robson tadeu cesila
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ARTIGO
VOLUMINA, TABELLAE, CODICES: CONTRIBUIÇÕES DA POESIA DE MARCIAL PARA A BIBLIOLOGIA
por Robson Tadeu Cesila
Professor Doutor de Língua e Literatura Latina na Graduação em Letras e no Programa de Pós-‐Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Pesquisa há dez anos a obra do epigramatista Marcial, publicando artigos e traduções e orientando pesquisas sobre
Verbum Vertere: Estudos de Poética, Tradução e História da Tradução de Te
equipe que organizou a edição da tradução de Odorico Mendes da Eneida (Eneida brasileira: tradução poética da epopéia de Públio Virgílio Maro, Campinas, Editora da Unicamp) e da equipe que está organizando a edição das Geórgicas traduzidas pelo mesmo autor. Participou ainda do grupo responsável pela tradução do método Reading Latin, da Cambridge University Press (Aprendendo Latim: textos, gramática, vocabulário, exercícios, São Paulo, Editora Odysseus).
VOLUMINA, TABELLAE, CODICES:
CONTRIBUIÇÕES DA POESIA DE MARCIAL PARA A BIBLIOLOGIA1
Robson Tadeu CESILA2
Primeiras palavras Muitos poetas e prosadores da Antiguidade greco-‐romana nos legaram textos com
referências a aspectos da confecção do objeto livro, tais como o poeta grego Calímaco de
Cirene (300-‐240 a.C.), que foi bibliotecário em Alexandria, e os poetas latinos Catulo (c.84 -‐
c.54 a.C.), Ovídio (43 a.C.-‐ c.18 d.C.) e Marcial (c.38 -‐ c.104). Juntamente com tais informações
ligadas à confecção do livro informações sobre o tipo de suporte utilizado para a escrita
(madeira, cerâmica, cera, papiro, pergaminho), o formato dos livros (rolo ou códice), as
variedades de tintas e de objetos utilizados para escrever, os procedimentos utilizados no
acabamento mais simples ou mais refinado dos volumes, os profissionais responsáveis por tais
procedimentos, as formas de armazenamento e de comercialização dos livros etc. os autores
gregos e latinos legaram também, às línguas modernas, grande parte dos termos que
compõem o campo semântico relativo ao livro e à sua confecção.
Neste artigo, observaremos e analisaremos alguns textos de um destes autores, o
poeta epigramatista Marco Valério Marcial, e procuraremos, a partir desses epigramas3,
comentar alguns termos pertencentes ao campo semântico mencionado, enfatizando sempre
a relação entre os vocábulos modernos e aqueles, latinos ou latinizados, utilizados pelo poeta.
Os epigramas que selecionamos para análise podem ser classificados numa categoria
de poemas chamados costumeiramente de metapoemas, uma vez que inserem no texto do
poema questões relativas ao próprio fazer literário (no caso, questões relativas à confecção do
1 O presente artigo corresponde à síntese escrita da conferência de abertura do II Simpósio de Letras: Discurso e Textualidades, que proferimos na UNIANCHIETA em novembro de 2009. O título da
2 Professor de Língua e Literatura Latina na Graduação em Letras e no Programa de Pós-‐Graduação em Letras Clássicas da FFLCH/USP. E-‐mail: [email protected]. 3 Deixadas de lado especificidades e debates acadêmicos desnecessários para os propósitos deste ensaio, pode-‐se defini-‐los como poemas curtos e geralmente de temática satírico-‐jocosa. Marcial escreveu 1555 epigramas, distribuídos em 15 livros.
livro-‐objeto). São, em outras palavras, poemas que falam de si próprios, da própria poesia,
porque tratam do próprio objeto ou suporte que contém tal poesia4.
1. O uolumen: o livro em forma de rolo O primeiro epigrama que examinaremos é o de número 107 do livro XI5. O poeta,
dirigindo-‐se a um certo Seticiano, insinua que este não leu o livro de poemas que lhe fora
enviado, embora tenha tentado passar a impressão contrária:
Para passar a impressão de que lera até o fim o livro que Marcial lhe enviara, Seticiano
alusão a aspectos
materiais do livro, com o dado referente ao formato predominante dos livros antigos até
aproximadamente o século IV d.C.: o rolo, uolumen (fig. 1)6. Embora esta última palavra, termo
técnico para designar o livro em forma de rolo, não ocorra no texto original do poema em
questão, temos na forma participial explicitum
(v. 1) um dado que alude a esse formato7. O
verbo plicare 8, enquanto seu
oposto é formado com a adição do prefixo latino
ex-‐: explicare Este último verbo
aparentadas, todas relacionadas de alguma
4 Em nossa Dissertação de Mestrado (Metapoesia nos Epigramas de Marcial: tradução e análise), defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (Unicamp) em 2004, reunimos, traduzimos, anotamos e analisamos todos os metapoemas de Marcial, mas ali nosso corpus era mais amplo, formado por poemas que continham qualquer referência à própria poesia ou ao próprio fazer poético. No presente artigo, estudaremos apenas metapoemas que se referem a aspectos materiais do livro, ou seja, ao livro como objeto físico, concreto. 5 As traduções, de nossa própria lavra, têm metro e ritmo fixos e procuram reproduzir certos efeitos poéticos do original. Como tem sido praxe em muitas traduções recentes, no Brasil, de poesia latina, adotamos, em português, para verter o dístico elegíaco, o dodecassílabo para o hexâmetro latino e o decassílabo para o pentâmetro. 6 Retirada de Oliveira, J. T. A Fascinante História do Livro, vol. II (Grécia e Roma), p. 46. 7 Note-‐se, ademais, a posição destacada de explicitum, primeira palavra do poema, o que enfatiza as segundas intenções do personagem alvejado ao devolver o livro desenrolado. 8 plicare é mais visível
plica.
