revista subversa vol 4 nº5 março2016
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Subversa n.º 5 | volume 4 | 15 de março de 2015TRANSCRIPT
SUBVERSA
ERICK AMANCIO | RAFAEL SIMEÃO
LUIZ DA FRANCA | RENATO OLIVEIRA | ANDRÉ GUILHERME
PAULO GABARDO | SABRINA DALBELO | EBER S. CHAVES
EDSON AMARO | PEDRO BELO CLARA
Vol. 4 | n.º 05 | março de 2016 ISSN 2359-5817
Ilustração | THAÍS NOZAKI
2
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 4 | n.º 05
© originalmente publicado em 15 de março de 2016 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações
THAÍS NOZAKI| PORTFÓLIO | FACEBOOK | BEHANCE
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realidade.
3
ANDRÉ GUILHERME | OMAR | 6
EBER S. CHAVES | À MARGEM | 9
EDSON AMARO | OURIQUE | 11
ERICK AMANCIO | BOTÃO DE FLOR | 14
LUIZ DA FRANCA | CEILÂNDIA À ESQUERDA – 24,8km | 16
PAULO GABARDO | DÍPTICO LITERÁRIO: CONTROLE | 22
PEDRO BELO CLARA | O TARDAR DAS ESTRELAS | 34
RAFAEL SIMEÃO | OSMOSE NÃO AUTORIZADA| 36
RENATO OLIVEIRA | ERVAS DANINHAS | 39
SABRINA DALBELO | O BOM REI NOS ENSINOU TUDO | 43
SOBRE THAÍS NOZAKI: “Silenciei essa paixão por anos” | 46
SUBVERSA
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EDITORIAL
“Eu te dou pão e preferes ouro.
Eu te dou ouro mas tua fome legítima é de pão”
Clarice Lispector (Jornal do Brasil, 1971)
Em mais um número de Subversa, buscamos unir nestas páginas
uma diversidade literária que procura o equilíbrio. Por um lado, o
equilíbrio estético que foi feito a partir de um trabalho de análise,
seleção, revisão, ilustração e edição. Do outro, o desequilíbrio que a
leitura é capaz de provocar, colocando à mostra a dicotomia que a
literatura põe em prática: encontrar na forma estética “perfeita” a
melhor maneira de instalar o incômodo.
Na escrita, não há equilíbrio possível. Não há a definição da
localização exata “daquele” ponto. Quando muito, o escritor vivencia
por alguns instantes um momento de unificação, quando consegue
encontrar a maneira de exprimir algo não comunicável em linguagem
comum. Se esse ponto fosse permanente, é fácil concluir: não haveria a
próxima obra, o próximo texto.
Neste quinto número do nosso Volume 4, as ilustrações de Thaís
Nozaki contribuem para que a experiência seja ainda mais confortável
e desconfortável, simultaneamente. A artista é de São José dos
Campos, trabalha com técnicas variadas e interligadas que vão do
grafite à aquarela. Seus trabalhos podem ser adquiridos em forma de
sketchbooks com capas autorias.
Desejamos uma ótima leitura a todos.
As editoras.
5
Em breve, Subversa versão impressa #2
6
7
ANDRÉ GUILHERME | Santo Antônio da Platina, PR.
Enquanto o Sol dormia
alguém vagava
Quando o Sol acordou
continuou vagando
enorme vaga
rebentando
contra o cais
de uma calçada
qualquer
Ancorado à beira-bar
Omar se afoga
no seu próprio
vômito
Homempeixe fora d’água
nem peixe
nem homem
só água
ardente
Enquanto o sol arde
queima a pele
OMAR
8
no asfalto quente
nem vê passar
toda essa gente
que também o ignora
Omar ressaqueado acorda
e espera a Lua
pra poder subir
ANDRÉ GUILHERME está em aprendizado da arte poética há 3 anos. Costuma
dizer que é a voz que fala em sua cabeça e toma conta dos seus sentidos.
Tem um poema publicado no Concurso Rima Rara de 2013, realizado pela
Biblioteca Nacional Brasileira. Atualmente está tentando publicar um livro
independente. Cursa o 2° ano de Letras/Inglês na Universidade Estadual do
Norte do Paraná – UENP. Tem como influências Paulo Leminski, Fernando
Pessoa, em especial Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, Arnaldo Antunes,
Ferreira Gullar, dentre outros. | ANDRÉ[email protected]
9
EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.
Se não fosse por escravidão
não dariam a João
o pão
que o diabo amassou
com falsa jura
e a vida seguiria
sem perder
À MARGEM
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a ternura.
Se não for por zombaria
não darão a Maria
a alegria
de uvas viníferas
do vinho da amargura
e a vida seguirá
sem perder
a ternura.
Mas e quanto a José,
que dorme o presente
do sonho de Ícaro deitado
numa cama de gato
posta em cima do telhado?
A vida, ainda assim, segue.
Aqui, no novo velho mundo
para Joãos, Marias e Josés
a vida segue
– e persegue
periférica, desigual
entre ruas, becos e vielas
à margem, invisível
num recanto qualquer de alguma
metrópole latino-americana.
EBER S. CHAVES (Itaquara, 1979) atualmente reside em Vitória da
Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro, apreciador de
psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e fantasia,
rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. | [email protected]
11
12
EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ.
A Maria Lúcia Wiltshire
(que não leu o Gita).
“Se, pois, me julgares capaz de te contemplar em teu
supremo esplendor, ó Onipotente, mostra-me a tua face e
revela-me o teu excelso Eu Cósmico.”
(Bhagavad-Gita, Capítulo 11, 4; tradução de Huberto
Rohden)
“A matutina luz, serena e fria,
As estrelas do pólo já apartava,
Quando na cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso o animava.”
(Camões, Os Lusíadas, III, 45)
Sou mais que o Alfa e o Ômega.
Estou aquém do A e além do Z.
Vagueio entre os verbetes da Britânica.
Sou um livro que nunca lestes.
Eu sou o Deus que adoras
E o ídolo que renegas.
Estou em todos os hinos
E na fé que desconheces.
Sou o pai que castraste
E o filho que te apunhala.
Sou o irmão que vendeste
OURIQUE
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E o discípulo que traiu-te.
Sou a noiva que esperas
E o carrasco que te aguarda.
De teu avô sou o berço, sou teu santo leito adulterino
E o esquife de teus netos.
E tu? Quem és? Afonso? Arjuna? Moisés?
Por que me buscas? Que és para mim?
Que tenho para ensinar-te
Que sejas capaz de entender?
EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública
estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do
romance "Valperga", de Mary Shelley e no site Amazon, em formato e-book,
sua tradução da tragédia "O Rei Saul: Davi em Gilboé" de Vittorio Alfieri. |
14
15
ERICK AMANCIO | Niterói, RJ.
se até numa terra
destruída pela guerra
entre escombros e pedras
nasce um botão de flor,
por que não deveria
minha poesia
nascer da revolta
do ódio
e da dor?
