russell p. shedd e alan pieratt - imortalidade
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Russell P. Shedd
Alan Pieratt
editores
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IMORTALIDADE
Russell P. Shedd
Alan Pieratt
editores
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Capa • Sé r g io
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CONTEÚDO
Prefácio dos e d ito re s ................................................................... 7
Introdução.................................................................................... 91. Leon Morris: A Doutrina do Julgamento na B íb li a ..................... 17
2. R. V G. Tasker: A Ira de Deus .....................................................65
3. James I. Packer. Nem Todos os Homens Serão S a lv o s ............. 103
4. James I. Packer. A Morte ............................................................1155. Vemon C. Grounds: O Estado Final dos ímpios......................
131
6. Jacques Ellul: Yahweh-Shammah —O Senhor Está Ali . . . .151
7. Donald Guthrie: A Vida Após a M o rt e ....................................... 183
8. Alan B. Pieratt: Pensando no C é u ................................................2279. Oswald J. Smith: Testemunhos no Leito de M o r te ...................249
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PREFÁCIO DOS EDITORES
Há mais de trinta anos Edições Vida Nova lançou o livro intitulado Imortalidade, de Lorraine Boettner. Apenas mil exemplares foramimpressos em Portugal, e logo a edição se esgotou.
Finalmente sai do prelo a nova coleção de ensaios sobre a
escatologia pessoal, também intitulada Imortalidade. Há muito tempo
sentíamos falta de um livro que reunisse informações sobre os temasaqui tratados. Sobre alguns deles, como por exemplo o estado
intermediário, a Bíblia lança pouca luz. Mesmo assim, são as Escrituras
que fornecem o fundamento sobre o qual os autores (na maioria muito
conhecidos e respeitados) construíram sua visão da morte e da vida doalém.
Certamente haverá perguntas que não serão respondidas. A Bíblia,nossa única fonte de revelação sobre a existência pessoal após a morte,
mantém silêncio em algumas áreas sobre as quais gostaríamos muito desaber. Mas, diante do imenso desafio das freqüentes reivindicações de
“profetas” e “visionários” que divulgam “revelações” do céu, do inferno
e do estado intermediário, com o mínimo de conteúdo bíblico ou
mesmo nenhum, somos gratos a Deus pelo privilégio de oferecer aos
estimados leitores uma coletânea tão equilibrada e bíblica.
O incontestável valor de conhecer e meditar na esperança do futuro
que todos aguardamos tem sua confirmação nas palavras de Paulo: “Por
isso não desanimamos: pelo contrário, mesmo que o nosso homemexterior se corrompa, contudo o nosso homem interior se renova de dia
em dia... não atentando nós nas cousas que se vêem ... são temporais, e
as que se não vêem são eternas” (2 Co 4.16,18).
Homens grandemente usados por Deus, em especial Richard
Baxter (autor de O Pastor Aprovado), meditavam com regularidade na
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8 • IMORTALIDADE
vida além desta na carne, encontrando grande conforto e ânimo para
continuar em seu labor prodigioso e também escrever seu famoso livroThe Saints’Everlasting Rest (“O Descanso Eterno dos Santos”).É nosso desejo e petição a Deus que o prezado leitor seja edificado
pela leitura de Imortalidade.
A Deus seja toda a glória!Russell P. Shedd, Ph. D.
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INTRODUÇÃO
Entramos em águas profundas quando estudamos a natureza daimortalidade e da vida após a morte, pois estamos esquadrinhando além
do final do mundo presente e o início de uma nova ordem. Somos comoos judeus piedosos da época do Antigo Testamento, que estudavam
com cuidado as visões de seus grandes profetas, tentando entender as
promessas a respeito do Messias e de Seu Reino (cf. 1 Pe 1.10). Quandoconsideramos o fim dos tempos a partir de nossa própria época na
história, nossa posição aproxima-se muito da deles. Vivemos antes documprimento daqueles grandes eventos preditos para o fim e, portanto,
não entendemos o significado de tudo o que está escrito. Estudamos as
promessas com afinco, mas sabemos que, em algumas partes, nosso
entendimento é obscuro e incerto. Como disse Paulo, vemos o reinovindouro como que por um espelho escuro e distorcido (1 Co 13.12).
