rocha_everardo-a sociedade do sonho

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( A SOCIEDADE DO-SONHO Comunicação, Cultura e Consumo 41 edição CÓP ,...,. __ xerox1 u [email protected]

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Page 1: ROCHA_Everardo-A Sociedade Do Sonho

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A SOCIEDADE DO-SONHO

Comunicação, Cultura e Consumo

41 edição

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PROF.~J:l~~~~~

xerox1 u [email protected]

Page 2: ROCHA_Everardo-A Sociedade Do Sonho

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dos olhos, estranha no pensamento

Neste primeiro capítulo, quero definir alguns aspectos centrais da montagem e realização de um trabalho de interpretação da Comu­nicação de Massa, e aquilo que ela pode ensinar sobre o fenômeno do co11sumo. Vamos começar a conhecer o significado do mundo mágico de imagens, palavras, sons, movimentos e cores através do qual os Meios de Comunicação invademnosso cotidiano. Vamos discutir idéias a respeito deste .universo de produções simbólicas. Entender a lógica e a mágica dessa Indústria Cultural que organiza, encanta, engana, traduz, enfim, nossa experiência de ser no mundo, ao reproduzir esta espécie de vida em paralelo que nos envolve a todos e a cada um; nosso tempo e lugar.

O tema da Comunicação de Massa e a respectiva busca do seu significado é uma discussão importante, por muitos motivos. Não é por acaso que muito já se escreveu sobre isso, e a tendência entre diversos pesquisadores é mesmo no sentido de acreditar que entender a cultuni contemporânea passa, de algum modo, por desvendar os conteúdos transmitidos pelos Meios de Comunicação. Assim, este li­vro se inscreve entre aqueles que pretendem manter vivo este diálo­go, assinalando pistas e oferecendo idéias que reforçam um debate que, ao discutir a Indústria Cultural, acaba por falar dos fenômenos do consumo em geral, e, principalmente, desta singularidade que é a nossa experiência de compartilhar as significações de uma época.

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' l I A SOOFJ>ADE DO SONHO: COMUNICAÇÃO, CUL11JRA E CONSUMO

De fato, o mu~o refletid~ de dentro da Indústria Cultural é fas­cinante. Diante dos nossos sentidos, desfilam milhões .de mensagens que nos contemplam e conosço falam. O universo de especulação·sim- . bólica que a Comunicação de Massa projeta é, provavelmente, a mais formidável máquina de criação do imaginário coletivo de nosso tem-·I po. Assim, esta questão vem desafiando os analistas das mais diversas disciplinas desde as primeiras décadas deste século. Olb!li de modoI crítico o sistema simbólico que atravessa a cultura por força dos Mei-

I .os ·de Comunicação, nos conduz para uma irreversível vontade deI

I I· desvendar esse mundo que passeia diante dos nossos sentidos. Assis­1

tir, com perspectiva crítica e atenta, ao desfile da imaginação social · contemporânea, que é veiculado pela Indústria Cultural, é uma expe­

; . ; riência desafiadora e instigante.

Na minha trajetória acadêmica, foi definitivo. O impacto desta · questão como refer~ncia eobjeto de conhecimento instaurou um sau­dável desejo, quase umcompromisso, de tentar decifrar este extraor­dinário sistema simbólico. A sensação da descoberta e da posse de uma curiosidade intelectual foi salutar, praZerosa, e acabou também por ser um longo percurso de pensamento. Para situar melhor a dis­cussão, vamos tever um pouco deste percurso. Ele pode esclarecer as razões do projeto de interpretação da Comunicação de Massa atravé·s de uma perspectiva própria da Antropologia Social.

A explicação para este mistério de sedução intelectual é bem sim­ples. Eu estava na faculdade de Comunicação, e, como muitos jovens que fazem esta mesma escolha, atento ao meu universo de inserção pelos anos seguintes. Foi precisamente neste primeiro encontro inte­ressado com a Indústria CulturaP que aconteceu um curto-circuito. M~ adiante,fui perceber, com um olhar enviesado, invertido, gauche, o fenô~!!.~P.O contrário. Um olhar de estranhamente mesmo; para- · fraseando Ltvt-Strauss foi um olhar distanciado, próximo do estilo antropológico de olhar.

Posso lembrar da cena com clareza, por sua força de elucidação. · Ela foi uma espécie de incidente revelador. Era época de Natal, em pleno centro de Copacabana O calor, beirando quarenta graus, des­mentia, no fim da tarde, aquela Europa da loja - neve, trenó, vinho tinto e castanha - magicamente instalada entre a beira da praia e o suor na camisa. Muita gente junta, passos curtos, corpos espremidos

COMUNICAÇÃO DE MAssk PISTAS, MAPAS EEsTRADAS

e um putro mundo dentro das vitrines. Dentre elas, uma em especial causava evidente fascínio em todos ali. Era a da lojá de eletrodomés­ticos; com sua esplêndida coleção de modernidades. Entre os apare­lhos, as muitas televisões empilhadas perdiam sentido; multiplicando efeitos em lima esticmba orquestra. Em várias delas, simultaneamente

·. e com diversos formatos, acontecia uma mesma cena inesquecível. Um anúncio de jóias de brilhantes. Na atmosfera de sonho em

som e imagens. assistimos a um casal completamente lindo. Os dois, assim como nós aqui embaixo, olham vitrine. Nela, evidentemente, brilhantes. Um solitário parece especial, pois a câmera "fecha" nele. Ela tem, na face, a expressão de quem quer demais; ele, aquela de quem .Tião pode dar. Corta. Ela em casa, circunspecta e delicada, monta a árvore de Natal. Corta. Ele levanta-se da mesa de trabalho. Corta. Ela, no es'pelho, fazendo-se mais linda. Ele, comprando o dia­mante. Seqüência final: o casal em tomo da árvore. Ela desembru­lha o presente. Seu rosto abre-se, num sorriso magnífico, brilhante, diamantino. Gratidão, promessa, plenitude, e a câmera posiciona-se para fixar, no dedo, o anel tão desejado. De repente, sem aviso pré­·vio, muda tudo. Sai o som e a imagem do "close" do dedo, e um plano médio invade atela, focalizando um banco. Barulho de tiros de armas pesadas e, na imagem, estilhaços dos vidros do banco, estilha­ços de cabeças dos guardas. Correria para todos os lados. Rajadas, sirenes, sangue em profusão. Um assalto a banco muito rápido. Ban­didos mascarados em carros desenfreados fogem da polícia. Causam

· tumulto, jogando dinheiro nas ruas. Uma dúzia de mortos em alguns segundos. Uma conhecida vinheta e o locutor em "off" anuncia o epi­sódio da série daquela noite.

Pois é,.eis aí a cena completa, absolutamente inesquecível na sua ambígua, assustadora e enigmática mensagem. Ainda bem que tudo aconteceu no mundo lá dentro da Indústria Cultural. Entre acre­ditar que aquilo era apenas um minuto normal das programações diá­rias de televisão ou que eu estava alucinando diante da louca pedago­gia dos mídia, sobrou a sensação de estranhamente e exotismo no meu espírito. E, assim, questões decisivas assumiram a forma de uma interpretação antropológica da Indústria Cultural: como é que uma coisa tão rotineira e familiar, uma espécie de moeda corrente das nos­sas sociedades modernas-industriais-capitalistas, pode ser, a um só

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A SOCIEDADE DO SONHO: COMUNICAÇÃO; CUlruRA E CONSUMO

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tempO, tão exótica e e~tranha? Como é._ que pode esta cena, afinal? Como algo tão comum quant~ um an~cio de diamantes, seguido do anúncio de um filme, pode conter toda uma outra lição, ligando assai­

. tos e presentes-de-natal-pàra-a-mulher.;.~? Como estas coisas podem ir juntas, .no fim das contas?·Quantas ideologias, estilos de vi~ ou modelos de ser no mundo são carregados nas viagens de sím­

. bolos de um anúncio, uma notícia, um programa de televisão? Essas dúvidas estavam presentes durante todo o curso de Comu­

nicação. Às·vezes, tal como meus colegas, queria entrar no-mUiido da Indústria Cultural como um produtor; às vezes, inversamente, queria adquirir os instrumentos intelectuais para pensá-la. Não sabia se Co­municação de Massa era boa para fazer ou boa·para pensar. Em todo caso, tal oscilação gerava desejo de estudar. Desnecessário dizer que, naquele início dos anos 70, havia uma conjuntura de fortes pressões pessoais, políticas e intelectuais. Definições consistentes à flor da pele, dilemas demandando respostas à queima-roupa. De um lado, livros

I de técnicos e produtores, laboratórios de aulas práticas, estágios para "aprender com quem faz", jornais-escola e a duvidosa seduçl,o. da .....

