rosemary arrojo - oficina de tradução - a teoria na prática
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8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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série4 incípios 7
Rosemary Arrojo
Oficina
de
tradução
A teoria na prática
00
dirora á tica
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que
você
tentarmos refletir
mecanismos
da
também com questões
a na
própria lingua-
pois a tradução[ . .
necessariamente
dos limites
do poder dessa capaci
'humana ' que é a
tradução seria teórica
praticamente
impossi-
se esperássemos dela
que
ível - o que inevita
.. -
como sugere o filósofo
transformação: uma
de uma
outra, de um
tradução
de
qual-
texto,
poético
ou
, será fiel não ao texto
mas
àquilo que
s r o texto
àquilo
que con
interpreta-
do texto de partida,
será[ .. ] sempre pro
somos,
e pensamos.
série4 incípios
Rosemary rrojo
Pós-doutora pe la Yale Univcrsity e doutora pela
Johns Hopkins
University,
EUA
ficina de
tradução
teoria na
prática
m
difor r
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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Rosemary Arrojo
assistente
de revisão
e projeto gráfico
eletrônica
IÇÃO ANTERIOR
de texto
Fernando Pai xão
Carlos S. Mendes Rosa
Tatiana Corrêa Pimenta
Ivany Pica
ss
o IJntistu
Rodrigo Antonio
Antonio Paulos
Claudemir Camargo
Homem de Melo Troln l lcslfln
Moaeir K. Mal susnki
Benjamin Abda ln .lun l111
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORl
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Rosemary
Oficina de tradução: a teoria na prática /
Ro
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SI
o
85p. - (Série Princípios ; 74)
Inclui bibliografia comentada
ISBN 978-85-08-11281-4
1. Tradução e interpretação.
T
Título. 11. S \ 1k
978 85 08 11281-4 (a luno)
978 85 08 11282-1 (professor)
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Sumário
I.
Abre-se uma nova oficina 7
Oficina de tradução ou
translation workshop?
8
2.
A questão do texto original
11
O significado/carga e o tradutor/transportador 11
"Pierre Menard, autor dei
Quijote ,
uma lição de Borges
sobre linguagem e tradução
13
A obra "visível" de Menard e o sonho de uma linguagem
não-arbitrária 14
A obra "invisível" e a missão impossível de Menard 19
O texto original redefinido
3. A questão do texto literário
5
O preconceito da inferioridade ou da impossibilidade
5
Uma teoria literária menardiana
28
Repensando o literário 30
Quando ameixas não são simplesmente ameixas
31
A tradução de textos literários redefmida
36
4.
A questão
da
fidelidade
37
O conceito de fidelidade e o texto/palimpsesto 37
Uma Cleópatra melindrosa 8
O autor, o texto e o leitor/tradutor 40
A fidelidade redefinida 42
5. A teoria na prática
46
"Áporo", de Carlos Drummond de Andrade 46
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Um inseto cava'',
48;
Que fazer, exausto, em país bloqueado? ,
48
E is
que o labirinto[ . . ] presto se desat a , 5 Uma orquídea forma-se ,
51
O poema: máquina de significação
5
lnsect , versão de John Nist
54
Uma nova versão de Áporo 55
6 Exercícios de tradução
58
Poema de sete faces
v rsus
Seven-sided poem
59
[ .. ]um anjo torto ,
61
As casas espiam
os
homens ,
63
pernas brancas
pretas amarelas'',
64
O homem atrás do bigode ,
64
Mundo mundo vasto
mundo'',
65 [ ..
]comovido como o diabo ,
66
The rival v rsus Rival 67
lf the moon smiled, she would resemble you ,
68;
And your first gift
is
making stone out of everything ,
7
The moon, too, abases her subjects ,
72 No day
is
safe from news ofyou ,
73
The rival : o título, 74
7 Recado ao
tradutor/aprendiz
76
8. Vocabulário crítico
79
9 Bibliografia
comentada 81
Dicionários 81
Obras sobre tradução
82
Obras sobre teorias textuais
83
Outros 84
A Maria José Arrojo
Este livro é parte de um projeto de pesquisa patrocinado pela
Pontifícia Universidade Catól ica de São Paulo
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1 Abre se uma nova oficina
Provavelmente o leitor nunca tenha ouvido falar
numa
oficin
de tradução. Se consultar dicionários, ou
se perguntar a outros falantes de português, perceberá que
oficina de tradução não existe como expressão
já
cons
truída e consagrada pelo uso.
Teremos que entendê-la, portanto, metaforicamente
e para
construir esse sentido figurado, partimos do subs
tantivo concreto
oficina.
Segundo dicionários da língua,
oficin
pode ter as seguintes acepções: lugar onde se
trabalha ou onde se exerce algum ofício ; labora tório ;
casa
ou
local onde funciona o maquinismo de uma fá
brica ; lugar onde se fazem consertos em veículos auto
móveis ;
e
em sentido figurado, lugar onde se opera
transformação notável .
Já
que temos, por assim dizer, permissão de liberar
nossa imaginação quando tentamos entender uma metá
fora, vamos relacionar os possíveis significados de oficina
à nossa metafórica
oficin e
tradução delineando, ao
mesmo tempo, seus objetivos.
m
primeiro lugar, pretende-se que esta oficina crie
um espaço ao ofício
e
à
prática da tradução, onde a teoria
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1
do que
Translation workshop
porque seu sentido figurado
é
inesperado e ainda não consagrado pelo uso. Em inglês
americano, workshop no sentido de curso ou seminar já
não impressiona mais como metáfora; é por assim dizer,
uma metáfora gasta, que perdeu sua força figurativa.
Seria, então, minha tradução mais original do que o
próprio original ? Seria a minha uma boa tradução? Se-
ria oficina de tradução fiel ao original translation work
shop?
Que relações se estabelecem entre o original e o
traduzido ?
Em síntese, essas são também as questões básicas que
envolvem a realização e a avaliação
de
qualquer tradução,
e é sobre elas que convidarei o leitor a refletir nas páginas
que se seguem. Além disso, ao tentarmo s refletir sobre os
mecanismos da tradução, estaremos lidando também com
questões fundamentais sobre a natureza da própria lingua-
gem, pois a tradução, uma das mais complexas de todas
as
atividades realizadas pelo homem, implica necessaria-
mente uma definição dos limites e do poder dessa capa-
cidade tão huma na que é a produção de significados.
Afinal, não
é por
acaso que até hoje,
em
nosso mundo cada
vez mais computadorizado, não há nem a mais remota
possibilidade de que uma máquina venha substituir satis-
fatoriamente o homem na realização de uma tradução.
2 A questão do texto original
Todo
texto é único e é ao
mesmo
tempo a tradução de outro texto_.
enhum texto é completamente on -
ginal porque a própria líng_ua em
essência á é uma traduçao: em pri
meiro lugar do
mundo
não-verbal e
em segundo porque todo signo e toda
frase é a tradução de outro signo e
de outra frase. Entretan to esse argu
mento pode ser modificado sem per
der sua validade: todos os textos são
originais porque toda tradução
é
di
ferente.
Toda
tradução é até certo
ponto
uma
criação e como tal cons
titui um texto único.
O significado carga e o
tradutor transportador
(Octavio Paz
Uma das imagens mais freqüentemente utilizadas pe-
los teóricos para descrever o processo de tradução é a da
transferência ou da substituição. De acordo com
J
C.
-
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2
Catford, um dos teóricos mais conhecidos e divulgados
no Brasil, a tradução é a substituição do material textual
de uma língua pelo material textual equivalente em outra
língua
•
Eugene Nida, outro teórico importante, expande
essa imagem através da comparação das palavras de uma
sentença a uma fileira de vagões de carga
2
•
Segundo sua
descrição, a carga pode ser distribuída entre os diferentes
vagões de forma irregular. Assim, um vagão poderá conter
muita carga, enquanto outro poderá carregar muito pouca;
em outras ocasiões, uma carga muito grande tem que ser
dividida entre vários vagões. De maneira semelhante, su
gere Nida, algumas palavras carregam vários conceitos
e outras têm que se juntar para conter apenas um. Da
mesma maneira que o que importa no transporte da carga
não é quais vagões carregam quais cargas, nem a seqüên
cia em que os vagões estão dispostos, mas, sim que todos
os volumes alcancem seu destino , o fundamental no pro
cesso de tradução é que todos os componentes significati
vos do original alcancem a língua-alvo, de tal forma que
possam ser usados pelos receptores.
Se pensamos o processo de tradução como transporte
de significados entre língua A e língua B acreditamos ser
o texto original um objeto estável, transportável , de con
tornos absolutamente claros, cujo conteúdo podemos clas
sificar completa e objetivamente. Afinal, se
as
palavras de
uma sentença são como carga contida em vagões, é per
feitamente possível determinarmos e controlarmos todo o
seu conteúdo e até garantirmos que seja transposto na
íntegra
para
outro conjunto de vagões. Ao mesmo tempo,
se
compararmos o tradutor ao encarregado do transporte
dessa carga, assumiremos que sua função, meramente me
cânica, se restringe a garantir que a carga chegue intacta
Uma teoria lingüística da tradução,
p
22. V Bibliografia comen
tada.
2 Language structure and translation, p. 190. V. Bibliografia co
mentada.