ERICK AMANCIO é poeta, artesão e estudante de Sociologia da Universidade
Federal Fluminense. Tem paixão pela arte marginal, seja literária, musical,
teatral, performática, visual ou plástica. Frequenta saraus e publica de forma
independente o fanzine poético "Certo na Contramão", distribuindo-o como
poeta de rua pelo Rio de Janeiro e Niterói. Mantém também um blog e uma
página no facebook que fazem parte do mesmo projeto do fanzine
(www.facebook.com/certonacontramao | zinecertonacontramao.blogspot.c
om.br). Escreve poesia pela necessidade de gritar contra os opressores, de dar
vazão à sua revolta, de resistir e de agir politicamente também através da
arte, mas às vezes escreve sobre amor, tristeza ou sobre seus pensamentos
filosóficos e suas viagens psicológicas. |[email protected]
BOTÃO DE FLOR
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LUIZ DA FRANCA | Rio de Janeiro, RJ.
Certa vez eu tomei um café colombiano, daquele passado num coador
bem velho; acho que de uma avó mineira, daquelas bem velhas; acho
que de uma família tradicional, daquelas bem velhas; acho que de um
Brasil metido a novo, mas que na realidade, habitado por povos
menores, e é bem velho, e não se descobriu por completo. Falava que
certa vez tomei um café, pois bem, certa vez tomei um café com
Clarice Lispector. Estávamos em seu apartamento no Rio de Janeiro,
ela, já de mais idade, devorava-me com um olhar doravante sedutor;
CEILÂNDIA À ESQUERDA – 24,8KM
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eu, ainda de menos idade, importunava-a com citações, essas,
secretas em tempos posteriores. Certa vez, quando tomei o tal café
com Clarice Lispector em seu apartamento no Rio de Janeiro, ela, num
rompante só, me disse algo estupendo sobre Brasília, ou será que eu li e
certa vez delirei?1 Nesse (possível) delírio de prosa, deparei-me com
uma instigação, disse ela, A cidade de Brasília fica fora da cidade, ou
algo do feiti(ç)o. Certo, digo isso pois algo é certo em minha reflexão
retumbante. Ribomba em mim certa bateria em hardcore, certo
espaço que tenho certeza, eu vi girafas! e nada delas me fez mais
certeza que a incongruência conflitante da Brasília, a dos povos loiros e
mortos; e dos morenos e menores, se resolvia na fronteira. Pois, onde
mais teria essa fronteira? A sim, tenho certeza, trata-se de Ceilândia!, e
vibrei com minha certeza, ainda que ela carregasse no semblante uma
certa dúvida. Cá comigo, onde podemos encontrar as girafas? E o que
mais são as girafas senão o devir-animal de D.H. Lawrence, como
Deleuze certa vez me instigou. O que digo, quando digo que é um
Devir-animal? Digo que, como já dizem, o HOMEM é, em sua
estabilidade, potente e se impõe a tudo e o animal, uma proliferação
capaz de levar o HOMEM à fronteira da civilização. Não costumo
proferir obviedades, digo a Clarice, mas essa Brasília que falta cavalos e
girafas, na realidade se trata de uma possibilidade de
desterritorialização. Ela debocha de mim, sem que eu perceba ela
provou num retoque que aquela cidade constantemente se
desterritorializava e se reterritorializava, mas como? Sendo assim, ela ao
chegar, percebia a distância e que, como dito antes no texto2, aquele
lugar fora habitado por HOMEMs(e mulheres) altos, loiros e cegos (a
cegueira importa); depois, chegaram uns pequenos e menores (o
1 Certamente o autor delira, nascido em 1989, Luiz da Franca nunca pôde ter tal prosa. A realidade é que
leu Brasília ou Brasília: esplendor, ambos textos de Clarice publicados em jornais. Imagino que, no
decorrer do texto poderemos solucionar esse mistério, entretanto, certamente não foi uma prosa, mas
sim uma leitura.
2 Não era uma prosa?
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menor também importa): naquele espaço houve uma habitação
norma, derivativa, falha, onde se construiu um povo modernizado, mas
que pouco procriava, a realidade é que eram tão civilizados que se
bastavam e num espaço/tempo isso não basta; desse território surgiram
os trabalhadores menores, esses que construíram uma outra cidade,
uma cidade que devem gabiru, esses, carregados de uma outra língua,
que era a mesma língua, tencionaram as relações do que já era pleno
e estabelecido; dessa suruba um processo constante de vida e morte
tornou aquele espaço que, até então não via HOMEM, um espaço de
desterritorialização constante, sendo então, um devir-lobo-guará e
nesse dia que a espécie entrou em extinção. Certo, concordo, mas ela
continua, Brasília ainda não tem o HOMEM de Brasília, e eu pergunto se
esse não seria o habitante anterior, o tal do loiro e alto e cego, mas ela
me responde com um seco não!. Trago à tona uma questão, mas ela
segue me interrompendo, dois homens beatificados pela solidão me
criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento3, eu sou Brasília e eu
aplaudo Brasília e ela sorri sem riso. É certo, então, que aquela Brasília
da prosa é um espaço em constante desterritorialização e meu
pensamento de que isso só aconteceria em Ceilândia é falho. Desisto4,
pois o que pensei ao iniciar meu relato, esse da prosa com Clarice, em
seu apartamento, tomando um café, era de que Brasília sozinha seria
norma e só teria fronteira com Ceilândia. E qual a importância de
defender esse pensamento? É que o menor moreno na realidade,
ainda que aparente doente, é o encantador-curandeiro responsável
por tirar do lugar um certo espaço de um HOMEM problemático, esse,
que é certo para mim, é Brasília!. Como não pensar na capital,
habitada por parlapatões e HOMEMS, que nem sempre são o mesmo,
mas muitas vezes o são, poderia ser sozinha um processo de
desterritorialização? Clarice, sim, ela me convenceu. Convencer é
3 Confirmo oficialmente, trata-se do texto Brasília.
4 Duvido muitíssimo dessa desistência.
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(certamente) infrutífero5 e, portanto, serei breve em minhas palavras
redundantes. Brasília como grande obra nunca poderia gerar o
processo de desterritorialização, mas sim, ela como espaço de
nomadismos irá permitir essa relação apontada por Clarice. Sim, assim
sendo, como um espaço sem povo que desesperadamente precisa de
um povo para que não se torne um lugar que não o seja para pessoas.
Entretanto, Brasília não o é o que já foi ou será. Não que ela vá decorrer
do que foi, mas àquela Brasília era construída por nômades, viajantes,
pois, (provavelmente) somente quem foge iria para Brasília, do contrário
não haveriam de entrar no lugar onde não há como se entrar ou sair.
