revista26 - sociedade de consumo e toxicomanias

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65 TEXTOS RESUMO O artigo aborda as três formas do discurso do mestre que organizam a socie- dade de consumo e que produzem o sintoma social das toxicomanias e o sujeito das adicções, indicando como se dá a articulação entre o discurso tecnocientífico, o discurso médico e o discurso do capitalista, demonstrando ainda que esse último se caracteriza como uma montagem perversa do dis- curso do mestre e não como um quinto discurso. PALAVRAS-CHAVE: sociedade de consumo, toxicomania, discurso do mes- tre, discurso do capitalista, montagem perversa. CONSUMER SOCIETY AND DRUG ADDICTION TO CONSUME OR NOT TO BE ABSTRACT The article addresses the three forms of the master’s discourse that organize consumer society and produce the social symptom of drug addiction and the addictive subject, indicating how the discourse of technoscience, the medical discourse and the capitalist’s discourse articulate themselves and it is demonstrated that the capitalist’s discourse is a perverse setting of the master’s discourse and not a fifth discourse. KEYWORDS: consumer society, drug addiction, master’s discourse, capitalist’s discourse, perverse setting. SOCIEDADE DE CONSUMO E TOXICOMANIA – CONSUMIR OU NÃO SER Jaime Alberto Betts * * Psicanalista; Membro da APPOA; Psicólogo especialista em psicologia clínica e psicologia organizacional e do trabalho; Fundador do Instituto da Mama do Rio Grande do Sul; Membro do Comitê Técnico Nacional do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) do Ministério da Saúde (2000 – 2003). E-mail: [email protected]

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65TEXTOSRESUMOO artigo aborda as trs formas do discurso do mestre que organizam a socie-dadedeconsumoequeproduzemosintomasocialdastoxicomaniaseosujeitodasadices,indicandocomosedaarticulaoentreodiscursotecnocientfico,odiscursomdicoeodiscursodocapitalista,demonstrandoaindaqueesseltimosecaracterizacomoumamontagemperversadodis-curso do mestre e no como um quinto discurso.PALAVRAS-CHAVE: sociedade de consumo, toxicomania, discurso do mes-tre,discursodocapitalista,montagemperversa.CONSUMERSOCIETYANDDRUGADDICTIONTO CONSUME OR NOT TO BEABSTRACTThearticleaddressesthethreeformsofthemastersdiscoursethatorganizeconsumersocietyandproducethesocialsymptomofdrugaddictionandtheaddictivesubject,indicatinghowthediscourseoftechnoscience,themedicaldiscourseandthecapitalistsdiscoursearticulatethemselvesanditisdemonstrated that the capitalists discourse is a perverse setting of the mastersdiscourse and not a fifth discourse.KEYWORDS: consumer society, drug addiction, masters discourse, capitalistsdiscourse,perversesetting.SOCIEDADE DE CONSUMOE TOXICOMANIA CONSUMIROU NO SERJaime Alberto Betts**Psicanalista;MembrodaAPPOA;Psiclogoespecialistaempsicologiaclnicaepsicologiaorganizacional e do trabalho; Fundador do Instituto da Mama do Rio Grande do Sul; Membro doComitTcnicoNacionaldoProgramaNacionaldeHumanizaodaAssistnciaHospitalar(PNHAH) do Ministrio da Sade (2000 2003). E-mail: jbetts@terra.com.brTEXTOS66evidentequeasociedadedeconsumoinduzadiosdrogas.Essainduofazdatoxicomaniaumsintomasocialmanaco.Dequemodoasociedadedeconsumofazisso,ecomqueconseqnciasparaosujeito?Quaissoosdiscursosquedeterminamasociedadedeconsumoequalogozoimplicadonasrelaodeconsumo?Quando o general Dwight Eisenhower assumiu a presidncia dos Esta-dos Unidos, em 1953, ele alertou para os perigos do complexo militar-industri-alquehaviasidocriadoparaenfrentaraIIGuerraMundial.Oquelevariaummilitardacpuladasforasarmadasvencedorasdoconfronto,presidenteeleitonops-guerra,afazeressealerta?OsantecedentessoacrisenabolsadevaloresdeNovaIorqueem1919eoperododecaoseconmicoedepressoqueseseguiu.EnquantoFranklinDelanoRooseveltlutavaparaconvencerseuscompatriotaseospo-derososgruposempresariaisaentraremnoesforoderecuperaodaeco-nomia,oataqueaPearlHarbordesencadeouoingressodopasnaguerra,que se defrontou com a constatao de que suas foras armadas estavam defatodesarmadas.Emgrandemedida,arecuperaodaeconomianorte-ame-ricanadeu-senaesteiradesseconflitoarmadoedocomplexoindustrial-mili-tar que nasceu ali, e que no parou mais de crescer e de necessitar de novosconfrontosparaescoarsuaproduoblica.RobertKurtz,escrevendosobreAorigemdestrutivadocapitalismo(1997),demonstraqueamudanadasidiasedasmentalidadesquecarac-terizaramonascimentodamodernidadeemgrandepartesedevemaode-senvolvimentodasforasprodutivasmateriaismuitoanterioresaoadventodamquinaavaporeaotearmecnico,quemarcaramoinciodarevoluoindustrial.Argumentaquefoi,naverdade,umaretumbanteforadestrutivaqueabriucaminhomodernizao,asaber,ainvenodasarmasdefogo.Essacorrelaoconhecidahmuitotempo,dizoautor,entretantobas-tante