3
ao seu destino. Assim, o tradutor traduz, isto é, trans
porta a carga de significados, mas não deve interferir nela,
não deve interpretá- la .
Essa visão tradicional, que obviamente pressupõe uma
determinada teoria de linguagem,
se
reflete também nas
diretrizes em geral estabelecidas para o trabalho do tra
dutor. Nesse sentido, os três princípios básicos que defi
nem a boa tradução, sugeridos por um de seus teóricos
pioneiros, Alexander Fraser Tytler, ainda são exemplares:
1} a tradução deve reproduzir
em
sua totalidade a idéia do
texto original;
2 o estilo d tradução deve ser o mesmo do original; e
3 a tradução deve
t r
toda a fluência e a naturalidade do
t xto
original
3
Pierre Menard, autor dei Quijote , um
lição de Borges sobre linguagem e tradução
Para que possamos discutir os problemas e as limi
tações dessa imagem consagrada que vincula a tradução à
transferência de significados de uma língua para outra,
vamos examinar
um
conto do escritor argentino Jorge
Luis Borges que tem um título instigante: Pierre Menard,
autor dei Quijote
4 •
Embora seja um conto bastante com
plexo que, à primeira vista, pode desiludir os leitores me
nos acostumados a visitar os textos labirínticos de Borges,
vale a pena tentar penetrar sua trama aparentemente sim
ples, mas que oferece,
em
suas poucas páginas, um dos
comentários mais brilhantes e mais completos que já se
escreveu sobre os mecanismos da linguagem e suas impli-
3 The principies
o
translation, publicado em 1791. A I u ~ BASS NETT-
-McGUIRE, Susan. Translation studies, p. 63. V. Blbhograf1a co
mentada.
4
ln: -
Ficciones,
p. 47-59. V. Bibliografia comentada. Todas as
citações serão traduzidas do original pela Autora.
-
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4
cações
para
uma teoria da tradução e para uma teoria da
literatura
5
•
O conto é apresentado como uma resenha póstuma
das obras de Pierre ·Menard (personagem fictício criado
por Borges), um homem de letras francês que viveu na
primeira metade do século XX. O narrador é um crítico
literário que tenta apresentar o verdadeiro catálogo das
obras de Menard, de quem se diz amigo, com o objetivo
de retificar um catálogo recém-publicado, que considera
falso e incompleto. Segundo o narrador, é fácil enumerar
o que chama a obra visível de Menard; e ele nos apre
senta dezenove obras (monografias, traduções, análises e
alguns poemas) publicadas e não-publicadas, que sugerem,
como escreveu Borges no prólogo de Ficciones, o dia
grama
da
história mental de Menard: sua ideologia, suas
concepções teóricas, seus desejos e até suas contradições.
A obra visível de Menard e o
son o
de uma linguagem não-arbitrária
Vamos examinar algumas das obras visíveis de Me
nard
para
que possamos entender um pouco sua concep
ção de linguagem. e analisarmos mais detidamente seus
trabalhos teóricos, veremos que têm muito em comum
com
as
teorias tradicionais da tradução. Menard concebe
o texto como um objeto de contornos perfeitamente deter
mináveis, acreditando, portanto, que seja possível, como
sugerem os três princípios básicos de Tytler, reproduzir
totalmente, em outra língua, as idéias, o estilo e a natura
lidade de um texto original. Comecemos nossa leitura
5
Para
uma
versão mais aprofundada da leitura
de
Pierre Menard,
autor dei Quijote proposta aqui, ver ARROJO Rosemary. Pierre
Menard, autor dei
Quijote :
esboço de uma poética da tradução
via Borges. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tra-
dutores, n.
0
5. V.
Bibliografia
comentada.
5
pelos seguintes trabalhos encontrados no arquivo parti
cular de Menard:
[ ...
c) uma monografia sobre certas conexões ou afinidades
do pensamento de Descartes, Leibniz e de John Wilkins;
d) uma monografia sobre a
Ars
magna genera/is, de Ramón
Lull;
[ ... ]
h) os rascunhos de uma monografia sobre a lógica simbó
lica de George Boole p . 46 .
O que teriam em comum esses pensadores? No en
saio
El
idioma analítico de John Wilkins , da coletânea
Otras inquisiciones
6
, o próprio Borges sugere algumas co
nexões entre o pensamento de René Descartes ( 1596-
-1650),
importante filósofo francês, e do religioso inglês
John Wilkins (1614-1650). Ambos sonhavam com a pos
sibilidade de uma linguagem universal, que não fosse arbi
trária e que, portanto, não dependesse dos caprichos
da
interpretação; cada palavra teria um significado fixo e
único, independentemente de qualquer contexto. Segundo
Borges, no idioma universal idealizado por Wilkins,
cada
palavra define a si mesma (p.
222),
constituindo um
signo evidente e definitivo, imediatamente decifrável por
qualque r pessoa. Tal idioma, imaginava Wilkins, deveria
ser capaz de organizar e abarcar todos os pensamentos
humanos (p.
222).
Borges descreve esse projeto ambi
cioso:
[Wilkins]
dividiu o universo em quare·nta categorias ou gê
neros, subdivisíveis, por sua vez, em espécies. Atribuiu a
cada gênero um monossílabo de duas letras; a cada dife
rença, uma consoante; a cada espéc ie, uma vogal. Por
exemplo, de quer
dizer
elemento; deb, o
primeiro
dos ele-
6 P. 221-5. V.
Bibliografia
comentada. Todas as citações serão tra
duzidas do original pela Autora.
-
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6
mentas, o fogo;
deba
uma porção do elemento do fogo,
uma chama p. 222) .
E examina mais detidamente a oitava categoria, a das
pedras:
Wilkins s divide em comuns rocha viva, cascalho, ardó-
sia), razoáveis mármore, âmbar, coral); preciosas pérola,
opala); transparentes ametista, safira) e insolúveis carvão,
argila e arsênico). Quase tão alarmante quanto a oitava é
a nona categ oria. Esta nos revela que os metais podem ser
Imperfeitos cinabre, mercúrio); art if iciais bronze, latão).
recrementícios limalha, ferrugem) e naturais ouro, esta-
nho, cobre) p. 223).
De acordo com Borges, ainda no mesmo ensaio, Des
cartes, antes de Wilkins, já havia sonhado usar o sistema
decimal de numeração para criar uma linguagem univer
sal, absolutamente racional, livre de ambigüidades. Supu
nha Descartes que, através da utilização de algarismos,
poderíamos aprender num só dia a nomear todas as quan
tidades· até o infinito e a escrevê-las num idioma novo
p.
222).
O filósofo alemão Got tfri ed Wilhelm Leibniz ( 1646-
-1716),
precursor do projeto da lógica simbólica, cujo
objetivo último é a criação de uma linguagem não-arbi
trária, também tentou construir uma linguagem universal,
que intitulou rs combinatoria, com base no modelo de
John Wilkins e na rs magna do filósofo e missionário
espanhol Ramón Lull (123 6-1315 )7.
De todos esses projetos, a obra de Lull é talvez a
mais extravagante. Tratava-se de uma armação de discos
com os quais propunha relacionar exaustivamente todas
as possíveis relações de um tópico. A armação era cons-
7 Cf. LEWIS,
E.
1
A survey of symbolic logic.
Berkeley, University
of Califor nia Press, 1918. p. 4.
7
tituída de três círculos concêntricos divididos em compar
timentos. Um círculo era dividido em nove predicados re
levantes; o terceiro círculo era dividido em nove pergun
tas:
O
quê? Por quê? De que tamanho? De que espé
cie? Quando? Onde? Como? De que lugar? Qual? . Um
dos círculos era fixo; os outros giravam, fornecendo uina
série completa de perguntas, e de afirmações relacionadas
a elas
8
.
Finalmente, o matemático e lógico inglês George
Boole ( 1815-1864) é considerado o segundo fundador da
lógica simbólica, intuída por Lull e Wilkins, e formaliza
da, pela primeira vez, por Leibniz
9
•
Por trás de todos esses projetos ambiciosos, podemos
identificar um desejo de se chegar a uma verdade única e
absoluta, expressa através de uma linguagem que pudes
se neutralizar completamente as ambigüidades, os duplos
sentidos,
as
variações de interpretação,
as
mudanças de
sentido trazidas pelo tempo ou pelo contexto. Esse desejo,
compartilhado
por
Descartes, Leibniz, Lull e Boole, e que
nos fornece um esboço
da
teoria
da
linguagem e da teoria
da tradução professadas
por
Menard,
se
revela também
na
teoria literária implícita em seus trabalhos críticos.
Para Menard, o literário é uma categoria perfeita
mente distinguível do não-literário. Tanto o poético como
o não-poético são características textuais intrínsecas e es
táveis, que podem ser objetivamente determinadas. O item
b do catálogo de suas obras é, por exemplo,
uma monografia sobre a possibilidade de
construir
um voca-
bulário poético de conceitos que não fossem sinônimos ou
perífrases dos que informam a linguagem comum, mas ob-
jetos ideais criados por uma convenção e essencialmente
destinados às necessidades poéticas
.
48 .
B Cf. REESE, W. L.
Dictionary of philosophy and religion;
eastern
and western thought. New Jersey, Humanity Press, 1980.