Não há, de maneira alguma, dúvida que ao conceber um espaço ao
mesmo tempo incapaz de se concretizar numa cultura, um não-lugar,
mas que, ao ser habitado por seres fabricantes de linguagem, Brasília
torna, então, a enunciar algo que não é simples, é pungente e pulsante,
é o povo que ali construiu e o povo que ali manda6, dessa maneira, é
sim possível ver o que Clarice disse. Sim, o é, mas não vou parar, menti!
e sei bem disso, não desisti nada e vou seguir em meu pensamento
original, acho que forçando um pouco aqui e um muito ali posso tirar
um leite dessa pe(d)ra. Sim, é certo que naquela época essa Brasília
produzia fronteiras e é tão certo quanto, que noutra época, talvez não.
Eu não me meto a falar que a produção de linguagem fora
normatizada e os romances enunciados pelos candangos fossem logo
territorializados, não à toa são candangos7. Sim, é certo que logo Brasília
5 Descaradamente roubado de Walter Benjamin, que, na realidade se utiliza do termo em alemão:
überzeugen ist unfruchtbar, que além de conotar a tal tradução, pode significar: super-gerar é
infrutífero.
6 O autor se esquece do sábio, aquele devir-coruja-buraqueira, escondido na terra vermelha, fabricando
fronteiras nas cátedras da UNB; ou será que ele o coloca nos que mandam?
7 Possivelmente a parte mais inteligente dessa baboseira; aqui ele traz um termo interessante,
candangos foram: primeiro, àqueles que migraram para construir Brasília; segundo, é o termo dado aos
naturais de Brasília, quando isso se tornou possível; terceiro, é (possivelmente) um termo de origem
africana que designa ordinário ou ruim; ultimeiro, é possível que seja um termo do dialeto quimbundo
que designe os senhores-de-engenho. Portanto, candango carrega um matiz de significâncias capaz de
abranger essa ideia do texto.
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se tornou um espaço territorializado novamente e fora habitado por
HOMEMS, dentre tantos outros. O que então acontece para produzir
fronteira? O que resolve Brasília? Primeiro, meto-me a resolver algo: esses
espaços não criam linguagens e perpetuam noções nocivas, noções
poucos instituídas num cenário de egoísmos pulsantes. É estar à direita e
ver o mundo a partir dos próprios olhos e não se alocar numa desforra
capaz de perceber o mais distante de si como (potencialmente) tão ou
mais essencial. Isso, necessariamente, precisa de solução. O café
acabou, puxei uma cerveja, uma IPA bem amarga, servi em duas
taças, Clarice deu um gole, fechou o rosto, achei que não iria gostar,
mas me disse, gostei e eu sorri abrindo um riso. Coloquei para tocar um
hardcore fudido, bandas sem nomes que tocam no Ferrock desde 1984
e até hoje, seja lá quando for. O som nervoso a interessou, eu acho8, e
fui mostrando calmamente cada louco punk que urrava. Festival
Revolução e Rock intitulava um movimento, mas não somente um
como uma manada, uma matilha, o espaço para onde os menores
morenos se mudaram quando um processo brabo de gentrificação
tomou Brasília. Não era mais possível aderir àquela cidade sem
perceber que lá a única fronteira capaz de resolver era a sombra suja
que ela tentava esconder. Ceilândia, como também, Taguatinga e
todas as outras cidades-satélites, eram capazes de formar em Brasília
algo que ela mesma não seria. O espaço de Brasília quando habitado
por um sertanejo ou roqueiro, certamente seria marcado por uma
linguagem correta, mas, quando no devir-lobo-guará seriam capazes
de gerar uma fronteira e, assim, produzir linguagens e, assim, ser de
novo aquele espaço que foi enquanto Clarice me proseava. Levo a ela
o seguinte, sabe a razão das girafas estarem em Ceilândia? e ela
continuou me olhando, desafiando-me, certamente. Disse-lhe, em
Brasília são todos cachorrinhos e olham com repúdio para a girafa.
Clarice logo me interrompe, mas eu gosto de girafas, bom eu também e
8 Será?
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eles? Pensamos juntos, cá eu penso, será realmente que
necessariamente Ceilândia é a Brasília fora de Brasília? e de certa forma
vou me acomodando com a ideia de que, também, a é, como
possivelmente não é, sendo ela sozinha um espaço de HOMEMS e de
animais, mulheres e crianças. Vou-me valendo da cerveja, ela vai
bebendo intensamente e nem sei se ela bebia ou beberia, mas vai
bebendo. Dou-lhe um beijo, ela me deixa e se põe a escrever. Gostaria
de ter mais prosas com ela, mas estou intimidado para pedir um instante
de sua produção. Coloco-me a ir embora para meu tempo, penso, o
movimento da cidade não pode ser justificado, mas os tempos
exprimem novas relações. Brasília, sim, faltam girafas, mas e os cavalos?
Estou certo que eles têm cavalos, mas até que ponto cavalos podem
ser nômades? mesmo quando pangarés domados. Estou certo que em
Ceilândia voa o carcará e o gabiru, ambos (novos-)candangos. Seria o
carcará produtor de fronteira? Penso que sim, sempre que ouço a
Betânia ao menos. Agora me pergunto, onde estão os incendiadores
do cerrado?
LUIZ DA FRANCA é Cientista Social formado pela PUC-Rio, sócio fundador da
produtora audiovisual independente Zênite Produções, co-fundador da revista
literária PORRADA (revistaporrada.com.br). Publica seus escritos pessoais no
tumblr 1,3,7-trimetilxantina (137trimetilxantina.tumblr.com), Escreveu o livro de
poemas Café Para publicado pela editora Multifoco em 2011, escreveu os
curtas Fora da Janela e Cigarros e Vodka, co-dirigiu o curta Cigarros e Vodka,
produziu documentário curta de artes marciais Budô. Entretanto, não se sente
nada disso. | [email protected]
22
23
PAULO GABARDO| Brasília, DF.
AGÔNICO
Acordou em pânico. Não conseguia respirar. De súbito expeliu o ar com
força sentindo o rompimento violento da membrana que encobria suas
narinas. O nariz sangrava, mas isso tinha menor relevância comparado
àquela horrível sensação de sufocamento.
Sentiu um estranho alívio, mas havia ainda alguma incoerência naquela
experiência. Sua respiração mantinha-se dificultosa. Foi quando
percebeu que a pele de sua face revestia também sua boca. É claro!
Acordara impossibilitado de respirar, se pudesse abrir sua boca isso não
teria acontecido! A língua ainda existia, conseguia tatear o interior das
bochechas e sentir seus dentes, mas não havia orifício que lhe permitisse
usufruir dessa via respiratória.
Porém isso não era tudo. Já havia se passado algum tempo desde que
acordara; por que não enxergava nada? Notou então, já quase sem
surpresa, que seus olhos também estavam fechados pelo tecido
contínuo de seu rosto, estendido sobre cada orifício de sua cabeça, até
os ouvidos. Ficou deitado por um longo tempo tentando entender o
que acontecera e o que faria.