XI.107 Desenrolado até os botões, como se lido fora até o fim, meu livro me devolves, Seticiano. É verdade! Que bom! Leste tudo! Assim li até o fim teus cinco livros.
Explicitum nobis usque ad sua cornua librum et quasi perlectum, Septiciane, refers. Omnia legisti. Credo, scio, gaudeo, uerum est. Perlegi libros sic ego quinque tuos.
, , explicare
remete à ação de desenrolar o livro-‐rolo, com o objetivo de possibilitar a sua leitura. Ia-‐se
desenrolando o livro à medida que se iam lendo as colunas do rolo de papiro que continham o
texto9. Por essa razão, a própria expressão explicare uolumen, que literalmente significa
(ver fig. 2)10, poderia ser utilizada como equivalente de legere, em
latim, ver abaixo), embora não seja essa a acepção no poema em questão, em que o sentido
lo contexto.
É bom lembrar que ainda no latim o
termo explicare adquiriu também, a partir de
sua acepção primeira e mais concreta de
11, mostrando, evidentemente, a
origem do verbo português 12. Nota-‐
se a relação que existe entre esses processos
mentais (explicação, interpretação,
esclarecimento etc.) e o ato físico de desdobrar
do que desdobrar algo que é muito confuso,
por estar dobrado ou por ter muitas dobras, com o fito de simplificar, aclarar, tornar mais
compreensível, ou enfatizando a acepção física deixar com menos dobras, deixar mais
simples13.
Mas voltemos ao poema. Nos versos 1 e 4, temos o uso do substantivo liber (raiz libr-‐), 14 e que designava, em latim, todo tipo de livro, em qualquer
formato, inclusive o de rolo. Era um termo, portanto, mais genérico15. A palavra liber, porém,
9 Para todas essas acepções de explicare, ver The Oxford Latin Dictionary, s.u. explico. Esse dicionário será doravante indicado como OLD. 10 Retirada de Oliveira, op. cit., p. 47. 11 OLD, s.u. explico. 12 13 Aliás, o adjetivo latino simplex, que tem a mesma raiz de plicare e que originou o nosso termo
outras metáforas, usadas costumeiramente na teorização a respeito da produção textual, que fazem uso da relação entre o ato físico de desdobrar, desenrolar, e a ideia de explicar, expor: falamos muitas vezes
14 15 Lembremos, porém, que autores tardios usam o próprio termo uolumen de maneira genérica, designando não só o rolo, mas também o livro quadrado (codex, cf. item 3, abaixo) e qualquer tipo de
designava, originalmente, a entrecasca, ou seja, a parte interior da casca das árvores, material
esse desde sempre usado pelos povos antigos como suporte para a escrita. A partir daí infere-‐
se facilmente o processo metonímico que levou ao uso do termo para designar o objeto livro.
Quanto ao substantivo uolumen, que, como dissemos, não ocorre nesse epigrama,
origina-‐se do verbo uoluere, que signifi cuja raiz está presente, 16. Volumen, por
consequênc
O equivalente grego do latim uolumen era
(kýlindros), que significava o 17.
Outro termo interessante ocorre no verso 1. Marcial afirma que Seticiano lhe devolveu
o livro explicitum (desenrolado) ad sua cornua Ao final da longa folha
de papiro que formava o livro-‐rolo dos antigos, podia-‐se fixar um cilindro (umbilicus) de
madeira, metal, marfim ou outro material que auxiliava o leitor na tarefa de enrolar ou
desenrolar o livro. Nos livros mais luxuosos, costumava haver dois cilindros, um no começo e
outro no final da folha. As extremidades superior e inferior desses cilindros podiam ser
ornadas com pequenos enfeites em forma de saliências, chamados cornua por
sua própria localização ; veja-‐se a figura
2). É a esses elementos que Marcial faz referência na expressão explicitum ad sua cornua,
embora, aqui, tenhamos metonimicamente a parte (cornua) pelo todo (umbilicus):
foi devolvido desenrolado
até o seu cilindro (umbilicus), ou seja, até o fim da folha, até o fim do livro18.
livro (cf. OLD, s.u., acepção 1b)
16
17 Bailly, Dictionnaire Grec-‐Français, s.u. (doravante, simplesmente Bailly). O termo vem do grego através do latim cylindrus, não usado por esta última língua, porém, para designar o livro-‐rolo. 18 É importante lembrar, porém, que o termo umbilicus, que em Marcial designa frequentemente o cilindro fixado no final da folha de papiro, parece já ser resultado de um processo metonímico, pois que ele também designava originalmente os enfeites nas extremidades do cilindro. Com efeito, umbilicus
umbilic alquer estrutura que se OLD, s.u.), e é fácil imaginar que os ornatos nas extremidades dos cilindros
tinham exatamente a forma saliente de um umbigo. Em suma, no que diz respeito às acepções ligadas ao campo semântico do livro, umbilicus se refere quer ao cilindro como um todo, quer aos enfeites nas suas extremidades. Na segunda acepção, portanto, umbilici é sinônimo de cornua.
No verso 3 o poeta emprega o verbo legere19
com que é usado no epigrama. Porém, tal significado surge na língua latina posteriormente a
de sentido. Dizendo de
forma mais clara, os primeiros sentidos de legere, em latim, são concretos: juntar,
recolher , 3. 20.
surgem posteriormente, a partir destas21. O ato da leitura, o ato de ler é, pois, uma espécie de
as letras, caracteres, palavras nele gravados e, a partir daí, capturar a mensagem contida no
texto.
O verbo perlegere, derivado por sufixação a partir de legere, ocorre duas vezes no
poema, nos versos 1, sob a forma do particípio passado perlectum, e no verso 4, em que
ocorre na 1ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo (perlegi). O verbo significa
, já que o prefixo per-‐ carrega consigo,
dentre outras, a ideia 22. Assim, Seticiano, ao trazer ao poeta o
livro deste desenrolado até os cilindros, quer ingenuamente passar a impressão de que o leu
até o fim (perlectum), como se o simples fato de desenrolar o uolumen já provasse que o lera.
declara que leu da mesma forma (sic perlegi) os cinco livros
de autoria do interlocutor. Ou seja, não os leu. E sutilmente sugere que nenhuma dessas cinco
obras merecia ser lida, provavelmente por sua baixa qualidade poética23.