subestimada. O mundo ocidental moderno e seus idelogos s a custoaceitam a viso de que o fundamento histrico ltimo de seu sagrado concei-todeliberdadeeprogressohdeserencontradonainvenododiablicoinstrumentomortaldahistriadahumanidade.Freud,quandoescreveem1923 sobre oMal-estar na civilizao,eloqenteemseupessimismosobreofuturodahumanidadediantedopoderdedestruiocolocadodisposiodapulsodemortepeloprogressotecnocientficodemonstradoporocasioda I Guerra Mundial. O que ele diria hoje, diante do poder destrutivo desenvolvi-do desde ento, e queapenasacenacomavelocidadepotencialqueode-senvolvimento tecnocientficoiratingirsearaahumana(eoplaneta)so-breviverparacontarahistria?Parafraseandooditopopular,acivilizaodosculoXXconseguiujuntarapulsodedestruiocomopoderdedestruir.67Asconseqnciashistricasdacontinuidadeedodesenvolvimentodamquinadeguerramontadaestoestampadasnaspginasdosjornais,coti-dianamente.Osbombardeiosagorasocirrgicos.Asmetforasmilitareseas mdicas se complementam. H que haver guerras para que se consuma aproduodearmamentos.Essecomplexoindustrialdeconsumodestrutivovemdemonstrandoseupodermortferocrescentedesdeento.Paradoxal-mente,umgeneralpreocupou-secomisso.Evidentemente,ficouporissomesmo.Outrocomplexoindustrialquetemcrescidopoderosamente(tambmdemonstrandoapotnciadodiscursotecnocientfico),influenciandoamanei-racomoencaramosavidaelidamoscomomal-estarnacivilizao,dizres-peitoindustriafarmacutica.Asoluodosmaisvariadostiposdeproble-mas cada vez mais procurada do lado das drogas, sejam legais ou ilegais. no real das reaes bioqumicas inseridas num contexto de linguagem sgnicaqueacontemporaneidadeprocuratornarsuportvelocrescentemal-estardeviver.Antidepressivoseansiolticostornaram-seduasdasdrogasmaisrecei-tadas(eauto-medicadas)nomundo,deformageneralizada,porumgrandenmerodemdicosdasmaisvariadasespecialidades,noimportandoparanadaquaissejamosmotivosdossintomasdadepressooudaansiedade.Osmotivosdosofrimentodosujeitoestoforadeconsiderao.Asoluoamesma,nomximovariandoadosagemouafrmuladadroga,prescritasegundo a bioqumica de cada organismo. A impotncia sexual, por exemplo,(ser redundncia dizermasculina,tendoemvistaqueamesmadroga,sobformadepomada,inturgesceosgenitaisfemininos,aumentandosuasensibi-lidade?) faz do Viagra (e derivados de outras marcas) um dos maiores suces-sosdeconsumo,rendendomilhesdedlaresaolaboratrioquedetmsuapatente.Seuconsumoregistradoinclusiveentrejovensquenosofremdeimpotncia(nosentidodenoconseguiremereo),queatomamparaim-pressionaraparceira.Serabuscadeumplusdegozar,narcsico,queasexualidade,sempreparcial,nosatisfaz?Ambososcomplexosindustriaismovimentammuitosbilhesdedla-resemconsumo,porano:muitopoder,poderquedecideeleiesnacio-nais,destinosglobaiseavidacotidianadeumsemnmerodesujeitos.Asociedadedeconsumosecaracterizaporserorganizadapredomi-nantementepelasrelaesdeconsumoevaloresassociados,condicionandoaproduodebenseservios.Oconsumidor,elevadoaostatusdecidadodedireito,atravsdarecenteelaboraodosdireitosdoconsumidor,temcomo ideal de vida preponderante sua potncia de consumo. O sucesso soci-aleafelicidadepessoalsoidentificadospelonveldeconsumoqueoindiv-duotem.Osomosoquetemoselevadocondiodeidealsocial:oSOCIEDADE DE CONSUMO...TEXTOS68hedonismomaterialista,aqualquerpreo,triunfa.Senotemos,nosomos.O potencial de consumo determina o grau de incluso ou de excluso social,de sucesso ou de insucesso, de felicidade ou de infelicidade. A sociedade doespetculo(Debord,1997),quedecorredesseequacionamento,fazdamani-pulao da aparncia o trampolim social para o ter: o excludo sonha com sercelebridade,equemjnovivesemser,paranoperderostatus. arealizaoconvictadosomosoqueconsumimos.Subverte-seaequaoshakespearianaserounoser,transformandoaquestoexistencialvital emterounoser, isto ,consumir ounoser,associadoaumjogodeespelhosdeaparentarser.Oespetacularafrmulaindutoradaadico:oshownopodeparar.Oadventocontemporneodasociedadedeconsumopodesercarac-terizado pela confluncia cada vez mais articulada de trs discursos: o discur-so tecnocientfico, o discurso mdico e o discurso do capitalista, sendo todosdifundidosemmassapelomarketing.Osefeitosdessesdiscursosnaculturasefazemsentirnapsicopatologiacotidiana,sendodominantesosuficientepara mudarem o sintoma das converses histricas dos 1900, de Freud, paraodasdepressesdaatualidade(Roudinesco,2000),assimcomofazerdouso milenar de txicos um sintoma social manaco. A sociedade de consumoumasociedadedeadico.TalvezumadascontribuiesmaisprofcuasdeLacanparasituarapsicanlise(esuaeficciasimblica)nosculoXXItenhasidoaformulaodosquatrodiscursos(domestre,douniversitrio,dahistricaedoanalista),plosestruturaisemrelaoaosquaisosdiscursosnaculturaserealizam(Lacan,1992).Quandoeleelaboraoconceitodediscurso,fornece-nosumaferramentaconceitualdecisivaparaanalisarasmudanasnocursodahist-ria