9 Cf. LEWIS, E. 1. op. cit., p. 4.
-
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18
O item é
um
exame das leis métricas essenciais da
prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon
(p. 49). O item
n
é uma obstinada análise dos 'costumes
sintáticos de Toulet' '', e o item s é
uma
lista manuscrita
de versos que devem sua eficácia
à
pontuação (p. 50).
Para Menard, a crítica é o catalogar de características for
mais evidentes e não deve elogiar ou censura r . Como
nos informa o narrador , Menard declarava que censurar
e elogiar são operações sentimentais que nada têm a ver
com a crítica (p. 47). Menard, discípulo de Descartes,
Leibniz, Ramón Lull e John Wilkins, considera que a crí
tica, como a tradução ou a leitura, não deve interp retar
ou ir além do texto original e, sim, delimitar seus contor
nos objetivos e imutáveis.
Contudo, a própria bibliografia de Menard sugere a
impossibilidade desse desejo. Como poeta e tradutor, ele
constanteme nte produz versões diferentes do mesmo
texto. O item que encabeça o catálogo de seus trabalhos
é
um
soneto simbolista que apareceu duas vezes (com
variações) na revista
La onqu
e (números de março e
outubro de 1899) . O item é uma tradução , com pró
logos e notas do Libro de l inv ención liberal
y
arte dei
juego de ajedrex, de Ruy López de Segura . O item k é
outra tradução, uma tradução manuscrita (e, portanto,
não uma versão definiti va ) da Aguja de navegar cul
tos'', de Quevedo, intitulada La boussole des précieux .
O item o é uma transposição em alexandrinos do 'Cime
tiere Marin', de Paul Valéry . Curiosamente, há também
uma versão literal da versão literal que fez Quevedo da
Introduction à l vie dévote de San Francisco de Sales
(p. 48-50).
Porém, entre todos os projetos menardianos, o · que
mais clara e espetacularmente ilustra a impossibilidade de
se chegar a uma linguagem não-arbitrária, que pudesse
controlar os conteúdos e os limites de um texto, é a reali
zação de sua obra invisível'', que examinamos a seguir.
A obra invisível e a missão
impossível de Menard
19
Segundo o narrador, a obra que realmente define o
talento de Menard é seu trabalho invisível'', sua obra
mais significativa - a subterrânea, a interminavelmente
heróica, a ímpar , ou seja, a reprodução dos capítulos
IX
e XXXVIII da Primeira parte do Dom Quixote, de Mi
guel de Cervantes, e parte do capítulo XXII. Por que seria
invisível essa obra de Menard? Em primeiro lugar,
em
oposição à sua obra visível , seu trabalho invisível pa
rece nunca ter sido publicado.
Em
segundo lugar, talvez
seja invisível porque, mais do que uma obra real ,
trata-se de um desejo, de um sonho que não pôde ser rea
lizado. Além disso, invisível pode sugerir também que o
que Menard chama de a reescritura ou a reprodução
do Quixote fosse, na verdade, uma leitur a , forma invi
sível de se reescrever ou traduzir.
Conforme nos explica o narrador, o inusitado obje
tivo de Menard não era simplesmente reproduzir o
Qui-
xote, mas repetir na íntegra o texto escrito
por
Cervantes.
Pierre Menard busca a totalidade: interpretação total, con
trole total sobre o texto, total identificação com um autor
determinado (p. 51). Tal atitude rejeita, obviamente,
uma interpretação contemporânea do
Quixote
e
ao negar
-se a simplesmente inte rpreta r ou tradu zir o Quixote,
Menard pretende recuperar não apenas a totalidade do
texto de Cervantes, mas também o contexto em que fora
escrito:
Não
queria outro
Quixote -
o que seria fácil
- mas o Quixote (p.
52).
O projeto invisível de Menard reflete, portanto,
uma teoria da tradução (e uma teoria da leitura) seme
lhante
à
de Catford ou Nida, já que parte de uma teoria
da linguagem que autoriza a possibilidade de determinar e
delimitar o significado de uma palavra, ou mesmo de um
texto, fora do contexto em que é lida ou ouvida.
-
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2
A primeira estratégia que Menard pensa em empre
gar para alcançar seu objetivo é, literalmente, transfor
mar-se em Cervantes, isto é:
conhecer bem o espanhol. recuperar a
fé
católica, guer
rear contra os mouros
ou
contra os turcos, esquecer a his
tória da
Europa entre os anos de
1602
e de
1918 ser
Mi
guel de Cervantes
p
. 52-3 .
Abandona, entretanto, tal método, por ser pouco es
timulante. Afinal, como nos explica o narrad or, ser, de
alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu
-lhe menos árduo - por conseguinte, menos interessnnte
- que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Qui
xote através das experiências de Pierre Mena rd (p. 52 .
Menard impõe-se, assim, o misterioso dever de recons
truir literalmente a obra espontânea de Cervantes (p . 52 .
Esse misterioso dever pode ser interpretado como
uma alegoria do que tradicionalmente
se
pretende atingir
em toda tradução: Menard
se
impõe a tarefa de repetir
um texto estrangeiro, escrito em outra língua, por um outro
autor e num outro momento, sem deixar de ser ele pró
prio, isto é, sem poder anular seu contexto e suas circuns
tâncias. Menar d parece, inclusive, uma caricatura exage
rada do tradutor imaginado por Tytler, refletido nos três
princípios básicos comentados no início deste capítulo:
1)
a tradução deve reproduzir em sua totalidade a idéia do
texto original; 2 a tradução deve ter o mesmo estilo do
original; e,
3)
a tradução deve ser fluente e natural como
o original.
Embo ra reconheça que seu projeto é ainda mais im
possível do que tornar -se Cervantes, o próprio Menard,
como um supertradutor, consegue (aparentemente) ven
cer essa impossibilidade e produz alguns fragmentos ver
balmente idênticos ao om
Quixote
de Miguel de Cer
vantes. Entreta nto, ao tentar identificar-se totalmente com
21
Cervantes e proteger a intenção ou o significado origi
nais do texto, Mena rd inadvertidamente ilustra a invia
bilidade de seu projeto.
O narrador nos apresenta um fragmento do
Dom
Quixote
reescrito
por
Pierre Menard e o compara ao
fragmento equivalente
do
om
Quixote
de Cervantes:
f:
uma revelação
cotejar
o
Dom Quixote
de Menard com o
de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote,
primeira parte, capítulo nono):
[ . . . ] a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do
tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exem
plo e aviso do presente, advertência do
porvir
. Redigida
no século dezessete, redigida pelo engenho
leigo
Cer
vantes, essa enumeração é um mero elogio retórico
da
his
tória. Menard, por outro lado, escreve:
[ . .. ] a verdade, cuja mãe é a história, êmulo do
tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exem
plo e aviso do presente, advertência do
porvir .
A história,
mãe da verdade; a idéia é assombrosa. Menard, con
temporâneo de William James, não define a história como
uma indagação
da
realidade, mas como sua origem. A ver
dade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que
julgamos que tenha acontecido . As sentenças finais -
exemplo e aviso do presente, advertência do
porvir
-
são descaradamente pragmáticas . Também é vívido o con
traste
entre os estilos. O estilo arcaizante de Menard -
·no fundo estrangeiro - padece de alguma afetação. O
mesmo não acontece com o do precursor, que maneja com
naturalidade o espanhol corrente de sua época (p. 57).
Menar d tenta recuper ar o significado original de
Cervantes, mas somente consegue reproduzir suas pala- .
vras. O que Menard lê e reproduz como sendo o verda
deiro
Quixote
(e, portanto, de acordo com Menard, imu
tável e evidente) é interpretado pelo narrador/crítico
como algo diferente. Paradoxal mente, ao repetir a to
talidade do texto de Cervantes, Menard ilustra a impossi-
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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22
bilidade· da repetição total, exatamente porque
as
pala
vras do texto de Cervantes n ão conseguem delimitar ou
petrificar seu significado original , independentemente de
um contexto, ou de uma
interpretação .
Essas mesmas pa
lavras assumem um determinado valor quando o narra
dor/
crítico
as
relaciona ao contexto de Cervantes, e um
valor diferente quando relacionadas ao contexto de Pierre
Menard. Assim, ainda que
um
tradutor conseguisse che
gar a uma repetição total de
um
determinado texto, sua
tradução não recuperaria nunca a totalidade do original ;
revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretação
desse texto que, por sua vez, será
sempre, apenas
lido
e
interpretado,
e nunca totalmente decifrado ou controlado.
Além disso, quando Menard se transforma em au
tor do Quixote, seus leitores também interpretam seu texto
sob diferentes pontos de vista e não conseguem recuperar
suas intenções originais. Além da interpretação do narra
dor/
crítico, que já mencionamos acima, há,
por
exemplo,
a de Madame Bachelier, que vê no
Quixote
de Menard
uma admirável e típica subordinação do autor à psico
logia do herói . Outros leitores, nada perspicazes , se-
gundo o narrador, consideram a obra invisível de Me
nard uma mera transcr ição do
Quixote.