Mas, assim como os homens fiéis de antigamente, nós cremos,esperamos e estudamos.
Em outro sentido, nossa posição não é igual à dos judeus da época
do Antigo Testamento, porque podemos olhar para trás e ver de que
forma se cumpriram aquelas profecias acerca da vinda de Cristo como
o “servo sofredor” (Is 53.11). Essas profecias cumpridas chegam a
centenas e oferecem um forte incentivo para que se estude com muito
mais cuidado as que ainda se encontram no futuro, pois certamente elastambém se cumprirão de forma literal. Todas as profecias, sejam
aquelas cujo cumprimento está hoje no passado ou as que ainda não se
concretizaram, fazem parte de um plano divino que está se
desenvolvendo no tempo. Aqueles eventos que pareciam tão distantes
para os judeus do Antigo Testam ento surgiram no horizonte,
aconteceram no devido tempo e então transformaram-se em passado.
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10 • IMORTALIDADE
Aquilo que eles aceitaram como promessa acerca do Messias, nós
conhecemos por história. O que lhes parecia estar no futuro tão distanteagora repousa em nosso passado remoto. O mesmo acontecerá com as
profecias cujo cumprimento ainda permanece em nosso futuro:surgirão no horizonte, acontecerão no devido tempo e repousarão no
passado. Algum dia, os fiéis estudiosos das Escrituras examinarão como
história as profecias a respeito das últimas coisas, e tudo o que o texto
diz e sugere estará perfeitamente claro, pois eles poderão comparar o
que foi escrito com o fato real.Portanto, a própria natureza do tempo é essencial para nosso
estudo. Todas as crenças cristãs acerca do futuro e do mundo vindouroestão fundamentadas na pressuposição de que Deus está conduzindo ahistória para cumprir um plano predeterminado dentro da história. Issoé essencial para se entender a Bíblia. Obviamente, há desacordos
quanto aos detalhes sobre como algumas profecias bíblicas devem ser
entendidas. Nem todos concordam em questões como o momento do
arrebatamento, a natureza do milênio, a condição do homemconvertido durante o estado intermediário, ou a maneira como Deus
irá cumprir as promessas feitas a Israel. Mas todos os teólogosevangélicos concordam em que o tempo está avançando rumo ao clímax
do plano de Deus para os séculos. As passagens proféticas da Bíblia
provam que esse plano está estabelecido na mente de Deus. Dentro dos
eventos da história da salvação, nada é aleatório (cf. Rm 5.6). O próprio
fato de as predições feitas na Bíblia ocorrerem mais tarde, exatamente
como haviam sido profetizadas, demonstra esse ponto com precisão. Não admira, portanto, que as três características centrais do plano
de Deus para os séculos sejam todas ligadas ao tempo. O plano de Deus
é, antes de tudo, histórico. Isto significa que os eventos que o compõem,
tais como a cruz e a ressurreição de Cristo, não são mitos que ocorremapenas no âmbito mágico ou imaginário do eterno. São eventos reaisque acontecem no tempo real. Em segundo lugar, o plano de Deus é
direcional, ou seja, avança no tempo, com os eventos se cumprindo unsapós os outros, na devida ordem. Os eventos anteriores fornecem ofundamento para os que vêm depois. Por exemplo: Cristo teve de sofrer
antes de poder levar “cativo o cativeiro” e “conceder dons aos homens”
(Ef 4.8). Por fim, o plano é teleológico, isto é, está avançando para um
fim determinado em que se julgará o mundo presente e se criará umanova ordem.