e a posio do sujeito diante das mesmas. A estrutura simblica dos qua-trodiscursosqueproduzemaordemsocialproduztambmosujeitoqueseinscrevenamesma.Discurso,paraapsicanlise,umaformadeestruturaodalingua-gemqueorganizaacomunicao(tododiscursodirige-seaumoutro),espe-cificandoasrelaesdosujeitocomossignificantes,comseudesejar,comseufantasmaecomoobjetocausadedesejo,determinandoosujeitoeassuas formas de gozo, ao mesmo tempo que regula as formas do vnculo soci-al.Asestruturasdiscursivasdeterminam,portanto,asformasdefunciona-mentotantodolaosocialedocursodahistria,quantoosfuncionamentoslinguageirosaosquaisosujeitoseencontraassujeitado(Chemama,1995).Odiscursodomestre,pontodepartidadahistriasocialesubjetiva,produzumsujeitoassujeitadolinguagem,barrado,divididopelalinguagem,namedidaemqueosignificanteS1,comoagentedodiscurso,orepresenta69juntoaosdemaissignificantesS2,organizadoscomoumsaber.Apartirdes-sadeterminaosimblicadosujeito,humresto,quetantoindicaqueoobjetocausadodesejodesdesempreperdido(impossibilidadedeumgozopleno, completo), quanto umplusdegozarpossvelaosujeito,foradocorpo,apesardenoserpossvel,emfunodomurodalinguagem,terumaces-sodiretoaoobjeto-causadodesejar).Aorientaotopolgicadassetasqueestruturamasrelaesdoslugaresdodiscursoindicamqueumarelaodi-reta entre o sujeito e o objeto causa de seu desejo impossvel. Esse ponto importante pelo que ser desenvolvido mais adiante sobre o discurso do capi-talista.DISCURSODOMESTREO discurso do mestre, assim como determina a constituio do sujeito,designa as formas ordinrias do assujeitamento social e poltico do sujeito aoenunciadodeummandamento,aumapalavradeordem,ousugestohip-ntica do marketing. O significante mestre, como agente do discurso do mes-tre, determina a histria de um dizer imperativotu s isso,quenocessadeacompanhareorientarocursodahistriadeumasociedadee,damesmaforma, a histria de um sujeito. que ao tocar, por pouco que seja, a relaodohomemcomosignificante,[...],muda-seocursodahistria,modificandoasamarrasdeseuser(Lacan,1957,p.507).Qual ser otusissodecadaumadastrsformasdodiscursodomestremencionadasacimaqueorganizaasociedadedeconsumo,equetraz como sintoma social as toxicomanias?Odiscursotecnocientfico.Descartespromoveumafortemudanadarelao do sujeito com o significante, mudando o curso da histria e as amar-rasdohomemcomseuser,aopromoverasubstituiodeDeus,comosignificantemestredasociedadeocidental,ecolocandoarazonolugardeagente do discurso do mestre. O cogito cartesiano penso, logo soudeixao homem moderno rfo, sem poder mais contar com um Deus, pai oniscien-teeonipotente,quelhedumlugardefiliaoealgumagarantiadeser.Modificam-seasrelaessignificantesquedeterminamaposiodosujeitoante seus objetos e ante as formas de gozo que seus fantasmas possibilitam.O homem da modernidade passa a ser determinado acima de tudo por umtus um animal racional,sujeitodarazo.S1 S2SaSOCIEDADE DE CONSUMO...TEXTOS70nocontextodaRevoluoFrancesaquesurgeafiguradaDeusaRazoemsubstituioaoDeusdoCristianismo,originandoocultodarazocomoumaformadeenfrentarodesafiodasecularizaonumasociedadeaindadominadaporvaloresreligiososequetrazconsigoasduasprincipaispsicopatologiasdopensamentoocidentalmoderno(Rouanet,1996,p.288).Soelasohiper-racionalismo,quesecaracterizapelarazonarcsicadodiscursocientfico,positivistaetotalitrio,eoirracionalismo,emquearazoniilistasedeixaabsorverpeloseuOutro,escudando-senumobscurantismoem quetudorelativo,todaexperinciavlidae,portanto,nadapodeserquestionado. O absolutismo associado ao culto a Deus e ordem do sagradodlugarprogressivamenteaototalitarismoassociadoordemseculardodis-cursodacinciaedasociedadedoespetculodoprogressocientfico.Odiscursodacinciasecaracterizacomoumalinguagemsemfala(Lacan, 1998), o que implica uma excluso dos significantes que representameproduzemosujeitoparaoutrossignificantesdaredesimblica,trazendocomoconseqnciaasociedadedosegosautnomoseadepressocomosintoma social dominante: no h mais lugar para o sujeito. A linguagem sgnicadacinciaoreduzaumobjeto,entreoutros,noreal:cobaia,mercadoriaouinstrumentodosaberdooutro.interessanteobservaraquiqueumadasdificuldadesnotratamentodastoxicomaniasqueosujeitofreqentementenofala.A linguagem sgnica do discurso da cincia a linguagem por exceln-ciadasociedadedeconsumo(Baudrillard,2003).Nessesentido,asocieda-dedeconsumooresultadodocasamentoentreaindstriaeacincia.Sendoosignooquerepresentaalgoparaalgum,autopiadacinciaal-canaracorrespondnciabiunvocaentreosignificanteeosignificado,semmargemparaequvocos,mal-entendidosoumetforaspoticas,semqual-querinterfernciasubjetivadodesejo.Odiscursodacinciasconcebvelcomoumalinguagemsemfala.Olugardeenunciaodosujeitoexcludo,poisconsideradofontedevisnaproduodoconhecimentocientfico.Umalinguagemsemfalaimplicaquequandoosujeitofala,suapalavravazia(Lacan,1984),esvaziadadodesejo,ficandoreduzidasuadimensoimaginriadeegoreceptoreemissordesignos(informao).A