Outros, ainda,
como a Baronesa de Bacourt, reconhecem na mesma obra
a influência de Nietzsche (p. 5
6
.
texto original redefinido
Até aqui, nossa rápida incursão pelo conto de Borges
tentou questionar a visão tradicional de texto, sugerida
pelas teorias da tradução esboçadas no início deste capí
tulo. Como sugere nossa leitura de Pierre Menard, autçir
dei
Quijote ,
traduzir não pode ser meramente o trans
porte, ou a transferência, de significados estáveis de uma
língua para outra, porque o próprio significado de uma
23
palavra, ou de um texto, na língua de partida, somente
poderá ser determinado, provisoriamente, atravé·s de uma
leitura. Assim, se voltarmos às nossas questões iniciais,
referentes ao próprio título deste livro, parece ficar mais
claro que, ao traduzirmos
translation workshop
por ofi
cina de tradução , o que acontece não é uma transferência
total de significado, porque o próprio significado do ori
ginal não é fixo ou estável e depende do contexto em
que ocorre. Assim, antes de traduzir
translation workshop
por oficina de tradução , estabeleceu-se o contexto em
que havia originalmente ocorrido: título de um curso espe
cial e avançado, oferecido por uma universidade ameri
cana. Ao mesmo tempo, a tradução que sugeri, oficina
de tradução , como o
Quixote
de Menard
em
relação ao
Quixote
de Cervantes, passa a existir num outro contexto
e ganha vida própria, a partir do momento
em
que
se
transforma no título de um livro publicado no Brasil.
O texto, como o signo, deixa de ser a representação
fiel de um objeto estável que possa existir fora do labi
rinto infinito da linguagem e passa a ser uma máquina de
significados em potencial. A imagem exemplar do texto
original deixa de ser, portanto, a de uma seqüência de
vagões que contêm uma carga determinável e totalmente
resgatável. Ao invés de considerarmos o texto, ou o signo,
como um receptáculo em que algum conteúdo possa ser
depositado e mantido sob controle, proponho que sua ima
gem exemplar passe a ser a de um
palimpsesto.
Segundo
os dicionários, o substantivo masculino
palimpsesto,
do
grego
palimpsestos
( raspado novamente ), refere-se ao
antigo material de escrita, principalmente o pergaminho,
usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou
três vezes [ .. . ] mediante raspagem do texto anterior .
Metaforicamente, em nossa oficina , o palimpsesto
passa a ser o texto que se apaga, em cada comunidade cul
tural e em cada época, para dar lugar a outra escritura
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
14/47
4
ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do mesmo
texto. Assim, como nos ilustrou o conto de Borges, o
texto de om Quixote não pode ser um conjunto de sig
nificados estáveis e imóveis, para sempre depositad os
nas palavras de Miguel de Cervantes. O que temos, o
que é possível ter, são suas muitas leituras, suas muitas
interpretações - seus muitos palimpsestos .
A tradução, como a leitura, deixa de ser, portanto,
uma atividade que protege os significados originais de
um autor, e assume sua condição de produtora de signi
ficados; mesmo porque protegê-los seria impossível, como
tão bem
e
tão contrariadamente) nos demonstrou o bor
giano Pierre Menard.
3 A questão do texto literário
Nenhum problema tão consubstancial
com s letras e seu modesto mistério
como o que propõe uma tradução.
Um esquecimento estimulado pela vai-
dade o temor de confessar processos
mentais que adivinhamos perigosa-
mente comuns a tentativa de manter
intacta e central uma reserva incal-
culável de sombra velam s tais escri-
turas diretas. A tradução por outro
lado parece destinada a ilustrar a
discussão estética.
(Jorge Luís Borges)
preconceito
d
inferioridade
ou
da impossibilidade
O ponto nevrálgico de toda teoria de tradução parece
ser a tradução dos textos que chamamos de literário s ,
questão geralmente adiada ou excluída tanto dos estudos
sobre tradução quanto dos estudos literários.
A grande maioria dos escritores e poetas que abor
dam a questão da tradução de textos literários considera
-
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26
que traduzir é destruir, é descaracterizar, é trivializar.
Para muitos, a tradução de poesia é teórica e praticamente
impossível. Para outros, a eventual traduzibilidade do
texto poético é vista como sinal de inferioridade. Para o
poeta americano Robert Frost (1874-1963), por exemplo,
a verdadeira poesia é intraduzível, definindo-se precisa
mente como aquilo que se perde em qualquer tentativa
de tradução
1
. Segundo o francês Paul Valéry (1871-
-1945), contemporâneo e companheiro de Pierre Me
nard, a qualidade do texto poético é inversamente pro
porcional à sua traduzibilidade: quanto mais resistente for
o texto aparentemente poético ao ataque de qualquer
transformação formal, menor será o seu grau de poesia
2
•
George Steiner, em A ter
Babel aspects o f langua-
ge and translation (V. Bibliografia comentada), cita várias
opiniões semelhantes, também de escritores e poetas céle
bres, insatisfeitos com os estragos causados pela tra
dução. Entre outros, Steiner cita o poeta alemão Heinrich
Heine (1797-1856), para quem as versões francesas de seus
poemas eram
luar
recheado de palha (p. 240). O russo
-americano Vladimir Nabokov
(1899-1977), u
dos maio
res escritores deste século e que, entre suas inúmeras obras,
incluiu traduções, expressa sua visão no poema On trans
lating 'Eugene Onegin' :
What is translation? On a
platter
A poet's pale and glaring head,
A
parrot's
speech, a monkey's chatter,
And profanation
of
the dead (p. 240).
( Sobre
a Tradução de Eugene Onegin'
O
que é tradução? Numa bandeja,
t
Citado pelo poeta
e
tradutor
inglês
Donald Davie numa
confe
rência apresentada para os alunos do Programa de Mestrado em
Teoria e Prática
da
Tradução Literária, Universidade de Essex,
Colchester, l'nglaterra, no ano letivo de 1967-1968; texto mimeo
grafado.
: Idem.
A cabeça pálida e fulgurante de um poeta,
A fala de um papagaio, a tagarelice de um macaco,
E a profanação dos
mortos.)
27
Marin Sorescu, poeta romeno contemporâneo, tam
bém expressa sua crítica através de um poema, intitulado
Tradução , que traduzo a partir da versão inglesa:
Estava fazendo exame
e uma língua morta.
E tinha que me traduzir
e homem para macaco.
Fiquei
na
minha,
Transformando uma floresta
Em texto.
Mas a tradução ficou mais difícil
Quando fui chegando perto de mim.
Porém, com um certo esforço,
Encontrei equlvalentes satisfatórios
Para as
unhas e os pêlos dos pés.
Perto dos joelhos
Comecei a gaguejar.
Perto do coração minha mão começou a tremer
E inundou o papel de luz.
Mesmo assim,
tentei
improvisar
Com os pêlos do peito,
Mas falhei completamente
Na alma.
Segundo esses poetas e escritores, a tradução é uma
atividade essencialmente inferior, porque falha em captu
rar a alma ou o espírito do texto literário ou poético.
Essa visão reflete, portanto, a concepção de que, especial
mente no texto literário
ou
poético, a delicada conjunção
-
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28
entre
forma
e
conteúdo não pode
ser tocada sem prejuízo
vital, o que condenaria qu alquer possibilidade
de
tradução
bem-sucedida.
ma teoria literária menardiana
Novamente, estamos diante de uma concepção me
nardiana da literatura, reflexo da teoria lingüística e da
teoria
da
tradução que comentamos no capítulo anterior.
Como vimos, Pierre Menard somente consideraria legítima
uma tradução que, literalmente , não alterasse em nada o
texto original'', uma tradução que, em pleno século
XX,
pudesse resgatar o
verdadeiro Quixote
escrito
por
Miguel
de Cervantes no início do século
XVII
.
Para
o poeta,
tradut or e romanc ista invisível Pierre Menard, como
para
os poetas e escritores citados acima , o literário e o
poético são características textuais intrínsecas e estáveis ,
que permitem, inclusive, uma distinção clara e objetiva
entre textos literários e textos não-literários. Portanto,
qualquer mudança
tanto
a nível formal , quanto a nível
de conteúdo) que pudesse ocorrer num texto literário
implicaria uma alteração de suas características e conse
qüentemente, a eventual
perda
daquilo que o torna lite
rário .
Ao
mesmo tempo, podemos observar que a teoria de
tradução implícita nos comentários desses poetas e escri
tores é essencialmente a mesma do teórico Eugene Nida,
cuja comparação do processo de tradução a
uma
transfe
rência de carga de um grupo de .vagões
para
outro exami
namos no início do capítulo anterior. Nida redime a tra
dução de textos não-literários exatamente porque, nesse
caso, a conjunção conteúdo / forma não é considerada fun
damental,
não importando, como vimos, em quais vagões
se encontram as diversas partes
da
carga transportada,
9
nem a sequencia em que os vagões se organizam, mas,
sim, que todos os conteúdos alcancem o seu destino.
Essa transferência não pode, portanto, ser aceita
pelos defensores da intraduzibilidade do literário e do poé
tico porque consideram que é precisamente essa intocabi
lidade da conjunção forma/ conteúdo que constitui a pe
culiaridade do texto artístico . A literarieda de é assim,
considerada como algo que alguns textos privilegiados
contêm , como uma alma ou um espírito . Conforme
escreveu o poeta italiano Giacomo Leopardi (
1798-1837):
As
idéias estão contidas e praticamente engastadas nas
palavras como pedras preciosas num anel. Elas
se
incor
poram às palavras como a alma
ao
corpo de tal modo que
constituem um todo.