Muito tempo depois, horas, dias, minutos, segundos, não conseguia
saber, a fome e a sede começaram a castigá-lo intensamente.
Levantou tateando o ambiente de seu apartamento até encontrar a
cozinha. Tamanha era sua necessidade de água e alimento, tamanho
era seu sofrimento físico pela desidratação e inanição, que num ato de
DÍPTICO LITERÁRIO: CONTROLE
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desespero buscou uma faca e com torpes movimentos cerrou a
superfície de seu rosto no local onde anteriormente fora a sua boca.
Comeu e bebeu como se estivesse insensível àquele horrendo ferimento
autoincutido, ingerindo sangue quente misturado a restos da comida
fria e insossa pega da geladeira.
Após sentir-se satisfeito, a dor do corte começou a incomodá-lo. Ela,
que estava inerte frente ao sofrimento anteriormente causado pela
fome e pela sede, passava a concentrar todas as suas atenções. Era
uma dor insuportável agora que estava em evidência. Sentiu que
chorava, mas o choro, impedido de escorrer pela sua face, pressionava
seus olhos, despertando uma horrível enxaqueca e aumentando sua
angústia. Desmaiou.
Retornou à consciência, esparramado no chão e com profundas dores
musculares. A boca não lhe incomodava mais, o sangue havia
coagulado. Sentiu o odor de excrementos e urina. Lembrava-se
vagamente de ter sofrido espasmos convulsivos antes de apagar, o que
certamente causara aquela degradação. Questionava o que estava
acontecendo. Não havia lógica alguma, tudo era inexplicável e
irracional. Porque havia se tornado vítima de uma condição tão
humilhante; tão sub-humana?
Sentiu-se profundamente deprimido. Respirou fundo. Tentou recobrar a
calma, não podia chorar, a pressão causada na cabeça era
insuportável. Ficou desnorteado. Pensou em suicídio, mas não tinha
coragem para seguir em frente. Tentando ignorar essa covardia e
restabelecer o domínio de sua situação, pegou novamente a faca com
a qual havia aberto sua boca, esticou a pele que cobria seus olhos e
com um ímpeto extraordinário cortou um lado de cada vez. A faca caiu
de sua mão, a nova dor era ainda pior do que as anteriores. Um misto
de sangue e de lágrimas represadas inundava sua visão e transbordava
pelo seu rosto.
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Muito tempo passou sem que conseguisse enxergar qualquer coisa, a
não ser o fluxo liquefeito que escorria de seus olhos. Era novamente livre
para chorar e chorava copiosamente como se pudesse expulsar pelos
olhos a última gota da frustração que o acometia, como se isso lhe
permitisse atingir o ponto de inflexão, a partir do qual poderia galgar e
recuperar sua condição preexistente.
Sua visão adaptava-se gradativamente ao ambiente e com isso crescia
sua confiança de que a penúria teria fim e de que a desgraça que lhe
havia ocorrido seria revertida. Havia alternativas cirúrgicas que lhe
devolveriam o contorno humano e a plena funcionalidade. O trauma
era superável, havia sofrimentos piores, havia pessoas que nasciam em
condição deficiente de tratamento impossível. Aquilo havia sido um
puro acidente, sobrenatural talvez, mas não tinha significado. Podia
com o tempo tornar-se motivo de riso, podia até ser esquecido. Não
prejudicaria sua sanidade, não lhe tornaria obtuso.
Porém a esperança era vã. Quando sua visão ajustou-se
completamente, percebeu que já não estava mais em seu
apartamento, mas num ambiente totalmente vazio, preenchido de uma
claridade infinita, sem horizontes, sem solidez, sem chão, sem teto. Em
desespero, buscou novamente a faca. Dessa vez, a coragem de
suicidar-se superava a covardia de enfrentar aquele isolamento, aquela
presença desajustada de si mesmo. Todavia, já não havia faca, nem
roupa, nem nada. Estava completamente nu, completamente sem
recursos, perdido entre a vida e a morte, sem poder qualquer uma das
duas, a não ser esperar que uma delas se realizasse espontaneamente.
MAHAVATAR
Quando me contaram essa panaceia, duvidei prontamente. Minha
dúvida, entretanto, decorreu menos da sobrenaturalidade dos eventos
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e mais do fato de as pessoas envolvidas na experiência fantástica
terem decidido retornar ao mundo real. Antes de eu mesmo buscar
reproduzir o que me haviam relatado, parecia-me completamente
impossível que alguém em sã consciência desistisse da promessa de
realização de seus sonhos idílicos.
Tinha de fazer minha própria tentativa. Primeiro porque queria testar se
tudo não era uma grande piada de mau gosto fruto de algum
charlatanismo barato baseado na exploração da fragilidade
emocional das pessoas. Segundo porque, sendo toda aquela fantasia
realmente possível, o que me parecia absurdo e improvável, me era
imperativo compreender porque ninguém havia suportado sustê-la
eternamente ou durante todo o restante da vida.
Com essa firme determinação de desmascarar e ridicularizar toda
aquela fábula, segui os passos de meus interlocutores e parti rumo à
minha própria experimentação. Coordenadas em mãos, iniciei meu
caminho.
Em um estágio impreciso da minha jornada encontrei o guru, o homem
que supostamente dominou a morte, a fome, o envelhecimento e todas
as demais condições debilitantes de nossa natureza física.
Não foi no pico mais alto das redondezas. Não foi em um ponto de
difícil acesso. O local era ermo, sim, o ar rarefeito, mas o esforço físico
necessário para se chegar lá não era impeditivo nem mesmo a
sedentários como eu. Fazia frio, porém suportável. A caminhada desde
o vilarejo mais próximo tinha durado algo em torno de quatro dias.
Exigia-se muito pouco para o que se prometia, o que me pareceu muito
suspeito. Aliás, o encontro foi tão súbito que fiquei com a impressão de
que o guru estava à minha espera, que ele havia me encontrado e não
o contrário. Tudo isso aumentou minha desconfiança. Estava tão
aficionado pela ideia de que tudo não passava de uma encenação
27
bem elaborada que qualquer acontecimento se me aparentava como
uma confirmação desse meu raciocínio.
De antemão, tomei diversas precauções para evitar ser ludibriado.
Sabendo que o ar rarefeito poderia influenciar minha cognição, antes
de perseguir o encontro, preparei-me antecipadamente com
treinamentos de altitude. Além disso, decidi não aceitar nenhum
alimento ou bebida que o guru me oferecesse, pois uma de minhas
hipóteses era de que ele fazia as pessoas ingerirem substâncias
entorpecentes e alucinógenas e depois as conduzia hipnoticamente
aproveitando o estado letárgico em que lhes tinha inserido.