linguagem sgnica que determina a psicologia do homem da socieda-dedeconsumoreduzsuadimensosubjetivaaoregistrodoimaginrioeproduzosujeitonarcsico,quejogacomasregrasdojogosocialdaformaquemelhorlhepermitemanipularosoutros,ouasiprprio.Comapulveriza-o dos ideais de eu da tradio, o eu ideal deixa de ser subordinado, susten-tadoeestruturadopeloidealdoeu.Odesmoronamentodoidealdoeuvemacompanhadoporumaleimuitomaisferoz,queoimperativodegozodo71superegomaterno,quesedeslocaparaaposiodetusisso.Ouseja,afunodaleisimblicadeinterditarogozodoOutrosedesestrutura.AtelenoveladaTVGloboCelebridadeexemplarnessesentido.Umexemplodoladodastoxicomaniasosujeitoquemanipulaquimicamenteseusestadosdeespritodeacordocomassituaessociaisqueirenfren-tar,consumindoasdrogascorrespondentesaoefeitoquedesejaalcanarsobresimesmoesobreaimagemdesiquedesejaaparentaraosoutros.Aalienaoqueproduzosujeitonarcsicoofazcrermaniacamenteque,comessamanipulaobioqumica,ele,ego,queestnocomando.Nessaposio,apessoaseconcebecomoindivduo,autnomo,semtradiesecomoanimalracional,guiadopelosentidodavidaqueoconsu-mo (racional!?) dos objetos de marca indicados pelomarketing lhedetermina.Suaalienaoemrelaodivisosubjetivabeiraaloucura,poisoqueexcludodosimblicoretornanoreal.Lacan, afirma, a esse respeito, que: O que vimos emergir para o nossohorror,representaareaodeprecursorescomrelaoaoqueirsedesen-volvercomoconseqnciadoremanejamentodosgrupossociaispelacin-cia,enotadamenteauniversalizaoqueelaintroduzneles,fazendocomquenossofuturodemercadoscomunsencontrasseseuequilbrionaexten-socadavezmaisduradosprocessosdesegregao(Lacan,Proposiode09/10/1967).Odiscursodacinciapromoveoremanejamentodosgrupossociais,trazendocomoconseqncia,entreoutras,oshorroresdoscamposdecon-centrao,camposdeextermnioedeexperimentaoedesenvolvimentocientficoetecnolgico,mdicoeblico,semdvidacarregadostambmdeirracionalismoobscurantista.O totalitarismo fruto da cincia moderna, cujo mecanismo o de umadessubjetivao, que faz do dio cimento social: tanto o dio ao outro rejeita-doparaforadogrupo,quantoodiodosujeitoaoseuestranhointerior.Asegregaodupla,poissocialeincidetambmsobreoprpriosujeito.Caterina Koltai argumenta que Talvez o tribalismo e o racismo essa criaomoderna, filha da industrializao e do capitalismo sejam a forma por exce-lnciadomal-estarnacivilizaocontempornea(Koltai,2000,p.31).Aau-toraponderaqueoracismorelativotantoaumdispositivosocialquantoaoprocesso das identificaes egicas na estrutura do sujeito. E levanta a hip-tesedequenoplanodosocialosmovimentosracistascaminhamjuntocomoaumentodasperturbaesnarcsicasqueobservamosemnossascl-nicas,sendoquetaisperturbaessoaformacontemporneadahisteriaemnossasociedadedeconsumoemsuaformaps-moderna(Koltai,2000,p. 27) A frmulasomos o que temos,evidentemente,daordemdahisteria.SOCIEDADE DE CONSUMO...TEXTOS72O Discurso Mdico.EmborasejacomPasteureadescobertadosmi-crbioscausadoresdeenfermidadesqueamedicinaingressadeveznamodernidadecientfico-tecnolgicaquandopassaamedicalizarprogressi-vamenteasociedade,asrelaessociaiseaposiodosujeito,atravsdainstituiodaordemmdicasuaideologiatemsuasrazesnaAntigidadegrega(Clavreul,1983;Costa,1985).O discurso mdico, antes de mais nada, instaura uma ordem que pros-seguesegundosuasleisprprias,impondosuacoeroaodoente,aomdi-coesociedade.Amedicalizaodasociedadesedpelainstituiodanormalizao,ondesedefineonormaleopatolgico(Canguilhem,1978).Adeterminaodoquenormaledoquepatolgicoumatodemestria.Odiscursomdicoveicula,dessaforma,umaideologiaqueemgrandeparteseconfundecomaideologiadominante,poisemsnteseOmdico(ouchefe)sabe melhor que voc o que convm para seu Bem. Sua liberdade resume-seem escolher seu Senhor. Frmula na qual a obrigao de submisso acres-cidadoatodealvioquecolocaemposiodepedinteaquelequedeversesubmeter(Clavreul,1983,p.31).Trata-sedeumaliberdadeforada,poisresponde frmula:aliberdadeouamorte.Nessediscurso,omdicoestnolugardemestre,ouaindadosaberdemestredodiscursodouniversitrio,quesabemelhorqueosujeitooqueconvm para seu bem. Basta abrir qualquerCaderno de Sade do jornalZeroHoraparaconstatarcomoavidacotidiananormalizadapelosabermdico,prescrevendooquecadaumdevefazerparaconquistarumavidasaudvelefeliz,assimcomoareconhecerossinaisdoquepatolgico.Apalavradosujeito no levada em considerao, pois representa o que est excludo dodiscursocientfico.Suapalavrareduzidacondiodesignoqueforneceasinformaesdeanamnesenecessriasaoatomdicodediagnsticoe/ouacompanhamentodotratamentoprescrito.Apalavraquerepresentaosujeito desconsiderada, pois pode induzir o mdico ao erro, uma vez que