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INTRODUÇÃO • 11
Estes três aspectos da história da salvação podem ser visualizados
em um quadro negro, traçando-se uma linha simples com uma seta naextremidade direita. A linha representa o tempo e seu movimento em
direção ao futuro. Os acontecimentos bíblicos que fazem parte desse plano podem ser colocados em certos pontos da linha, para representar
o momento em que ocorreram dentro da história. Pode-se incluirqualquer quantidade de eventos, de acordo com o grau de
detalhamento a que se deseja chegar. No mínimo, devem-se incluir acriação, o chamado de Abraão, o êxodo, a cruz, a volta futura de Cristo
e o clímax final, no dia do julgamento e da criação de um novo céu euma nova terra. A cruz no centro da linha é vital para se compreender
o sentido do todo. Os que viveram antes de Cristo olhavam para a cruz,
à frente, buscando a resposta para sua necessidade de salvação. Os quevivem depois da cruz voltam-se para trás, e nela buscam a resposta que
foi graciosamente proporcionada por Deus. Ela é o padrão pelo qual
se julga toda a história e quem dá significado ao processo todo.Deve-se ressaltar aqui que o tempo é o veículo do plano de Deus
para as eras e que existe uma forma correta e uma forma incorreta de
encará-lo. A Bíblia não contém nenhuma indicação de que algum
evento ali registrado não seja plenamente temporal e histórico. Apesar
disso, ultimamente tem sido comum pensar o contrário em relação a
muitos deles, como se não tivessem ocorrido ou não fossem ocorrerdentro do tempo real; como se fossem lendas ou mitos; ou um misto de
memória e imaginação. Em parte, esse erro ocorre por causa da
tendência de conceber o tempo como algo que se contrapõe àeternidade. Desde as primeiras décadas da Igreja, há os que têm uma
inclinação para entender o tempo e a eternidade como se fossemopostos entre si, como se a eternidade fosse uma condição em que não
existe tempo. Mas essa é uma concepção grega e não cristã do mundo.
Os gregos pensavam que o cosmos possuía duas dimensões: uma
superior e outra inferior. Imaginavam que a dimensão maior era
atemporal, eterna e perfeita. A dimensão menor seria o mundo das
mudanças, em que a natureza se movia em círculos intermináveis derecorrências. Por essa razão, o bom e o perfeito só poderíam ser
encontrados no âmbito da eternidade, pois aquilo que é perfeito não
pode mudar com o tempo, devendo permanecer imutável. Isto se
aplicava também a Deus. Em sua perfeição estática, Ele não podia
modificar nem adentrar o mundo mutante do tempo real. Portanto, o
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12 • IMORTALIDADE
alvo e a sina do homem seria escapar do tempo e encontrar a realização
na eternidade.Essa maneira de pensar tem sido muito influente na teologia cristã
desde a igreja primitiva. Foi a razão principal de os teólogos da Idade
Média não terem nenhum interesse pelo aspecto histórico docristianismo. Eles se concentraram nos ensinos cristãos, em detrimento
dos eventos, pois entendiam que só os ensinos eram eternos e, portanto,
essenciais. Para verificar isso, basta considerar o fato de que não se
escreveu nem um texto sobre a vida de Jesus durante todo o período de
mil anos da era medieval. Hoje, o protestantismo liberal adota um ponto de vista semelhante. O aspecto temporal do cristianismo é
minimizado porque tudo o que é histórico é considerado relativo. Todoe qualquer valor do cristianismo deve ser buscado em seus ensinosformais, pois seus eventos históricos não podem ter importância
universal.Basta aqui levantar apenas dois pontos à guisa de resposta. Antes
de mais nada, na Bíblia, os acontecimentos do passado sempre são
retratados como eventos concretos, assim como as profecias acerca do
futuro sempre são descritas como histórias reais que ainda vão ocorrer.
