreto ‑Lei nº 240/2001, de 30 de Agosto, que aprova o perfil geral de desempenho profissional do educador de infância e dos professores dos ensinos básico e se‑cundário, onde expressamente no capítulo II do anexo se faz referência à dimensão ética, desdobra‑da em diversas alíneas, bem como o que se diz sobre os direitos e deveres dos professores presentes no Estatuto da Carreira Docente dos educadores de infância e dos professores dos ensino básico e se‑cundário (Decreto ‑Lei nº 15/2007, de 19 de Janeiro, artigos 4º e 10º).

Infelizmente, neste domínio, a legislação não tem tido uma concretização que se considere satisfatória. Tal é a opinião dos professores quando, no âmbito do estudo actual e de outros estudos anteriores, são questionados acerca da pertinência e acerca da sua experiência de formação neste campo. Aqui, como tantas vezes acontece, o que é considerado desejável

não tem correspondência na realidade presente e passada dos professores. Note ‑se, ainda, que se trata de um desejável hipotético idealizado no plano do possível, parecendo haver, por outro lado, resistên‑cias por parte dos professores a uma formação nesta área, quando esta se torna uma realidade provável. Pretendemos ultrapassar estas resistências e para tal é importante ouvir os professores acerca das suas necessidades mais concretas e das suas propostas em termos de conteúdos, modalidades e estratégias de formação. Esta fase da investigação, de questio‑namento através de entrevistas e questionários, visa também uma recolha de dados a este propósito, não apenas para uma compreensão do pensamen‑to ético ‑deontológico dos professores, mas também para a preparação de uma fase de formação ética dos professores, a ser efectivada posteriormente.

UM ESTUDO SOBRE PENSAMENTO E FORMAÇÃO ÉTICO ‑DEONTOLÓGICOS DE PROFESSORES

Este artigo baseia ‑se em dados recolhidos numa 1ª fase de um projecto de investigação intitulado “Pen‑samento e Formação Ético ‑Deontológicos de Profes‑sores”, desenvolvido em duas instituições de ensino superior, por uma equipe que abrange docentes de todos os níveis de ensino, e da qual fazemos parte. Neste projecto, iniciado em 2004 e com financia‑mento a partir de 2006, da FCT, pretende ‑se conhe‑cer o pensamento ético ‑deontológico de docentes de diferentes níveis de ensino, identificar necessidades de formação no domínio ético e deontológico, iden‑tificar práticas docentes em ordem à promoção do desenvolvimento ético dos seus alunos e identificar e pôr em acção estratégias de formação adequadas às necessidades detectadas e construir materiais destinados à reflexão. A 1ª fase, referente à prossecu‑ção dos dois primeiros objectivos, iniciou ‑se com a preparação, condução e análise de entrevistas semi‑‑directivas feitas a trinta e seis professores dos dife‑rentes níveis de ensino, desde o pré ‑escolar ao ensi‑no superior. A análise de conteúdo, do tipo indutivo, foi o método de análise considerado, tendo em conta a diversidade e fluidez de perspectivas, que não se enquadram de forma clara em esquemas conceptu‑ais bem delimitados. As entrevistas foram o ponto de

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partida para a elaboração de um questionário, já tes‑tado, e do qual se fez um primeiro tratamento estatís‑tico descritivo e uma análise factorial. A aplicação do questionário está na sua fase de finalização. A partir das entrevistas e questionários serão inventariados princípios, dilemas, práticas, necessidades de for‑mação e pistas de organização da formação que po‑derão ser considerados na concepção de projectos de formação, a desenvolver numa segunda fase, com vista à prossecução do terceiro e quarto objectivos.

FORMAÇÃO ÉTICA DE PROFESSORES

Que implicações para a formação decorrem das concepções dos professores acerca da ética e acerca de como esta é aprendida? Que conceitos de ética emergem? Como se posicionam os professores face a uma formação ética? Em que medida se sentem satisfeitos com a formação recebida? Como pode (ou não) ser articulada a formação e um código de‑ontológico da profissão docente, na regulação ética da profissão? Estas são algumas das questões a que procurámos responder neste e no próximo ponto. Serão tratadas de forma interpretativa, articulando os dados recolhidos nas entrevistas com algumas reflexões que estes suscitaram.

Formação e concepção pessoal de éticaNum discurso que questiona a relação entre ética pessoal e profissional, muitos dos professores en‑trevistados têm uma visão centrada em princípios e valores, orientadores da acção, que, segundo a maioria, são comuns aos domínios pessoais e pro‑fissionais. Numa lógica expressamente aplicativa, mas que pode ser bem mais complexa e recursiva, os princípios e valores são por vezes entendidos como dimensões intrínsecas (“que não se podem descolar de mim”, professor de 1º ciclo), pelo que se interligam nos dois domínios. Estes dados podem ser entendidos no sentido dos professores consi‑derarem maioritariamente que a ética profissional é de algum modo um prolongamento de uma ética pessoal, dando ênfase a uma perspectiva em que a identidade profissional e pessoal se integram num todo, mais do que se diferenciam segundo diferen‑tes papéis. Este é talvez um factor que explica por‑que consideram que a mudança, nestes domínios, é

lenta e difícil. Daí que se questione o papel da for‑mação nessa mudança.

Mais do que visar a mudança de princípios e va‑lores, os discursos sobre formação parecem privile‑giar uma perspectiva contextualista e consequencia‑lista, de desenvolvimento profissional, embora com diversidade de propostas que apontam para a refle‑xão sobre situações concretas (metodologia de pro‑jecto, uso de narrativas, dramatizações e debates), sem descurar linhas de estudo sobre normativos e fundamentos éticos e linhas de reflexão conceptual.

Numa perspectiva de aprendizagem das di‑mensões éticas, pela qual se acentua o seu carác‑ter adquirido, a formação e o estudo surgem como fontes de formação ética, mas referidas por vezes de um modo um pouco vago e sem muita ênfase. Na escola, as regras e os modelos encontrados nos professores, também as experiências de justiça e de injustiça constituem as principais fontes. Na formação inicial são poucas as referências que real‑cem o seu papel formativo a nível ético. As leituras são referidas por professores de todos os níveis de ensino, com ênfase, nomeadamente na área da Psi‑cologia, Pedagogia, Antropologia, Filosofia, e ain‑da na área da Literatura. São enunciadas, por ve‑zes com um grau de detalhe que assinala títulos de livros considerados significativos. Por outro lado, acentuam, como outras fontes de desenvolvimento ético, a família (um factor amplamente referido por professores de todos os níveis de ensino). Acentu‑am, ainda, o percurso de vida na sua complexidade e totalidade, aí assinalando acontecimentos sócio‑‑históricos relevantes e experiências em contextos múltiplos, profissionais e não profissionais, muitas destas feitas de modo mais autónomo. Os amigos e outros eus significativos, bem como a religião, são outras fontes referidas com menos destaque, não sendo assinaladas por professores de todos os ní‑veis de ensino.

Esta ideia de que a formação do sujeito ético se faz em grande parte fora do âmbito educativo for‑mal, escolar e formativo, parece dar pouca esperan‑ça para uma formação mais estruturada. Esta refle‑xão também nos leva a questionar o papel de um código deontológico que consigne os princípios, di‑reitos e deveres dos professores, pois se a formação tem potencialmente pouco impacto, o que dizer de uma via mais normativa?

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A noção de ética gira em torno de princípios e valores, orientando a acção o estabelecimento de regras para o bem, nomeadamente o bem do aluno. Os professores orientam ‑se maioritariamente por uma perspectiva contextualista e consequencialista que considera, no particular, a protecção do outro e o cuidado, através do diálogo e da análise de situa‑ções concretas, mas também são orientados por va‑lores como o respeito e a solidariedade, a liberdade e autonomia, a justiça, imparcialidade e igualdade, a honestidade e verdade, a responsabilidade e dig‑nidade humanas, o rigor e a competência. Estes são princípios e valores que se revelam e expressam em domínios diversos da actividade docente, em parti‑cular na relação com os alunos, na organização cur‑ricular e condutas docentes dentro e fora da escola, em relação a colegas, ao sistema educativo e à sua profissão, mas também na relação entre professores, a família e a comunidade.

Verifica ‑se, ainda, que os professores entrevis‑tados não atribuem quase nunca aos princípios e valores uma natureza universal, mas uma natureza subjectiva e intersubjectiva, não os considerando como um património comum a todos, assinalando processos de relativismo contextual, associado à formação, à conformidade e regulação social, que aproximam profissionais de um mesmo ofício e aju‑dam a construir a(s) cultura(s) de escola. Mais uma vez se reforça a ideia de que a formação deverá partir desta dimensão subjectiva e contextual, embora em articulação com uma dimensão mais universalista.

Os valores e os princípios descontextualizados não deverão estar à cabeça numa formação como esta, se nos procurarmos adaptar ao modo como os professores concebem, ligam estas vertentes éticas. A serem trabalhados, precisam ainda de ser articu‑lados com as questões de educação e formação ética dos alunos.

Da formação recebida à formação desejadaOs dados analisados, relativos aos educadores e professores da educação pré ‑escolar, dos 1º, 2º e 3º ciclos do ensino básico e do ensino secundário apontam para uma desfasamento entre a formação recebida e a necessidade sentida de uma formação na área da ética. A experiência terá sido nula ou qua‑se nula, quer na formação inicial, quer na formação contínua. Só no pré ‑escolar, uma educadora diz ter

tido uma disciplina de ética na sua formação inicial e são muito poucos os que afirmam ter trabalhado questões éticas em áreas e disciplinas que se debru‑çavam sobre outros temas. Na formação contínua o panorama mantém ‑se e as questões éticas são por vezes, raramente segundo as entrevistadas, trabalha‑das a propósito de temas mais abrangentes.

Por contraste, são frequentes as referências à pertinência de uma formação inicial e contínua na área da ética, embora entendida de modo diferen‑ciado, pelos professores dos diversos níveis de ensi‑no. Uma formação inicial que forneça fundamentos para a prática, que se constitua como uma formação rigorosa e organizada, motivadora para as questões éticas e que seja ela própria uma experiência onde se vive a ética. Uma formação contínua que, numa fase em que poderá haver mais sensibilidade para o tema, permita colmatar a distância entre a teoria e a prática, pela consciencialização de si próprio, que crie condições nas quais os professores possam pa‑rar para pensar, que mobilize o tratamento de temas actuais, que ajude a gerir relações de grupo e que oriente a formação ética dos alunos.

Entre a formação inicial e a formação contínuaPara além desta similaridade de experiências e po‑sições face à necessidade de uma formação na área da ética, quer inicial, quer contínua, surgem muitas outras similaridades no modo como se concebe a formação desejável. Assim, ao nível dos conteú‑dos, os valores, as atitudes e comportamentos são referências frequentes, quer para a formação inicial, quer para a formação contínua. Também o trabalhar sobre situações profissionais concretas e debruçar‑‑se sobre questões da sociedade são assuntos referi‑dos para a formação inicial e contínua. Em termos de modalidades e estratégias de formação, são cen‑trais, para todos os níveis de ensino, as referências à reflexão como estratégia de formação, uma reflexão colaborativa e introspectiva, sobre si, sobre os con‑textos, sobre as finalidades, sobre as práticas, sobre os outros, privilegiando a análise de situações con‑cretas e de experiências pessoais.

A ideia de se organizar a formação na forma de uma disciplina é bastante referida quer para a for‑mação inicial quer para a formação contínua, não sendo no entanto consensual.

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Mas os dados também apontam para algumas diferenças de perspectivas sobre a formação inicial e a contínua, que poderão ser aprofundadas com a continuação do estudo. Veja ‑se, por exemplo, as modalidades de formação, com propostas muito mais diversificadas na formação contínua, em rela‑ção à qual surgem sugestões como o estudo de ca‑sos para a resolução de problemas e de situações do dia ‑a ‑dia, a discussão, a simulação, a troca de expe‑riências, a construção de materiais, mas também o estudo e leitura, conferências, seminários e acções de formação, a colaboração de peritos, a dinâmica de grupos, o lúdico, a investigação ‑acção, a reflexão sobre códigos éticos.

Estas propostas são interessantes para quem, como nós, perspectiva avançar concretamente no terreno, para a formação contínua, e parece ‑nos que podem ser conjugadas em modalidades diversas, onde se privilegiem os círculos de estudo e projec‑tos de investigação ‑acção que, partindo de situações do quotidiano, e em situações colaborativas, promo‑vam a pesquisa empírica, a fundamentação teórica, a reflexão ética e a transformação emancipatória. A criação de diferentes núcleos de formação, de dife‑rentes níveis de ensino, cujos formadores estejam envolvidos neste projecto de investigação pode fa‑vorecer o desenvolvimento de uma rede alargada de projectos de formação ‑investigação na área da ética. Esta ideia de rede é, aliás, uma ideia mobilizada por alguns dos professores entrevistados. É, ainda, nes‑te sentido, que perspectivámos um “projecto colec‑tivo a partir de grupos de formação que se alarguem em rede, rentabilizando as possibilidades das novas tecnologias, e se transformem em comunidades” (Estrela, 2008, p. 25).

FORMAÇÃO E REGULAÇÃO ÉTICA DA PROFISSÃO — O PAPEL DE UM CÓDIGO DEONTOLÓGICO

Apesar dos dados sobre regulação ética da profissão indicarem que há professores que consideram que “a formação não dá tudo” (educadora) e que um có‑digo deontológico pode ser importante, não é nor‑malmente feita uma relação explícita sobre como a formação pode ser associada a um código, apesar de haver quem, quando questionado sobre a formação

inicial, a ligar implicitamente ao código, afirmando que era importante as pessoas já iniciarem com um código de ética, e de haver quem considere que o có‑digo poderia facilitar a formação da consciência pro‑fissional e ser a base de uma formação deontológica. Assim, mais do que processos que se alimentassem entre si, surgem como modos paralelos e comple‑mentares de regulação. No entanto, os dados tam‑bém não negam ou recusam formas recursivas pelas quais o código pudesse ser uma meta a clarificar no âmbito de uma formação, ou pelas quais um código pudesse ser entrada para reflexão e debate em pro‑cessos de formação. Destacam ao nível da formação, isso sim, uma via menos apriorística e mais contex‑tualista, reflexiva e prática, embora não excluindo o recurso a leituras e por vezes apontando para linhas investigativas nas quais a teoria e a prática se alimen‑tariam mutuamente. Destacam, ainda, a importância de que o processo de elaboração do código seja ca‑racterizado por esses mesmos processos contextua‑listas e reflexivos, no interior da profissão, devendo ser os próprios professores, mesmo que mobilizados externamente, aqueles que deveriam definir os seus princípios orientadores, através de diálogos e dis‑cussões, em contextos diversificados.

Com efeito, se é verdade que os educadores e professores entrevistados vêem como finalidade para a regulação ética da profissão a salvaguarda dos profissionais e a publicitação das obrigações, dos deveres e direitos dos professores, o código surge também como um instrumento para que os valores e princípios relativos às crianças sejam respeitados.

Este ponto de vista sugere que o código é, senão indispensável, pelo menos útil a três níveis: ao ní‑vel da intervenção e da relação dos professores com os alunos, ao nível da intervenção e da relação dos professores junto da sociedade e ao nível da relação com os seus pares.

Seguindo esta linha de raciocínio, o que se afigu‑ra é que, para os professores e educadores entrevis‑tados, o código havia de dizer duas coisas — quais são os valores e princípios relativos às crianças (e, por extensão, relativos aos alunos) e quais são os direitos e deveres dos professores. O código e a ela‑boração do código poderiam ter um potencial for‑mativo por proporcionarem, seja aquando da sua feitura, seja posteriormente, uma reflexão centra‑da nos próprios fins da educação, isto é, sobre os

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valores e os princípios da educação. O código, pelo seu conteúdo, oferecer ‑se ‑ia como material de for‑mação sobre o que é e para que serve a profissão de professor e como deve ser desempenhada. Isto, por um lado. Por outro, como diz uma professora do 1º ciclo, “na profissão de professor, tal como na do médico, a questão é a ética”, querendo ‑se com isto talvez dizer que o cerne do exercício profissional é o bem do outro. E será por causa de a questão ser a ética que não se vê como não se seja formado para bem lidar com a questão ética.

Outros docentes, pelo facto de haver um código, não sabem “se isso mudaria (…); a base é a formação das pessoas”: não vêem, parece, que uma coisa e a outra se poderia conjugar. E acrescentam que “mais do que um código, a escola devia ter um centro de recursos, para todos os professores, que as escolas deviam ser dotadas das infra ‑estruturas básicas”. Quase se poderia dizer que melhores condições de trabalho, uma formação adequada e um melhor fun‑cionamento das escolas tornariam desnecessário o código, não apenas não se estabelecendo uma van‑tagem para a formação da existência de um código, como se considerando mesmo o código como dis‑pensável. Esta perspectiva padeceria de “uma visão redutora da profissionalidade docente” (Reis Mon‑teiro, 2006, p. 1), subestimando a dimensão deon‑tológica do agir profissional, para além de parecer não partilhar da noção de que o porquê e o para quê da docência devem ser objecto tanto da formação como do código, dada a “natureza questionadora e questionável da docência” (Seiça, 2003, p. 105) e que, por isto mesmo, o código e a formação poderão alimentar ‑se reciprocamente. Mas sendo a questão a ética, voltando àquela docente, estar ‑se ‑ia próxi‑mo da consideração de que “a preparação das no‑vas gerações de cidadãos é uma das finalidades em torno da qual existe um amplo consenso (…) e que a cidadania tem uma dimensão tanto política como social e que uma e outra envolvem uma componen‑te ética” (Howard, 2005, p. 43). Esta componente ética é manifesta porque “no caso das profissões da educação (…) não está apenas em causa a ética do sujeito, isto é, o respeito da dignidade e direitos do educando, mas está essencialmente em jogo o sujei‑to ético, ou seja, a formação da consciência moral e o desenvolvimento da capacidade de autonomia e responsabilidade das crianças, adolescentes, jovens,

e eventualmente, adultos” (Reis Monteiro, 2006, p. 6). Sendo evidente esta componente ética, a forma‑ção de professores como educadores morais devia ocupar os currículos de formação de professores e a questão da regulação ética da profissão não poderia estar ausente desses programas.

REFLEXÃO FINAL — PARA UMA FORMAÇÃO ÉTICA DE PROFESSORES

Partindo da análise dos dados recolhidos através de entrevistas, numa primeira fase de investigação, postos à prova pela aplicação de questionários a centenas de docentes, preparam ‑se agora os passos para uma segunda fase, onde a formação ética dos professores seja posta em curso e seja objecto, ela própria, de investigação. Tendo em conta as pers‑pectivas dos professores, mas também diversas perspectivas teóricas sobre ética e formação de pro‑fessores, equaciona ‑se uma via que acentue o traba‑lho colaborativo e reflexivo, onde o professor tome a responsabilidade pela sua actuação ética e desenvol‑vimento ético dos seus alunos. Procurar ‑se ‑á “partir da própria experiência e dos dilemas que ela lhe co‑loca, para questionar as concepções éticas de cada um e dos seus pressupostos” (Estrela, 2008, p. 25).

No sentido de dar voz aos professores, perspec‑tiva ‑se, entre outras estratégias, partir dos seus dile‑mas reais (Beyer, 1997; Caetano, 1997, 1998; Woods et al., 1997) e tensões, entendidas aqui num concei‑to amplo que agrega as dificuldades, problemas, di‑lemas subjectivamente colocados pelos sujeitos em situações profissionais, constituindo assim experi‑ências subjectivas de conflito, discrepância, ques‑tio namento e incerteza, que empurram as pessoas para direcções opostas, tendo uma dimensão pes‑soal e emocional associada de inquietação, impa‑ciência ou mesmo ansiedade, e que resultam num processo de decisão mais ou menos reflexivo que põe em confronto diversas perspectivas, sentimen‑tos, acções, interacções e suas consequências bem como elementos de ordem contextual. O conceito aponta assim para uma dialógica através da qual as tensões se equacionam, se aprofundam e, por ve‑zes, se atenuam ou superam, de uma forma mais ou menos intensa, mais ou menos problemática e difí‑cil, mais ou menos criativa ou estratégica, mais ou

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menos livre ou limitada por constrangimentos situ‑acionais (Caetano, 2002). Esta opção é sustentada pelas entrevistas, em que foram diversos os dilemas e tensões referidos, nomeadamente na relação com os alunos, com os pais e com os colegas e funcio‑nários. Pretende ‑se, assim, usar os dilemas ‑tensões, dos próprios ou de terceiros (pela apresentação de casos e leitura de extractos das entrevistas efectua‑das), para aprofundar as questões éticas, o pensa‑mento ético ‑deontológico e competências diversas, quer de ordem pessoal, nomeadamente de ordem cognitiva (como o conhecimento ético, a reflexi‑vidade ética e a conceptualização ética — com a construção de modelos e sistemas próprios), emo‑cional e volitiva (ligadas à motivação, decisão e ac‑ção), quer competências de ordem interpessoal (tais como empatia, escuta activa, resolução de conflitos, etc), quer, ainda, competências transversais, como a responsabilidade, autonomia e criatividade.

Ao equacionar os dilemas e as tensões, em ge‑ral, como ponto de partida e eixos de análise para a formação, podemos encaminhar o trabalho do seu aprofundamento apelando para a escrita reflexiva em torno das dimensões éticas, práticas e contex‑tuais (partindo de uma formulação mais genérica à tensão ‑dilema e solicitar que cada um elabore registos narrativos de situações concretas que ope‑rem com esses dilemas mais amplos), para leituras diversificadas, modelizações complexas, debates ou roleplaying. Também é importante procurar uma unidade criativa que supere o conflito e faça a in‑tegração. Isso pode e deve passar por dar atenção a cada dimensão do conflito e por fazer o diálogo entre as diversas posições alternativas, mas também pode passar pela cumulatividade das alternativas, por superar o conflito por uma unidade criati‑va onde, por exemplo, se apelem a novos valores, outras soluções onde os valores não estejam em contradição; ou mesmo por manter a contradição, desenvolvendo imagens que tornem conciliáveis os aparentes inconciliáveis. Equacionar o dilema pode, ainda, ser trabalhado através de um compromisso, por remeter para o bem do todo, em vários níveis de abrangência, ou para princípios e valores conside‑rados hierarquicamente mais básicos e fundamen‑tais. Pode, por outro lado, passar por manter aber‑tura a soluções particulares e contextualizadas, pela participação do todo, pela vigilância ao instante e

à totalidade singular de cada situação. A tensão é, assim, entendida num sentido positivo, geradora de movimentos criativos que podem ser aproveitados como oportunidades de reflexão e de mudança, em contextos formativos.

Mas as tensões e os dilemas são apenas uma, de muitas outras entradas possíveis. Trata ‑se, pois, de procurar integrar objectivos e perspectivas distin‑tas, de ética e de formação, onde as dimensões aqui‑sitivas, analíticas e processuais ‑experienciais se con‑juguem numa via dialógica e investigativa e onde a abordagem deliberativa, relacional e crítica se apro‑fundem, emergindo diferenciadamente a partir dos interesses e necessidades de cada grupo. Trata ‑se de uma formação assente numa “ética da discussão, destinada a promover (…) verdadeiras comunida‑des comunicacionais (Moreau, 2007, p. 67) e onde os professores se assumem como verdadeiros agen‑tes morais. Trata ‑se de um modelo integrador que deverá obedecer a uma dupla orientação, que “visa a tomada de consciência dos aspectos e problemas de carácter ético (…) e a tomada de consciência de si em acção, enquanto pessoa total, eticamente res‑ponsável” (Estrela, 1999, p. 30).

Esta é uma formação que reforça uma perspec‑tiva ética assente numa fundamentação intrínseca, numa reflexividade crítica e criativa, prática e teó‑rica, mas também numa experiência emocional e intuitiva, aberta e flexível aos contextos, pelo que dela emergem princípios e valores a um tempo sin‑gulares e universalizáveis, construídos em comuni‑dade, pela participação democrática de todos e de cada um dos implicados. Deste modo preconiza ‑se o desenvolvimento de uma ética que opera criati‑vamente na confluência entre várias perspectivas: onde uma ética da compreensão, pela reflexão, em‑patia e equanimidade, se conjuga com uma ética do cuidado e da rel(ig)ação, pela valorização do outro e das consequências dos actos sobre os outros, onde “se dá primazia às emoções e sentimentos morais como estímulos para a acção e o juízo moral (…) com ênfase no particular mais do que no universal” (Howard, 2005, p. 52), conjugadas numa linha de ética experiencial de atenção ao próprio, aos outros e aos contextos, e de uma ética das virtudes, que emergem de toda essa experiência, sem descurar vias mais deontológicas e teleológicas que apoiam e direccionam as experiências e que delas resultam.

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Esta é uma formação que assume o que de posi‑tivo a pós ‑modernidade acentua — nomeadamente a voz plural, local, historicamente contextualizada dos seus intervenientes, vozes e visões que conflitu‑am no interior de cada um e no confronto entre os diversos. Mas as vozes e visões transportam dentro de si essas dimensões transversais dos princípios e valores básicos, entendidos como universalizáveis. Trata ‑se, assim, de uma formação na qual o diálogo, intrínseco à relação entre a modernidade e a pós‑‑modernidade, se actualiza.

Esta é, ainda, uma formação que se comprome‑te com uma visão complexa, onde as esferas indi‑viduais, interpessoais, institucionais, comunitárias e mesmo planetárias se consideram de uma forma

interdependente. Uma visão complexa pressupõe uma articulação entre o todo e a parte, entre o bem comum e o bem individual, sobressaindo princí‑pios e valores como a responsabilidade, a autono‑mia e a solidariedade, considerados em contextos participativos e democráticos (Morin, 2002, 2004). Trata ‑se de uma formação que favorece a dialógica criativa, reflexiva e auto ‑reguladora entre o univer‑sal e o singular, o pensamento e a acção, a razão e a afectividade, as intenções e os resultados, os conte‑údos e os contextos, sendo a flexibilidade e fluidez qualidades que interpenetram o que é mais estável e que actualizam os sentidos, pelo que o instante e o movimento são partes relevantes do processo.

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Resumo:Neste texto apresentamos os principais eixos estruturantes e dimensões de um projecto de investigação em curso, entre as Universidades de Lisboa, Minho e Nova de Lisboa, no âmbito da formação de professores em contextos colaborativos, bem como o seu enqua‑dramento e fundamentação. Começamos por fazer uma breve conceptualização do projec‑to com base nas linhas orientadoras, discursos e desafios que hoje se colocam à formação de professores. Seguidamente, apresentamos os pressupostos do projecto de investigação “formação de professores em contextos colaborativos” e discutimos os conceitos ‑chave que lhe estão subjacentes. Por fim, descrevemos o processo do seu desenvolvimento e apontamos alguns resultados já publicados noutros lugares.

Palavras ‑chave:Formação contínua de professores, Desenvolvimento profissional, Colaboração, Investi‑gação ‑acção.

s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 8 · j a n / a b r 0 9 i s s n 1 6 4 6 ‑ 4 9 9 0

Formação de Professores em contextos colaborativos. Um projecto de investigação em curso

Ana Margarida Veiga Simã[email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Maria Assunção [email protected]

Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho

José Carlos [email protected]

Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho

Ana Maria [email protected]

Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho (Doutoranda)

Teresa Fragoso de [email protected]

Universidade de Lisboa (Doutoranda)

Veiga Simão, Ana Margarida; Flores, Maria Assunção; Morgado, José Carlos; Forte, Ana Maria &

Almeida, Teresa Fragoso (2009). Formação de Professores em contextos colaborativos. Um projecto

de investigação em curso. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 08, pp. 61‑74

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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INTRODUÇÃO

Num momento em que a escola, enquanto institui‑ção educativa e formativa, se depara com inúmeros desafios e enfrenta profundas alterações, a educação e a formação ganham um sentido renovado e vêem reforçado o seu valor estratégico como factores de‑terminantes de inovação, de progresso, de compe‑titividade, de excelência e de bem ‑estar económico e social. Neste contexto, a questão da qualidade do ensino e das aprendizagens (e também da qualidade dos professores) tem sido uma das palavras ‑chave dos discursos políticos e debates que se têm gerado em torno do tema Educação.

Ora, como lembra Nóvoa (1992, p. 9), não é pos‑sível existir “ensino de qualidade, nem reforma edu‑cativa, nem inovação pedagógica, sem uma adequada formação de professores”. Um preceito que contri‑buiu para que a formação de professores se transfor‑masse numa área de investigação e conhecimento ca‑paz de oferecer soluções para alguns dos problemas com que se deparam os sistemas educativos (Marcelo, 1999). Assim se compreende que, tanto a nível nacio‑nal como internacional, a formação de professores continue a preencher uma boa parte dos debates em educação e a ser elemento de referência nas políticas educativas, o que demonstra a sua influência na quali‑dade do desempenho profissional dos docentes e, por consequência, na melhoria dos processos de ensino‑‑aprendizagem que se desenvolvem nas escolas.

É, pois, em torno dos contributos que a forma‑ção de professores pode propiciar, tanto ao nível do

desenvolvimento profissional docente, quanto da mudança e melhoria das práticas curriculares que se desenvolvem nas escolas, que pretendemos reflectir neste texto, no sentido de enquadrar e apresentar um projecto de investigação em curso.

Partindo dos desafios que, nesta matéria, se têm vindo a colocar mais recentemente à formação de professores, apresentamos na segunda parte do tex‑to um projecto de investigação que temos vindo a desenvolver em torno formação de professores em contextos colaborativos.

DESAFIOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

À semelhança do que tem acontecido no campo da economia, as questões de carácter social e cultural têm merecido uma atenção crescente por parte da Comis‑são Europeia, com sucessivos apelos aos distintos pa‑íses comunitários para encetarem reformas no campo da educação e da formação e concretizarem os objec‑tivos estratégicos do programa de trabalho “Educa-ção & Formação para 2010”¹. Estes visam colocar a Europa na rota da economia baseada no conhecimento e transformá ‑la num espaço competitivo à escala do planeta, sem que esse processo resulte do sacrifício do nível e da qualidade do emprego, da debilidade da coe‑são social ou da agressão à sustentabilidade ambiental.

Tais propósitos inserem ‑se num movimento de regulação mais amplo que serve de esteio à constru‑ção de uma nova ordem educativa mundial (Laval

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& Weber, 2002), cujos autores, actores e acções gra‑vitam essencialmente no domínio supranacional e que, na opinião de Antunes (2007, p. 14), têm sido os principais propulsores das mudanças conceptu‑ais, institucionais, axiológicas e relacionais que hoje se verificam no campo educativo.

Com efeito, tanto a nível político como territo‑rial, têm sido evidentes os esforços da União Eu‑ropeia para “ampliar a sua capacidade de actuação e influência”, para definir uma matriz política que norteie os destinos educativos dos vários países que a integram e para conceber novas entidades que, não se confundindo com os sistemas educativos e de formação nacionais, “aparecem codificadas sobre a designação de espaço europeu (do conhecimento, do ensino superior, de educação e formação, de apren‑dizagem ao longo da vida, de investigação e inova‑ção…)” (Antunes, 2007, pp. 17 ‑18) e visam cumprir os desígnios estipulados para o desenvolvimento de um novo modelo social na Europa².

Neste empreendimento, a qualidade do ensino ministrado é um factor determinante, o que confe‑re um papel central aos processos de educação e formação e uma responsabilidade acrescida a pro‑fessores e formadores, já que da qualidade da sua formação académica e profissional e do serviço que desempenham depende, em muito, o melhor ou pior desempenho dos estudantes.

Também a este nível, a Comissão Europeia tem revelado grande sensibilidade, criando mecanismos para consolidar o conceito de uma dimensão euro‑peia na formação de professores³ e desenvolvendo programas comunitários para promover a mobili‑dade e apoiar o desenvolvimento de competências pelos docentes⁴. Em qualquer dos casos, estamos convictos de que não se trata de desenvolver um “tipo” único de professor, já que os sistemas edu‑cativos europeus são diferentes e “ninguém pode pensar em qualquer tipo de uniformização” (Frei‑tas, 2007, p. 8). Sendo certo que a profissão docente é construída na base de “valências comuns”, o que permite que professores de diferentes países se re‑conheçam facilmente como pares, a verdade é que “subsistem diferenças que, não sendo suficientes para descaracterizar a profissão, não permitem uma verdadeira identidade (Freitas, 2007, p. 8). Daí a ne‑cessidade de encontrar caminhos que apontem para o desenvolvimento de um paradigma de professor

europeu, ancorado num conjunto de conhecimen‑tos e competências reconhecidos como essenciais para a docência e que, além de tentar harmonizar diferentes tipos de formação docente e estimular o intercâmbio e a cooperação entre professores de di‑ferentes países, facilite a construção de um espaço educativo europeu a várias vozes, sem deixar de ter em conta princípios e objectivos comuns.

Esse perfil de professor, para além dos saberes científicos, específicos da área de conhecimento a que o professor se encontra vinculado, deve incluir uma série de competências didácticas e pedagógi‑cas inerentes à função docente que permitam não só recorrer a métodos de ensino e aprendizagem mais construtivos e mais centrados no trabalho em equipa, mas também desenvolver acções que res‑pondam aos problemas éticos e às diferenças que ainda persistem no interior de muitas salas de aula. Nesse leque de competências, devem ainda ser ti‑das em conta destrezas que permitam aos docentes explorar oportunidades fornecidas pelas novas tec‑nologias, fazendo delas um recurso para engendrar formas de aprendizagem mais individualizada, bem como as que permitam desenvolver atitudes inves‑tigativas, aqui vistas como meio de actualização e aprofundamento de conhecimentos, de reflexão so‑bre o trabalho desenvolvido, de tomadas de decisão, de resolução de problemas e de desenvolvimento profissional contínuo.

É nesta ordem de ideias que a formação de pro‑fessores se configura como uma dimensão estrutu‑rante da mudança e melhoria das práticas curricula‑res e, por consequência, dos sistemas de educação e formação. A partir do momento em que se compre‑endeu que a formação inicial representa apenas uma etapa precedente à entrada na profissão, a formação contínua e o conceito de desenvolvimento profissio‑nal contínuo (Day, 2001) ganharam novos sentidos e passaram a ser tidos como elementos de referência, tanto ao nível da construção da identidade profis‑sional docente, como da concepção e operacionali‑zação dos processos de ensino ‑aprendizagem.