reintroduzoquefoiexcludoparaaformulaodosabermdico.Clavreullembra,pontoquenosinteressaaqui,aanalogiaentrealiber-dadeformalentreopacienteeomdicocomapretensaliberdadequeMarxassinala existir entre o trabalhador que vende sua fora de trabalho ao capita-lista, dono do dinheiro. Aqui, novamente, nas relaes sociais de produo, apalavradotrabalhadorinteressasomentecomosigno,namedidaemquecontribuidiretamenteparaagregarvaloraoprodutoegerarresultadosfinan-ceiros.Aordemmdicatemnosmdicosseusfuncionrioseexecutantes.Por outro lado, os mesmos se encontram cada vez mais na posio de execu-tantesefuncionriosdocomplexoindustrialfarmacuticoedeequipamentos73mdicos,chegandofreqentementeaopontodesuaatividadesereduzirprescrio de medicamentos (os de ltima gerao e mais caros) e solicita-odeexames(cadavezmaiscomplexos).Lacanabordaesserisconapa-lestraPsicanliseemedicina,ressaltandoquesedemandaaomdicoquefuncionecomoumdistribuidor,prescrevendoecolocandoprovaasnovasdrogaspostasdisposiodopblicopeloslaboratrios(Lacan,1985).Nessesentido,oSecretrioEstadualdaSadedoRioGrandedoSul,OsmarTerra,declarourecentementeaojornalZeroHora(nov.2003)queprecisomudaroatualpanoramademercado,quehojeformaprofissionaisvoltadosatividadedaindstriademedicamentoseequipamentos,aoinvsdeformarprofissionaisatentosrealidade.Aprendemareceitarosmedica-mentos mais eficientes, que so os mais caros, e a prescrever exames caros,masnosabemenfrentarocotidianodasadepblica.Asadetransformadaemmercadoriaeasadepblicalutaperma-nentementecontraoslobbiesdereduodasverbasdestinadasmesma.Osprogressosdaindstriaqumico-farmacuticanovisam,emprimeirains-tncia, melhorar o bem-estar das pessoas, e sim ao lucro. A eventual reduodomal-estarefeitocolateral,bem-vindo,sobretudoseajudaavendermaismedicamentos.Problemasdesadepblicaqueatingempredominantemen-teascamadasmenosfavorecidasdapopulaonosoalvodosinvesti-mentosdepesquisadoslaboratrios.Aindstriafarmacutica,porsuavez,faz fortelobbyparaimpedirqueoEstadoseocupeempesquisare,sobretu-do,produzirmedicamentos.Vejam-seasdisputasenvolvendoaquebradepatentesdedeterminadosmedicamentosesuaproduocomogenricos.Outro aspecto a ressaltar, a respeito da funo normalizante da medici-naemsuaassociaocomodiscursotecnolgico,cientficoecapitalistaseobservanomodocomoanosologiapsicopatolgicadapsiquiatriaclssicatomadadeassaltopeloreducionismobiologizantequeareformulasucessiva-mente,paraadequ-laaosprogressosdapsicofarmacologia,reordenando-asegundooscomportamentossobreosquaisasnovasecadavezmaisaper-feioadasdrogaspodemteralgumaeficcia.ODSM-IVR,nessesentido,jestemsuaquartaversorevisada.Associadoaisso,insistenteadivulga-o,pelosmeiosdecomunicaoespecializadaemproblemasdesademental e social, de que a melhor forma de tratamento medicamentosa, acom-panhadadeterapiacognitivo-comportamental.Vivemosnummundoondehpouco lugar para o sujeito. Da o recurso s drogas, que intoxicam e no dorefgioaosujeito,masreiteramsuaalienaonarcsica.Porquenosauto-medicamostanto?pergunta-se.OBrasiltemcerta-menteomaiornmerodefarmciasporhabitanteequilmetroquadradonomundo.Oapeloaoconsumocotidianonosmeiosdecomunicao.BastaSOCIEDADE DE CONSUMO...TEXTOS74prestaratenonomarketingveiculado:Tomeissoouaquilo.Persistindoossintomas, procure um mdico. Ou seja, primeiro se auto-medique, se a propa-gandanoacertarodiagnsticoeomedicamentoconsumidonoresolver,entoprocureomdico.Vivemosnumaculturahipocondraca,afeitaauto-medicao.Diantedeummal-estar,asoluoadrogadesuapreferncia.Odiscursodocapitalista.Odiscursodocapitalista(umquintodiscur-so?)foiapresentadoumanicavezporLacan,numaconfernciaemMilo(Lacan,1972).Nessaocasio,elepropsainversodostermosdoladodoagente no discurso do mestre, ou seja, o S barrado sai do lugar da verdade evaiparaodoagente,eoS1saidolugardoagenteevaiparaolugardaverdade.Nesseponto,existeconsenso.Ondeexistecontrovrsianoquedizrespeitoquestodaorientaotopolgicadoslugaresentresi.Numaposio,hapenasumainversodostermos,semmudanadaflechaquevaidolugardaverdadeparaodoagente.Aoutraposioentendequehuma toro topolgica que reorienta as flechas, conduzindo do lugar do agen-teparaodaverdade(Goldenberg,1997;Chemama,1995).DISCURSODOCAPITALISTAExiste um quinto discurso, ou no? E se existe um quinto discurso, porquenosepoderiamformularasdemaiscombinatriasresultantesdainver-sodostermos.Lacanseposicionoudizendoqueosdiscursossoapenasquatroeno32.Porqu?OqueLacanpropeprogressivamente,apartirdoSeminrio sobre o avesso da psicanlise, uma estrutura topolgica dos dis-cursos, a partir da combinatria posicional dos termos (S1, S2, a, S) dentro daestruturatopolgicadelugares(agente,outro,produoeverdade).Parece-nosqueaestruturadelugares(orientaodasflechas),nosofreumator-o. por isso, talvez, que Lacan se posiciona no sentido de que as estrutu-rasdiscursivassoapenasquatro.Sendoassim,oqueoquintodiscurso,odocapitalista?Nosquatrodiscursos,somentenodiscursodoanalistaqueexisteuma relao direta entre o objeto a e o sujeito barrado. Ocorre que, no discur-so do analista, o sujeito em anlise confrontado com o objeto a, que causaseudesejar,nolugardeagentedodiscurso,eosujeitoanalisanteestnoS S2S1 aS