I glamour destas profissões. De outrolado, em evidente contramão com tudo isto, vinda de outro planeta, estava a "teoria".

O ambiente intelectual era ativo e parecia muito necessário ler. Com isto, os professores indicavam textos de Freud, Lacan, Marx, Durkheirn, Weber, Lévi-Strauss~ Saussure, Jacobson, McLuhan,Ador­no, Barthes, Eco, Goffman, Bourdieu, Micelli - as coletâneas de Gabriel Cohn, Schramm, Alfred Smith, Berelson e Costa Lima. Tudo isso (e não poderia ser de outra fonna) confusamente digerido, ao estilo de uma excursão turística ao Metropolitan Museum. Aulas que ensinavam a fazer sedutores anúncios publicitários ou programas de televisão, entremeadas com outras de aprender teorias para questio­nar as primeiras. Era um momento rico: se não de um saber sistemá­tico, ao menos de perplexidade. Certamente rico em rupturas, ligeiras esquizofrenias, delicadas divisões, que acompanhavam a vivência dé estudantes relativamente sensíveis à atmosfera. Neste sentido, a cena acima descrita permitia duas leituras naquela época: uma apontando para o caminho de aprender a fazer aquilo mesmo de maneira "me­lhor", mais "criativa" e "técnica" (para usar categorias nativas do uni­verso de produtores), outra dizendo que deveria transformar aquela

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COMUNICAÇÃO DE MAssA: PisTAs, MAPAS EFsntADAS

cena~em uma questão, submetendo-a ao "pensamento", à "análise" e à ''reflexão" (para usar categorias nativas do univérso acadêmico).

Foi neste c~de dúvidas, ingenuidade teórica e vontade de con­sertar o mundo, que escrevil um pequeno estudo sobre dois .heróis da mídia. A idéia era comparar o famoso James Bond - o agente 007 do serviço secreto inglês - com o não menos famoso (ao menos na épo­ca) Kung-Fu. A Indústria Cultural criava um herói - James Bond­marcado por ~ absurdo desperdício econômico, pois tudo em suas aventuras puxava para o desperdício, e um outro - Kung-Fu - que exalava frugalidade, pois era o herói que vivia como quem vive em função de sua caderneta· de poupança. Kung-Fu, muito ao contrário de Borid, fazia inclusive profissão de fé da poupança sexual. O estudo revelava, convicto, que ambos não passavam de duas faces da mesma moeda. Respondiam às necessidades de produção do sistema capita­lista. Dele eram meros tradutores, cujo objetivo único consistia em nos fazer obedientes. A Indústria Cultural (e todos nós por tabela) apenas "obedecia aos ditames dos detentores dos meios de produ­ção". Quando convinha que a sociedade gastasse, impunham-nos um herói do desperdício, e quando queriam que todos poupassem, brin- . davam-nos com a caricatura de um herói zen-budista. As análises as­sumiam este viés, estaperspectiva da "denúncia do capitalismo", como forma de resgatar a justiça social. Através delas, podíamos, orgulho­samente, exibir nossa "aguda consciência política". A pretensão era apresentar os Meios de Comunicação e suas mensagens como fo(lllas alienantes do espírito crítico do ser humano. Era chumbo grosso, crí­tica pesada e um arsenal armado de mecânica economicista e desejo revolucionário. Num certo sentido, muníamo-nos de "canhões" para· matar "passarinhos".

Os estudos permaneceriam assim, simples, até que se percebesse que nem cs "canhões" eram adequados, nem os "passarinhos" tão ingênuos. Era preciso um maior refinamento de debate para entender um objeto muito mais complexo. Existe uma linha de diferenciação nítida entre a atitude de compreensão intelectual e o exercício puro e simples de denúncia moral ou política. É curioso pensar que estaques­tão atravessou, durante muito tempo, o debate sobre a Indústria Cul­tural. Na verdade, a crítica raivosa dos Meios de Comunicação de Massa reproduziu-se em boa parte de sua teoria. Duplamente frustra­

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A SOCIEDADE DO SONHo: COMUNICAÇÃO, CULTuRA ECONSUMO

da a ·tentativa dO: ~~saio; ·equivocada no plano ·teórlco e repetida no que já se deveria su~ni. Qe'.fató, as c.oisas não são tão óbvias. Mas,

. como a Indústria Cultural dispõe de familiaridade ein nossa vid3 so­cial, como ela impregna o nosso cotidian~. nada a estranhar qu~ sobre ela tivesse incidido uma espécie·de discurso emocionado. Ao desper­tar' a vontade de conlle.cimento, ela. despertou tanibém uma fala empolgada, na qual se misturavam sentimentos, vontades e saberes de variadas matizes. ·

Reacionarismo ou vanguardismo, otimismo ou pessimismo, sim­patia ou antipatia, amor ou ódio, medo ou paixão ãltemavam-se em julgamentos maniqueístas. Nestas escolhas, uma perigosa armadilha: acreditar na semelhança entre familiar e conhecido. O simples fato de estampar um saber de senso comum no que é familiar, não o transfor­ma em col)hecido. Este desejo é enganoso. Esquecer a diferença, tan­to sutil quanto profunda, significa correr deliberadamente o risco de não passar da opinião política ou moral informada para uma interpre­tação conseqüente, conforme a Antropologia Social te.m ensinado.

Esta fina distinção entre o familiar e o conhecido, bem como sua utilização, é importante aqui. Vamos entender como se elabora esta diferença.. É através da idéia de trabalho de campo (DaMatta, 1981: 150) que se dá condição de produção do saber antropológico. É o investigador {e não o senso comum) quem realiza o duplo movi­mento de colocar o familiar sob suspeita ao transformá-lo no exótico, e, no mesmo gesto, interrogar o exótico que daí resulta construído.

Esse movimento indica, portanto, anecessidade de distanciamento (exclusão das opiniões emocionadas sobre Indústria Cultural, que tra­duzem "proximidade", "intimidade", "envolvimento") para a obser­vação intelectual dos fenômenos sociais. Assim, o que nos é familiar deve ser tratado cuidadosamente; ele é parte do nosso próprio sistema de classificação, e encolltra-se bastante distante do conhecido. O ca­minho da interpretação antropológica implica na superação da atitu­de de senso comum. Este distanciamento desejado plasma uma espé~ cie de ponto de vista, perspectiva ou "óculos" (DaMatta, 1981:160) utilizados pela Antropologia Social.

Creio que se pode entender um dos estilos cruciais de se debater a questão da Indústria Cultural à luz dessas idéias. Os Meios de Co­municação de Massa - a televisão, os jornais, as revistas, as rádios e

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, · COMUNICAÇÃO DE MAsSA: PlSTAS, MAPAS EFsi'RADAS

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os anúncios que os sustentam- fazem.parte, é óbvio, dos nossos "sis­. temas de classifiçação". Por isso, são alvos fáceis ·para pressuposição de éonh<::cimento, que, confundido com a familiaridade, se acha auto­rizado a colocar 'a discussão em termos marcadamente maoiqueístas. Em outras palavras, utilizamos freqüentemente o senso comum, apli­

.c~do regras da nossa própria cultura, àquilo que é rotineiro. Proce­dendo as sim, o conhecimento em Antropologia não se realiza.