Na verdade, se ao nível da formação inicial se deve propiciar aos futuros professores a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de compe‑tências inerentes à tarefa educativa, a formação con‑tínua, que deve começar quando o docente inicia funções, tem a seu cargo a tarefa de “compaginar

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pensamento e acção, reformular e actualizar a pre‑paração dos professores, questionar as práticas de ensino, identificar problemas e necessidades (…) e desenvolver novas formas de relacionamento e novos modos de trabalho” (Morgado, 2007, p. 48). Formação inicial e formação contínua assumem ‑se, assim, como componentes nucleares do desenvolvi‑mento profissional e da mudança ou inovação das práticas curriculares.

Porém, o sucesso da formação de professores, so‑bretudo ao nível da formação contínua, depende da capacidade das escolas se envolverem na concepção e desenvolvimento colectivo de projectos de forma‑ção que respondam às suas necessidades e que per‑mitam encontrar respostas para os problemas com que se deparam no seu dia ‑a ‑dia. Não deixando de reconhecer a importância de um plano de formação de âmbito mais global, bem como de alguns apoios externos (recursos humanos, financeiros e materiais), estamos convictos de que se tais projectos eclodirem no seio de cada instituição, ou conjunto de institui‑ções que se organizem para esse efeito, serão mais profícuos e relevantes, por responderem melhor às necessidades e interesses das escolas e permitirem que os docentes se assumam como autores dos seus próprios processos de formação.

Aliás, o momento de mudança que, no terreno da formação de professores, se vive actualmente nas instituições de ensino superior, só surtirá os efeitos desejados se, ao nível das escolas, a formação con‑tínua se estruturar numa lógica mais contextualiza‑da, isto é, se repousar numa identificação constante de necessidades e problemas para, a partir deles, se idealizarem projectos de formação e (re)definirem linhas de acção pedagógica. No fundo, uma forma‑ção que viabilize uma aprendizagem contínua no decorrer do próprio exercício profissional (Cam‑pos, 2002), privilegie a investigação como estratégia de formação, capacite os professores para “uma to‑mada de consciência profissional de si em situação” (Estrela & Estrela, 2001, p. 12) e os mobilize para conceber e desenvolver práticas pedagógicas que respondam com eficácia às exigências profissionais com que actualmente se deparam.

Além disso, a formação contínua deve, ainda, cumprir dois aspectos essenciais. Por um lado, “ser informada pela investigação”, o que implica que se desenvolva no sentido de preparar os professores,

tanto para recorrer à investigação produzida no do‑mínio da educação, quanto para agir com espírito investigativo (Campos, 2002, p. 73). Os desafios que hoje se colocam à profissionalidade docente assim o exigem, já que a actividade profissional fundada em rotinas se revela obsoleta, prevalecendo a singula‑ridade de cada contexto educativo e a necessidade de uma constante (re)adaptação da acção educativa.

Por outro lado, a formação contínua deve fo‑mentar o desenvolvimento de práticas colaborativas nas escolas. Ao desempenho mais individualista do professor, típico do ensino de cariz disciplinar que prevaleceu durante muito tempo, contrapõe ‑se a necessidade do trabalho em equipa, sem o qual será inviável qualquer tentativa de gestão curricular flexível e diferenciada, de desenvolvimento de uma atitude docente mais autónoma e de construção de uma “nova” cultura docente.

Foi com base nos princípios que vimos enun‑ciando que delineámos o projecto de investigação--formação que apresentamos de seguida.

O PROJECTO “FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM CONTEXTOS COLABORATIVOS”

Pressupostos e JustificaçãoTrata ‑se de um projecto iniciado em 2006⁵ que as‑senta na ideia da colaboração como pilar central do trabalho dos professores, da sua formação e do seu desenvolvimento profissional, desenvolvendo ‑se num contexto de colaboração (desde a sua génese até à sua concretização e avaliação) entre três inves‑tigadoras da Universidade de Lisboa, uma da Uni‑versidade Nova de Lisboa e dois da Universidade do Minho, nove professoras/doutorandas em Edu‑cação (cinco a iniciar e outras quatro a terminar) e cinco colaboradoras, num total de vinte elementos da equipa de investigação.

O desenvolvimento do conhecimento acerca dos processos de aprendizagem dos adultos real‑ça claramente a importância da reflexividade e da aprendizagem em contexto, reforçando a necessi‑dade de articulação entre os processos de trabalho e os processos de formação. No que diz respeito à formação de professores, também se reclama, cada vez mais, a importância da procura, em cada escola,

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de um projecto coerente entre as práticas educa‑tivas dos alunos e os processos de formação dos professores. Se se acredita que o aluno pode ser construtor do seu próprio conhecimento, partici‑pando em processos de colaboração com os seus pares, sob orientação do professor, por que razão os professores não podem igualmente desenvolver a sua competência e a sua profissionalidade em contacto com os seus pares em local de trabalho? Esta perspectiva levanta um conjunto de questões que têm a ver, não só com a formação propriamen‑te dita (com as políticas e os processos de forma‑ção), mas também com aspectos que se cruzam com o desenvolvimento das escolas, enquanto lo‑cais de trabalho e de aprendizagem de alunos e de professores. Assim, as questões que norteiam este projecto de investigação são as seguintes:

· Como é que os processos de colaboração/formação se reflectem na qualidade do ensi‑no de um determinado grupo de professores e no desenvolvimento de competências de cada um deles?

· Como é que se transferem os saberes parti‑lhados em processos de colaboração na es‑cola para os saberes experienciados por cada professor na sua prática?

· Como é que são vividos e avaliados, pelos professores, os processos de participação es‑truturada em que colaboram, no sentido de se responder a problemas concretos com que a escola se defronta?

· Como é que convive nos professores a cons‑trução da sua autonomia profissional e os pro‑cessos de colaboração em que participam?

· Até que ponto as oportunidades de desen‑volvimento profissional e de colaboração têm efeitos mais ou menos duradouros nos con‑textos em que ocorrem?

No quadro de novos desafios e responsabilidades com que são interpelados as escolas e os profes‑sores dos ensinos básico e secundário, parece ‑nos importante o desenvolvimento de projectos de in‑vestigação colaborativa, a partir dos quais se possa conhecer melhor as diversas modalidades de tra‑balho colaborativo (desde o trabalho de equipa, à tutoria, ao mentoring, entre outras), no sentido de

uma intervenção mais fundamentada. Assim, com o projecto que aqui apresentamos pretende ‑se:

· Contribuir para um melhor conhecimento das oportunidades formativas existentes no local de trabalho dos professores em várias escolas;

· Compreender os reflexos de uma formação participada e colaborativa no desenvolvi‑mento profissional do professor;

· Equacionar os processos de desenvolvimento da autonomia do professor no seio de um pro‑cesso colaborativo de participação/formação;

· Perceber como se articulam os processos de formação em contexto colaborativo e as prá‑ticas educativas dos professores que neles participam.

Conceitos organizadores do projecto Entre os conceitos norteadores e transversais aos diferentes sub ‑projectos que integram este projec‑to de investigação (ver mais adiante) encontram‑‑se a colaboração e a reflexividade, a formação em contexto laboral, o desenvolvimento profissional, a investigacção ‑acção e o impacto nos alunos e na escola. Exploramos, seguidamente e com mais deta‑lhe, alguns destes conceitos.

Contextos colaborativosOs desafios que se colocam actualmente à escola e aos professores geram permanentes confrontos com o saber e, no caso da formação de docentes, apelam a um questionamento constante da sua profissiona‑lidade. O contexto de trabalho, enquanto local de construção do conhecimento profissional dos pro‑fessores, assume particular importância pois permi‑te um “vaivém entre uma teoria e uma prática que a interpreta, a desafia, a interroga e, por isso, também a fecunda e faz desenvolver” (Formosinho & Ma‑chado, 2007, p. 77).

A emergência deste conceito de formação em con‑texto implica, para a formação de professores, que es‑tes se mobilizem com o objectivo de, em trabalho co‑laborativo, enfrentarem as tensões inerentes à função educativa e, em conjunto, tentarem ultrapassá ‑las.

Glazer e Hannafin (2006, p. 180) defendem que a aprendizagem realizada fora do contexto de trabalho “aumenta o reportório individual dos professores mais do que influencia a comunidade

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profissional, limitando a compreensão e o impacto colectivos”.

No âmbito deste projecto, pretendemos que os professores, em colaboração, melhorem, não só os seus próprios desempenhos profissionais, como também que essa melhoria constitua uma mais ‑valia para a comunidade educativa. A este propósito, Day (2001, p. 16) defende que os professores devem ter “oportunidades para participar numa variedade de actividades formais e informais indutoras de pro‑cessos de revisão, renovação e aperfeiçoamento do seu pensamento e da sua acção e, sobretudo, do seu compromisso profissional”. A investigação tem vindo a demonstrar que o crescimento profissional dos professores aumenta quando é valorizado um trabalho colaborativo, em que existe uma constante interacção que permite a partilha de experiências de sucesso e a aprendizagem com os erros dos seus pa‑res (Lave & Wenger, 1990; Gallagher & Ford, 2002; Boyd, 1992, citados por Glazer & Hannafin, 2006).

Também um estudo de Lee e Judith Shulman (2004, citados por Roldão, 2007, p. 26), que defen‑de a aprendizagem como processo formativo na ac‑tividade de um professor, requer a ancoragem “na reflexão colectiva; na análise e observação conjunta das situações concretas da acção docente; na pro‑cura colaborativa de mais informação, geradora de novo conhecimento profissional e na realização de acções de ensino em formato partilhado”.

Assim, o projecto que aqui se descreve propõe a colaboração como factor de aprendizagem pro‑fissional, através da estimulação de interacções re‑cíprocas entre os professores. Neste contexto de colaboração, torna ‑se visível a articulação entre os processos de melhoria da escola e a formação e o desenvolvimento profissional dos professores.

Investigação -acçãoNesta dinâmica de formação colaborativa que de‑fendemos, pensamos que a investigação ‑acção co‑laborativa constitui a metodologia de investigação mais adequada.

A expressão investigação ‑acção tem sido utiliza‑da com diferentes usos e sentidos mas, de uma for‑ma genérica, pode definir ‑se como uma “vasta gama de estratégias realizadas para melhorar o sistema educativo e social” (Latorre, 2004, p. 23). A existên‑cia de concepções diversas sobre esta metodologia

de investigação ocasionou o aparecimento de mo‑delos diferentes, muito embora todos se inspirem na conceptualização de Kurt Lewin (1980 ‑1947). O modelo defendido por Kemmis (1989, citado por Latorre, 2004) pareceu ‑nos o mais adequado por ser aquele que melhor se aplica ao ensino. Este modelo organiza ‑se em dois eixos: um estratégico (acção e reflexão) e outro organizativo (planificação e observação). Estes eixos relacionam ‑se de forma interactiva, o que permite a compreensão e a reso‑lução de situações da prática educativa. A modali‑dade defendida por Kemmis e Carr (1988, citados por Latorre, 2004, p. 31), que nos parece adequada aos objectivos que defendemos, é a investigação‑‑acção crítica ou emancipatória que acrescenta às outras duas modalidades que surgem na literatura sobre esta temática (“técnica” e “prática”) a preocu‑pação, não só com “a transformação da organização e prática educativa, mas também com a organização e prática social”.

Nesta perspectiva, os professores envolvidos, numa estrutura horizontal, partilham reflexões, de‑cisões e responsabilidades, não só sobre eles pró‑prios mas também sobre a comunidade educativa, e “as suas respostas serão em forma de prática trans‑formada, práticos transformados e cenários onde as suas práticas ocorrem transformados, em deter‑minado tempo e em determinado lugar” (Kemmis, 2006, p. 473).

Perez Serrano (1990) destaca, como aspectos do conceito de investigação ‑acção, os seguintes: pres‑supõe mudança, transformação e melhoria da rea‑lidade social; implica a colaboração; desenvolve ‑se seguindo uma espiral de ciclos; é um processo sis‑temático de aprendizagem contínua; orienta ‑se para a criação de grupos de reflexão autocríticos; é par‑ticipativa; metodologicamente concebe ‑se de um modo amplo e flexível; propõe um novo tipo de in‑vestigador; parte da prática; pretende ter rigor me‑todológico; começa por operar pequenas mudan‑ças; permite criar registos das melhorias realizadas.

Kemmis e McTaggart (1988, citados por Latorre, 2004, p. 27) consideram, por sua vez, como metas da investigação ‑acção, “melhorar e/ou transformar a prática social e/ou educativa, em vez de procurar uma melhor compreensão dessa prática; articular de maneira permanente a investigação, a acção e a formação; aproximar ‑se da realidade, vinculando

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a mudança e o conhecimento; fazer os professores protagonistas da investigação”.

Assim, a investigação ‑acção colaborativa induz os professores a teorizar acerca das suas práticas, questionando, nos seus contextos, a acção e as suas consequências e compreendendo as relações entre a circunstância, as acções e as consequências nas suas próprias vidas. O trabalho colaborativo da investigação ‑acção pressupõe um trabalho conjun‑to de investigadores e práticos, com a consequente implicação de ambos. Pressupõe um processo de aprendizagem focalizado, fundamentalmente, na planificação da acção e na avaliação dos resultados. Latorre (2004, p. 24) considera a investigação ‑acção “como um questionamento prático realizado pelos professores de forma colaborativa, com a finalidade de melhorar a sua prática educativa através de ciclos de acção e de reflexão”.

O movimento contínuo, de natureza cíclica, entre a acção e a reflexão, permite um processo de questionamento entre aquilo que são as evidências e a interpretação do grupo colaborativo, ou seja, “uma espiral dialéctica entre a acção e a reflexão, de modo a que ambos os momentos fiquem integrados e se complementem” (Latorre, 2004, p. 32).

Formação e Desenvolvimento Profissional de ProfessoresA formação de professores tem sido situada por al‑guns autores (Estrela & Estrela, 2006; Nóvoa, 1992) numa “encruzilhada”. Maria Teresa Estrela e Albano Estrela (2006, p. 73) argumentam que o “discurso te‑órico da formação é pouco sustentado em trabalhos empíricos que confirmem a sua adequação ao real”. Por outro lado, referem, baseando ‑se na literatura a que tiveram acesso, “uma certa incapacidade de ino‑vação de práticas e de renovação do discurso”.

Mas, esse facto não retirou importância à forma‑ção contínua. Pelo contrário, os autores consideram‑‑na relevante a vários títulos: i) pela valorização do trabalhador consignada na legislação referente ao trabalho; ii) pelas práticas formativas que ocupam milhares e milhares de horas a formadores e for‑mandos; iii) pelos investimentos financeiros mobi‑lizados por organismos privados e estatais, a nível nacional e internacional; iv) pelo conhecimento ge‑rado pela necessidade de fundamentar, desenvolver e avaliar as práticas de formação e os seus efeitos.

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A formação contínua constitui um conceito po‑lissémico remetendo para diferentes visões, diferen‑tes sensibilidades ideológicas e diferentes epistemo‑logias (Estrela & Estrela, 2006). A partir da análise das várias definições de formação contínua, os auto‑res isolam dois pontos consensuais, isto é, “trata ‑se de uma formação que se segue à formação inicial” e “supõe uma intencionalidade, orientando ‑se para determinados fins” (Estrela & Estrela, 2006, p. 74).

Contudo, como reconhece Corcoran (1995, ci‑tado por Pacheco & Flores, 1999), muitas vezes os conceitos de desenvolvimento profissional e forma‑ção contínua são utilizados como sinónimos. Maria Teresa Estrela e Albano Estrela (2006, p. 75) enca‑ram a formação contínua como “o conjunto de acti‑vidades institucionalmente enquadradas que, após a formação inicial, visam o aperfeiçoamento profissio‑nal, pessoal do professor” remetendo para o desen‑volvimento profissional o conjunto de “processos de mudança da pessoa em relação com o trabalho, operados ao longo da carreira e que decorrem de uma pluralidade de factores (…)”.

Por seu turno, Day (2001) defende que o conceito de desenvolvimento profissional não exclui a forma‑ção contínua de professores na forma de cursos, mas situa ‑a num contexto de aprendizagem mais vasto, no sentido de promover o crescimento dos indivíduos e das instituições, realizando ‑se tanto dentro como fora dessas mesmas instituições. Trata ‑se de “uma visão holística do desenvolvimento profissional con‑tínuo dos professores” que engloba os desafios e os constrangimentos que afectam a sua capacidade para se empenharem profissionalmente e para desenvol‑verem as suas competências, cujo sentido “depende das suas vidas pessoais e profissionais e das políticas e contextos escolares nos quais realizam a sua acti‑vidade docente” (p. 15). Salienta, ainda, o autor (p. 18), que o conceito de desenvolvimento profissional inclui “quer a aprendizagem eminentemente pesso‑al, sem qualquer tipo de orientação, a partir da ex‑periência (…), quer as oportunidades informais de desenvolvimento profissional vividas na escola, quer ainda as mais formais oportunidades de aprendiza‑gem ‘acelerada’”. No entanto, sublinha Day (2001), para promover e gerir o desenvolvimento profis‑sional, de uma forma eficaz, é mais importante uma perspectiva centrada no aprendente do que centra‑da na instrução, chamando a atenção para os vários

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factores que, estando interligados, contribuem para a qualidade da aprendizagem e do desenvolvimento profissionais. Assim, “um bom ensino exige que os professores (re)analisem e revejam regularmente a forma como aplicam princípios de diferenciação, co‑erência, progressão, continuidade e equilíbrio, não só no ‘que’ e no ‘como’ ensinar, mas também no ‘por‑quê’, ao nível dos seus propósitos ‘morais’ básicos” (Day, 2001, p. 25).

A formação contínua, como tem sido sustenta‑do, pretende melhorar as competências profissio‑nais, mas, para isso, a forma como se organiza e se contratualiza é de enorme importância para a sua adequação às situações profissionais. Assim, num mundo caracterizado pela mudança, Day (2001) sustenta como factores ‑chave no desenvolvimento profissional contínuo, o tempo e as oportunidades, bem como as disposições e capacidades dos profes‑sores para aprenderem com outros no local de tra‑balho e com outros elementos da escola.

Todo o desenvolvimento profissional envolve alguma aprendizagem e, necessariamente, alguma mudança. Nesse sentido, desenvolvimento e mu‑dança apresentam ‑se de modo indissociável. No entanto, a mudança só ocorre se o professor quiser mudar. Como refere Day (2001, p. 17), “os profes‑sores não podem ser formados (passivamente). Eles formam ‑se (activamente)”. Assim, os vários estudos têm mostrado que a mudança requer a cooperação activa dos professores. No entanto, existem vários constrangimentos que constituem obstáculos à mu‑dança, nomeadamente ao nível das culturas profis‑sionais. É neste sentido que McLaughlin e Talbert (2001, referenciados por Day, 2004, p. 198) defen‑dem que “as comunidades de aprendizagem de pro‑fessores constituem o melhor contexto para o cres‑cimento profissional e para a mudança”.

Nesta sequência de ideias, Day (2004, p. 199) ar‑gumenta que, “embora por definição o professor seja responsável pela qualidade do seu trabalho na sala de aula, as escolas que adoptam os ideais e práticas de comunidade têm uma responsabilidade colectiva em relação às condições em que os professores e os alunos trabalham”. Neste sentido, Sachs (2003, cita‑do por Day, 2004, p. 202) defende que os professo‑res desempenham um papel essencial na definição da cultura da escola, devendo transformar ‑se em “profissionais activistas”. Embora a construção de

redes de aprendizagem colaborativas leve bastante tempo, a literatura sugere que estas oferecem bene‑fícios significativos, quer para os docentes quer para os alunos. Segundo Day (2004, p. 207), a colabora‑ção tende a reduzir o sentimento de impotência dos professores e a aumentar a sua auto ‑eficácia colecti‑va e individual.

Maria Teresa Estrela e Albano Estrela (2006, pp. 78 ‑79), recorrendo a vários estudos sobre a formação contínua, reflectem “um olhar desen‑cantado”, levando ‑os a considerar que se tratou de “uma oportunidade parcialmente perdida de renovação da escola e da cultura dos professores”, devido ao “grande desfasamento entre as inten‑ções e as realizações, entre as retóricas e os norma‑tivos da formação e a sua concretização no real”. Os autores argumentam que “contrariando os seus próprios pressupostos, não tiveram em considera‑ção as culturas docentes e as culturas das escolas e não deram voz à voz dos professores, de forma a partir delas para, com elas, se promover a mudan‑ça” (p. 79). Os mesmos autores advogam, ainda, o reforço do caminho da investigação empírica e a construção sobre os seus resultados dos modelos teóricos para a sustentação da mudança, o que im‑plica “ouvir mais a voz dos professores, associá ‑los mais à investigação, ter mais em consideração as culturas docentes, não para as eternizar, mas para que elas mudem de dentro para fora e, não como se tem pretendido e apesar de todos os discursos em contrário de fora para dentro” (p. 79).

Também nós partimos destas premissas e iniciá‑mos o projecto que a seguir descrevemos de forma breve.

Breve descrição das opções metodológicasPara o desenvolvimento do projecto de investi‑gação (que inclui vários sub ‑projectos), optou ‑se pela combinação de métodos quantitativos e qua‑litativos, embora com maior ênfase nos segundos. Recorreu ‑se à utilização de questionários⁶, de en‑trevistas semi ‑estruturadas, da observação e da es‑timulação da recordação. Na maior parte dos casos dos sub ‑projectos, a investigação ‑acção colabora‑tiva (Kemmis, 2006), foi a opção privilegiada pois, como salienta Caetano (2004, p. 50), esta estratégia de investigação permite: “um processo sistemático e continuado de pesquisa e transformação pelo qual

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o conhecimento se constrói na acção e para a ac‑ção”. A documentação de todo o processo, através das próprias produções realizadas pelos professores e alunos em momentos de planificação, desenvolvi‑mento das actividades de intervenção e avaliação são objecto de análise.

De referir ainda que o projecto se desenvolveu (ver figura 1) de acordo com um conjunto de fases que tiveram em conta as dimensões transversais e concorrentes dos vários sub ‑projectos, por um lado, e a sua especificidade, por outro. Assim, numa pri‑meira vertente, para além da constituição da equi‑pa de investigação com base num conjunto de in‑teresses comuns, foram desenvolvidos os seguintes aspectos: construção colaborativa do projecto, dis‑cussão e clarificação das metodologias de investi‑gação e construção de instrumentos de recolha de dados comuns (de acordo com os conceitos estrutu‑rantes atrás mencionados, mas sem perder de vista a especificidade de cada projecto). A reflexão sobre

a investigação e os projectos de intervenção, bem como a divulgação da investigação em congressos nacionais e estrangeiros, foram também questões que ocuparam grande parte das reuniões de traba‑lho e jornadas de reflexão, no âmbito do projecto.

Numa segunda vertente, já mais direcciona‑da para a concretização dos vários sub ‑projectos, incluíram ‑se as seguintes actividades: intervenção — formação dos professores nos vários contextos escolares, com duração variável em função da na‑tureza, âmbito e participantes dos respectivos sub‑‑projectos; construção colaborativa do projecto (na fase dos projectos de intervenção); discussão e con‑cepção de metodologias de formação ‑intervenção, desenvolvimento, monitorização e revisão da intervenção ‑formação; reflexão sobre a formação e a intervenção; devolução de dados nos vários con‑textos escolares e nas reuniões da equipa de inves‑tigação e divulgação da intervenção ‑formação nos vários contextos.

formação de professores em contextos colaborativos

Equipa de Investigação

Formação dos investigadores

Construção colaborativa do projecto

Co ‑construção dos instrumentos de investigação

Reflexão sobre a investigação e a intervenção — investigação — impacto nos alunos, nos docentes e na instituição

Investigação

Concepção de metodologias de investigação

Recolha e análise de dados

Devolução de resultados

Disseminação

Intervenção/formação dos professores nos vários contextos

Concepção da intervenção — formação

Desenvolvimento da intervenção — formação

Monitorização da intervenção — formação

Revisão da intervenção — formação

Primeiros resultados/pistas de investigação

Sub -projectosInvestigação/Formação em contexto laboral

Investigação -acção colaborativa

figura 1Desenvolvimento do projecto de investigação

Eixos estruturantes dos vários sub ‑projectosO projecto de investigação que caracterizamos neste artigo inclui, como já dissemos, um conjunto de vá‑rios sub ‑projectos/projectos de intervenção/forma‑ção em vários contextos escolares. Assim, e muito sumariamente, os diferentes sub ‑projectos ocorrem em agrupamentos de escolas e em escolas no Norte e Centro do país e incluem:

· Um grupo de professores de Língua Materna do Ensino Secundário

· Uma equipa de professores de uma turma de alunos em risco de abandono escolar do En‑sino Básico

· Um grupo de professores do 1º Ciclo do En‑sino Básico de uma Escola Privada

· Um grupo de professores do 2º e 3º Ciclos que leccionam em contextos multiculturais

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· Docentes que desempenham cargos de ges‑tão num agrupamento de escolas

· Um grupo de professores de vários departa‑mentos numa EB 2,3

· Oficina de formação com professores do En‑sino Básico

· Círculo de estudos com professores do Ensi‑no Básico

· Dois grupos de Educadores de Infância

REFLEXÕES FINAIS

Alguns resultados preliminares deste projecto têm sido divulgados em vários congressos nacionais e internacionais (Flores et al., 2007a, 2007b; Forte & Flores, 2007, 2008; Freire & Santos, 2007; Santos, 2007a; 2007b; Veiga Simão, Flores, Forte & Cadó‑rio, 2007, entre outros), decorrentes sobretudo de três sub ‑projectos.

De um modo geral, uma leitura dos dados ana‑lisados até ao momento sugere que os contextos e processos colaborativos proporcionam o desenvol‑vimento da competência técnico ‑profissional dos professores, ao mesmo tempo que as representações sobre os contextos de trabalho, sobre si próprios e sobre os outros também sofrem mudanças. Por ou‑tro lado, estas mudanças parecem traduzir ‑se numa maior valorização das oportunidades profissionais e numa maior confiança para enfrentar novas situa‑ções. Os participantes reconhecem e valorizam a im‑portância e o potencial da colaboração, mas também ressalvam a necessidade de valorizar mais esta dimen‑são do seu trabalho, sobretudo no que se refere a con‑dições e recursos, nomeadamente tempo, incluindo ainda formação e oportunidades de desenvolvimento profissional em colaboração. Alguns dados apontam para concepções de colaboração docente algo redu‑toras, associadas à dificuldade em definir o concei‑to. O trabalho colaborativo surge relacionado com a planificação e outras actividades mais circunscritas no tempo. Dificuldades pessoais, falta de formação e de oportunidades de desenvolvimento profissional

relevantes, aliados a factores de natureza organizacio‑nal e contextual, emergem como principais constran‑gimentos ao trabalho colaborativo. A importância da liderança, das oportunidades para partilhar experi‑ências, a motivação e a satisfação profissional surgem como aspectos centrais na promoção e nos efeitos da colaboração.

Estes resultados corroboram, entre outros, Veiga Simão, Flores e Ferreira (2007), quando salientam a importância das lideranças para a criação e manu‑tenção de culturas orientadas para a aprendizagem e para o desenvolvimento profissional dos professo‑res, a motivação dos professores como motor da sua aprendizagem e desenvolvimento profissional, asso‑ciada à criação de um sentido para o seu trabalho e a maior atenção às condições de trabalho e às oportu‑nidades de aprendizagem no local de trabalho.

Os dados apontam ainda para a discussão por parte dos professores de assuntos profissionais, sendo que os problemas a este nível não se situam nos docentes, mas na falta de espaços e de tempo. Embora expressem que há facilidade de relacio‑namento, destacam sobretudo os espaços formais, nomeadamente reuniões, o que também é corrobo‑rado pela natureza de alguns projectos em que estão envolvidos (projectos decorrentes da Administra‑ção Central ou projectos iniciados pelos órgãos de direcção). Também referenciam alguns constran‑gimentos que existem a nível de escola, nomeada‑mente as condições para investirem no seu desen‑volvimento profissional. Embora do cômputo geral sobressaia uma visão positiva, manifestam alguma ambiguidade em relação a alguns aspectos, nomea‑damente em relação à colaboração e cultura profis‑sional, aspecto que vai ser objecto de intervenção na 2.ª fase do projecto.

No âmbito dos vários sub ‑projectos procura‑‑se, agora, averiguar em que medida o impacto das oportunidades formativas, que o trabalho de cola‑boração proporciona, persiste no tempo, e se estes professores (participantes nos projectos de inter‑venção) mantêm, noutros contextos, as suas práticas de trabalho de equipa.

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Notas

1. Cf. http://ec.europa.eu/education/policies/2010.2. Existem autores, como Readings (2003), para

quem as mudanças na educação reflectem a perda de capacidade do Estado conduzir os destinos edu‑cacionais, dando azo ao protagonismo do mercado, com as consequências mercantilistas que daí podem advir para a escola pública. Em idêntica linha de pensamento, Laval e Weber (2002) sublinham que a educação está a deixar de ser um bem comum e a transformar ‑se num factor decisivo de produção, numa lógica utilitarista que a reduz a um serviço, um “produto” comercializável.

3. Referimo ‑nos à ENTEP (European Network on Teacher Education Policies), criada em 2000 (Cf. http://entep. bildung.hessen.de/) e que tem como objectivos a análise e discussão das políticas edu‑cativas a nível nacional e europeu, e ao documento Princípios Comuns Europeus para as Competências e Qualificações dos Professores e Formadores (http://www.eu2007.min ‑edu.pt/np4/27.html), produzido com o objectivo de concorrer para a definição de referenciais e princípios comuns nas qualificações e competências dos professores, de modo a melhorar a qualidade do seu desempenho.

4. São exemplos os programas “Socrates”, “Leo‑nardo da Vinci” e o novo Programa no domínio da aprendizagem ao longo da vida (2007 ‑2013), desen‑volvidos para melhorar e promover o desenvolvi‑mento de competências dos docentes (Cf. COM (2007) 392 final, de 3.8.2007).

5. Para uma leitura mais profunda sobre alguns aspectos que estiveram na base deste projecto, ver Veiga Simão, Caetano & Freire (2007); Flores, Rajala, Veiga Simão, Tornberg, Petrovic & Jerkovic (2007); Veiga Simão, Flores & Ferreira (2007).

6. Uma versão adaptada do questionário Desen‑volvimento Profissional dos Professores, de Flores e Veiga Simão, no âmbito de um estudo internacional (Portugal, Finlândia e Sérvia e Montenegro).

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Veiga Simão, A. M.; Caetano, A. P. & Freire, I. (2007). Uma formação para o Desenvolvimento Profissional em Contexto Laboral. In J. C. Mor‑gado & I. Reis (orgs.), Formação e Desenvolvi-mento Profissional Docente: Perspectivas Euro-peias. Braga: CIEd, pp. 41 ‑72.

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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 8 · j a n / a b r 0 9 i s s n 1 6 4 6 ‑ 4 9 9 0

O lugar da afectividade na Relação Pedagógica. Contributos para a Formação de Professores

João [email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

Isabel [email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Elsa [email protected]

Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos do Cadaval

Maria João André[email protected]

Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos de Pataias

Resumo:Depois de analisarmos algumas linhas de investigação sobre a dimensão afectiva da re‑lação pedagógica, apresentamos os principais resultados de duas investigações recentes, conduzidas em escolas portuguesas, a partir das perspectivas de alunos do 2º e do 3º ciclos do ensino básico (Carvalho, 2007; André, 2007). A primeira, entre outras metodologias, recorre à análise de narrativas dos alunos para pôr em evidência a sua (in)satisfação face à qualidade da relação com os professores. A segunda, parte da análise de dados recolhi‑dos através de entrevistas e da aplicação da sub ‑escala Relacionamento com Professores do Questionário da Vivência Académica (QVA) (Almeida et al., 2002), pondo em evidência as qualidades apreciadas nos professores, mormente as do domínio relacional, em função da idade e do género dos alunos e retirando algumas implicações para a formação de pro‑fessores.

Palavras ‑chave:Relação Pedagógica, Afectividade, Perspectivas dos alunos.

Amado, João; Freire, I.; Carvalho, Elsa & André, Maria João (2009). O lugar da afectividade na Re‑

lação Pedagógica. Contributos para a Formação de Professores. Sísifo. Revista de Ciências da Edu-

cação, 08, pp. 75‑86

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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INTRODUÇÃO

Apesar do investimento generalizado na formação de professores, continuam a sentir ‑se dificuldades no domínio da relação pedagógica. Tem sido dado pouco espaço a esta dimensão da actividade docen‑te, quer na formação inicial quer nas modalidades de formação contínua. Particularmente na primei‑ra, a problemática da relação pedagógica é aborda‑da (quando o é) de forma dispersa, assistemática e pouco fundamentada. Todavia, quando se analisam as necessidades de formação dos professores ou se estudam os efeitos do primeiro choque com a reali‑dade, verifica ‑se que este é um domínio relevante e referenciado. Sabemos, ainda, que existe um núme‑ro substancial de professores que, ao longo da car‑reira, não consegue superar dificuldades no campo relacional, o que se reflecte negativamente no su‑cesso dos alunos, no bem ‑estar e na realização pro‑fissional dos próprios, como os estudos o têm evi‑denciado. Se é certo que a actual conjuntura sócio‑‑económica e cultural desafia a formação docente no sentido de dar respostas inovadoras em campos como, por exemplo, do desenvolvimento curricular ou da tecnologia da comunicação e da informação, também não podemos ignorar que a dimensão rela‑cional é um verdadeiro ultimatum à criatividade, à capacidade de auto ‑controlo e de auto ‑afirmação e, concomitantemente, à capacidade de descentração e de trabalho em equipa dos docentes. A par destas capacidades e competências de âmbito pessoal e so‑cial, o professor precisa de estar “apetrechado” para

saber observar e analisar as situações educativas, através da aplicação de técnicas e instrumentos de pesquisa, e da capacidade de “olhar” a informação à luz de uma multirreferencialidade teórica que lhe facilite bons diagnósticos e respostas adequadas aos diferentes contextos.

Cabe à investigação construir conhecimento acerca desta realidade, fornecendo os quadros de referência e as orientações metodológicas que en‑quadrem esta dimensão da formação profissional dos professores e da sua praxis. O presente texto decorre, pois, da nossa convicção de que, para além de outras dimensões da relação pedagógica se torna necessário produzir conhecimento em torno da re‑levante dimensão afectiva das vidas dos professores, dos alunos e da interacção entre ambos.