S2S1a75lugardooutro,lugarondeoissotrabalha.Aposioticadoanalistadesaber que no sabe qual o bem do sujeito, mas, sim, de saber operar comosemblantedafalta,portadortransferencialdasinsgniasdoobjeto-causadodesejardoanalisante.Oencontrodosujeitocomoseuobjeto-causadodesejarvirtual,transferencial,nosentidodequeosujeitopoderobterdesseencontroanal-tico com o analista-objeto-semblante-do-desejo o recorte de um significantemestre (tusisso)emoutraposio,oudeumnovoS1.essaaoperaodo discurso do analista, que permite ao sujeito, no final de anlise, fazer algode mais interessante com seu sintoma (tu s isso), por j no estar submetidoaoimperativosuperegicodegozodoOutro,quedecorredomesmo.Notratamentoanaltico,osujeitonoreencontraoobjeto:quando,viatransferncia,oanalisanteimaginaestarreencontrandoseuobjetonosem-blantedoanalista,oatoanalticofazorecortedosignificantemestrequerepresentaosujeito,eoobjeto-analistacai.Osujeitodefronta-secomoim-possvelencontrocomoobjetoamadoeimaginadocomoaquelequepermi-tira a reunio feliz e plenamente satisfatria, enfim, o nirvana. pelo encontrocomoobjetocomofaltaeossignificantesmestresqueodeterminamcomosujeito,deslindadosdoimperativosuperegicoquegeralmenteosacompa-nha,queosujeitoabre-separaodesejar.Ofantasmasetornaalgopossvel,brincvel, por ser ponte imaginria sobre o real da falta e no mais imperativodegozo.Desejarmotordavida,reinvenodavida,utopiapossvel.Nodiscursodocapitalistatambmocorreumaligaodiretaentreoobjetoeosujeitobarrado.Entretanto,estamosdiantededuasperspectivas,duas notaes distintas do discurso do capitalista.Numa primeira leitura, comum a ambas as notaes, o objeto em ques-tojnooobjeto-causadodesejar,mas,sim,oobjetoproduzidopelosujeito como agente do discurso. Em outras palavras, o sujeito se acha fixadoaoobjetoproduzidoporelemesmo,e,porestarnolugardeagente,acreditasermestredaspalavrasedascoisas,noestandoassujeitadoanada.No caso da toro da orientao das flechas indo do sujeito, no lugardoagente,paraoS1,nolugardaverdade,essaposiodemestredaspalavras e dos objetos se realiza de fato: o mestre capitalista que determinaaoS1daverdade,ohomemfeitoDeus.Issoconfirmaria,comofatodeestrutura, a existncia do Outro do Outro, assim como a existncia da relaosexual.Oserfalantejnoestariaassujeitadolinguagem:osujeitodara-zoseriamestredalinguagem,reduzidadimensodelinguagemsgnica.Poroutrolado,nocasodainversodasletras,comaflechaindodolugardaverdadeaodoagente,oquemudaqueomestrecapitalistapodeseguir acreditando ser o mestre das palavras e objetos do desejo, mas o fatoSOCIEDADE DE CONSUMO...TEXTOS76estrutural que ele determinado pelo significante, no lugar da verdade. Otus issodessediscursotornapossvel,paraosujeitoeparaacultura,omitoda completude, isto , da plena satisfao de todos os desejos, da coincidn-cia entre o objeto de consumo e o objeto-causa do desejar, de que o sucessopessoaleafelicidadeestosubordinadosaoqueconsumimos.Quantomaisconsumo,maisrealizaoefelicidade.Nessasegundaperspectivadenotaododiscursodocapitalista,nose trata de um quinto discurso, mas, sim, do que propomos chamar de monta-gemperversadodiscursodomestre,denominadadiscursodocapitalista.Odiscurso domarketingoporta-vozdessamontagemperversa,veiculando,comafinalidadedepromoveroconsumo,ailusodeque,apagando-seima-ginariamente(narcsicaouperversamente)adiferenaentreoobjeto-causadodesejoafaltaeoobjetodeconsumopositivado,seriapossvel,enfim,afelicidade,atotalsatisfaodoconsumidorouseudinheirodevolta.AquestoqueosujeitocomandandooS1oprpriodelrioperversorea-lizado.Noexisteumsujeitoforaouacimadalinguagemquecomandaosignificantemestre.NoexisteOutrodoOutro.Antesdeabordarmosaquestodamontagemperversa,vejamosal-gunsoutrosaspectosdessediscurso,sobopontodevistadapsicanlise.QuandoLacanformulasuateoriadosquatrodiscursos(Lacan,1992),toma de Marx o conceito de mais-valia, oplus que o trabalho gera e apropri-ado pelo capitalista, sob a forma do lucro. Para Lacan, levando em considera-o oSeminriomaisainda(Lacan,1982),amais-valiasetransformaemplusdegozo,quepodeserentendidocomoumgozoamaisparaoOutro,aquelequenegadoaosujeito,assimcomoaqueleaoqualosujeitotemacesso:umgozopossvel,parcial(flico),foradocorpo,pelaviadalingua-gem.Tambmpodeserentendidocomooobjeto-causadedesejo,quefaltadesdesemprecomoahinciarealimpossveldecolmatar,brechaoperantenalinguagementreS1eS2,ogozosubtradoaosujeito,afalta-a-gozar.A mais-valia a causa do desejo do capitalista (Naveau, 1983), e