Foi precisamente por experimentar este impasse, que percebi a importância dC adquirir estes "óculos" daAntropologia Sociat A trans­formação do familiar em exótico, por força de um exercício de estranharnento, é um dado decisivo no processo de conhecimento de nossa·pr6pria cultura. A futrodução de uma dúvida sistemática sus­pende as verdades da rotina e do senso comum. Vai ser exatamente para que o familiar possa ser percebido em profundidade, que será necessário que ele.sejatransformado em exótico. ·E mais: que per­guntas cruciais sejam enfatizadas, para que delas surja a força que se desloca de óbvio na direção do estranhamento. (DaMatta, 1981:162)

Creio ·que poucas coisas são mais propícias ao estranhamento que as complexas produções da Indústria Cultural. Oencanto mesmo do mlíltiplo universo que ela projeta aos nossos sentidos - aqui em­baixo, na concretude da vida social- já compõe, por si só, um amplo panorama de significações que expede um convite à dúvida, ao pen­samento, à questão. Devemos discutir radicalmente, assumindo deba­ter todos <>S planos deste painel de representações do mundo pintado pela Comunicação de Massa.

Através do exercício de estranhamento, abrimos o tesouro dessa espantosa fábrica de símbolos muito diferentes dos que governam· nosso universo do possível, da lógica, da razão prática, do utilitarismo, da mentalidade científica. A ordenação do mundo dentro da Indústria Cultural lembra, pela sua magia e seus sentidos inusitados, o estilo da "enciclopédia chinesa" de Jorge Luís Borges. Nesta enciclopédia, os animais estão classificados em grupos - "os fabulosos", "os embalsa­mados", ·~os inumeráveis", "os leitões" e outros - que espantam a ló.:. gica, estranham as nossas práticas do real e do verdadeiro. Também a classificação do mundo que acontece dentro da Indústria Cultural pode produzir a mesma perplexidade. Ali se pode juntar certas coisas numa estranha reunião, que, como a enciclopédia, abala "superfícies orde­

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A SOCIFDADB DO SONHO: COMUNICAÇÃO, CWllRA E CONSUMO COMUNICAÇÃO DE MAssA: PISTAS, MAPAS EEsTRADAS

nadas", faz vacilar projet~s· do sensato ou planos da normalidade. A · Comunicação de Massaàs vezes nos oferece um efeito semelhante ao da enciclopédia, "inquiet~do por longo tempo a nossa prática milenária do Mesmo e do Outro". ·(Foucault, s/d:3)

. Assim, superfícies ordenadas, regras da sensatez, c_ertezas de ver­dade ou experiências do normal são subvertidas em suas clássicas tensões, quando enca.r.amos,_frente a frente, familiaridade em suspen­são, as representações acionàdas pela Indústria Cultural, ou melhor, o mundo dentro da mídia. No fundo, não é isto o que podemos sentir ao observar a Comunicaçã() de Massa com a perspectiva da Antropolo­gia, os "óculos" do estranhamento e a distância do familiar?

Creio que sim. Vamos examinar um exemplo. Outra vez está per­to do Natal. Agora, no final dos anos 80. Na televisão, observo o anún­cio de um grande shopping center do Rio de Janeiro, o Rio Sul. No anúncio- lá dentro, portanto, da sociedade da Indústria Cultural ­Papai Noel começa um curioso diálogo com ninguém menos que São Pedro. Diante dos meus olhos (certamente, diante de milhões de ou­tros olhos também), e com a minha conivência de espectador, Papai Noel e São Pedro estão ali. Eu os vejo, ouço, participo no seu drama. Começa o desafio da lógica.

Papai Noel senta, sorri e pede a São Pedro para que mande uma neve para a cidade do Rio de Janeiro. Se a neve caísse, dizia ele sen­satamente, o Natal seria mais. belo. São Pedro nega o pedido, argu­mentando com a racionalidade da ordem climática universal, que não reserva neve para esta área do planeta. Papai Noel insiste, educado, apelando para a emoçã() de São Pedro. Este vacila, parece hesitar, tocado por sua própria generosidade e pela legítima proposta do ou­tro. Papai Noel persevera, oferece mais motivos para seu pleito. Fi­nalmente, o acordo: iria nevar; porém, apenas dentro do referido shopping. Sobe a música natalina e um locutor, com voz feliz e jornalística, noticia a boa nova.

O mais impressionante do mágico mundo, dentro da Indústriâ .Cultural e do çonsumo que ele configura, é que a história ainda não acabou. Não bastava como estranhamento a idéia de participar de um diálogo entre Papai Noel e São Pedro, não bastava que este diálogo fosse sobre neve no Rio de Janeiro, pois este incrível jogo do impos­sível iria continuar ainda além. Dias depois, eu estava efetivamente

dentro d() shopping do anúncio, e 9s alto-falantes avisavapt, insisten­tes, que iria começ~ a nevar num determinado setot'. ·Fui até lá Como eu, ~orreram dezc:nas de pessoas, sensatas e normais, para ver a neve. E ela caiu. Duas poderosas máquinas, no andar de cima, f~iam pe­quenos flocos de uin deterriünado produto caírem sobre onde estáva- ·

. mo$. Pronto. Estava nevando. Mé4icos, funcionários, advogados, apo­sentados,- adolescentes, engenheiros, · crianças, donas de casa e pelo menos um antr?pólogo, todos sorriam, disfarçando um ligeiro cons­trangimento por viver a magia tal como veiculada no anúnoio.

· Defato, todos topamos acreditar no impossível. Ao olharmos para a vida social que acontece dentro das produções da Comunicação de Massa; 11m conjunto avassalador de constatações, levando ao inexorável estranhamento, pode ser experimentado. Quando temos notícia de mitos das sociedades tribais onde os animais falam, agem e participam ativamente da vida dos homens, sorrimos, como que tra- · duzindo nossa desconfiança quanto à racionalidade dessas culturas. Penso que, nestes momentos, parece existir um acordo tácito para o esquecimento da semelhança das experiências.

É instrutivo traçar este paralelo, por exemplo, com o mito do fogo dos povos de língua jê do Brasil central. Nesta narrativa, crian­ças, araras, sapos, cunhados, onças e chefes dialogam, se misturaffi., são opostos ou aliados, no projeto de conquista do fogo pelos ho­mens. E ali, dentro dos mitos "primitivos" dos "selvagens", os ani­mais falam. Mas não são apenas os animais do mundo mítico dos -índios Canela, Gavião, Xavante, Bororó, Apinajé, Krikati, Xerente, Krahó ou Caiapó que falam, escutam, participam, ensinam ou comu­nicam. No mundo dentro da Indústria Cultural, o tigre da Esso se mistura à gasolina, assim como o cachorro da Tavares escolhe roupas. A curiosa "galinha azul" dos caldos Maggi perguntou a todos nós "quem matou Odete Roitman?", a vilã da novela "Vale Thdo". Os nossos animais são ótimos conselheiros de compras. Se não nos dão o fogo, como no mito, generosamente nos oferecem comida, como o extrato de tomate do Peixe, o elefante da Cica, o peru da Sadia ou os saudosos porquinhos das Casas da Banha. Um anúncio da Sadia nos aconselha sobre o valor nutricional das carnes brancas do peru. Até aí, nada a estranhar. O ponto é que o conselho - sábio e racional - nos é dado por uma galinha, um porco e um peixe que nos são apresenta­

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A SOCIEDADE DO SONHo: COMUNICAÇÃO,,CUll'URA E ~O

·dos como especialistas. Os animais a,inda cuidam dos nossos peque­nos vícios e prázeroso· relaxamento.. Esta parece ser uma tarefa muito própria dos "cavalos", sejam os brancos do uísque Wbite Horse .ou os fogosos quarto de milhados cigarros ~alboro. E ainda temos "leões" nos impostos e "gatos" nas·pilhas:

Mas a magia continua muito além. Só ela é capai de unir sucesso e cigarro, ecologia e conjunto habitacional, margarina e saúde infantil, ba­tom e beleza do eterno felilinino. E pode fazer mais ainda. Quem não se lembra dos "clássicos" anúncios em: que namoros, noivados e outras histórias de amor, prestes a terminarem no insupOrtável mau hálito de algum dos ~fesos amantes, acabam salvos por encanto, transforman­~se em cheirosos casamentos pela ação discreta e finne das pastas de dentes? Afinal de contas, elas são dotadas de escudos-invisíveis-onde­germes-não-penetram. Onde mais, senão no pensamento mágico ouden­tro da mídia, existemcoisas invisíveis? Neste universo exótico da socie­dade ali dentro, abrimos as "portas da esperança.., vamos ao "céu é o limite" ou ao "fantástico show da vida''. Fazemos amigos porque "temos algo em comum''; seja ''um estilo de vida", uma "minoriainteligente" ou a"generation jeans". Lá nunca morremos ou matamos em tal quantidade que se perdeo sentido. No fundo, emoção é o "primeiro sutiã" e "liberda­de é uma calça velha azul e desbotada". É lá o lugar onde tudo compro, nada devo, e tudo sobra, nada falta. Outra grande magia é que os descon­tos anulam gastos, e paganc:IO, na vetdade, economizo.

Pensado desde este ângulo relativizador, não seria tudo isso sufi­cientemente digno de um profundo sentimento de estranheza? Não é exótica esta experimentação cotidiana da magia ou este relaciona­mento constante com urna legião de seres fantásticos? E são tantos os magos, os gênios, as bruxas, os gigantes, as fadas e espíritos que ha­bitam nossos anúncios, programas de televisão e filmes, que qualquer inventário da imaginação desta sociedade dentro da Indústria Cultu­ral deve levar em conta estes variados reinós de curiosa razão. Reinos impensáveis para a dura verdade da vida cotidiana levada a sério e regulada pelo rigor do trabalho ou dos negócios. Os reinos aos quais nos levam essas representações são tais que, em suas fronteiras, a razão prática é barrada. Lá não entra a lógica do mundo aqui de fora, da "produção" e da "fábrica", da "história" e da "economia", com suas significações absolutamente diversas.. .

COMuNicAÇÃO DE MAssA: PISTAs, MAPAS E Es1RADAS.·

É por tudo isto e muito mais ~ como vemos, simplesmente relativizando a ~gra do jogo que a·Comunicação ·de Massa deseja natufalizar- que é necessário compreender este mundo tãofamiliar e, no entanto, tão revelador do sentido da chamada Sociedade Ociden­tal. Esta é,·pois, a· démarche da nossa investigação: colocar a rotina e~ quarentena, e viver a aventura de introduzir todas as interroga­ções, ainda que elas nos façam parecer crianças, loucos ou extrater­restres. É precisamente aí, desta radicalidade, que emerge a condição pan decolar dó óbVio, e, quem sabe, ~ncontraruma interpretação para a Comunicação de Massa e para o fenômeno do consumo.

Assim, é fundamental entender esta complexa trama, este tema multifacetado, extenso e refratário às interpretações simplificadoras. A significação social da Indústria Cultural é bastante desconhecida ainda, e sua transformação em objeto de reflexão intelectual, requisi ... . tando espaço próprio de análise crítica, é muito recente. Nossa inten• ção é trazer um pouco das possibilidades interpretativas da Antropo­logia Social para este campo.

IndústriaCultural, no seu sentido amplo, designa as produções sim­bólicas que circulam na Sociedade Industrial e são veiculadas pelos Meios de Comunicação de Massa. Estas produções simbólicas locali­zam uma discussão típica da vida social de nosso tempo, já que sua emergência é própria e exclusiva da chamada modernidade. Não pode ser pensada fora dos quadros deste sistema social engendrado a partir da Revolução Industrial. A Comunicação de Massa só existe na confi­

. guração de uma cultura situada no espaço e datada na história; ela é ímpar nas escolhas humanas.Trata-se de algo localizado em uma com­plexa sociedade que reuniu, pela primeira vez, os elementos necessá- ·

--rios a que o fenômeno obtivesse condição de possibilidade. Singulari­dade é uma palavra que adjetiva corretamente a Comunicação de Mas­sa.

Outro ponto importante é a quantidade imensa de esforços que a Sociedade Industrial investe para fazer Indústria Cultural. As mais variadas ordens de recursos são acionadas de maneira incessante. A modernidade privilegia sua invenção. A imensa atenção com um fe­nômeno, ou o custo social de uma prática, testemunha um cuidado, um "prazer" mesmo, que a sociedade não esconde. Aí temos impor­tantes sinalizações para o analista Um sintoma do valor social inves­

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A 5oc:JEDADE DO SONHO: COMUNI~ CUil'tJRA E CONSUMo

tid~. Um desejo. de que,_emmOJ?lCnt~ algum, ou sob nenhuma hipóte­se, a Comunicaç&> de Massa "saia dó.ar'', desligue._ Constância e per­manência são palavràs que adjetivam bem aquilo que não póde parar.

A Indústria Cultural. é tão definitivamente importante que, den­tro das fronteiras culturais do ''mundo ocidental", dificilmente alguém pode deixar de ser dela reeeptor e.testemlmha. É tarefa árdua encon­trar um lugar disponível _para fugir da sua compulsiva fruição. Os Meios de Comunicação vão buscar qualquer um.em toda parte. Não necessariamente como proposta ·de utopia controladora ao estilo "1984" ou '~dmirável Mundo Novo", mas com ·a singeleza radical que liga o estranho e a diferença nas bem tecidas teias. de códigos comuns. Um incessante projetó de colocar regiões em contato pedorma seu destino na vida social e trama o mosaico de uma amarração pla­netária, na qual experimentamos participação compulsória. ·

Por isso, este campo é complexo. Sem dúvida, ao redor da· ex­pressão criada por Theodor Adorno (1971) e Max Horkheimer, em 1947, prolifera um elenco de discursos multifacetados. A fala sobre a Indústria Cultural vai da Crítica da Arte à Teoria Política. Passa, com variados graus de cerimônia, por regiões da Economia, do Marketing e da Administração, da Psicologia Social, da Cultura Popular, das Pesquisas de Audiência, do C~mportamento e outras tantas. Thdo isso acaba por formar um conjunto de difícil organização. O grave é que, por vezes, esta ampla prod~Ção discursiva realiza precários resulta­dos. Muitos ficain aquém do desejo de compreensão e não fazem jus- · tiça à riqueza do fenômeno.

Creio que a Antropologia Social é capaz de iilscrever em planos novos certas dimensões da Indústria Cultural. Não tenho dúvida de que seu instrumental teórico, especialmente na tradição das análises de sistemas simbólicos, pode oferecer significativa contribuição,3

operando mudança sensível na démarche das interpretações. É possí­vel avançar na análise, inovando o ângulo neste paredão discursivo já edificado. Na verdade, é um desafio considerar a análise de um dos mais amplos, coesos epoderosos sistemas simbólicos da nossa socie­~. Por isso, a presença da Antropologia Social neste debate justifi­ca-se em vários sentidos. Vamos examinar alguns deles.