Não obstante, posso hoje confessar com tranquilidade que, mesmo
com todos os meus pré-julgamentos a respeito do guru e toda a minha
má vontade em acreditá-lo, o primeiro contato que tive com a sua
presença me causou uma profunda impressão e uma grande
comoção, ainda que tenha suprimido qualquer manifestação desses
sentimentos e tenha até me recriminado pelo que considerei estupidez
e tolice sentimental.
Seguindo o que para mim se tratava de um roteiro ensaiado, o guru
ofereceu-me a mesma experiência “única” ofertada indistintamente a
todos que lhe visitavam.
- Os que aceitam minha oferta desfrutam do poder de vivenciar um
mundo paralelo, com estímulos absolutamente reais, criado
inteiramente por seus anseios e desejos, com total controle da vontade
de tudo e de todos. É possível ainda para o visitante permanecer nesse
mundo paralelo por todo tempo que lhe convier, em eterno gozo de
sua soberania.
É claro que aceitei, afinal era para isso que eu estava lá. Era preciso
seguir adiante para desconstruir toda aquela ficção. Após dizer sim,
fiquei ainda mais alerta e concentrado, atento aos movimentos do
28
guru, mas na primeira vez que pisquei, meus olhos se abriram em outro
mundo. Ao que parecia essa parte da história que me haviam contado
era verdadeira. Aquele homem realmente tinha algo extraordinário
para oferecer. Algo que seria capaz de suprir todos os meus desejos,
que me permitiria finalmente conhecer a felicidade plena; um mundo
inteiro submisso à minha vontade.
A descrição de meu mundo imaginário, todavia, está longe der ser o
mais interessante. Na verdade foi uma experiência preenchida de
obviedades, não obstante tenha revelado lados obscuros de minha
personalidade. A princípio, desacostumado com o poder recebido,
comecei com a imposição de vontades tímidas. À medida que
confirmava minha capacidade de determinar a realidade, fui
ampliando minha dominação, ficando mais ousado, experimentando
as manifestações de meu jugo ilimitado com mais e mais desenvoltura e
intensidade.
Tive absolutamente tudo, fiz todo e qualquer ato nobre ou vil. Mandei e
desmandei nos meus súditos humanos, animais e plantas. Fui o mais
forte, o mais belo, o mais rico, o mais corajoso. Todos me queriam e me
amavam. Tudo era pacífico, se assim eu quisesse, e quando despertava
em mim algum sadismo ou desejo impetuoso por conflito, todas as
batalhas eram épicas e eu sempre saía vencedor. Não havia doenças
sem cura, pelo menos não para mim, imune a todas que
eventualmente inventava. Não havia crimes sem punição, nos quais fui
assumindo o papel de juiz e carrasco, ainda que tudo que acontecia
de errado fosse consciente obra minha. Também não havia iniciativa.
Não havia diversidade nem surpresa. Não havia novidade. Todos eram
iguais e respondiam igualmente. Tudo era monótono.
Três vezes desejei que todos tivessem livre arbítrio, mas não fui capaz de
suportar a minha superioridade colocada em dúvida. Três vezes
revoguei esse desejo. Depois dessa terceira vez nada mais aconteceu.
29
Anos se passaram em completa inércia. Tornei-me semelhante a todos
os seres apáticos que aguardavam minha próxima ordem. Não havia
respostas autênticas. Nada era verdadeiro. Não era realmente amado,
nem querido, nem temido. Meu mundo minguava e morria
paulatinamente. Voltei. O retorno também era verdade.
Em meu regresso encontrei o guru ao meu lado exatamente na mesma
posição em estava quando o tinha visto pela última vez. Indiferente às
minhas aflições, o guru estampava um sorriso reconfortante. Após um
curto período, ele falou:
- Deseja perguntar-me algo?
- Quanto tempo se passou? - questionei.
- Quanto tempo deseja que tenha se passado?
- Acho não tem muita importância, não é mesmo?
- Pois bem, nesse caso façamos com que seja um piscar de olhos.
Essa frase despertou minha consciência para o ambiente que me
rodeava. De fato, recobrando meus sentidos e minha percepção de
tempo e espaço, reparei que não poderia ter estado ali na companhia
do guru mais do que uma hora, conquanto tenha passado anos no
meu mundo imaginário.
- Imagino que muitos sábios lhe tenham visitado.
- Alguns – respondeu o guru.
- Quantos aceitaram sua oferta?
- Nenhum. Minha oferta não é tentadora para sábios.
Sim!, essa era a única resposta possível. Afinal, a experiência que
vivenciei era ilusória, expletiva para aqueles que despertaram
internamente à verdadeira sabedoria superior. Compreendi que era
30
preciso ter algum grau de egoísmo, que era preciso ser autocentrado e
destituído de uma concepção de pertencimento ao mundo para se
sentir tentado a aceitar aquela oferta, características que estavam
presentes em mim, ainda que não as achasse tão cristalinas antes
daquela experiência.
- Porque voltei? - perguntei ainda sem compreender adequadamente
minha frustração.
- Porque foi esse seu último desejo.
- Mas porque não suportei viver em um lugar no qual eu tinha
absolutamente tudo que me convinha?
Com uma feição angelical e tranquilizadora, o guru disse:
- Nossa expressão individual e nosso ilusório eu não estão dissociados de
nossa natureza holística. Somos invariavelmente dotados de empatia.
Reconhecermos, de modo consciente ou inconsciente, que os demais
seres são nossos semelhantes. A supressão da vontade e da potência
criativa desses seres cria um mundo débil e entediante, limitando o
ilimitado e impossibilitando manifestações autênticas e surpreendentes,
que passam a condicionar-se à visão mesquinha do eu ilusório. Nosso eu
superior, por sua vez, reage empaticamente a essa agressão promovida
pelo eu ilusório, criando um conflito entre o material e o espiritual. Assim,
quanto mais realizamos nossos desejos aparentes, mais sufocamos nossa
capacidade de manter o mundo que criamos, pois maior passa a ser a
nossa rejeição a esse mundo. Percebemos então que a superioridade
de nossa vontade não nos traz verdadeira satisfação. Percebemos que
a imposição de nossos desejos materiais e físicos não nos traz
contentamento perene, apenas saturação, tédio e tristeza. A
continuidade desse estado resulta na morte do desejo e do eu, mas
nenhum dos que aceitam minha oferta consegue suster a experiência
31
até esse ponto. Ao primeiro sinal de anulação do eu ilusório, todos
voltam à segurança do estado anterior.
Naquele momento comecei a sentir-me constrangido pela minha
ignorância. O guru era a expressão física da energia pura. Situava-se no
limiar do autoconhecimento espiritual. Era a personificação do ser
holístico. Eu não merecia a sua sagrada companhia. Percebendo-me
inquieto, o guru sorriu placidamente e continuou:
- Os que aceitam minha oferta vivem em constante esforço para
preservar o hermetismo de suas personalidades, como se essa fosse a
verdadeira dádiva de sua existência. Sentem-se superiores aos demais.