porisso que ele ignora a palavra do sujeito, seja trabalhador, seja capitalista. Noimportaoqueosujeitotenhaparafalar,masapenasoqueelecapazdeproduzir.Oqueimportaqueamais-valiasejaproduzida,olucrogerado,apropriadoeacumuladopelocapitalista(oupelosacionistas).Nessascondi-es,trata-sedorebaixamentoedoimpedimentodapalavradosujeitoquetrabalha. Assim, o exerccio do poder poltico no capitalismo poderia ser com-preendidocomoumaespciedecensurasobreotrabalhador,noqualavon-tadedegozodomestrecapitalistabuscasuahegemonia(PeixotoJr.,1999,p.283).Cabeacrescentarqueapalavradosujeito,naposiodemestrecapitalistaouseurepresentante,encontra-secensuradatambm.77Ahipercompetionotrabalhoumadasestratgiasquealgumasempresasadotamparaimporaotrabalhadoraultrapassagemdeseusprpri-oslimites,induzindo-oafazerqualquercoisaparaatingirasmetasestabelecidase,quemsabe,ganharumprmioporisso.Trata-sedeumex-cesso imposto ao trabalhador, cujo gozo lhe escapa, mesmo quando ganha oprmio. Uma doena chamada trabalho a chamada da capa da revistaAma-nh(Ano14,n.163,fev.2001):Aeradacompetitividadesemlimitesgeralesesprecoces,dedifcildiagnsticoequasesempreincurveis.Ogozoqueescapaaotrabalhador,pormaisqueeleseesforceporalcan-lo, um gozo a mais, que suposto ao Outro. Entretanto, mesmo ocapitalistaobrigadoareinvestirumapartedamais-valianosmeiosdepro-duoparasobreviver,esenohouverdistribuioderendasuficienteparaosconsumidoresadquiriremseusprodutos,aempresaquebra.Apesardamontagemperversa,olugardogozodoOutrospodesedelimitarcomoumlugarvazio.Oneurticocrquenopoderealizarseusdesejosporestesestaremproibidosegozacomasformaessintomticassubstitutivas.Nopercebequeaproibiocondiododesejar.OgozonoestinterditadoporqueoOutronosimpededegozar,masporqueogozotambmfaltaaoOutro(PeixotoJr.,1999).Amais-valiafoiexplicitadaporMarx,eosistemacapitalistaprocuraocultarissoatravsdoincentivoaoconsumismo.Osintomadoconsumismoescamoteiaaexpropriaodomais-gozar,deumlado,eafalta-a-gozar,deoutro.Ovalordetrocatornou-seorepresentantedeumafaltaagozar.OgozoamaisparaoOutrotornou-seacausadofuncionamentodaeconomiacapitalista,ondesecomercializaafaltaagozar,mediadapelodinheiro,quese torna assim o equivalente universal da mesma. E a produo sustentadapelo consumo dos valores de uso (Peixoto Jr., 1999). Como canta Liza Minelli,no filmeCabar:moneymakestheworldgoaround.O sintoma social do capitalismo tem como causa do desejo do mestrecapitalistaaextorsodamais-valia.Deoutrolado,contacomogozodaser-vidovoluntria(LaBoetie,1986).Coloca-seaquestodeporqueoneurti-coseprendecomfacilidadeaformaesperversas.Odiscurso(egozo)daservidovoluntria,descritanosmeadosdosculoXVIporLaBoetie(1986),indicaalgoqueFreudcustouparaelaborar:omasoquismoprimrioeosadismoposterior(Freud,1924).Paraoneu-rtico,acompletudeumafantasiadesejadaetemidaaomesmotempo.Desejaretemeraomesmotempoterrenofrtilparaaperverso,ouparamontagensperversas.Todoneurticosonhaemserperversoesonhaemserperversoporqueaposioneurticamuitoinsatisfatria(Calligaris,1986).Pormaisquesonhecomumgozodeseroobjetoquecorresponderiaperfei-SOCIEDADE DE CONSUMO...TEXTOS78tamente castrao materna, esse gozo impossvel, pois implica a elimina-odosujeito.Ejustamentedissoqueoneurticosedefende,sendoqueele fica insatisfeito por se defender, e ao mesmo tempo sente que sua defesanunca suficientemente segura, pois o saber suposto ao pai sempre se mos-trainsuficiente,eogozoqueoportunizaparcial,insatisfatrio.porissoqueoneurticoestprontoaaceitarqualquercoisaparaacederaumamodalidadedegozosupostamentemaissegura,perseguindoogozodoOutro.Namontagemperversa,algumsupostosabercomoinstrumentalizarosujeitoparafazeramontagemfuncionar,efazeramonta-gemfuncionaramesmacoisaquefazeroOutrogozar.Ogozonamonta-gemperversatambmpodeserodesersimultaneamenteoinstrumentoeosaber do bom uso do instrumento que assegure um domnio do gozo do Outro(Calligaris,1986).muitocomumqueoneurticoestejadispostoapagarcaroparafazeramontagemfuncionar,comomencionamosacimasobreoexcessodetrabalhoaqueostrabalhadoressesubmetem,porexemplo.Umsistematotalitriofuncionacomoumamontagemperversa,ondeumcontingenteenormedepessoassecolocamvoluntariamenteaserviodeum mestre que saiba como instrumentaliz-las, em como fazer o leviat funci-onaregozar,dispostasapagarqualquerpreoparatanto.Cumprirordensparecesermaisnegcioparaoneurticodoqueterquetomardecises,correrriscoseaceitarlimitaes.O discurso domarketingograndeagenciadordamontagemperversadodiscursocapitalistadasociedadedeconsumo.Omarketingsededicaamostraraosujeitocomooconsumodamarcasugeridanapropagandaomeiodeafirmarsocialmentequemseecomosegoza,sempreporlivreeespontneaescolhainduzida.Consumirumprodutodemarcainserir-semetonimicamentenummundoqueocomercialconstriemtornodoobjeto.Consumindooobjeto,nosidentificamoscomamarcaenosimaginamosfa-zendopartedessemundo.Pagamosparadivulgaramarcadoprodutoquediz