Em primeiro lugar, é claro que qualquer disciplina que tenha por projeto a análise da vida social, sob as mais diferentes formas em que

. COMUNICAÇÃO DE MAsSA: PJSTAS, MAPAS BEs11W>AS·

ela acontece, não pode ficar fora de um problema deste porte. A ·Co­.mWÜ.cação de M;~Ssa é a vida social em grande atiVidade. B, isto, tan­to no plano do que se passa dentro dela, onde o que mais claramente se pode observar são seres humanos reproduzindo sociedade; quanto no plano do que Se passafora dela, onde muitos seres humanos estão . envolvidos com a sua emissão, distribuição e recepção.· ·

· O importante é reafirmar que ela - seja em suas práticas, seja naS questões que suscita - coloca em jogo amplo conjunto de atividades sociais, envolvendoumcontingente considerável de pessoas eum imenso · investimento de·tempo, esforço e trabalho. Existe uma reunião de práti-:­cas sociais, como exercício de humanidade aí envolvido. E mais: seu peso é acentuado na proporção que se internacionaliza, assume dimen­sões-planetárias, se espalha, ilimitado e incontido. A Indústria Cultilral

· é um fato social (Durkheim, 1977:11) puro sangue. Ela compartilha aspectos intrínsecos ao fato social, que é coercitivo, extenso ~ externo ao indivíduo. A Comunicação de Massa, com sua enfática presença na cultura, tem lugar distinto entre os fatos humanos, requisitando uma sócio·lógica como caminho privilegiado de interpretação.

Assim, ela possui dimensão coercitiva ao fazer circular um con­junto·de representações que atuam como presençada coletividade fren­te ao indivíduo. Força externa efetivamente, posto que nasce fora das consciências particulares, sendo o ato criador em seu campo nada mais que tradução das significações coletivas. Etambém a Indústria CultUral é geral na medida da extensão de uma sociedade dada. Aqui, inclusive, · esta extensão, de apreciável tendência planetária, como que subliJÍha sua dimensão associativa Além de serfato socia~ no sentido mais con­creto da morfologia, a matéria-prima com aqual trabalha é formada por repres-entações coletivas (Durkheim, 1970:33).Tambémelas situa- · das para além da esfera da individualidade. Embora não nos detendo na questão que ocupava Durkheim ao pensar as representações coletivas­ele queria mostrar a sua natureza autônoma frente aos substratos indivi­duais dos quais decola - suas idéias oferecem uma importante dimen­são para entender a pertinência de umaAntropologia da Indústria Cul- · tural e do Consumo. ·

A Comunicação de Mas~- por serfato social, amplificando repre­sentações coletivas - é refratária às interpretações que não envolvam o que é público, a cultura, na decifração de seu significado.4 Em outras

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A SOOI!DADE DO SONHO: COMuNICAÇÃO, CUl:n)RA E CONSUMO

palavras, alndús*. , Cul-·pensadado ponto cte vistade suaprodução, veiculação, recepção, •racionali:ração ou, ·ainda, ~n~s. mantém uma natureza de fato sodt4. Sua prática é SQCial. Ela necessita·de siste­máticas interações e procedimentós rotineiros entre indivíduos; porém, ex~la-os edeles independe.·como disse, aIndústriaCultural não deve "sair do ar'', mas não é ningUém em particulár que nele amantém Ainda mais: aquilo que veiçula - mensag~ns, conteúdo intelectivo e emocio­nal-, a matéria-primadaqual podedispor, éoferecido pelaprópria socie­dade. Neste sentido, tanto ao nível da emissão quanto da recepção, nada secriaenada se frui que não tenha por substratoa sigriificaçãopública.A Indústria Cultural repousa no solo das emoções codificadas, sentimentos obrigatórios, sistemas de pensamento e represenJações c;oletivas da socie­dade que a inventa, pennite e sustenta.

Por isso mesmo, aComunicação de Massa é um lugar privilegia­do, uma espécie de janela com vista panorâmica para a sociedade. Suas mensagens não fazem outra coisa senão dialogar com a socieda­de, existindo articulada ao seu desenho ideológico. Sua significação é fruto de uma inscrição na ordem social, mantendo com ela uma rel~:__ _ ção de múltiplo e complexo rebatimento. Este destino- reflexo e es­pelho da cultura- acontece em um jogo sistemático de trocas, envol-. vendo valores, estilos de vida, emoções, heróis, rituais, mitos, repre­sentações e o que mais se queira nela ver impresso (no duplo sentido) e reproduzido. De fato, existe úmarelação entre Sociedade Industrial e Indústria Cultural que é tão·datada historicamente, de logicidade tão evidente e parentesco tão próximo, que se pode dizer que se trata de um dos fenômenos mais marcadamente característicos do nosso tempo.

É, exatamente, dentro de um projeto de coesão de valores, de redução das diferenças, de produção do mesmo e de c~ficação de experiências que se localiza e inscreve o horizonte de nossa época. .São sistemas de semelhança que incluem experimentações com os sentidos "de tempo e espaço", "de si mesmo e dos outros", "das possi­bilidades e perigos da vida" que podem identificar alguma coisa a ser chamada de "modernidade". Este movimento, que, pelo menos em al­guns de seus sentidos, tende para a anulação das diferenças - geográfi­cas, raciais, de classe, de nacionalidade, de religião, de ideologia - é o que permite o fluxo de um universo em comum. Por isso, é possível pensarque "a modernidade une a espécie humana" (Bennan, 1988:15).

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.. COMUNICAÇÃO DE MAsSA: PISTAS, MAPAS EEsTRADAS

. A união em tomo de uma determinada.experiência vital concebi­. da c.omo eixo comum das diferenças, elas mesmaS parte integrante da. trajetória do serhumano, é o que caracteriza o sentido da modernidade. A modernidade é expressão de um gostó singular no mapa existencial humano, pois é atravessadora da diversidade cultural. Para tanto, é preciso. a convergência de u~ conjunto de elementos sustentadores. Através deles, . constitui-se uma unidade em que pese perder, como contrapartida, a nitidez. Mas, o que nos importa aqui é que a Indústria Cultural é um desses elementos. de sustentação, dessas fontes alimentadoras. Segundo Berman, (1988: 16) são oito as principais for­ças alimentadoras da modernidade, cada uma desdobrando-se em múltiplos planos. Assim, aliados ao desenvolvimento científico, à explosão demográfica, ao crescimento urbano, à industrialização da produção, aos movimentos sociais de massa, aos Estados nacionais e ao mercado capitalista mundial, estão os sistemas de Comunicação de Massa. Também elés parte das forças estruturadoras do "turbilhão da modernidade". O fenômeno da Comunicação de Massa marca esse complexo momento da experiência humana. Sociedade singular, nas­cida.na Revolução Industrial e de difícil . adjetivação - Sociedade In­dustrial, Mundo Contemporâneo, Modernidade, Sociedade Ociden­tal, Sociedade Capitalista, Sociedade Complexa, Sociedade Industri­al-Moderna-Capitalista ou "Sociedade Complexa Moderno-Contem­porânea" (Velho, 1981:15), entre outros.

Indiferente ao nome, o fato é que existe um vínculo estrutural entre ela e o surgimento dos Meios de Comunicação de Massa. Sabe­mos que este sistema simbólico que os mídia nos oferecem em espe­táculo vertiginoso é parte integrante desta fonna, espaço e lugar. Por­tanto, ao falar de nossas sociedades modernas-industriais-capitalistas (ou outra das expressões acima listadas de emprego comum entre ci­entistas sociais), estarei falando de um tipo de cultura que éprodutora ou receptora assídua de Indústria Cultural. Uma sociedade planetária que compartilha mensagens provindas dos Meios de Comunicação, e que é alcançada pela chamada "mídia publicitária".s

Por isso, podemos ver que a Indústria Cultural promove um de­bate impcrtante no interior de nossa própria sociedade, cuja compre­ensão, através da investigação científica, é inadiável. Assim, gostaria de oferecer aqui uma argumentação capaz de dar continuidade aos

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tr3b8Thos reaJi~dos por ôutros pesq\ai~ores. :e.·ainda, desenvolver algumas pistas, aprofun~do eertos problemas com os quais venho trabalhando. Emou~ estudos (Rocha, 1985); pude analisãr aspec­tos do universo discursivo dos anl1ncios publicitários. Penso ser pas­sível. partindo desta IDatriz, encantrarelementos no conjunto das pro- . duções da lndtistria <;ultural que certamente são compartilhados com o sistema publicitário.