A Bíblia nunca insinua outra coisa, senão que um dia Cristo virá em Sua
glória, de um modo tão real e literal quanto foram Seus sofrimentos no
passado. Portanto , qualquer tentativa de interpre tar as profecias
bíblicas de forma atemporal, como se representassem algum tipo decumprimento ou bênção espiritual é alheia à Bíblia. Em segundo lugar,
a idéia de eternidade não deve ser entendida em contraste com o tempo.A idéia bíblica de eternidade não é de ausência de tempo, mas de
extensão ilimitada de tempo, uma sucessão infinita de eras (cf Ef 2.7 e1 Tm 6.19). A era presente é limitada em sua duração, tendo um começo
e um fim. A era futura só é limitada em um extremo, tendo um começo,
mas não tendo, pelo que sabemos, um fim; ao menos, não há limites
estabelecidos para ela. Por conseguinte, quando a Bíblia fala do
“presente século” e da “era vindoura”, isso não quer dizer que o tempo
dará lugar a um período atemporal em que nada acontece e tudo
permanece como está. A Bíblia desconhece um Deus atemporal ou um
céu sem acontecimentos. A era vindoura está sendo preparada agora,
chegará em algum determinado ponto do futuro e será repleta de
atividades significativas.Portanto, apresentamos os artigos deste livro enfatizando que a
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INTRODUÇÃO • 13
Bíblia contém sua própria filosofia de história, em que o aspecto-chave
é o cumprimento dos eventos predeterminados dentro do tempo. Esseé o pensamento que une os acontecimentos que serão tratados aqui,
incluindo a própria morte, a ressurreição dos mortos, o estadointermediário, o dia do julgamento, a ira de Deus, a chegada da nova
cidade de Jerusalém e a natureza da vida com Deus. Tudo ocorre como parte de um plano que existe desde o início. Esses grandes eventos e
mudanças virão a nós do futuro e ocorrerão com toda certeza, da mesma
forma como o Messias prometido veio. Como o último de nossos artigos
salienta, também não são eventos distantes, que não têm relação diretacom nossa vida. Todos nós avistamos as “últimas coisas” quando
contemplamos a morte, seja ela a nossa ou a de algum ente querido, pois a morte de uma pessoa a conduz diretamente à presença de Deus
e à existência do mundo vindouro. Portanto, essas coisas que chamamos
de “últimas” são dignas “hoje” de um estudo cuidadoso.
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1 Alan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Em uma coletânea de artigos sobre as últimas coisas, como a que
se encontra neste livro, os assuntos poderíam muito bem ser ordenadosde acordo com a cronologia. Nesse caso, primeiro consideraríamos a
morte em si, então o estado intermediário, depois o dia do julgamento,
depois o céu e o inferno e, por fim, o novo céu e a nova terra.Escolhemos uma seqüência um tanto diferente, começando com doisartigos que, primeiro, discutem o dia do juízo e, depois, a ira de Deus.
Esses artigos básicos são, então, seguidos por outros, que descrevem as
conseqüências do julgamento (condenação ou salvação) e, finalmente,
alguns artigos acerca de outros aspectos da vida após a morte, tais como
a ressurreição, o estado intermediário e o céu propriamente dito.
De certa forma, este primeiro artigo escrito por Morris é a nau
capitânia ou a pedra angular desta coleção, pois a doutrina do dia do juízo é o ponto de mudança das eras. Ele está situado tanto no final da
era presente como no início da vindoura. Além disso, quase todas asdoutrinas estão ligadas de alguma forma à promessa de um julgamento
final, quer tratemos da eleição, do livre arbítrio, do pecado original, do
alcance da expiação etc. Todos os conceitos teológicos encontram seu
ponto final lógico nessa noção singular de um julgamento absoluto. O
que emerge do outro lado é uma ordem diferente, em que a tensão entreo “é” e o “deve ser” desapareceu para sempre.
A perspectiva de Morris acerca do dia do julgamento é exegética e
não teológica. Ele examina com zelo, tanto no Antigo como no Novo
Testamento, cada uma das palavras que fazem parte do grupo vocabular
em torno da idéia do julgamento. Ele só tira suas conclusões depois de
analisar inúmeros textos cuidadosamente. Duas delas merecem ênfase
aqui na introdução. A primeira é que a promessa de um dia final de
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julgamento une os testamentos. No Antigo Testamento, a idéia de queo ato de julgar faz parte da natureza de Deus é repetida várias e váriasvezes como um ponto fundamental. No Novo Testamento, é um ensinodado por certo. Não é algo que precise ser defendido, mas uma doutrinaque serve como base para outras defesas. É tida como ponto pacífico
para todos os cristãos, algo que não se discute (Hb 6.2). Em segundolugar, Morris mostra que a idéia de que todos os nossos atos serãoexaminados, a ponto de se verificar se demos ou negamos um copo deágua (Mt 10.42), é uma espada de dois gumes que pode amedrontar ou
motivar. Ela amedronta porque é totalmente minuciosa, e o padrão deconduta é muito alto. Mas ela também motiva, porque imprimedignidade até nos atos aparentemente insignificantes realizados noserviço de Cristo.
Publicado originalmente como The Biblical Doctrine of Judgment por The Tyndale Press, na Inglaterra, em 1960. Tomamos a liberdade de eliminar as notas de rodapé para possibilitar a reprodução do texto completo. Traduzido por Gérson Dudus e Lucy Yamakami.