quem somos.O discurso domarketingsededicaafazerdosobjetosproduzidosoqueMarxantecipou,chamandodefetichedamercadoria.Oobjeto-fetichetemafunodepermitiraosujeitodenegaraslimitaesimpostasaogozopela operao simblica da castrao e gozar com a fantasia de ter o objeto esaber sobre seu bom uso. Tudo isso um bom comercial de poucos segundosconseguesintetizar.Sero as marcas, as grifes de consumo, os ideais do eu proposto pelasociedadedeconsumo,emsubstituioquelasdatradio?Parecequesim,comaressalvadeque,nolugardoidealdoeu,oquesepropeumareduoaonarcisismodoeuideal,mortfero,damontagemperversa.Atravs79doobjeto-fetichedeconsumo,oconsumidorinstrumentalizadopelosaber-viverqueamarcademonstrapossuir,nocomercial,aocontextualizaropro-duto.Tomemos trs exemplos de montagens perversas nomarketing: O AudiTT,umesportivohightechdedoislugaresapresentadocomosdizeres:coitus ininterruptus edriven by instinct.Amontagemexplcita.Outroco-mercialdecarro:umhomemseolhanumespelhodguae,nolugardeseurosto, v o reflexo de um Vectra; consumo e narcisismo de mos dadas, ou derostoscolados.O terceiro exemplo de uma cano de grande sucesso entre pessoasdetodasasidades.Porquetocativante?Acanopegaporquealetraumaapologiadoindividualismo,sintomasocialcontemporneo,emqueumindivduonoestnemaparaoutroindivduo.Oqueooutrotemparadizernointeressa,nemserouvido.Trata-sedeTonema,daLuka,cujorefrodiz: To nem a, / to nem a, / pode ficar com seu mundinho / Eu no to nem a/tonema,/tonema/Novemfalardosseusproblemasqueeunovououvir.Comercializada comogingledeumamontadora,aletraficouTnema, t nem a, eu t legal, t num Chevrolet, meu lugar aqui. Mulheresjovensnocarro,cantamfelizesedescontradas,livres,comospsnopainel.oobjeto,demarca,quepropiciaumlugardefiliao,umlugarlegal,umlugarondepossonoestarnemaparaosoutros,desdequeacompanhadopeloobjeto-fetiche.Um exemplo, agora, que toca diretamente a questo das toxicomanias.Oquefazdousodelcooledasdrogasumamania?Porquenosauto-medicamos? Basta atentar para otu s isso dos comerciais de medicamentosoudaguerrapublicitriadasdiferentesmarcasdebebidas.Ocomercialre-cente de uma marca de cerveja sintetiza o imperativo contemporneo de con-sumomanacodelcool:Experimenta!,experimenta!,deixandocomomen-sagemindireta,pelotextodaspropagandas,oconstrangimentoeaexclusodequemnosesubmeteaoimperativodegozo.Outrascenascomerciaisapontamquequemnotomaaaquelamarcaexcludodogrupo,vaiado,inferioredesprezadopelaslindasmulheresdebiquni,quetambmbebemefazem festa com a tribo da marca.Oqueestemjogonodiscursodocapitalistaosuperegoenquantoimperativodegozosobtrsformas:acumula!(gozadaacumulaodocapi-tal);oquedaentenderumsegundoimperativo,endereadoaquemtraba-lha,inclusiveocapitalista:trabalha!(goza,sobredoexcessodetrabalho);eh um terceiro imperativo de gozo: consuma e consuma-se no processo, into-xique-se!SOCIEDADE DE CONSUMO...TEXTOS80Diantedessesimperativosdegozo,ocapitalistanoresisteaogozotentadordeultrapassarolimitesdaleieimporumexcessodetrabalhomortificanteaquemtrabalha,inclusiveasiprprio,viaderegra.Oconsumi-dortoxicmanonoresisteaogozodesedefenderdaexclusoedoapaga-mentodesi,comosujeitodesejantedemandadodeformaimperativapeloOutro,atravsdoapagamentovoluntriodaintoxicao.Vriasquestessecolocam:Comofazerobstculovontadedegozosemlimitesimperantenodi scursodocapi tal i sta?Comofazerobstcul ovontadedeserinstrumentalizadoporumsupostosabercomofazergozaraoOutro?Comorecortardalinguagemsgnicaossignificantesquerepresentamoupodemrepresentarosujeitodesejantediantedaredesimblicasocialmenteinstitu-da?Lacanestavadecepcionado,aofinaldavida,poisapsicanlisenohavia inventado um novo tipo de lao social. Entretanto, a experincia de umaanlise(Calligaris,1986),aoproduzirumS1novoouemnovaposio,podepermitiraosujeitohabitarasestruturassociaiseaprpriadeummododife-rente,medidaqueoladodoOutrosejamenosimaginarizado,ouseja,per-cebidocomoumlugarquenohabitadoporalgumquecomandacomoamoahistriadeumdizertusisso.Podepermitiraosujeitodizerno,eestarmaisdispostoapagarmenoscaroparadominarogozodaqueleOutro,ouatmesmoproibir-seasimesmoogozodaqueleOutro.REFERNCIASBAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edies 70, 2003.CALLIGARIS, Contardo. Perverso um lao social? Salvador: Cooperativa CulturalJacques Lacan, 1986.CANGUILHEM, G. O normal e o patolgico. Rio de Janeiro: Forense-Universitria,1978.CHEMEMA, Roland. Dicionrio de psicanlise Larousse. Porto Alegre: Artes Mdicas,1995.CLAVREUL, Jean. A ordem mdica; poder e impotncia do discurso mdico. So Pau-lo: Brasiliense, 1983.COSTA, Jurandir Freire. Ordem mdica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal,1985.DEBORD, Gui. A sociedade do espetculo. 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