rossi, paulo josé. august sander e homens do século xx
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August Sander e Homens do século XXTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
PAULO JOS ROSSI
August Sander e Homens do sculo XX: a realidade construda.
So Paulo 2009
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RESUMO
O fotgrafo alemo August Sander (1876-1964) foi autor de uma das mais apreciadas
obras fotogrficas do sculo passado, Homens do sculo XX (HHSX), um projeto de
fotografia documental de grande envergadura, iniciado na dcada de 1920, composto
basicamente por retratos, por sua vez organizados segundo o critrio de classificao de tipos
da sociedade elaborado pelo prprio fotgrafo.
Alguns dos retratos so descritos neste trabalho pormenorizadamente a fim de
encontrar nas suas propriedades visveis indicaes referentes aos esquemas de percepo que
Sander empregava em sua viso de mundo. As anlises dessas imagens so confrontadas com
os critrios de classificao por ele adotados e articuladas a um manancial de informaes
relacionado ao ambiente fotogrfico da poca, ao contexto scio-poltico da Alemanha e
biografia do fotgrafo. Este procedimento levou hiptese central da pesquisa: mais do que
representaes de tipos sociais, como de fato acreditava Sander, HSXX antes um conjunto
de esteretipos no sentido de seus retratos serem realidades construdas que correspondem a
um modo de percepo social. Enquanto percepo do real, a maioria dos retratos
corresponde a esteretipos pr-concebidos socialmente.
O presente estudo parte do princpio de que Homens do sculo XX a narrao da
interpretao de Sander sobre aquele perodo histrico da Alemanha. Deste ponto de vista, a
anlise empreendida no interpreta somente a obra, mas tambm interpreta a interpretao
circunstanciada daquele que a concebeu. No se trata, portanto, de um estudo sobre os fatos
narrados, mas sim sobre a forma como Sander os narrou, sua percepo do mundo inscrita na
interpretao que ele faz do real circunstanciada por diversos fatos sociais.
Palavras-chave: fotografia; retrato; realidade construda; esteretipo; habitus; August Sander; Homens do sculo XX.
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ABSTRACT
The German photographer August Sander (1876-1964) was the author of one of the
most appreciated photographic work from last century, Man in the Twentieth Century, a vast
documental photography project, started in the 1920s, basically composed by portraits,
organized by the author according to societys kinds of occupations.
Some of the portraits are described here in detail in order to find in its visible
proprieties, indications related to the aspects of perception which Sander used in his view of
the world. The analysis of those images are confronted with the classification criteria adopted
by him and articulated with several pieces of information related to the photographic
environment from that time, to the German social political context and to the photographers
biography. This procedure took us to the researchs central hypothesis: more than
representations of social types, as Sander believed, Man in the Twentieth Century is a whole
of stereotypes in the sense that his portraits are constructed realities that correspond to a
kind of social perception. As for the perception of the real, most of the portraits correspond to
the stereotypes that are socially understood.
The current study essentially states that Man in the Twentieth Century is the narration
of Sanders interpretation about that German historic period. From this point of view, the
analysis done not only interprets the art work, but also interprets the circumstanced
interpretation from the one who idealized it. Therefore, it is not a study about the narrated
facts, but about the way Sander narrated them, his perception of the world enrolled in the
interpretation that he does about the real, circumstanced by several social facts.
Key-words: photography; portrait; constructed reality; stereotype; habitus; August Sander;
People of the 20th Century.
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AGRADECIMENTOS
Oito anos aps ter finalizado meu primeiro curso superior fora do Brasil decidi estudar
Sociologia e Poltica na Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo. Na verdade eu
retornava a esta escola depois de l ter cursado um semestre no ano de 1990. Na poca de
minha primeira passagem pela ESP, perodo em que a ento esquerda encabeada por Lula
quase havia chegado ao poder mximo, o ambiente da escola refletia a efervescncia poltica
do pas, no primeiro dia de aula uma greve por parte dos alunos estava sendo preparada pelo
Centro Acadmico. J no ano de 2000 o ambiente externo e interno era outro, a faculdade se
reerguia depois de uma grave crise institucional, boa parte do corpo docente era jovem e
recm chegada, dentre eles meu ento orientador do trabalho de concluso de curso e hoje
tambm orientador de minha pesquisa de mestrado: ao professor Fernando Antnio Pinheiro
Filho vai meu primeiro agradecimento, partiu dele o incentivo para que eu tomasse a
fotografia como objeto de pesquisa sociolgica.
Outro professor que chegara no ltimo ano de minha graduao, e que tambm me deu
grande incentivo a continuar a pesquisa sobre o fotgrafo Agust Sander, foi o professor Luz
Carlos Jackson a quem sou muito grato.
A banca de qualificao foi determinante na reorientao de minha pesquisa. Sou
muito grato aos professores Srgio Miceli e Mrcia Tosta, a leitura de ambos foi essencial.
Meus colegas do mestrado, o surpreendente nvel de reflexo durante os seminrios de
pesquisa coordenados pelo professor Dr. Braslio Sallum, a quem tambm sou grato, foi mais
do que motivador. Obrigado.
O ingresso no programa de mestrado da USP coincidiu com o acontecimento mais
esperado de minha vida, o nascimento da Catarina, minha linda filha. De l para c tenho
vivido experincias maravilhosas, porm duras. A chegada da Catarina fez aflorar mais do
que minha paternidade, eu surpreendentemente descobria o quo instintivo ns seres humanos
somos, um instinto animal, de protetor da prole, tomava conta de mim enquanto que o lado
racional procurava equilibrar as coisas.
A paternidade me fortificava, a presena da Catarina me motivava e minha esposa, a
linda e amada Andra, segurava a barra, me apoiava, pegava no meu p, no me deixava
desanimar, discutia o trabalho comigo, me acalmava... ela foi, e continua sendo,
verdadeiramente minha companheira. Este trabalho para ela!
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Quero compartilhar minha alegria com algumas pessoas que foram igualmente
importantes nessa jornada, e as quais tenho muito a agradecer. Mas por onde comear? Nada
melhor que pela minha querida famlia, meu pai Waldemar e minha me Clia, incansveis
batalhadores, crentes em sua militncia social e na capacidade do homem virar o jogo, nunca
baixaram a guarda, nem como pais nem como cidados. Meus queridos irmos, cunhados,
sobrinhas, sogro, sogra, e Nina, a bisav, que garantiu a deliciosa vodka caseira durante esse
tempo todo: alm de pacientes com minha pouca presena durante os ltimos trs anos, foram
ainda mais compreensivos com nossa mudana para Joo Pessoa, Paraba, no incio de 2009.
No posso deixar de externar minha gratido aos meus inestimveis amigos Graciela,
Julio Groppa, Hlade e Fernando, Paulo e Snia, Srgio Alves, Jussara, Ed, Ricardo Ferreira,
Srgio Ferreia, Joo Klcsar, Jefferson e Mari, Lus e Lvia, e Fernanda Romero, dentre
muitos outros. Um agradecimento mais do que especial para estas duas ltimas, Lvia e
Fernanda contriburam diretamente com minha pesquisa, foram minhas interlocutoras nas
reflexes sobre a fotografia de modo geral. Agradecimento especial tambm para os amigos
Denise Camargo, Fernando Fogliano e Antnio Saggese, a permanente troca de idias, textos
e reflexes durante o perodo em que trabalhamos juntos foi significativo para o andamento
da pesquisa. Tambm minha querida sogra Zenaide quem me fez a gentileza de traduzir
alguns textos do ingls para o portugus, e revisou o texto que foi para a qualificao.
Em casos agudos relacionados ao idioma alemo, foi possvel contar com a
colaborao da professora de lngua alem do departamento de Letras Estrangeiras Modernas
da Universidade Federal da Paraba, Dra. Wiebke Rben de Alencar Xavier. Muito obrigado.
E a USP? Esta o espao pblico por excelncia, professores, funcionrios e alunos
provam isto atuando constantemente em suas dependncias para fins cientficos, de reflexo e
de luta quando necessrio. o espao da pesquisa cientfica vital para nossa sociedade, e deve
ser preservado com todas as foras e por todo mundo. Grato USP? No, no sou grato
USP, pois sou parte dela e estar aberta sociedade sua razo de ser. Sou grato sim a todos
os que a fazem funcionar, a todos que lutam por ela e que a mantm ativa. A todos que fazem
dela um ambiente verdadeiramente universitrio, um espao aberto reflexo e ao dilogo
democrtico entre pensamentos diversos.
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SUMRIO
LISTA DE FIGURAS 06
LISTA DE SIGLAS 09
INTRODUO 10
Captulo I:
AUGUST SANDER: UMA ANLISE DE TRAJETRIA (1876 1964)
16
I.1. O retrato do aprendiz 23
I.2. O auto-retrato como mecanismo de distino 27
I.3. Famlia Sander: o auto-retrato da tradio familiar 33
I.4. Entre a tradio e a vanguarda 38
I.4.1. O auto-retrato exato e objetivo 39
I.4.2. De arteso a artista de vanguarda 42
Captulo II:
AUGUST SANDER E OS PROGRESSISTAS DE COLNIA
56
II.1. Progressistas de Colnia: desmanchar o slido e recriar o novo 57
II.2. Mural para um fotgrafo: o sentido do trabalho 62
II.2.1. Da reprodutibilidade 65
II.2.2. Da objetividade: nitidez, luminosidade e exatido 69
II.2.3. Do ponto de vista 74
II.3. HSXX: uma encomenda virtual 75
II.3.1. O realismo no retrato fotogrfico e na fotografia documental 75
II.3.2. A encomenda 81
Captulo III:
HOMENS DO SCULO XX: UMA REALIDADE CONSTRUDA
86
III.1. A obra 86
III.1.1 Estrutura da obra 88
III.1.2. Uma leitura da obra 92
III.2. Homens do sculo XX: uma realidade construda 102
III.3. A recepo e o sociologismo 106
CONSIDERAES FINAIS 118
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 124
FIGURAS 131
MDIA DIGITAL COM AS IMAGENS 168
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LISTA DE FIGURAS
Figura 01: August Sander, Jovens Camponeses, Westerwald, 1914 (I/1/3).
Figura 02: August Sander, Mo de estudante, 1929, da srie Estudos: o ser humano.
Figura 03: Cndido Portinari, Retrato do pintor Roberto Rodrigues, 1926, leo sobre tela, 180x65 cm.
Figura 04: Hugo Erfurth, Oto Dix com cigarro, 1926.
Figura 05: Georg Jung, August Sander, Trier, 1899, carte-de-visite, tiragem de luxo.
Figura 06: Auto-retrato, August Sander em seu atelier, Linz, 1905.
Figura 07: Auto-retrato, August Sander, Linz, 1906, carte-de-visite.
Figura 08: Carto de visita de August Sander.
Figura 09: Cabealho de papel de carta de August Sander.
Figura 10: Auto-retrato, Rembrandt, 28 anos, 1634.
Figura 11: Auto-retrato, Rembrandt, 53 anos, 1659.
Figura 12: August Sander, Famlia Sander, 1913.
Figura 13: August Sander, Fotgrafo, 1925 (VI/42/1).
Figura 14: Erich Sander, Prisioneiro poltico, 1943 (VI/44a/8).
Figura 15: Erich Sander, Prisioneiro poltico, 1943 (VI/44a/7).
Figura 16: Alpnonse Bertillon, Retrato antropomtrico, Prefcture de Police de Paris, sd.
Figura 17: August Sander, Perseguida, aproximadamente 1938 (VI/44/11).
Figura 18: August Sander, Perseguido, aproximadamente 1938 (VI/44/12).
Figura 19: August Sander, Bomios, entre 1922-1925 (VI/42/2).
Figura 20: August Sander, Raoul Hausmann como danarino, 1929 (VI/42/3).
Figura 21: August Sander, Mulher de um pintor, 1926 (III/16/12).
Figura 22: Otto Dix, O vendedor de fsforos I, 1920, leo e colagem, 142x166cm.
Figura 23: George Grosz, Os pilares da sociedade, 1926, leo sobre tela, 200x108cm.
Figura 24: Franz Wilhelm Seiwet, Mural para um fotgrafo, 1922, leo sobre madeira, 110 x 154,5 cm.
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Figura 25: August Sander, O padeiro, 1928 (II/8/19).
Figura 26: Kthe Kollwitz, Memorial para Karl Liebknecht, 1919, xilogravura.
Figura 27: Gerd Arntz, Imvel de habitao e Usina, da srie Doze casas de uma poca, 1927, litogravura.
Figura 28: Gerd Arntz, Posse de carros no mundo, 1930.
Figura 29: Albert Renger-Patzsch, Chamin vista de baixo, Lubeck, 1928.
Figura 30: Albert Renger-Patzsch, Interseco de vigas de uma ponte em Duisburg Hochfeldt, 1928.
Figura 31: August Sander, O homem, 1928, da srie Estudos: o ser humano.
Figura 32: Helmar Lerski, Mulher faxineira [Putzfrau], 1928-1930.
Figura 33: Erna Lendvai-Dircksen, Criana germnica, s.d., srie Unsere Deutschen Kinder, 1941.
Figura 34: Erna Lendvai-Dircksen, Camponesa da regio do Rauhe Alb, antes de 1930, srie Das deutsche Volksgesicht, 1932.
Figura 35: Franz Wilhelm Seiwert, Burgueses e desempregados, 1922, impresso linleo.
Figura 36: Franz Wilhelm Seiwert, O mundo do trabalho, 1932, aquarela preparatria para o vitral do Kunstgewerbemuseum Kln, de 40x60 cm.
Figura 37: August Sander, conjunto dos retratos do Porta-flio arquetipal: O homem ligado a terra, 1910 [I/ST/1]; O filsofo, 1913 [I/ST/2]; O revolucionrio, 1925 [I/ST/3]; O sbio, 1913 [I/ST/4]; A mulher ligada a terra, 1312 [I/ST/5]; A filsofa, 1913 [I/ST/6]; A revolucionria , 1912 [I/ST/7]; A sbia, 1913 [I/ST/8]; Mulher de inteligncia avanada - intelectual, 1914 [I/ST/9]; Casal de camponeses rigor e harmonia , 1912 [I/ST/10]; Casal de camponeses rigor e harmonia, 1912 [I/ST/11]; A famlia e as geraes, 1912 [I/ST/12].
Figura 38: August Sander, Estivadores, 1929 (II/10/8).
Figura 39: August Sander, O grande industrial, 1927 (II/9/6).
Figura 40: August Sander, Vendedor turco de ratoeiras, 1929 (VI/38/1).
Figura 41: August Sander, Dbil mental, 1924 (VII/45/8).
Figura 42: August Sander, Matria, 1925 (VII/45/ 15).
Figura 43: August Sander, Mscara morturia de Erich Sander, 1944 (VII/45/ 16).
Figura 44: August Sander, Gymnasiast, 1926 (VI/40/4).
Figura 45: August Sander, Barman, 1928 (VI/41/12).
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Figura 46: August Sander, O filsofo, 1913 (I/ST/2).
Figura 47: August Sander, Feirante, 1930 (II/14/11).
Figura 48: August Sander, Secretaria da Radio-difusora da Alemanha Ocidental de Colnia, 1931 (III/17/19).
Figura 49: Otto Dix, Retrato da jornalista Sylvia Von Harden, 1926. leo sobre madeira, 121x89cm.
Figura 50: August Sander, Vendedor de fsforos, 1927 (IV/27/9).
Figura 51: Otto Dix, Os pais do artista II, 1924.
Figura 52: August Sander, Burgueses da pequena cidade de Monschau, 1926 (I/6/6).
Figura 53: August Sander, Atores de cinema, 1934 (V/30/4).
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LISTA DE SIGLAS
ADZ Antlitz der zeit
HSXX - Homens do sculo XX
(I/1/1) Localizao numrica dos grupos, portas-flio e fotografias em HSXX:
I (nmero seqencial do grupo principal: de I a VII) / 1 (nmero seqencial do porta-flio) / 1 (nmero seqencial da fotografia dentro do porta-flio)
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Introduo
Meu caminho direciona-se no sentido de criar uma nova recepo do mundo. Dessa maneira explico, de uma forma nova, o mundo que para voc desconhecido.
Dziga Vertov, 1923, cineasta sovitico.
No perodo entre as duas guerras mundiais a fotografia, especialmente na Alemanha,
EUA e Frana, alcanava sua maturidade esttica e conceitual. Na Alemanha todo um
ambiente artstico lhe foi favorvel, o aparecimento de instituies como a Bauhaus, de
movimentos artsticos como o dadasmo e o surrealismo, ou ainda grandes tendncias como a
Nova Viso (Das Neue Sehen) e a Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit) propiciaram
inmeras experimentaes fotogrficas, bem como a proliferao de exposies e publicaes
de livros de fotografia, de de livros e artigos a respeito da fotografia e de tudo o que em torno
dela vinha se constituindo: uma vasta produo literria se fez nesse contexto teorizando as
novas prticas e experimentos fotogrficos.
Nesse contexto est o fotgrafo alemo August Sander, autor de uma das mais
apreciadas obras fotogrficas do sculo passado, Homens do sculo XX (doravante HSXX),
um projeto de fotografia documental, modalidade que ganha destaque e fora na dcada de
1920 especialmente nos pases acima citados. Caracteriza a fotografia documental: 1) costuma
ser um projeto autoral na maioria das vezes no encomendado; 2) privilegia um recorte
temtico geralmente relacionado realidade social; 3) trata-se de uma abordagem direta da
realidade por meio de uma tcnica de reproduo mecnica do real, sem o emprego de
artifcios (desfoque proposital no ato fotogrfico; retoque das imagens; uso de pigmentos etc.)
que descaracterizem o principal aspecto natural da fotografia direta, a saber, a reproduo
precisa de detalhes; 4) o aspecto realista da obra propiciado por estes dois ltimos pontos; e 5)
seu aspecto estrutural, a saber, uma srie de fotografias editadas e dispostas numa ordem
seqencial elaborada por seu autor.
HSXX um projeto de grande envergadura pelo seu tamanho e pelo tempo que levou
para se concretizar, composta por sete grupos temticos seqenciais O campons; O
arteso; A mulher; As categorias scio-profissionais; Os artistas; A grande cidade; Os
ltimos dos homens , cada um contendo certo nmero de porta-flios numerados num total
de 49 pastas. Dentro de cada porta-flio h uma srie de fotografias igualmente numeradas
contabilizando ao todo 619 retratos fotogrficos. Estes retratos foram organizados segundo
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um critrio de classificao de tipos da sociedade elaborado pelo fotgrafo como se ver no
terceiro captulo.
O trabalho de August Sander um ensaio fotogrfico riqussimo sobre a sociedade
alem de seu perodo, no entanto no um trabalho cientfico stricto senso como propuseram
muitos de seus leitores. Embora ambos fotografia e cincias sociais produzam
conhecimento sobre o social, as cincias sociais o produzem de um jeito, e a fotografia de
outro. A primeira produz conhecimento abstrato amparando-se em referenciais tericos e
metodolgicos cientficos, e a segunda produz conhecimento por meio da representao visual
da realidade num misto de intuio, fruio, racionalidade tcnica e esttica, na condio de
ensaio e no de tratado.
Se tomada como documento histrico iconogrfico, HSXX pode ser pensada como
uma rica fonte sobre as transformaes econmico-sociais ocorridas na Alemanha entre sua
unificao em 1871e as trs primeiras dcadas do sculo passado. Em suas imagens possvel
observar mudanas de comportamento, alteraes dos cdigos morais, estilos de vida,
diferenas de classe enfim, uma sociedade em plena mutao que vai do mundo campons
arcaico oitocentista a uma sociedade pautada pelo capitalismo moderno que se configurava
naquele pas. O historiador John Berger (2003), como veremos no primeiro captulo, discutiu
a situao de classes no retrato Jovens camponeses confrontando as vestimentas e os corpos
dos trs rapazes fotografados.
Abordada enquanto obra artstica, o objeto passa a ser a obra em si e no simplesmente
o que ela comunica. Muitos dos retratos de HSXX bem como o projeto em si foram objetos de
estudo de vrios pesquisadores das cincias sociais e de outros campos das cincias humanas.
O socilogo Sylvain Maresca (1996), por exemplo, que discutiu a fotografia como um
espelho das cincias sociais, dedicou parte de seus esforos ao estudo do retrato como fonte
privilegiada de uma interrogao sobre as ligaes entre as representaes e o real.
Annateresa Fabris por sua vez discute os retratos produzidos por Sander a partir da idia de
paradigma indicirio, a autora constri sua anlise considerando a forma dos retratos e os
critrios de classificao tipolgica adotados pelo fotgrafo como um modelo funcional,
prximo ao paradigma arquivstico iniciado no sculo XIX.
HSXX foi tomada pela presente pesquisa como objeto de estudo dentro do quadro da
sociologia da arte. No cabe aqui, entretanto, elaborar uma discusso sobre as possibilidades e
os limites da sociologia da arte, mas cabe propor trs questes iniciais relacionadas ao
tratamento sociolgico a respeito de uma determinada obra: 1) como descrever o que se est
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vendo em uma obra de arte? 2) Como explicar o que est sendo visto? 3) Como analisar
sociologicamente um objeto de arte na ausncia, como afirma Nathalie Heinich, de um
enfoque emprico das obras de arte que no seja redutvel s descries que realizam, desde
h muito tempo, os crticos, os experts e os historiadores da arte (2002, p.91)?
A respeito das duas primeiras questes, Michael Baxandall afirma que no
explicamos um quadro: explicamos observaes sobre um quadro (2006, p.31), sendo que a
explicao somente possvel por meio de uma descrio verbal complexa da obra estudada.
Para o autor as descries dos quadros so representaes do que pensamos ter visto neles,
elas se fazem com palavras e conceitos relacionados com o quadro, e essa relao
complexa e s vezes problemtica (ibidem, p.32). Por mais que descrio e explicao se
interpenetrem, diz o autor, a descrio a mediadora da explicao (idem).
O presente estudo se debruou na complexa tarefa de descrever exaustivamente alguns
retratos realizados por August Sander, num contexto scio-cultural demarcado, para propor
uma interpretao plausvel sobre Homens do sculo XX. Mas ficar no plano da interpretao
da obra no suficiente para um estudo sociolgico, por se tratar de anlise da trajetria de
August Sander e de seu projeto, trabalhei no sentido de encontrar nas propriedades visveis
dos retratos indicaes referentes aos esquemas de percepo que o fotgrafo empregava em
sua viso de mundo. No primeiro captulo procurei reconstruir a experincia social do
fotgrafo no interior de um dado universo social por meio da anlise das propriedades visveis
de alguns de seus auto-retratos (tcnica, esttica, poses, trejeitos, cenrio). As anlises de seus
auto-retratos, articuladas a um manancial de informaes relacionado ao ambiente fotogrfico
da poca, ao contexto scio-poltico da Alemanha e biografia do fotgrafo, foram pensadas
como estratgia para se traar trajetria profissional e social de August Sander; o mtodo fez
emergir alguns aspectos instrumentais necessrios para a compreenso de HSXX.
Nathalie Heinich fornece a resposta para a terceira pergunta: o sucesso de um estudo
sociolgico da obra de arte implica o socilogo fugir do sociologismo que consiste em
considerar o geral, o comum, o coletivo o social como um fundamento, a verdade, o
determinante ltimo do particular, da singularidade, da individualidade (2002, p.105;
traduo nossa). fundamental, continua a autora, que o socilogo deixe de privilegiar o
geral sobre o particular ou o particular sobre o geral, para considerar simetricamente estas
duas maneiras de ver, consideradas como objetos e no como posturas de investigao.
Heinich prope tambm a necessidade de descrever os deslocamentos da relao da criao
entre o individual e o coletivo para que se possa reconstruir a genealogia das representaes.
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A presente pesquisa leva em considerao esses deslocamentos, as anlises a respeito
de HSXX e de August Sander so constantemente confrontadas, bem como com o clima
scio-cultural alemo daquele perodo ou prximo dele, com o ambiente artstico e com as
questes a respeito da fotografia que movimentavam o campo fotogrfico em processo de
constituio. Em nenhum momento se coloca um acima do outro, ao contrrio, o pano de
fundo deste estudo a perspectiva de que arte e sociedade no so partes distintas, mas partes
constitutivas uma da outra: a sociedade age sobre a arte e a arte age sobre a sociedade.
A implicao psicolgica, intuitiva, de fruio dos aspectos conscientes (as
motivaes) e inconscientes presentes no ato de criao do artista no basta para explicar
como o mundo social se inscreve na obra e nas motivaes do artista. Este est inserido numa
sociedade e faz parte de grupos sociais especficos nos quais ocupa determinada posio
social. Compartilha de uma cultura, de um habitus de nao (ELIAS, 1997) e de um habitus
de grupo que marcam seu estilo de vida e objetivam sua vida prtica. Assim, a criao
artstica tambm orientada pelo social: as foras do meio em que vive o artista exercem peso
sobre sua esttica, sobre a forma, sobre suas escolhas tcnicas, sobre o tema, sobre suas
motivaes e sobre sua tica. O artista e sua arte, imersos num certo ambiente social, esto
submetidos a um conjunto de foras externas. Tudo o que o artista faz est alicerado em
fatores scio-culturais e em prticas de grupo. A arte no plana no espao, diz Roger
Bastide, vive num certo meio social e est sempre subordinada a um conjunto de foras que
tendem a mant-la ou modific-la, a propiciar sua difuso ou restring-la a estreitos limites
(2006, p.300).
Foi nesta perspectiva que se trabalhou, no segundo captulo, a relao de August
Sander com os artistas membros do grupo Progressistas de Colnia (Klner Progressiven),
relao esta que viabilizou a elevao de Sander ao status de artista de vanguarda, bem como
abriu as portas para sua insero no meio artstico vanguardista. Desta estreita relao Sander
extrai concepes tericas de ordem esttica e poltica que pesaram na resignificao de seus
retratos, na estruturao de HSXX, na reformulao de alguns de seus antigos princpios
estticos, que por sua vez engendram mudanas no mbito tcnico. Para alm desta relao, as
mudanas empreitadas por Sander respondiam ao ambiente scio-cultural alemo do perodo
entre-guerras propcio s inovaes da linguagem fotogrfica bastante discutidas e
experimentadas por inmeros fotgrafos e artistas de dentro e de fora do campo fotogrfico
alemo e internacional, bem como pela crtica de arte e pela imprensa.
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O estudo da obra ao longo da pesquisa procurou privilegiar o entendimento da
qualidade intencional (BAXANDALL, 2006) da obra. HSXX, assim como toda obra
artstica, portadora de sua relao com seu autor e suas circunstncias; neste sentido buscou-
se identificar propsitos voluntrios e involuntrios (do fotgrafo; dos artistas Progressistas
de Colnia; das presses do meio artstico e scio-cultural) que pesaram na sua configurao.
Foi dessa forma que se chegou principal hiptese do captulo 2, a saber, HSXX viria
responder a uma encomenda virtual dos artistas progressistas.
A identificao desses propsitos foi fundamental na construo do escopo do ltimo
captulo. Partiu-se do princpio de que HSXX, assim como toda e qualquer fotografia, uma
realidade construda resultante da forma como seu autor percebe o real, ou do modo como ele
interpreta a realidade. HSXX a narrao de uma interpretao a de Sander sobre aquele
perodo histrico da Alemanha. Assim o pesquisador no interpreta somente a obra, mas
tambm interpreta a interpretao circunstanciada daquele que a concebeu. No se trata,
portanto, de um estudo sobre os fatos narrados, mas sim sobre a forma como Sander os
narrou, sua percepo do mundo inscrita na interpretao que ele faz do real circunstanciada
por diversos fatos sociais.
As anlises de algumas imagens especficas escolhidas segundo sua relevncia para
a pesquisa e que pudessem ser, dentro de certos limites, generalizadas para a compreenso da
obra como um todo foram sendo simultaneamente confrontadas com os critrios de
classificao adotados pelo fotgrafo e, na medida do possvel, relacionadas com o ambiente
scio-cultural da poca. Este procedimento levou hiptese central da ltima parte do
trabalho, e que tambm o cerne desta pesquisa: mais do que representaes de tipos sociais,
como de fato acreditava Sander, HSXX um conjunto de esteretipos, no sentido de seus
retratos serem realidades construdas (cenrio; direo dos modelos; modo de fotografar) que
correspondem a um modo de percepo social; enquanto percepo do real, a maioria de seus
retratos correspondem a esteretipos concebidos socialmente.
Sobre o mtodo de anlise das imagens, fazem-se necessrias quatro notas
explicativas: uma referente posio do observador; outra sobre o modo de leitura das
fotografias de HSXX; uma ltima sobre a anlise pormenorizada de algumas imagens; e por
ltimo uma sobre a traduo das legendas para a lngua portuguesa.
Sobre a posio do observador frente imagem: a fatura das fotografias de Sander,
assim como a da maioria das fotografias, norteada pelo cdigo perspctico renascentista. Ela
geralmente feita para ser olhada frontalmente, e uma mudana de ngulo de observao por
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parte do observador muda a leitura da imagem excluindo-se os casos de imagens produzidas
com efeitos visuais que permitam ser vistas a partir de outros pontos de vista. Recentemente,
em maro de 2007, o curador do MASP (Museu de Arte de So Paulo), Teixeira Coelho,
enfrentou o descontentamento de alguns artistas ao organizar a mostra Coleo Ita
Contemporneo Arte no Brasil 1981-2006 em comemorao aos 20 anos da instituio: na
parte destinada s pinturas, o curador e a cengrafa Bia Lessa dispuseram as obras no cho,
impossibilitando a observao frontal das obras. O argumento do artista plstico Daniel
Senise torna clara a incompatibilidade entre a inteno do artista e a de seus expositores: "A
gente faz a obra, coloca um ponto de fuga na tela na altura dos olhos da pessoa, calcula tudo
isso. Ela coloca o quadro no cho e da f... tudo, p!" (BERGAMO, 2007). Tendo isso como
ponto de partida, a leitura dos retratos de August Sander foi feita frontalmente, com a inteno
de se preservar ao mximo o ponto de vista do fotgrafo no ato da realizao das imagens.
Assim, com o intuito de propiciar ao leitor a mesma experincia de observao, todas as
imagens se encontram gravadas numa mdia digital (cd) anexada no fim do trabalho.
A leitura dos retratos de HSXX foi realizada em duas etapas complementares, a saber:
1) num primeiro momento, sem levar em conta o ttulo que acompanha cada imagem,
restringido-se pura aparncia do retratado e estrutura formal da fotografia; e, em seguida,
2) a partir do ttulo, que no apenas complementa a etapa anterior, como sugere interpretaes
sobre as condies social, econmica, poltica e at mesmo psicolgica do sujeito.
Especialmente no primeiro captulo, buscou-se pormenorizar as anlises de algumas
das fotografias, com o objetivo de compreender os fatos externos na tessitura dos elementos
internos da prpria imagem: poses, trejeitos, adereos, ambiente, tcnica e estrutura formal.
Para outras imagens estudadas, foram feitas anlises menos detalhadas, mas com o devido
cuidado que o estudo exige.
Por fim, uma dificuldade encontrada no decorrer do estudo foi a traduo das legendas
para a lngua portuguesa. A publicao de HSXX sobre qual se est trabalhando uma edio
trilinge: alemo, ingls e francs. Por desconhecer completamente o idioma original, o
alemo, as tradues para o portugus foram feitas a partir das outras duas lnguas, no entanto
em alguns casos no havia correspondncia entre os sentidos transcritos nestes dois idiomas.
Tais problemas foram contornados confrontando os sentidos das verses inglesa e francesa
com a verso oferecida por um dicionrio alemo-portugus.
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Captulo I
August Sander: uma anlise de trajetria (1876-1964)
[...] o conceito enquanto tal no intuitivo, abstrato, e fundamentalmente analtico, enquanto a imagem seria concreta, figurativa, criadora.
Stefan George
De operrio de extrao de minrios a fotgrafo internacionalmente reconhecido, de
aprendiz de fotgrafo a autodidata cultural e artstico, August Sander construiu ao longo de
sua vida uma bem sucedida carreira profissional e, um tanto tardiamente, de fotgrafo autoral.
Como aprendiz, adquiriu conhecimentos essenciais para sua atividade profissional: da
tcnica fotogrfica direo dos retratados, da tcnica comercial ao fino trato do pblico, da
venda de uma imagem profissional venda de uma imagem simblica de status social.
Como autodidata, aprendeu a pintar e estudou sobre a pintura; aprendeu msica e a
apreciar o gosto burgus. Tornou-se um intelectual da fotografia.
Ao se estabelecer como fotgrafo profissional, August Sander viveu rpida ascenso
financeira, e seu casamento lhe possibilitou transitar entre membros de classes econmica e
intelectualmente mais elevadas. O trnsito social nesses meios se deu concomitantemente
criao de uma auto-imagem tipificada do burgus de classe mdia com relativo capital
cultural acumulado. Como excelente fotgrafo retratista que era, essa imagem no poderia ter
sido mais bem forjada do que atravs de alguns de seus auto-retratos.
a partir da anlise de algumas dessas fotografias, e de um retrato de Sander realizado
por seu instrutor Georg Jung, que pretendo refletir neste captulo sobre a trajetria
profissional e social de August Sander.
O estudo dessas imagens estrutura formal, tcnica, poses e adereos implica
estabelecer relaes com fatores externos que pesaram diretamente na vida profissional e
social de August Sander, afastando-me, na medida do possvel, de fazer uma psicologia do
autor. Este estudo poder ainda nos levar a identificar alguns elementos relacionados viso
de mundo de Sander e s escolhas tcnicas e estticas que, de algum modo, balizaram muitos
dos retratos de seu grande projeto HSXX. A hiptese a de que, da mesma forma como ele
construiu seus auto-retratos, ou ento, da mesma forma como construiu sua imagem visual
como profissional e membro de um determinado grupo da sociedade, ele tambm ir
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construir, sob os mesmos patamares, a imagem de muitos de seus retratados realizados antes e
depois da concepo de HSXX.
Sua forma de perceber o mundo pesou fortemente na construo das imagens dos
retratados e na forma de representar o mundo sua volta, constitudo por aquilo que mais
tarde, durante a concepo de HSXX, ele passou a entender como tipos da sociedade.
Como o indivduo isolado no faz a histria de seu tempo, mas caracteriza a expresso de uma poca e exprime seus sentimentos, possvel apreciar a fisionomia de toda uma gerao e lhe dar uma expresso fotogrfica. Este quadro da poca ser ainda mais compreensvel se ns justapusermos em srie clichs de tipos representando os grupos mais diferentes da sociedade humana. Tomemos por exemplo os partidos de uma assemblia nacional: se comeamos pela direita e justapomos em seguida tipos que vo at a extrema esquerda, temos j um retrato parcial da nao. Cada um dos grupos se subdivide sua maneira em subgrupos, unies e associaes, mas todos [os indivduos] levam em sua fisionomia a expresso de sua poca e o pensamento de seu partido [poltico]; estes [partidos] se expressam tambm dentro de cada um dos indivduos que compem o grupo e caracterizaremos estes homens pelo nome de tipo. Poderemos fazer as mesmas constataes com as unies esportivas, as sociedades musicais, os sindicatos econmicos etc. (SANDER apud LANGE; CONRATH-SCHOLL, 2002, p.21; traduo nossa).
Podemos interpretar essa noo de tipo em dois planos: um no mbito das idias, e
outro no plano visual. No campo da abstrao, Sander est expressando aquilo que ele
entende ser o indivduo em sociedade, o qual tem sua personalidade formada atravs da
experincia coletiva. O grupo em que o sujeito est imerso pesa sobre sua forma de ser,
pensar e agir; o sujeito incorpora atributos e disposies do grupo que conformam certo tipo
social, o qual, por sua vez, caracteriza a expresso de uma poca e a expresso de um
grupo.
Ao contrrio do que prope Wright Mills que os indivduos, na agitao de sua
experincia diria, adquirem freqentemente uma conscincia falsa de suas posies sociais
(MILLS, 1972, p.11-12) , a experincia de Sander mostra que o homem comum1 capaz de
perceber e interpretar a realidade de maneira crtica. Nesse sentido, o exerccio mental que ele
faz ao elaborar um conceito sobre o que vem a ser um tipo social, mesmo no dispondo de
1 Para Mills, o homem comum parece estar amarrado sua realidade direta, sem conseguir perceber que os sucessos e insucessos de sua vida privada esto diretamente relacionados s possibilidades de todas as outras pessoas de sua sociedade, e que o bem-estar coletivo est relacionado ao curso da histria que se realiza em nvel mundial e a cada gerao. O homem comum no percebe que sua biografia construda no cotidiano, na interao direta com as outras pessoas, e que a biografia de todos condiciona sua sociedade, da mesma forma que a sociedade condiciona seus indivduos. Essa complexa relao entre biografia, histria e sociedade s pode ser compreendida por meio da imaginao sociolgica.
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nenhum rigor cientfico, no deixa de produzir um conceito erguido a partir de suas
experincias de vida, de suas relaes interpessoais, e que lhe serve como ferramenta de
explicao da realidade. Sua explicao de que todos os indivduos levam, em sua fisionomia,
a expresso de sua poca e o pensamento de seu partido poltico, e que esses partidos se
expressam tambm dentro de cada um dos indivduos que compem o grupo, revela um
homem atento s disposies que os indivduos portam, as quais vo desde aspectos visveis
facilmente identificveis (roupas, adereos, poses), passando por aspectos no visveis
(entonao vocal e vocabulrio), at elementos simblicos de difcil identificao (valores e
sentimento de pertencimento), como o prprio Sander sugere em seu exemplo.
Entretanto, a dificuldade reside no fato de Sander tentar traduzir tal conceito em
imagens, em aparncias visuais, sem recorrer ao senso comum, e sem cair em representaes
estereotipadas dos tipos por ele sugeridos. possvel identificar, num retrato fotogrfico,
marcas visuais que caracterizam poca, origem tnica, classe, habitus etc., mas isso fica
restrito quilo que visvel. A imagem fotogrfica apenas aparncia, ela uma
representao verossmil da realidade: a fotografia no necessariamente a verdade, no a
realidade concreta, mas se pauta pela representao do real. fotografia, diferentemente da pintura, , desde seu surgimento em 1839, atribudo
um falso carter de portadora de verdade, graas exatido devido a sua natureza tcnica
com que reproduz o real, aqui entendido como o que Roland Barthes chamou de referente
fotogrfico:
[...] o Referente da Fotografia no o mesmo que o dos outros sistemas de representao. Chamo de referente fotogrfico, no a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual no haveria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem t-la visto. O discurso [pictrico] combina signos que certamente tm referentes, mas esses referentes podem ser e na maior parte das vezes so quimeras. Ao contrrio dessas imitaes, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve l (1984, p.114-115).
Mais adiante, Barthes afirma a Referncia [como] ordem fundadora da Fotografia
(1984, p.115): a certeza de o objeto fotografado reproduzido com exatido ter existido
chancela o pretenso carter de portadora da verdade atribudo fotografia. Porm, essa falsa
idia no considera que toda fotografia uma realidade construda na qual esto implcitos o
ponto de vista do fotgrafo, suas escolhas tcnicas, o que ele tem em mente e o que ele sente
no ato de fotografar, seus objetivos no ato da edio das imagens no processo de edio
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(seleo e ordenamento) que o fotgrafo atribui sentido s fotografias e ao projeto como um
todo.
Desta forma, cada retrato produzido por Sander deve ser pensado como representao
verossmil do sujeito fotografado o referente , e como realidade construda pelo fotgrafo
que mobilizou para seus propsitos tanto no ato de fatura dos retratos, quanto no processo
de escolha das imagens sua prpria percepo da realidade e todo um conjunto de elementos
visuais que pudessem caracterizar os tipos da sociedade segundo critrios classificatrios
elaborados pelo prprio Sander.
Mas entre o conceito abstrato de tipo social e a representao visual que Sander faz
dele no existe uma relao especular direta. Se, por um lado, Sander mobiliza proposies
abstratas (expresso de uma poca; expresso de sentimentos) sobre a relao entre indivduo
e sociedade, no plano da imagem fotogrfica, ele se limita reunio de um grupo de vestgios,
mobilizados como generalizaes visuais preconcebidas, que, muitas vezes, ou j esto
inscritos no imaginrio social o qual, por sua vez, resulta de expectativas de
comportamento, de pr-julgamentos, de hbitos etc. , ou esto em conformidade com o modo
como o fotgrafo percebe o mundo sua volta.
Podemos ver isso numa das fotos mais famosas e estudadas de Sander: Jovens
Camponeses, de 1914 (I/1/3) [figura 01]. um retrato de trs jovens camponeses fotografados
num pequeno caminho de terra em meio paisagem rural de Westerwald. Em p e de corpo
inteiro, todos os trs vestem ternos, portam chapus e bengalas. Seus rostos esto virados para
a objetiva da cmera, enquanto seus corpos esto posicionados lateralmente, da esquerda para
a direita, quase enfileirados numa linha levemente diagonal seguindo a mesma direo da
trilha de terra que pareciam estar percorrendo. Tem-se a sensao de estar frente a um
instantneo2, a uma imagem tomada rapidamente na ocasio de um encontro fortuito entre os
rapazes e o fotgrafo, como se o percurso houvesse sido repentinamente interrompido para
atender a um chamado do fotgrafo. A posio das pernas do jovem da esquerda sugere
movimento: sua bengala est voltada para trs, apoiada no cho, como se ele estivesse
2 A idia de instantneo na fotografia est relacionada ao registro de momentos da realidade, de flagrantes de coisas ou fatos do dia-a-dia sem recorrer a poses. O instantneo fotogrfico implica certo aspecto de naturalidade da cena, mesmo que tal naturalidade tenha sido simulada, como demonstra, por exemplo, algumas imagens produzidas pelo fotgrafo francs Charles Ngre ao fotografar o asilo imperial de Vincennes em 1859. A idia de instantneo fotogrfico se estabelece em razo 1) do desprendimento da fotografia de estdio por parte de alguns fotgrafos j em meados do sculo XIX, em favor do crescente interesse pelo registro do cotidiano, e 2) do progresso tcnico das cmeras fotogrficas e de seus acessrios, bem como dos materiais fotossensveis, o que aumentou a capacidade de registro rpido das cenas (com a diminuio do tempo de exposio do filme luz graas aos obturadores mecanismo de controle do tempo de exposio do filme luz).
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empurrando o corpo para frente. Seu chapu torto e seu cabelo aparentemente desarrumado,
alm do cigarro pendurado entre os lbios, mostram uma pretensa falta de preocupao com o
arranjo da pose, e de cuidado com a aparncia do modelo.
Por outro lado, ao menos trs aspectos evidenciam a no instantaneidade dessa
fotografia; um de natureza tcnica e, portanto, no perceptvel aos olhos de um leigo, e outros
dois relacionados pose: 1) Sander empregava cmeras de grande formato, volumosas no
tamanho e no peso, que necessitavam do uso de um trip para suport-las. A utilizao de
negativos ortocromticos3 sob luz natural associados a outras questes tcnicas, como
luminosidade das objetivas e escolha de profundidade de campo, impunha tempos de
exposio do filme luz relativamente grandes, exigindo que o modelo ficasse imvel por
bastante tempo (de 2 a 8 segundos4); 2) a pose totalmente ereta do rapaz da direita, com seus
ps firmemente fincados no cho, seu brao direito reto e duro voltado para frente, segurando
sua bengala com a mo com demasiada rigidez para quem segura uma bengala , em
rigoroso paralelismo com as pernas, quebra a naturalidade da pose; 3) a pose da mo esquerda
do jovem do centro contrasta com a pseudo falta de cuidado com a pose do rapaz da esquerda.
Voltarei a este ltimo ponto.
importante salientar que August Sander nunca escondeu que dirigia seus modelos;
ao contrrio, direo e pose so elementos constitutivos de seus retratos. O que pretendo com
essas observaes, porm, ressaltar a importncia de se ter em mente que a fotografia
aparncia, uma construo plstica do mundo objetivo, uma representao verossmil e,
portanto, no exatamente5 verdadeira da realidade. A imagem dos Jovens camponeses sugere
3 Todo e qualquer tipo de filme e papel fotogrfico recoberto por uma emulso sensvel s cores da luz (fotossensvel). Porm, nem toda emulso sensvel a todas as cores do espectro luminoso, a no ser as emulses pancromticas. Das cores que compem o espectro de luz, as emulses ortocromticas no so sensveis ao vermelho e, devido a essa caracterstica tcnica, resultam em imagens mais contrastadas. Geralmente, so pouco sensveis luz, o que demanda longos tempos de exposio. Para os interessados em aprofundar-se na explicao desse ponto extremamente tcnico, sugiro a leitura do livro O negativo, de Ansel Adams (2001). 4 Os tempos de exposio empregados por Sander em seus retratos variavam entre 2 a 8 segundos (LANGE; CONRATH-SCHOLL, 2002, p.24), o que, para um leigo, pode parecer um tempo insignificante, mas para quem conhece um pouco da tcnica fotogrfica esse tempo bastante longo para a realizao de um retrato: um mnimo movimento do modelo ou mesmo da cmera provoca borres nas imagens, coisa possvel de ser notada em alguns retratos de Sander. 5 Com representao verossmil no exatamente verdadeira da realidade pretendo dizer que a imagem fotogrfica captada diretamente por meio de uma cmera fotogrfica portadora de certa verdade, pois, de fato, nela constam evidncias da realidade: para que um objeto esteja na imagem fotogrfica, necessrio que ele tenha existido. Mas, como props Boris Kossoy, a aparncia a base da chamada evidncia fotogrfica, porque se durante a gravao da imagem, houve uma conexo com o fato real, no instante seguinte [...] o que se tem o assunto representado; o fato efmero, sua memria, contudo, permanece pela fotografia. [...] Nosso acesso ao dado real, quando atravs da imagem fotogrfica, ser sempre um acesso segunda realidade, aquela do documento, a da representao elaborada. Trata-se do acesso ao mundo da aparncia (2007, p.42).
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movimento, quando se sabe que os rapazes estavam parados e posando. O problema da
verossimilhana se estende tipologia proposta por Sander: ele os enquadra dentro de um
modelo que navega entre a imagem estereotipada que se faz do campons e o anti-esteretipo
deste que provm de seu modo de perceber o mundo.
John Berger, em seu texto O traje e a fotografia (2003), analisa trs imagens de
Sander, inclusive o que se est discutindo aqui. Berger diz que uma fotografia esttica
mostra, talvez mais nitidamente do que na vida real, a razo fundamental pela qual, longe de
disfarar a classe social dos que os vestem, os trajes a sublinham e enfatizam (p.38). Berger
aponta a discrepncia existente entre o traje que aqueles rapazes vestem e seus corpos. O
terno, originalmente, foi concebido
como traje profissional da classe dominante no ltimo tero do sculo XIX. Quase annimo, como um uniforme, foi o primeiro traje da classe dominante a idealizar o poder puramente sedentrio. O poder do administrador e da mesa de reunies. Essencialmente, o terno foi feito para os gestos de falar e calcular abstratamente (2003, p.41).
Para o autor, a discrepncia est no fato de que os trajes portados pelos trs jovens
deformam seus corpos, pois estes tm cravada em sua estrutura uma srie de atributos (largura
de ombros, mos largas etc.) tpicos do trabalho da vida rural, mas, sobretudo, porque seus
fsicos foram moldados pelo ritmo prprio de suas atividades dirias relativas ao trabalho no
campo.
A roupa desses rapazes no a do trabalho que eles exercem, mas a roupa utilizada
por eles em ocasies solenes que cobram certa elegncia exigida pelo meio social que
freqentam. Certamente, essa no a mesma elegncia exigida pelos crculos sociais para os
quais os ternos originalmente foram feitos; a elegncia camponesa percebida como
deselegncia pelo imaginrio urbano burgus, o que conforma certa imagem estereotipada do
jeito de ser campons, ou do tipo campons, como prefere considerar Sander. A pretensa falta
de preocupao com a aparncia e com o arranjo da pose do jovem da esquerda denota a
imagem estereotipada da deselegncia fsica do jovem que vive no campo; mesmo vestindo
roupa de domingo, ele no consegue disfarar sua origem e a rudimentariedade cravada em
seus gestos e postura corporal. Sua roupa, um tanto amarrotada, est desajustada em seu
corpo, e as pernas de sua cala so maiores que suas prprias pernas. O modo como segura a
bengala desprovido da mnima elegncia burguesa que o rapaz do centro aparenta possuir;
seu chapu torto parece estar saindo de sua cabea, dando espao para que um tufo de cabelo
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evidencie certa despreocupao de sua parte com a vaidade, e certa ingenuidade em relao ao
jogo da aparncia, haja vista que August Sander no perde, em momento algum, o controle
sobre a cena. Isso se comprova nas figuras dos outros dois rapazes: ambos esto eretos e com
as cabeas alinhadas ao tronco, aparentando mais altivez alm de certa desconfiana em
seus olhares, o que nos remete ao jogo da representao estabelecido entre personagens e
fotgrafo. Os chapus bem vestidos deixam aparecer apenas parte de seus cabelos
aparentemente bem cortados. Suas roupas, ainda que fora de sintonia com seus corpos
(sapatos um tanto surrados, calas sobrando nas pernas, costume relativamente desalinhado na
costa do rapaz do meio), parecem se adequar mais a seus fsicos que ao fsico do outro jovem.
Uma leitura da estrutura formal dessa fotografia sugere um desejo velado de Sander
em estabelecer tal contraponto. A ateno diferenciada que ele presta s feies dos rostos,
por exemplo, est evidenciada pela radical transio tonal do escuro da montanha para a alta
luz do cu, onde as cabeas, posicionadas acima da linha do horizonte, ganham destaque. Um
tringulo retngulo imaginrio, existente a partir da diagonal da bengala do rapaz de trs e a
linha reta das costas do rapaz do meio, favorece a identificao de vestgios das distintas
relaes entre corpos e roupas, ou ainda, como sugere Berger, a total inadequao daqueles
corpos com aquelas roupas. De uma maneira ou de outra, os elementos visuais que
configuram as condies dessas pessoas tambm configuram um imaginrio estereotipado da
figura do campons.
H, porm, um detalhe presente na figura do rapaz do meio que revela em Sander a
existncia de certas referncias de pose tpicas do homem urbano burgus, as quais
configuram no apenas o anti-esteretipo do campons, como forjam, em certa medida, o
esteretipo do burgus na imagem do homem do campo. A mo esquerda do rapaz do centro
o exemplo mais contundente disso. Seu aspecto rudimentar e duro contrasta com a forma
elegante com que ela est posicionada, sugerindo certa leveza do gesto, o que, por sua vez,
est em descompasso com a rigidez dos dedos. Tal detalhe segue uma frmula de
representao do homem burgus frmula que se repete de maneira variada em outros
retratos realizados por August Sander, ora em mos delicadamente segurando um cigarro,
como se v em Mo de estudante, 1929 [figura 02], da srie Estudos: o ser humano, ora na
conjuno das duas mos, como acontece no retrato Editor, 1933 [IV/27/15] que Sander
transfere para a figura desse jovem, concebendo assim uma imagem incompatvel com a
realidade: uma imagem verossmil do retratado, mas que est longe de ser verdadeira.
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A partir desse detalhe que parece ser, mas no , um pormenor , possvel sugerir
uma hiptese a ser averiguada num estudo posterior: o detalhe da mo segue uma frmula de
representao do homem burgus que extrapola Sander, a fotografia e mesmo a fronteira
geogrfica. Um bom exemplo disso O retrato do pintor Roberto Rodrigues, 1926 [figura
03], no qual seu autor, Cndido Portinari, pinta a mo esquerda do modelo segurando
charmosamente um charuto, numa pose bastante semelhante se no fosse o charuto da
mo do jovem campons de Sander. A semelhana na forma de representao do modelo nas
duas imagens pode ser notada tambm na maneira como ambos seguram as respectivas
bengalas, com a diferena de que o campons desprovido da delicadeza e do charme
gravados na pose do jovem sedutor com aparncia de um Drcula/Svengali, conforme
sugere Srgio Miceli (1996, p.42). Um exemplo proveniente da fotografia o retrato Otto Dix
com cigarro, 1926 [figura 04], do fotgrafo alemo, contemporneo de Sander, Hugo Erfurth6
(1874-1948). Vale notar que o ano de realizao deste retrato e o da pintura de Portinari o
mesmo, o que indica um padro que parecia estar em voga nas artes visuais.
Isso posto, a tipologia visual proposta por Sander ser entendida aqui dentro dessa
chave de explicao. Da mesma forma, seus auto-retratos sero tomados como construo de
um tipo, na medida em que ele mobilizou nessas imagens um conjunto de feies
caractersticas obtidas junto aos crculos sociais que ele passou a freqentar, e que
correspondiam ao modo como ele gostaria de ser socialmente percebido. Tal conjunto de
feies no foge regra da caricatura que normalmente se faz do tipo burgus no qual ele se
quer fazer perceber.
I.1. O retrato do aprendiz
Um homem elegantemente vestido est sentado folheando um livro apoiado em suas
pernas. O local decorado com uma tela pintada ao fundo, onde figurava um vaso antigo e
rebuscado portando flores e apoiado sobre uma coluna sextavada, tambm rebuscada, sugere
6 Assim como August Sander, Hugo Erfurth exerceu a tradicional profisso de fotgrafo especializado em retratos. Bastante prestigiado, foi por muitos anos presidente da Sociedade dos fotgrafos alemes do qual foi membro fundador em 1919. Sua clientela contou com uma grande poro de membros do mundo poltico e cultural . Foi tambm adepto do artesanato artstico, sobre o qual falaremos mais adiante, tendo incorporado ao trabalho comercial tcnicas de impresso fotogrfica tpicas da era pictorialista com o intuito de aumentar a clientela. Aps aproximadamente vinte anos de carreira profissional, diferena de seus homlogos, Erfutth passa a eliminar o uso de acessrios e fundos construdos para registrar seus modelos, explorando bastante caractersticas que pudessem identificar o sujeito com sua psicologia. Muitos de seus modelos foram pintores vanguardistas como Otto Dix, Max Beckmann, Paul Klee, Oskar Kokoschka dentre outros.
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um ambiente teatralizado no menos requintado do que a cadeira sobre a qual o rapaz est
sentado. O enquadramento apertado, ajustado na altura dos joelhos direita da imagem, a
uns poucos centmetros acima da cabea, ao encosto da cadeira no lado esquerdo; a parte
escura de baixo ocupa menos de um tero da cena, onde aparecem pedao da tapearia, parte
das elegantes pernas da cadeira e ainda uma discreta planta localizada na penumbra atrs do
modelo. O rapaz est posicionado numa tnue linha diagonal em relao cmera, que, por
sua vez, est posta num ngulo um pouco acima da altura do homem e sutilmente inclinada
para baixo. A iluminao suave ameniza o contraste entre a roupa escura e a alvura do livro.
A luz principal, vinda da direita, separa o personagem do fundo artificial, contorna seus traos
delicados, e destaca seu alinhado terno. Apesar da teatralizao da pose, a cena dura, o
corpo esttico. A cabea erguida e ereta contrasta com o movimento sugerido pela mo, que
segura algumas folhas do livro. O olhar em linha reta do rapaz no se dirige nem cmera,
nem ao livro; no contemplativo e sequer sugere algum estado de esprito. um olhar que
busca concentrao para que a imagem no fique borrada devido ao longo tempo de
exposio, e, ao mesmo tempo, para que a fisionomia no parea artificial demais.
Esse retrato [figura 05], de 1899, do jovem aprendiz de fotgrafo August Sander,
ento com 23 anos de idade, e foi realizado por seu chefe e mestre Georg Jung. Trata-se de
uma tiragem de luxo de um carte-de-visite7.
Mais do que um formato de fotografia montada em papel carto, e mais do que uma
simples febre comercial, o carte-de-visite implicou a rpida popularizao do retrato dentro e
fora da Europa, disseminando um ideal-tipo de burguesia inspirado nos padres de civilizao
europia para o mundo todo. Do ponto de vista fotogrfico, esse modelo civilizatrio se
reproduzia na repetio de padres tcnicos (iluminao suave e bem equilibrada; retoques
das imperfeies do indivduo ou da cena; etc.), estticos (cenrios artificiais que variavam
muito pouco; ngulo de viso geralmente no mesmo plano do personagem; ausncia de
grandes contrastes de luz e sombra; modelo bastante prximo ao fundo; relativa profundidade
7 Um dos primeiros e mais importantes usos da fotografia foi a produo de retratos estimulada pela crescente demanda da classe mdia, que proporcionou um extraordinrio aumento do nmero de estdios fotogrficos voltados para sua produo. O auge dessa febre se deu em meados do sculo XIX com a criao do carte-de-visite photographique pelo francs Eugne Disdrie, um fenmeno comercial de grande envergadura que se espalhou pelo mundo todo muito rapidamente. O carte-de-visite consistia em fotografias montadas em papel carto no tamanho de aproximadamente 10x7,5cm, e permitia a multiplicao da imagem a partir de uma nica matriz: era possvel obter at oito retratos diferentes de uma mesma pessoa num nico negativo.
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de campo8, que permitisse estabelecer relao entre modelo e ambiente teatralizado) e de
representao do indivduo (gestos e poses que transmitiam sobriedade do comportamento;
encenao de poses idealizadas do homem culto, do homem religioso, do homem de negcio
etc.; vestimentas formais; adereos que identificassem o sujeito com o estilo de vida da classe
qual pertence ou desejaria pertencer; ambiente artificial que geralmente simulava ambientes
sociais de uma casa como uma sala de estar, um jardim, ou mesmo uma biblioteca).
Andr Adolphe Eugne Disdri (1819-1889), criador do carte-de-visite, criticado por
banalizar a prtica do retrato, infligindo a essa modalidade e ao mercado uma feio quase
industrial no que diz respeito organizao do espao de produo das imagens e diviso de
tarefas9, e por uniformizar os retratados, escreve, em 1862, L art de la photographie.
No se trata, em efeito, de fazer um retrato, de reproduzir com uma preciso matemtica, as propores e as formas do indivduo; preciso ainda, e sobretudo, tom-los e represent-los justificando e embelezando as intenes da natureza manifestadas sobre este indivduo, com as modificaes ou os desenvolvimentos essenciais portados pelos hbitos, as idias e a vida social (DISDRIE apud DUCROS; FRIZOT, 1987, p.38, traduo e grifos nossos).
Se invertermos a lgica do argumento de Disdri, veremos que ele reconhece a
uniformizao tcnica e esttica dos retratos: alm de sua preocupao com o modo como o
sujeito ser representado, preciso ainda reproduzir com uma preciso matemtica as
propores e as formas do indivduo. E mais, a tentativa de Disdri de descaracterizar a
padronizao dos retratos sucumbe quando ele afirma a necessidade de representar o sujeito
com as modificaes ou os desenvolvimentos essenciais portados pelos hbitos, as idias e a
vida social: o autor est apostando apenas na caracterizao visual dos modelos segundo
certas disposies perceptveis.
O problema est no fato de que parte significativa da clientela dos estdios de
fotografia, geralmente localizados nos centros urbanos, era principalmente composta por
8 Profundidade de campo um termo tcnico da fotografia que diz respeito rea da cena na qual os objetos aparecem ntidos. Resultado da relao entre abertura de diafragma (f), distncia entre o objeto focalizado e o plano do filme (localizado no interior da cmera), e tipo de objetiva (grande angular, teleobjetiva, objetiva normal), a profundidade de campo determina o que estar ntido na imagem para alm do objeto focalizado: ela ser maior ou menor dependendo do grau de nitidez dos objetos localizados frente e aps o objeto focalizado. 9 O atelier fotogrfico de Disdri contava com um lugar para atendimento, outro para fazer os retratos, outro para reproduzi-los e enquadr-los, outro reservado para a venda. Disdrie ficou milionrio da noite para o dia. Sua empreitada atraiu um enorme contingente de novos fotgrafos na disputa pelo mercado.
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membros da classe mdia e das classes mais abastadas. Essa burguesia, por sua vez, tinha
inscrito em seus fsicos e em seus estilos de vida certas disposies passveis de serem
representadas numa imagem prprias dos padres de comportamento tpicos do habitus
(ELIAS, 1997) da civilizao industrializada generalizada pela Frana e pela Inglaterra.
Assim, a padronizao visual da forma e do contedo deixa pouca margem de
manobra para a diferenciao de representao dos retratados. Mas, mais do que isso, Disdri
padroniza forma e contedo sem, entretanto, considerar o peso da primeira sobre o ltimo. A
forma determinante, o contedo ajustado a ela, e isso ultrapassa o campo visual: o carte-
de-visite foi mais do que uma frmula bem sucedida; ele foi a forma de veiculao visual de
um padro de civilizao.
Nesse sentido, o carte-de-visite de August Sander feito por Georg Jung no foge
regra. Nascido em 1876 no seio de uma famlia operria na cidade de Herdorf10, quarto filho
de um total de oito irmos, Sander freqentou a escola pblica evanglica durante oito anos, e
mais tarde trabalhou como operrio na extrao de minrios nas minas de sua cidade. Seu pai
mantinha, paralelamente profisso de carpinteiro nas minas, uma pequena propriedade de
explorao familiar, de onde extraa parte dos alimentos consumidos em casa. Inversamente
sua origem social e econmica, o retrato em questo mostra o jovem Sander iniciando-se na
vida burguesa.
Sua insero em tal modo de vida era condio sine qua non para que ele se tornasse
fotgrafo profissional, especialmente um retratista, profisso cujo sucesso dependia de sua
aceitao pela clientela burguesa. Adquirir o habitus burgus, e principalmente mostrar-se
como tal, foi o que de mais importante Sander assimilou na sua condio de aprendiz de
fotgrafo no estdio de Georg Jung11.
10 A economia de Herdorf, localizada na regio de Siegerland, sudoeste da Alemanha, dependia da extrao de minrios. Sua aparncia, segundo Susanne Lange (1999), lembrava mais um burgo industrial do que uma comunidade rural. Carregava uma forte marca da migrao de pessoas vindas de outras regies da Alemanha e tambm de outros pases atradas pelas possibilidades de trabalho temporrio nas minas e usinas da regio. O quadro vivido em Herdorf um reflexo do que se passava no resto do pas. O crescimento populacional de 41 milhes de habitantes em 1871, a 49 milhes em 1890, e a 67 milhes em 1914 e o forte impulso industrial promoveram um rpido processo de urbanizao na Alemanha: em 1910, 2/3 da populao vivia nas cidades, enquanto que em 1841 esse nmero era de 1/3 (ALMEIDA, 1987, p.9). 11 August Sander inicia sua carreira como aprendiz no atelier fotogrfico de Georg Jung no mesmo perodo em que fazia o servio militar na cidade de Trier (1897-1899). Tratava-se de um estdio tradicional que gozava de prestgio devido competncia profissional e ao trato dado a sua grande clientela (WIEGAND, 2002). Sander aprende com Jung a tcnica fotogrfica em profundidade, estratgias de venda, a recepcionar e tratar adequadamente o pblico, a posicionar e dirigir seus modelos frente cmera, a montar e modular a iluminao de forma equilibrada, evitando grandes contrastes de sombra e luz, a organizar o estdio, e, ainda, a processar todo o material fotogrfico: revelar as chapas de negativo, copiar as imagens, retocar as cpias e outros tipos de acabamentos, at emoldurar as imagens. Ou seja, Sander adquiriu ali toda a base necessria para se tornar um
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Assim como a nova classe mdia formada a partir da unificao do pas, a qual se
beneficiava do acentuado processo de industrializao, cientificizao e urbanizao apesar
do ambiente hostil aos padres da civilizao europia por parte dos mandarins alemes
(RINGER, 2000), especialmente os mais conservadores, que os recusavam em razo do
pragmatismo que afastaria os alemes dos valores culturais, de uma conscincia geral e de
uma alma alem , Sander tambm assimilava feies do ideal-tipo da burguesia fruto da
civilizao industrial. A profisso de fotgrafo era um possvel caminho para a ascenso
econmica e social, uma vez que o aprendizado da tcnica era exercido na condio de
aprendiz nos estdios e, em grau bastante elevado, no mbito do autodidatismo, pois a
fotografia naquele perodo estava fora das escolas de arte. Foi por meio da fotografia que
Sander passou da condio de operrio pobre condio de burgus da nova classe mdia
alem.
I.2. O auto-retrato como mecanismo de distino
Aps o perodo de aprendizagem no estdio de Jung, Sander parte para uma viagem de
trs anos, trabalhando como assistente em estdios fotogrficos nas cidades de Magdeburg,
Halle, Leipzig, Berlim e Dresde. Ainda em Dresde, Sander freqenta aulas como ouvinte nos
cursos da Academia Real de Belas Artes e da Academia de Artes Decorativas. Poucos anos
mais tarde, Sander passaria a se apresentar como fotgrafo e pintor, a ponto de imprimir no
verso de seus cartes-de-visite a frase Atelier de arte para fotografia e pintura modernas
[figura 08]. Em todos os estdios que viria a ter, Sander expunha quadros feitos por ele, uma
cpia de um auto-retrato de Rembrandt, entre outros tipos de obras de arte e de antiguidades.
A meu ver, a pintura exerceu fora determinante em vrios aspectos do
desenvolvimento de sua fotografia e de sua vida social. Seu interesse pela arte mostra sua
adeso cultura burguesa. Sander fez questo de marcar o gosto pela pintura e o hbito de
pintar com um auto-retrato realizado em 1905, no qual ele aparece pintando12 em seu estdio
repleto de objetos de arte e de antiguidades [figura 06].
Outros auto-retratos evidenciam sua adeso ao habitus burgus. Em um deles [figura
07], realizado em 1906, Sander aparece fotografado em p, meio de lado, a partir dos joelhos,
fotgrafo profissional nos moldes tradicionais dessa profisso, especialmente no que diz respeito realizao de retratos, que representavam a maior demanda de trabalho. 12 O quadro de uma paisagem que ele se mostra pintando nesta fotografia foi exposto na parede de seu estdio em Linz (WIEGAND, 2002).
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e com as mos colocadas nos bolsos da cala. Ele se apresenta elegantemente vestido com
detalhes que evidenciam seu requinte: uma bela gravata, correntes no bolso do colete e um
belo chapu. A cena sugere um ambiente quase meia luz: a iluminao suave de baixa
intensidade vinda do alto de seu lado esquerdo atenua as reas mais claras, sem, entretanto,
gerar perdas significativas de informaes nas reas de baixas luzes, reduzindo, assim, o
contraste da cena, amenizando as passagens de tons, e gerando um dgrad em toda a
imagem. A ambientao minuciosamente elaborada denota uma preocupao de Sander em
explorar novos terrenos no mbito da esttica e da representao do sujeito, diferentes
daqueles empregados nos antigos cartes-de-visite.
No plano da aparncia, o modo de representao de classe est mais sofisticado,
graas sua ascenso econmica, que lhe permite adquirir indumentria mais refinada
portanto, mais custosa , e que o mostra como portador do bom gosto burgus. O cenrio
tambm muda: ele faz uso de um fundo neutro e o espao despojado de qualquer tipo de
ornamento e acessrio.
Do ponto de vista esttico, as mudanas tambm so muito significativas: o modo
como a luz est sendo trabalhada difere da luz padronizada do carte-de-visite; a sombra que
escurece o lado direito de August Sander empurra o olhar para a regio mais iluminada, onde
se pode notar com clareza os detalhes da indumentria, a fora do olhar, o trato com a
aparncia; a ligeira inclinao da cmera muda a forma de percepo da imagem do
indivduo, sugerindo uma leitura de sua psicologia. A forma do prprio carte-de-visite
tambm est sendo alterada, no sentido de abrir mo de um carter mais descritivo em favor
de uma leitura mais interpretativa do sujeito; j no que diz respeito veiculao de um ideal-
tipo burgus, parece no haver mudana.
A mais importante novidade neste modo de representao a tentativa de estampar
nos retratos aspectos biogrfico e psicolgico do sujeito. De fato, nesta imagem Sander
modula a luz e explora a pose e a feio de seu rosto visando marcar certo pertencimento de
classe e um clima de sobriedade do ambiente e do sujeito.
Nesta fase Sander comea a esboar algumas mudanas que mais tarde se tornariam
estaria na base de seu futuro projeto. Em 1906, cinco anos aps o incio de sua carreira como
fotgrafo profissional, Sander realiza uma exposio com cem retratos copiados por meio de
processos fotoqumicos sofisticados (goma bicromatada, leo-bromuro, uso de pigmentos) no
Linzer Landhaus-Pavillon. Essa exposio atraiu a ateno dos crticos de arte do jornal
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Linzer Tagespost, ressaltando a fotografia de August Sander no seio do processo de renovao
pelo qual passava a fotografia na primeira dcada do sculo XX:
A renovao artstica que se exprime na pintura ocorre igualmente na obra fotogrfica, e a penetrao de uma parte do pblico [nessa renovao] se afasta do esteretipo. A exposio [...] proposta pelo Senhor Sander, fotgrafo, prova disto. [...] A autenticidade das atitudes, a absteno de pose, a pertinncia dos grupos, a justa percepo da pessoa e a qualidade excelente de execuo so os traos que sobressaem dessas imagens. A rigidez da foto de estdio desapareceu, a insignificncia do retoque no tem mais espao, no mais o lado liso dos retratos que importa, mas a expressividade da fotografia (apud LANGE; HEITING, 1999, p.171, traduo nossa).
Embora tenha aprendido tcnicas aperfeioadas de retoques e de tiragens sofisticadas
de cpias para embelezar os retratos de sua clientela, Sander comea a esboar uma
preocupao maior em extrair da aparncia de seus modelos caractersticas de suas biografias.
As marcas da vida estampadas no rosto das pessoas passam a ser valorizadas e tratadas por ele
com dignidade, como ele prprio sugeria em um de seus anncios:
Peo a vocs que quando olharem meus trabalhos tenham em conta o fato de que, contrariamente quilo que se faz em geral, eu me esforo em conservar no rosto os traos caractersticos que as disposies naturais, a vida e o tempo lhe imprimem, isto resulta em retratos precisos, expressivos e caractersticos que esto em perfeito acordo com o ser profundo da pessoa fotografada (apud LANGE; HEITING, 1999, p.171, traduo nossa).
Parece, assim, que j no ano de 1906 Sander passou a abrir mo de retoques nos rostos
dos fotografados com o fim de esconder as marcas do tempo, como era costume se fazer no
retrato comercial. Talvez isso tenha sido um primeiro indcio de distino de Sander em
relao aos demais fotgrafos ao marcar um estilo prprio em suas fotografias, fato este
ressaltado pelos crticos de arte do jornal Linzer Tagespost.
No tenho como averiguar se houve ou no qualquer tipo de retoque na imagem por
no ter como acessar a fotografia original, uma vez que esta pesquisa est sendo realizada a
partir da bibliografia disponvel. No obstante, para algum desavisado sobre sua histria de
vida, essa fotografia no representa sua real trajetria; ao contrrio, sua imagem aparenta
apenas sua realidade atual, e nem mesmo seus traos fisionmicos (ausncia de rugas, bigode
e barba bem aparados) remetem origem operria nas minas de Herdorf. Por outro lado, o
cenrio meia luz, o olhar srio e o rosto levemente posicionado para cima e para a direita do
eixo da objetiva, imprimem em sua fisionomia um aspecto de sobriedade; a cmera,
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ligeiramente inclinada de baixo para cima, aparenta segurana de si mesmo como figura
socialmente bem estabelecida e como profissional, pois se trata de um carte-de-visite, com
finalidade de divulgao, que tem estampado na parte inferior a representao de uma
medalha adquirida em 1903.
Alis, as premiaes funcionavam como importantes meios de diferenciao comercial
no mercado alemo de retrato fotogrfico. Conforme sugere Thomas Wiegand (2002), Sander
era apenas mais um fotgrafo competente entre outros muitos, o que provavelmente tornava
difcil reconhecer uma fotografia sua ao lado de outras imagens feitas por terceiros. Nesse
sentido, ele no escapava da uniformizao do retrato, mesmo explorando o lado artstico do
qual falaremos mais adiante , j que no havia um estilo prprio demarcado em suas imagens
que o distinguisse dos demais.
O reconhecimento era algo almejado por todos os fotgrafos, e a forma de alcan-lo
se dava especialmente por meio da participao em exposies e concursos
nacionais e internacionais, [que] ofereciam a possibilidade de obter sucesso ultrapassando o quadro regional: desta maneira, podia-se testar seu prprio valor e fazer valer suas pretenses. Em caso de recompensa, o ingresso no patamar superior [dos fotgrafos] era facilitado [...] (WIEGAND, 2002, p.57, traduo nossa).
Dito de outro modo, a premiao, ou qualquer meno honrosa em um desses eventos,
seria um elemento de distino transformado em propaganda em favor prprio; essa distino
se dava pelos mritos alcanados, e no pelo estilo fotogrfico individual, o qual, por sua vez,
parece despontar em 1906, como vimos h pouco.
Sander soube tirar proveito disso. A partir de 1903, com 27 anos de idade, ele ganha
notoriedade fora do seu quadro de clientes; seus trabalhos so expostos em exposies
nacionais e internacionais, arrebatando vrios prmios, dentre eles, o diploma de honra, a cruz
de honra e a medalha de ouro na Exposio Internacional de Artes Decorativas do Grand
Palais des Champs-Elyses, em Paris, no ano de 1904. Tais conquistas apareciam no
cabealho de seus papis de carta, cartes de visita e anncios de jornais [figuras 08 e 09],
com a finalidade de atestar sua competncia e distino em relao aos demais.
importante salientar que essas alteraes no modo de fotografar de Sander no
representam de fato nenhuma revoluo encabeada por ele. O sentido delas deve ser
entendido no mbito da concorrncia comercial entre os fotgrafos retratistas que visavam
lograr formas de distino de seus trabalhos. Alm disso, outras experincias anteriores de
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Sander j exploravam novas formas de representao do indivduo, com especial destaque
para o clebre fotgrafo francs Flix Nadar Sander conhecia sua obra , que dizia fazer um
retrato psicolgico, buscando identificar o indivduo pelo seu esprito. Ele retratava
personalidades da pintura, da msica, da literatura etc. combinando os efeitos da luz com a
fisionomia e com a personalidade do modelo. O auto-retrato de Sander se assemelha bastante
ao tratamento visual dos retratos feitos por Nadar.
O tratamento esttico dado ao auto-retrato em questo parece estar relacionado
tambm a certas referncias da arte pictrica, mais precisamente de Rembrandt relembrando
que Sander possua uma cpia de um auto-retrato deste pintor em seu estdio , como se pode
notar em alguns de seus auto-retratos [figuras 10 e 11]: ambiente meia-luz, fundo neutro,
passagem em dgrad do claro para o escuro, e a inteno de marcar certa psicologia em sua
feio. Em seu auto-retrato, Sander parece ter assumido qualidades visuais impressas nos
auto-retratos de Rembrandt, e, talvez, a vontade de explorar a personalidade do modelo, como
fizeram Rembrandt, Goya, David e Rafael.
O significativo disso a transferncia esttica e da vontade de representao da
personalidade da pintura para a fotografia. Sander conhecia bem os dois meios, como tambm
conhecia a fotografia pictorialista13 da qual ele e seus concorrentes fotgrafos se
apropriou de experimentos tcnicos e estticos, visando diferenciar-se da produo dos
demais.
Aps o perodo de aprendizado com Georg Jung, a carreira profissional de Sander
comeou a se firmar por volta de 1901, na cidade de Linz, onde viveu por quase dez anos.
Sander foi trabalhar como primeiro operador no atelier fotogrfico Greif, do qual se tornaria
scio e, mais tarde, nico dono: Atelier Fotogrfico de Primeira Ordem August Sander. Seu
estdio foi comercialmente bem sucedido em razo da ampliao de oferta de possibilidades
de retratos: ele passa a fotografar tambm nas casas de seus clientes, e oferece retratos com
13 O advento do pictorialismo se deu em meados do sculo XIX, tendo como principais agentes fotgrafos e artistas fotgrafos franceses e ingleses, engajados ou no em sociedades fotogrficas. Inspirados na pintura, os pictorialistas procuravam firmar a fotografia como uma forma de arte; recusavam o papel social atribudo a ela de instrumento meramente cientfico, e condenavam sua banalizao comercial desencadeada pela febre do retrato. Ao mesmo tempo, propunha-se que a fotografia deveria ser uma maneira de o artista expressar suas impresses sobre a realidade, apropriando-se de tcnicas e princpios estticos provenientes da pintura. Entre os pictorialistas, havia uma dicotomia entre os termos fotografia pictorialista e fotografia naturalista, sendo o primeiro relativo aos fotgrafos que defendiam qualquer manipulao fotogrfica, aproximando-a ao mximo da pintura, e os naturalistas aqueles que defendiam a imagem direta e sem manipulao. Tal dicotomia nunca foi clara, e o uso desses termos depende da ptica do pesquisador: h aqueles que fazem essa separao, e outros que no a consideram. Em certos casos, o naturalismo tomado apenas como uma dissidncia interna do pictorialismo, pois tanto pictorialistas quanto naturalistas tratavam a fotografia como uma arte pictrica.
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tratamento especial, realizando cpias de luxo a partir de processos de impresso
fotoqumicos que rendiam um aspecto mais artstico (como menor gama tonal, menor nitidez
da imagem, uso de papis diferenciados para a cpia fotogrfica etc.), acabamento e
apresentao mais luxuosa dos retratos.
Isso corresponde a uma tendncia proveniente da fotografia pictorialista. Os
experimentos tcnicos e estticos pictorialistas atraam os fotgrafos retratistas do incio do
sculo XX na Alemanha. Era uma forma de ampliar a clientela e de oferecer trabalhos mais
caros e sofisticados a um pblico tambm mais sofisticado. Entretanto, o trabalho corriqueiro,
inclusive os retratos mais correntes, continuava a ser a base econmica daqueles fotgrafos,
uma vez que, como prope Willi Warstat, no incio do sculo XX, as condies econmicas
para o desenvolvimento de um artesanato artstico independente em fotografia no estavam
suficientemente reunidas (apud WIEGAND, 2002, p. 55, traduo e grifos nossos).
A expresso artesanato artstico sugere que entre os fotgrafos alemes daquela poca
no havia uma inteno em se fazer uma arte fotogrfica, mas sim um artesanato fotogrfico
diferenciado do retrato corriqueiro. A arte dos retratos para os pictorialistas do sculo XIX
implicava o abandono da preciso e da nitidez das imagens, que acentuavam o carter de
veracidade, para explorar a subjetividade alcanada por meio de tcnicas de impresso
fotogrfica artesanais, as quais, por sua vez, possibilitavam certa similaridade com os efeitos
alcanados pelos grandes mestres da pintura. A motivao destes era tornar a fotografia uma
arte. No caso alemo do incio do sculo XX, tais efeitos artsticos nos retratos eram
percebidos como valor agregado, no sentido comercial do termo, o que refora, portanto, o
carter de artesanato de seus trabalhos comerciais.
O auto-retrato de Sander no se enquadra na categoria de artesanato artstico, mas, por
outro lado, suas inovaes seguem a mesma motivao: por mais subjetividade que ele possa
sugerir em relao ao retratado, e apesar de suas mudanas tcnicas e estticas, ele representa
uma tentativa de diferenciao comercial. Em sntese, esse auto-retrato de Sander pode ser
entendido como forma de ele se distinguir social e comercialmente.
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I.3. Famlia Sander: o auto-retrato da tradio familiar
Escrever sobre a msica como despejar fontes de gua no oceano do mundo, porque o tom que primeiro faz a msica. A msica qualquer coisa de inata e recusa todo conhecimento; ela quer viver e ser vivida.
August Sander
Como vimos, August Sander adotou a pintura como prtica paralela atividade
profissional de fotgrafo; ela no apenas lhe serviu profissionalmente como referncia
pictrica na construo dos retratos, como foi fundamental na construo de sua auto-
imagem: Sander soube mobilizar seu interesse pela arte como forma de mostrar sua adeso
cultura burguesa14. Mas, para alm da pintura, o gosto pela msica tambm foi mobilizado em
imagem para mostrar sua adeso cultura erudita. Embora tenha sido explorada em menor
escala que a pintura, e mesmo sem ter sido usada comercialmente, como acontecia com boa
parte de seus auto-retratos, a prtica musical foi tema de alguns auto-retratos de sua famlia,
dentre os quais destaco Famlia Sander, de 1913 [figura 12], realizado em seu estdio, na sala
14 Amparando no estudo sobre a scio-gnese da sociedade alem de Norbert Elias (1997), vou tentar rapidamente esboar um perfil da classe burguesa a qual August Sander estava se inserindo ao longo de seu desenvolvimento profissional. Tratava-se de uma burguesia que conjugava nela mesma dois tipos burgueses, a saber, um proveniente da aristocracia decadente que ainda guardava certos cdigos de conduta da tradio aristocrata, especialmente a militar, baseada na honra e nas boas maneiras entre os iguais, estes entendido como apenas os membros da nobreza e da aristocracia; outro proveniente das elites das antigas classes mdias que at o final do sculo XIX tinham seu poder restrito apenas ao mbito do poder econmico nos centros urbanos (empresrios, grandes comerciantes, banqueiros), e que a partir de ento passaram a ocupar cargos importantes na mquina estatal, inclusive cargos de direo, sem, entretanto abandonar seu status, perspectivas e cdigos de conduta que se configuravam em forma de uma moralidade humanista considerada vlida para todas as pessoas independente de classe ou origem. Embora os grupos fossem bastante distintos, as mudanas estruturais na sociedade, decorrentes do acelerado processo de industrializao, urbanizao e outros aspectos concernentes modernizao do pas no incio do sculo XX, e que abatiam a Europa como um todo, gerava tambm transformaes dos cdigos de conduta. Norbert Elias diz que a srie de movimentos de emancipao que o sculo presenciava alterava os equilbrios de poder entre grupos estabelecidos e grupos marginais das mais diversas espcies (1997, p.36). Tais movimentos emancipatrios levaram a uma inverso de valor na correlao de foras entre a aristocracia e a classe mdia dotada de grande mobilidade ascendente, estes ltimos ficavam cada vez mais fortes, especialmente na era da Repblica de Weimar, enquanto os outros perdiam poder: nesta fase, apesar da aristocracia manter os cargos nas mais altas patentes militares e diplomticas, por outro lado seu peso dependia de conseguir se aliar a grupos de classe mdia. Mesmos os cargos mantidos pela aristocracia na era de Weimar deixariam de existir com a ascenso nazista. Esta classe mdia ascendente no poder tornou-se cada vez mais multifacetada na medida em que o processo civilizatrio se acelerava, e na medida em que membros das classes menos privilegiadas, especialmente os provenientes do operariado, tambm ascendiam, em menor grau, a certos nveis de poder do Estado e, em menor medida, do poder econmico. Esse resultado, segundo Elias, foi significativo tanto para a continuidade quanto para a transformao do cdigo de comportamento: apesar do gradiente entre formalidade e informalidade ir se reduzindo no decorrer do desenvolvimento social alemo, regras de conduta tradicionais das elites da antiga classe mdia e certos valores da aristocracia ainda permaneciam vivos, e em alguns casos, props Norbert Elias, como determinados grupos de empresrios, chegavam a combinar regras de conduta humanistas com os valores tradicionais aristocrticos. Sander, proveniente de famlia operria, vai compor esta nova classe mdia aderindo s regras de conduta dessa burguesia.
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destinada realizao dos retratos. A relevncia dessa imagem est: 1) na representao que
Sander faz de sua famlia, uma vez que tem como pano de fundo a coeso familiar e sua
consolidao como integrante da classe mdia social e comercialmente bem sucedido; 2) na
representao de um ambiente familiar erudito, onde o lazer e a harmonia so intermediados
por sesses musicais protagonizadas por August Sander tocando seu alade15; 3) e