roda moinho

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Eloí Bocheco Roda moinho Ilustrações Pedro Zenival

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Um livro Eloí Bocheco com ilustrações Pedro Zenival

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Page 1: Roda Moinho

Eloí Bocheco

Roda moinho

IlustraçõesPedro Zenival

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Page 2: Roda Moinho

© 2011 Eloi Bocheco Companhia Editora de Pernambuco

Direitos reservados àCompanhia Editora de Pernambuco – CepeRua Coelho Leite, 530 – Santo AmaroCEP 50100-140 – Recife – PEFone: (81) 3183-2700

ISBN 978-85-7858-072-8

Impresso no Brasil 2011Foi feito o depósito legal

B664r Bocheco, Eloi Roda moinho / Eloi Bocheco. – Recife : Cepe, 2011. 68p. : il.

1. Ficção infantojuvenil. I. Título.

CDU 869.0(81)-93 CDD 808.899 282

PeR - BPE 11-0373

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Page 3: Roda Moinho

Sumário

Moinhos.......................................................................................7

No olho ......................................................................................11

Modelando e conversando .........................................................14

Doces & Variedades ...................................................................18

Quem será a vizinha? .................................................................26

Apresentações ............................................................................31

A visita .......................................................................................38

Pauline na varanda .....................................................................45

O que os olhos dizem .................................................................52

Fios de histórias .........................................................................54

Uma coisa que eu nunca esperava! ............................................59

Os riscos do bordado..................................................................63

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Moinhos

Moro em Moinhos desde que nasci, há 12 anos. Moinhos é um lugar quieto durante a semana e movimentado aos sábados e domingos por causa da visita das pessoas, de perto ou de longe, que vêm conhecer o moinho d’água, perto do rio, e o moinho de vento no alto do morro.

Quando eu nasci, os moinhos já tinham entrado em férias para sempre e virado os fantasmas ilustres que são hoje. Quem chama os moinhos de fantasmas é a minha madrinha e eu acho que o nome combina. Principalmente à noite, parecem fantasmas que nunca saem do lugar.

No pátio do moinho d’água, as crianças brincavam de esconde--esconde, pega-pega, cabra-cega e chicote queimado. Atrás do moi-nho, os namorados vinham se esconder para namorar e se beijar à vontade.

Os moinhos não saem da boca do povo daqui: tal coisa fica pra lá do moinho, antes do moinho, depois do moinho, até o moinho sabe que fulano é uma peste, isso nem o moinho viu, pergunte ao moinho, vá ver se eu estou no moinho, vai, menino...

Às vezes dizem a frase: gato que vai muito ao moinho perde o focinho. Aqui todos vão ao moinho, mas ninguém, ainda, perdeu o focinho, por sorte, ou por não ter focinho, não sei.

Perto do moinho passa um rio. As águas do rio é que moviam o moinho no tempo em que ele era vivo. Vinham pessoas de muitos lugares trazer milho e trigo para transformar em farinha e arroz para descascar. Meu pai, antes de se formar em Filosofia, trabalhou de ajudante de moinho.

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Seu Miguel, o dono do moinho d’água, conta que as pessoas vinham trazer os cereais a cavalo. O cavalo ficava pastando e o cavaleiro sentava no banco de pedra, debaixo da figueira, para esperar o moinho trabalhar. E esperava o tempo que fosse necessário. Às vezes o moinho enguiçava e eles tinham que ir embora e voltar no dia seguinte para buscar a farinha. Eu gosto de ouvir contar desse tempo de gentes esperando e moinhos rodando.

Dá pra ver que houve um tempo no mundo em que as pessoas tinham muita paciência. A madrinha diz que paciência é uma coisa em extinção hoje em dia. Ela se assustou quando viu que já não tinha paciência pra mais nada, nem pra esperar o micro-ondas estourar pipoca. Aí ela veio embora para Moinhos pra aprender a ter paciência de novo e melhorar do coração que, de tanta falta de paciência, começou a falhar.

Ela vai pra beira do rio e fica um tempão olhando o rio descer. Às vezes vou lá e sento perto, mas não falo nada pra deixar o pensamento dela navegar nas águas em paz.Outras vezes, ela entra na mata e fica passeando lá dentro. Fico com medo que um bicho, tipo cobra ou escorpião, ataque-a, mas, felizmente, isso nunca aconteceu. E nem vai acontecer, eu acho, porque dizem que aqui todos são protegidos por São Bento, mesmo os que não acreditam em santos como a madrinha.

Muita gente vai embora porque acha o lugar muito parado e outros se mudam pra cá porque acham as cidades grandes muito violentas.