19 Na forma legisti 20 Diz-‐se, por exemplo, em latim, legere poma legere flores legere oliuam Novíssimo Dicionário Latino-‐Português, s.u. lego legere, pois vem de colligere (con-‐ + legere), que compartilha as mesmas acepções, praticamente, de legere etc.). Observe-‐
collectus colligere, temos a raiz collect-‐, que forma em
latim collectio, de cujo acusativo collectionem collega, também tem a raiz de legere (con-‐ + leg-‐ + a), significando, na origem,
21 Ver OLD, s.u. lego. 22 Cf. Houaiss & Villar, s.u. -‐". Vejam-‐
id. ibid.). 23 Pode-‐se imaginar que o sic utilizada pelo personagem alvejado, ou seja, Marcial teria desenrolado todos os cinco livros de Seticiano sem efetivamente lê-‐los, mas apenas com o fito de simular a leitura. Isso não fica claro, porém, no fecho do poema, para cujo humor basta a ideia de que o poeta simplesmente não leu, sob nenhuma forma, as
Passemos agora a IV.8924, epigrama por demais importante aos nossos objetivos não
só pelas referências a aspectos materiais do livro nele presentes, mas também porque o
próprio livro se torna, aqui, o interlocutor da voz poética e, portanto, um dos personagens,
uma das personae dentro do epigrama25. Como observa Oliva
detém, o livro contém os poemas; como signo, está contido neles, identificando-‐os para o 26. Vejamos:
No epigrama, o último do Livro IV, a voz poética se dirige ao próprio livro a quem
chama afetuosamente libellus, diminutivo de liber para divertidamente repreendê-‐lo por
querer ainda ir adiante, prosseguir no texto, quando sua extensão já é suficiente e, mesmo,
excessiva, o que provoca queixas tanto no leitor quanto no copista, o encarregado de
reproduzir o original para a venda. É evidente nessas linhas a construção do efeito de falsa
modéstia, sobretudo pela enunciação de que o livro, pela sua baixa qualidade estética, sequer
devesse ter sido escrito ou sequer devesse ter passado da primeira página (cf. vv. 5-‐6).
No verso 2, para enfatizar que a extensão do livro já fora além do aceitável, o poeta se
utiliza da expressão peruenimus ad umbilicos , o que significa que já
obras de Seticiano. Ele pode sequer ter tomado na mão os uolumina, sequer pode ter adquirido as obras etc. 24 O metro latino desse poema é chamado hendecassílabo falécio, para o qual usamos, na tradução, o nosso decassílabo. 25 IV.89 integra antologia que estamos preparando com 150 dentre os melhores epigramas de Marcial. 26 O Livro de Catulo, pp. 52-‐53. Oliva Neto está a tratar desse tipo de poema na obra de Catulo, mas podemos perfeitamente aplicar a afirmação também a Marcial, êmulo do poeta veronês. Apenas para sermos exatos, ressalte-‐se que Oliva Neto se refere, no trecho, a todos os metapoemas em que há referências à materialidade do livro, não só àqueles em que o livro figura como personagem, interlocutor. Nestes últimos, a nosso ver, o procedimento é elevado à sua máxima potência.
IV.89 Ei, livrinho, alto lá! Já basta! Chega! Ao cilindro do rolo já chegamos! Mas tu, tu queres ir adiante e avanças, parar na última folha não consegues, como se não cumpriras a tarefa 5 que já cumpriras na primeira página. O leitor já se queixa e desanima, e já o próprio copista diz também: Ei, livrinho, alto lá! Já basta! Chega!
Ohe, iam satis est, ohe, libelle, iam peruenimus usque ad umbilicos. Tu procedere adhuc et ire quaeris, nec summa potes in schida teneri, sic tamquam tibi res peracta non sit, 5 5 quae prima quoque pagina peracta est. Iam lector queriturque deficitque, iam librarius hoc et ipse dicit
se chegou ao final do uolumen, já se chegou ao ponto o final da longa folha de papiro em
que está fixado o cilindro que auxilia o processo de enrolar e desenrolar o livro27.
Não obstante, o libellus não se dá por satisfeito e quer continuar sua jornada,
-‐ (cf. vv. 3-‐4). Aqui, o poeta usa a palavra schida, que designa
cada folha ou seção do rolo de papiro. Ou seja, o uolumen ou livro em forma de rolo era como
que uma única folha contínua, formada pela colagem de folhas menores (schidae) uma após a
outra28. O livrinho admoestado não consegue parar na última folha ou seção (in summa
schida), querendo seguir adiante, com a adição, supõe-‐se, de mais schidae29.