Sentem-se entediados em relação ao mundo que conhecem. Sentem-
se vazios nesse festival de aparências. Acreditam que todo o seu
sofrimento é fruto da ausência de controle sobre o que consideram
uma realidade caótica e acidental na qual foram obrigados a viver.
Consideram-se vítimas fortuitas de uma existência sem sentido. Ofereço-
lhes então a experimentação de seus desejos egoístas realizados, a
sensação de total domínio e determinação do destino, para que
percebam que o resultado obtido é o mesmo, a infelicidade é a
mesma, o vazio é o mesmo.
Vazio. A fala do guru correspondia perfeitamente ao meu sentimento
após retornar do mundo imaginário. Apesar da frustração que aquela
verdade me causava, a compreensão que o guru tinha da minha
angústia criava uma conexão cada vez maior entre nós, causando-me
simultaneamente uma sensação de acolhimento até então
desconhecida.
- A questão, portanto, não está na mudança do mundo – continuou o
guru -, mas na autorrealização, no abandono do eu ilusório, na
aceitação de nossa empatia como característica de nossa integridade
holística, na aceitação de nossa potência criativa, na aceitação de
32
nosso eu superior, plural, indivisível e não dual, não pertencente a
nenhuma individualidade.
- Mas como poderei fazer isso, eu que sempre estive tão longe dessa
sabedoria? - perguntei.
- A redenção, de uma forma ou de outra, está disponível a todos. Para
obtê-la não é preciso exercer o controle, apenas experimentar a
entrega. Todos nós somos divinos, cada um a seu modo e ao mesmo
tempo iguais. Todos nós podemos experimentar a sublimação por meio
dessa oculta divindade, basta que nos deixemos abertos a ela, nossa
verdadeira essência. Dessa forma, nossa experiência material será
verdadeiramente abundante e sem esforço, pois será alimentada pela
harmonia espiritual.
Esse era o verdadeiro conhecimento oferecido pelo guru. Essa era a
revelação presenteada a qualquer um que o visitasse. Renasci naquele
momento e assim renasceu minha realidade. Meu eu renascido
certamente não aceitaria uma nova oferta do guru. Não era preciso
testar novamente o controle. O necessário agora era entregar-se.
Curiosamente, eu não havia trilhado o caminho do santo, nem do
extremo pródigo. Não houvera grande sacrifício, não fora preciso sofrer,
não houvera incontáveis penitências. A resposta estava no amor, na
entrega e na confiança.
Passei ainda todo o restante daquele dia em silêncio contemplativo na
companhia do guru. As montanhas que nos cercavam, o horizonte
delineado e colorido pelo sol já poente, a vida que nos envolvia, a
vibração do mundo que nos sustentava, tudo era infinitamente belo,
perfeito e dadivoso. Tudo era abundante, natural e simples, sem
artificialidades. Entregue a um estado de sublimação, ri à lembrança já
evanescente de meu mundo imaginário. Ri quando o comparei à
colossal riqueza de nosso mundo. Como não pude percebê-la antes? Ri
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ao saber que essa riqueza também era minha, criador, criatura, parte,
todo. Ri e me senti genuinamente feliz. Assim me sinto até hoje.
Ainda antes de me afastar com certa relutância da presença do guru,
perguntei:
- Qual o seu nome?
- Não tenho um nome meu, mas muitos possuem nomes com os quais se
referenciam a mim. Há diversos nomes. A escolha é sua.
PAULO GABARDO é brasileiro nascido em Curitiba, Paraná, em 1985. É poeta,
cantor e compositor. Desde 2011 reside em Brasília, Distrito Federal. É autor dos
livros Dobras no Tempo e Poesias para quem escreve cartas de amor,
lançados simultaneamente em 2014 pela editora Chiado, de Portugal.
Atualmente, parte de suas composições são apresentadas pela banda
Without Cash, da qual é vocalista. Site: paulogabardo.com
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PEDRO BELO CLARA | Lisboa, Portugal.
No horizonte do olhar há um cálice que se esvazia. À sombra dum
plátano em crescente nudez, uma branca flor entrega-se à ausência de
ser. Quem conta os passos por um vulto despidos rumo ao vazio do dia?
Ninguém sabe da morte que vive nas margens do verão. Ou
talvez as mãos sejam demasiado inocentes para se abrirem aos
espinhos que negam. Serão como as bocas, que sorriem quando os
peitos decifram a alegria dos rios?
O TARDAR DAS ESTRELAS
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A cortina que se descerra lembra a aguda imagem dos corpos.
Abandono é o seu nome. Não aquele que tanto cantaram no auge
dum desapego de pássaro azul, mas aquele que no ventre traz o esfriar
de todo o lume. Olha a romã, diria. Rasgado o fruto na impetuosidade
dos ventos, ainda palpita um rubro coração de semente. Quem socorre
a agonia dos ramos?
Os despojos da vida estregues estão à voracidade das chamas.
Crescem como lobos cercando as presas. Os fumos das frágeis formas
erguem-se a um céu em queda lenta, tão próximo que algum braço
ainda o rasga. Aproxima-se e cerca e oprime, apertando as galerias
onde aves já não pairam.
Há quem diga que a chaga dói menos quando a pele aceita o
incêndio. Seja por melancolia ou evocação de antigas dores, isto se
sabe: as estrelas tardam em cintilar.
PEDRO BELO CLARA é autor das obras “A Jornada da Loucura” (2010), “Nova
Era” (2011), “Palavras de Luz” (2012), “O velho sábio das montanhas” (2013) e
Cristal (2015). Além de prelector de sessões literárias, é actualmente
colaborador e colunista de publicações literárias. Outros trabalhos seus
poderão ser encontrados no seu blogue pessoal, “Recortes do Real” (crónicas
diversas) | https://www.facebook.com/pbeloclara/
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RAFAEL SIMEÃO | Fortaleza, CE.