O modelo de relação pedagógica dominante nos tempos modernos “abafou”, durante muito tempo, a expressão da afectividade, uma vez que o ideal de relação assentava na transmissão do saber e no dis‑tanciamento entre o mestre e o aluno. A par dessa realidade, e apesar do impacto lento e progressivo de outros modelos pedagógicos que salientam o pa‑pel da afectividade e da sua expressão na relação pe‑dagógica, a investigação não tem dado uma atenção particular ao seu estudo.

Neste artigo, depois de clarificarmos alguns dos conceitos fulcrais para a análise do tema, ensaiare‑mos uma revisão da investigação e dos modelos pe‑dagógicos que têm contribuído para a compreensão da mesma. Focaremos sobretudo a relação pedagó‑

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gica em sentido restrito, designadamente nas inte‑racções entre aluno ‑professor e entre alunos. Numa segunda parte apresentaremos resultados de duas investigações realizadas junto de alunos do ensino básico acerca da sua percepção do relacionamento com os docentes.

LINHAS DE ESTUDO DA AFECTIVIDADE NA RELAÇÃO PEDAGÓGICA

Concebemos a relação pedagógica como uma das concretizações da relação educativa. Esta ocorre sempre que “se estabelece uma relação entre pelo menos dois seres humanos, em que um deles procu‑ra, de modo mais ou menos sistemático e intencio‑nal e nas mais diversas circunstâncias, transmitir ao outro determinados conteúdos culturais (educar), desde os mais necessários à sobrevivência a ou‑tros que podem ser da ordem da fruição gratuita” (Amado, 2005, p. 11). Já a relação pedagógica, no seu sentido mais restrito, consiste no “contacto inter‑pessoal” que se estabelece, num espaço e num tem‑po delimitados, no decurso do “acto pedagógico” (portanto, num processo de ensino ‑aprendizagem), entre professor ‑aluno ‑turma (agentes bem determi‑nados) (Estrela, 2002, p. 36). Quer a qualidade des‑ses contactos, quer os seus resultados dependem de múltiplos factores, de entre os quais a pessoa do professor e a pessoa do aluno são determinan‑tes, envolvendo a subjectividade, as interpretações (individuais e partilhadas) em torno das situações e vivências da aula e da escola, os trajectos de vida e os projectos pessoais.

É esta combinação de subjectividades que torna fundamental a exigência de uma ética que mantenha o professor alerta para a sua responsabilidade como “mediador” na construção do “itinerário” do aluno, enquanto autoridade nos planos cognitivo, moral e afectivo. Uma responsabilidade que se alarga para além da construção de cada rumo particular e que atinge a sociedade e o futuro. Tal como se espera que ele diga a verdade (lógica, científica e moral), também se espera que ele tenha comportamentos e atitudes “que relevam dos seus valores cívicos, éticos e morais” (Sêco, 1997, p. 73) e, consequen‑temente, interaja com justiça, não se limitando ao

respeito pela lei e pela regra, mas com desvelo e o reconhecimento do outro (Amado, 2000).

O conceito de afectividade é polissémico. A consulta de dicionários aponta para sentimentos de apego e de ternura, relação de cuidado e de ajuda e, ainda, empatia, amizade, afecto, amor e carinho. Espinosa (2003), na esteira de outros autores (Mar‑tin & Briggs, 1986), propõe uma análise da afectivi‑dade em cinco componentes: motivação, confiança em si, atitudes, emoções e atribuição causal. Estas cinco componentes jogam “um papel de grande im‑portância na aprendizagem e no ensino” (Espinosa, 2003, p. 37). A investigação sobre o tema vai acen‑tuado, conforme os pressupostos dos seus autores, este ou aquele domínio e, até, acrescentando outros, como crenças, sentimentos, interesses, valores, etc., o que traduz a complexidade e amplitude do ob‑jecto de estudo em causa. A nossa abordagem não conseguirá libertar ‑se destas ambiguidades; contu‑do, privilegiaremos os sentidos que apontam para atitudes de respeito, de empatia, de abertura ao ou‑tro, e que se prendem com sentimentos (bem ‑estar subjectivo) e emoções (alegria, satisfação, confiança, sentimento de si), decorrentes de situações e con‑textos de interacção pedagógica em que aquelas ati‑tudes prevalecem.

A discussão sobre o papel da afectividade na educação vem de tão longe como a própria discus‑são das relações entre pensamento e sentimento, razão e emoção, mente e coração. Segundo Dewey (2004 [1916]), os grandes problemas da educação provinham da ausência de uma ideia de continuida‑de entre a razão e o corpo, a pessoa e a sociedade, a pessoa e a natureza; e Montessori (1969) considera que o grande problema da educação tradicional está no fosso que ela manteve entre a criança e o adulto, este pretendendo a todo o custo sujeitar aquela. Em geral, todo o pensamento pedagógico reformador do Século XX, independentemente das diferenças conceptuais e processuais de cada corrente, propu‑nha a ligação e a interdependência funcional entre as capacidades intelectuais, emocionais, sociais e manuais, em nome do desenvolvimento integral e da autonomia da criança.

A investigação vem mostrando que é pela afec‑tividade que o indivíduo tem acesso aos sistemas simbólico ‑culturais “originando a actividade cog‑nitiva e possibilitando o seu avanço, pois são os

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desejos, intenções e motivos que vão mobilizar a criança na selecção de actividades e objectos” (Lei‑te & Tagliaferro, 2005, p. 50). Processos cogniti‑vos e afectivos interrelacionam ‑se e influenciam ‑se mutuamente. Essa linha de investigação está forte‑mente apoiada nos trabalhos de Wallon (1968) e de Vygotsky (1998). Uma das ideias centrais do pensa‑mento de Vygotsky, contida no conceito de zona de desenvolvimento proximal, é a de que relações con‑cretas entre pessoas estão associadas ao desenvol‑vimento das funções superiores, tornando ‑se assim fundamentais as atitudes de ajuda e apoio exercidas pelo professor. Também as recentes investigações no campo das neurociências vêm demonstrando que sentimentos e consciência não são estranhos e separados; sentimentos e emoções têm um forte im‑pacto na mente, podendo dizer ‑se que constituem as raízes da consciência (Damásio, 2000). Estudos deste domínio sugerem, ainda, que “o cérebro hu‑mano precisa de um certo desafio para activar emo‑ções e aprendizagem”, e que “um ambiente físico seguro é particularmente importante na redução de níveis exagerados de stress”, nocivos ao bem ‑estar e à aprendizagem (Muijs & Reynolds, 2005, p. 25). Parece, pois, haver uma forte relação entre as apren‑dizagens dos alunos e:

· a qualidade das relações educador ‑criança, nomeadamente a segurança e o conforto emocional, em fases precoces da escolarida‑de (Pianta et al., 1995, p. 296);

· o apoio social (tradução de social support¹) que obtêm por parte dos educadores (Hu‑ghes et al., 1997);

· o ethos de escola onde se cultive a proximida‑de nas relações humanas, em articulação com a autoridade dos adultos (Freire, 2001).

Estas conclusões vieram reforçar a ideia já defendi‑da pelos pedagogos da Escola Nova, de um indis‑pensável investimento nas condições do ensino, incluindo condições afectivas favoráveis, para que se verifique a aprendizagem de conteúdos a par de uma educação integral do aluno, contemplando conhecimentos, emoções, valores e atitudes. Es‑sas aprendizagens tornam ‑se facilitadas “quando o indivíduo trabalha com prazer e quando os seus esforços são coroados de êxito. Isto significa que o

êxito escolar depende tanto dos aspectos intelectu‑ais como dos afectivos” (Neves & Carvalho, 2006, p. 202). Dito de outro modo, se as aprendizagens escolares dependem de um conjunto de exigências de ordem técnica, assentes num “saber fazer” que o avanço nos conhecimentos e novas tecnologias garante e exige, não podem deixar de assentar, por outro lado, num conjunto de características afecti‑vas identificáveis que faça com que os conteúdos to-quem a pessoa do aluno e activem “os mecanismos cognitivos para trabalhar a informação e para que a aprendizagem significativa se efectue” (Gonçalves & Alarcão, 2004, p. 6).

Torna ‑se, pois, fundamental analisar a questão da afectividade em sala de aula, o que “significa ana‑lisar as condições concretas pelas quais se estabele‑cem os vínculos entre o sujeito (aluno) e o objecto (conteúdos escolares)” (Leite, 2006, p. 25), tendo em conta a interacção e as condições de ensino propostas pelo professor. Para operacionalizar essa análise há que verificar o modo como as interac‑ções são produzidas e interpretadas no íntimo dos sujeitos implicados nelas. Sendo assim, o lugar da afectividade na relação pedagógica é uma questão que tem de ser perspectivada e analisada segundo diversos ângulos.

Analisar a questão na perspectiva da relação do professor para com os alunos, implica dar conta do modo como estes percebem a acção daquele no domínio do respeito (incluindo a capacidade de os escutar), no plano da competência (preocupação pelas aprendizagens efectivas de cada um), no plano da justiça relacional e da gestão dos poderes (au‑sência de favoritismos, ausência de exclusão, parti‑lha de decisões e de iniciativas), e no plano pessoal (abertura aos interesses e problemas do aluno, cui‑dado e preocupação, valorização da sua liberdade e sentimentos, etc.).

Neste campo, entre as conclusões evidenciadas pela investigação, salientamos as que demonstram que, quanto mais os alunos percepcionam a ausên‑cia de favoritismo e a neutralidade por parte dos professores, mais confiam neles e lhes atribuem um estatuto de autoridade (Gouveia ‑Pereira, 2008). Amado (2001, p. 402) chama a atenção para o fenó‑meno da reciprocidade de sentimentos e de com‑portamentos que “se traduz numa relação directa entre a ‘simpatia’ do professor e a adesão afectiva e

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comportamental do aluno”, numa espécie de “cau-salidade circular entre a simpatia, o respeito mútuo e os comportamentos ajustados”. São também clás‑sicos os estudos que revelam diferenças acentuadas na interpretação e valorização das acções docentes em função da idade, do nível de escolaridade e do sexo dos alunos (Gilly et al., 1975; Leite & Tassoni, 2002). A este propósito Amado (2001, p. 404) veri‑ficou que, na fase da adolescência, o aluno, quando o professor ultrapassa certos limites nas manifesta‑ções verbais de carinho e afecto para com ele e a tur‑ma, interpreta essas manifestações como uma estra-tégia de sedução, utilizada para “exercer um controlo que aos seus olhos não é legítimo, constituindo uma espécie de violência (ainda que simbólica) inaceitá‑vel”. Tudo aponta para o facto de que, nestas ida‑des, “a simpatia do professor não se demonstra por uma dimensão afectiva, mas por uma competência de ordem técnica, a capacidade de fazer participar o aluno na aula” (Amado, 2001, p. 404).

A dimensão afectiva na gestão do currículo está associada a categorias do comportamento verbal e não verbal do professor; falamos de posturas não verbais, tais como a proximidade (deslocações do professor para junto dos alunos numa atitude de ajuda) e a receptividade (traduzida no esforço por olhar e ouvir o aluno). Já as categorias da comuni‑cação verbal do professor, positivamente avaliadas, são múltiplas, salientando ‑se verbalizações de in-centivo, ajuda, feedback e elogio. Trata ‑se de com-portamentos docentes que, segundo uma síntese apoiada em diversos autores (Amado, 2001; Freire, 1990, 2001; Gonçalves & Alarcão, 2004; Leite & Ta‑gliaferro, 2005; Leite & Tassoni, 2002):

· encorajam os alunos no desempenho das tarefas, manifestando expectativas positivas acerca das suas possibilidades;

· ajudam e colaboram na compreensão de con‑teúdos (repetindo, fazendo esforço por se‑rem claros), na resolução de problemas, no desempenho de tarefa;

· promovem uma avaliação humanizada (e, por isso, “justa”), respeitando as capacidades e características do aluno, levando ‑o a parti‑cipar activamente no processo, a reflectir e a aprender a partir dos seus próprios erros;

· implicam os alunos nas decisões e escolhas

dentro da aula, quer no que respeita à es-trutura das actividades curriculares (alguns conteúdos em opção, métodos de ensino e aprendizagem, processos e momentos de avaliação, etc.), quer no que respeita à estru-tura das relações sociais (definição de regras, debate sobre o seu incumprimento, decisões quanto à penalização das infracções, etc.);

· não marginalizam, não estigmatizam, não ri‑dicularizam nem excluem ninguém da ajuda que prestam, chegando ao ponto de a indivi‑dualizar quando necessário e possível.

Num estudo sobre uma experiência de gestão perso-nalizada do currículo, em que se observou grande parte dos comportamentos docentes acima especifi‑cados, Gonçalves e Alarcão (2004, p. 12) concluem: “definir critérios de escolha a nível individual é pos‑sibilitar uma ligação afectiva ao que se escolhe, logo, chamar o aluno a decidir é chamá ‑lo a reflectir, a as‑sumir responsabilidade pela sua decisão, ligando ‑se afectivamente a ela”.

Acresce a todos estes aspecto da ordem do “sa‑ber fazer” e do profissionalismo, a esfera das carac‑terísticas pessoais do professor, em que sobressaem a disponibilidade (capacidade de ouvir e entender sem deixar de ser crítico), a aproximação amistosa e respeitosa (por exemplo, cumprimentar e falar com o aluno em contextos exteriores à escola e à aula) e, muito especialmente, a capacidade de criar um cli-ma de bem -estar e de humor (onde o aluno se possa rir e, ao mesmo tempo, sinta incentivo para traba‑lhar). A exigência de que o professor seja capaz de temperar a severidade com humor é reconhecida desde há muito (Dubberley, 1995). Segundo Amado (2001, p. 345) os alunos, conhecendo bem os seus professores, elaboram uma espécie de tipologia que lhes permite regular os próprios comportamentos face ao estilo que naqueles predomina: “há, assim, a este respeito pelo menos três tipos de professo‑res: aqueles com quem se pode brincar e abusar e não dizem nada; aqueles com quem se brinca mas não se pode abusar; aqueles com quem nunca se pode brin-car”.

Outro aspecto relacionado com a gestão das in‑teracções respeita ao exercício do controlo discipli‑nar. O modo como o professor exerce esse controlo é determinante para o (in)sucesso da relação peda‑

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gógica. A investigação (Estrela, 2002; Richmond & McCroskey, 1992) tem vindo a concluir que as bases coercitiva e legítima do poder estão negativamente associadas às aprendizagens afectivas e cognitivas dos alunos; ao passo que o uso do poder referen‑te (pessoal) e de perito (cognoscitivo), suscitando a adesão do aluno à pessoa do professor, se correla‑ciona com a aprendizagem e com o comportamento disciplinado. Embora o professor nas situações de perturbação deva fazer prevalecer a sua autoridade, tem de o fazer dentro dos parâmetros do respeito pela pessoa do aluno. É o próprio aluno que valori‑za a capacidade de “constranger” do professor (tal como a capacidade de “ensinar”), mas exige que ela se exerça com “humanismo” (Amado, 2001).

Outra perspectiva de análise da relação do pro‑fessor com o aluno remete para a intenção de alcan‑çar, na prática docente, um conjunto de objectivos de carácter afectivo. Martin e Briggs (1986, citados por Neves & Carvalho, 2006) consideram que para os docentes é difícil conceptualizar e avaliar tais comportamentos e, muitos deles julgam impossí‑vel não só falar desses temas como atingir objec‑tivos dessa ordem. No entanto, a necessidade de fomentar, a par dos saberes curriculares, um clima sócio ‑afectivo positivo entre os alunos (capacidade de trabalhar em grupo, solidariedade e entreajuda, aceitação do outro ‑diferente, consciência da incom‑pletude dos indivíduos e dos saberes) é tida não só como necessária e urgente mas possível, o que apela a um forte investimento da formação de professores nesse domínio.

Um outro plano de análise é o da atitude do alu-no para com o professor e as consequências pessoais que daí decorrem. Os sentimentos do professor face às características das turmas e ao comportamento e desempenho de alguns alunos têm motivado estu‑dos sobre a motivação para a docência (Jesus, 1996), o mal ‑estar docente (Esteve, 1992), as emoções (me‑dos, culpa, prazeres e sofrimentos) dos professores (Blanchard ‑Laville, 2001). Como diz Hargreaves (1998, p. 159), embora se tenha vindo a obter um bom conhecimento acerca do pensamento do pro‑fessor nas diversas dimensões da sua actividade profissional, “sabemos bastante menos acerca do modo como sentem quando leccionam, das emo‑ções e desejos que motivam e moderam o seu traba‑lho”. Esta dimensão emocional do ensino, apesar de

alguns estudos recentes (Fernandes, 2008) continua uma linha aberta para mais investigação.

O terceiro plano de análise a que nos referimos é o da relação entre alunos. A investigação tem mos‑trado que a escola é um lugar de que o aluno gosta, mais pelo convívio e pelas amizades entre os pa‑res, do que pelas aulas e pelas aprendizagens. No entanto, também se tem verificado uma associação positiva entre o gostar da escola, a atenção prestada pelo professor e o sucesso académico (Feitosa et al., 2005). A relação de amizade e companheirismo en‑tre alunos e as suas repercussões na consecução dos objectivos educacionais, ainda que pouco estuda‑das, têm ‑se revelado fundamentais para que o aluno goste da escola e obtenha sucesso (Berndt & Kee‑fe, 1992). Sabe ‑se desde Lewin (1936) que um bom clima de grupo é condição fundamental para bons desempenhos e para a satisfação pessoal de todos os seus membros. Pode dizer ‑se até que “grande parte das informações, das atitudes e dos valores que os jovens adquirem na escola elaboram ‑se no seio des‑te território complexo e mais ou menos inexplorado que constitui o sistema de pares” (Ortega, 1997, p. 146). Retomando o que acima dizíamos, é neces‑sário considerar que o professor, enquanto ensina, tem de se empenhar de forma equilibrada em duas grandes categorias de actividades: as de instrução, como perito, e as de animação da turma, como me‑diador e como líder. Se a primeira tem um sentido comum, a segunda define ‑se como um conjunto de processos que permitem organizar e coordenar os esforços voluntários e colectivos dos alunos, para que se atinjam os objectivos, pessoais, de grupo e da escola, objectivos que não são apenas do domínio cognitivo, mas também de ordem afectiva e social.

O “BOM” E O “MAU” ENSINO… E A (IN)SATISFAÇÃO DOS ALUNOS

Nesta segunda parte dão ‑se a conhecer, de forma sintética, duas investigações realizadas sobre a te‑mática da afectividade e das emoções no contexto da relação pedagógica.

O primeiro estudo, de autoria de Elsa Carvalho (Carvalho, 2007²), teve como objectivos, entre ou‑tros, conhecer como é que os alunos interpretam as interacções da “vida na aula”, como percepcionam

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a relação didáctico ‑pedagógica que aí se estabelece, quais são os principais factores que, do seu pon‑to de vista, favorecem a aprendizagem, emoções e bem ‑estar. Foi usado como instrumento de recolha de dados um questionário de perguntas “abertas”, aplicado a uma amostra de 310 alunos, repartidos pelos 5º, 7º e 9º anos de escolaridade de duas esco‑las públicas da Região Centro.

O questionário, composto por 6 questões, pro‑curava caracterizar o pensamento do aluno acerca do que ocorria nas aulas em que “aprendia e se sentia feliz”, e nas aulas em que os resultados e os sentimentos eram inversos. Por exemplo, a primeira questão era formulada nestes termos: “Coloca ‑te na situação das aulas em que consideras ter aprendido algo mais e que, ao mesmo tempo, te sentiste bem e feliz. Escreve o que fizeram os professores nas aulas em que aprendeste e te sentiste bem”.

A análise de conteúdo permitiu estabelecer como áreas temáticas: os métodos de ensino, o esti‑lo de comunicação e a dimensão relacional da acção docente. Faremos um breve resumo das conclusões a propósito da dimensão relacional. Globalmente, o que sobressai é um enorme contraste nos sentimen‑tos e emoções que se geram, no íntimo dos alunos, em função de uma ou de outra das situações, como se pode ver no quadro nº1.

Fonte: Carvalho, 2007, p. 163.

Pode dizer ‑se que, para além dos métodos e do estilo de comunicação, há todo um conjunto de caracterís‑ticas relacionais estabelecidas na aula a considerar

como responsáveis pelos sentimentos positivos ou negativos do aluno: a) o estilo de relação sustentado pelo professor; b) as características pessoais do pro‑fessor e suas atitudes e valores; c) o modo como con‑trola e regula o comportamento discente.

a) O estilo de relação sustentado pelo professor. Nas aulas em que o aluno se sente satisfeito e feliz, a rela‑ção é pautada pelo entendimento e, acima de tudo, pela compreensão e pela confiança. “Essa aula fez‑‑me sentir bem, como se estivesse em casa, à ‑vonta‑de, sem ninguém a dizer: — Pára quieto, não mexas nisso! — Foi bom”.

O ideal, para muitos dos inquiridos, é um pro‑fessor “(…) que saiba ser divertido, brincalhão e que saiba impor o respeito ao mesmo tempo”. O humor, quando integrado nos próprios conteú‑dos de ensino, permite uma melhor aprendizagem, desperta o interesse, ameniza as tarefas e permite o envolvimento do aluno na aprendizagem, ao ponto de este ter a percepção de que o tempo “passa mais depressa” e que até “apetece lá ficar mais tempo”.

Mas estes aspectos não deixam de estar associa‑dos com a gestão da comunicação verbal e não ver‑bal, com as metodologias empregues pelos profes‑sores e com os próprios conteúdos. Testemunhos como o seguinte são expressão dessa perspectiva: “Eu, em E.V.T. senti ‑me bem porque não sabia fa‑zer uma cara e perguntei à stora e ela soube ‑me ex‑plicar muito bem. Ela foi ao pé de mim, muito que‑rida e com muita paciência”. O feedback positivo, da iniciativa do professor, surge como um outro factor comunicativo para a satisfação do aluno, com fortes repercussões no reforço da sua auto ‑estima: “Senti‑‑me uma pessoa mais inteligente, mais completa. Esforcei ‑me por compreender”.

b) As características pessoais do professor, invocadas e valorizadas positivamente nesta amostra, foram: simpatia, serenidade, tolerância, paciência, com‑preensão, respeito, equidade, igualdade, justiça e imparcialidade. Estas características, bem como os valores e as atitudes docentes, têm um peso consi‑derável na relação que se estabelece na sala de aula e jogam com a aprendizagem e sentimentos positivos do aluno. Muitos destes aspectos estão bem presen‑tes neste outro testemunho: “Nas aulas em que con‑siderei ter aprendido algo mais e em que me senti

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estados emocionais dos alunos

Na situação de bom ensino

FelicidadeSatisfaçãoOrgulhoConfiançaAuto‑estimaMotivação

Na situação de mau ensino

InfelicidadeInsatisfaçãoTristezaCulpaDesânimoRevoltaImpaciênciaMedoAborrecimentoDesmotivação

quadro 1Os sentimentos dos alunos

e o processo de ensino ‑aprendizagem

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bem e feliz, o professor era simpático, meigo (…) olhava de maneira igual para todos (…) e tratava todos da mesma forma. Para o professor éramos to‑dos iguais, não embirrava com os alunos e não havia preferências”.

Para além disso trata ‑se de professores que es‑tão ali para ajudar, demonstram compreensão, ofe‑recem iguais oportunidades de intervir e participar e são justos: “não havia injustiças: se eu levantasse primeiro o braço, era eu a falar (…)”; “(…) a profes‑sora é justa com todos, deixa todos irem ao quadro (…)”. c) Para a gestão dos comportamentos da aula é fundamental um pequeno conjunto de regras, cla‑ras, negociadas e que comprometam os actores no seu cumprimento. Fazer cumprir as regras implica a adopção de estratégias que se revelarão mais ou menos eficazes consoante os professores e a imagem que eles passam de si aos seus alunos. Uma sínte‑se das representações do aluno em torno da manu‑tenção da ordem e do controlo das suas condutas, e que o aluno associa ao “bom” ensino, contempla aspectos como: criar um clima de respeito, estabele‑cer regras e fazê ‑las cumprir, repreender com razão, repreender serenamente, castigar justamente, moni‑torizar as tarefas.

Existe uma frequência expressiva de testemu‑nhos indicando que nas aulas em que aprendem e se sentem emocionalmente bem existe um ambiente de respeito e de regra. Para que este ambiente exista torna ‑se necessário que os alunos compreendam a razão de ser da regra, o que também depende do es‑forço do professor: “Quando alguém diz uma piada a turma começa a rir e depois não pára de brincar, mas se os professores falassem connosco calmamen‑te e nos explicassem que não podemos fazer isso, acho que resultaria. Apesar de ele poder achar que já somos grandes para isso”.

Enfim, os resultados das análises efectuadas “indicam ‑nos que, entre o vasto conjunto de dimen‑sões e factores apontados por estes alunos como pro‑motores da sua aprendizagem e satisfação, contam ‑se, em primeiro lugar, as competências comunicacionais do professor e, em segundo lugar, o tipo e a quali‑dade da relação que com eles estabelece” (Carvalho, 2007, p. 192).

EMOÇÕES E AFECTOS… NA VIVÊNCIA ESCOLAR

O estudo de Maria João André (André, 2007³), per‑seguindo a obtenção de objectivos semelhantes aos do estudo anterior, apoiou ‑se na aplicação de uma sub ‑escala do Questionário da Vivência Académica (QVA) que procura avaliar a forma como os jovens se adaptam a algumas das exigências pessoais, re‑lacionais e institucionais da vida académica⁴. Esta sub ‑escala, centrada sobre o Relacionamento com Professores, foi sujeita a um conjunto de alterações na sua estrutura linguística, de forma a adequar me‑lhor os itens ao nível de ensino e de desenvolvimen‑to dos alunos a inquirir; procedeu ‑se, posterior‑mente, à análise das suas qualidades psicométricas, tendo ‑se concluído que as mesmas eram boas (DP, 7.47; Alfa, 833). Só depois desses procedimentos foi aplicada a 142 alunos do 6º (n=85,60%) e do 9º anos (n=57,40%) de uma escola pública da Região Centro. Na distribuição por género, considerando os dois níveis de ensino, 69 alunos eram do género masculino (48,6%) e 73 do género feminino (51,4%). As idades oscilavam entre os 11 e os 18 anos, sendo a média de idades no 6º ano de 11,59 (DP=.89) e no 9º ano de 14,44 (DP=.73). A sub ‑escala é composta por 12 itens, relativos ao diálogo com os professores, ao contacto dentro e fora da sala de aula e à percepção da disponibilidade de tempo dos professores para com os alunos.

As diferenças entre as médias na sub ‑escala, em função do ano de escolaridade, permitem verificar que os alunos do 6º ano apresentaram médias sig‑nificativamente superiores aos do 9º ano. Este re‑sultado sugere que o ano de escolaridade apresenta um efeito diferencial no relacionamento percebido pelos alunos com os seus professores. Os resultados sugerem, pois, que à medida que os alunos avançam no nível de escolaridade, os aspectos relacionais com os professores deixam de ser tão relevantes.

A análise da correlação entre a idade dos alunos e os dados obtidos permite concluir, também, que à medida que a idade aumenta, diminuem as pon‑tuações na referida sub ‑escala; parecea, pois, que a idade dos alunos se correlaciona negativamen‑te com o relacionamento percebido pelos alunos com os seus professores. À medida que os alunos “crescem”, passam a desvalorizar um pouco mais

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a “proximidade” com os professores, dando mais importância às suas competências académicas e pedagógicas. Verificou ‑se, ainda, que os alunos da amostra tinham uma representação muito positiva do seu relacionamento com os professores.

Estas conclusões reforçam os resultados de ou‑tras investigações, já referidas, que sublinham a cor‑relação negativa entre a idade e a valorização da re‑lação “próxima” com os professores. Outros resul‑tados, porém, não foram no mesmo sentido do que a investigação em geral tem apontado. Assim, é de admitir que a questão da repetência não se reflicta, de forma diferencial, no tipo de relacionamento per‑cebido pelos alunos. Outro dado contraditório é o que se refere ao género; segundo os dados obtidos, o género parece não exercer um efeito diferencial no relacionamento percebido pelos alunos com os seus professores. Enfim, trata ‑se de conclusões a exigir mais investigação.

Segundo a autora (André, 2007, p. 134), alguns dos critérios de avaliação utilizados pelos alunos em relação aos docentes poderão ser sistematizados da seguinte forma: os alunos valorizam positivamente os professores em função das suas “técnicas de ensi‑no”, ou seja, os que ajudam e explicam bem, variam o ensino e permitem maior liberdade; a preferên‑cia foi também para professores carinhosos, bem‑‑humorados, amistosos e compreensivos; a firmeza e controlo são atitudes muito enaltecidas, contudo, a excessiva severidade ou a brandura são vistas de uma forma negativa; a justiça ou a injustiça nas ati‑tudes, ou o tratamento diferencial de alguns alunos, são critérios igualmente utilizados para a avaliarem os seus professores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurámos mostrar como as questões da afectivi‑dade, entendida como capacidade de empatia, res‑peito mútuo, conhecimento e crença nas capacida‑des dos outros, se constituem como competências básicas, de professores e alunos, para que se torne possível o desenvolvimento de uma relação pedagó‑gica de qualidade. Na primeira parte, vimos como a investigação aponta para os vários domínios em que estes efeitos se fazem sentir, sendo de salientar os que se repercutem na motivação para a aprendi‑

zagem e num clima de convivência saudável. Na se‑gunda e terceira partes do trabalho, síntese de dois estudos realizados em escolas de 2º e 3º ciclos, o que mais se salienta é que, no próprio discurso do aluno, a eficácia do ensino não depende apenas da qualida‑de científica dos procedimentos didácticos mobili‑zados mas está fortemente relacionada com o regis‑to da afectividade, no sentido que lhe demos acima. Conclui ‑se também que é pela sua competência profissional, tanto ao nível científico, como peda‑gógico e relacional, que o professor pode legitimar a sua influência perante o aluno, sublinhando ‑se a importância do respeito e da abertura ao “outro”.

Tais evidências permitem ‑nos equacionar algu‑mas sugestões tendo em vista a formação de profes‑sores:

· equacionar a dimensão relacional como parte central no currículo na formação inicial;

· considerar que o desenvolvimento profissio‑nal dos docentes se faz na interacção com os contextos de trabalho;

· formar professores significa, acima de tudo, preparar pessoas que vão colaborar na edu‑cação de pessoas em desenvolvimento; o que implica adquirirem a capacidade de vir a estabelecer ligações entre os domínios da aprendizagem cognitiva e da afectividade; tornando ‑se, entre outros aspectos, aptos para uma escuta activa da “voz” do aluno;

· isso mesmo terá implicações não só ao nível dos conteúdos e referências teóricos como na selecção dos próprios modelos de formação, com especial incidência nos modelos reflexi‑vos e nos que se empenham na preparação dos futuros professores através da investigação.

Ultrapassámos o tempo da grande expressão demo‑gráfica da população estudantil e da pressão para a formação inicial de professores em grande número. A aposta é agora a da qualidade e, em nosso enten‑der, esta está para além da indiscutível competência científica. É necessário formar professores realmen‑te motivados e vocacionados para o desempenho das suas funções, que simultaneamente sejam pes‑soas capazes de criar condições favoráveis à apren‑dizagem e ao desenvolvimento dos alunos, que se‑jam capazes de os respeitar e de os amar. Contudo,

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partilhamos com Teresa Estrela (2002, p. 48) a ideia de que “é mais fácil amar o aluno do que respeitá‑‑lo”. Amar, expressar sentimentos como a ternura, é algo de instintivo, espontâneo e imediato; mais difí‑cil é respeitar, porque implica compreensão (revela‑ção e doação mútua), ética (responsabilidade pelo “outro” em si e pelo futuro que se anuncia e nascerá dos seus projectos), capacidade de olhar o “outro” (o aluno) como pessoa e de nos olharmos a nós

(professores) na interacção com ele (o aluno como um alter ego). Nas palavras sábias de George Steiner (2003, p. 15): “obviamente, as artes e os actos do en‑sino são dialécticos, no sentido próprio deste termo tão abusivamente utilizado. O Mestre aprende com o discípulo e é modificado por esta inter ‑relação através de algo que, idealmente, se converte num processo de troca. O acto de dar torna ‑se recíproco, como nos meandros do amor”.

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Notas

1. Segundo Cobb (citado por Hughes et al., 1997, p. 76), social support define ‑se como “o sen‑timento de ser apoiado, amado e valorizado pelos outros”.

2. Investigação realizada por Elsa Carvalho com vista à obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Educação, orientada por João Amado.

3. Investigação realizada por Maria João André com vista à obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Educação, orientada por Graça Seco.

4. Instrumento construído e validado por Almeida, Soares e Ferreira (2002), com o objectivo de compreender os processos pessoais, interpesso‑ais e institucionais experienciados pelos alunos na sua entrada no ensino superior. Na sua estrutura ori‑ginal é constituído por 170 itens, com um formato tipo Likert de cinco níveis de resposta, que se distri‑buem por 17 sub ‑escalas.

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Formação de Professores para a prevenção da indisciplina

José Espírito [email protected]

Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Beja

Resumo:Neste artigo revisitam ‑se dois conjuntos de estudos, tendo em vista repensar a proble‑mática da formação de professores para a prevenção da indisciplina, à luz da experiên‑cia adquirida como formador de cursos de formação inicial e contínua de professores numa Escola Superior de Educação. Pese embora as diferenças em termos das orientações teóricas e das estratégias metodológicas que os enquadram e estruturam, se procurou, através deles, ensaiar estratégias, a partir de uma intervenção de carácter formativo com professores, tendo em vista a criação de uma disciplina pró ‑activa na sala de aula. Em am‑bos se valoriza o papel do professor para a consecução deste desideratum. No primeiro, conceptualizando ‑o enquanto agente de organização da aula através do uso de compe‑tências postas em relevo pela chamada corrente da classroom management. No segundo, perspectivando ‑o, enquanto profissional que integra nas suas práticas dispositivos peda‑gógicos e competências, valorizadas especialmente por modelos de extracção psicológica, susceptíveis de promover nos alunos um envolvimento participativo e motivado na criação da disciplina em sala de aula. Dos elementos de caracterização das intervenções formativas seguidas e dos principais resultados obtidos através destes estudos é feita uma reflexão contributiva para a organização e estruturação da formação de professores no domínio da prevenção da indisciplina. Palavras ‑chave: Indisciplina, Formação de Professores, Superação de dicotomias paradigmáticas, Tempo e suporte.