As
idéias são portanto inseparáveis
das palavras· e se se separarem delas não serão mais as
mesmas. Escapam
ao
nosso intelecto e
ao
nosso poder de
compreensão; tornam-se irreconhecíveis exatamente o que
aconteceria à nossa alma se se separasse de nosso
corpoª·
Tanto
a imagem de Leopardi, que sintetiza as con
cepções de Nabokov, Frost, Valéry e Sorescu (além de
Menard),
quanto a de Nida, apresentam o texto (literá
rio
ou não)
como um receptáculo de idéias e / ou carac
terísticas distinguíveis e objetivamente determináveis. No
capítulo anterior, através do conto de Borges, tentamos
questionar essa concepção de texto e, à imagem
do
texto/
/ vagão de carga sobrepusemos a imagem
do
texto/ palimp
sesto. Tenta remos, agora, examinar
as
implicações desse
texto/ palimpsesto
para
uma definição da própria literatura,
pois a discussão sobre a tradução ou a traduzibilidade dos
textos que chamamos de literários ou poéticos depende de
uma discussão anterior sobre o
status
do texto original ,
isto é, sobre aquilo que nos leva a considerar um deter
minado texto poético
ou
literário .
3
Apud
STEINER, G. A ter Babel .. nota 1 p. 242.
-
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30
Repensando o literário
Se tentássemos rastrear, através da história da cultura
ocidental, as diversas respostas dadas à pergunta aparente
mente simples: O que é literatura?'', provavelmente che
garíamos a respostas tão diferentes quanto as épocas que
as
produziram. Basta lembrar, por exemplo, que enquanto
Platão bania a poesia de sua República
por
ser perigosa ,
Aristóteles a celebrava, principalmente sob a forma de tra
gédia, por seu efeito benéfico de catarse. Mas, nem pre
cisaríamos consultar nossos mestres gregos. Se fizéssemos
a mesma pergunta a teóricos contemporâneos, também ob
teríamos respostas divergentes. Na verdade, seria surpreen
dente se obtivéssemos respostas muito semelhantes, uma
vez que nossa tradição cultural tem chamado de poemas
textos tão díspares quanto Os Lusíadas de Camões, e
Quadrilha'', de Carlos Drummond de Andrade, ou
Para-
dise Lost de John Milton, e ln a Station of the Metro'',
de Ezra Pound.
De um lado, temos textos monumentais como os de
Camões e Milton
e
de outro, textos que um leitor avesso
às sutilezas do poético consideraria prosaicos, como o
poema citado de Pound, constituído de apenas dois versos:
he apparition of these faces in the crowd;
Petals on a wet black bough.
A aparição dessas faces na multidão;
Pétalas num ramo negro, úmido.)
O que teriam em comum esses textos tão diferentes? O
que nos permite classificá-los com o mesmo rótulo de
poema ? Certamente, o que nos permite chamar tanto
Os Lusíadas
quanto Quadrilha
de
poemas não são
suas características textuais intrínsecas, nem sua temática,
nem mesmo ·as eventuais interições de seus autores tão
distintas entre si mas sim, nossa atitude perante os mes-
31
mos. O poético é na verdade, uma estratégia de leitura,
uma maneira de ler e não, como queria Pierre Menard,
um conjunto de propriedades estáveis que objetivamente
encontr amos em certos textos. Assim, há textos que,
devido a circunstâncias exteriores e não às suas caracte
rísticas inerentes, nossa tradição cultural decide ler de
forma literária ou poética.
A literatura seria, portanto, uma categoria convencio
nal criada por uma decisão comunitária. Como sugere o
teórico americano Stanley Fish, o que será, em qualquer
época, reconhecido como literatura é resultado de uma de
cisão, consciente ou não, da comunidade cultural sobre o
que será considerado literári o
4
•
Podemos imaginar, por
exemplo, que o contexto histórico e cultural que produziu
e celebrou um poema como Os Lusíadas certamente não
produziria nem reconheceria como poema um texto como
Quadrilha . Hoje, entretanto, nossa comunidade cultu
ral, que
Stanley Fish chama de comunid ade interpreta
tiva'', permite incluir tanto Camões quanto Drummond
entre os maiores poetas da língua portuguesa. De ma
neira semelhante, podemos entender também
por
que al
guns poetas são tão celebrados durante um certo período
e completamente esquecidos em outro, ou, ainda, porque
às vezes redescobrimos ou revisita mos um poeta in
justiçado no passado.
uando ameixas não sã simplesmente
ameixas
Tomemos um exemplo prático que possa nos ajudar
a ilustrar essas conclusões sobre o literário ou o poético
4
Is there a text in this class?; the authority of interpretive commu
nities, p. 1-17. V. Bibliografia comentada.
-
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32
e a examinar suas implicações para o processo de tra
dução.
Suponhamos que o seguinte fragmento seja o con
teúdo de um bilhete deixado por um hóspede norte-ame
ricano sobre a mesa da cozinha de seu anfitrião brasileiro,
que não domina muito bem o inglês:
This is just to say 1 have eaten the plums th t were in the
icebox and which you were probably saving
for
breakfast.
Forgive me, they were delicious: so sweet and so cold
5
.
Como tradutores de um simples bilhete de caráter pessoal,
cujo contexto e função acabam de ser estabelecidos, sabe
mos que nosso objetivo é reproduzir a informação e o
pedido de desculpas do original :
Este bilhete é só para lhe dizer que comi s ameixas que
estavam n geladeira e que provavelmente você estava
guardando para o café
d
manhã. Desculpe-me, elas esta
vam deliciosas, tão doces e geladas.
Teríamos, entretanto, outras leituras, outras traduções
e portanto, pelo menos um outro texto ao constatarmos
que o fragmento acima é na verdade, um poema do ame
ricano William Carlos Williams (1883-1963):
his s just
to say
1 have eaten
the plums
th t were in
the icebox
5
O exemplo e os argumentos apresentados aqui f ~ r m inicialment_e
desenvolvidos em ARROJO, Rosemary.
A
traduçao como reescri
tura: o texto/ palimpsesto e
um
novo conceito de fidelidade. Tra-
balhos em Lingiiística Aplicada Campinas, Universidade Estadual
de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, dez . 1985, n.
0
5
e
6, p. 1-8.
and which
you were probably
saving
for breakfast
Forgive me
they were delicious
so
sweet
and so cold
o
33
Ao sermos apresentados ao mesmo fragmento,
agora rotulado de poema o que antes era prosaico passa
a ser poético. Como leitores do poema, membros de uma
comunidade cultural para a qual tal texto se enquadra
dentro das convenções literárias estabelecidas, aceitamos o
desafio implícito de interpretá-lo poeticamente e passamos
a procurar um sentido coerente para ele. Passamos a pen
sar, por exemplo, nas possíveis implicações da oposição
entre o ato de comer as ameixas e as relações sociais que
esse ato viola. Oposição essa que não se resolve pacifica
mente: ao mesmo tempo em que o poema, pela sua própria
razão de ser, reconhece a prioridade das regras, através do
pedido de perdão, afirma também que a experiência sensual .
imediata é importante (principalmente pelas suas últimas
palavras so sweet and so cold ) e que
as
relações pes
soais
(a
relação sugerida entre o e o
you
devem ante
cipar um espaço para tal experiência
7
•
Enquanto que a tradução do texto/bilhete não nos
trouxe maiores dificuldades, a tradução do texto/poema
nos obrigaria a tomar várias decisões nada fáceis. Um
leitor/tradutor que concordasse, em linhas gerais, com a
interpretação esboçada acima, teria que resolver, por exem-
6
Em
BRADLEY,
S. et alii, ed. The American tradition in literature
4. ed. New York, Grosset Dunlap, 1974, p. 1618-9.
7 Essa leitura foi esboçada pelo crítico americano Jonathan Culler,
em
Structuralist poetics. New York, Comei University Press,
1975. p. 175-6.
-
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34
pio, o problema da tradução de plums.
Se
aceitamos que,
no poema original'',
as
frutas representam um estímulo à
sensibilidade que transgride as regras sociais, é importante
que as associações desenvolvidas a parti r de plums en
contrem equivalentes no texto traduzido.
Já
que passam
a representar o sensual, ou aquilo que excita os sentidos,
é importante que essas frutas , cobiçadas e consumidas pelo
eu do poema e especialmente reservadas pelo você para o
café da manhã, sejam frutas vermelhas e redondas (talvez
como a fruta proibida e desejada do Jardim do Éden),
de pele lisa e macia, carnudas, suculentas e doces. Tam
bém passa a ser significativo o fato de que essas associa
ções encontrem eco num outro sentido possível de
plum,
que em inglês coloquial pode significar algo considerado
bom e desejável, como por exemplo, um emprego bem re
munerado , acepção derivada de outras mais antigas. O
Oxford English dictionary (edição compacta) lista algu
mas que podem nos interessar: uma coisa boa, um pitéu;
uma das melhores partes de um artigo ou livro; uma das
recompensas da vida; também o melhor de uma coleção
de objetos ou animais .
Ao traduzirmos
plums
por ameixas, entretanto, o -
que de associações pode se modificar radicalmente. Em
primeiro lugar, ameixas não são necessariamente
plums.
Quando falamos em ameixas, hoje,
na
comunidade cultu
ral em que vivemos, pensamos
em
ameixas pretas prun
,
em inglês), frutas secas e enrugadas, que dificilmente se
riam associadas ao sensual e que, por uma irônica coinci
dência, podem fazer parte de um nada poético café da
manhã, como remédio para distúrbios intestinais. Pensa
mos também em nêsperas, as ameixas amarelo-alaranjadas,
de pele lisa e aveludada que, embora pudessem deflagrar
algumas das associações que construímos a partir das
ameixas vermelhas, não são as mesmas frutas de que nos
fala o poeta norte-americano.
35
Nesse ponto, tocamos em uma questão importante,
aliás uma das primeiras a ser abordada
em
qualquer
discussão sobre tradução e, em especial, sobre a tradução
de textos literários: a que deve ser fiel nossa tradução
de plums nesse poema? Deve a tradução ser fiel ao con
texto em que (supomos que) o poema tenha sido escrito,
isto
é
deve a tradução levar em conta que o poema pro
vavelmente tenha sido escrito na pacata Rutherford, New
Jersey, em meados da década de 30? Podemos imaginar
que, nos anos 30, numa cidadezinha do nordeste ameri
cano, consumir ameixas vermelhas no café da manhã não
era necessariamente um hábito consagrado da população
em
geral, o que nos levaria a concluir que
as
plums do
poema de Williams realmente sugerem algo que foge ao
habitual. Mas, quando pensamos
em
ameixas verme
lhas em nosso contexto cultural, a sugestão não é sim
plesmente de algo que foge ao habitual, mas, sim, de algo
muito raro e inacessível. E isso, considerando que nosso
contexto cultural é o de um grande centro urbano e de
senvolvido da região Sul do Brasil.
Essa sugestão de raridade e inacessibilidade, que mo
dificaria sensivelmente o
status
da sensualidade no poema
traduzido, se intensificaria, por exemplo, se esse poema
atingisse um público leitor em outras regiões brasileiras,
ou mesmo em outros países de língua portuguesa. Assim,
mesmo se fosse possível, uma tradução litera l do poema
estaria estimulando associações e relações diferentes da
quelas que podemos desenvolver a partir do original .
Por outro lado, uma tradução não-litera l do poema,
isto é, uma tradução que pretendesse recriar e adaptar
suas imagens mais importantes, para que o texto traduzido
fosse fiel
às
associações que construímos a partir do ori
ginal , uma tradução que escolhesse pêssegos ou sa
potis \ ou quaisquer outras frutas, como equivalentes do
original plums, não seria fiel ao poema, enquanto repre-
-
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36
sentante e produto de um determinado autor e seu con
texto histórico.
A tradução de textos literários redefinida
que poderia tornar extremamente difícil, e até
mesmo impossível, a tradução do poema de William Carlos
Williams não seriam, portanto, suas características ineren
tes, mas sim, a interpretação que construímos a partir dele.
A tradução do substantivo plums, que nos pareceu óbvia
quando consideramos o texto/ bilhete, passa a ser proble
mática quando lidamos com o texto/ poema, exatamente
porque, quando aceitamos ler um determinado texto de
forma poética (isto
é
·quando aceitamos que determi
nado texto possa ser rotulado de poema ), passamos a
considerar significativas todas as relações e associações que
pudermos combinar numa
interpretação
coerente. Assim,
as questões acima, que provisoriamente deixamos sem res
postas, sugerem que qualquer tradução de This is just to
say seria necessariamente
um
reflexo da interpretação
que,
por
alguma razão, decidíssemos privilegiar.
Da mesma forma que a leitura do crítico/narrador
em Pierr e Menard, autor del Quijote diferencia os
dois fragmentos verbalmente idênticos do om Quixote
(um deles, de Cervantes; o outro, de
Menard),
foi a nossa
leitura que distinguiu o poema de William Carlos Williams
do simples bilhete escrito
por
um hóspede norte-ameri
cano a seu anfitrião brasileiro.
Tais conclusões a respeito da literariedade desmisti
ficam os preconceitos que, em geral, envolvem a tradução
dos chamados textos literário s ou poéticos . Isso não
significa, entretanto, que a tradução desses textos seja sim
ples ou fácil. Quando equipara mos a tradução ou a lei
tura de um poema à sua criação, fica claro que exigimos
de seu leitor ou tradutor uma sensibilidade e um talento
semelhantes aos que tradicionalmente se exigem dos poetas.
A questão
d
fidelidade
Qual dessas muitas traduções
da
Odisséia]
é
fiel?, quererá saber, tal
vez, meu leitor. Repito que nenhuma
ou que todas. Se a f ide/idade
tem
que
ser às imaginações de Homero , aos
irrecuperáveis homens e dias que ele
imaginou, nenhuma pode sê-lo para
nós; todas, para
um
grego do século
dez.
O conceito de fidelidade e o
texto palimpsesto
(Jorge Luis Borges)
Antes de nos concentrarmos no poema de William
Carlos Williams, lembremo-nos, uma vez mais, de Pierre
Menard. Como vimos, Menard, o tradut or total, aspirava
a uma fidelidade total: pretendia reescrever o Quixote
exatamente como Miguel de Cervantes o escrevera, repe
tindo seu contexto histórico e social, suas circunstâncias,
suas intenções e motivações.
-
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38
A impossibilidade do sonho de Menard já nos per
mitiu reformular o conceito de texto original e até
mesmo, o próprio conceito de literatura. Resta-nos, agora,
repensar a questão da fid elidade.
Menard não pode
se
r completamente fiel ao texto de
Cervantes porque esse texto , conforme tentamos ilustrar
através
da
imagem do tex to/ palimpsesto, não é um recep
táculo de conteúdos estáveis e mantidos sob controle, que
podem ser repetidos na íntegra. O texto de Cervantes,
como qualquer outro texto , literário ou não, somente
poderá ser abordado através de uma leitura ou interpre-
tação
Como Pierre Menard , todo leitor ou tradutor não po
derá evitar que seu contato com os textos
e
com a pró
pria realidade) seja mediado por suas circunstâncias, suas
concepções, seu contexto histórico e social. Apropria da
mente, como sugere o fragmento do Quixote de Cervantes,
reproduzido
por
Menard , a mãe da verdade é a histó
ria , isto é aquilo que consideramos verdadeiro será irre
mediavelmente determinado por todos os fatores que cons
tituem nossa história pessoal, social e coletiva. Nesse sen
tido, é a história que dá à luz a verdade, e não a verdade
que serve de modelo para a história. Assim, o Quixote de
Menard, embora verbalmente idêntico ao de Cervantes,
revela, mais do que o mundo de Cervantes , a própria his
tória de Menard, que,
por
sua vez, também é mediada
pela visão do narrador/crítico.
Uma leópatra melindrosa
Para
entendermos um pouco melhor essa relação entre
história e realidade, vamos imaginar a seguinte situação:
um concurso de fantasias realizado em São Paulo, em
meados da década de 20, durante uma festa, à qual da-
39
remos o título de Cleópatra, Rainha
do
Nilo. Todos os
convidados deverão comparecer vestidos a caráter, e o
ponto máximo da festa será a escolha daquela que apre
sentar a melhor caracterização de Cleópatra, isto é da
quela que
se
apresentar como a versão mais fiel à Cleó
patr a original , que viveu no Egito cerca de um século
antes de Cristo. Haver á um grupo de jurados, composto
de homens e mulheres, previamente escolhidos por seus
conhecimentos de história egípcia e da biografia da rainha.
Finalmente, haverá um fotógrafo especialmente contratado
para documentar a escolha.
Se hoje tivéssemos a oportunidade de examinar a
foto da vencedora, o que veríatnos? Certamente, reco
nheceríamos na foto várias características do que consi
deramos
os
usos e costumes da década de 20. O pen
teado, a maquiagem, o traje e até a expressão facial e
corporal dessa Cleóp atra vencedora estariam inevitavel
mente marcados pelo estilo e pela moda dos anos 20, re
velando,
na
verdade, um parentesco muito maior com sua
própri a época do que com a época da verdad eira Cleó
patra. Embor a possamos imaginar que a confecção do
traje
t n h ~
se baseado em descrições sobre os trajes egíp
cios da época de Cleópatra, eventualmente encontradas em
livros de história, o traje que essa Cleópatra dos anos 20
conseguiu produzi r foi feito com os tecidos, com as téc
nicas de corte e costura, e
por
alguém que viveu nos
anos 20.
Se tivéssemos a oportunidade de comparar atenta
mente essa foto com outras que documentassem eventos
semelhantes realizados na mesma época, mas em cidades
diferentes, como Nova York, Paris, ou, quem sabe, até
mesmo, Rio de Janeiro, poderíamos registrar diferenças
locais e características específicas dos usos e costumes
dessas cidades, expressas através das candidatas vence
doras.
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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4
E se o concurso fosse repetido hoje? E se também
tirássemos uma foto de nossa Cleópatra? Mesmo que ten
tássemos, através de uma pesquisa séria e cuidadosa, ser
absolutamente fiéis àquilo que consideramos constituir
a verdadeira Cleópatra, e evitar os erro s que even
tualmente poderíamos detectar em nossas hipotéticas Cleó
patras dos anos 20, não revelaria a nossa versão da rainha
egípcia as idiossincrasias, o estilo e as concepções dos
anos 80, vigentes numa grande cidade ocidental do He
misfério Sul?
O autor o texto e o leitor/tradutor
Do mesmo modo que é impossível para Menard tor
nar-se Cervantes, e do memo modo que é impossível
para as Cleópa tras dos anos 20 e dos anos 80 torna
rem-se Cleópatra, é impossível resgatar integralmente as
intenções e o universo de um autor, exatamente porque
essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavel
mente, nossa visão daquilo que possam ter sido. Além
disso, como sugeriu o teórico francês Roland Barthes,
qualquer texto, por pertencer à linguagem, pode ser lido
sem a aprova ção de seu autor, que pode apenas visi
tar seu texto, como
um
convidado , e não como um
pai soberano e controlador dos destinos de sua criação
1
O autor passa a ser, portanto, mais um elemento que
utilizamos para construir uma interpretação coerente do
texto. Assim, quando revelei ao leitor que o texto/ bilhet e
sobre as ameixas vermelhas era,
na
verdade,
um
poema
do grande poeta norte-americano William Carlos Williams,
1
Ver
BARTHES R From
work to text.
ln: HARARI
J V. (ed.).
Textual strategies
perspectives in post-structuralist criticism. New
York, Cornel l University Press, 1979. p. 77.
41
esse dado provavelmente motivou o leitor a aceitá-lo como
texto poético e a levar a sério a interpretação proposta.
O foco interpretativo é transferido do texto, como
receptáculo da intenção original do autor, para o intér
prete, o leitor, ou o tradutor. Isso não significa, absoluta
mente, que devemos ignorar ou desconsiderar o que sa
bemos a respeito de um au tor e de seu universo quando
lemos ou traduzimos um texto. Significa que, mesmo que
tivermos como único objetivo o resgate das intenções ori
ginais de um determinado autor, o que somente podemos
atingir em nossa leitura ou tradução é expressar
nossa
visão
~ s s e autor e de suas intenções. Assim, empregando
novamente a imagem de Barthes, mesmo que considerás
semos o autor o pai absoluto do texto que lemos ou
traduzimos, ele será irremediavelmente nosso convida do
nessa empresa; sua atuação, sua própria presenç a nesse
projeto dependerá sempre do papel que, explícita ou im
plicitamente, lhe outorgamos.
Contudo, quando um leitor produ z um texto, sua
interpretação não pode ser exclusivamente sua, da mesma
forma que o escritor não pode ser o autor soberano do
texto que escreve. No conto de Borges, a interpretaç ão
que o narrador/crítico propõe do Quixote de Menard é
um produto de sua época: suas leituras, seu convívio com
Menard, suas concepções teóricas. O projeto quixotesco
de Menard, como vimos, também é produto de sua teoria
da linguagem, de suas convícções, de sua comunidad e in
terpretativ a'', como diria Stanley Fish. O meu próprio
projeto - a teoria de tradução que proponho neste livro
- não pode ser inteiramente meu é, inevitavelmente,
também um produto de minha história: dos livros que li,
dos autores que aprendi a admirar,
da
visão de mundo
que essas leituras e esses autores ajudaram a construir.
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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4
fidelidade redefinida
à primeira vista, pode parecer que, ao questionarmos
a possibilidade de que um a tradução seja inteiramente fiel
ao texto original, estamos questionando não só. a própria
possibilidade teórica de qualquer tradução, mas também a
possibilidade de qualquer critério objetivo para avaliarmos
textos traduzidos.
Conforme tentamos demonstrar anteriormente, a tra
dução seria teórica e praticamente impossível se
esperás
semos dela uma transferência de significados estáveis; o
que é possível - o que inevitavelmente acontece, a todo
momento e em toda tradução -
é
como sugere o filó
sofo francês Jacques Derrida, uma transformação: uma
transformação de uma língua em outra, de um texto em
outro
2
• Mas, se pensamos a tradução como um processo
de recriação ou transformação, como poderemos falar em
fidelidade? Como poderemos avaliar a qualidade de uma
tradução?
Retomemos o exemplo dos concursos de fantasias.
Como vimos, cada versão apresentada da rainha Cleó
patra traria irremediavelmente a m rc de sua localização
no tempo e no espaço. Mesmo assim, essas versões foram
avaliadas durante cada um dos concursos hipotéticos, em
que os jurados, ao elegerem a melhor Cleópatra, elege
ram, na verdade, aquela que consideraram a versão
mais fiel à Cleópatra original . E o que seria,
para cada grupo de jurados, a Cleópatra verdadeira ou
original ? Como já sugerimos, a Cleópatra verdadeira
ou original seria exatamente o conjunto de suposições e
características que, para cada comunidade interpretativa,
representada pelos jurados, constituiriam o personagem
histórico conhecido como Cleópatra. Obviamente, da
2 ln:
DERRIDA
J. apud SPJVAK G. e Prefácio do tradutor. ln:
DERRIDA , J. Of
Grammatology Baltimore,
The
Johns Hopkins
University Pr ess, 1980. p. 87.
43
mesma maneira que
as
Cleópatras escolhidas seriam dife
rentes entre si dependendo da época e da localização do
concurso, também seriam diferentes as características que
cada comunidade interpretativa atribuiria à verdadeira
Cleópatra. Além disso, como vimos, se pudéssemos obser
var a foto de uma de nossas hipotéticas Cleópatras da dé
cada de 20, não seria possível evitar que nosso julgamento
se realizasse a partir de nossas próprias suposições e con
vicções. Assim, a versão considerada fiel à Cleópatra
original por uma comunidade interpretativa de São
Paulo, em meados da década de 20, não seria aceita por
uma comunidade interpretativa da mesma cidade, sessenta
anos depois.
Vejamos como essas conclusões podem ser transferi
das à questão da tradução de This is just to say , de
William Carlos Williams, sobre a qual discutimos no capí
tulo anterior. Como o texto foi apresentado em duas ver
sões , uma versão/bilhete e uma versão/poema, teremos
que considerar pelo menos duas situações diferentes. Uma
tradução fiel ao texto/bil hete seria, na verdade, fiel ao
contexto estabelecido para sua interpretação . As conven
ções contextuais que deveriam reger essa tradução foram
estabelecidas a partir do momento em que se especifica
ram seu objetivo e circunstâncias, isto
é
a partir do mo
mento em que estabelecemos que
se
tratava de um bilhete
informal, escrito por um hóspede norte-americano a seu
anfitrião brasileiro.
Da mesma forma, a tradução do texto/poema seria
fiel às convenções estabelecidas - implícita ou explicita
mente - para sua leitura, levando-se em conta, é claro,
que essas convenções são mais complexas e apresentam
mais variáveis, dependendo da comunidade cultural e da
época que
as
produziram. Assim, nossa tradução desse,
ou de qualquer outro poema, seria fiel, em primeiro lugar,
à nossa concepção de poesia, concepção essa que deter
minaria, inclusive, a própria decisão de traduzi-lo.
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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Imaginemos,
por
exemplo, uma comunidade interpre
tativa cujas idéias sobre poesia fossem semelhantes a al
guns conceitos cultivados no século passado. Tal comu
nidade, que certamente prezaria formas rígidas e estereo
tipadas como característica fundamental do texto poético,
nem consideraria a possibilidade de traduzir poetica
mente This
is
just to say porque não o veria como um
poema. Imaginemos uma outra comunidade interpretativa,
cujos pressupostos sobre poesia permitissem aceitar o
texto de Williams como poema. Suponhamos também que
essa comunidade se tivesse interessado particularmente
pela organização sonora e rítmica de This is just to say ,
considerando, inclusive, ser essa a característica que faz
desse texto um poema que merece ser traduzido. Para tal
comunidade, uma tradução fiel ao poema de Williams teria
que tentar reproduzir, ou recriar, sua estrutura sonora e
rítmica, em detrimento de seu conteúd o .
Em outras palavras, nossa tradução de qualquer texto,
poético ou não, será fiel não ao texto original , mas
àquilo que consideramos s r o texto original, àquilo que
consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação
do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre
produto daquilo que somos, sentimos e pensamos.
Além de ser fiel à leitura que fazemos do texto de
partida, nossa tradução será fiel também à nossa própria
concepção de tradução. Aind a tomando como exemplo
This is just to say'', podemos imaginar uma comunidade
interpretativa, para a qual a tradução desse texto se jus
tificaria somente se o tradutor tentasse reproduzir o poema
originalmente escrito por Williams numa cidadezinha
do nordeste americano, em meados da década de 30. Tal
comunidade, que certamente compartilharia das idéias de
Pierre Menard sobre a linguagem e a tradução, tentaria
produzir uma tradução literal do poema, sem conside
rar que o mesmo seria lido num contexto e numa época
5
diferentes. Para tal comunidade, a única tradução possí
vel de
p ums
seria, com bastant e probabilidad e, ameixas'',
ou, no máximo, ameixas vermelhas . Podemos imaginar,
ainda, uma outra comunidade interpretativa, para a qual
todo texto traduzido devesse, de algum modo, se incor
porar ou se adaptar ao contexto cultural da língua-alvo.
Tal
comunidade poderia,
por
exemplo, considerar pêsse
gos ou caquis opções melhores ou mais fiéis do que
ameixas .
Além de ser fiel à nossa concepção de poesia e à
nossa concepção de tradução, a tradução de um poema
deve ser fiel também aos objetivos que se propõe. Imagi
nemos, por exemplo, uma palestra sobre a obra de William
Carlos Williams, apresentada
em
português para uma pla
téia que não domina o inglês. O palestrado r poderia apre
sentar e analisar o poema This is just to say através de
uma tradução informal, sem pretender recriar ou recuperar,
através dessa tradução, o que considera as características
poéticas do original . Outras seriam as preocupações e
os objetivos de um tradutor - outra seria a fidelidade
- se o mesmo poema tivesse que ser traduzido para inte
grar uma coletânea de poetas modernos de todo o mundo.
Contudo, se concluímos que toda tradução é fiel às
concepções textuais e teóricas da comunidade interpreta
tiva a que pertence o tradutor e também aos objetivos que
se propõe, isso não significa que caem
por
terra quais
quer critérios para a avaliação de traduções. Inevitavel
mente, como os grupos de jurados dos concursos de fan
tasia que usamos
o m ~
exemplo, aceitaremos e celebrare
mos aquelas traduções que julgan:ios fiéis às nossas pró
prias concepções textuais e teóricas, e rejeitaremos aquelas
de cujos pressupostos não compartilhamos . Assim, seria
impossível que uma tradução ou leitura) de um texto
fosse definitiva e unanimemente aceita
por
todos,
em
qual
quer época e em qualquer lugar. As traduções, como nós
e tudo o que nos cerca, não podem deixar de ser mortais.
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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5 A teoria na prática
Aporo , de Carlos rummond de Andrade
Através da leitura e dos comentários sobre a tradução
de um poema de Carlos Drummond de Andrade, vamos
tentar ilustrar
s
conclusões teóricas desenvolvidas nos seg
mentos anteriores.
Aporo , publicado em 1945 na coletânea
A rosa do
povo
é o texto escolhido pois, apesar de sua brevidade,
pode nos dar um bom exemplo do que seria ler poetica
mente um texto. Além disso, como essa leitura é regida
por convenções que nos permitem uma interpretação quase
sem limites de todos
os
elementos que constituem o texto,
o exame de sua versão para o inglês (intitulada Insect ,
de autoria de John Nist) poderá nos propiciar uma visão
aguçada dos problemas e dos limites da tradução em geral.
Comecemos pelo original de Drummond :
poro
Um
inseto cava
cava sem alarme
3 perfurando a terra
4
sem achar escape.
47
5
Que fazer, exausto,
6
em país bloqueado,
7 enlace de noite
8 raiz e minério?
9
is que o labirinto
1
oh razão,
mistério
11
presto se desata:
12
em verde , sozinha,
13
antieuclidiana,
14
uma orquídea forma-se 1.
Como sugerimos anteriormente, ler
um
poema implica
aceitar
um
convite implícito à criação. Quan do aceita par
ticipar desse projeto, quando aceita o desafio de ler poe
ticamente uni texto, o leitor aceita também - como regra
básica desse jogo - que todos os elementos que consti
tuem o poema podem adquirir um significado poético
e contribuir para a construção de uma interpretação.
A leitura de
Aporo
que proponho a seguir
se
asse
melha
à
construção de um quebra-cabeça, cuja chave se
encontra no título. Derivado do grego
áporos
( sem pas
sagem ), segundo a maioria dos dicionários da língua, o
substantivo masculino
áporo
significa:
1
inseto hime
nóptero , e
2)
proble ma de difícil solução . A esses dois
significados é possível acrescentar-se um terceiro, encon
trado apenas no
Dicionário contemporâneo da língua por-
tuguesa
de Caldas Aulete (V. Bibliografia comentada):
áporo
pode ser também um tipo de planta da família das
orquídeas, solitária, geralmente esverdeada .
Além de ser a chave que abre o poema e norteia
minha leitura, o título ·
Aporo
também a sintetiza. Assim,
os dois primeiros quartetos nos apresentam a conjunção
1 Cf.
Obra completa.
Organização de Afrânio Coutinho. Rio de
JaneÍro, Aguilar, 1967. p. 154.
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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48
dos dois primeiros significados apresentados: um inseto
que cava (o áporo , segundo Caldas Aulete, é um gê
nero de inseto himenóptero da família dos cavadores) e
que encontra nesse cavar um problema de difícil solução.
Nos tercetos, a situação/ áporo se resolve com a formação
da orquídea/ áporo , verde e sozinha •
Um inseto cava
Vamos tentar construir melhor esse enredo/ quebra
-cabeça. O primeiro quarteto, que introduz o inseto e o
seu cavar sem
al
arm e' ', apresenta uma estrutura harmo
niosa. Todos os versos têm o mesmo número de sílabas
e há simetria na distribuição de sílabas acentuadas: nos
versos 1 e 3, o acento cai na terceira e quinta sílabas e
nos versos 2 e 4 as sílabas acentuadas são as primeiras e
as quintas. Há também um esquema regular de rimas
(abab), várias assonâncias cava , alarme, a terra, achar,
escape, inseto, sem, perfurando) e alguns sons consonan
tais predominantes, que ecoam por toda a estrofe:
um,
inseto, sem, perfurando, alarme, terra, escape. Esses ecos
de sílabas semelhantes, sons e até palavras repetidas, asso
ciados
à
regularidade do met ro e da acentuação, podem su
gerir a regularidade, a harmonia e a constância do trabalho
paciente
do
inseto.
Que fazer, exausto, em país bloqueado?
Qual é a natureza .e quais são as circunstâncias desse
trabalho? O segundo quarteto, na medida em que desen-
2
A leitura de Ãporo aqui proposta também é o tema de um
artigo da Autora:
Um
áporo e suas aporias: reflexões sobre um
poema
de
Carlos
Drummond de
Andrade. Tradução e Comuni-
cação;
Revista Brasileira de Tradutores,
7
dez.
1985
. V. Bibliografia
comentada.
49
volve o segundo significado de áporo, tenta nos dar
uma
resposta, embora seja, paradoxalmente, também uma per
gunta. O inseto, que cava sem alarme na harmonia da
primeira estrofe, enfrenta agora uma situação de difícil
solução e se encontra, portanto, numa estrofe menos har
moniosa que, diferentemente da primeira, conta apenas
com algumas repetições de sons: fazer, exausto, bloquea
do, raiz, país,
minério.
O locus da atividade do inseto se define, ainda que
de forma ambígua, no verso 6: em país bloque ado . A
ausência de artigo, ou demonstrativo, antes do substantivo
país empresta ao mesmo um papel duplo. Pensamos num
país/Estado
que, por se identificar com
uma
situação difí
cil, sugere o Brasil conturbado e autoritário do início da
década de 40, em que o poema foi escrito . Podemos pen
sar também num país/ lugar não-determinado: a própria
região
da
dificuldade e do limite. O adjetivo
bloqueado
também autoriza uma interpretação pelo menos dupla.
Objetivamente, esse adjetivo refere-se a país , j á que, de
vido
à
ausência de artigo
ou
demonstrativo, não faria sen
tido uma leitura que considerasse bloqu eado como mo
dificador de inseto :
Que
fazer, exausto, bloqueado em
país . . . ? . Entretanto, quando lemos a estrofe, talvez de
vido
à
posição de exausto , que ressoa em bloque ado ,
o último parece contaminar também o inseto , sugerindo
que o bloqueio é tanto do país quanto do inseto exausto .
Além disso, descobrimos que essa situação/áporo é cons
tituída do enlace de
noite/raiz
e minério , uma união
perfeita que se expressa também ao nível da forma através
do
enjambement
3
e da ausência de vírgula entre noite
e raiz .
3
Enjambement:
[ ]
processo poético de pôr no verso seguinte
uma
ou
mais palavras que completam o sentido do verso anterior
[ . . . ] .
(Cf. FERREIRA,
Aurélio Bua
rque de
Holanda.
Dicionário
Aurélio. V. Bibliografia comentada.
-
8/18/2019 Rosemary Arrojo - Oficina de Tradução - A Teoria Na Prática
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5
Antes de desenvolver as associações possíveis a partir
de enlace de noite/ raiz e minério'', convém antecipar que
identifico o cavar desse
in
seto drummondiano com o pro
cesso de criação artística e com a própria criação do
poema Ãporo . Além disso, há, pelo menos, uma se
gunda leitura complementar que não pode deixar de con
siderar o poema como produt o do sentimento do mundo
do poeta Drummond, viv endo os anos difíceis da ditadura
de Getúlio Vargas e da Segunda Guerra Mundial. Assim,
o cavar do inseto também sugere a tentativa paciente, cons
tante e exaustiva de se encontrar uma saída para esse
país/ mundo bloqueado.
Essas duas leituras se enriquecem a partir das asso
ciações suscitadas pelo enlace de noite/ raiz e minério .
Noite raiz e minério sugerem a própria matéria-pri ma
que constitui o processo de criação descrito no poema: os
elementos com que conta o
in
seto
em
sua busca. A noite
sugere o escuro , o não-saber-o-que-fazer nessa situação/
/ áporo, e até as condições em que o inseto realiza seu
trabalho. Raiz sugere a busca de um começo, de um
início que pudesse crescer e brotar ; e o minério sugere
a criação em seu estado bruto, o minério que precisa ad
quirir uma forma, forma essa que parece o próprio objeto
do inseto.
Eis que o labirinto [ ] presto se desata
No primeiro terceto, a situação/ áporo inesperada
mente se resolve. O labirinto se desata , sem que pos
samos saber, entretanto, como se processou esse desatar.
A resolução da situação difícil é cercada (até no nível
vi