Quando meu pai foi embora pro Rio Branco, no Acre, eu fui morar com ele. Meu pai é um cara bacana, a namorada dele também, mas eu não parava de pensar em Moinhos. Ficava só lembrando, só lembrando. Aí o meu pai falou: “Leonardo, eu tô vendo que você não tá curtindo morar aqui, não tá feliz, eu vou morrer de saudades, mas não posso te ver assim, infeliz”, e me embarcou de volta.

A minha mãe não nasceu em Moinhos; ela veio de Lagoa Verme-lha, no Rio Grande do Sul. Quando chegou aqui, ela trabalhou de

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professora, mas não se deu bem com esse negócio de ensinar. Pare-ce que ela não sabia mandar direito na classe, os alunos tomavam conta dela e viravam a sala na maior baderna. Aí a diretora disse: “Maria Lígia, parece que você não tem muito jeito para o magis-tério. Lidar com a criançada não é moleza. Tem que ter um certo pulso que, parece, você não tem. Não seria melhor você procurar outro trabalho?”

Ela procurou mas não encontrou um trabalho legal pra fazer. Aí lembrou dos cadernos de receitas da minha avó, mandou buscar todos no Rio Grande do Sul e se botou a estudar os cadernos. Resolveu que ia continuar a tradição de fazer doces pra fora como a mãe e as tias dela. Fez uns cursos para aprender as novidades da doçaria e começou a aceitar encomendas, desde aquele tempo até hoje. Virou uma doceira respeitada em Moinhos e em todas as cidades próximas.

Foi uma pena ela e o meu pai não terem dado certo. Acho que meu pai é um tipo que gosta de casar um monte de vezes, e a minha mãe não é do tipo que casa muitas vezes. Ela gostava do meu pai; por ela nunca se separava, mas ele se apaixonou por outra. Ou melhor dizendo, por outras: a moça do Acre já é a terceira depois da separação.

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No olho

Eu tinha oito anos quando comecei a ajudar a minha mãe a fazer docinhos. Naquele tempo, eu queria aprender a dar o ponto na mas-sa, no fogo, mas ela não me deixava, nem por ouro, nem por prata, nem por sangue da barata.

– Quantos docinhos você já fez esta semana?– Perto de três mil.– Deixa eu fazer um?– Primeiro você precisa aprender a modelar. Os docinhos não

podem sair tortos, senão os fregueses devolvem.– Então modelo uns tortos pra mim; eu não ligo se o docinho é torto.– Tá bem. Modele uns beijinhos de coco, então.– Se eu aprender a modelar, posso trabalhar com você.– Primeiro você tem que cuidar dos seus estudos.– Posso estudar e modelar docinhos, não posso?– Poder, pode. Vou te ensinar a modelar.– Quero aprender a dar o ponto na massa também.– Isso não pode porque é perigoso: tem que mexer no fogão. Por

enquanto, aprendes a modelar os docinhos e, mais pra frente, eu te ensino a dar o ponto na massa, tá bem?

– Tá. Com oito anos eu modelo e com quantos eu aprendo a mexer a massa no fogo?

– Com quantos? Ah, quando eu achar que tu já se te viras bem com o perigo.

– E como você vai saber que eu já me viro bem com o perigo?– No olho.

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– No meu?– Não, no meu.– E como o teu olho vai saber que chegou a hora de eu mexer

com o perigo?– Ora, Leonardo, isso vai acontecendo...– Como?– Eu vou te observando, te estudando... Chega uma hora em que

sinto que estás no ponto.– No ponto? Eu não sou massa pra chegar no ponto.– Modo de dizer, menino. Uma mãe sabe quando o fi lho pode

dar conta de alguma coisa, digamos, mais perigosa.– Eu sinto que eu posso dar o ponto na massa com oito anos.– Não, com oito não pode. É cedo pra isso.– Mas, dentro de mim, não é cedo; é tarde, isso sim. Você não

diz que quem é sofrido fi ca com mais idade por dentro do que por fora? Eu sou sofrido, então eu tenho mais de oito por dentro, logo, eu posso mexer a massa no fogo.

– Como sofrido, Leo?– Sou fi lho de mãe separada. Todo mundo não diz que fi lho de

pais separados é sofrido?– Ah, é? Dizem isso pra você, meu fi lho?– Dizem.– Você acha que eu sou uma mãe separada ruim?– Não, você é a melhor mãe separada do mundo.– Não precisa exagerar.– Você vai arrumar outro marido?– Que marido? Nem tenho tempo de namorar. Os docinhos não

deixam.– Tá vendo? Se eu aprender a mexer e modelar a massa, sobra

tempo pra você namorar.– Você é teimoso, Leonardo.– Quero aprender a glaçar e caramelar também.– Te ensino a glaçar, caramelar e modelar, mas, mexer a massa,

no fogo, não!