Outro termo importante aqui, embora não ocorra no poema (mas cf. Marcial, III.2.4 e
Xenia, 1.3), é papyrus
Empréstimo do grego (< , pápyros), a palavra designava primeiramente a planta,
nativa do Vale do Nilo, de que se extraíam as fibras necessárias à fabricação do suporte para
escrita, mas, metonimicamente, se referia também à folha de papiro já pronta, quer
individualmente (sinônimo de schida, nesse caso), quer colada uma após a outra para a
formação da folha contínua30. Charta, outro empréstimo do grego (< , ), é
praticamente sinônimo de papyrus: só não é usada para designar a planta31. Marcial o utiliza
em sua obra Apophoreta, 10, 11 e 19632. No papiro (e no pergaminho, veja-‐se à frente o item
27 Para as duas acepções de umbilicus, ver nota 18. Note-‐se que a expressão peruenimus ad umbilicus, guardadas as devidas diferenças, funciona como o explicitum ad cornua que vimos na análise de XI.107, pois ambos se referem ao final do livro em forma de rolo. 28 Oliveira, op. cit., pp. 209-‐211. Um paralelo, ainda que grosseiro, pode ser feito com os modernos formulários contínuos. 29 Registre-‐se que schidae formar a folha (OLD, s.u.). Depois de descascadas, as hastes do papiro (Cyperus papyrus) eram seccionadas em tiras longitudinais (schidae) que, para formar a folha de papiro, eram então dispostas lado a lado numa camada horizontal e, sobre esta, numa camada vertical. Prensava-‐se, então, essa composição, para a retirada da água e para que as tiras se fundissem graças a suas substâncias aglutinantes naturais. Formava-‐se, assim, a folha de papiro (que também era chamada de schida, como dissemos). A palavra latina vem do grego (schízda
s.u.). 30 OLD, s.u., acepções 1 e 2, e Bailly, s.u. O vocábulo papyrus poderia designar ainda a folha contínua já
31 OLD, s.u. c(h)arta, e Bailly, s.u. Note-‐se a variação de grafia no termo latinizado, com ou sem o h. É de c(h)arta , que designa não só a missiva, mas também um tipo e formato de papel. Ver também o esp. . Compare-‐ ), ing. ( ) e italiano ( ), que vêm do latim littera
Littera anos também tinham para esse sentido o termo epistula. 32 Apophoreta mais de duzentos poemas que descrevem objetos para serem distribuídos ou sorteados aos convivas pelo anfitrião de um banquete durante as festividades das Saturnais, brindes esses que os convivas podiam levar para casa. Alguns epigramas da coletânea sugerem, porém, que os presentes descritos também poderiam ser simplesmente enviados, trocados entre os romanos durante as Saturnais, sem
3), escrevia-‐se com tinta, que era colocada dentro da haste oca e cilíndrica de várias plantas,
chamadas genericamente calamus 33 (< , kálamos), canna (< ,
kánna)34 e (h)arundo. Tais objetos também eram frequentemente fabricados em metal.
Passemos agora ao termo pagina, usado no verso 6 e de que se origina,
evidentemente, . Ele designava cada uma das colunas em que se
dividia a escrita nas folhas de papiro35, medida necessária pelo fato de o rolo inteiro constituir
uma folha única (ver figura 2, acima). É com esse sentido que a palavra é usada no epigrama: o
libellus, em seu afã de continuar, ir adiante, é incapaz de perceber que sua tarefa já estava
terminada, segundo o poeta, logo na primeira coluna (cf. prima pagina, v. 5-‐6), pois que um tal
livro, de tão ruim, sequer merecia ter sido escrito, para a felicidade de leitores e copistas.
Mas pagina, em latim, possuía ainda outro sentido, que nos ajuda a explicar o
significado de seus cognatos em outras línguas modernas (esp.
etc.). Chamava-‐se pagina também ao conjunto das
colunas visíveis no trecho desenrolado do uolumen (como as três colunas na figura 2)36. O
número de colunas ou a porção desenrolada poderia variar, pois dependeria do leitor, mas
provavelmente não era muito grande, por uma questão prática. Supõe-‐se que o trecho lido era
novamente enrolado para que se pudesse desenrolar o novo conjunto de colunas a serem
lidas37.
Nos versos finais, duas figuras participantes da produção e recepção dos textos no
mundo antigo são mencionadas. O leitor, em latim lector, e o copista, librarius. A primeira
palavra tem a raiz de lectus legere, que já encontramos em
XI.107. A segunda vem de liber em sua raiz libr-‐, palavra também já vista. O librarius
origem de nosso termo era uma mistura de editor, copista e livreiro: comprava dos
16). 33 OLD, s.u., acepção 2. O termo é usado em Marcial, por exemplo, em Apoph., 20.1 e 38.1 e título. Dele
Houaiss, s.u., acepção 3). 34 OLD, s.u. De canna vem o port. 35 Cf. OLD, s.u., acepção 1a, e Oliveira, op. cit., p. 46. Quanto aos códices em pergaminho, quando comportavam textos em prosa, costumavam ter suas folhas divididas em duas colunas (Oxford Classical Dictionary, s.u. la OCD. 36 Cf. OLD, s.u. 37 Pagina tinha ainda outras acepções, além das duas mencionadas: podia designar cada folha individual de papiro, antes de ser colada às outras (Oliveira, op. cit., p. 46), sendo, nesse caso, sinônimo de schida; ou ainda designar, metonimicamente, o livro, uma obra, um escrito ou o conjunto da obra de um autor (por exemplo, em Marcial, I.4.8).
autores os originais, copiava-‐os ou mais comumente mandava copiá-‐los e os vendia em sua
loja38. O termo designava, portanto, tanto o dono de uma livraria quanto os escribas (muitas
vezes escravos) que produziam as cópias39.
No epigrama, o leitor se mostra desanimado e se queixa; e o copista, esgotado pelo
trabalho de reprodução manual do texto, faz coro com o próprio eu poético, e diz ao
.
Em sua obra, Marcial menciona o nome de alguns de seus livreiros-‐editores, como
Atrecto, citado em I.11740:
POEMA TRADUZIR
Luperco, o indivíduo alvejado, deseja muito ler um dos livros de Marcial, mas parece
não querer gastar para comprá-‐lo. Por isso, vive sempre a pedir ao poeta que lhe envie,
através de um escravo, o livrinho, o qual, lido na mesma hora, o mesmo escravo levará de
volta (vv. 1-‐4). Talvez pensasse Luperco que seu interesse pela leitura da obra do poeta já
fosse para este paga suficiente. Marcial, porém, percebendo os motivos do insistente sujeito,
usa a distância como desculpa para não atender ao pedido. Com efeito, mora no distante
38 Oliveira, op. cit., p. 229ss. 39 OLD, s.u. acepções 1 e 2. O correspondente em grego para librarius é ( ), termo latinizado como bibliopola, sinônimo de librarius (e usado por Marcial, por exemplo, em Apoph., 194.2). O substantivo grego é formado por (biblíon (s.u.). 40 Novamente usamos decassílabo (o metro do original é o hendecassílabo falécio).