·A publicidade será uni ponto de ancoragem, uma referência du­rante "?do este trabalho. Ela é uma espécie de chave-mestra, poderosa e eficaz, p~ abrir outras esferas de significação dentro deste amplo universo de mensagens. E isto, principalmente, por dois motivos. Em primeiro lugar, a publicidade é um elemento absolutamente indispen­sável na sustentação de todo o edifício simbólico da Comunicação de Massa É ela quem paga a conta de uma produção que recebemos de graça ou fortemente subsidiada Ela vive uma relação de fedundância e/ou revezamento com o Estado na determinação dos destinos das mensagens dos Meios de Comunicação. E até da própria existência deles. Em segundo lugar, foi .no estudo da publicidade que experi­mentei o rendimento analítico da Antropologia na interpretação des­tas questões•

. ·Portanto, de todos os materiais que deveião ser tomados como ob­jeto de exercício ao longo deste livro, estarei privilegiando aqueles pro- . vindos.da publicidade. E, isto, por assumi-la e reconhecê-la como uma espécie de ."porta principal" para a decifração do conjunto de significa­dos da Conmnicação de Massa. Gosto de pensar arelação entre os anún­cios publicitários e os outros materiais como sendo aquela que se dese­.nha ~ água onde lançamos um objeto. O ponto de ancoragem, o mo­mento de toque do objeto na superfície da água, produz a marca mais profunda que irradia em círculos para outras áreas dessa superfície. A publicidade é sustentáculo, suporte, apoio e centrodo sistema simbóli­co ·espalhado pela Indústria Cultural. Ela é uma força centrípeta e as mensagens da mídia convetgem para ela. Num certo sentido, a publici­dade plasma a experiência da Indústria Cultural. Neste ponto, para aprofundar ainda mais todas estas questões, é necessário realizar uma espécie de inventário das pistas que sustentam esta investigação.

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-\ ... .COMUNICAÇÃO DE MAssA: PISTAS, MAPAS E EsTRADAS

chaves da cidade: Antropologia eComunicação

. Nos rituais de "entrega das chaves;' de uma cidade, existe a gene­rosidade da acolhida ao visitante. Uma prazerosa e amiga recepção, num rito de paSsagem em que fica claro que ele ainda não conhece a cidade, mas que possui todas as chances de conhecê-lano que depen­der de seus habitantes. Vamos imaginar que as pistas que serão discu­tidas expressam a metáfora da entrega das "chaves da cidade" da In­dústrià Cultliral para a visita de uma interpretação antropológica.

De.fato, vamos considerar este trabalho dentro de um ciclo de pesquisa que·começou 12 anos atrás com um primeiro estudo que realizei no início do processo de profissionalização em Antropolo­gia.6 Este projeto de estudos foi, então, sendo empreendido com a devida atenção para todo um conjunto de cerimônias acadêmicas, uma espécie de protocolo discursivo, que "cercava" e "protegia" a análise. Passos iniciais e cuidados constantes. Cuidados acadêmicos que tive­ram ovalor de ensinar (e aprender) a disciplina (:po duplo sentido). Alertas, ensinamentos sobre o rigor do pensamento que se incorpora como parte integrante da pesquisa.

Assim, a reláção com uma temática, a intimidade com um pro­blema, a experimentação de seus materiais, atores e situações, bem ·como o sentimento de maturidade na condução de uma pesquisa,. se construíam. Esse exercício não se confunde com certeza de verdade . Mas, é nesse jogo, que podemos almejar algum tipo de indicação da passagem desde a "segurança localizada" até as interpretações mais gerais. Em outras palavras, o rigor está onde a vista alcança. Penso que as etapas de amadurecimento em um percurso de pesquisa pOdem ser vistas, em geral, como as regras de um jogo que permitem o aces­so contínuo a um nível mais complexo de realização das jogadas. Um maior alcance de interpretação corresponde à observação de um rigor intelectual com certeza, mas este não se traduz, necessariamente, em imposição de consenso. .

Todas essas questões parecem próximas de uma aguda observa­ção de Geertz (1978:39). Para ele, o destino da análise cultural é ser

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A SOCIEDADB DO SONHO: COMUNICAÇÃO, ÇUl:ruRA E CONSUMO

'~intrinsecamente inco~l~ta" :e presa num paradoxo em qué maior profundidade implica menor completude. Estranha sensação nos traz oprocesso de criação em Antropologia. Nele, atirm8ti-Yas ''iriarcantes". · possuem base 'cu-êmula''e· "chegar a (fllalquer lugar com um assunto enfocado é intensificar a suspeita, a sua própria e a dos outros, de·que você não o está encarando de maneira cór;reta". Assim, a Antropolo­gia, em sua vocação interpretativa, "é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refina­

.mento de· debate". Por isso, coisas como solidão, dúvida, estranheza, suspeição e

precariedade são como uma moeda corrente que trocamos uns com os outros e c9m nossos temas. Porém, discussões de limites, alcances e incertezas não devem ser pensadas como algo fora do constante expe­rimentar com uma questão, com uma idéia: É um processo lento e sensível, que lembra um deter-se longamente, um sazonar que apro­xima, libera, refina. De qualquer forma, este é um assunto cuja dis­cussão es~ além deste trabalho. · .

Oque quero enfatizar é algo mais doméstico e, com certeza, mais simples: tratar o sistema simbólico, as representações veiculadas pela Indústria Cultural, como mensagens reveladas por uma sociedade. Esta perspectiva pode permitir um acesso privilegiado ao mundo de significações que corre dentro de seus fragmentos, um acesso à di­mensão interior de·seu quadro. A sensação de curiosidade pela vida social que se processa lá dentro .é bem próxima do que me disse um publicitário entrevistado: "ficaria fascinado vivendo dentro dos anún­cios; estaria bem feliz porque iria aprender a todo instante, pois a vida lá deve ser muito curiosa".

Acredito que este estilo- aberto e franco-, de uso dos materiais como meio de acesso ao imaginário projetado por e realizado dentro da Comunicação de Massa,_ pode ser uma perspectiva promissora e criativa. Por isso, com essa idéia em mente e a sensibilidade em aler­ta, vamos examinar diversos tipos de mensagens da Indústria '(~'-ltu­ral, assumindo que a mais básica delas é a que nos ensina que lá dentro está uma sociedade. Este uso deliberadamente indistinto dos materiais fundamenta-se na crença de que existe uma estrutura invariante inscrita na diversidade aparente dos conteúdos. Assim, nessa perspectiva, é igualmente válido analisar produções pretensamente

COMUNICAÇÃO DE MASSA: Pl'STAs, MAPAS EEs1RADAS

diversificadas, como novelas de televisão, anúncios publicitários, pro­.gnuDas de auditório, colunas sociais, notícias de jornal ou reporta- · gens ilustradas. . · .

Essas produções apresentam diferenças·quando vistas muito de perto. Mais precisamente falando, su~·diferenças existem em função de um ângulo muito particular-~ ponto de vista dos produtores. Essa é a chave que propicia graus imensos de variação entre uma novela de televisão e um anúncio publicitário, a primeira página de um jornal ou um prognima de auditório. É comum pensar que os produtos da Comunicação de Massa possuem alguma espécie de "natureza" que os diferencia uns dos outros. Essa diferença vira um dado absoluto e esqueéemos que ela é, num certo plan<~, efeito reflexo do estilo de organização das práticas discursivas e das rotinas do mundo profissi­onal. Aí, neste nível, é evidente que cada um desses materiais exige tratamento distinto, possui registros múltiplos de significação, seus muitos graus de dificuldade, seus valores classificatórios, suas técni­cas de produção e seus destinos manifestamente diversificados.