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1 Leon Morris
A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA
I. O JULGAMENTO NO ANTIGO TESTAMENTO: SHAPHAT
No Antigo Testamento, a idéia básica de julgamento pode serresumida de uma forma bem simples nas palavras de Deuteronômio
1.17: "... o juízo é de Deus”. Isto não nega que haja, no AntigoTestamento, muitas referências ao julgamento do homem tanto quantoaos de Deus. Na verdade, é provável que, se pudéssemos reconstituir ahistória da palavra até sua mais remota origem, poderiamos descobrirque, em seu primeiro uso, referia-se ao julgamento que os homensexercem. Então, quando sua própria prática lhes deu o conceito de
julgamento, eles começaram a aplicá-lo aos poderosos atos de Deus e
a pensar nEle como alguém ativo no julgamento. Mesmo assim, precisamos te r em mente que, pelo que sabemos, o julgamento (ou“justiça”, “juízo”, dependendo da tradução adotada) nunca foi um
processo puramente secular. Desde os tempos mais antigos, era umaatividade religiosa. Moisés podia dizer: “... o povo me vem a mim paraconsultar a Deus... para que eu julgue entre um e outro” (Êx 18.15,16).O julgamento era uma atividade de um “homem de Deus”.
Seja qual for a ordem cronológica correta, não pode haver dúvida
de que, em qualquer caso, em termos teológicos, o elemento divinoocupa o lugar de maior importância na religião evoluída do AntigoTestamento. O julgamento, como os hebreus vieram a entendê-lo, é,antes de mais nada, uma atividade de Deus. Javé é “um Deus de justiça”(Is 30.18) ou ainda “o Deus do juízo” (Ml 2.17). O julgamento é a Sua
própria atividade, porque ninguém “lhe instruiu na vereda do juízo” (Is
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18 • IMORTALIDADE
40.14). Ele “faz” o julgamento e é confiável quando assim age (Gn18.25). Ele ama o juízo (Is 61.8). O julgamento Lhe é tão natural quanto
os movimentos para os pássaros (Jr 8.7). “Todos os seus caminhos são juízo” (Dt 32.4). O julgamento (juntamente com a justiça) é “a base doseu trono” (SI 97.2). Paralelamente, por nove vezes Javé é denominado“Juiz”. Abraão chama-O de “Juiz de toda a terra” e apela a Ele,confiando nessa característica: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?”(Gn 18.25). De maneira semelhante, Jefté pôde dizer: “... o Senhor, queé juiz, julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amom” (Jz11.27). O salmista ora corajosamente: “Exalta-te, ó juiz da terra; dá o
pago aos soberbos” (SI 94.2).Passagens como essas não deixam dúvida de que o AntigoTestamento associa intimamente o julgamento com o Senhor. É Suafunção. Ele se envolve no julgamento, e os homens sabem que Ele ofaz. Podem apelar a Ele em sua condição de juiz. Sua atividade judicialnão está limitada a Israel. Ele é “o Juiz de toda a terra”. Mas, como
poderiamos esperar, são suas atividades em relação ao Seu próprio povo que recebem mais atenção.
1 • A idéia fundamental: algumas sugestões
Tudo isso não nos diz exatamente o que os hebreus do AntigoTestamento entendiam por julgar. Considerando que estava associadoao Senhor e ao serviço que os homens deveríam oferecer-Lhe, qual erao entendimento exato que os hebreus tinham do termo? Não se pode
dizer que os estudiosos alcançaram um consenso nesse ponto.Podem-se discernir três linhas principais de abordagem, aquelas quevêem como idéia principal o governo, o costume e o discernimento.Examinaremos uma por vez.