I.117 Se me encontras, Luperco, sempre dizes:
pra me trazer teu livro de epigramas,
Mas por que perturbar, Luperco, o escravo? 5 É longe, se ele ao Piro quiser vir; e moro no terceiro andar, é alto. Podes obter mais perto o que desejas. Costumas ir, decerto, ao Argileto: há uma loja, em frente ao Fórum de César, 10 com os dois batentes cheios de cartazes, em que há os nomes dos poetas disponíveis. Busca-‐me ali. A Atrecto do livreiro esse é o nome nem tens de me pedir, e do primeiro nicho ou do segundo, 15 pela pomes polido e em capa púrpura, um Marcial vai te dar, por cinco pratas. Não valho tanto? O que és é um espertinho!
Occurris quotiens, Luperce, nobis,
aton libellum,
Non est quod puerum, Luperce, uexes. 5 Longum est, si uelit ad Pirum uenire, et scalis habito tribus, sed altis. Quod quaeris propius petas licebit. Argi nempe soles subire Letum: contra Caesaris est forum taberna 10 scriptis postibus hinc et inde totis, omnis ut cito perlegas poetas: illinc me pete. Nec roges Atrectum hoc nomen dominus gerit tabernae ; de primo dabit alteroue nido 15 rasum pumice purpuraque cultum denaris tibi quinque Martialem.
Sapis, Luperce.
bairro do Piro e o escravo ainda terá de subir até o terceiro andar, onde o poeta
reside! (vv. 5-‐7). Com uma solicitude que beira o descaramento, o epigramatista gentilmente
indica então o local onde seu livro pode ser comprado, muito mais perto da casa de Luperco: o
Argileto, tradicional bairro dos livreiros na Roma Antiga41 (vv. 8-‐10).
O dono da livraria atende pelo nome de Atrecto (cf. vv. 13-‐14: Atrectus, hoc nomen
dominus gerit tabernae) e, mal
tenha Luperco assomado à sua
porta e antes mesmo de dizer
a que vem, vai o livreiro lhe
estender um exemplar de
Marcial, tamanha é a procura
dos leitores por esse autor (v.
15). É impossível não
comparar a jocosa presunção
aqui demonstrada com a falsa
modéstia apresentada no
epigrama anterior, IV.89.
Note-‐se, em I.117, que o
vendedor vai retirar o exemplar de Marcial da primeira ou da segunda
prateleira (v. 15), o que mostra que o livro vende bem, estando sempre à mão.
Atrecto, pois, é um librarius. Sua loja tem os batentes repletos de
cartazes com os nomes dos poetas ali vendidos (vv. 11-‐12). O termo que
designa a livraria, no epigrama, é taberna
sentido geral. O termo mais preciso seria libraria taberna,
É de libraria 42. Na
loja de Atrecto, os livros em forma de rolo (uolumina) ficam guardados
horizontalmente em nichos na parede (cf. nidi, v. 15) que serviam de prateleira,
conforme pode ser visto na figura 343.
41 OLD, s.u. Ficava próximo aos fóruns de Vespasiano e de Nerva. 42 item 3. 43 Imagem colhida de Clark, J. W. The Care of Books.
No verso 16 há referência a dois outros elementos da confecção do livro entre os
antigos, o tratamento com pedra-‐pomes e a capa de pergaminho44. Os exemplares de Marcial
disponíveis para venda na loja indicada têm acabamento mais fino, pois tiveram as duas
extremidades do rolo (frontes) polidas com um pedaço de pedra-‐pomes (pumex), processo
que era realizado após a escritura da folha de papiro e visava a retirar das frontes as rebarbas e
irregularidades (ver figura 445). Além disso, eles são ornados, vestidos com a púrpura (purpur
cultum), uma referência à capa de pergaminho (membrana ou paenula) de que dispunha o
uolumen de acabamento mais refinado, para proteção contra intempéries e sujeira46. Tais
capas eram geralmente pintadas com o corante púrpura extraído do molusco murex e
importado, a um alto preço, da Fenícia47. Por terem acabamento e acessório refinados, o 48 (v. 17), preço que
surpreende Luperco e motiva a sua afirmação de que um livro de Marcial não pode valer tanto
(v. 18). A resposta do poeta, de que seu interlocutor um espert sapis, Luperce),
embora permita mais de uma interpretação, refere-‐se, a nosso ver, ao tema geral do
epigrama, a malandragem de Luperco ao tentar emprestar o livro do próprio autor e lê-‐lo sem
gastar nenhum dinheiro.
2. As tabuinhas de cera
Outro suporte para a
escrita muito utilizado pelos
antigos romanos era a tabuinha de
cera ou tabuinha encerada, uma
pequena placa de madeira, de
formato em geral retangular, em
que se espalhava cera e, sobre
esta, se escrevia com um objeto
44 Note-‐se, a título de curiosidade, a forte sonoridade desse verso, com suas aliterações em /p/ e em /k/: rasum PumiCe PurPuraQue Cultum. Tentamos reproduzi-‐
45 Retirada de Oliveira, op. cit., p. 46. 46 Cf. Oliveira, op. cit., pp. 46-‐47 e 221-‐222; e Sandys, J. Ed. (ed.). A Companion to Latin Studies, pp. 238-‐239 (doravante CLS). Ver também membrana no OLD, acepção 3b. 47 OCD, s.u. O termo latino purpura designava a cor púrpura, o corante dessa cor extraído do referido molusco, e o próprio molusco (cf. OLD, s.u., acepções 1, 2 e 3). 48 Era entre os romanos uma moeda de prata cujo valor original fora de dez asses (outra unidade monetária romana), daí seu nome (denarius < deni OLD, s.u.). É a origem do
-‐argentum
pontiagudo. A tabuinha era provida de bordas ou molduras (ou era escavada de forma a
possuir bordas ou molduras), de forma que a cera era espalhada sobre uma superfície
ligeiramente mais funda que a moldura. A imagem 5 mostra uma dessas tabuinhas de
escrever, juntamente com um stilus 49, com o qual se escrevia sobre a cera50.