No entanto, desde nossa perspectiva, eles são intercambiáveis, equivale11tes e, mais que tudo, transformações uns dos outros. Imedi­atamente•.isto nos remete na direção de uma analogia com o que se processa nos mitos. Tais como os materiais provindos da Indústria Cultural, os mitos falam uns aos outros, explicam-se reciprocamente, dialogam, formam sistemas mútuos de transformação, são solidários em suaS mensagens e interpretam temas semelhantes (Lévi-Strauss, 1964). Esta analogia entre mitos e Comunicação de Massa é facil­mente sustentável em vários sentidos (Rocha, 1985).

Nesta questão - materiais e seu uso - quero retomar um último ponto. A questão é a seguinte: dentre as produções da Indústria Cul­tural, os anúncios publicitários são materiais privilegiados, são a es­fera que sustenta a totalidade. Como disse antes, a publicidade é uma espécie de "ponto de ancoragem" do sistema para "fora" de si mes­mo. É nas suas condições que este universo se justifica, assegurando existência. É a publicidade que permite a gratuidade, ao menos o far­to subsídio, do conjunto. Se não, vejamos: a que custo chegaria ao consumidor uma revista mensal, caso não fosse em grande parte "paga" pela publicidade? E as transmissões televisivas e radiofônicas viabilizariam a sua gratuidade? Seria possível a sustentação de um

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A SOCI!DADE DO SONHo: COt.IUNICAÇÃO, CUI.rURA E CONsUMo

.· jornal diário? ~~ tOdo o conjunto ·4tl Indústria Cuttural, desde seus p~tos mais ou menas.subsidiado.s até.aquele$ absolutamente gra. tuítos•. a resposta é sempre a mesma: existe algumà cojsa qbe. "paga a conta". Na maioria dos sistemas mundjais de Comunicação de Mas­sa, a condição n~sária para a existência da mídia está vinculada aos an\Úleios publicitários. ·'

Também nesse sentido, refoJ:ça-se, sobremaneira, a idéia de que as mensagens da mídia teD(fem para o~sono. Podemos pensar que os mídia.seriam inviáveis, ao menos logicamente, caso falassem lin­guagens distintas, produzisse~ mensagens que rião formassem uma "composição~ônica" ou não fossem eles próprios solidários ope­radores de traduções recíprocas. Esta pode ser uma propriedade dos Meios de Comunicação de Massa, que se desdobra na idéia de que existe uma tendência de grau zero entre eles para produzir mensagens plasmadas na diferença. Oque não quer dizer que exista uma leitura ~inear do sistema por parte dos receptores. Esta é uma outra questão unportante que aparecerá ao longo deste trabalho.

Não é por outra razão que a publicidade é uma espécie de "cola" do sistema. Eatravés dela que tudo se liga com tudo, éela que irrompe nas pág4tas dos jornais e revistas, nas vozes do Í'ádio ou nas imagens das televisões de maneira inapelável~ como que enfatizando o lugar de fato ede direito que dispõe por costurar todo o sistema Esta marca da publicidade, na qual se pode encontrar a aderência do sistema da Indústria Cultural, fica multo nítida num sem número de anúncios que fazem, freqüentemente, referências explícitas, ••citações", de ou­tros anúncios, filmes famosos~ programas de televisão, músicas. Thdo na mídia é entretecido pelos anúncios. E, isso, para não falar dos sem­pre famosos astros, estrelas, cantores, colunáveis, artistas em geral, esportistas, modelos que perteneem às várias regiões da Comunica­ção de Massa", e que se reúnem ••no ar" sob a forma de anúncios.

. Reside talvez aí uma parte ponderável do curioso espetáculo que a Indústria Cultural nos oferece. É o que vemos nas telenovelas, porI

I exemplo, nas quais, cada vez mais, se desenha o destino lógico de ser um anúncio em capítulos. Na verdade, em tudo aquilo que está pre­sente ali dentro é indispensável uma chancela publicitária As produ­ções deste sistema simbólico podem ser mais ou menos publicitárias,

I· mas trata-se de umaquestão de gradação do modelo, não de uma ques­! I

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tão de cortes que slistentani diferenças significativaS. É neste sentido que às materiais . provindos de dentro da Comunícação de Massa . compartilham uma proximidade lógica, são fragmentos estruturalmen­te semelhantes,-diVidemum mesmo destirio e vivem um idêntico com­promisso de solidariedade ·simbólica. . ·

. Antes .de irmos além, é preciso pensar na própria expressão In­dústria Cultural. Esta é uma expressão problemática. Ela teve seu nascimento marcado por um projeto "político" que visava denunciar­no próprio nome - as práticas totalitárias e massifi.cadoras a que os Meios de Comwiícação submetiam "as maSsas". Uma outra expres­são, - ''Cultura de Massa'! - traduzia um certo viés democratizante. Também "política~·. implicava a idéia de que o conteúdo transmitido pela mídia resultava da livre escolha das próprias "massas". Este con­fronto de visões é muito famoso, ele traduz as posições dos chamados "apocalípticos" e as posições dos chamados "integrados••, comove­remos no próximo capítulo. Oque é necessário sublinhar é que a ex­pressão ''Indústria Cultural" carrega uma sutil suposição: a existência de algum. tipo de "indústria" não ''cultural".7 Neste sentido, a expres­são ou é um truísmo ou assume uma frágil concepção do que seja ••cultura" .8

Vamos trabalhar com as expressões Indústria Cultural e Comu­nicação de Massa como sinônimos, retendo apenas seu sentido mais simples: um sistema simbólico cujo "raio de alcance" é marcado pelo limite da própria mídia que o veicula. A idéia é da existência de um

. "mercado" para os meios, os veículos de comunicação. A Indústria Cultural ou Comunicação de Massa será aquilo que eles "veiculam••, sempre nos limites deste "mercado". O que está em disputa, o objeto · de estudo, é a Indústria Cultural ou Comunicação de Massa com cer- . teza, mas·pensada no sentido das representações, dos universos, dos sistemas simbólicos veiculados pelos mídia É aquilo que se "impri­me" ou se ''transmite" ali, os conteúdos "veiculados".

Existe aindaum ponto importante neste capítulo. Trata-se de uma pista metodológica, um procedimento de interpretação, para se reali­zar a análise. Essa pista começa pela constatação de uma ausência. Ausência da tradição de pensar os sistemas simbólicos dentro da In­dústria Cultural como plasmando uma sociedade que neles se inscre­ve. Os estudos de Comunicação não trabalham com a idéia da exis­

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A SOCIEDADE DO SONID: COMuNICAçAO, CUi.TtJRA ECONsuMo

· tência de uma; ~~iedade dentro dtllndústria Cultural. A literatura-da . Teoria da Comuni~ão.não traduz_preocupação maior em examinar

este S.istema simbólico como O discurso de uma SOciCxfade~ -Esta SoCi­edade faz sua performailce para nós, ~- claro, mas para tanto teni que, antes, ser representada lá dentro. · · Em geral~ a discussão sobre.a lndústria Cultur31 está endereçada para o exterior, para fora dos limites que o sistema circunscreve. A referência localiza-se, preferencialmente, em outro plano. O plano privilegiado é o das "influências" que dali se exercem sobre a nossa ·vida, cultura e ideologia Creio que amelhor forina de examinar essa infl~ência virtual começa, exatamente, pela investigação do que a sociedade lá de dentro faz com sua própria vida. De fato, os estudos sobre a Comunicação de Massa não buscam esse recurso de perspec­tiva, não realizam o movimento radical de entrada nas representações como quem entra no sistema social exibido no interior delas.