Espírito Santo, José (2009). Formação de Professores para a prevenção da indisciplina. Sísifo. Revista

de Ciências da Educação, 08, pp. 87‑100

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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INTRODUÇÃO

A indisciplina dos alunos é hoje um fenómeno, que, pela sua extensão e ressonância social não pode deixar de interpelar todos quantos directa ou indirectamente estão ligados ao território pedagó‑gico, em especial os que talvez sofram mais os seus efeitos: os professores. A minha experiência de investigação nesta matéria tem vindo a evidenciar, contrariando até posições há muito firmadas na li‑teratura de referência, que, actualmente em muitos casos, são mesmo os professores há mais tempo em actividade que correm o risco de sofrer mais os efeitos da indisciplina discente na esfera pessoal e profissional, por estarem cultural, e nalguns casos, técnica e emocionalmente, mais desmunidos do que os seus colegas recém ‑chegados à profissão para prevenirem as situações em que ocorrem inci‑dentes disciplinares.

A intervenção disciplinar de carácter preventivo, concebida como a competência que permite com‑preender e neutralizar as causas dos comportamen‑tos de indisciplina na sala de aula, é, pela sua com‑plexidade, uma das facetas mais exigentes da acti‑vidade docente. A investigação, realizada nacional e internacionalmente, tem mostrado que esta com‑petência nem sempre está presente no repertório cognitivo e procedimental de muitos docentes, pelo que, a formação, enquanto eixo fundamental do de‑senvolvimento profissional dos professores, pode dar um contributo para uma mudança positiva das suas práticas e das representações que as suportam.

Cientes da importância do contributo da forma‑ção para este domínio da profissionalidade docente, apresentamos, neste artigo, uma síntese do dispo‑sitivo de formação adoptado em dois conjuntos de estudos, apresentados em provas de Doutoramento concluídas em 2003, através dos quais se visava en‑saiar estratégias para promover a prevenção da in‑disciplina. Procuramos, com base na reflexão sobre algumas das características e dos resultados mais relevantes dessa investigação ‑formação e na experi‑ência posterior adquirida como formador, assinalar alguns eixos básicos em torno dos quais se poderá articular e organizar a formação de professores no domínio da prevenção da indisciplina.

PRIMEIRO CONJUNTO DE ESTUDOS

Breve enquadramento metodológicoO primeiro conjunto de estudos que seleccionámos para apresentar neste artigo envolveu 6 professores e 21 alunos pertencentes a turmas do sexto, sétimo e oitavo anos de escolaridade. Combinou uma meto‑dologia de estudo de caso, própria de uma estraté‑gia de investigação qualitativa, com uma perspectiva mais positivista e experimentalista através da utiliza‑ção de um planeamento experimental de caso único A ‑B ‑A mitigado.

Através desta investigação pretendeu ‑se, prima‑riamente, analisar os efeitos de um processo de for‑mação/supervisão (levado a cabo para implementar nos formandos um estilo de disciplinação preventiva

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centrado em estratégias decorrentes da corrente da Classroom Management), nas conceptualizações dos professores, na prática docente e no comportamen‑to dos alunos. Pretendeu ‑se, secundariamente, em relação a turmas de duas professoras participantes na experiência, apurar se havia ou não transferência dos efeitos da intervenção (em termos de modifica‑ção do comportamento dos alunos) para o contexto de outras disciplinas, cujos professores não tinham participado na acção de formação.

Os instrumentos metodológicos utilizados fo‑ram: uma grelha para observação das estratégias de gestão da aula e de disciplinação dos professores (IOEGAD), uma grelha de observação sistemática dos comportamentos de indisciplina dos alunos, observações de carácter naturalista e entrevista semi ‑directiva a professores e a alunos.

O programa de formaçãoPressupostos de baseAs intervenções formativas desencadeadas assenta‑ram no reconhecimento de que uma adequada actu‑ação disciplinar dos professores depende essencial‑mente do uso de estratégias de gestão da aula iden‑tificadas na fundamentação teórica ligada à corrente da Classroom Management.

Pretendia ‑se que os professores/formandos se aproximassem deste modelo, adquirindo, parafrase‑ando Brophy (1988), não só conhecimento propo‑sicional (descrição das estratégias de management), mas também conhecimento procedimental (como implementar essas estratégias) e conhecimento condicional (quando e porquê implementá ‑las). Para a consecução destes dois últimos propósitos reconhecia ‑se, e essa era uma das assumpções não menos importantes das intervenções formativas re‑alizadas, que a prática do professor, com mais ou menos limitações, tem estatuto epistemológico e, por isso, não se tratava de aplicar, simplesmente, o modelo da Classroom Management na aula, mas, sim, de adquirir saber contextual, que permitisse escolher, como salienta Alarcão (1991, p. 16), o mais relevante desse mesmo modelo e adequado a cada situação, sem, contudo, estar preso a ele.

Nessa perspectiva organizou ‑se a formação na base de pressupostos de supervisão colaborativa e de investigação ‑acção, adoptando um processo que con‑duz o formando à reflexão e à resolução de problemas

pedagógicos, que ocorrem na especificidade das situ‑ações de ensino ‑aprendizagem, de modo a permitir‑‑lhe uma apropriação e uma reconstrução contextua‑lizada das estratégias decorrentes do quadro teórico e empírico da classroom management. Procurou ‑se, por outro lado, à luz de uma perspectiva construtivis‑ta, aprofundar o trabalho tendente à tomada de cons‑ciência e a uma possível transformação das crenças eventualmente inadequadas dos professores sobre o fenómeno da indisciplina.

O modelo de formação prosseguido, aproxima‑‑se, por essa razão, do “modelo construtivista para a formação de professores” proposto por Thomaz (1990)¹. Este modelo, de que a seguir se fará uma caracterização mais detalhada, foi por mim ensaiado em várias situações de carácter formativo, como são as que envolveram os seis professores participantes no conjunto de estudos ora em abordagem

Descrição do modelo de formação seguidoPara ajudar os professores a adoptarem a abordagem da Classroom Management utilizou ‑se um modelo de formação que comportou as seguintes etapas:

· Encontro de pré -observação: uma sessão com vista, por um lado, a pôr cada participante a par do programa de formação, cimentar a relação de confiança entre os intervenientes; e, por outro, a fazer emergir, através da resposta a um conjunto de questões abertas, o universo de significações dos formandos face ao fenómeno da indiscipli‑na, de modo a fomentar a tomada de consciência das suas próprias ideias sobre este fenómeno.

· Observações pré -experimentação: realização de observações de carácter sistemático e naturalis‑ta, a cargo do formador, para o registo das com‑petências de disciplinação dos professores e dos comportamentos de indisciplina dos alunos.

· Encontros para promover o confronto das ideias dos professores com as ideias -chave do mode-lo da Classroom Management: uma etapa que se desdobrou em duas fases. Numa primeira fase, através de uma única sessão (deliberada‑mente organizada para promover nos forman‑dos a tomada de consciência das suas próprias perspectivas ou teorias sobre o fenómeno da

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indisciplina), proporcionava ‑se a devolução das opiniões emitidas anteriormente (nas res‑postas às questões colocadas pelo formador na primeira etapa) e dos resultados das observa‑ções, conduzindo ‑se, com base nestes elemen‑tos, uma discussão em grupo, de modo a que cada um pudesse expor as sua ideias sobre o conceito e causas da indisciplina, bem como sobre as suas estratégias reais e desejadas de disciplinação, as razões para a sua utilização, as suas implicações educacionais e os motivos das dificuldades sentidas. Nas sessões correspon‑dentes à segunda fase, procurava ‑se levar os formandos a confrontar as suas concepções e as suas práticas com as ideias ‑chave do modelo da Classroom Management.

· Experimentação: a etapa mais longa do proces‑so formativo, que teve uma duração que oscilou em relação aos seis professores a que se repor‑ta este estudo, entre 8 e 18 semanas. Esta etapa envolveu, para cada formando, a realização de vários ciclos de investigação ‑acção. Cada ciclo era constituído por três fases — planeamento/ensaio, acção/observação e reflexão/avaliação.

Na fase de planeamento/ensaio tinha lugar, num primeiro momento, a selecção dos com‑portamentos de disciplinação do professor que deveriam ser promovidos e reforçados ou, ao in‑vés, que deveriam ser reduzidos e, se possível, eliminados.

Num segundo momento procurava ‑se criar condições para o transfert destas competên‑cias para a sala de aula, utilizando ‑se para esse efeito (quando comportavam algum grau de complexidade), duas das estratégias recomenda‑das por Joyce & Showers (1988): a modelagem ou demonstração, através de casos práticos que dessem oportunidade aos professores para se aperceberem de como funcionam na prática as competências de ensino alternativas; e prática da competência em condições de simulação².

Na fase de acção/observação procurava ‑se que cada formando cumprisse o que tinha sido programado anteriormente, quer no tocante à prática de competências desejáveis quer em rela‑ção à redução ou eliminação dos seus comporta‑mentos inadequados de gestão da aula.

A intervenção orientou ‑se, também, em di‑recção a uma abordagem de Disciplina Asserti-va, procurando ‑se ajudar os professores pouco afirmativos ou agressivos quando lidavam com o fenómeno da indisciplina a fazerem valer os seus direitos sem atropelar os dos alunos. Nesta apro‑ximação à Disciplina Assertiva a intervenção dirigiu ‑se, em maior ou menor grau (conforme as necessidades de cada um dos professores), às componentes não verbais³ da comunicação.

O desempenho de cada formando, durante esta fase do ciclo de investigação ‑acção, era acom‑panhado pelo formador que fazia, para cada novo conjunto de competências introduzido, observa‑ções sobre o comportamento dos alunos e sobre as condutas de disciplinação dos professores.

Cada ciclo da espiral de investigação ‑acção completava ‑se com a análise/avaliação dos ele‑mentos recolhidos nas observações realizadas na fase anterior e nos relatos e impressões de cada professor sobre as incidências das suas aulas.

Antes de se passar à última etapa decorria um período de tempo de, pelo menos, três semanas, que designámos de moratória, durante o qual os formandos, se assim o entendessem, solicitariam o apoio do formador. Pretendia ‑se que a passa‑gem de uma situação de suporte e acompanha‑mento frequentes a uma situação que se desejava de maior autonomia, não fosse feita de forma brusca, de modo a evitar condutas regressivas por parte dos professores.

· Adopção da inovação: Esta última etapa refere ‑se à prática autónoma dos comportamentos de discipli‑nação e de gestão da aula introduzidos na etapa an‑terior, depois da cessação do acompanhamento do supervisor aos formandos. Para verificar se tinha havido, ou não, adopção da inovação realizavam ‑se, 2 meses após o último apoio prestado aos forman‑dos mais um conjunto de observações referentes quer às estratégias de disciplinação dos professores quer ao comportamento dos alunos.

Resultados Tendo em conta os objectivos prosseguidos através deste programa de formação, de que atrás demos conta, procuraremos, de seguida pôr em evidência os resultados que consideramos mais salientes.

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Conceptualizações dos professores sobre indisciplinaA vivência do percurso formativo provocou algumas mudanças no discurso dos participantes sobre o fe‑nómeno da indisciplina no que diz respeito às duas dimensões que foram objecto de análise: causas da indisciplina e estratégias de disciplinação conside‑radas adequadas.

Os dados apurados mostraram que houve em termos gerais, da parte dos professores, um acolhi‑mento de novas concepções procedentes do modelo empírico ‑teórico da classroom management que su‑portou as intervenções formativas, sem que, todavia, esse acolhimento fosse feito à custa da substituição das concepções mais enraizadas dos professores. Ou seja, não obstante as lacunas que uma investi‑gação deste tipo comporta, pode ‑se afirmar que o impacto desta acção não ocorreu, contrariamente às visões, em meu entender idílicas, de alguns teóricos da mudança conceptual, com base em rupturas, sal‑tos qualitativos bruscos, rectificação dos conteúdos precedentes, mas sim pela reconciliação das novas concepções com as já existentes através de um pro‑cesso de hibridação e de reestruturação.

Estratégias de disciplinação dos professoresDe um modo geral houve, para todos os professores, entre o período de pré ‑teste e o de intervenção, uma melhoria na utilização das diferentes estratégias que foram objecto de intervenção, melhoria essa que se traduziu por um incremento significativo ou por uma redução significativa (consoante se tratassem de estratégias consideradas desejáveis ou indesejá‑veis) nos valores dos registos efectuados.

Entre o período de intervenção e de seguimento (2 meses após o terminus da intervenção) manteve‑‑se em relação a três professores a tendência no sentido de uma melhoria na utilização das referidas estratégias, tendência essa, que, de um modo geral, não teve tradução para as diferentes estratégias in‑tervencionadas, em termos de significância estatís‑tica. Contrariamente, em relação a outros dois pro‑fessores, verificou ‑se uma tendência reversiva para a maioria das estratégias utilizadas, e em relação a um professor essa reversão circunscreveu ‑se a um leque menor de estratégias. Refira ‑se que a reversão nos resultados no período de seguimento ocorreu com os professores que passaram por um processo supervisivo mais curto, o que deixa entender uma

relação entre a dimensão temporal das acções de carácter formativo e os seus benefícios junto dos formandos.

De salientar, que houve efeitos colaterais ao nível das estratégias, constantes da grelha de observação utilizada, que não foram intencionalmente objecto de intervenção, o que, penso, poderá ser explica‑do quer pelo “princípio da implicação de compe‑tências” formulado por Albano Estrela et al. (1991) quer pelo facto dos professores terem tido ao longo do período de experimentação uma atitude mais atenta a essas estratégias do que habitualmente te‑riam se não tivessem ficado despertos para elas por via da sua participação nestas acções de formação.

Comportamento dos alunos Entre a fase de pré ‑teste e de pós ‑teste, houve para o conjunto dos 6 professores uma redução no com‑portamento de indisciplina dos alunos, sendo essa redução estatisticamente significativa entre a distri‑buição de comportamentos nos dois períodos de ob‑servação, nas aulas de 5 professores. Esta tendência no sentido de um decréscimo dos valores registados foi, no entanto, contrariada, devido a um incremen‑to da indisciplina, em relação a três professores na categoria Convenções Sociais e em relação a todos os professores na categoria Relação Aluno -Aluno.

A análise dos dados mostrou também que hou‑ve um aumento na frequência de comportamentos que ou são menos valorizados pelos professores, porque menos perturbadores do ritmo da aula, ou escapam mais ao seu controle (e. g., atirar papéis ou outros desperdícios para o chão); o que significa que os alunos encontraram na sua emissão como que uma válvula de escape para o aumento da frustração e da instabilidade causadas por uma relação prova‑velmente mais restritiva do que a que tinham antes da intervenção.

Entre as fases de pós ‑teste e de seguimento verificou ‑se uma tendência já anteriormente cons‑tatada em relação às estratégias de gestão e organi‑zação da aula dos professores: por um lado, um de‑créscimo dos comportamentos de indisciplina nas aulas dos professores onde se verificara uma evolu‑ção sustentada na utilização das referidas estratégias e, por outro, um incremento nas ocorrências de in‑disciplina nas aulas dos professores, onde se verifi‑cara reversão na utilização dessas estratégias.

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Relativamente à procura de indícios da transferência transsituacional das mudanças positivas verificadas no comportamento dos alunos de duas participan‑tes na intervenção formativa, os dados obtidos com base nos registos efectuados nas aulas de seis pro‑fessores (3 por turma) apontaram para a não projec‑ção para esses contextos pedagógicos dos efeitos da intervenção.

Dados procedentes da análise qualitativaNuma análise qualitativa à informação recolhida no domínio das opiniões dos intervenientes no proces‑so pedagógico, confirmaram ‑se os dados de natu‑reza quantitativa relativamente aos efeitos positivos da intervenção sobre o comportamento dos alunos e sobre o desenvolvimento das competências de ac‑tuação disciplinar dos professores.

Com efeito, as opiniões expendidas pelos últi‑mos, “a quente”, revelaram que a formação recebida permitiu a tomada de consciência de terem existi‑do mudanças no comportamento dos alunos, terá contribuído para o desenvolvimento de práticas de disciplinação mais adaptadas, terá gerado efeitos positivos na própria esfera emocional e afectiva de alguns professores e, curiosamente, parece ter pro‑vocado também nalguns professores, um incremen‑to da metacognição (conhecimento, consciência e controle das suas práticas).

Da análise qualitativa⁴ quanto às razões explica‑tivas para a não reversão dos resultados, na fase de seguimento (2 meses após o terminus da interven‑ção), nas aulas de três professoras, concluiu ‑se que: a facilidade de apropriação permitida pelo tipo de estratégias de disciplinação em jogo nas acções for‑mativas, as características da supervisão prosseguida (prolongada no tempo, frequência e qualidade do apoio, gradual atenuação do processo supervisivo), o “apport” motivacional trazido pela observação da eficácia das estratégias postas em prática, o hábito de auto ‑vigilância, foram factores que, salvaguardada a devida reserva em relação a conclusões provenientes deste tipo de dados, criaram condições para o de‑senvolvimento, por parte das formandas, de expec‑tativas no sentido de uma maior controlabilidade⁵ e (também por este último motivo) para uma mudança sustentada das suas estratégias de disciplinação.

A extensão da análise qualitativa aos motivos que terão estado na origem da reversão, na fase de

seguimento, dos resultados registados nas aulas de dois professores, fez ressaltar, com base na reinter‑pretação dos dados de natureza quantitativa, a ideia de que o factor tempo (as acções formativas realiza‑das com estes dois professores tiveram uma duração substancialmente mais reduzida do que as realiza‑das com os outros professores) teria sido o grande responsável pela inexistência de uma mudança sus‑tentada nas estratégias de disciplinação destes dois professores.

SEGUNDO CONJUNTO DE ESTUDOS

Enquadramento teórico e metodológico da investigaçãoEm virtude dos resultados do conjunto de estudos que acabámos de apresentar não indiciarem transfe‑rência das mudanças comportamentais para outros contextos pedagógicos, foi desenhado, posterior‑mente, um outro programa de intervenção inspi‑rado em modelos teóricos de carácter psicológico, em especial, do modelo sócio ‑cultural vygotskyano e do modelo da auto ‑determinação formulado por Decy e Ryan, no âmbito das teorias sobre motivação intrínseca.

Com esta intervenção formativa, pretendia ‑se promover nos participantes um estilo de actuação disciplinar susceptível de desenvolver uma maior auto ‑regulação comportamental por parte dos alu‑nos e assumia ‑se que podia conduzir a mudanças transtemporais e transsituacionais no comporta‑mento de indisciplina dos alunos.

Este programa de intervenção envolveu 5 pro‑fessoras que leccionam a disciplina de Língua Portuguesa e 3 amostras de alunos pertencentes a turmas dos sexto, sétimo e oitavo anos. Para a amos‑tra 1 (composta por 29 alunos) foi utilizado um pla‑neamento quasi ‑experimental pré ‑teste ‑pós ‑teste com grupo de controlo e para as amostras 2 (com 11 alunos) e 3 (com 10 alunos) um planeamento híbrido com características quer de plano quasi‑‑experimental pré ‑teste ‑pós ‑teste com grupo de controlo, quer de plano experimental de caso único de tipo A ‑B ‑A.

A duração da intervenção foi de um ano lectivo para as professoras do grupo experimental da amos‑tra 1 e de quatro meses para as das amostras 2 e 3.

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O modelo de formação seguido nesta investi‑gação procurou (tal como o que foi adoptado nos estudos anteriormente descritos) conciliar perspec‑tivas opostas: a epistemologia sócio ‑construtivista e de racionalidade prática com a perspectiva das aquisições ou de racionalidade técnica.

Como instrumento privilegiado para a aproxi‑mação entre estas duas abordagens foi utilizada a supervisão pedagógica para permitir que as compe‑tências a desenvolver não traduzissem receitas abso‑lutistas baseadas no conhecimento teórico ‑empírico disponibilizado nas sessões presenciais de forma‑ção, mas antes pudesse contribuir para uma prática

de disciplinação personalizada que incorporasse re‑flexiva e criticamente esse conhecimento.

O processo formativo foi, na sua estrutura, idên‑tico ao seguido por nós em relação aos estudos an‑teriormente apresentados, sendo que as diferenças verificadas se situaram nos conteúdos introduzidos (orientados para promoverem a auto ‑regulação dos alunos) e ao nível de um maior volume de trabalho prático, ligado, sobretudo, à construção de instru‑mentos de observação e registo (que cada professora adaptou de acordo com as particularidades e especi‑ficidades das suas aulas). Apresentam ‑se, de seguida, os objectivos e os conteúdos da acção de formação.

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objectivos

· Problematizar o conceito de disciplina, perspectivando ‑a na óptica da auto ‑regulação dos alunos.

· Compreender os factores desencadeadores da indisciplina na sala de aula.

· Analisar e questionar as estratégias habitualmente utilizadas pelas formandas para a resolução de situações de indisciplina.

· Desenvolver competências para uma gestão preventiva da indisciplina.

· Distinguir os valores essenciais, para serem trabalhados didacticamente, tendo em vista a promoção das regulações associados ao comportamento disciplinado.

· Desenvolver competências de condução de debates.· Promover a auto ‑regulação comportamental dos alunos

(dado que se assume que algumas das competências que se pretende estimular nas professoras, através de conteúdos conceptuais, procedimentais e atitudinais que o programa de formação contempla, são conducentes a um estilo de disciplinação susceptível de desenvolver nos alunos uma maior auto ‑disciplina).

conteúdos

1. Conceito de (in)disciplina2. A prevenção da indisciplina — delimitação do conceito

na perspectiva da auto ‑regulação comportamental: 2.1 A importância dos primeiros encontros. 2.1.1 Adopção de regras na sala de aula. 2.1.1.1 “Regras das regras”. 2.1.1.2. Procedimentos para o estabelecimento

de regras com os alunos. 2. 2. Consequências lógicas. 2. 2. 1. Conceito; 2. 2. 2. Procedimentos para o estabelecimento de

consequências lógicas com os alunos. 2. 2. 3. Procedimentos para a sua administração. 2. 3. Contratos com os alunos. 2. 4. A observação e avaliação das infracções às

regras pelos alunos: técnicas e instrumentos3. Mensagens ‑eu e mensagens ‑impacto.4. Resolução pacífica de problemas.5. Técnica de construção conceptual de valores.6. Aplicação das técnicas de construção conceptual de

valores e de resolução de problemas no contexto do trabalho de análise e interpretação de textos em Língua Portuguesa.

7. Competências de condução de debates.

Quadro 1Identificação dos objectivos e dos conteúdos da acção de formação

ResultadosRelativamente à disciplina onde decorreu a inter‑venção, os resultados obtidos, de natureza quanti‑tativa (baseados nas observações em sala de aula) e qualitativa (baseados nas opiniões de professoras e de alunos), mostraram, para as três amostras, uma redução significativa do comportamento de indis‑ciplina dos alunos, redução essa que atravessou

todas as categorias comportamentais, ao contrário da investigação por nós conduzida à luz do quadro teórico ‑empírico da classroom management.

Quanto à avaliação do impacto externo e da es‑tabilidade temporal dos efeitos da intervenção no comportamento dos alunos, só em relação à amos‑tra 1 houve evidência estatística das suas potencia‑lidades. No que diz respeito à avaliação dos efeitos

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da intervenção no discursos dos alunos, ao nível da orientação motivacional do seu comportamento, só em relação à amostra 1, em especial aos alunos mais velhos, houve indícios em termos estatísticos, de um incremento da orientação interna e de uma diminui‑ção da orientação externa.

Importa, ainda, sublinhar os efeitos diferenciais da intervenção em função da variável tempo: os alu‑nos (da amostra 1) que beneficiaram da intervenção ao longo de um ano lectivo apresentaram melhores resultados, do ponto de vista da auto ‑regulação comportamental, do que os (das amostras 2 e 3) que estiveram sujeitos à intervenção apenas durante um quadrimestre lectivo. Confirmou ‑se um dos pres‑supostos (embora não explícitos da investigação), qual seja, a de que só com intervenções de longo prazo é possível provocar mudanças em processos complexos, imbricados no próprio desenvolvimen‑to sócio ‑cognitivo e afectivo dos alunos.

A avaliação exploratória, através da análise caso a caso e global aos dados referentes às estratégias e práticas que se pretendia desenvolver por inter‑médio do programa de supervisão/formação, per‑mitiu mostrar que o referido programa teve efeitos positivos, para todas as professoras, ao nível da ge‑neralidade das competências nele contempladas, como as que dizem respeito ao uso de mensagens--eu e de mensagens -impacto, à utilização de técnicas de construção conceptual de valores e de resolução de problemas em situações de análise e interpretação de textos, à condução de debates, e à mediação para o de‑senvolvimento nos alunos não só da sua capacidade de realização de registos sobre o comportamento de indisciplina ocorrido em sala de aula como da ad-ministração de consequências lógicas.

Confirmou ‑se, através desta avaliação o que já era anunciado pelos dados (anteriormente expos‑tos) de avaliação quantitativa e qualitativa sobre o impacto da intervenção nos alunos, impacto este que, como refere Albano Estrela (1991, p. 28), pa‑rafraseando Arturo de la Orden, é o critério mais importante na avaliação dos efeitos dos programas de formação no desenvolvimento das competências profissionais dos professores.

O reconhecimento de que a acção de formação contribuiu para o desenvolvimento de competên‑cias práticas esteve também presente no discurso das próprias formandas. Verificou ‑se através dos

seus depoimentos que a acção de formação condu‑ziu a um maior enriquecimento profissional, com a aquisição de competências de actuação disciplinar, uma maior preparação para enfrentar e prevenir a indisciplina e, em dois casos, com o desenvolvimen‑to de uma prática favorável à auto ‑disciplina dos alunos. Da análise do discurso das professoras res‑saltou que para a maioria delas se verificaram tam‑bém aquisições no âmbito da condução da análise e interpretação de textos.

Paralelamente a estas aquisições e em íntima associação com elas, a análise do discurso eviden‑ciou que o programa de formação terá conduzido à aquisição de conhecimento profissional utilizável no contexto da sua prática e à mudança de atitudes face às questões da (in)disciplina na sala de aula. Em relação a este último aspecto e, de acordo com o discurso de algumas participantes, o programa de formação teria contribuído para uma mudança na sua forma de encarar quer o papel do professor quer dos alunos na regulação da disciplina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegados a este ponto deverá, desde logo, sublinhar‑‑se que aos resultados positivos alcançados, através das intervenções formativas realizadas, não é alheio o próprio processo formativo seguido nos dois con‑juntos de estudos aqui referenciados, o qual, do ponto de vista do seu enquadramento na problemá‑tica da formação contínua de professores, se pautou pelas actuais propostas, feitas, nacional e interna‑cionalmente, nesta matéria, que têm subjacentes quer as orientações de carácter sócio ‑construtivista e cognitivo -mediacional, quer as perspectivas do de-senvolvimento profissional do professor centrado na escola. Ou seja, para utilizar outro registo, este tipo de formação partiu de pressupostos que se identifi‑cam com os modelos centrados na análise, segundo Ferry (1987), ou orientados para a pesquisa (“inqui‑ry oriented”), segundo Zeichner (1983). Relevou também, devido quer às especificidades do pró‑prio processo de formação (especialmente as que decorrem da necessidade de aquisição e treino de competências não existentes no repertório procedi‑mental dos professores), quer às imensas potencia‑lidades que lhe reconhecemos do ponto de vista do

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seu contributo para uma profissionalidade docente cientificamente fundamentada que, inserindo ‑se no chamado modelo da racionalidade técnica, o trans‑cende pela dimensão sócio ‑construtivista.

Tratou ‑se, portanto, de um processo formativo de largo espectro em que se conciliaram, de forma mutu‑amente fecundante, perspectivas teóricas e epistemo‑lógicas habitualmente consideradas opostas em ter‑mos do enquadramento teórico da formação de pro‑fessores e este é, ousamos afirmar, um dos elementos‑‑chave para a explicação dos resultados obtidos.

O que foi referido nos pontos anteriores deste ar‑tigo pôs em evidência, para os dois conjuntos de estudos, que as intervenções formativas proveitosas exigem, como tem sido assinalado pela literatura (Day, 1999; Eraut, 2000; Hargreaves, 1998), tempo e suporte. Estas duas variáveis revelaram ‑se deter‑minantes para a aquisição de competências de dis‑ciplinação, por parte dos professores, mas também para provocar mudanças comportamentais positi‑vas nos alunos. Tratam ‑se de duas variáveis que não poderão nunca deixar de estar presentes quando se estrutura qualquer plano ou programa de formação visando influenciar a aquisição ou a mudança de práticas conducentes à prevenção da indisciplina.

Por outro lado, o conjunto de dados provenien‑tes da investigação que levámos a cabo mostra que em matéria de actuação relacional e disciplinar os professores necessitam de aprender “competências de especialista” (Dreyfus & Dreyfus, 1986). Mais do que em qualquer outra época, o ensino, nos nossos dias, é uma actividade altamente complexa e delibe‑rada e que exige competências relacionais e de dis‑ciplinação extremamente refinadas em combinação com uma sólida base de conhecimentos da matéria a serem ensinados. Diferentemente do que aconte‑cia antes, os cenários da actividade docente exigem em matéria relacional e disciplinar, a aquisição de um currículo devidamente articulado de saberes, saberes ‑fazer e de atitudes.

Na formação para a capacitação (ou seja, tornar os professores capazes de desenvolver as suas pró‑prias soluções) é importante (à luz da processolo‑gia seguida nesta investigação) encarar as diferen‑ças dos professores e perceber que a individualiza-ção é um princípio a ter em conta. De acordo com este princípio, procurar aplicar de forma uniforme

competências (quaisquer que elas sejam) é perni‑cioso. Basta pensar (como no ‑lo demonstram as teorias construtivistas) que o conhecimento e as competências passam sempre por um processo de reconstrução pelos sujeitos aprendentes, e que uma das características dos sistemas, mesmo o pessoal, é a auto ‑organização, segundo a qual só aquilo que faz sentido no sistema é captado.

A supervisão colaborativa, através de um amigo crítico ou de um supervisor, surge como um instru‑mento privilegiado na promoção desta individuali‑zação. Para tal, a pessoa que desempenhar este pa‑pel terá de estabelecer interacções complementares flexíveis (diálogo e negociação) ao invés de interac‑ções complementares rígidas (dependência/passivi‑dade), com os professores.

O conhecimento que se possui sobre como aprendem os adultos e de forma mais concreta os professores, parece apontar que o elemento mais decisivo é a prática. Por consequência, o conteúdo mais apropriado para fazer significativas as diver‑sas ofertas teóricas que pode trazer um supervisor, é a prática educativa do professor, as suas realiza‑ções, as suas dificuldades e problemas. Os super‑visores colaborarão com os professores na ajuda ao seu desenvolvimento profissional na medida em que consigam conectar a teoria com essa prática, problematizando ‑a em contextos clínicos de obser‑vação, análise e reflexão.

No entanto, essas interacções e parcerias são escassas na vida da escola e dos professores. A cultura de escola faz com que os professores tra‑balhem isoladamente. Professores isolados rara‑mente têm oportunidade de receber apoio através de modelagem e de feedback que são dois instru‑mentos fundamentais para aquisição de qualquer competência.

Um pressuposto básico operacional decorren‑te destes dois conjuntos de estudos para as esco‑las é o de que deveria ser garantida a assistência ao desempenho de todos os seus membros, desde os alunos aos professores. Para os professores mais novos é fundamental essa ajuda porque o desgaste provocado pelas dificuldades da gestão da (in)dis‑ciplina podem contribuir para uma mentalidade de sobrevivência, um conjunto de métodos de ensino restrito e uma resistência a mudanças curriculares e de ensino que pode permanecer durante toda a

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carreira (Huling ‑Austin, 1986; Romatowski et al., 1989; citados por Gordon, 2000, p. 11).

Mas a assistência aos professores deveria tam‑bém ser extensiva aos que estão na fase de formação inicial. A indisciplina é uma realidade nas escolas que urge ser combatida e, portanto, a formação de professores deve estar referida a essas questões. Há que contrariar esta realidade e transformar a formação inicial num período privilegiado para o desenvolvimento pessoal e profissional dos futuros professores.

Os curricula de formação inicial deverão pro‑porcionar ao futuro professor um conhecimento dos processos de disciplinação na sua dimensão teórica (causas e circunstâncias que favoreçam a in‑disciplina, indicações para detectar os problemas, como estabelecer e manter a disciplina, como envol‑ver os alunos). Mas a formação inicial não se pode reduzir, como tanta investigação nacional e interna‑cional tem mostrado, à dimensão académica, tem de integrar uma dimensão prática e reflexiva, sendo fundamental que um dos objectivos da formação inicial de professores seja o de proporcionar ao for‑mando um ambiente de aprendizagem com amplas oportunidades (através de situações simuladas e re‑ais, nos seus estágios pedagógicos) para resolverem uma variedade de problemas através da mobilização de uma variedade de estratégias, nomeadamente as que integraram os programas de formação adopta‑dos nos dois conjuntos de estudos que aqui sinteti‑camente apresentámos.

A formação inicial, tal como a formação contínua, no domínio relacional e disciplinar requer o desen‑volvimento de um tipo de conhecimento profissio‑nal muito peculiar, um conhecimento complexo não só de saber, mas também de saber ‑fazer. É uma for‑mação teórica ‑prática com uma mescla de técnica e de arte. Não têm, por isso, sentido em matéria de formação relacional e disciplinar, as posições exclu‑sivistas, que levam, invariavelmente, ao estreitamen‑to do campo de opções que a fundamentam.