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Modelando e conversando

Hoje, que tô com doze anos, não acho mais graça em mexer a massa no fogo; acho supercansativo e demorado, mas, modelar os docinhos eu ainda curto de montão.

– Que docinho você gosta mais de fazer, mãe?– O olho-de-sogra. É um doce bonito e faz muito efeito no meio

dos outros.– Bonito é, mas não é mais gostoso que o brigadeiro.– É um pouco ácido por causa da ameixa.– A freguesa vai querer os docinhos glaçados?– Não, essa não quer. Acha que glaçados ficam com excesso de

açúcar. Prefere os simples.– Eu também prefiro os docinhos com a cara limpa. Glaçados

enganam: a gente dá uma mordida pensando que é de coco e é de outra coisa, quando pensa que é de outra coisa, é de coco. Pior é morder um docinho com passas no miolo. Por mim, não existiriam docinhos com passas, são horríveis.

– Bom, valem pela surpresa. Você não vive dizendo que adora surpresas?

– Só das boas.– É, mas a vida apresenta todo tipo de surpresas, Leo.– A vida é como um docinho coberto de glacê que a gente não

sabe o que tem no miolo?– É, talvez a vida seja um docinho glaçado, que a gente não sabe

o que tem por dentro. Tem que olhar bem de que lado vai morder. De repente, morde e creu: pula pra boca uma massa amarga fora do

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ponto. Ou morde e creu: enche a boca de uma massa velha e dura como pedra e quebra um dente.

– Aí, a vida dá prejuízo. Mas também pode morder e creu: enche a boca de sorvete de creme. Vai ver a vida tem um lado que é de sorvete de creme!

– É, pode ser que tenha. Eu tenho mordido mais o lado de pedra da vida, mas nunca quebrei um dente.

– Então você tem que morder outros lados da vida para descobrir qual é o que é de sorvete de creme.

– Para alguns, acho que a vida esconde o leite, quero dizer, o sorvete de creme.

– Para você escondeu?– Ou escondeu ou eu é que não sei morder a vida direito, no caso

dela ter esse lado que você fala...– Tô vendo uma ruguinha bem no meio da tua testa, mãe.– Essa ruga é de tanto esperar– Esperar o quê?– O amanhã chegar.– Então você precisa parar de esperar o amanhã chegar, senão

essa ruga vai afundar até você ficar com um buraco na testa.– É verdade!– E tem ruga no canto do teu olho também.– Essa é de tanto olhar pro horizonte.– E por que olha tanto pro horizonte?– Olho pra ver se ele não sai do lugar.– Tem outra ruga no canto da tua boca.– Essa é de tanto suspirar pelo que não fui e pelo que não poderei

mais ser.– O que você não pôde ser?– Aeromoça. Era o meu sonho, mas o curso de formação custava

muito caro; meu pai não podia pagar. O tempo passou e levou embora o meu sonho.

– Olha só, mãe: de tanto esperar o amanhã, olhar pro horizonte e suspirar, você vai ficar com a cara toda amassada.

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– Sabe que você tem razão, Leo?–Você sabia, mãe, que a dona Alba passa roupas ouvindo o

marido ler pra ela?– Sabia. Eu mesma fui lá um dia e vi o Paulo lendo enquanto ela

passava. Ele acha que passar roupas é um serviço muito chato e a leitura alivia o tédio da chatice.

– E o que que ele lê?– Crônicas de Rubem Braga, poemas de Elisa Lucinda, de

Manuel Bandeira, de Adélia Prado, e de outros autores que não lembro. A Alba vai ouvindo e passando a rouparada e, quando vê, terminou a pilha toda.

– Eu podia ler alguma coisa enquanto você vai confeitando os docinhos.

– É uma boa ideia. Não tenho tido tempo para ler os meus autores prediletos. Seria um jeito de eu ficar perto deles. No tempo em que o seu pai era apaixonado por mim, ele lia poemas de Emily Dickinson, de Camões e de outros poetas.

– Será que ele lê poemas pra namorada do Acre?– Deve ler.– Eu acho que a dona Alba e o seu Paulo nunca vão se separar.– Por que você acha isso, Leo?– Eles nunca discutem que nem você e o meu pai.– Por isso, não: tem casal que nunca discute, no entanto, se

separa.– O seu Luís já casou quatro vezes e diz que ainda não encontrou

a alma gêmea.– Se é que existe alma gêmea, Leo...– Tomara que exista uma alma gêmea pra mim e seja a primeira

que eu encontrar. Dá muito trabalho se apaixonar e desapaixonar, eu acho.

– Pensei que a tua alma gêmea fosse a Lucinha...– Eu tava me apaixonando por ela, mas tem a cabeça muito

fraquinha, me desencantou.– Fraquinha?

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