Você fica me agradecendo pela paz que eu te dei, me enche de
beijos e dos maiores carinhos, lambe minha orelha, meus dedos, parece
um gato carente, não consegue largar minha mão nem enquanto tira
um cochilo e eu prefiro ficar lendo, mal consigo passar a página, nós no
sofá, diz que antes do nosso relacionamento você era tão ansiosa e
obsessiva, inquieta, enquanto agora aprendeu o valor de ser calma e
paciente, leve. Disse que não sente mais tanta vontade de matar a
OSMOSE NÃO AUTORIZADA
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caixa do supermercado que descaradamente enrola no atendimento,
contando as moedas cheia de má vontade, porque simplesmente não
gostaria de estar ali numa manhã ensolarada de domingo, ou a idosa
que paga no cartão e esquece momentaneamente a senha, quem
demora a te responder nos aplicativos de mensagem instantânea
também não precisa mais se preocupar com retaliações inflamadas e
entupimento da caixa de entrada, sobretudo sua ansiedade diminuiu
muito, a preocupação sobre o rumo da sua vida, a dependência dos
freelas, aquela incerteza sobre o futuro e sua vocação profissional. E
quando meus pais não estiverem mais aqui? Essa é uma pergunta que
já não martela tanto na sua cabeça. Você disse que isso foi
colaboração minha, que com toda minha paz consegui te contaminar,
e aí você já nem passa mais a madrugada em claro quando tem algum
compromisso importante no dia seguinte, quando acha que bebeu
café demais, quando escuta um barulho esquisito na rua lá embaixo,
quando tenta adivinhar se o nível de algum hormônio do seu exame de
sangue está fora do recomendado. Você diz que não remói mais as
coisas, aprendeu comigo a deixá-las simplesmente serem e,
positivamente, extrair ensinamentos. Ficou tão desencanada e de bem
com a vida, você me conta com um sorriso no rosto, que deixou de
navegar quatro horas diárias pelos sites de vagas de emprego e
concursos públicos, de programar durante a semana inteira a visita da
manicure e se chatear quando ela não estava disponível no horário que
você desejava, apesar de não ter compromisso algum que te impedisse
de mudar o horário. Aí você diz, brigado meu amor, você me deu a paz
de que tanto eu precisava. Só que é o seguinte, eu não te dei porra
nenhuma, você roubou isso de mim! Antes de me envolver contigo eu
era um sujeito tão tranquilo, praticava minha ioga, meditava e
mantinha a alimentação balanceada, atento às calorias e ao glúten,
corria quarenta minutos diários, respirava bem fundo quando alguém
me contrariava e tinha plena consciência de que eu tinha que ser pro
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mundo o que eu espero que ele me dê, que tá tudo interligado e
interdependente, eu fazia minha parte, ouvia mais do que falava, bebia
socialmente, escutava um disco inteiro deitado na cama com os olhos
entreabertos, atento a cada acorde, eu inclusive conseguia frequentar
filas sem me estressar, fone de ouvido no chet baker, lá longe, e às
vezes até emprestava meu ouvido pra reclamação de algum pobre
coitado, insistente citando a lei estadual de que não se pode demorar
mais que vinte minutos na fila do banco, lhe oferecia até um sorriso
complacente, estimulava sua ida à justiça, ao tribunal de pequenas
causas, aos órgãos competentes pra denunciar essa falta de atenção
às necessidades dos idosos, quiçá aos direitos humanos, eu era
realmente um bom sujeito, apoiando as causas feministas e oferecendo
meu lugar no ônibus pros mais velhos, não me importando com a
lerdeza da minha conexão com a internet tampouco com as festas de
família, que eu frequentava contrariado mas consciente da
importância desse elo. Eu, tão sereno, sempre fui incapaz de magoar
alguém, de não oferecer um obrigado a cada um que as obrigações
do dia a dia nos obriga a conviver, mas foi só você entrar em cena,
desse jeito feito um furacão, sanguessuga, asfixiante, sem me permitir
uma noite de liberdade com meus amigos ou uma desatenção ao seu
brinco novo, que eu destrambelhei, perdi o sossego e a paciência com
a vida, e agora não consigo nem parar de sacudir as pernas enquanto
tô aqui sentado escrevendo isso.
RAFAEL SIMEÃO, 28, Rio de janeiro. Não quis nos contar muito sobre ele, mas
fornece algumas pista quando escreve. | [email protected]
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RENATO OLIVEIRA | Belém, PA.
“Não se inscrevem iniciais com giz
na floresta branca do amor.”
Tes amants et ma îtresses _ Robert Desnos
As estrelas chegaram com o silêncio da madrugada. Dispersas
sob o véu negro e noturno, conspiram caladas sobre o corpo
adormecido no jardim. Ele dorme. Virgílio. O contorno do corpo
cintilando azul no reflexo das águas cansadas da piscina.
Mergulhei suavemente naquele azul. Rompi a placidez
preguiçosa da água e me aproximei silenciosamente da margem
ERVAS DANINHAS
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oposta. Na boca, o gosto de cloro. Uma sutil ardência nos olhos me
fazia piscar incessantemente, afinal, mergulho sempre de olhos abertos.
Ele. Não fosse sua respiração pesada seria possível ouvir as
batidas do seu coração... Os pés descalços, sujos de terra como raízes
expostas de uma árvore arrancada do solo, por um raio, quem sabe, lhe
impregnam de uma aparência frágil de coisa vencida, derruída. O
sereno nele pousa mansamente deixando seus cabelos úmidos. O que
sonha Virgílio?
Olhando-o assim, tão de perto, me assaltam repentinamente
pensamentos que perturbam... Afastam-me de quem busco ser. Fico
naquele meu abandono em mim. Angústia. E se ele acordasse e me
visse assim? O que eu diria? Virgílio, foi no mutismo da noite que brotou
venenosa e sorrateira, como as ervas daninhas, a intrusão incontrolável
do desejo. Assim... poético, como só ele gostava de ser.
Se chegasse mais perto, eu poderia sentir a sua barba roçar na
minha. O cheiro do vinho que sua boca emana... Talvez ainda estivesse
com aquele gosto de álcool, eu só saberia se encostasse, mesmo que
de leve, meus lábios nos teus. Ah, Virgílio.
Lembro bem da primeira vez que te vi. Eu estava perdido entre a
estante dos engajados escritores de trinta e a introspecção lírica dos de
quarenta e cinco. Tu que naquele momento era apenas um
desconhecido, distraído lendo As Horas Nuas em uma poltrona velha
num sebo no centro da cidade. Ah, e como te achei desde o princípio
misterioso com aquele ar desapegado de homem triste. Foi ali, naquele
momento exato, que eu sem saber como ou porque, te abordei. _ E já
descobriu o porquê do título? Por que As Horas Nuas, afinal? Tu sorriu.
Então viramos amigos, confesso, o que me confortava apesar das
minhas limitações de homem casado. O anel na mão esquerda, uma
mulher alegre esperando um filho meu em um apartamento financiado.
E eu ali, te rodeando, o que me bastava. Sim, era o suficiente para a
minha felicidade, te querer e te amar assim bem perto.
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E no nosso companheirismo: festas, bares e jantares. Foi em um
desses jantares improvisados em meu apartamento, enquanto meu
curumim, já com quatro anos, dormia no colo da mãe, e tu contavas
mais uma breve aventura de eterno solteiro que ela surgiu, Mariana. Tão
enérgica e solar a jovem estudante de Belas Artes com borboletas
tatuadas nas costas. Confesso, uma garota realmente atraente e que te
fez perder aquela tristeza no olhar, quando virou teu mundo.
E Mariana te roubou da minha presença. Nada fácil, a princípio,
te ver escorregando para longe, te ausentando da minha companhia,
no entanto aos poucos eu conseguia, com pesar, admitir que ela fosse
a tua felicidade.