As palavras ou expressões latinas para designar tais tabuinhas eram inúmeras e faziam
referência, cada uma, a algum aspecto ou característica desse suporte para escrita. Muitos dos
termos sequer podem ser traduzidos, por não encontrarem correspondente em nossa língua,
não, ao menos, com o mesmo sentido.
Assim, tabula (literalmente painel e tabella
painel faziam referência ao formato e ao material de que eram
geralmente feitas, a madeira51. Usavam-‐se ainda tabella cerae tabella
cerata Pugillar pugilar 52) se referia ao tamanho diminuto
do objeto, que podia caber numa mão (de pugillus, diminutivo de pugnus )53. Caudex,
também grafado codex o material, a madeira,
posto que tais termos tinham, como primeira a 54. Codiccilus
), por fim, era diminutivo de codex, fazendo, portanto, referência ao material e ao
tamanho pequeno das tabuinhas de escrever55.
A expressão latina tabula rasa, bastante usada no campo da filosofia, da psicologia e
da educação, remete ao objeto de que estamos tratando, bem como ao stilus. Significa
49 Também grafado stylus. 50 A primeira acepção de stilus é a de qualquer objeto fino e pontiagudo feito de metal (OLD, s.u.,
stilus pontiaguda (para escrever sobre a cera) e outra achatada (para, raspando a cera, apagar as letras grafadas) (id. ibid., acepção 2). É deste segundo sentido que se origina por metáfora, já em latim (id. ibid.qual um indivíduo usa os recursos da língua para expressar, verbalmente ou por escrito, pensamentos, sentimentos, ou para fazer declarações, pronunciamentos etc. -‐se, utilizando palavras, expressões que identificam e caracterizam o feitio de determinados grupos, classes ou
etc. que identificam ou distinguem uma obra, um artista etc.Houaiss & Villar, s.u.). stylus origina o as palavras francesa e
51 Havia também tabuinhas de marfim (evidentemente um item de luxo), como o prova o epigrama 5 dos Apophoreta. Para a acepção de tabula OLD, s.u., acepção 6a. Para o mesmo sentido em tabella, ver no mesmo dicionário as acepções 6a e b. 52 53 OLD, s.u. Ver, em Marcial, os títulos de Apoph., 3 e 5. 54 OLD, s.u. caudex. A acepção 2 se refere à tabuinha de escrever. Sobre o outro significado de caudex/codex 55 OLD, s.u., acepção 2.
por meio da raspagem com a extremidade chata do stilus56. Assim, tabula rasa passou a
Como metáfora, tabula rasa é usada no empirismo do
século XVII, doutrina filosófica segundo a qual todo conhecimento provém unicamente da
experiência, limitando-‐se ao que pode ser captado do mundo externo, pelos sentidos, ou do
mundo subjetivo, pela introspecção 57,
tabulae rasae, ou seja, desprovidas de qualquer conhecimento inato.
Mas voltemos à Antiguidade. As tabuinhas de cera eram utilizadas para anotações,
rascunhos, exercícios escolares, envio de mensagens (que podiam ser respondidas na mesma
tabuinha pelo destinatário) e todo
tipo de escritura de caráter não
permanente. Havia aquelas
e havia as com duas ou mais
bloco de notas (nesse caso, os
termos vistos acima ocorriam no
plural: tabulae, tabellae, tabellae
cerae, tabellae ceratae, pugillares,
codiccili)58. Na figura 6, vemos o
conhecido afresco, encontrado em
Pompeia no século I d.C. e hoje no
Museu Arqueológico Nacional de
Nápoles, que representa uma
mulher em postura meditativa
rmado, ao que parece, por quatro tabuinhas de cera
encadernadas, e, na outra, um stylus.
56 Rasa é o particípio passado (no feminino, singular) do verbo radere OLD, s.u. rado). 57 Houaiss & Villar, s.u. 58 Apenas caudex/codex é que podia indiferentemente ficar no singular ou no plural (caudices/codices), mesmo quando se referindo a um conjunto de várias tabuinhas encadernadas.
Na obra de Marcial, no livro Apophoreta, há toda uma série de dísticos (3-‐6 e 8-‐9) que
descrevem tabuinhas de escrever dos mais diversos tipos e com diferentes propósitos59.
Vejamos dois desses epigramas60:
O objeto aqui mencionado é formado por cinco tabuinhas (quinquiplices) unidas,
um cordão, assemelhando-‐se muito ao livro no formato que conhecemos
hoje. Com efeito, as tabuinhas para escrever, enceradas ou não, são por muitos consideradas
como os antepassados do codex, livro que não mais é um rolo, e sim o conjunto de folhas de
formato retangular ou quadrado encadernadas por um de seus lados. Não é à toa que o termo
codex já designava as tabuinhas de cera e passou a designar também, ainda na Antiguidade, os
livros quadrados/retangulares de folhas geralmente de pergaminho encadernadas61. Da
mesma forma, o termo tabella, que designava, no singular, uma tabuinha de cera ou cada
tabuinha de um conjunto com várias delas, também era usado em referência a cada folha de
um codex de pergaminho62. Mas deixemos para falar deste mais à frente e voltemos ao
epigrama acima.