A. Julgamento e governo
Não há dúvida de que “julgar” não está muito longe de “governar”.Isto impressionou tanto certos estudiosos que eles concluíram que“governar” é a idéia básica de shaphat e que a idéia de julgar ésecundária. H. W. Hertzberg e V. Herntrich podem ser citados comoaqueles que sustentam esse ponto de vista. C. H. Dodd parece aceitarisso como algo axiomático. O fundamento para tal é encontrado nas
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 19
passagens bíblicas que ligam intimamente as duas idéias. Desse modo,quando o povo queria que Samuel lhe desse um rei, disse:
constitui-nos... um rei sobre nós para que ele nosjulgue, como o têm todasas nações” (1 Sm 8.5 ARC). Novamente, no início de seu reinado,Salomão orou: “Dá, pois, ao teu servo coração compreensivo para
julgar a teu povo” (1 Rs 3.9; çf. 2 Cr 1.11: “para poderes julgar a meu
povo, sobre o qual te constituí rei”).Mas é possível que a prova mais importante desse ponto de vista
seja encontrada no livro de Juizes. A função das pessoas cujo título dá
nome ao livro não era basicamente legal. Apesar de não haver razão para duvidar de que aqueles homens, em algumas ocasiões, exerciam
funções que reconheceriamos como a de um juiz, a função principal era
outra. Acima de tudo, eles eram libertadores, homens levantados porDeus para atender necessidades específicas e libertar a nação em certas
épocas de opressão. Como resultado de seus sucessos militares, foram
aceitos como líderes e governantes do povo. Quando se diz que talhomem “julgou” a Israel, isto significa, para todos os efeitos, que ele
governou a nação.Entretanto, mesmo aqui, o termo “juiz” não é exatamente sinônimo
de “governante”. Daniel-Rops define-o como “aquele que protege pormeio da justiça”. Isso quer dizer que a palavra carrega uma conotação
muito forte de “direito”. Não denota poder sem fundamento nemrestrições, mas poder voltado para fins corretos. A idéia de governo se
faz presente; não há controvérsias quanto a isso. Mas, mesmo quando
a idéia de governo está presente e é dominante, a noção de justiçatambém aparece como uma ênfase secundária, mas fundamental. O“juiz” é mais do que um mero governante; é alguém cuja atividade é
devidamente descrita em termos de lei e justiça.
Não podemos menosprezar o aspecto religioso. Os juizes não
escolhiam a si mesmos, nem era o povo que os escolhia. O Senhor oslevantava (Jz 2.16, 18). A iniciativa divina reforça nossa convicção de
que há uma relação básica com a justiça, porque Suas ações são
consideradas justas. Desse modo, quando Débora cantou Seus triunfos,não estava pensando simplesmente em Seu poder e Sua força, mas nos
“atos de justiça do Senhor” (Jz 5.11). Javé age de acordo com o direito
fundamental. E, daqueles que Ele escolhe, espera-se que façam o
mesmo. Não há dúvida de que o grupo de palavras referentes ao julgamento
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20 • IMORTALIDADE
era aplicado tanto a atividades legais como governamentais. Umargumento contra a primazia desta última é o fato de não ser tão fácil
ver como isso podería te r dado origem à idéia de julgamento, como nocaso do processo inverso. Estabelecida a prática de dispensar um
julgamento legal, normalmente os líderes da comunidade exerciam essafunção. Sob a monarquia, o rei era o juiz par excellence. Ele constituíaa última corte de apelação. Apenas ele podia ser chamado “o juiz deIsrael”. Outros podiam julgar numa esfera mais limitada. Além do mais,o rei podia impor suas decisões judiciais, o que lhe permitia julgar demaneira especial. Desse modo, não é tão difícil ver como a idéia de“governar” podería ter origem na de “julgar”. Mas não é tão fácil vercomo uma palavra que significa “governar” podería vir a significar“julgar”. Um rei faz muitas coisas, e não há uma razão realmente boa
pela qual governar possa ser equiparada a uma delas, a saber, julgar.Também contra a idéia de precedência do conceito de “governar”
está o uso disseminado das palavras derivadas dessa raiz no sentido de“discernimento”. Elas são encontradas em toda parte no Antigo
Testamento, enquanto a idéia de governo se acha principalmente nolivro de Juizes e em relação a Salomão (há pouquíssimas referências aogoverno em outros lugares). Essa distribuição seria improvável se ogoverno fosse prioritário e o julgamento nada mais do que um conceitoderivado.