No fundo, não éprecisamente isto o que ocorre diante de nossos olhos quando estamos assistindo à Indústria Cultural? Penso que sim. Afinal de contas, assistir à vida soçial é uma das mais atraentes práti­cas de nosso cotidiano.9 Tudo aquilo que se passa dentro, nas múlti­plas "telas", da Indústria Cultural é vida social. E, mais ainda, é a vida social de uma sociedade que é comunicada à nossa sociedade com uma clareza total e freqüência avassaladora. No entanto, nunca quisemos ver ali uma sociedade. A Comunicação deMassa demanda ~investigação por dentro. Épara este roteiro de estudos que gosta­na de reservar o nome de "perspectiva Etnografia". ·

Creio que o significado que esse fenômeno • e a sociedade que ele reproduz - tem para nós passa pelo significado que ele possui por dentro. Assim, fazer uma Antropologia da Indústria Cultural é entrar nela pela porta principal, pela Etnografia. Para tanto, é preciso assu­mir essa opção. E fazer Etnografia quer dizer construir uma leitura da Indústria Cultural como um "manuscrito estranho", composto deI. "estruturas conceptuais complexas", muitas vezes não explicitadas, movediças e "irregulares" (Geertz,l978:20). Etnografias são feitas de sociedades, de cultura e de vida, são feitas de "leituras" de textos "desbotados", "incoerentes" ou "suspeitos". Etnografias são feitas da apreensão dos significados.

Tudo isso adquire sentido em relação à Indústria Cultural quan­

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COMuNICAÇÁO DB MAssA! PISTAs, MAPAS EEmw>AS

do a vemos como uina sociedade plená. E mais: ao alcance da nossa obsewação. Nada. é mais verdadeiro do que af'irmar que ali dentro existe um mundo de emoções, estilos de vida, relações sociais, dese­jos e vontades humanas; A sua principal mensagem é reveladora da sua própria· identidade. _Não tenho dúvida quanto à riqueza de uma

. leitura da Indústria Cultural como sociedade: é esta sua primeira pa­lavra pronunciada, seu permanente signo, sua marca mais completa­mente registrada, sua·mais repetida mensagem. E é exatamente isto que a faz tão hümanamente consu~da. .

· Essa idéia implica um desdobramento. Diante da hipótese de ali estar representada uma sociedade, deve corresponder sua interpreta­ção atrávés dos instrumentos tradicionais ..: teóricos e metodológicos - próprios das análises culturais. Por isso, uso a noção de Etnografia no sentido preciso de uma ..descrição densa", cujo objetivo será cap­tar ''uma hleràrquia estratificada de estruturas significantes" ( Geertz, 1978:17). Mas, devemos ponderar que a sociedade produzida dentro da Indústria Cultural não é uma sociedade qualquer. Ela não aparece espontaneamente saída do jogo humano e do aleatório da existência, como é o caso das culturas que a Antropologia usualmente estUda. A cultura dentro desta produção simbólica é a de uma sociedade inven­tada por outra. Isto é evidente e enriquecedor. O ponto é que o espec­tador-consumidor de Indústria Cultural adquire a ilusão perfeita de assistir a uma sociedade completa e independente diante dos seus olhos. E a cultura assim produzida permite urna leitura etnográfica.10

Sabemos que a sociedade criada pela Indústria Cultural só é pensável no substrato, no solo, oferecido pela Sociedade Industrial. Assim, sua análise indica alguma espécie de relação comparativa en- · tre as duas. Investigar a sociedade dentro da Indústria Cultural é uma forma de elaborar certos sentidos da cultura que aengendra. É inves­tigando relações sociais, ethos, valores, ideologia e estrutura desta sociedade que, forçosamente, vamos esbarrar nas indicações precisas daquilo que ela reproduz de nós e do que produz para nós. Conhecer seus efeitos, influência e atuação na Sociedade Industrial passa por dar voz à sociedade dentro da Indústria Cultural. E, assim, talvez, .entender as razões da invenção, as razões da permanênCia.

Dessa forma, nos capítulos seguintes vamos percorrer algumas das questões que, penso, podem conter uma chave reveladora da den­

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A80CJEDADE DO SONHo: ÇOMuNicAçAo,.t\n.:ruRA ECONsUMO

sidade simbóll~a'da C:omunicação -~ Massa.. No entanto, o ·espírito .desta pesquisa é simples•.Apena8, cQilstruir um pequeno espelho para ver uma imagem da Comunicação de Massa- da sOciedade: dos .valo­res e ideologias que elá emoldura - e..que, COIDO contraparte, Po~Sa refletir a singularidade de nossa experiência social. : · · Para tanto. é importante começar por uma reVisão da literatura sobre Comunicação de Massa e Indústria Cultural. Dialogar com de­terminadas áreas dessa reflexão teórica, procurando com elas debater o estilo de interpretação que faremos aqui. É necessário realizar uma espécie de "dever de casa", "passar a limpo" o caderno para compre­ender a matéria, conhecendo a tradição e o acervo do campo de refle­xões que forma a Teoria da Comunicação.

Em seguida, no terceiro capítulo, vamos ver as lições que aAn­tropologia pode ensinar, relativizando esta experiência cultural muito particular e esta nova ordem do mundo criada pela sociedade indus­trial-moderna-capitalista. É preciso refletir sobre nossa sociedade de dimensões planetárias, articular, por exemplo, a questão da Indústria Cultural com a radicalidade da vocação etnocidária da Sociedade In­dustrial. Vamos pensar nossa experiência social, essa poderosa cultu­ra que realizou o surpreendente encadeamento de quatro eixos - o tempo como linearidade, o indivíduo como centro do sistema social,. o produtivismo como destino da existência, o Estado como espaço do poder - fazendo deles marcá distintiva de sua singularidade. Vamos ver a própria trajetória da Antropologia sinalizar, nas sociedades do "outro", esses quatro eixos como ausências. E, como efeito não pre­visto, sinalizar mais as imperiosas necessidades da cultura do "eu", que as "faltas" da cultura do "outro". Historicismo, individualismo, pro_dutivismo e Estado encompassam nossa experiência, sua imposi­ção ao "outro" nos define por contraste.

Finalmente, no quarto capítulo, tentaremos entender a lógica da sociedade dentro da Comunicação de Massa. Nesse sentido, um bom ponto de partida é ahipótese geral de que esta sociedade se define por uma inversão de aspectos essenciais que caracterizam a Sociedade ~que a inventa. Assim, à Sociedade Industrial tece a sua con­tinuirllade pela concepção de um tempo histórico. A sociedade dentro da 1Ddi6stria Cultural concebe a sua complementaridade, assegurando o seDâclo da vida e a continuidade das coisas através da lógica das

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classificações totêrirlcas. Entre nós, o. tempo é histórico e linear; no inundo dentro da lndústria Cultural, é recorrente e éÍclico. Em segun­do lugar, o indivíduo e ·a individualidade são valores cruciais entre nós~ Para a soeiedlde projetada na Comunicação de Massa, o eixo do sistema inverte-se~ a pessoa-desempenha o papel preponderante e a relação é o .valor central. Lá dentro a regra do jogo é o holismo. Em terceiro lugar, nossa concepção capitalista da existência pressupõe o primado absol~to da produtividade. A sociedade dentro da Indústria CUltul'al afirma a ociosidade natural dos homens e das coisas. Ela nega a produtivismo inexorável, aposta na:lógica do consumo como organizadora da experiência econômica e deseja realizar a sociedade da abundância. Finalmente, nossas sociedades de Estado separaram o domftlio político do tecido social, vivendo a divisão crucial entre do­minantes e dominados. No mundo dentro da.Indústria Cultural, de maneira inversa, o poder não se exerce na violência do Estado. Lá, o poder tem o nome de persuasão; ninguém é obrigado pela força, e sim convencido pelo valor do prestígio ou pelas práticas da sedução.

Estas idéias fluem com naturalidade no sentido da aproximação ·entre a sociedade dentro da Indústria Cultural e as sociedades do "ou­tro". Com isto, a Indústria Cultural apresenta um relato de sociedade em vários sentidos inverso àquela que a criou.Aproxima-se decisiva­mente de culturas objeto do etnocídio, para as quais a Sociedade In­dustrial tramou um destino terminal. Assim, a "diferença" que a modernidade não pode suportar nem consentir, por sua irreversível

. vocação etnocidária, é o truque do qual a sociedade imaginária dentro da Indústria Cultural retira significação.

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