E, numa noite de setembro, veio o noivado, mesmo hoje em dia
que está em desuso noivar. A troca de alianças. Minha esposa animada
por te ver “encontrando um rumo”, e todos os nossos amigos te
parabenizando naquela noite de champanhe e brindes. Mariana me
abraçava apertado agradecendo todo o apoio. Eu quis estar no lugar
dela...
Ah, Virgílio... O tempo escorre à conta gotas, mas agora é a
véspera do teu casamento. Despedida de solteiro. Depois de tanto
álcool e de uma puta que saiu de um bolo colorido, que te ver dormir
assim, já não me permito mais aquele pudor incomodo de resistir. É o
adeus. Aceito te levar de carro para a igreja amanhã e ser teu
padrinho. Sento ao teu lado. Sinto com os pés a superfície escorregadia
dos azulejos. O cheiro de sereno desta noite que me parece
interminável também nos embriagou. Num ato de coragem eu consigo
sentir o gosto do vinho barato da tua boca. Te beijar, enfim.
Tu te mexes procurando uma melhor posição na terra que suja teu
rosto. Nos teus pensamentos ou sonhos, nem imaginas que eu, teu
melhor amigo, tem guardado por ti um amor tão grande que te deixa
partir. Dá-se o nome de covardia? Não sei o que tu pensarias sobre
isso...
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Afasto os pensamentos. Passo a língua em redor da boca, o leve
adocicado ainda perdura. Tiro a roupa e mergulho nu na piscina.
Submergindo, de olhos abertos, vejo teu contorno na margem. A
escuridão nos engole, a mim, sobretudo.
RENATO OLIVEIRA costura com a linha sutil das palavras a tessitura da própria
descoberta. No entanto, confessa, há entre as tramas muito mais sonhos e
vontades que propriamente verdades. Graduando em Letras pela
Universidade Federal do Pará. | [email protected]
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SABRINA DALBELO | Bento Gonçalves, RS.
No meu mundo temos ofícios, responsabilidades
e afazeres.
Somos um povo pacífico, respeitador e muito
justo. Todos somos treinados para cumprir as ordens reais.
O Rei é bom e o obedecemos com alegria e
esperança.
Ele nos ensina tudo!
O BOM REI NOS ENSINOU TUDO
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Quando realizamos nosso trabalho de forma
satisfatória, nosso supremo nos concede o luxo da comida,
da moradia, da confraternização e o da própria luz.
Moramos em lugares organizados e arejados e
nosso Rei nos deu as flores, os ventos, as colheitas e nos
ensinou tudo sobre o peso, a composição e a ordem das
coisas. Por isso, entendemos os limites e, assim, não
ultrapassamos barreiras.
Pertencemos ao nosso lugar, onde a
possibilidade é proporcional ao merecimento pessoal.
Nos unimos uns aos outros, mas confiamos na
nossa individualidade, pois dependemos dela para servir ao
Rei.
Conhecemos todas as palavras; o Bom Rei as nos
ensinou. Ele nos mostrou os animais, as coisas, os elementos
naturais, os artificiais e os extraordinários; também nos falou
sobre sentimentos – sobre todos eles, ele nos disse.
Ele é muito bom e não nos esconde nada!
Conhecemos e já vimos todas as coisas que
existem em nosso mundo.
Nosso mundo é sabidamente invejado por outros
mundos.
O querido Rei nos provou também porque
aquela moça que deixou de receber moedas de cobre,
comida e nossas visitas merecia ficar isolada e a mercê da
própria sorte, já que foi desobediente e não cumpriu as
ordens reais como devia.
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Ele nos mostrou, devido a sua real bondade, que
qualquer ajuda que déssemos à moça, não autorizada por
ele, nada mais seria do que um retrocesso no aprendizado
dela. E é certo que precisamos contribuir para o bem
comum.
Todos nós entendemos e ficamos felizes com a
decisão do Bom Rei em relação àquela moça, pois temos
conhecimento de todas as palavras que ele usou para nos
explicar seus motivos, inquestionáveis, portanto.
Aquela moça acabou definhando, já que, de
certo, mereceu definhar.
Eu entendi como tudo ocorreu, porque conheço
o nome de todas as coisas – o Bom Rei nos explicou, uma a
uma – só não sei como se chama aquele olhar opaco e
distante que vejo nos rostos dos filhos da moça desobediente,
depois que ela se foi.
Mas não me atrevo a perguntar...
Se tivesse nome, nosso Bom Rei nos diria.
SABRINA NUNES DALBELO é gaúcha, graduada em Direito, servidora pública
do Ministério Público Federal e escritora de tudo um pouco. Participa de vários
grupos literários e mantém as páginas do Facebook "Se Tem Nome Existe",
onde publica contos, poesias e algumas poucas crônicas; e "Pensamento Sem
Moldura", com aforismos e pensamentos. Já participou de algumas antologias
poéticas pelas Editoras: Poesias Escolhidas (Belo Horizonte), Grupo Pastelaria
Studios (Lisboa - Portugal) e LiteraCidade (Macapá), mas ainda não publicou
seu livro solo. Utiliza-se das dualidades e dos paradoxos para contar as coisas
da vida. Escreve sobre tudo um pouco, e a qualquer momento, e tem
como característica não revisar seu texto, que comumente é postado
online, na hora em que é criado. | [email protected]
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PORTFÓLIO | BEHANCE | FACEBOOK |[email protected]
Thaís Nozaki é de São José dos Campos, São Paulo. Cresceu
cercada de artistas plásticos na família – o pai e o avô. Formou-se em
Geografia e trabalhou com desenho técnico, o que despertou aquilo
que ela chama de “resgate artístico”, espécie de despertar de um
processo criativo que, tendo permanecido latente, surgiu de forma
espontânea e intuitiva. É uma peculiaridade do trabalho de Thaís, que
hoje utiliza e mistura grafite, aquarela, aguadas de acrílica, nanquim,
óleo, carvão, lápis de cor, digital e colagem: “A dramaticidade do tema
é que vem me dizer quais técnicas possuem valor e densidade para
harmonizar a ilustração. [...] Assim também é com o ritmo do desenho,
da pintura. Não possuo uma linha que dê ‘assinatura’ ao meu trabalho,
tenho muito receio em fazê-lo, apesar de reconhecer que o espectador
sinta essa necessidade”. Apesar da dificuldade que enfrenta no
reconhecimento e valorização das artes plásticas, a artista tem planos
densos na área: além do estudo formal, almeja contribuir para o
desenvolvimento do mercado independente das artes gráficas, além
de se expandir na ilustração editorial. Já é possível adquirir sketchbooks
com capas autorias produzidos pela Thaís, que em breve serão
direcionados, também, para a exportação.
SOBRE THAÍS NOZAKI: “Silenciei essa paixão
por anos”
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PARCEIROS:
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais: