rqs 2006 - sensibilidade extrema - maite schneider

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Page 1: RQS 2006 - Sensibilidade Extrema - Maite Schneider

Não é difícil reconhecer Maitê Schineider. De grandes olhos azuis e cabelos pretos, não é somente pela beleza que ela chama atenção: possuí uma sensibilidade extremamente transparente. Presidente da ONG União Brasileira de Transexuais, e vice-presi-dente do Núcleo dos Direitos Humanos do Movimento Pro-Pa-raná, Maitê é vista, nos últimos anos, em cima de um trio elétrico, animando as pessoas e convidando-as a participar da Parada da Diversidade, evento realizado há cinco anos em Curitiba. Mas ela não tem somente estes méritos para se destacar perante toda uma sociedade que ainda é repleta de discriminação e preconceitos.

Hoje, com 33 anos, Maitê não se considera homossexual e, sim, uma transexual. A diferença é que ela nasceu com uma identidade de gênero diferente da que lhe foi imposta: uma cabeça de mulher em um corpo perfeito de homem. Complicado? Nem tanto. O transexual é enquadrado junto com a travesti na identi-dade de gêneros diversas, diferente das que teve de nascimento. A orientação sexual destes dois gêneros pode variar entre homo, bi, heterossexual e ainda as assexuadas (não tem atuação sexual).

Desde criança, Maitê já sabia que era uma criança diferente daquela que a família queria: nasceu Alexandre, ganhou roupas azuis, bolas, carrinhos. E ainda se dava ao luxo de escolher quais brinquedos queria, pois era o irmão do meio, tendo um outro irmão mais velho, e uma irmã mais nova. Como criança inocente, que não conhece a malícia adulta da clara distinção de sexos, é claro que preferia brincar de fazer chazinho com a irmã.

Em relação à família, o pai sempre deixou claro que condenava tudo quanto é tipo de homem que aparecia de tanga comemoran-do o carnaval na televisão: “Ele dizia que tinha que colocar esses homens no paredão e exterminar. E eu ficava com os olhos arrega-lados de medo!”, lembra-se. Com 16 anos, começou a freqüentar uma boate gay – e lembra-se que eram tempos complicados, pois a maioria dos estabelecimentos eram escondidos – e claro, por ironia do destino, uma amiga do irmão que acabou a vendo, contou para o irmão, que contou para o pai. Este último veio tomar satisfações e antes de responder, o então adolescente Alexandre pensou: “O que eu tenho a perder? Se eu falar que fui, que era eu, vou levar um tabefe na cara, e vou perder um quarto que tenho na casa dos meus pais, vou ser mandado embora, vou começar minha vida. E eu só tinha 16 anos. Não tinha nada construído mesmo”. Acabou falando a verdade e, surpresa, viu que o pai aceitou compreensi-velmente. E ainda hoje é seu maior anjo protetor.

O resto da família se fechou totalmente, recriminando o pai com frases do estilo “você está apoiando esta sem-vergonhice, incentivando que isso continue, isso não é correto.” A mãe foi a principal pessoa contraria. “E eu achei que seria a principal a favor. Ela falou que tinha vergonha de andar comigo na rua. E nesse ‘tenho vergonha’, é como se tivesse uma faca cortado o cordão umbilical”, explica. A partir deste momento, ficaram 10 anos sem se falar, desde os 16 até os 26 anos de idade.

Sensibilidade Extrema

POR a.baldini fOtOs a.baldini, Kass GRaCiEla E WWW.CasadaMaitE.COM

a Parada da diversidade de Curitiba teve a concentração

em frente à Universidade

federal do Paraná em 2005, com

um total de 60mil participantes.

Os organizadores do evento

esperam, para este ano, um total de 70mil pessoas.

Social

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a REaPRoXiMaÇÃo PEla WEB Com o apoio do pai, Maitê começou a se

descobrir devagar: a primeira relação sexual foi com 18 anos, quando estava bem definida na ca-beça o queria, quem era e como queria seguir a vida. Mas como toda pessoa, precisava trabalhar: tinha boa aparência, simpatia, conseguia destacar-se nas entrevistas de emprego. Mas na hora de levar os documentos para o contrato de trabalho, era sempre negado. “Sempre me diziam que iriam ligar, e o telefone nunca tocava”. Então, o pai lhe deu um computador. Começou a ganhar dinheiro digitando teses e trabalhos escolares até que, em 1997, foi apresentada à internet: “Fui para o chat, comecei a descobrir páginas, saber das coisas sem ir para a biblioteca e sem tomar chuva” E foi pela troca de e-mails com pessoas que ela conheceu pela rede, respondendo as curiosidades de sua própria história, que decidiu montar um site pessoal. Com o tempo, as perguntas começaram a ir mais além: dúvidas em relação a este ou aquele problema, conselhos, entre outros. No começo, respondia e-mail por e-mail, ia atrás de respostas para os in-ternautas. Começaram a se aproximar profissionais como médicos e especialistas no assunto e, logo o site se transformou em um portal direcionado para o assunto, que trata não somente de sexualidade, mas também de identidade, descobertas, entrete-nimento e diversão. “É para a pessoa se sentir em casa mesmo, permitindo que ela se abra, mesmo que não queira estar se identificando”.

Lá pelo o ano de 2000, a mãe de Maitê ganhou um computador. Logicamente, como todo coração de mãe que ama, acessou o endereço virtual da filha e começou a conhecer melhor a transexual que tinha na web a história da sua vida como um livro aberto. Depois de muitos acessos, começou a conhecer realmente quem era a pessoa que criou, que não se corrompeu com valores que julgava errados e que, ainda por cima, ajudava as pessoas. Claro que uma leve mágoa ainda habitava no pensamento da senhorita Schineider de olhos azuis, mas nada que uma boa conversa, pedido de desculpas e lágrimas resolvessem. E ainda foi além: a mãe de Maitê queria ajudá-la de alguma forma. Então tiveram a idéia de criar uma seção no site chamada “Mãe Virtual”, na qual ela a ajuda responder dúvidas de outros pais e anônimos que tiveram o mesmo problema de discriminação que ela teve no passado. Faz tanto sucesso, hoje, que conta com a ajuda de mais quatro mães.

O site é um sucesso. Maitê o desenvolve so-zinha e passa 14 horas na frente do computador, respondendo mais de 200 e-mails por dia. Em seu portal, é possível achar conteúdo claro sobre pais que têm medo de diálogo com seus filhos, além de “mostrar que é possível existir felicidade mesmo remando contra uma sociedade que ainda discri-mina muito, que é muito preconceituosa e que isso

tudo pode acontecer com qualquer um”, complementa.

oS PRoJEToS PESSoaiS

Maitê estudou a vida inteira

em um colégio tradicionalíssimo de Curitiba. Tentou Odontologia e não passou, depois, tentou Direito na Faculdade de Direito de Curitiba, onde cursou 2 anos e meio, mas trancou. “A faculdade era muito conservadora. Eu tinha uma turma maravilhosa, que me entendia, mas com professores extremamente cruéis, que não aceitavam me chamar de Maitê porque na chamada estava Alexandre. Acabei fazendo vestibular em Letras na Federal e fui levando as duas juntas. Mas como as faculdades exigiam muito, e eu estava começan-do a descobrir experiências pessoais como namorar, acabei parando.”

Mas para quem pensa que ela nada fez para crescer pessoalmente, engana-se. Começou a trabalhar como voluntária, ajudando pessoas que sofreram o que ela passou, sendo totalmente solidária, intercedendo de maneira construtiva e positiva nos projetos sociais de ONGs e partidos políticos. “Então eu comecei a ver que era disso que eu gostava, pois não precisava de títulos para ser alguém”. a PaRaDa Da DiVERSiDaDE

Maitê interpretando a prostituta ludmilla na peça “O

santo”, de Edson bueno.

abaixo, Maitê e beto Kaiser na Parada da diversidade de

2004 cujo tema foi a paz.

37 05/06 / 2006

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Um grande evento não é construído sozinho. A Parada da Diversidade começou a ser realizada em Curitiba há cinco anos, organizada pela ONG Impar 28 de Junho. A idéia não era somente fazer uma parada gay, pois o Impar não atende somente os homossexuais, mas também negros, catadores de papel, mulheres, ciganos, índios, entre outras minorias. A idéia é reunir todos os que são discriminados pela sociedade e que sejam inseridos nesta forma de protesto, na qual todas as bandeiras são levantadas para que a imprensa os notem, nem que seja durante um único dia. “Há muito mais coisas que nos unem do que nos separam e, nessa lógica, temos lutas semelhantes, um único ideal de igualdade”, relata Maitê, que começou a convidar o povo na rua em 2000, juntamente com Beto Kaiser, presidente do Impar, sobre um salto alto enorme e sob a clássica chuva de Curitiba. Uma grande vitória: mesmo de capuzes, guarda-chuvas e até mesmo molhados, conseguiram sensibilizar 2 mil pessoas. No ano seguinte, 10 mil.

Nos anos seguintes, as pessoas já apareciam coloridas e outros movi-mentos começaram a participar de maneira muito mais efetiva. Em 2005, chegaram à marca de 60 mil participantes. “As pessoas não estavam ali por causa de uma festa, de um carnaval de rua. Elas estavam representando uma consciência de movimento, pois sabem que estavam fazendo a diferença”, relata Maitê. “A Parada não é feita para aqueles 60 mil que estão ali - porque estes são os felizardos, que já conseguem, mesmo com máscara, ou então escondidos no canto da rua, estar presente e levantando o braço, dizendo “estou com vocês, faço parte disso”. Todos que fazem a parada pensam nos milhões que não podem estar lá por causa da sociedade, família, religião, medos e preconceitos internos que elas têm consigo mesmas. Quando eu olho aquela multidão na frente, eu olho milhões de invisíveis que estão encaixotados. É muita responsabilidade! E este espaço sempre tem que continuar”, diz .

Maitê é assim: sofreu com o preconceito (até da própria mãe), mas nunca se colocou no papel de vítima. O fato de, anos depois, a família ter aceitado sua posição, ter pessoas que a amam e ter uma fonte de trabalho, não a fizeram ficar acomodada, deixando de pensar no próximo. Pelo contrário, sensibili-zou-a ainda mais, transparecendo com grande nitidez a sede de mudanças, batalhando por uma causa, seja ela da nobreza e grandeza que for. “Eu acho que, quando você trata as pessoas como iguais, respeitando as diferenças de cada uma, aí é que você conhece amigos”, revela entusiasmada.

TEaTRo REaliSTa

Maitê também se consagra como atriz. Sua estréia teatral foi na peça de Alexandre Linhares, intitulada “Jesus Pra Cristo” – uma das mais polêmicas do Festival de Teatro de Curitiba 2005 –, na qual representou Maria (mãe de Jesus). No fim do mesmo ano, Maitê estreou “O Santo”, dessa vez dirigida por Edson Bueno. A peça conta a história do escritor Ulisses e da prostituta Ludmilla (Maitê). O texto é repleto de sadomasoquis-mo e fetiches sexuais, além de apresentar desejos homoeróticos de Santo Expedito, um dos mais reverenciados pela cultura popular. Atualmente, Maitê é a protago-nista de “Febre”, com direção de Gerson Delliano, peça que fez parte do Festival de Teatro de Curitiba deste ano. Ambientada em uma piscina, o enredo reflete regras e normas que disciplinam vidas e relações, abusando do simbolismo. Conta a história de dois irmãos que ritualizam eternamente o enterro de sua mãe. Com a chegada de um parente distante, as três personagens vão revelando aos poucos seus segredos, angústias e desejos. Maitê interpreta Isabel, mulher viajada que percorreu o mundo e volta para trazer o que experimentou em terras distantes. “Ela vive tentando achar respostas às suas perguntas e dificilmente as encontra. A aparição de Isabel na peça é justamente para tentar responder suas inquietações, bem como colocar os demais personagens a pensar e refletir seus atos repetidos”, explica Maitê.

Cenas de “febre”, história contada em uma piscina.

Parada de 2005: Maitê (de saia

vermelha) no trio elétrico incentiva

o respeito e a dignidade, sendo

destaque do evento desde 2000.