Sintetizando, sugere ‑se que as estratégias formativas para promover o desenvolvimento profissional dos professores em matéria relacional ‑disciplinar, à luz do que foi exposto ao longo deste artigo, sejam or‑ganizadas em torno dos seguintes vectores:

· Ser uma formação continuada no tempo, porque a mudança das práticas e das repre‑sentações que as suportam é um processo duradoiro, complexo e lento;

· Ser uma formação que decorra das necessi‑dades concretas sentidas pelos professores nas suas práticas escolares e que tenha como finalidade colaborar com estes na reflexão e clarificação das situações educativas e na procura de soluções para os problemas com que se confrontam;

· Ser uma formação apoiada no diálogo inte‑ractivo com um parceiro que tenha obser‑vado a aula, com vista a levar o professor a pensar retrospectivamente no que ocorreu e reconstruir os acontecimentos sob um ponto de vista diferente;

· Ser uma formação que envolva a colaboração entre professores e entre estes e formadores, de modo a que os sujeitos possam colocar os seus problemas específicos, as suas dúvi‑das, as suas angústias perante as dificuldades que encontram e receber dos seus parceiros informação teórica e prática, análises compa‑rativas, sugestões para a resolução de proble‑mas, de forma a que o sujeito sinta que não está isolado e que pode contar com a experi‑ência dos seus colegas e o conhecimento e o apoio dos formadores;

· Ser uma formação centrada na reflexão e in‑vestigação das práticas dos professores, vi‑sando o aprofundamento da sua autoconsci‑ência em relação, quer à sua forma de actuar quer aos pressupostos em que assenta a sua prática;

· Ser uma formação desafiadora das assunções tácitas, pelo que, deverá proporcionar opor‑tunidades (através de debate, informação teórica ‑técnica, demonstração com base em exemplos realistas) para os professores con‑siderarem porque é que as novas práticas são preferíveis às suas práticas habituais;

· Ser uma formação enraizada na escola e nos contextos específicos em que o professor de‑senvolve a sua acção, evitando problemas de pertinência, relevância, transferência e uti‑lização do conhecimento encontrados nos modelos tradicionais de formação;

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· Ser uma formação orientada para proporcio‑nar a aquisição e desenvolvimento de com‑petências, enquanto saberes ligados à acção e partindo dela, tendo em vista um desempe‑nho personalizado na prática profissional;

· Ser uma formação em que o recurso aos qua‑dros teóricos de referência deverá surgir em estreita ligação com a análise das práticas, ultrapassando ‑se, assim, o discurso dico‑tómico entre a racionalidade técnica e a ra‑cionalidade prática, que tem caracterizado o debate em torno da formação e desenvolvi‑mento profissional dos professores.

Terminamos, assim, este artigo, retomando as ideias com que iniciámos este ponto: a formação relacio‑nal e disciplinar para ser profícua terá de ser uma formação superadora de dicotomias paradigmá‑ticas. Um dos princípios básicos que orienta esta perspectiva formativa é a do desenvolvimento no professor da capacidade de compreensão situacio‑nal dos problemas educativos e da reconstrução

da própria experiência e do próprio conhecimento pedagógico através de apoios e de parcerias ade‑quadas. Mas, por se tratar de um tipo de formação numa área em que o repertório procedimental dos professores não é habitualmente muito diversifica‑do, como fizeram notar alguns autores (Domingues, 1995; Estrela, 1986), é necessário alguma formação teórico ‑técnica. Para superar o hiato entre formação teórica necessária e a indispensável formação práti‑ca, são importantes as aproximações entre o modelo epistemológico sócio ‑construtivista e de racionali‑dade prática com o chamado modelo das aquisições ou de racionalidade técnica, devendo recorrer ‑se a estratégias e a metodologias, como a supervisão pe‑dagógica e a investigação ‑acção, onde haja observa‑ção e análise de situações, de modo a permitir que o docente (enquanto profissional desejavelmente reflexivo em todos os domínios da sua actividade) construa “de forma idiossincrática o seu próprio co‑nhecimento profissional, o qual incorpora e trans‑cende o conhecimento emergente da racionalidade técnica” (Gomez, 1995, p. 110).

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Notas

1. O modelo proposto por esta autora baseia‑‑se no que foi elaborado pelo sociólogo americano Everett Rogers (1967, citado por Thomaz, 1990), que é constituído por cinco estádios pelos quais passam os indivíduos durante o processo tendente a favorecer a adopção de uma inovação. Esses está‑dios são, segundo este autor, citado por Thomaz (p. 169): “ (1) Consciencialização: neste estádio o indi‑víduo é exposto à inovação mas não possui infor‑mação detalhada acerca dela; (2) Interesse: durante este estádio, o indivíduo favoravelmente impres‑sionado, procura informação adicional; (3) Expe‑rimentação: neste estádio a inovação é aplicada em pequena escala de modo a que o indivíduo possa ajuizar a sua utilidade; (4) Avaliação: este estádio constitui uma espécie de experimentação mental em que o indivíduo considera as possíveis conse‑quências da aplicação da inovação aos aconteci‑mentos passados, presentes e futuros; (5) Adopção: neste estádio final tem lugar a decisão do uso alar‑gado da inovação”.

2. Quando estava envolvido mais do que um for‑mando e no caso de um deles apresentar, segundo o critério do formador, um domínio razoável de uma determinada competência; o processo de desenvol‑vimento desta competência por parte do colega que manifestava mais dificuldades na sua utilização, pas‑sava também, sempre que possível, pela observação em situação de sala de aula do modo como aquele a punha em prática e pela discussão dos resultados dessa observação.

3. As componentes da linguagem não verbal objecto de intervenção foram: o olhar (olhar os alu‑nos nos olhos em vez de baixar os olhos), a expres-são facial (eliminar expressões de insegurança, como a tremura nos lábios quando falava), a pos-tura (manter os ombros direitos em vez de os man‑ter descaídos), volume de voz (aumento do volume de voz), tom de voz (procurar, conforme os casos, expressar menos rispidez, mais contundência, mais afecto). Para produzir as mudanças deseja‑das foi realizado ensaio condutual nos encontros formador ‑formando(s) e em casa, tendo ‑se uti‑lizado o espelho e registos áudio para permitir a retroalimentação dos formandos em relação ao seu desempenho.

4. Baseada no discurso dos participantes, do pró‑prio investigador e na reinterpretação de elementos provenientes dos resultados quantitativos.

5. Traduzida na modificação (embora mitigada) das crenças das professoras, que se constatou na entrevista realizada após a intervenção, em relação às causas e à forma de combater a indisciplina.

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Especificidades da formação de professores de artes e de humanidades

Sara [email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Resumo:A questão de partida da presente reflexão é a de saber se a formação de professores deve ter em conta a especificidade do domínio de conhecimento dos formandos. Será que um professor de artes e um professor de humanidades deve ter exactamente a mesma forma‑ção que um professor de ciências naturais ou exactas? Ou será que deve haver uma dife‑renciação em termos de formação? Se sim, a que nível?

Na base desta questão encontra ‑se o debate acerca da generalidade versus especifici‑dade do desenvolvimento e da produção do conhecimento. Será que o desenvolvimento do conhecimento e a sua produção são gerais, independentes dos domínios onde surgem, como no caso dos grandes criadores do Renascimento que “brilhavam” tanto nas ciências como nas artes (Martindale, 1989)? Ou será que se trata de conhecimentos isolados em múltiplos domínios como avançam autores como Gardner (1988)? Ou será, ainda, que a produção do conhecimento num determinado domínio constitui uma forma de expressão diferente de um mesmo processo de desenvolvimento que deve ser tido em conta na for‑mação de professores?

A análise dos argumentos esgrimidos por 46 professores de humanidades e de artes que frequentaram nos últimos anos o Curso de Profissionalização em Serviço da FPCE‑‑UL sobre necessidade de uma formação específica permite avançar com a ideia de que o contexto particular deste domínio do conhecimento deve ser tido em conta na formação, nomeadamente, o seu carácter estético, crítico e criativo. Os professores inquiridos foram unânimes em afirmar que a formação deve ser específica, referindo não só razões didác‑ticas, como também aspectos de natureza teórica e meta ‑teórica relativas à especificidade natureza das disciplinas que leccionam bem como às dificuldades na implementação dos seus conteúdos concretos. Estas respostas parecem ir ao encontro da assunção de Boors‑tin e Pelikan (1981) de que existem algumas diferenças em termos dos domínios específi‑cos do desenvolvimento e da produção do conhecimento e que essas diferenças devem ser tomadas em consideração quando se procura fomentar o processo de desenvolvimento e de produção do conhecimento, que constitui, em última instância, o objectivo central da formação de professores.

Palavras ‑chave:Formação de Professores, Educação artística, Pensamento crítico, Desenvolvimento estético.

Bahia, Sara (2009). Especificidades da formação de professores de artes e de humanidades. Sísifo.

Revista de Ciências da Educação, 08, pp. 101‑112

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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TRÊS PARADIGMAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A conjuntura política, social e cultural de hoje atri‑bui à formação de professores um papel cada vez mais relevante no desenvolvimento das qualidades necessárias para fazer face às múltiplas e rápidas mu‑danças que o mundo da educação vive (van Huizen et al., 2005). No entanto, em termos meta ‑teóricos, teóricos e práticos a formação de professores tem sido acusada de falta de explicitação (Ginsburg & Clift, 1990) e de integração dos diversos paradigmas em que assenta (e.g. Yarger et al., 1977), limitando‑‑se muitas vezes à mera absorção de alguns elemen‑tos dos paradigmas vigentes, mesmo que do ponto de vista teórico sejam (ou pareçam ser) incompatí‑veis (Clark & McNergney, 1990).

De acordo com van Huizen et al. (2005), a for‑mação de professores tem tradicionalmente valori‑zado um de três paradigmas teóricos: um centrado nas competências do professor, outro centrado no professor como pessoa e, um outro, centrado na re‑flexão e na questionação. A formação de professo‑res centrada em competências tem como base um padrão impessoal de ensino e explicita os objecti‑vos do trabalho docente bem como os critérios de avaliação a adoptar. De acordo com este paradigma, o professor deve ser formado para alcançar diaria‑mente um desempenho eficaz no contexto da sala de aula, podendo mesmo não reflectir sobre as fi‑nalidades e valores do ensino (e.g. Elam, 1971). A metáfora que melhor descreve este paradigma é

a do equipamento. Neste sentido, o professor deve ter à sua disposição um manancial de competências e de estratégias que deve aplicar da forma indicada nas situações e nos contextos adequados.

Por seu turno, a formação de professores cen‑trada na dimensão pessoal salienta como principal ferramenta de ensino a própria pessoa do professor, na medida em que o processo de ensino implica um ajustamento adequado entre o professor profissio‑nal e o professor pessoa (e.g. Combs, 1965; Fuller, 1969). Nesta linha, a formação de professores deve‑rá incidir no desenvolvimento da dimensão pesso‑al, nomeadamente a construção de uma identidade pessoal e profissional integrada (e.g. Nias, 1987), que para muitos teóricos passa pela construção de narrativas de onde emergem conteúdos simbóli‑cos que possibilitam a categorização dos processos subjectivos do professor bem como a sua reorga‑nização, abrindo, assim, novas possibilidades (e.g. Nóvoa, 1992). Como refere Polkinghorne (1988), a identidade pessoal constrói ‑se através de uma confi‑guração narrativa pessoal que permite compreender a própria existência como um todo e compreendê ‑la como a expressão de uma história única em cons‑tante desenvolvimento. Segundo Phinney (2000), existe uma necessidade universal para cada pessoa se definir a si própria tendo em conta o contexto em que se desenvolve, desde as identificações precoces características da infância até a uma compreensão pessoal mais interiorizada na vida adulta. As narra‑tivas são ferramentas de interpretação e de constru‑ção de significado que sempre serviram o estudo da

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cultura (Bruner, 1990). Contudo, a construção de narrativas autobiográficas apresenta algumas limita‑ções na medida em que os relatos de vida se tendem a aproximar do modelo oficial de si, variando em termos de forma e conteúdo segundo a qualidade e o contexto social em que ocorre (Bourdieu, 1996). Para além disso, a construção da identidade do do‑cente implica não só o desenvolvimento pessoal e profissional, como também o institucional, devendo os processos de formação de professores atender a todas estas facetas (Nóvoa, 1992).

Um terceiro paradigma emergiu como alternati‑va: a formação de professores centrada na reflexão e na questionação. A ideia de base desta linha con‑siste na construção e reconstrução de repertórios profissionais ao longo da prática docente através da constante avaliação, reflexão e questionação, na medida em que professor é simultaneamente um in‑vestigador e um prático reflexivo (Stenhouse, 1975). Assim, a adopção de uma atitude de pesquisa em relação à própria prática gera a reflexão crítica. Na base deste paradigma encontram ‑se as concepções de aprendizagem e de desenvolvimento que privi‑legiam o pensamento crítico e criativo. A título de ilustração, Vygotsky (1978) defendia que cada pes‑soa é um inventor flexível do seu futuro pessoal e contribui potencialmente para o futuro da sua cultu‑ra. Também Piaget (1988) defendia que o principal objectivo da educação deve ser o de criar pessoas capazes de realizarem coisas novas, e não simples‑mente repetirem o que as gerações anteriores fize‑ram. Piaget (1988) utilizava os termos criatividade, invenção e descoberta para realçar a necessidade de formar mentes críticas, capazes de ir para além da aceitação passiva daquilo que o meio oferece. Neste sentido, a formação de professores deveria consti‑tuir uma oportunidade e reflexão crítica, de questio‑nação, e de produção criativa de novas abordagens pessoais ou mesmo mais alargadas, que possibilitem a adaptação às mudanças que vão surgindo em ter‑mos educacionais.

Sem dúvida que cada um dos paradigmas tra‑dicionalmente valorizados pode conter aspectos enriquecedores para o professor na medida em que atendem a uma componente relevante da actividade docente. Os três ênfases diferentes na formação de professores assentam em diferentes concepções da aprendizagem e do desenvolvimento e valorizam a

interiorização de diferentes ferramentas por parte do professor: equipamento facilitador da aprendi‑zagem, capacidade de auto ‑ajuda e capacidade de reflexão. No entanto, se cada um destes aspectos for tomado isoladamente ou se for excessivamente sobrevalorizado pode envolver riscos em termos de centração excessiva numa característica (van Huizen et al., 2005) ou de negligência de outros aspectos importantes no processo de ensino fundamentais e ter pouco ou nenhum impacto limitado na prática docente (van Huizen et al., 2005).

NOVOS PARADIGMAS PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Embora a possibilidade de reconciliação dos três paradigmas clássicos seja questionável na medida em que estes têm como base concepções episte‑mológicas diversas, a tendência para olhar para os vários fenómenos naturais e culturais sob uma pers‑pectiva sistémica, herdada da cibernética, possibili‑ta a abertura à integração de paradigmas e ao ecletis‑mo, o que pode constituir uma forma de superação dessa dificuldade de reconciliação.

A perspectiva sistémica tem como base a ideia de que o todo é maior que a soma das partes, a ideia de que todos os sistemas possuem subsistemas inte‑grados e relacionados entre si e, ainda, a ideia da cir‑cularidade, ou seja, de que todos os componentes se influenciam mutuamente (Schaffer, 1996). Nesta acepção, o cerne da formação deixa de pertencer exclusivamente ao formador e passa a depender do formando que é visto como um agente activo da sua própria formação através da constante construção e reconstrução dos conhecimentos envolvidos no processo docente. Neste sentido, as perspectivas e as representações de que o formando parte para a sua formação servem de base para a sua construção de saberes, nomeadamente, a interiorização de no‑vos conceitos e a reestruturação de esquemas, ati‑tudes ou crenças vigentes, ou seja, a assimilação e a acomodação preconizados pela teoria da equilibra‑ção (e.g. Piaget, 1971).

A valorização do todo e da complexidade do pro‑cesso de construção profissional e pessoal do pro‑fessor implica não só a tão almejada transformação activa e envolvente da informação em conhecimento

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mas também em sentimento, salientando ‑se, assim, a dimensão afectiva que passa a ser vista como intrin‑secamente inseparável da dimensão cognitiva. Inde‑pendentemente do debate acerca da primazia da di‑mensão cognitiva sobre a afectiva, ambas têm corres‑pondência e podem influenciar ‑se mutuamente (e.g. Piaget, 1962). Consequentemente, em termos de for‑mação de professores, não basta a interiorização de ferramentas e sua utilização e aplicação adequadas, como defende o paradigma centrado nas competên‑cias. É necessário a integração de conhecimentos e competências no “ser” de forma a saber fazer e agir e também a saber ser, permitindo mobilizar eficaz‑mente esses saberes em função dos contextos e dos problemas.

A ideia de circularidade entre as múltiplas com‑ponentes do conhecimento encontra ‑se patente na noção freiriana de diálogo (e.g. Freire, 1996) con‑ducente à desestruturação ‑reestruturação do co‑nhecimento. A circularidade estaria presente no desafio que a formação deverá constituir com base no diálogo e na experiência prática, em particular no confronto com as situações do quotidiano social e profissional. A horizontalidade e expressividade do diálogo possibilitaria um desafio conducente à construção do significado enquanto pessoa (Freire, 1980) e, acrescente ‑se, profissional. Por seu turno, a noção de circularidade está igualmente presente na teoria de Wittgenstein (1966), na medida em que os conceitos são vistos como circunstâncias que reme‑tem uns para os outros e a sua construção é conse‑guida através da investigação pessoal dos múltiplos níveis dos sistemas simbólicos quotidianos, nomea‑damente da linguagem estruturante. Consequente‑mente, o processo de construção do conhecimento estaria intrinsecamente associado às circunstâncias imediatas em que o processo de formação ocorre, remetendo para a noção de contexto realçada por Vygotsky (e.g. 1978).

De acordo com van Huizen et al. (2005), a teoria vygostkiana constituiria um paradigma alternativo para a formação de professores. A tónica no contex‑to seria uma forma de integração das várias dimen‑sões valorizadas pelos paradigmas clássicos e de superação da limitação da centração exclusiva num desses paradigmas. O conceito subjacente à teoria sócio ‑contextual é o de “construção de andaimes” inventado por Wood, Bruner e Ross (1976) para

descrever a interacção tutorial inerente à interacção pessoa ‑meio, e constituiu uma metáfora que sugere o “apoio ‑para ‑se ‑chegar ‑mais ‑longe” (Lourenço, 2005). Neste sentido, a formação de professores se‑ria um processo de construção de andaimes através da interacção, da co ‑questionação guiada e da inves‑tigação reflexiva que possibilitariam reestruturações e novas construções do conhecimento.

Os novos paradigmas da formação de professo‑res emergem a partir da noção de que os processos de ensino e de aprendizagem ocorrem sempre em contexto e são determinados pelas circunstâncias em que se desenvolvem. Numa altura em que o ensino parece ser cada vez mais uma actividade caracteri‑zada pela incerteza, a formação de professores deve proporcionar ferramentas que permitam lidar com a imprevisibilidade e a ambiguidade que essa incerte‑za acarreta (Edwards et al., 2002). De entre essas fer‑ramentas encontram ‑se a aprendizagem experiencial e avaliação significativa (e.g. Wood, 2000), a apren‑dizagem através da participação social e cultural (e.g. Ten Dam & Blom, 2006), as estratégias colaborativas (e.g. Edwards et al., 2002) e a construção de andai‑mes (van Huizen et al., 2005). Até que ponto estas ferramentas são igualmente necessárias na formação de professores dos vários domínios do conhecimen‑to? Há domínios em que a sua utilização parece ser mais relevante do que outros?

GENERALIDADE VERSUS ESPECIFICIDADE DO CONHECIMENTO

A educação formal, e, consequentemente a forma‑ção dos agentes que nela actuam, privilegia quatro grandes pilares educacionais que, segundo Delors (1996), incidem sobre o saber, o saber fazer, o saber relacionar ‑se e o saber ser. As linhas orientadoras da educação promulgadas pelos organismos responsá‑veis ao nível mundial, nacional e local, visam, recor‑rentemente, assegurar e aprofundar a cultura huma‑nística, artística, científica e tecnológica, bem como desenvolver capacidades de expressão e comuni‑cação e a sensibilidade ética e estética. Em última instância, os contextos de educação formal possibi‑litam a formação dos futuros guardiães do patrimó‑nio natural e cultural da humanidade através da pas‑sagem de memes à geração seguinte (Dawkins, 1976).

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Na sua essência, os conteúdos das disciplinas que veiculam o conhecimento científico, tecnológico e artístico constituem os saberes constituintes do pa‑trimónio natural e cultural, e, nesse sentido, poder‑‑se ‑á defender que a formação dos professores que os transmitem às futuras gerações não terá neces‑sariamente de atender às eventuais diferenças em termos de domínios do conhecimento. Contudo, a revolução científica iniciada em finais do século XVI acabou por divorciar ciência e arte (Jardine, 1999), ou na acepção de Snow (1959), a cultura das Artes e das Ciências Humanas e a cultura das Ci‑ências Exactas. Se bem que autores como Adams (1907, 1918), Snow (1959) ou Popper (1978) tenham defendido as vantagens de uma visão integradora do conhecimento face aos inconvenientes da sobre‑‑especialização, valorizando o acesso à terceira cul‑tura (Snow, 1959) ou ao mundo 3 das ideias (Popper, 1978), esse acesso ao mundo integrador parece, de acordo com o paradigma sócio ‑contextual e sistémi‑co, passar pelo reconhecimento da especificidade, em particular no que concerne a formação de pro‑fessores. Esta ideia ganha mais peso quando se toma em consideração a investigação que mostra que as representações implícitas dos professores acerca do desenvolvimento do conhecimento e a sua produ‑ção variam de acordo com os seus domínios especí‑ficos de especialização (e. g. Sternberg, 1985). Esta ideia é também reforçada pela análise das caracterís‑ticas do conhecimento científico e artístico.

A discussão acerca da generalidade versus espe‑cificidade da formação de professores em função do domínio do conhecimento implica necessariamente um posicionamento face ao debate acerca da gene‑ralidade ou especificidade do desenvolvimento e da produção do conhecimento que ocorre no seio dos debates teóricos acerca da criatividade. A criativi‑dade é um processo geral, independente dos domí‑nios onde surge, como no caso dos muitos criadores Iluministas que trilharam caminhos nas ciências e simultaneamente nas artes, como mostra Martinda‑le (1989)? Ou será, pelo contrário, um conjunto de múltiplos domínios, como avançam autores como Vernon (1989) que descreve a taxionomia da cria‑tividade artística, científica e social e como Gardner (1988) que defende que a produção criativa num determinado domínio está dependente do tipo de inteligência? A resposta a este debate poderá residir

na distinção entre processo e produto (Sternberg, 2001). Ao perspectivar o desenvolvimento do co‑nhecimento e a sua produção como um processo enfatiza ‑se o modo como se organiza e disponibiliza a informação interiorizada, bem como as múltiplas conexões neuronais possíveis entre os conheci‑mentos dos vários domínios (e.g. Martindale, 1989) sugerindo a ideia de um processo criativo geral com expressão em múltiplos domínios (Sternberg, 2001). No entanto, como referem Boorstin & Peli‑kan (1981), em termos de investigação, é necessário aprofundar as diferenças nos padrões de criativida‑de nas ciências e nas artes, não só para as explicar, como também sugerir formas de as fomentar.

Uma das áreas em que a investigação tem veri‑ficado diferenças entre os domínios das artes e das ciências é o das definições e crenças pessoais dos professores acerca da criatividade. Sternberg (1985) apurou que as teorias implícitas dos professores acerca da criatividade variam de área para área de conhecimento. Enquanto que os professores de arte valorizam a imaginação e a originalidade, a abun‑dância e a vontade de experimentar novas ideias como aspectos determinantes da criatividade, os professores de filosofia salientam a capacidade de jogar imaginativamente com noções e combinações de ideias, bem como a criação de classificações e sistematizações do conhecimento que desafiam as convencionais. Por seu turno, os professores de fí‑sica acentuam a componente da invenção, capacida‑de para encontrar ordem no caos, questionação dos princípios básicos; enquanto que os professores de gestão explicam a criatividade como a capacidade para encontrar e explorar novas ideias vendáveis.

Neste âmbito, três estudos realizados no módulo de Actividades de Integração da Profissionalização em Serviço da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa por profes‑sores de Artes Visuais, Línguas e Literaturas Mo‑dernas, Filosofia, História e Geografia, encontraram algumas das diferenças entre professores dos vários grupos disciplinares de algumas escolas do Distrito de Lisboa. Muito embora os estudos tivessem ob‑jectivos diferentes, todos verificaram que os profes‑sores de artes e de humanidades valorizam aspectos diferentes da expressão e apresentam convicções diversas. Num estudo que envolveu 30 professo‑res, Jacob, Viana, Silva, Pichel e Domingues (2000)

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constataram que os professores de ciências e de eco‑nomia descrevem de forma literal a partir de adjecti‑vos concretos doze rostos produzidos por pintores e escultores famosos, enquanto que os professores de humanidades inquiridos utilizam descrições mais abstractas e subjectivas e os professores de educa‑ção visual qualificavam os mesmos rostos de modo semelhante ao dos próprios artistas que os criaram. Uma tendência equivalente também se verificou num outro estudo que procurou esclarecer a importância que as imagens têm na educação formal e verificou que embora 103 professores reconheçam a relevância da imagem, nem todos mostram tirar o máximo par‑tido desta e explorar as suas múltiplas possibilidades (Matias, Senra, Carrola, Tomé, Sequeira & Pereira, 2002). Apenas os professores de artes e de humanida‑des são capazes de descrever uma imagem de forma não ‑estereotipada, retirando dela mais informação do que os seus colegas de outros domínios do conheci‑mento. Na mesma linha, a crença de que há um dom particular para o desenho conferido a uma minoria da população distingue 25 professores de ciências e de economia de 15 professores de artes e de humani‑dades que não acreditam tão convicta e deterministi‑camente na força do mito do jeito para o desenho. De novo, só os professores de artes e de humanidades consideram a possibilidade de aprendizagem e de melhoria deste tipo de expressão (Moreno, Simões, Pinto, Godinho & Neves, 2005).

As diferenças entre os professores dos vários domínios do conhecimento não se centram apenas nas teorias implícitas, crenças, atitudes e opiniões. Essas diferenças prendem ‑se também com as finali‑dades das disciplinas que leccionam. Não negando os pontos em comum das múltiplas expressões do conhecimento, os objectivos curriculares propostos para as disciplinas científicas e tecnológicas diferem nalguns pontos dos objectivos propostos para as disciplinas de artes e humanidades, na medida em que estas possuem formas diversas de compreensão do mundo, umas valorizando mais o mundo natural e outras o cultural, umas procurando mais a objecti‑vidade e outras a subjectividade, umas almejando a decifração e outras a encriptação. Na aprendizagem dos padrões do conhecimento científico enfatiza ‑se a lógica e a interiorização das leis gerais da natureza obtidas e testadas através do método científico, en‑quanto que na aprendizagem dos padrões culturais

e artísticos valoriza ‑se a estética e a expressão de ideias e de emoções. Como refere Leontiev (2007), a arte transmite significados pessoais e exerce um profundo impacto na personalidade humana na me‑dida em que possui a capacidade de revelar, expres‑sar e comunicar o sentido pessoal da realidade.

Face a estes dados, o paradigma vygostkiano de formação de professores preconizado por van Hui‑zen et al. (2005), defenderia que o contexto especí‑fico da área disciplinar deve ser tido em conta para a construção de andaimes quer do professor em formação quer também dos seus alunos. Do mesmo modo, do ponto de vista do paradigma centrado nas competências, as ferramentas de uns de outros tam‑bém difeririam pela maior ou menor valorização da lógica ou da expressividade. A construção da iden‑tidade do professor também seria perspectivada sob diferentes ângulos de acordo com a sua área de es‑pecialização na medida em que a observam e com‑preendem patrimónios diversos. E, inevitavelmente, a reflexão crítica acerca da sua actividade e prática profissional também variaria.

Partindo do pressuposto de que o desenvolvi‑mento e a produção do conhecimento podem as‑sumir diferentes formas de expressão que devem ser contempladas na formação de professores, procurou ‑se conhecer as opiniões de professores de artes e humanidades acerca da especificidade da sua formação.

OPINIÕES DE PROFESSORES DE ARTES E DE HUMANIDADES

Foram recolhidas opiniões escritas de 46 professo‑res profissionalizados que frequentaram o Curso da Profissionalização em Serviço na FPCE/UL em diferentes anos lectivos. Este curso é frequentado por professores em exercício de funções que in‑gressaram num curso superior que não dava acesso directo à carreira de ensino (no caso das Artes) ou que por razões inesperadas acabaram por mudar o seu percurso profissional (no caso das Humanida‑des). Esta amostra de conveniência era constituída por 14 professoras e 17 professores licenciados em Arquitectura ou Artes Plásticas (Pintura, Escultura, Desenho) e Design, e 15 professoras e 10 professo‑res de Línguas e Literaturas Modernas ou Clássicas,

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História ou Geografia, todos docentes do 3º Ciclo e do Secundário de escolas públicas ou privadas do Distrito de Lisboa.

O objectivo deste levantamento era o de averi‑guar quais os aspectos da formação de professores considerados como essenciais por professores de Artes e de Humanidades. Para tal, foi pedido a cada professor que desse, por correio electrónico, a sua opinião acerca da necessidade de uma formação es‑pecífica para professores nas suas áreas do conheci‑mento. No caso de uma resposta afirmativa era ‑lhes solicitado que escrevessem quais os aspectos especí‑ficos que um professor de artes ou de humanidades deveria aprender durante a sua formação. Da análise de conteúdo das respostas obtidas emergiram três grandes categorias: a estética, o pensamento crítico e a expressão criativa.

Na categoria “Estética” incluíram ‑se as respostas que defendiam a ideia de que os professores de artes e de humanidades deveriam aprender a “contribuir para a fruição e produção de bens culturais” (profes‑sor de humanidades). De entre as múltiplas formas de valorização da estética encontram ‑se “amar to‑das as artes em geral” (professora de humanidades), “aprender a inspirar os outros” (professor de artes) e “aprender a transmitir conhecimentos e emoções, amar a vida e os alunos” (professor de artes). Nes‑ta categoria colocaram ‑se também respostas como “aprender a fazer um esforço para encontrar a es‑sência da sua arte” (professora de humanidades) ou “mostrar o valor das disciplinas que lecciona” (pro‑fessora de artes). Em termos mais concretos foram referidas estratégias como “estimular o gosto pela leitura” (professor de humanidades) “através da par‑tilha de textos, leituras, opiniões, sentimentos” (pro‑fessora de humanidades) ou saber “conversar com a Obra, esgrimir argumentos, zangar ‑se e odiá ‑la para depois, exausto, descansar... ofuscado pela sua bele‑za e superioridade” (professora de artes). A noção de que os professores de artes e humanidades “devem aprender a ensinar aos alunos que as artes e as hu‑manidades também se aprendem” e de que devem ensinar os alunos estes domínios do conhecimento, que “pelo menos, merecem que se faça um esforço para encontrar a sua essência” (professora de hu‑manidades) foi adicionalmente apontada como um objectivo específico da formação destes professores. A valorização da dimensão estética da formação foi

referida 14 vezes pelos 31 professores de artes e 9 ve‑zes pelos 15 professores de humanidades.

A categoria “Crítica” é construída pelas res‑postas que reforçaram a necessidade do “profes‑sor desenvolver o seu próprio pensamento crítico” bem como a “rejeição da formatação” (professor de artes) e a “aprendizagem da subversão” (professor de artes). Um professor de artes ou de humanida‑des deve “aprender a criticar esquecendo ‑se do seu percurso e olhando para o dos outros” (professor de artes), “aprender a descontextualizar” (professor de humanidades), a “incutir o espírito de análise e o espírito crítico” (professora de humanidades) e “a cultivar nos seus alunos o desejo de eterna inquie‑tação” (professora de humanidades). A formação de professores deve, ainda, ensinar o professor a “aprender a ser curioso e levar à descoberta” (pro‑fessora de humanidades). As estratégias específicas propostas para esta categoria incluem “aprender a captar o modo de olhar de cada aluno sobre o que o rodeia e, em conformidade com essa especificidade, orientá ‑lo nessa descoberta e apropriação de novos horizontes, com ferramentas que estruturem a sua leitura e análise dos factos e processos” (no caso de uma professora de humanidades), “aprender a ler o aluno por detrás do trabalho, e mostrar ‑lhe como inverter essas posições” (no caso de um professor de artes) e “aprender a nascer de novo todos os dias (como quem diz que, deve sempre estar predispos‑to a ver o que o rodeia com novos olhos e novos olhares, sem nunca deixar de querer aprender)” (no caso de outro professor de artes). Nesta cate‑goria incluíram ‑se, ainda, as respostas que apelam para a transdisciplinaridade: “deve aprender a his‑tória das suas artes, e, tanto quanto possível (muito de preferência), a das outras também” (na opinião de uma professora de humanidades). Um professor de artes refere, como específico do seu grupo dis‑ciplinar, a necessidade de “aprender a gerir o pou‑quíssimo tempo que tem para leccionar a(s) sua(s) disciplina(s)”, enquanto que outra professora de artes refere como prioridade “aprender a encon‑trar qualidade na diversidade”, outro “aprender a lidar com as inúmeras e variadas disciplinas que lhe podem ser atribuídas”, e outro ainda “aprender a ser polivalente. A área das artes inclui disciplinas de carácter mais técnico (Geometria Descritiva), disciplinas de carácter “mais artístico” (Desenho,

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Oficina de Artes, etc.) e disciplinas de carácter te‑órico (História da Cultura e das Artes)”. A ideia da polivalência é também expressa como a necessidade dos professores de ambos os domínios aprenderem “a considerar que a cultura não é apenas visual ou apenas literária” (professor de artes) e “a relacionar‑‑se interdisciplinarmente com os seus colegas” (professora de artes). “Um professor de artes, e não só, deve aprender a que não há duas aulas iguais”, segundo outro professor de artes. A valorização da dimensão crítica da formação foi referida 12 vezes pelos 31 professores de artes e 7 vezes pelos 15 pro‑fessores de humanidades.

Uma última categoria de respostas incide sobre a dimensão criativa das disciplinas humanísticas e artísticas. A criatividade é produto da pessoa, do processo e do contexto envolvente (e.g. Csikzent‑mihalyi, 1988), e implica a geração e a exploração de ideias (Finke et al., 1992) e a sua comunicação (e.g. Sternberg & Lubart, 1996). Face à multiplicidade de dimensões envolvidas, a categoria “Criatividade” incluiu respostas relativas às características criativas pessoais de professores e alunos, ao desenvolvimen‑to do processo criativo, que abrange processos de observação e de geração de ideias, e, ainda, a cria‑ção de produtos criativos e a sua expressão. Relati‑vamente às características pessoais do professor as respostas descreveram a necessidade do professor “aprender a essência do ser humano como agente criador” (professora de humanidades) e, inevitavel‑mente “deve aprender a ser mais criativo” (profes‑sora de artes). As respostas que ilustram a neces‑sidade da formação atender ao processo criativo consideraram, num primeiro momento, “aprender a ver” (professora de artes) e “observar tudo aquilo que nos rodeia, observar todos os estímulos e refe‑rentes” (professor de artes). As outras respostas re‑lativas ao processo incidiram na atenção dada à “uti‑lização da linguagem de uma forma superior” (pro‑fessor de artes) e “compreender que nenhum aluno tem culpa de não escrever (ou desenhar) tão bem como o professor” (professora de humanidades).

A produção criativa esteve patente em respostas que referiam a necessidade dos professores de artes e de humanidades aprenderem a “sujar ‑se, desenhar e pintar palavras” (professora de humanidades) ou “aprender técnicas teatrais” (professor de artes). Nesta categoria incluíram ‑se, ainda, as respostas que

expressaram a necessidade de uma formação que possibilite “estimular a criatividade” (professor de artes), “a ensinar para a criatividade (realçar a cria‑tividade do aluno), não apenas no domínio plástico, mas através de estratégias criativas noutros domí‑nios” (professora de artes) e, ainda, “aprender que a criatividade assume diferentes formas e é inesgotá‑vel” (professora de humanidades). Enquanto que os professores de artes devem “aprender a estar dispo‑níveis, pois podem receber mais do que dão”, os de humanidades devem “aprender a não dar mais im‑portância a uma ou outra vírgula (quantas vezes facul‑tativa) e concentrar ‑se nas Palavras”. Uma última di‑mensão criativa valorizada foi a expressividade quer do professor quer do aluno. “Um(a) professor(a) de artes ou de humanidades deve aprender a comunicar o que lhe vai na alma” (professora de artes). A valo‑rização da dimensão criativa da formação foi referida 16 vezes pelos 31 professores de artes e 8 vezes pelos 15 professores de humanidades.

ANÁLISE CONCLUSIVA

Mesmo não comparados com as opiniões de profes‑sores de outros domínios do conhecimento, os ar‑gumentos que os professores inquiridos esgrimiram valem per se no sentido em que reflectem o modo como um grupo de professores de artes e de huma‑nidades sentem as especificidades das suas discipli‑nas e revelam as dimensões que entendem que de‑vem ser incluídas na formação. A estética, a crítica e a criatividade constituem dimensões implícitas nas áreas disciplinares ligadas às artes e às humanidades e conduzem à flexibilidade que Hargreaves e Fullan (1998) referem ser uma mais ‑valia para pensadores e professores conseguirem lidar com a crescente diversidade e alcançarem uma mudança de atitude face ao status quo.

Do ponto de vista vygotskiano (van Huizen et al., 2005), importa reconhecer na formação de pro‑fessores o contexto específico em que o processo educativo ocorre. Uma forma de atender ao contex‑to é compreender os domínios do conhecimento que sensibilizam os alunos para o património na‑tural. Assim, a construção de andaimes através da interacção, da co ‑questionação guiada e da inves‑tigação reflexiva em que a formação de professores

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assenta deveria incluir as características particulares do domínio do conhecimento dos professores por forma a possibilitar as almejadas reestruturações e novas construções do conhecimento por parte dos professores e, como consequência, dos seus alunos.

Do ponto de vista sistémico importa formar os professores nas múltiplas dimensões cuja dinâmica circular revela, expressa e comunica o sentido pes‑soal da realidade (Leontiev, 2007). Embora a pos‑sibilidade de reconciliação de paradigmas clássicos seja questionável, a tendência para olhar para os vários fenómenos naturais e culturais sob uma pers‑pectiva sistémica, possibilita a abertura à integração de paradigmas e ao ecletismo, o que pode consti‑

tuir uma forma de superação dessa dificuldade de reconciliação. Nesta lógica, a integração das várias vertentes do património cultural possibilitariam a construção de significados pessoais e exercem um profundo impacto na personalidade humana.

Na conjuntura política, social e cultural de hoje, uma das formas de alcançar um referencial sólido que permita integrar as múltiplas componentes dos paradigmas vigentes e emergentes de formação de professores poderá residir na preocupação com as especificidades dos domínios do conhecimento que aspiram não só à decifração do conhecimento como também à sua encriptação.

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Recensões

Marilyn Cochran ‑Smith; Sharon Feiman ‑Nemser; D. John McIntyre & Kathy E. Demers (orgs.) (2008). Handbook of Research on Teacher Education. Enduring questions in changing contexts. 3rd Edition. New York: Routledge & ATE

A TENTAÇÃO (E A NECESSIDADE) DA TOTALIDADE

O Handbook of Research on Teacher Education constitui um clássico de consulta e estudo obrigatórios para todos aqueles que se interessam pela Formação de Professores enquanto domínio de investigação científica em educação.

A terceira edição que acaba de ser publicada em 2008 mantém com as anteriores — a primeira, publicada em 1990 sob a responsabilidade de W. R. Houston, e a se‑gunda, publicada em 1996 sob a responsabilidade de J. Sikula — o escopo de ajudar a promover a mudança educativa com base em evidências científicas sólidas, embora se distinga claramente destas em termos da sua concepção geral e da estrutura adoptada.

Cada edição constitui, em relação ao momento em que é realizada, uma tentativa de responder a questões que, sendo permanentes, vão conhecendo respostas ne‑cessariamente diferentes, quer porque os contextos do desempenho e da formação profissional vão mudando, quer porque os processos investigativos vão permitin‑do acumular resultados em antigos e novos campos de pesquisa, ao mesmo tempo que vão, também eles, co‑nhecendo reorientações metodológicas por vezes muito significativas. Trata ‑se, pois, de tentar codificar a base de conhecimento científico disponível para, em cada tem‑po, prosseguir com o empreendimento de investigar e de formar professores da melhor forma possível. Tarefa reconhecidamente difícil (se não impossível), tal codifi‑cação aspira a oferecer um sentido de globalidade ou de

totalidade a milhares de trabalhos de investigação que se produziram nos Estados Unidos da América nos últimos doze anos, sem iludir a diversidade de opções científi‑cas, paradigmáticas e metodológicas, que sustentam os trabalhos, nem escamotear o quanto algumas dessas op‑ções são mais influenciadas pelas agendas políticas e so‑ciais que impendem sobre a educação e a formação dos professores do que pelo curso “natural” do avanço do conhecimento. E necessariamente também, pondo em evidência aqueles casos em que a investigação realizada até agora chegou a resultados contraditórios.

Questões maiores continuam, então, a ser as de se saber como é que o conhecimento científico pode constituir ‑se em fundamento de melhores progra‑mas de formação e a de se saber o que é conhecimen‑to científico válido e fiável no campo da formação de professores. Nem uma nem outra das questões têm ou alguma vez tiveram respostas fáceis nem lineares. Mas tem havido um notório esforço de aprofundamento e de compreensão do que nelas está envolvido e avanços que nos parecem muito promissores no sentido de uma apropriação mais prevenida e crítica das evidências da investigação empírica.

Este Handbook or Research on Teacher Education está estruturado em nove partes que tentam sucessivamente responder às seguintes perguntas:

∙ Qual é a questão? Os propósitos da formação de professores

∙ O que é que os professores deveriam saber? As ca‑pacidades dos professores: conhecimento, cren‑ças, habilidades e compromissos

∙ Onde devem os professores ser formados? Con‑textos e papéis na formação de professores

∙ Quem ensina? Quem deveria ensinar? Recruta‑mento, selecção e permanência de professores na profissão

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∙ Será que a diferença faz a diferença? Diversidade e formação de professores

∙ Como é que as pessoas aprendem a ensinar? A aprendizagem dos professores ao longo do tempo

∙ Quem manda? Autoridade na formação de profes‑sores e política de certificação

∙ Como é que sabemos o que sabemos? Investiga‑ção e formação de professores

∙ Para que serve a formação de professores? O lugar da formação de professores na formação dos pro‑fessores.

Cada uma das nove partes obedece a uma estrutura co‑mum: tem uma introdução da responsabilidade do editor dessa parte, tem três a cinco capítulos de enquadramen‑to do tema, tem uma secção denominada “artefactos”, onde foram acolhidos textos produzidos em diferentes épocas ou fotografias, e tem finalmente uma secção de comentários elaborados por dois ou três investigadores cuja opinião foi tida como relevante sobre o conjunto das produções anteriores.

Tanto a secção de artefactos como a de comentários correspondem aos aspectos mais inovadores da estrutura desta terceira edição. Com os artefactos proporciona ‑se ao leitor uma perspectiva diacrónica da abordagem do tema, facilitando ‑se a constatação de permanências e de rupturas no modo de abordar o tópico em questão. Com os comentários, fomenta ‑se a leitura crítica dos materiais reunidos, na medida em que somos confrontados com uma certa multiplicidade de apropriações dos mesmos pelos diversos autores convidados a comentá ‑los.

Não fizemos uma leitura exaustiva da obra, nem ima‑ginamos que seja quem for a faça — trata ‑se de um único volume de 1354 páginas (aliás, desagradável de manuse‑ar). A leitura flutuante que incluiu apenas as introduções, um capítulo aqui, outro ali, e a leitura integral de duas partes, levam ‑nos a arriscar que se há uma palavra ‑chave dominante nesta obra, essa palavra é “diversidade”. Lu‑gar paradoxal onde toda a educação, toda a formação de professores e toda a investigação sobre uma e outra hoje se movem, como construir sobre essa (s) diversidade (s) as sínteses provisórias de que cada um de nós e todos em conjunto (investigadores, formadores de professores, instituições de formação) necessitamos para continuar a percorrer os respectivos caminhos? Nesse aspecto, o Handbook fornece ‑nos os alicerces, é um bom ponto de sustentação, mas remete a responsabilidade da síntese inteiramente para cada um dos seus utilizadores. Como, aliás, pensamos que deve ser.

Manuela [email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa

Esteves, Manuela (2009). Recensão da obra “Handbook of Research on

Teacher Education. Enduring questions in changing contexts”, de Marilyn

Cochran ‑Smith; Sharon Feiman ‑Nemser; D. John McIntyre & Kathy E. Dem‑

ers [2008]. 3rd Edition. New York: Routledge & ATE. Sísifo. Revista de Ciên-

cias da Educação, 08, pp. 113‑115

Consultado em [mês, ano], em: http://sisifo.fpce.ul.pt

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Alves, Natália (2008). Juventudes e inserção profissional. Lisboa: EDUCA & Unidade de I&D de Ciências da Educação.

Detentores de títulos académicos que certificam trajectó‑rias escolares longas e qualificantes, os jovens licenciados são, hoje em dia, confrontados com um futuro onde a in‑certeza impera e os riscos espreitam. A licenciatura já não garante, a muitos jovens, o acesso imediato aos empregos mais qualificados e melhor remunerados e os processos de inserção profissional perderam a linearidade que durante séculos os caracterizou, transformando o emprego dos di‑plomados num problema social e político (p. 290).

Este excerto identifica claramente o tema central da obra de Natália Alves, Juventudes e inserção profissional, edi‑tada pela EDUCA e Unidade de I&D de Ciências da Educação da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. O objectivo con‑siste em interpretar e explicar esse fenómeno recente que faz com que a passagem da formação universitária para o mercado de emprego se tenha transformado num proble‑ma “social e político”. O que está em causa neste trabalho não é a “perda da eficácia” da formação universitária na obtenção dos melhores empregos, pois, como adverte a autora, “é verdade que a situação se deteriorou, mas os licenciados continuam ainda a constituir um grupo privi‑legiado no mercado de trabalho” (p.2 91). O que é motivo de interpelação e reflexão é o modo como se caracteriza esse processo social “longo e complexo” de transição da escola para o trabalho, captado à luz do conceito de “in‑serção profissional” (com origem na sociologia francófo‑na), que marca de forma evidente os percursos biográfi‑cos e os processos de construção identitária dos jovens, e que põe em causa muitas das actuais políticas públicas de educação (neste caso do ensino superior).

Baseada num profundo conhecimento da literatura da especialidade e na sua experiência pessoal de investi‑gação sociológica, em particular na temática das relações entre a educação/formação e o trabalho dos jovens, quer no domínio da formação profissional quer no domínio do ensino universitário, Natália Alves propõe ‑nos, nesta obra, uma síntese feliz entre o trabalho de construção de um quadro teórico de análise e a definição de uma pro‑blemática.

O quadro teórico (objecto dos três primeiros capí‑tulos) toma com referência os dois conceitos que dão o título à obra: juventudes e inserção profissional.

No primeiro caso — juventudes — a autora apresen‑ta, no capítulo 1, uma breve mas elucidativa descrição do “processo através do qual a juventude se generaliza e adquire consistência social” que ocorreu na moderni‑dade, principalmente através da massificação da experi‑ência juvenil. É no quadro deste processo que a juven‑tude é vista como um “problema social” e como “uma construção científica”, incluindo aqui a própria noção de pluralidade de “juventudes”. Mobilizando um vasto número de autores de diferentes tradições sociológicas e dados referentes a diversos países, Natália Alves aborda, de seguida, o conhecido fenómeno do “prolongamento da juventude” e as suas consequências nas “políticas de juventude” e de educação, no aumento da heterogenei‑dade das características dos próprios jovens e na diver‑sidade dos momentos fronteira que os separam da “vida adulta”. Finalmente, é analisada a situação existente em Portugal, neste domínio, à luz da investigação produzida principalmente a partir dos anos 80 do século XX.

No segundo caso — inserção profissional — a autora apresenta, nos capítulos 2 e 3, dois textos fundamentais para a compreensão do fenómeno da inserção profissio‑nal dos jovens e para a análise das políticas de emprego dirigidas a este público específico. De realçar que estes textos são escritos com notável clareza e poder de síntese,

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tomando como base uma extensa revisão de literatura de várias quadrantes linguísticos, científicos e teóricos, adop‑tando, sempre que possível, uma perspectiva comparada, em especial no que se refere às “políticas de emprego” e aos resultados dos estudos sobre “inserção profissional”.

O capítulo 2 tem como ponto de partida a análise do conceito de “inserção profissional” (sua emergência e desenvolvimento) no contexto de outras expressões igualmente utilizadas para designar “esta fase do ciclo de vida em que os jovens dão por concluída a sua formação e iniciam o processo de procura de emprego”. A partir da‑qui, a autora procede a uma discussão teórica de diferen‑tes perspectivas em confronto que reforçam a dimensão social deste fenómeno e a sua conexão com as questões mais gerais das políticas de mão ‑de ‑obra e de emprego e da “inclusão social”. O capítulo termina com uma análise extremamente lúcida e persuasiva sobre o modo “como a inserção profissional se transforma num problema so‑cial”, mobilizando para o efeito a situação existente em França, na Grã ‑Bretanha, em Portugal e na Alemanha.

O capítulo 3 toma a “inserção profissional” como área de actuação das políticas públicas analisando sobre‑tudo “os problemas do desemprego e as soluções para o resolver”. Mais uma vez, a perspectiva comparativa é valorizada, recorrendo, neste caso, aos exemplos ale‑mão, britânico, francês, sueco e português. Através des‑tes vários exemplos é possível pôr em evidência o facto de “as políticas de inserção terem subjacentes diferentes concepções de juventude e serem marcadas por entendi‑mentos distintos quanto às causas do desemprego juve‑nil”. É neste contexto que são apresentadas e analisadas diferentes “teorias explicativas” do “desemprego juvenil” desde as mais “globalizantes” que remetem para a con‑juntura económica a sua principal responsabilidade, às que acentuam a responsabilidade do défice (ou desajus‑te) de formação da população juvenil. Independentemen‑te das perspectivas adoptadas a conclusão mostra que a “inserção profissional dos jovens” é vista pelos diversos estados como um problema político e social, o que está na origem da intervenção dos poderes públicos na gestão da transição para a vida activa, seja qual for a modalida‑de adoptada. A existência destas políticas tem estado na origem do desenvolvimento crescente de uma “sociolo‑gia da inserção profissional” cujos principais resultados são analisados por Natália Alves, a partir dos trabalhos produzidos em França, Grã ‑Bretanha e Estados Unidos e com particular enfoque nos realizados em Portugal.

Após a apresentação do quadro teórico de análise em torno dos conceitos de “juventudes” e de “inserção pro‑fissional”, a obra termina com um capítulo dedicado à construção de uma problemática específica, relativa ao caso particular da inserção profissional das juventudes universitárias.

A construção desta problemática justifica ‑se pelo facto de, como é assinalado na Introdução, esta obra

corresponder ao quadro conceptual que serviu de suporte à investigação empírica realizada no âmbito da tese de doutoramento que a autora apresentou em 2007, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Edu‑cação da Universidade de Lisboa, com o título “Inser‑ção profissional e formas identitárias. Percursos dos licenciados da Universidade de Lisboa”.

Na verdade, a questão da “inserção profissional dos jovens” ganha uma dimensão específica no contexto da massificação do ensino superior, com o consequente au‑mento de licenciados “que ingressam no mercado de tra‑balho, num período em que as economias se confrontam com ciclos de crescimento cada vez mais curtos e com os efeitos dos processos de internacionalização e globaliza‑ção”. Por isso, Natália Alves traça um quadro extrema‑mente sintomático do processo de expansão recente do ensino superior e das suas “desigualdades” em Portugal e em outros países, analisando os impactos que teve no aumento da heterogeneidade da população estudantil e nas mutações no mercado de trabalho dos licenciados.

A conclusão que a autora retira da síntese dos estu‑dos que mobilizou para este capítulo é desafiante não só para a “reforma” do ensino superior, mas também para a análise da relação entre formação e emprego: “A inserção profissional dos diplomados do ensino superior é, hoje em dia, uma problemática que faz parte da agenda polí‑tica em praticamente todos os países industrializados. A perda de alguns dos privilégios, que desde séculos usu‑fruíram os detentores de títulos que sancionam trajectó‑rias de sucesso neste nível de ensino, tem despoletado um aceso debate sobre a situação no mercado de trabalho ao qual os estabelecimentos de ensino superior não têm escapado. (…) [Contudo] Os diplomados do Ensino Su‑perior continuam a gozar de uma situação francamente fa‑vorável no mercado de trabalho e que pouco ou nada tem em comum com os discursos alarmistas produzidos pelos media e de que a opinião pública faz eco. É verdade que a precariedade está mais difundida e a estabilidade demora mais tempo a chegar, mas as vantagens comparativas do diploma do Ensino Superior no mercado de trabalho, em geral, e nos processos de inserção profissional, em parti‑cular, continuam a ser inquestionáveis, quer em Portugal quer nos restantes países da UE” (p. 300). Como se pode verificar pela recensão aqui feita esta‑mos perante uma obra fundamental para compreender as relações entre educação e trabalho, em geral e, mais particularmente, a especificidade que elas adquirem no quadro da inserção profissional dos jovens licenciados. A temática é abordada com grande consistência teórica e, simultaneamente, com grande eficácia e acessibilida‑de discursiva, o que, infelizmente, nem sempre acontece neste tipo de textos de natureza mais académica. É por isso, também, uma obra com grande sentido pedagógi‑co, construída, muitas vezes, a partir das questões que

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a própria autora formula face a algumas insuficiências explicativas das teorias que mobiliza.

Compreende ‑se, perfeitamente, os critérios editoriais que determinaram que só fosse incluída na presente edi‑ção a parte referente ao enquadramento teórico da tese de doutoramento de Natália Alves, atrás referida. Contu‑do, recomenda ‑se vivamente, para os mais interessados, a consulta integral do trabalho empírico realizado e em particular a análise feita a partir das significativas entre‑vistas obtidas pela autora junto de jovens licenciados em processo de inserção profissional. Só assim é possível descobrir, na sua plenitude, a potencialidade heurística da argumentação e do quadro teórico aqui apresentado.

Uma referência final deve ser feita ao momento em que a obra é editada. A reflexão que foi realizada (e a investigação que se lhe seguiu) reporta ‑se a um período anterior ao que é hoje possível identificar como fim de um ciclo económico (com a eclosão da “crise” de 2008‑‑2009) e antes de se sentirem os efeitos das transforma‑ções originadas pelo chamado “processo de Bolonha” na organização da oferta do ensino superior, na duração dos cursos e no “estatuto” da licenciatura na hierarquia dos diplomas. É de prever que muitos dos pressupostos e dos dados do problema educação/formação/emprego e

os consequentes processos de inserção profissional dos jovens licenciados estejam a ser alterados. E quando isto acontece não são só os problemas que mudam, são tam‑bém o olhar que temos sobre eles e as soluções que en‑contramos. Vale a pena esperamos pelo fim da “história” deste período para confirmar a continuação (ou não) da validade de muitas das conclusões que foi possível obter com este trabalho.

João [email protected]

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

da Universidade de Lisboa

Barroso, João (2009). Recensão da obra “Juventudes e inserção profissional”,

de Natália Alves [2008]. Lisboa: Educa/Ui&dCE. Sísifo. Revista de Ciências

da Educação, 08, pp. 116‑118

Consultado em [mês, ano], em: http://sisifo.fpce.ul.pt

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INTRODUÇÃO

A supervisão é um dos meus interesses profissionais de preferência. Depois de ter sido, eu própria, profes‑sora, dediquei ‑me à formação de professores e, dentro dessa temática, direccionei sempre os meus interesses para a supervisão. Dois anos após ter terminado o es‑tágio pedagógico, tornei ‑me supervisora. É daí que me vem o interesse em estudar, por um lado, a activida‑de supervisiva e, por outro, as questões da didáctica, nomeadamente da Didáctica de Línguas, dado que a minha formação de base se alicerça no curso de Ger‑mânicas. Ao longo da minha vida como supervisora e investigadora na área, tenho combinado a experiência profissional com a reflexão sobre a experiência. É o meu pensamento, resultado dessa combinatória, que hoje vos trago.

Não sei exactamente o que é que o título da conferên‑cia fez ecoar em vós... Quando nós falamos em super‑visão de professores, pensamos sobretudo na formação inicial. O contributo que vos trago hoje vai para além da formação inicial e, por isso, dei a esta conferência o título de: “Formação e Supervisão de Professores: uma nova abrangência”¹.

Numa espécie de organizador avançado, esclareço que estruturei esta conferência em duas partes. Numa primeira parte apresentarei uma re ‑conceptualização do conceito de supervisão que, na minha perspectiva, concede a esta actividade — a supervisão — uma maior abrangência, porque a estende à escola. Hoje em dia con‑sidero que a supervisão tem também por função a dina‑mização e o acompanhamento do desenvolvimento da escola. Já não se ocupa só dos professores em formação inicial, mas de toda a escola e de todos os que, na escola, realizam o trabalho de ensinar, estudar ou apoiar a fun‑ção educativa. Portanto, este será o primeiro momento, um momento de re ‑conceptualização.

Depois achei que também seria interessante trazer‑‑vos o relato de um caso de inovação curricular que foi acompanhada de uma forma que considero supervisiva. E, assim, a segunda parte consistirá na apresentação des‑se caso, no contexto de uma escola aprendente, ou refle‑xiva, noção que, mais à frente, definirei. Tentarei analisar os factores que favoreceram a criação de uma cultura de aprendizagem partilhada e a influência que essa cultura teve no processo de inovação curricular, que foi — desde já digo, para não ficarem com falsas expectativas — um projecto de inovação curricular no âmbito do ensino su‑perior (e não no âmbito do ensino básico ou secundá‑rio). Eu própria acompanhei esse processo.

UMA NOVA ABRANGÊNCIA PARA A SUPERVISÃO

No contexto supervisivo português (e digo português, porque é diferente o contexto supervisivo português, ou o contexto supervisivo brasileiro, ou o contexto su‑pervisivo americano) normalmente, quando se fala em supervisão, pensa ‑se em supervisão de professores em formação inicial. Foi neste âmbito que eu trabalhei quase sempre a temática da supervisão. Primeiro, como super‑visora na escola, depois como supervisora na universida‑de. Na primeira fase das minhas reflexões mais teóricas e dos meus estudos empíricos sobre a supervisão, era sobretudo a formação inicial que estava em jogo.

Contudo, já num livro que publiquei com José Tava‑res, em 1987 (e que foi um livro pioneiro no campo da su‑pervisão em Portugal, foi, penso, o primeiro livro em Por‑tugal onde apareceu, no título, a palavra supervisão, ou pelo menos a expressão “supervisão da prática pedagógi‑ca”), nós dizíamos que no quadro da formação contínua a supervisão da prática pedagógica “emerge como uma auto e hetero ‑supervisão, comprometida e colaborante,

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Conferências

Formação e Supervisão de Professores: uma nova abrangência

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, 3 de Maio de 2007

Isabel Alarcão

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em que os professores se entre ‑ajudam a desenvolver ‑se e a melhorar o seu próprio ensino” (Alarcão & Tavares, 1987, p. 148).

Portanto, já em 1987 tínhamos esta convicção, mas ela tem ‑se vindo a intensificar e, hoje, pretendo alertar‑‑vos para o papel da supervisão na linha da formação contínua mais do que propriamente da formação ini‑cial. Penso que, no futuro, esta dimensão vai ser muito importante, embora não se possa esquecer a supervisão na formação inicial, até porque se estão atentos à legisla‑ção que saiu recentemente sobre os cursos de formação de professores, verificaram com certeza na valorização desta componente, expressamente designada no arti‑culado por “prática de ensino supervisionada”; é esta a expressão utilizada. E é evidente que não se pode perder a oportunidade (agora que a formação de professores, a nível de formação inicial, não nos está a pôr a pressão da quantidade) de se ter em atenção a qualidade da forma‑ção em estágio e a oportunidade de desenvolver e inves‑tigar práticas supervisivas e assim criar, ou aprofundar, conhecimento sobre essa matéria.

Ultimamente, reconhecendo a importância do papel que a escola hoje assume, comecei a pensar em super‑visão da instituição, ou da escola como organização, ou antes como comunidade, na explicitação de Sergiovanni (1994). É que, quando se fala em supervisão, em termos de formação inicial, centramo ‑nos muito no professor; quando se fala em supervisão em formação contínua, o foco incide sobre o colectivo dos professores. Mas o papel importante que hoje em dia é atribuído à escola, levou ‑me a re ‑conceptualizar o âmbito da supervisão. Assim, em 2002, portanto já mais recentemente, eu es‑crevia: “Mantendo como objecto essencial da activida‑de supervisiva a qualidade da formação e do ensino que praticam, a supervisão deve ser vista, não simplesmente no contexto da sala de aula”, e normalmente a formação inicial era muito centrada na sala de aula, “mas num con‑texto mais abrangente da escola, como um lugar e um tempo de aprendizagem para todos, crianças e jovens, educadores e professores, auxiliares e funcionários e para si própria”, si própria, a escola, “como organização qualificante, que, também ela, aprende e se desenvolve” (Alarcão, 2002, p. 218).

A evolução do meu pensamento teve consequências ao nível da explicitação do conceito de supervisão. Enquanto que, em 1987, definíamos a supervisão como “o proces‑so em que um professor, em princípio mais experiente e mais informado, orienta um outro professor ou candidato a professor no seu desenvolvimento humano e profissio‑nal” (Alarcão & Tavares, 1987, p. 18), na 2ª edição desse livro, revista e publicada em 2003, apresentámos a supervi‑são como o processo de “dinamização e acompanhamento do desenvolvimento qualitativo da organização escola e dos que nela realizam o seu trabalho de estudar, ensinar ou apoiar a função educativa, através de aprendizagens

individuais e colectivas, incluindo as dos novos agentes” (Alarcão & Tavares, 2003, p. 154). Se repararem bem, a su‑pervisão da formação inicial está incluída, mas está inserida num contexto mais abrangente, que é a supervisão da esco‑la e a supervisão da formação contínua, ou seja, do colec‑tivo dos docentes. E todas estas dimensões se interligam.

Numa tentativa de síntese, no meu gosto por apanhar as ideias principais, eu poderia dizer que, quando olha‑mos para o desenvolvimento do percurso da supervisão, notamos um alargamento da área da sua influência, no‑tamos uma maior associação da supervisão ao desenvol‑vimento profissional. Ao falar em desenvolvimento pro‑fissional, estou a pensar não só nos candidatos a profes‑sores, mas sobretudo, no desenvolvimento profissional dos que já são profissionais e se encontram em ambiente de formação contínua em contexto de trabalho; estou a considerar uma orientação mais colaborativa e menos hierárquica.

Esta minha opinião é corroborada pela de Sullivan e Glantz que, em 2000, afirmavam que a supervisão do século XXI (e é este o século em que estamos) terá fun‑damentalmente duas características. Uma característica que chamam de democraticidade e uma segunda carac‑terística que chamam de liderança com visão. Demo‑craticidade, porquê? Democraticidade, porque é uma supervisão baseada na colaboração entre os professores, em decisões participadas, e na prática reflexiva, visando profissionais auto ‑dirigidos ou, se quiserem, como se diz mais frequentemente, autónomos.

Mas também uma liderança que perspective o futuro. Portanto, uma liderança com visão, que promova os va‑lores da democraticidade e desenvolva programas super‑visivos com impacto… Com efeito, a supervisão tem que ter impacto na melhoria do ensino e da aprendizagem. Ou seja, em última análise, quando trabalhamos com os professores, queremos, através deles, chegar aos alunos. Queremos que a educação seja melhor, que o ensino seja melhor. Passa ‑se pelos professores, mas tem ‑se em men‑te que o objectivo último é a qualidade da educação.

Pergunta ‑se, então, qual é a função dos supervisores institucionais. Costumo dizer que a função dos super‑visores institucionais é, fundamentalmente, encorajar os professores a trabalharem em conjunto, como cole‑gas, numa atitude indagadora e transformadora. O que é que está em causa nesta concepção? O supervisor não é aquele que faz, nem é aquele que manda fazer; é a pes‑soa que cria condições para que os professores pensem e ajam e façam isso de uma forma colaborativa, de uma forma crítica, indagadora, portanto, com um espírito de investigação que é hoje absolutamente necessário. Não têm que ser, costumo eu dizer, investigadores no sentido verdadeiramente académico, mas têm que ter o espírito de investigação e têm que ser capazes de fazer algumas pequenas investigações, porque só isso é que possibilita que, realmente, haja inovação e transformação.

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Se repararem, há uma constante na evolução do meu pensamento… Constante que se mantém desde as pri‑meiras definições, desde a definição de 1987: é o pro‑fessor mais experiente, é o professor que ajuda. Perma‑nece a ideia da ajuda, do apoio, da atenção ao outro, às circunstâncias e às necessidades. A essa ideia de apoio associo sempre a de desafio. Aliás, costumo dizer que a supervisão é fundamentalmente um processo de desa‑fios, acompanhados de apoios para que as pessoas sejam capazes de responder aos desafios. Esta convicção tem‑‑se mantido ao longo da história do meu pensamento.

Vou referir ‑vos agora uma pergunta que frequente‑mente me tenho colocado e à qual ainda não consegui responder totalmente; apresento ‑vos, por isso, o ponto da situação do meu questionamento. E a pergunta é: mas, afinal, quem são os supervisores institucionais? Quando se pensa em supervisor institucional, tem ‑se em mente uma pessoa que tem essa função específica? Quem são esses supervisores institucionais? O ponto da situação do meu pensamento reside no seguinte: todos os que es‑tão na escola são supervisores. Entendendo a supervisão como o processo auto ‑supervisivo e hetero ‑supervisivo de que falámos atrás, todos têm a função de se entre‑‑ajudarem e de contribuírem para uma escola melhor. Porém, há uns que desempenham mais essa função do que outros. Porquê? Se calhar, porque têm características que se adequam mais a essas funções. Destacam ‑se como líderes do pensamento, como pessoas que apoiam, que desafiam. Concebo até que, ao nível das cúpulas, portan‑to, ao nível dos Conselhos Executivos, haja alguém que tenha (ou venha a ter) uma responsabilidade acrescida em relação à supervisão da escola. E, assim, quando digo “todos mas uns mais do que outros”, a minha ideia é a seguinte: em princípio todos são supervisores, e deve ‑se fazer os possíveis para que todos tenham o espírito de auto ‑supervisão e de hetero ‑supervisão, mas convém que haja algumas pessoas que se sentem mais responsáveis por fazer correr a dinâmica supervisiva. Neste contexto, é oportuno recordar Sergiovanni e Starrat, dois america‑nos que têm trabalhado muito as questões da supervisão e que, em 2002, anteciparam que o futuro mostrará que a supervisão dos Presidentes dos Conselhos Directivos e de outros ligados à gestão, como pessoas que lideram, será menos importante do que a supervisão colegial, a que envolve os pares, isto é, a supervisão colaborativa e a hetero ‑supervisão de que vos tenho vindo a falar.

UM CASO DE SUPERVISÃO NUMA ESCOLA REFLEXIVA

Na segunda parte desta conferência dou ‑vos conta das minhas reflexões sobre um caso de supervisão. Achei que poderia ser interessante. Já o estudei de vários pon‑tos de vista, e vou agora olhá ‑lo sob o ponto de vista da

supervisão. Chamei ‑lhe: “Um caso de supervisão numa escola reflexiva”.

Escola reflexivaE chamei ‑lhe “Um caso de supervisão numa escola re‑flexiva”, porque tenho vindo a considerar a escola com a capacidade de se pensar a si própria. A essa esco‑la pensante atribui a designação de escola reflexiva. O conceito não é original. No fundo, trata ‑se do conceito de escola aprendente, qualificante, que vem na linha da Senge. Original é, talvez a designação. Achei interessante chamar ‑lhe escola reflexiva, porque isso tem a ver com a história do meu pensamento. Como alguns dos pre‑sentes sabem, eu introduzi em Portugal o pensamento do Donald Schön sobre o profissional reflexivo, na se‑quência de uma licença sabática que tive a oportunidade de realizar nos Estados Unidos, em 1989. Nessa altura, Schön era muito lido lá e também eu tive oportunidade de o ler e de o estudar. No ano seguinte, em Portugal, no âmbito da disciplina de Supervisão que estava a lec‑cionar no Mestrado em Supervisão na Universidade de Aveiro (UA), achei interessante apresentar o pensamento de Donald Schön aos meus alunos. No final do curso — e porque reconheci que os alunos tinham apreciado muito essa temática — resolvi escrever um artigo sobre o pensa‑mento do Donald Schön, o artigo que saiu no número 1 dos Cadernos CIDInE, em 1992, número que se esgotou rapidamente porque as pessoas aderiram muito à ideia do professor reflexivo. Mais tarde, em 1996, peguei nes‑se mesmo texto e reproduzi ‑o num livro que publiquei com os meus alunos da edição seguinte do mesmo mes‑trado, porque esses alunos, quando chegaram ao curso, disseram ‑me: “Pois é, professora, anda a falar muito de professor reflexivo e nós queremos saber como é que se faz uma supervisão que leve os professores a serem reflexivos!” É sempre a ideia do “como”, normalmente todos querem saber “como fazer”! Fizeram ‑me então o desafio: “é altura de começar a dizer de uma forma mais concreta como é que se forma um professor reflexivo”. E eu devolvi ‑lhes o desafio, dizendo: “Pois bem; nós estamos a começar o mestrado, estamos a começar esta disciplina, vocês vão ter que fazer trabalhos e, portanto, os trabalhos que vocês vão fazer vão ser orientados nesta linha, a de estudar estratégias de formação reflexiva de professores”. E daí resultou o livro, que se chama exacta‑mente Formação Reflexiva de Professores: Estratégias de Supervisão (Alarcão, 1996).

Mas…voltemos ao caso em análise não sem que an‑tes vos dê a minha definição de escola reflexiva. A de‑signação e concepção datam de 2001, tendo aparecido nesse ano em diferentes livros, uns publicados em Por‑tugal, outros no Brasil. Entendo a escola reflexiva como “uma organização que continuadamente se pensa a si própria, na sua missão social e na sua organização, e se confronta com o desenrolar da sua actividade, num

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processo heurístico, simultaneamente avaliativo e for‑mativo” (Alarcão, 2001, p. 35).

Acho que também é interessante ressaltar um aspec‑to que tem a ver com a minha experiência de vida e a influência que ela exerceu sobre o meu pensamento. Primeiro trabalhei a questão do professor reflexivo ao nível individual, ao nível do professor — quando esta‑va envolvida na supervisão de professores em formação inicial — embora já nessa altura admitisse as vantagens da supervisão em formação contínua, como referi no início. Entretanto assumi as funções de Vice ‑Reitora da Universidade de Aveiro e passei a ter outra perspectiva, a perspectiva da escola, da organização, da comunidade. Foi essa perspectiva e essa necessidade de me preocupar com a Universidade (que, por ser universidade não deixa de ser escola, não é?) como organização e comunidade e de perceber como é que as várias coisas jogam e como é que é preciso monitorizar, como é que é preciso a esco‑la pensar ‑se e organizar ‑se em função daquilo que quer ser… Foi isso que me levou a esta conceptualização e a esta designação: “escola reflexiva”.

Nesta conceptualização entraram, então, dois facto‑res. Por um lado, a minha experiência de estar à fren‑te de uma escola, e, por outro lado, a transferência de elementos da definição de professor reflexivo para a de escola reflexiva. Surge ‑me assim a escola a pensar ‑se a si própria (há aqui obviamente uma metáfora) naquilo que quer ser, na missão que tem, e na forma como está or‑ganizada (ou desorganizada!) para cumprir essa missão. A escola tem de ter um processo de monitorização, que inclui um processo de supervisão, que tem a ver com o processo de se confrontar com aquilo que quer ser e o modo como está organizada para concretizar essa mis‑são. Implica um confronto com a realidade, com a activi‑dade. Este confronto envolve um processo heurístico, e esse processo heurístico, que é desenvolvido, não pelas paredes da escola, mas pelas pessoas que a constituem, é um processo que é, simultaneamente, avaliativo do fun‑cionamento da escola e formativo das pessoas que nele estão envolvidas e que, em princípio, devem ser todas.

Como vêem, por detrás desta concepção está tam‑bém, como disse há pouco, a ideia da organização apren‑dente de Senge (1990) autor que, na altura, também li e me influenciou.

E finalmente o casoOra bem, trata ‑se de um caso de quê, como diria Shul‑man (1986)?

Trata ‑se da introdução de uma inovação curricular — a “aprendizagem à base de projectos”(ABP) que é, no fundo, uma modalidade de aprendizagem à base de problemas, normalmente conhecida como PBL, mas em que, porque se trata de cursos de Engenharia, os proble‑mas se configuram em projectos.

Onde é que o caso aconteceu? Aconteceu na ESTGA (Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Águeda), na Universidade de Aveiro. Numa breve apresentação, a ESTGA é uma escola superior politécnica — eu reforço isto, porque isto é muito im‑portante para o caso — criada em 1997. A Universidade de Aveiro integra actualmente quatro escolas superiores politécnicas. A ESTGA foi a primeira. A segunda foi o ISCA (Instituto Superior de Contabilidade e Adminis‑tração). A terceira, criada de raiz, é a Escola Superior de Saúde (ESSUA). Mais recentemente foi criada a Esco‑la de Design, Gestão e Tecnologia de Produção, Aveiro Norte. Integradas na Universidade de Aveiro, estas es‑colas gozam de bastante autonomia. A ESTGA ministra vários cursos de Engenharia e alguns de Gestão, como os de Direcção, Estudos Superiores de Comércio, etc., mas nós vamos centrar ‑nos apenas nos cursos de Engenharia. Ou seja, o caso que vos vou apresentar tem a ver com os cursos de Engenharia.

A missão da ESTGAA ESTGA foi criada em 1997. Na sessão de inauguração, o então Reitor, Júlio Pedrosa, acentuou a natureza da forma‑ção que se pretendia para a ESTGA como ensino superior politécnico. Uma escola integrada numa Universidade tem sempre uma tendência grande para resvalar para um ensino universitário e, portanto, na própria inauguração, no próprio discurso de inauguração, o Reitor salientou que aquela Escola era uma escola politécnica. A formação que se pretendia visava: um domínio profundo dos conhe‑cimentos de base; uma cuidada formação técnica orienta‑da para a profissão; e o desenvolvimento das competên‑cias requeridas pelas necessidades das empresas locais. A mensagem implícita nas suas palavras não era menos im‑portante do que a mensagem explícita. A mensagem im‑plícita era a seguinte: Caros amigos (os caros amigos eram os professores da escola, naquela altura eram pouquinhos, ainda) é preciso explorar e desenvolver metodologias con‑sonantes com a formação superior politécnica. Ou seja, ele acreditava que o ensino ministrado naquela escola não podia ser uma réplica do ensino ministrado na universida‑de, mas tinha que ter características diferentes, próprias e desafiava… meus senhores, mãos à obra pois têm a missão de pensar quais são essas características!

Os primeiros alunosE entraram os primeiros alunos, em Outubro. Eram pou‑cos alunos e tinham as seguintes características: grupo muito heterogéneo; com notas muito baixas no secundá‑rio, alunos que não tinham conseguido entrar na univer‑sidade, a maior parte deles habituado a um baixo nível de exigência; desmotivados; sem hábitos de estudo, uti‑lizando estratégias de aprendizagem superficial e não de aprendizagem profunda; incapazes de gerirem a sua pró‑pria aprendizagem; muito dependentes dos professores.

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Esta foi a caracterização que nos foi feita pelos docentes numa reunião em que nós (eu digo nós, porque eu era Vice ‑Reitora de Júlio Pedrosa) fomos à escola no início de Dezembro.

Um problemaOs professores mostraram ‑se muito preocupados. Pre‑ocupados, mas com uma atitude muito pró ‑activa. Após fazerem a caracterização que atrás apresentei, e bastante desafiados, nesta altura, nomeadamente pelo Reitor — e começa aqui a entrar uma componente de supervisão — manifestaram a convicção de que tinham de abandonar o tradicional método expositivo, o método que estavam a utilizar porque também tinham sido ensinados dessa forma. Consideravam ‑no agora desadequado, não só às características dos alunos, mas também às características do ensino superior politécnico, naquela área: as Enge‑nharias. O “click” estava feito. Havia ali, nitidamente, um problema a resolver e uma vontade de o solucionar.

Uma hipótese de solução. Um desafioSurgiu uma primeira solução, ou, melhor dizendo, uma hipótese de solução, uma hipotética solução. É que o Reitor tinha estado na Dinamarca e tinha contactado com o Reitor da Universidade de Aalborg. Tinha ouvi‑do falar no modo como todos os cursos dessa univer‑sidade estavam estruturados: numa lógica de aprendi‑zagem à base de projectos. Da conversa, tinha retido a ideia como interessante. E para Portugal, tinha trazido um livro, pequenino, sobre a experiência (Kjersdam & Enemark, 1994). Disse ‑nos: “Eventualmente, pode estar aqui uma solução a explorar!” Estávamos perante um de‑safio. Parecia uma solução, mas seria mesmo? O que era preciso fazer? Em primeiro lugar, era preciso conhecer bem o modelo de Aalborg, conhecê ‑lo em profundidade e saber de que é que se tratava. Nesse sentido, o Reitor assinou um despacho em que me cometia a missão de proporcionar condições “para explorar se a experiência de Aalborg faria sentido no contexto da ESTGA”. Está‑vamos perante uma solução hipotética; era preciso ver se seria ou não adequada.

Ir ver para crerAceitei o desafio e comecei por organizar uma viagem de estudo. Pus muito cuidado na sua organização. Foram se‑leccionados seis docentes para irem comigo passar uma semana em Aalborg, não para passear, mas para mergu‑lhar na Universidade das nove da manhã até às seis da tarde, permanentemente em contacto com os responsá‑veis, em contacto com os professores (podendo inclusiva‑mente entrar nas aulas), em contacto com os estudantes, conversando com eles quando estavam em trabalhos de grupo, nas horas de refeições, etc. A visita foi previamen‑te preparada. Antes de partirmos, lemos o tal livro que o Reitor tinha trazido e no qual se descrevia a inovação.

Quer isto dizer que tivemos uma primeira informação te‑órica, a partir do livro. E tivemos uma reunião, ainda em Portugal, em que fizemos um levantamento das questões para as quais queríamos trazer respostas. Também houve aqui um trabalho meu que considero que foi um traba‑lho de supervisão. Naquela primeira reunião, elencámos a lista de questões. Quando chegámos, já sabíamos o que é que queríamos ver. É claro que observámos também ou‑tros aspectos, mas a visita orientava ‑se por alguns focos de observação já direccionados. Já íamos com um quadro de referência, flexível ainda…, mas um quadro. Durante a visita, todos os dias, ao fim da tarde, nos reuníamos para ver se já tínhamos as respostas para as nossas questões, ou se ainda nos faltava saber alguma coisa importante e elencávamos as respostas obtidas e as perguntas que en‑tretanto iam surgindo. Para além da coordenação do gru‑po pela Vice ‑Reitora e do levantamento de um quadro de compreensão, devo destacar que a visita teve uma exce‑lente organização por parte dos nossos anfitriões. Eles or‑ganizaram tudo como devia ser, com muita informação, a vários níveis, e com possibilidade de observarmos, ques‑tionarmos, interagirmos. Durante a visita, o cepticismo inicial dos seis docentes que comigo constituíam o grupo deu lugar ao entusiasmo. E o entusiasmo foi crescendo de tal maneira que eu, que à partida era a pessoa mais entusiasmada, senti necessidade de lhes refrear o deslum‑bramento. Por isso, a partir de certa altura, era eu quem dizia: “Cuidado! Isto talvez não seja tão bom como isso! É preciso pensar!” Foi, de facto, muito interessante ver as pessoas a transformarem ‑se nas suas convicções. Depois da visitaE o que aconteceu depois da visita? Da visita resultou um relatório feito pelos docentes. Relatório muito críti‑co, muito circunstanciado, com a descrição pormenori‑zada do modelo e a apresentação dos prós e dos contras. Eu não vou falar sobre os prós e os contras, porque isso daria uma outra conferência; neste contexto estou a abor‑dar o caso numa perspectiva de supervisão. O relatório, muito sensato, continha um alerta, dizendo que nunca se deveria proceder a uma transposição linear, ou seja, não se podia pegar no modelo de Aalborg e pô ‑lo a funcio‑nar em Águeda sem mais. O relatório foi objecto de um parecer meu, em que eu dizia: “Proponho que se expe‑rimente na ESTGA. Divulgue ‑se o relatório por todos os departamentos da UA”. Porquê o teor deste parecer? Embora a Universidade estivesse envolvida num proces‑so de revisão curricular, muito profunda e abrangendo todos os cursos, (processo que eu estava a coordenar e ficou conhecido como o “Repensar os currículos”), eu entendia que, por muito desafiante que a nova aborda‑gem pudesse ser, seria um enorme risco tentar organizar todos os cursos da instituição nessa lógica, como chegou a ser aventado. Não tinha dúvidas de que se devia expe‑rimentar, na ESTGA, nos cursos de Engenharia, porque

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se tratava de uma escola nova, pequena ainda, uma esco‑la que enfrentava um problema, uma escola que naquele momento só tinha cursos de engenharia e um corpo do‑cente muito motivado. A ESTGA parecia ser um cenário muito bom para fazer esta experiência. Por outro lado, como estávamos a querer mexer com os cursos univer‑sitários também, numa abordagem que antevia Bolonha, a divulgação do relatório aparecia ‑me como mais um factor indutor de mudança e aí residia a razão do meu desejo de divulgação.

E a experiência foi feita na ESTGA. Como? Quere‑rão, naturalmente, saber a resposta.

Período de incubaçãoHouve um longo período de incubação. Este longo pe‑ríodo de incubação foi intencional, porque nós, e nome‑adamente eu, achamos que as inovações não acontecem por imposição hierárquica, mas se desenvolvem nas cul‑turas institucionais. E, portanto, era preciso tempo para que a ideia amadurecesse na própria escola. Esse perío‑do de incubação envolveu a passagem da mensagem do grupo da visita para o colectivo da escola que, naquela al‑tura, era constituído por uns vinte e tal docentes. Tínha‑mos plena consciência de que só valeria a pena avançar para um projecto daquela natureza, para uma inovação daquelas — uma inovação que ia exigir muito dos alunos e sobretudo ia exigir muito dos professores — se os do‑centes, os vinte e tal e não os seis, estivessem de acordo com a inovação. Era preciso ganhar para a ideia aqueles docentes que tinham ficado em Portugal e que, portanto, não tinham visto o PBL — aqui chamo ‑lhe PBL, porque estou a falar de lá, o PBL em acção. Eu tinha testemunha‑do a conversão daqueles seis, mas agora era preciso que aqueles seis convertessem os outros. Era preciso envol‑ver todos os docentes na discussão da ideia, para que a decisão fosse colectivamente assumida, e não fosse uma decisão de seis docentes e do Director da Escola, ou uma decisão da Reitoria da Universidade, que podia realmen‑te dizer “Faça ‑se!”, mas não disse.

A formação dos docentes em situaçãoSimultaneamente, e ainda antes de os docentes da escola tomarem a decisão final de quererem avançar com a ino‑vação curricular, começámos a organizar um conjunto de acções de formação porque, obviamente, era preciso formar os docentes para trabalharem noutros moldes. Realizaram ‑se, assim, uma série de workshops. Numa ca‑racterização muito sintética, direi que essas workshops de formação seguiram uma abordagem de “aprender a fazer fazendo”. Isto é, se se queria implementar um projecto, uma inovação curricular que assentava numa “aprendi‑zagem à base de projectos”, então os próprios docentes, na sua formação, tinham de meter as mãos na massa e formar ‑se através de projectos. Qual era o projecto que eles tinham em mãos? Era exactamente o novo projecto

de desenvolvimento curricular. Com efeito, aprenderam a trabalhar com a abordagem à base de projectos, ABP, fazendo, eles próprios, um projecto de desenvolvimento curricular. Começou assim a criar ‑se uma comunidade de aprendizagem, num espírito de aprendizagem real‑mente colaborativa entre os docentes todos.

Numa determinada altura, achámos interessante perceber a opinião dos docentes sobre esta formação… De um estudo de caso que foi feito sobre esta inovação (Gil et al., 2004), retirei as três ideias que me pareceram mais significativas relativamente à qualidade da forma‑ção. A primeira é a ideia de que o formador era um fa‑cilitador. Houve várias workshops, algumas feitas por pessoas de Aalborg e várias feitas por um professor es‑cocês que tinha ajudado a Universidade de Aalborg na concepção e implementação dos cursos e que, depois de ter vindo cá uma vez, acabou por ser o principal fa‑cilitador da aprendizagem. A sua filosofia é a seguinte: “Vocês não pensem que sou eu quem vou tomar as vos‑sas decisões! Eu estou aqui para vos ajudar a decidir!” Colocava ‑se, nitidamente, numa posição de facilitador. A segunda ideia a reter é a da criação de uma comuni‑dade de aprendizagem centrada na acção de desenvol‑ver o currículo. Os docentes acharam que a ideia de tomarem o currículo como um projecto a desenvolver tinha constituído uma excelente oportunidade de for‑mação e possibilitado actividades cheias de significado. Ou seja, aquilo que lhes estavam a pedir para fazer nas acções de formação — e fora das acções de formação, porque trabalharam imenso entre as acções — eram coisas que faziam sentido para eles. Os docentes foram efectivamente muito envolvidos, porque, como já disse, sentimos que eles tinham que “meter as mãos na mas‑sa”. Uma das maneiras de “meter as mãos na massa”, naquela fase em que ainda não estava decidido se se ia por esse caminho ou não, foi a construção de um cur‑rículo virtual, ou seja, eles organizaram ‑se de forma a responderem à seguinte pergunta: se nós formos por esta abordagem à base de projectos, o que é que isso implica? O que é que implica em termos do currículo, que disciplinas deve haver, como é que essas discipli‑nas se organizam e se relacionam com o projecto, como é que se distribuem as horas, como é que são os projec‑tos, quais são as implicações que isso tem na distribui‑ção de serviço docente, nos horários, nos calendários e até quais são as implicações na própria arquitectura da Escola… (A Escola estava a ser construída, portanto, havia ainda a possibilidade de se tomarem decisões e, por isso, o arquitecto da Universidade tinha também integrado o grupo que me acompanhou na visita a Aal‑borg). Os docentes organizaram ‑se em três grupos para estudar, realmente, quais as implicações da hipotética inovação através da simulação de um currículo virtu‑al, ainda antes de conceberem o próprio currículo, que depois vieram a desenhar.

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A emergência de um líderUm outro factor muito interessante e que também tem a ver com a questão da hetero ‑supervisão é que, no de‑correr do processo, surgiu um líder natural. A partir de certa altura nós começámos a pensar: “É preciso haver aqui uma pessoa que lidere este processo!”. Eu estava a liderar, mas estava a liderar à distância. Era preciso haver um, de entre eles, que liderasse. Mas nós não queríamos dizer: “É fulano!”. Houve, porém, um docente que, mes‑mo sem nunca ter sido indigitado, emergiu como líder natural devido ao seu entusiasmo, empenhamento, nível de questionamento nas acções de formação e iniciativa, e, portanto, os colegas começaram a olhar para ele como o tal líder, o tal supervisor institucional, se quiserem, na minha concepção. Quando fizemos o estudo de caso, ele dizia: “Eu não queria que os meus colegas me conside‑rassem como ‘é ele que nos vai liderar’, pois receava que isso provocasse a atitude de ‘se é ele que lidera, então ele que diga o que é para fazer!’”

Em sínteseBom, em síntese — antes de passar depois a uma refle‑xão sobre os aspectos supervisivos deste caso, direi que a consciência de um problema (o fraco nível de motiva‑ção e de conhecimentos dos alunos e a natureza do en‑sino superior politécnico) levou à análise de um cenário pedagógico alternativo: a “aprendizagem à base de pro‑jectos”. Este processo foi institucionalmente apoiado ao mais alto nível. Penso que, pela maneira como fui con‑tando o caso, já viram que houve intervenção desde o mais alto nível: a Reitoria. Criou ‑se um cenário que foi explorado nos seus princípios e nas suas implicações, não só através da visita a Aalborg, como na construção do currículo virtual, antes de a decisão ser tomada e co‑lectivamente assumida pelos docentes da escola, tomada numa reunião de escola em que os docentes disseram claramente que queriam fazer a experiência. A inovação envolveu um projecto colaborativo (o desenvolvimento do currículo) em íntima ligação com um programa de desenvolvimento profissional docente. As duas dimen‑sões, desenvolvimento curricular e desenvolvimento profissional, estiveram sempre muito articuladas.

Reflectindo agora sobre o processo de inovação Retomarei aqui as ideias expressas num artigo que escre‑vi sobre o processo de mudança (Alarcão, 2007). Houve neste processo o equacionamento de um problema e a vontade de agir. Muitas vezes equacionamos os proble‑mas, mas depois falta ‑nos a vontade de agir. Neste caso existiu, da parte dos docentes, uma vontade muito forte de agir, a tal atitude pró ‑activa a que me referi. Houve também uma visão. A ideia do Reitor, de que, eventual‑mente, teríamos no PBL um cenário alternativo revela, realmente, uma visão. Assistiu ‑se a uma liderança desde

as cúpulas institucionais. Privilegiou ‑se a construção de um modelo mental estruturado e estruturante. As pes‑soas, quando iniciaram este projecto, sabiam o que que‑riam, como queriam realizá ‑lo, pois tinham compreendi‑do o que era, efectivamente, a “aprendizagem à base de projectos”. Houve uma partilha de ideias e o desenvolvi‑mento de uma cultura comum. Existiu, e isto que eu vou dizer foi muito salientado pelo tal facilitador escocês, pessoa com muita experiência de apoio a projectos em vários países. Ele disse ‑nos uma coisa que nos fez pensar. Disse que nunca tinha visto um alinhamento tão gran‑de entre uma estratégia institucional, o desenvolvimen‑to curricular e a requalificação dos recursos docentes. Normalmente, afirmava ele, verifica ‑se a existência da re‑qualificação dos recursos docentes e o desenvolvimento curricular, mas falta a estratégia institucional. Neste pro‑cesso houve um triângulo de coesão e de consolidação que, na opinião dele, foi determinante. Para além disso, procedeu ‑se a uma monitorização permanente do pro‑cesso; nós estivemos sempre muito atentos.

Considero que existiram várias fontes de supervisão. Já referi algumas; vou referir ainda outras, ou vou, enfim, trazê ‑las à luz do dia, mas quero dizer ‑vos que se tratou sempre uma supervisão muito discreta. E desenrolou ‑se um processo reflexivo sistemático num ambiente institu‑cional que poderemos mesmo chamar de escola reflexi‑va, tendo em conta a definição que vos apresentei.

E sobre o processo de supervisãoPassarei agora a fazer alguns comentários sobre o proces‑so supervisivo. Confesso ‑vos que só agora olhei para este caso na perspectiva da supervisão. É esta a inovação que a preparação desta conferência me proporcionou. No caso apresentado, encontro a supervisão como o proces‑so de criação de contextos de aprendizagem, muito na lógica do que disse no início da conferência. Ela permi‑tiu um contacto com o PBL em acção, em Aalborg. Pos‑sibilitou a criação de uma comunidade de aprendizagem, através do envolvimento dos docentes num processo de concepção curricular. Criou, além disso, a articulação entre a acção e a formação, porque houve uma grande homologia de processos e a formação aconteceu em con‑texto de acção profissional: o desenvolvimento de um currículo com uma nova abordagem.

Tipos de supervisão envolvidos Reflectindo um pouquinho mais, poderemos interrogar‑‑nos sobre que tipos de supervisão estiveram envol‑vidos neste processo. E encontro nitidamente três: uma supervisão hierárquica, uma hetero ‑supervisão e a auto ‑supervisão. Existiu uma supervisão hierárqui‑ca, desempenhada pela Reitoria. Havia uma atenção muito grande ao desenrolar do processo, lançavam ‑se SOS’s, apresentavam ‑se desafios… mas também ha‑via os apoios, os docentes sabiam que podiam sempre

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contar connosco. Houve nitidamente uma supervisão hierárquica, não no sentido daquela supervisão de olhar por cima do ombro, mas uma supervisão da hierarquia, humanizada, se quiserem. Além deste tipo, existiu uma supervisão colaborativa muito grande, nos grupos de docentes, e entre os docentes e o consultor, o facilitador e criou ‑se uma forte atitude de auto ‑supervisão. O que acho interessante é que estes três tipos de supervisão foram todos articulados. Existiu um entrosamento, uma articulação coerente entre os vários tipos; eles não eram desfasados, como se cada um tivesse uma existência in‑dependente da dos outros.

As características da supervisãoVejamos agora que características teve a supervisão pra‑ticada Podemos dizer que proporcionou a criação de um clima de mudança. Foi fomentadora de uma cultura par‑tilhada, criada através da interacção, através do diálogo. Foi uma supervisão com características muito democrá‑ticas. Reparem que nunca houve uma imposição, nunca se disse “Façam assim!” Deixou ‑se que as pessoas deci‑dissem. Mas, de vez em quando, foi preciso apressar um bocadinho o processo, pois foi um processo que demo‑rou bastante tempo e era preciso não o deixar arrefecer. A supervisão foi muito situada, muito na lógica daquelas frases do facilitador, do formador, quando dizia: “Vamos lá ver o que é que faz sentido para vocês!” “Olhem para Aalborg, mas olhem para Aalborg vendo o que é que faz sentido para vocês!”. Por brincadeira, nós até dizíamos que era o projecto Aalborg à moda de Águeda, porque realmente o desenho curricular tem aspectos diferentes. Inclusivamente, tem uma coisa muito diferente, com a qual nem eu nem o facilitador concordámos, mas que deixámos passar porque achámos que os docentes, na‑quele momento, acreditavam que tinha que ser daquela maneira e era melhor que eles fizessem da maneira como entendiam, porque depois iriam chegar, como já chega‑ram, à conclusão de que nós afinal tínhamos razão. Qual era a diferença? É que em Aalborg a “aprendizagem à base de projectos” começa logo no primeiro semestre do primeiro ano e os docentes da ESTGA acharam que os alunos não vinham preparados para isso e que era uma ruptura muito grande começar logo no primeiro ano com a nova abordagem. Por isso introduziram a “apren‑dizagem à base de projectos” só a partir do segundo ano. E nós, embora achando que a decisão não era a melhor, entendemos que não devíamos impor a nossa visão e deixámos que eles fizessem de acordo com as suas con‑vicções. Agora, já estão a utilizar o projecto, pelo menos, a partir do segundo semestre do primeiro ano e a ideia é trazerem ‑no para o primeiro semestre do primeiro ano.

A supervisão praticada caracterizou ‑se também por um processo de desafios e apoios, já comentei isto várias vezes… E posso ainda dizer que, na minha maneira de ver, um factor também importante foi a confiança mani‑

festada nas potencialidades dos próprios docentes para inovarem. Os docentes sentiram, realmente, que nós confiávamos neles e que tínhamos um respeito muito grande pelas suas decisões. Isto tudo pode traduzir ‑se naquilo que se chama muitas vezes o “empowerment”, palavra difícil de traduzir, mas que, no fundo, evidencia a ideia de conferir poder aos professores, não é?

A finalizarA finalizar, gostava de vos trazer a visão de um autor aus‑traliano, escrita há vinte anos, mais exactamente há vinte e dois anos. Escrevia ele: “Este tipo de supervisão, como (empowerment), é muito mais pessoalizado, contextua‑lizado e situado. Na sua agenda está o apoio aos profes‑sores e aos estudantes, no seu processo de atribuição de sentidos. Nesta alternativa, a única razão para a existên‑cia de supervisores é assegurar que os recursos físicos, intelectuais e emocionais, de que os professores necessi‑tam para dar sentido à sua pedagogia, estão disponíveis” (Smyth, 1984, reproduzido em 1991, p. 74).

Estamos perante a ideia do supervisor também ele como facilitador, criador e dinamizador de contextos da aprendizagem e confiante em que os professores têm po‑tencialidades para aprender, para se desenvolverem, para continuarem a sua qualificação, precisando para isso ape‑nas de contextos favoráveis, de apoios e desafios.

A CONCLUIR

Por tudo o que acabo de vos expor, em 2002, designei o supervisor como um líder de comunidades aprendentes.

Notas

1. O texto que aqui se apresenta teve a sua origem numa conferência proferida, a 3 de Maio de 2007, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, integrada num Ciclo de Conferências organi‑zado pela Unidade de Investigação e Desenvolvimento de Ciências da Educação da qual sou consultora.

A sua génese permite identificar, na estrutura discur‑siva, alguns indicadores de oralidade, que propositada‑mente não quis eliminar na sua totalidade para não desca‑racterizar em demasia o contexto de enunciação. Referências bibliográficas

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Conferência proferida na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, a 3 de Maio de 2007

Isabel Alarcã[email protected]

Professora catedrática aposentada da Universidade de Aveiro

Alarcão, Isabel (2009). Formação e Supervisão de Professores: Uma nova

abrangência. Texto da conferência proferida na Faculdade de Psicologia e de

Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, a 3 de Maio de 2007. Sísifo.

Revista de Ciências da Educação, 08, pp. 119‑128

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Outros artigos

Saberes e práticas: uma experiência de análise sobre dimensões culturais na atividade docente

Rejane Penna [email protected]

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

Gilberto Ferreira da [email protected]

Centro Universitário La Salle (UNILASALLE/Canoas)

Resumo:Do exercício da aplicação de uma metodologia de análise de fontes orais na pesquisa em educação, especificamente no campo da formação de professores, este trabalho¹ dá continuidade a um per‑curso que vem sendo realizado pelos autores na busca por construir alternativas de compreender a atividade docente, colocando como protagonistas no ato de narrar as experiências, os próprios educadores. Nesse trabalho, direcionamos nosso foco à seguinte questão: ao narrar sua atividade profissional, como o professor hierarquiza os diferentes saberes adquiridos em sua vida na prática docente? O que lhe parece que o instrumentalizou melhor: a família, a universidade, a formação acadêmica continuada ou a efetiva experiência prática do dia ‑a ‑dia escolar? O texto está estrutura‑do em quatro momentos. No primeiro situa ‑se a origem da problemática, no segundo apresenta ‑se o suporte teórico ‑metodológico, no terceiro a estrutura das narrativas e, por último, apresentam ‑se as conclusões.

Palavras ‑chave:Formação de Professores, Experiência docente, Dimensões culturais, Fontes orais.

Penna, Rejane & Silva, Gilberto Ferreira (2009). Saberes e práticas: uma experiência de análise sobre

dimensões culturais na atividade docente. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 08, pp. 129‑138

Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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FORMAÇÃO CULTURAL E TRABALHO DOCENTE: A CONSTRUÇÃO DE NOSSA PROBLEMÁTICA

A abordagem do presente texto tem sua origem na elabo‑ração da proposta de trabalho apresentada em um even‑to no campo da educação (Silva & Penna, 2007), onde investigamos como os professores traduziam suas expe‑riências de vida na prática docente.

A metodologia contou com entrevistas semi ‑estru‑turadas, utilizando recursos da hermenêutica e da análise de discurso, possibilitando ‑nos esclarecimentos em rela‑ção a alguns nexos existentes entre vida privada e vida profissional, os laços entre cultura do cotidiano e cultura escolar, bem como as relações estabelecidas pelos atores sociais entre o seu passado e a experiência do presente.

Na verdade, nosso estudo, bem mais do que criticar ou tentar estabelecer novas luzes sobre as questões da metodologia com fontes orais e a formação de profes‑sores, demonstrou a necessidade de novas reflexões, no sentido de enfocar a associação dos saberes da experiên‑cia que foram mobilizados, dando especial destaque às dimensões e práticas culturais na ação docente.

Em relação a nossa opção pelo uso das entrevistas, verificamos que a proliferação de pesquisas que as inte‑gram como metodologia na área da Educação pode ser comprovado pela revisão bibliográfica realizada por um grupo de pesquisadoras da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, contemplando o período de 1985 a 2003 (Bueno et al., 2006, p. 387), a partir, princi‑palmente de informações contidas no banco de teses da Capes, demonstrando a polissemia de termos, enfoques e abordagens teóricas.

O conhecimento do conjunto de críticas, ambigüida‑des e fragilidades que constituem os estudos que se am‑param na metodologia de fontes orais (histórias de vida, entrevistas estruturadas ou semi ‑estruturadas, temáticas,

etc.) não desestimula a sua utilização, ao contrário, pois compartilhamos da opinião de Nóvoa (2000, p. 25), que registra a crença no seu potencial inovador, pois “pelas histórias de vida, pode passar a elaboração de novas pro‑postas sobre formação de professores e sobre a profissão docente”.

E assim, na abordagem da problemática existente, unimos as atividades necessárias à consecução de um Termo de Cooperação Técnica assinado entre o Centro Universitário La Salle e a Prefeitura Municipal da cidade de Canoas, visando a pesquisar os bairros da cidade, às aulas do Mestrado em Educação na instituição de ensino em que trabalhamos, integrando na pesquisa os alunos de uma das disciplinas, denominada de “Linguagens da Memória”. Esta, desenvolve ‑se sob a forma de docência compartilhada, discutindo métodos de leitura e compre‑ensão das diferentes formas de interpelação da memória, com ênfase nas fontes orais e na fotografia.

Dessa forma, enfrentando o desafio de, mais uma vez, testar as possibilidades da metodologia qualitativa que desenvolvemos (Silva & Penna, 2006, 2007), direciona‑mos nosso foco à seguinte questão: ao narrar sua ativida‑de profissional, como o professor hierarquiza os diferen‑tes saberes adquiridos em sua vida na prática docente? O que lhe parece que o instrumentalizou melhor: a famí‑lia, a universidade, a formação acadêmica continuada ou a efetiva experiência prática do dia ‑a ‑dia escolar? Desse modo, ao mesmo tempo em que exploramos o exercício prático da proposta metodológica de análise de fontes orais nos utilizamos da problemática específica apresen‑tada como estratégia para a construção da reflexão no campo da formação de professores.

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ENFRENTANDO O DESAFIO: A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO

Para dar sentido às nossas indagações e podermos con‑tribuir na discussão da problemática, realizamos entre‑vistas semi ‑estruturadas com professoras de uma escola da rede pública localizada no bairro Fátima, município de Canoas, escolhido pelos interconveniados para ser pesquisado, selecionando duas entrevistas de profes‑soras com experiência de docência, gestão e orientação escolar².

Em sala de aula, conjuntamente aos alunos da disci‑plina do curso de mestrado, elaboramos questões orien‑tativas à entrevista, bem como nos instrumentalizamos para a experiência da intersubjetividade inerente a toda a entrevista, estudando e discutindo as questões mais pre‑mentes a respeito dos mecanismos que regem as repre‑sentações e a memória, bem como do método de analisar narrativas.

Partimos do pressuposto de que na construção social da memória, um grupo trabalha intensamente em con‑junto. Há uma tendência de criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros “universos de discurso” e “universos de significado”, que dão ao material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos. Ou seja, o ponto de vista do grupo constrói e procura fixar a sua imagem para a História.

Essa memória, ao mesmo tempo una e múltipla, é o elemento básico para que o indivíduo situe ‑se no mundo e diga para si e para os outros quem ele é. Em outros termos, a memória é a base da construção de uma auto‑‑imagem.

Como entrevistamos professoras que atuam em es‑colas, apreendemos essa realidade como interventora na narrativa, pois se os depoimentos são, ao mesmo tempo, experiências individuais e coletivas, envolvem aspectos não apenas de viver em determinado tempo e sociedade, mas a de integrar uma instituição, com toda a complexi‑dade que esta variável carrega.

Consideramos, nos limites deste texto, o conceito de instituição em seu sentido amplo, tendo em vista suas características essenciais, quais sejam, algo estruturado historicamente, que existe na sociedade para a satisfação de necessidades, apresentando durabilidade no tempo e com funções variáveis (Araújo, 2003).

Acreditamos, também, que a idéia de instituição só tem sentido e seu papel só é efetivamente desempenha‑do a partir do esforço do grupo que a movimenta e lhe dá vida, perpetuando ‑se alguns sentidos e renovando ‑se outros com a chegada de novos membros. Esta dinâmi‑ca pode ser apreendida, em parte, pelas narrativas dos próprios atores ao organizarem suas lembranças de traje‑tórias diferenciadas, contraditórias ou complementares (Penna & Graebin, 2004).

Para compreender determinada dinâmica nas narra‑tivas de pessoas que no momento da entrevista mantêm atividades na instituição relacionada de uma forma ou outra às questões abordadas, utilizamos o conceito de face³, criado por Goffman, na década de setenta, comple‑mentado por Browm e Levinson (citados em Galembe‑ck, 1997), que estabeleceram a distinção entre face positi-va (aquilo que o interlocutor exibe para obter aprovação ou reconhecimento) e face negativa (“território” que o interlocutor deseja preservar ou ver preservado).

Também a noção de cultura adquiriu em nosso mé‑todo papel central e estratégico, uma vez que compreen‑demos cultura(s) como sistemas simbólicos que operam a partir da existencialidade humana experienciada, do‑tando a vida de sentidos e significados, ou seja, sistemas simbólicos que possibilitam a construção de realidades dinâmicas nas quais o homem se humaniza e se torna singular. Ou como diz Denys Cuche (2002, p. 143) a cul‑tura “é uma produção histórica, isto é, uma construção que se inscreve na história e mais precisamente na histó‑ria das relações dos grupos sociais entre si”.

Partindo ‑se do pressuposto de que o espaço social é integrado pelos indivíduos que o percebem e represen‑tam a partir dele, pois, de acordo com Stuart Hall (2003), o sujeito fala sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica. Então, todo o sistema de representa‑ções, independente do que enfoca, poderá ser associado a um quadro cultural, por intermédio do qual adotamos determinadas posições e narramos algo.

Esses pressupostos indicam que as palavras e expres‑sões mudam de sentido de acordo com as posições sus‑tentadas por aqueles que as empregam, adquirindo seu significado em referência aos quadros culturais nos quais essas posições se inscrevem, descentralizando a noção de sujeito e centralizando a problemática nos sistemas de representação.

Trabalhando a interpretação das narrativas nessa perspectiva, levou ‑se em consideração que os discursos não se revelam de imediato, necessitando de uma me‑todologia de análise que desvende os nexos e relações estabelecidos entre experiência, memória e narrativa, buscando ‑se recursos para compreender a entrevista para além de simples intuições, superando a ilusão de transparência (Bardin, 1995, p. 9).

Reconhecemos e valorizamos, por intermédio de uma leitura de base hermenêutica, que nossa análise en‑volveu sempre nossa subjetividade, controlada porém pela própria exposição do método. Adotou ‑se como ponto de partida a metodologia descrita e aplicada por pesquisadoras na área da Educação, no caso o traba‑lho desenvolvido por Szymanski, Almeida e Prandini (2002), adaptando ‑a e articulando ‑a aos já mencionados quadros culturais.

Aplicando a metodologia, na Descrição I escolheu‑‑se trechos da entrevista que enunciavam o quadro cul‑

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tural do depoente, a partir do qual ele construiria sua forma de ver a realidade em um sentido amplo. Após, na Descrição II, recortou ‑se trechos do relato rela‑cionados com a trajetória profissional, no sentido de destacar a visão da prática docente em seus múltiplos aspectos, bem como os elementos formadores desta prática, com uma primeira descrição. Então, iniciou‑‑se a reflexão, realizando ‑se o trabalho intradescritivo, a partir de leituras e releituras do texto de referência

(narrativa). Reescreveu ‑se a Descrição II, no sentido interpretativo, a partir da seleção dos itens emergentes, referidos como unidades de significado, relacionando‑‑a com o quadro cultural, denominando ‑se de Descri‑ção III, onde surgiu a síntese.

ESTUDANDO NARRATIVAS: A CONSTRUÇÃO DA INTERPRETAÇÃO

1 ª e n t r e v i s t a — d a d o s d a e n t r e v i s t a

entrevistado 1 : c .e .m.Dados pessoais e profissionais: Sexo feminino, casada, uma fi‑lha, idade em torno de 40 anos. Magistério, curso de Jardim do MEC. Trabalhou com alfabetização. Após, realizou um curso de Pedagogia em uma universidade privada, às sextas e sábados, formando ‑se em 2003. Atualmente é professora do Estado, exercendo as funções de vice ‑diretora em um turno e orientadora educacional em outro.

entrevistado 2 : n. j.c .r . Dados pessoais e profissionais: Sexo feminino, casada, duas fi‑lhas, idade em torno de 40 anos. Graduação em letras e pós em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Atualmente é profes‑sora do Estado, exercendo as funções de diretora pela terceira vez na escola.

d e s c r i ç ã o i q u a d r o c u l t u r a l

c.e .m.A visão da família e juventude atuais: “Eu, com onze anos já cozinhava, meus irmãos tudo trabalhavam fora, minha mãe era funcionária aqui. Eu sempre estou dizendo, meu pai é militar, com horário para tudo. [...] Eu acho assim está faltando limite e tempo para as crianças. [...] Meu pai era militar, tinha horá‑rio para almoçar e para jantar. Hoje em dia as crianças comem com o prato na mão, vendo televisão. A mãe não está para es‑quentar a comida, não comem. Têm umas meninas da sétima serie que chegam na hora do recreio com bolacha, com leite com Nescau, ou com suco. Têm umas que comem, as funcio‑nárias dizem assim: C. olha essa aqui, magra, magra, magra! A que mais consome bolacha. Ah não! (reproduz fala da me‑nina), a mãe deixou comida lá pouquinha, meu irmão comeu tudo e não sobrou pra mim. Ou: Ah! eu estava com preguiça, me acordei ia fazer uma Miojo mas não fiz. Aí vim sem almoçar (conclui a reprodução da fala da menina) Mas não é por que não tem comida, entendeu, eu acho assim que a família está faltando nesse lado, assim... de compromisso, né?. Ensina tua filha a cozinhar. Minha mãe era merendeira do Estado e meu pai era militar naquela época. [...] Era nesta escola, a minha irmã foi secretária aqui, a outra minha irmã deu aula para o

pré ‑zinho, então por isso digo que eu tenho muita coisa, sabe, eu quando comecei a fazer a orientação na ULBRA eu dizia assim para a minha irmã: eu não vou ficar a vida inteira dando aula, eu quero mais, porque eu me criei nesta escola, estudei até aqui na oitava série, então, eu tenho muito, muito amor”.

Exemplificando, cita conversa com uma mãe: “Aí você diz — seu filho estava com sono, dormiu em aula — Ah, mas eu nem sei que hora ele foi dormir. […] Ele tem televisão no quarto. Ele vê filme até tarde. Comenta: Não tem limites, sabe! Então, assim, porque eles trabalham muito, acabam dando tudo para o filho”.

n.j.c .r .Visão da família e da juventude atuais: “A sociedade está muito cruel. Hoje em dia a violência está imperando muito, sendo muito difícil trabalhar com a desestruturação familiar, que é o que mais nos incomoda e prejudica dentro da escola. [...] A gente aqui ama muito o aluno, conversa muito com o aluno e aí vê que há falta de base. A falta de estrutura na família prejudica em noventa por cento o nosso trabalho dentro da escola”.

Exemplificando: “Quando a gente chama o aluno para con‑versar ou chama a mãe ou chama o pai, normalmente a mãe não tem tempo, o pai não tem tempo, dificilmente eles con‑seguem vir a escola. Aí, quando tu consegue conversar eles te dizem: Ah, eu não sei mais o que fazer, eu não tenho mais pulso, deixo com vocês, vocês que tentem. Eles passam o que é da família para nós”.

d e s c r i ç ã o i i d i m e n s õ e s e p r á t i c a s c u l t u r a i s n a a ç ã o d o c e n t e

Como a professora descreve a escola em que atua:

c.e .m. “É uma escola com um nível sócio ‑econômico que não é dos mais pobres. São poucos os alunos que tu tem que dar uma ajuda. [...] A classe é média e até alta. Nossos alunos até tem celular, MP3”.

“Tem a Vila Prata. Foram abertas umas casas populares que fizeram com que o ônibus passe. Então, a gente logo que abriu a Vila Prata, viu que era gente bem pobre mesmo. Eles vêm a pé, vem de bicicleta de lá. [...] Então, o que acontece às

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escolas da região lá, no Rio Branco, né, eles vem vindo, eles não têm vaga, eles vêm e pegam aqui”.

“Quando a gente começa, já chama e começa um trabalho individual do aluno. A gente chama ele, conversa muito”.

Exemplificando: “Teve um caso na sexta ‑série, de um alu‑no que veio de lá. Claro já tem uma vida assim, oh, não é o pai que cuida, é um tio que pegou para criar, que veio do interior, então já vem numa vida bem… um currículo bem, né. Ele começou a não se dar com todos da sala, começou até no recreio. O guri era da 6ª, já tinha 16 anos e começou a olhar para as gurias da 7ª, 8ª e, sabe, um dia eu estou no recreio e ouvi um bolo. Entrei no meio do bolo e disse: — o que houve? Aí disseram: — Ah, é o fulano, começou a querer brigar. Eu separei [...] Aí, eu chamei ele e disse: olha aqui ó, a nossa escola nunca fui uma escola de briga. Os professores sentam aqui, tomam café, não dá correria. [...] Se tu não está gostando — a nossa escola não precisa, não é uma escola par‑ticular que precisa de salários para pagar os professores — vocês estão aqui porque a gente quer que vocês estejam aqui. A gente não precisa de vocês aqui para isso. Então, se você quer, você tem que estar aqui gostando. Se tu não estás te adaptando no recreio, com as pessoas, com os professores, tu tens que procurar uma escola que tu te sintas bem. Ninguém podia olhar para ele que já saía dando. [...] Nós fomos dois meses fazendo ata com ele, chamamos ele e chamamos o que ele tinha de responsável. E aí ele não ficou”.

A partida do aluno: “Foi embora. Ninguém mandou. A gente não manda ninguém, entendeu; [...] A gente acaba fa‑zendo a família enxergar que o aluno não está se adaptando na escola, o clima não é bom. Aí a gente consegue, por telefone, falar com outra escola — tem vaga para a 6ª série?”.

n.j.c .r .“Diferença de classe social a gente não tem, é bem parelha assim a nossa classe social, são poucas exceções. Realmente a gente tem uma diversidade bem grande no primeiro ano, quando eles entram, que eles vêm de escolas como a Rio Branco, aqui do próprio bairro mesmo, do outro lado ali de Niterói, daquela Vila Fernandes, [...] e aí realmente fica difícil esse primeiro ano. Até a gente passa as normas de convivência que a gente tem, até tu mostra para o aluno que aqui no Guarani é assim e que lá onde ele veio é diferente. Não entramos no mérito cada escola, mas aqui é assim que funciona, tu entras às 7h e 40min e sai às 12h. Têm regras, é difícil, [...] e aí têm muitos que vão embora, né? Que não querem entrar nas regras e eles acabam saindo”.

Fo r m a ç ã o c u l t u r a l e p r á t i c a d o c e n t e

Os conhecimentos teóricos adquiridos na universidade ou formação continuada c .e .m. “Acho que ajudou muito. [...] Claro que a teoria te ajuda um monte. A gente trabalhou em cima de muitos teóricos”.

“A gente tem que se reciclar, eu acho que tem que ler mui‑to. Eu leio bastante, a gente vê noticiários, coisas assim”.

“Nós não temos tempo aqui na escola, porque os cursos são sempre durante a semana [...] você sabe que escola esta‑dual é difícil, não tem professor substituto”.

“Um dos que eu não abro mão, que eu sempre participo é o de Orientação que a ULbra dá todos os anos”.

n. j.c .r .“Meu pós está me ajudando muito mais do que a minha for‑mação de graduação. Porque o meu pós me fez mudar bastante a minha visão das coisas, de entender melhor as pessoas e de tentar ajudar mais do que eu era antes; tanto que na Psico‑pedagogia a gente trabalha muito a relação com o outro, de buscar realmente”.

“A rede pública oferece alguma coisa, seminários, encon‑tros... esse ano até está acontecendo bastante. A gente tenta proporcionar a ida dos colegas aos encontros, mas é difícil porque cada vez que o colega vai a gente fica sem o professor; então, a gente tem que suprir mas nem sempre a gente conse‑gue liberar o professor para isso”.

Os conhecimentos adquiridos na prática docente e as dificuldades de colocá -los em prática

c.e .m. “A gente trabalhou com professores do município de Porto Alegre, professores de Gravataí, professores do interior. Por‑que Brasil, 500 anos, veio muita gente de tudo que é lugar, da praia, de Tramandaí... Daí que tu vês a realidade de cada mu‑nicípio. [...] Aí um chega lê e fala, ah, mas a minha escola é assim, mas a minha não é assim...”

“Eu quando saí da ULBRA, eu saí fresquinha, sabe, achan‑do que é tudo cor de rosa. Aí eu cheguei e nós fazíamos uma técnica lá. [...] Vamos fazer o programa com todo o gás e aí chega uma hora que começa a ter umas barreiras, que tu co‑meça a ver que não é bem isso”.

n.j.c .r .“Os temas transversais e essa preocupação diminuiu bastante, existia a preocupação, mas não era tão fácil de botar na práti‑ca. Muitas vezes definiam um eixo, uma linha de trabalho, um tema né? Mas colocar na prática não era fácil de trabalhar”.

A valorização da equipe

c.e .m. “Acho que a equipe é tudo. É o coração da escola. [....]. A gen‑te é muito unida e isso faz com que a gente consiga”.

“Um tempo atrás, quando eu saí daqui na oitava, eu fiz magistério e um monte de coisa, ficou uma escola assim, bem começou a cair e essa vice ‑direção e direção resgatou, sabe? Era para ser uma escola de maloqueiro, de marginal”.

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n.j.c .r .“A gente tem professores aqui na escola que trabalham assim, de fazer o aluno pensar e criar em cima do que ele está traba‑lhando. Já outros são bem tradicionais, o livro, o giz, o quadro e vamos lá! E aqui na escola a gente tem muito essas duas li‑nhas de trabalho bem definidos de professores que trabalham com a questão do aluno pensar, de criar, de ler livros, de tentar por conta dele se aprimorar no conhecimento e outros que está tudo pronto ali”.

“O Guarani quando eu entrei aqui tinha quatrocentos e poucos alunos, era uma escola pequena e tinha só o ensino fundamental. Daí, na gestão da minha outra colega, que era diretora eu fui vice dela, a gente conseguiu, com a ajuda de alguns pais, colocar o ensino médio. A escola foi crescendo, foi melhorando, o Guarani cresceu. [...] Eu vi a escola crescer, eu ajudei ela a melhorar, então a gente tem esse carinho, né?”.

Vida privada: A herança cultural familiar e as atividades de lazer

c.e .m. “A gente sai muito de noite. Nós temos um grupo alemão, a gente faz baile italiano e baile alemão, de chopp. Eu sou da comenda, faz dez anos, agora dia 20 de outubro que nós temos a comenda do Baile Alemão. Então, de 15 em 15 dias, desde março até outubro, que é o mês do baile, a gente se reúne, são 15 casais”.

n.j.c .r .“a gente tem cinqüenta e poucas pessoas e mais mil e poucos alunos nos teus ombros e aí fica difícil de tu não pensar, mas realmente eu tento separar as coisas. Final de semana, separar as coisas, família e casa não é tão difícil, mas a gente sai bas‑tante, viaja”.

“Faço parte do CTG, que é aqui do bairro”.

Como a professora vê sua prática docente

c.e .m. “Eu trato eles que nem meus filhos, quando eu converso. Às vezes fico duas horas conversando com cada um e tem uns que me dizem: professora eu não tenho essa conversa com minha mãe”.

“Tu tem que amar o que faz e amor a camiseta, gostar [...] Então a minha vida é mais aqui dentro da escola que na minha casa. Então, se eu não amo e não me sinto bem onde estou trabalhando, não vai render, não vai ter nada”.

n.j.c .r .“A parte de conhecimento está ficando em segundo plano. A gente está tendo muito mais que trabalhar o lado emocional

do aluno, a educação do aluno, do que o conhecimento em si, embora a gente tente reverter”.

“Na escola pública a gente tem essa questão de envolvi‑mento que eu não vejo na escola particular; a direção aqui se envolve e conhece seus alunos e na escola particular é difícil a diretora se envolver e conhecer os alunos”.

d e s c r i ç ã o i i i unidades de significado

O papel da famíliaPais ausentes, filhos sem limites e consumistas.

Visão da escola pública A escola não depende dos estudantes para sobreviver. Somen‑te os que se adaptam é que têm espaço no local.

Apesar das dificuldades, o professor da escola pública, em uma atitude de superação, motivada pelo afeto (amor), conse‑gue proporcionar um atendimento quase que personalizado ao aluno, ao contrário da escola privada.

Inclusão e integraçãoA escola não inclui, apenas integra indivíduos que respeitem as regras previamente estabelecidas.

O papel do aprimoramento culturalO relato das atividades de lazer não as diferencia de qualquer outro tipo de profissional.

A leitura, a freqüência a teatros, cinema, exposições, semi‑nários, concertos, etc., não integram suas preferências do que descrevem como lazer.

Como uniram suas experiências na vivência familiar, universidade e trabalho na escola para construir suas visões de educadorasa) A teoria é necessária, mas o conhecimento que realmente

as orienta define ‑se pela experiência adquirida ao longo da docência.

b) O professor deve atualizar ‑se por intermédio de leituras ou da mídia (não especificado o grau de hierarquia ou o tipo de leitura).

c) Lazer compartimentado. Fora do ambiente docente, não buscam atividades culturais que diversifiquem ou ampliem os elementos de retorno para a docência (por exemplo, re‑fletir sobre como uma peça teatral ou filme pode integrar uma atividade com seus alunos).

d) A professora, por vezes, exercita um diálogo com seu aluno que substitui aquele que deveria ocorrer na família, dei‑xando o conhecimento técnico em segundo plano.

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CONSTRUINDO A CONCLUSÃO

É impossível esgotar as possibilidades dos depoimentos em um único artigo, mesmo que realizando recortes rela‑cionados ao nosso objetivo. Sendo assim, abandonando a ambição de desvendar todas as dobraduras de um de‑poimento, discutiremos alguns aspectos que nos levaram a construir algumas idéias do que ouvimos, transcreve‑mos e discutimos.

A investigação crítica não pode desconsiderar que os depoentes tiveram um interesse próprio no depoimen‑to que prestaram aos pesquisadores: eles decidiram o que lembrar, qual História contar, o que recortar, o que montar, o que esquecer. Ao se trabalhar com o indivíduo recolhe ‑se seu depoimento, mas não se domina o proces‑so de produção do seu pensamento, com seus mecanis‑mos internos, tanto físicos como psicológicos.

Há que se observar, preliminarmente, que as pessoas entrevistadas ainda possuem vínculos com a instituição, estando conscientes dos possíveis efeitos positivos ou negativos de seus depoimentos. É uma questão a ser en‑frentada para quem pretende abordar o recente segmento da História Institucional. Mas, um certo risco do edolcu‑ramento dos fatos e das relações, de forma inconsciente ou proposital, não invalida os depoimentos, tomando ‑se apenas o cuidado de analisá ‑los sob a luz desta variável: envolvimento afetivo e profissional, além da organização de uma memória imersa em locais, pessoas, relações e fatos que a geraram.

Para compreender determinada dinâmica nas narra‑tivas de pessoas que no momento da entrevista mantêm atividades na instituição relacionada de uma forma ou outra às questões abordadas, conforme mencionado no item em que descrevemos a metodologia, levamos em consideração o conceito de face. Partimos do pressu‑posto de que, a partir do quadro geral de interação face‑‑a ‑face, no qual são realizados os textos falados, o fato de alguém entrar em contato com outro constitui uma ruptura de um equilíbrio social pré ‑existente e, assim, representa uma ameaça virtual à auto ‑imagem pública construída pelos participantes do ato conversacional.

As circunstâncias particulares em que se desenvol‑veram as entrevistas fizeram com que a preservação da face fosse uma necessidade constante, pois no caso em questão, as pessoas ainda atuam na instituição que serve de suporte ao relato da experiência.

Com base nessa circunstância, passamos a explorar os aspectos sintetizados na descrição III, extraindo ‑se elementos potencializadores para a compreensão e pro‑blematização da(s) narrativa(s).

Em um primeiro momento, destacamos a afirmação categórica de que a escola não depende dos estudantes, somada a trechos dos depoimentos que descrevem situ‑ações que demonstram que somente os que se adaptam é que têm espaço nela. Na realidade, ao criticar o modo de

vida contemporâneo: consumismo, pais ausentes pelo excesso de trabalho que sustenta este mesmo consu‑mismo, os depoentes, paradoxalmente, inserem a escola pública na mesma lógica que nos remete para, metafo‑ricamente, aludir ao lugar ocupado pelos modernos e contemporâneos shoppings em relação à cidade: “(...) o shopping tem uma relação indiferente com a cidade à sua volta: essa cidade é sempre espaço externo, sob forma de autopista ladeada por favelas, avenida principal, bairro suburbano ou rua de pedestres” (Sarlo, 2004, p. 16).

Assim sendo, seria a escola, nessa alusão, uma espécie de shopping em relação ao seu espaço externo — a co‑munidade. A mesma comunidade tão referenciada como desafio aos educadores para incluí ‑la nas práticas e ações realizadas pela instituição escolar. Pois se a escola não depende dos estudantes, oriundos deste espaço externo, qual seria então a finalidade da escola em localizar ‑se em determinada região ou comunidade? Simples ponto es‑tratégico para a montagem de uma arquitetura com pre‑tensas funções pedagógicas? Se acaso fosse isso, as ações pedagógicas encontrariam seu sentido em que público, se não aquele que está do lado externo?

Por mais que se observe, igualmente, esta autonomia da escola em relação ao seu exterior, isso historicamente tem se revelado contraditoriamente nos discursos dos profes‑sores. Talvez aqui, inclusive, encontre ‑se a relação que se apregoa tão necessária na construção de propostas peda‑gógicas que articulam relações com seu exterior, com a co‑munidade, diga ‑se, com as famílias dos estudantes. Porque aspirar a relação com o exterior se na verdade constrói ‑se um trabalho em que a escola mantém um distanciamento regimentar deste mesmo espaço? É um desejo instalado que não corresponde ao discurso que se revela na oralidade dos depoimentos. Por onde começar a desconstruir esse en‑trelaçamento que sufoca e distancia escola e comunidade?

Sem a preocupação em esgotar esses questionamen‑tos agregam ‑se outros, como por exemplo, a compreen‑são sobre os atos de incluir e integrar derivados do fato de que é preciso, segundo as narrativas, que o estudante se adapte à escola, às suas regras, às suas normas. Por inclu‑são no espaço escolar compreende ‑se a mudança radical da perspectiva do trabalho educacional, não se limitando a contemplar somente os alunos que apresentam algum tipo de deficiência física ou mental, mas também aquelas outras dimensões que encerram as questões de ordem social, cultural, étnica e econômica, apenas para lembrar algumas, visando o sucesso no âmbito das aprendizagens desencadeadas pela instituição escolar (Mantoan, 2003).

Para que isso ocorra é preciso que a escola construa estratégias de adaptação e acolhimento das diferenças, valorizando e permitindo que esse outro contribua para que a própria instituição amadureça e qualifique sua ação educativa. Nessa perspectiva, há uma inversão da concep‑ção de que o estudante deve adaptar ‑se à instituição es‑colar, mas sim que a instituição procure alternativas para

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trabalhar com as diferenças. Ainda assim, a noção de inte‑gração, se aplicada a este contexto, acaba por não se ajus‑tar, pois se a escola permanece rígida em suas regras e nor‑mas predeterminadas o melhor que há a fazer por parte do estudante “estrangeiro” (novo) é adaptar ‑se.

Duas categorias elaboradas por Lévi ‑Strauss (1996) ga‑nham reatualização, contribuindo para a compreensão des‑se fenômeno. A primeira delas refere ‑se à atitude antropo‑fágica que busca no processo de assimilação do estrangeiro a alternativa para a inserção e integração na comunidade. Nesta perspectiva, o estrangeiro permite ser “devorado” e procura transformar em suas, as práticas e normas ins‑tituídas na sociedade/comunidade receptora. A segunda, antropoêmica, considera que uma vez havendo resistência ou dificuldades que não oportunizam a inserção, deixe ‑se “devorar”, restando a expulsão, modernamente falando, o “convite” para que encontre o lugar em que se sinta melhor, que se adapte com mais qualidade. Inclusive com a ajuda da própria comunidade (escolar) encaminhando para fora, para longe do convívio, ou no sentido literal da categoria straussiniana, o estrangeiro é “vomitado”, expelido.

Em relação ao papel do aprimoramento cultural, sabe‑mos as limitações inerentes a qualquer método de trabalho, e neste caso, no uso de fontes orais na pesquisa em educa‑ção e, especificamente no universo da formação de profes‑sores, observam ‑se algumas características que exigem um deter ‑se mais cuidadoso. Nesse sentido, procurando ligar a questão da inclusão com a da formação cultural do docen‑te, parte ‑se da constatação de que os relatos das atividades de lazer, oferecidas pelas (os) professoras (es) entrevistadas (os) não as diferenciam de qualquer outra categoria pro‑fissional — a leitura, a freqüência a teatros, cinema, expo‑sições, seminários, concertos, etc. — não integram seu rol de preferências. Para tanto se destacam duas direções para a compreensão desta observação. De um lado, as práticas culturais inseridas no escopo de uma perspectiva oficial das manifestações e produções culturais; de outro, a pró‑pria noção de cultura como conceito que embasa a visão sobre as opções cotidianas das educadoras. Sem procurar sermos prescritivos, consideramos que talvez fosse produ‑tivo, considerando o papel do professor na formação das novas gerações e a valorização da produção clássica e do reconhecimento da importância das tradições de um povo, que mais educadores refletissem sobre a lacuna entre as di‑ferentes práticas culturais. A preocupação aqui é encontrar uma forma de articular e valorizar essas práticas culturais sem criar um processo hierarquizador que coloque uma em relação de superioridade com a outra, mas de aliar e reconhecer ambas em prol do que Cuéllar (1997, p. 109) preconiza como sendo o “fortalecimento da identidade de grupo e da organização social e comunitária; de produção de energia cultural; de superação de sentimentos de infe‑rioridade e alienação; de educação e conscientização, de promoção da criatividade e da inovação; de estímulo ao discurso democrático e à mediação social”.

A segunda direção obriga a retomada da noção de cultura. Para tal empreendimento, na busca por sinteti‑zar, sem querer menosprezar a complexidade que reveste o debate instaurado em mais de um século sobre essa no‑ção, ampara ‑se em duas perspectivas. Na primeira delas a cultura tem sido vista com uma função instrumental no processo de desenvolvimento, e, portanto, transformada em bem de consumo, ou ainda, simplesmente como um meio para alavancar o desenvolvimento. Numa segunda direção, a noção de cultura, sem excluir sua contribuição para o desenvolvimento das sociedades, ganha acento e valor em si mesma, conferindo sentido à nossa existên‑cia, portanto o desenvolvimento é pensado como ele‑mento importante para o crescimento cultural de uma comunidade (Cuéllar, 1997).

Por fim, analisando como as professoras uniram suas experiências na vivência familiar, universidade e trabalho na escola para construir sua visão de educadoras, desta‑camos que em seus pontos de vista observa ‑se que con‑sideram a teoria ministrada na universidade como ne‑cessária, mas o conhecimento que realmente as orienta define ‑se pela experiência adquirida ao longo da docên‑cia. A assunção da experiência se sobrepondo à forma‑ção acadêmica e as contribuições do universo teórico são evidenciadas nas narrativas. Destaque ‑se que não são ne‑gadas as contribuições, entretanto, a ênfase acaba recain‑do na experiência que forja o próprio domínio sobre a ação docente. Tal constatação vem se constituindo como um preceito nas narrativas de educadores. Igualmente em outro trabalho (Silva & Penna, 2007) essa evidência se fez presente de forma ainda mais acentuada. Subja‑cente a isso, estudos recentes têm corroborado tal ênfase na experiência já a partir do processo de formação inicial com estudantes de cursos de pedagogia, onde a solicita‑ção por trabalhos que envolvam a prática e possibilitem o acúmulo de experiências é antecipado à apropriação do conhecimento teórico (Bukowitz, 2003; Lelis, 2001; Silva, 2007; Teixeira & Cuyabano, 2004).

O que se coloca é a retomada da discussão que a te‑oria ocupa para a transformação das práticas sociais, em especial das práticas educativas. O latente a isso é que a teoria somente não consegue realizar mudanças, mas sim contribuir para que os problemas vivenciados no cotidiano das práticas possam sofrer um alargamento das compreensões e com isso permitir uma efetiva e pau‑latina mudança nas ações, portanto estabelecendo uma correlação entre ambas (Lelis, 2001).

Para além deste ensaio reflexivo suscitado pelas nar‑rativas postas em evidência para a construção deste tra‑balho, outros aspectos emergem de forma latente para a continuidade, tais como a questão da assunção do professor assumindo papéis que deveriam ser cumpri‑dos pela família, ou então, como derivação desta mesma questão a retomada da discussão sobre os processos de profissionalização da ação docente.

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Notas

1. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí‑fico e Tecnológico — Brasil.

2. Defendemos a transparência na utilização das fon‑Defendemos a transparência na utilização das fon‑tes orais. Nesse sentido, as entrevistas, na íntegra, estão disponibilizadas no Arquivo Histórico e Museu La Salle, o que as transforma de depoimentos em fontes históricas. O trabalho de pesquisa encontra ‑se em andamento, por‑tanto, a seleção das duas entrevistas utilizadas neste traba‑lho priorizou educadores que apresentavam maior tempo de experiência no magistério, exercendo também funções de gestão escolar, igualmente, as análises desenvolvidas aqui são restritas aos dados obtidos das duas entrevistas utilizadas.

3. Goffman denomina face a expressão social do eu individual, designando por processos de representação (face -work) os procedimentos destinados a neutralizar as ameaças (reais ou potenciais) à face dos interlocutores ou a restaurar a face dos mesmos.

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1. A Sísifo é uma revista universitária de Ciências da Educação, em formato electrónico, publicada pela Unidade de I&D de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa;

2. A Sísifo é de consulta livre e está disponível no endereço http://sisifo.fpce.ul.pt.

3. A Sísifo é publicada em duas versões (portuguesa e inglesa). As traduções são da responsabilidade da revista;

4. Cada número da revista terá um responsável editorial que poderá solicitar o parecer de especialistas para, em conjunto com o Conselho Editorial, assegurar a qualidade e o rigor científico dos textos;

5. O núcleo central de cada número da revista é constituído por um dossier temático. A revista aceita trabalhos académicos sob a forma de artigos, notas e recensões de livros em Ciências da Educação. Pode aceitar artigos já publicados em línguas estrangeiras desde que inéditos em português;

6. As colaborações devem ser submetidas através do e ‑mail [email protected];

7. Os artigos não devem exceder os 40. 000 caracteres, incluindo espaços, notas e bibliografia (excepto quadros e gráficos); os estudos, notas e review articles não deverão ultrapassar os 30. 000 caracteres e as recensões individuais 10. 000 caracteres;

8. Os artigos devem ser acompanhados de um resumo de 1. 200 caracteres, 4 palavras ‑chave e os dados de identificação do autor (instituição, áreas de especialização, últimas publicações e elementos de contacto — telefone e e ‑mail);

9. As citações e referências a autores no texto seguem as normas seguintes: (autor, data) ou (autor, data, página/s); se houver referências a mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, elas serão diferenciadas por uma letra minúscula a seguir à data: (Bastos, 2002a), (Bastos, 2002b). No caso de a referência se referir a mais de dois autores: (Bastos et al., 2002).

10. As notas de rodapé deverão ser reduzidas ao estritamente indispensável e conter apenas informações complementares de natureza substantiva; a bibliografia será colocada no final do artigo e conterá apenas a lista das referências feitas no texto ordenadas alfabeticamente e por ordem cronológica crescente para as referências do mesmo autor;

11. Critérios bibliográficos:

a. Livros: Bastos, C. (2002). Ciência, poder, acção. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. b. Colectâneas: Bastos, C.; Almeida, M. & Feldman ‑Blanco (orgs.) (2002). Trânsitos coloniais: diálogos

críticos luso -brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. c. Clássicos, nomeadamente em tradução, indicar data da 1. ª edição e nome do tradutor: Espinosa, B. (1988

[1670]). Tratado teológico -político. Tradução de D. P. Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional ‑Casa da Moeda.

s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .º 8 · j a n / a b r 0 9 i s s n 1 6 4 6 ‑ 4 9 9 0

Sísifo, revista de ciências de educação:Instruções para os Autores

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d. Artigos em revistas: Cabral, M. V. (2003). O exercício da cidadania política em perspectiva histórica (Portugal e Brasil). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18 [indicar o número do volume anual], 51 [indicar o número da revista], pp. 31 ‑60.

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