Como se pode notar em Apoph., 4, as tabuinhas de cera eram utilizadas também em
atos oficiais, contendo, por exemplo, a lista dos jurados destinados a compor um tribunal ou a
relação dos senadores63. Segundo Marcial, a concessão de uma magistratura pelo imperador
também era acompanhada, além dos sacrifícios e oferendas aos deuses, da leitura de algum
documento ou do registro do ato em tabuinhas de escrever64. Outra função curiosa desse
objeto aparece no sexto epigrama do mesmo livro:
59 Sobre o Apophoreta, ver nota 32. 60 Usamos dodecassílabos e decassílabos na tradução (ver nota 5). 61 OLD, s.u. caudex, acepção 2a. 62 OLD, s.u. tabella, acepção 6b. 63 Oliveira, op. cit., p. 203. 64 Observe-‐se a expressão usada no epigrama:
-‐se, assim, que o termo cera, sozinho, OLD, s.u., acepção 4a.
Apoph., 4 Tabuinhas de cinco folhas No altar do nosso chefe, quente pelo sangue, tabuinhas quíntuplas concedem honras.
Quinquiplices. Caede iuuencorum domini calet area felix, quinquiplici cera cum datur altus honos.
O poema descreve um grupo de três tabuinhas encadernadas (triplices), objeto que,
pelo que se depreende do dístico, é de pequeno valor. Enviada como presente durante as
Saturnais, seu destinatário poderá considerá-‐la simples, indigno, mera (uilia
dona, v. 1). O poeta, porém, faz ao exigente destinatário uma ressalva: quando as tabuinhas
lhe trouxerem a resposta positiva da amada a um convite através delas enviado, sem dúvida
elas serão vistas como valiosos objetos (v. 2). Percebe-‐se, por esse epigrama e por outros (cf.
também Apoph., 8 e 9), que um dos usos das tabellae cerae era a troca de mensagens,
inclusive as amorosas.
Antes de passarmos ao terceiro e último item deste artigo, não podemos deixar de
mencionar a semelhança, quanto ao formato, tamanho e, muito grosso modo, a finalidade,
entre as tabellae cerae dos antigos e os modernos dispositivos móveis eletrônicos conhecidos
A
parte da tabella preenchida com cera, ou seja, à parte efetivamente usada para leitura e
escrita. Em inglês, inclusive, o mesmo termo serve tanto para traduzir o vocábulo que designa
as tabuinhas de cera dos antigos quanto para nomear o dispositivo eletrônico. Mesmo porque
o moderno dispositivo), deriva exatamente do latim tabula65. A mesma analogia com as tabuinhas de escrever pode ser
feita, evidentemente, com outros dispositivos portáteis similares, anteriores ou
c -‐
smartph . Mas não se tem, nesses casos, o nome derivado do termo latino que
designava as tabuinhas de cera.
3. O livro em formato de codex
Na época de Marcial, embora predominasse o uolumen, o livro em forma de rolo,
começava a ganhar espaço o codex, uma inovação que os próprios romanos haviam produzido,
mas que só viria a prevalecer sobre o uolumen a partir do século IV d.C.66 Como já dito acima,
65 Ou seja, lat. tabula > fr. 66 OCD, s.u. CLS, p. 238.
Apoph., 6 Tabuinhas de três folhas Não vais achar vil brinde tais tabuinhas tríplices,
se tua amada escrever-‐te que virá.
Triplices.
Tunc triplices nostros non uilia dona putabis, cum se uenturam scribet amica tibi.
quando tratamos das tabuinhas de cera, o codex é já o livro no formato tal como o
conhecemos, ou seja, formado por folhas cortadas, quadradas ou retangulares, encadernadas
em um de seus lados. Em vez de desenrolar ou enrolar o livro, como no uolumen, as folhas
agora são simplesmente viradas. O segundo epigrama do Livro I trata justamente de um livro
nesse novo formato, bem como de suas muitas vantagens:
O interlocutor do poeta é o próprio leitor, mas não qualquer leitor: trata-‐se daquele
que deseja ter sempre os livros de Marcial consigo, mesmo nas longas viagens. Nada melhor
então, diz o poeta, que o formato em que vem o presente livrinho, pois, composto em
pergaminho (cf. membrana, v. 3), tem tamanho reduzido, é formado por poucas páginas
(breuibus tabellis) e cabe numa única mão, dispensando os escrínios (scrinia, v. 4). Com efeito,
o pergaminho, ou seja, o couro preparado para receber a escrita, podia tê-‐la nos dois lados,
frente e verso67, comportando, portanto, mais texto, enquanto que o papiro só podia receber
escrita num dos lados, aquele que era interno ao rolo68.
Outra vantagem, não mencionada explicitamente no epigrama, mas que pode ser
inferida a partir do verso 2, é a maior resistência do pergaminho, mais adequado, portanto, a
um exemplar destinado a ser carregado em longas viagens. Tanto é verdade que, como vimos
anteriormente (cf. item 1), o pergaminho era usado na confecção de uma capa cilíndrica para
proteger os rolos de papiro.
67 Oliveira, op. cit., p. 220. 68 O pergaminho tornou-‐se de longe o material mais usado nos codices, embora também existissem uolumina em pergaminho. No caso dos livros em forma de rolo, porém, o material predominante era o papiro, usado muito pouco em codices (OCD, s.u. -‐se, então, que o termo codex, em princípio, se refere apenas ao formato do livro, independentemente do material (pergaminho, papiro, papel etc.) de que são feitas as folhas.
I.2 Tu que os meus livros queres contigo aonde vás, e companheiros para longas viagens, compra estes, que limita a pele em breves páginas, dá escrínio aos grandes, numa mão caibo eu. Mas para que onde estou à venda não ignores 5 vagando em vão por Roma, eis-‐me teu guia: busca Segundo, que era escravo de Lucense, junto ao fórum da Paz e ao de Minerva.
Qui tecum cupis esse meos ubicumque libellos et comites longae quaeris habere uiae, hos eme, quos artat breuibus membrana tabellis: scrinia da magnis, me manus una capit. Ne tamen ignores ubi sim uenalis et erres 5 urbe uagus tota, me duce certus eris: libertum docti Lucensis quaere Secundum limina post Pacis Palladiumque forum.
No poema, o termo para pergaminho é membrana, cujos significados iniciais são
69, de onde o sentido de couro de certos animais (ovelhas, cabras, etc.)
preparado para receber a escrita 70. Reencontramos o termo em vários
epigramas da coletânea Apophoreta, todos fazendo referência à praticidade e economia do
material. Vejamos dois exemplos. Em 186, intitulado Vergilius in membranis
-‐se um exemplar contendo a Eneida ou talvez a obra
(Quam
breuis immensum cepit membrana Maronem!), diz o primeiro verso. No epigrama 188,
intitulado Cicero in membranis
em I.2, a praticidade de tal formato e material d
viagem for este pergaminho, imagina/ que os longos caminhos percorres na companhia de
Si comes ista tibi fuerit membrana, putato/ carpere te longas cum Cicerone uias)71.
pellis )72, como em
Apoph., 184, em que Marcial descreve um codex em pergaminho que contém os textos da
Ilíada e da Odisseia (cf. pelle, v. 2). O mesmo se dá em 190
em que o poeta afi o enorme Lívio está comprimido em pequeninas
peles pellibus exiguis artatur Liuius ingens, v. 1), em referência, a um só tempo, à
envergadura do historiador e à extensão de sua obra.
Havia ainda em latim, claro, o vocábulo de que veio diretamente o termo
. Como a cidade de Pérgamo, na Ásia Menor, era uma grande produtora do
material e o local em que a sua técnica de fabricação foi aperfeiçoada, conhecia-‐se em Roma o
produto como charta Pergamena ) ou membrana Pergamena73
Com o tempo, o adjetivo gentílico sozinho, substantivado, passou a designar o
produto: Pergamina > pergaminho74.
Voltemos ao epigrama I.2. No verso 3, diz o poeta que o pergaminho permite ao livro ser
composto por apenas algumas páginas (breuibus tabellis). Aqui, tabella é usada em seu sentido
quando da análise de Apoph., 4, tabella pode se referir a uma folha ou página individual de um
69 OLD, s.u., acepção 1. 70 Id. ibid., acepção 3. 71 As Metamorfoses de Ovídio em
72 OLD, s.u., acepções 1a, 3a e 3b. 73 Pergamena, nas duas expressões, admitia a variação Pergamina. 74
livro, seja cada tabuinha dentro de um conjunto de tabuinhas encadernadas, seja uma folha
individual feita de qualquer material de um livro em formato codex75.
No verso 4, entre as vantagens do codex descrito, é dito que ele não necessita de
escrínios, pois cabe numa única mão. O termo
latino usado, scrinia, é plural de scrinium, espécie
de caixa ou cofre cilíndrico (scrinium curuum) em
que se guardavam os escritos em formato de
uolumen76 (ver figura 7)77. Muitas vezes eram
dotados de alças que facilitavam o seu
transporte (cf. Apoph., 84), funcionando como
uma espécie de mala especial para livros
durantes as viagens78. No caso do poema I.2, o
livro não precisará de escrínio não só por seu
tamanho diminuto, mas também porque não é
um uolumen.
Sinônimo de scrinium no sentido acima é capsa , bem como seu diminutivo
capsula , como abona o OLD79, embora capsa tenha um significado mais amplo,
designando um recipiente para qualquer tipo de objeto, como o grego ( ). A título
de curiosidade, e , forma
(biblio ), que pode significar 1. uma caixa para guardar livros, 2. um depósito para guardar
livros80 e, consequentemente, 3. biblioteca81. A palavra grega também ocorre na língua dos
romanos, latinizada como bibliotheca, como o demonstra Apoph., 190.2.
Nos dois dísticos finais, o poeta indica, a exemplo do que fizera em I.117, o local onde
seu leitor pode comprar os livrinhos recomendados, não tendo de procurá-‐lo por toda a cidade
de Roma (vv. 5-‐6). Recomenda a loja de Segundo, liberto de uma pessoa muito douta, um
certo Lucense (docti Lucensis). Segundo é, pois, outro editor-‐livreiro do poeta, como o Atrecto
75 OLD, s.u. tabella, acepção 6b. A mesma acepção para tabella é encontrada em Apoph., 192.1. 76 CLS, p. 239, e Oliveira, op. cit., p. 215. Apoph., 37 descreve um recipiente desse tipo. 77 Retirada de Clark, op. cit. 78 Scrinium designava ainda uma estante (para livros ou outros objetos), e uma espécie de escrivaninha provida de escaninhos (OLD, s.u.). 79 S.u. capsa e capsula 80 Bailly, s.u. 81 Cf. port. esp. it.
citado em I.117, e sua livraria fica no mesmo bairro deste último, o Argileto, mas desta vez
depois da entrada dos Fóruns da Paz e de Minerva82.
sendo o formato do livro (codex) algo ainda pouco usual para os leitores, acostumados com o
rolo de papiro, os versos do epigrama destacam as vantagens do novo produto, além,
obviamente, de fornecerem o que é costumeiro na obra de Marcial o endereço do local
em que as obras do autor são vendidas.
82 O Fórum da Paz (forum Pacis) era uma extensa área (145 X 100m) cercada por pórticos e provida, além do templo da Paz, de diversas construções. Construído por Vespasiano em 75 d.C., era também conhecido como Fórum de Vespasiano (forum Vespasiani Palladium forum),
Forum Transitorium ou Forum Neruae, ao fundo do qual havia um templo consagrado a Palas/Minerva, deusa de quem Domiciano, construtor do fórum, era devoto. Era atrás desses dois fóruns que ficava o Argileto, o tradicional bairro dos livreiros em Roma (OCD, s.u. s.u.
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