B. Julgamento e costume
A segunda interpretação da raiz vê a idéia básica no costume. A leiadapta-se ao precedente, e este ao costume estabelecido. Sem dúvida,o substantivo mishpat é usado dessa maneira com freqüência. Assim,lemos no Salmo 119.132: “... tem piedade de mim, segundo costumasfazer (lit. “de acordo com mishpat”) aos que amam o teu nome”. EmJerico, os israelitas “da mesma sorte” ( mishpat) rodearam a cidade setevezes” (Js 6.15). Há um mishpat “para todo propósito” (Ec 8.6). Esse
mishpat não se limita a Israel. Os sacerdotes de Baal em sua competiçãocom Elias “se retalhavam com facas e com lancetas, segundo o seu
mishpat” (1 Rs 18.28). 1 Samuel 8.11-17 dá uma explanação detalhadado mishpat contra o qual Samuel adverte o povo. É instrutivo tanto emsi mesmo quanto como sinal de que Israel não devia seguir todos os
mishpat. Seu mishpat era o que fluía da relação entre Javé e a nação.
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 21
Todos os outros mishpat deveríam ser evitados. N. Snaith é um dos que vêem, nessa associação com os costumes, a
idéia básica de todo esse grupo vocabular: “A idéia principal, de acordocom o uso, é de julgamento pelo costume, pois a função de um juiz édecidir de acordo com os costumes ou precedentes”. Ele diferencia o
mishpat torah, dizendo que o primeiro é uma decisão em que há um precedente a seguir, enquanto o outro é revelado “por sacrifícios ouoferta sagrada se for um sacerdote, por sonho, êxtase ou visão, se forum profeta cultuai. Mas Snaith não desenvolve esta idéia até sua
conclusão lógica. Ele teria de dizer que “nenhum juiz, fosse sacerdoteou profeta, podería proferir qualquer julgamento que não fosseconsiderado a palavra de Deus autêntica”. Essa concessão éimportantíssima. Para os homens do Antigo Testamento, a ligação comDeus era primordial. O costume é importante e, muitas vezes, não háuma boa razão para subverter a maneira estabelecida de fazer as coisas.Mas a idéia básica é a do relacionamento com Deus e não a deconformidade com os costumes humanos. É isto que invalida J.
Pedersen em sua afirmação de que a vontade de Javé “era determinada pelo conjunto total dos costumes israelitas, mishpat, e estava expressanas leis”. Por certo, isso é colocar o carro na frente dos bois. Não é anação e seus métodos que têm primazia no Antigo Testamento; é Deus.O primeiro dever da nação é obedecer a Seus mandamentos. O mishpat deve ser exercido dentro dessa estrutura.
Aqueles que tanto enfatizam o costume ignoram a dinâmica
revolucionária que caracteriza a religião do Antigo Testamento eencontra expressão no conceito de “julgamento”. Na Bíblia, não hánenhum indício da aceitação passiva do status quo tão característico dasreligiões politeístas. G. Ernest Wright, por exemplo, apontou que, naliteratura de sabedoria egípcia, faz-se um contraste entre o “homem passional” e o “homem silente”. “O último é o bem-sucedido, pois estásempre calmo e nunca perturba a ordem estabelecida.” O outro“destrói aquela integração harmoniosa na ordem existente, que é a
única efetiva”. Uma situação semelhante predominava em outroslugares. No mundo antigo em geral, havia uma preocupação de mantera ordem estabelecida, e tal preocupação era sustentada pela religiãooficial.
Em Israel, entretanto, o contraste está entre o justo e o ímpio.Quando o justo “julga” ele não preserva necessariamente a ordem
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24 • IMORTALIDADE
de Judá, a beleza te extraviou e o desejo perverteu o teu coração” (v.
56). A seu depoimento, Daniel responde: “Mentiste perfeitamente, tutambém, contra a tua própria cabeça. Pois o anjo de Deus estáesperando, com a espada na mão, para te cortar pelo meio, a fim deacabar convosco” (v. 59). O resultado do interrogatório de Daniel é quea falsa testemunha é revelada e Susana inocentada.
Essa história vivida mostra-nos um juiz nomeando a si mesmo,ainda que com a anuência da assembléia. Aparentemente, ele não tinhaqualificações especiais. Ele não esperou passivamente que as provas
lhe fossem trazidas, mas saiu atrás delas. Seu principal interesse não era perseguir algum conceito abstrato de justiça, mas livrar o fraco de umacondenação injusta. O fato de isso não ser uma atividade ética, masreligiosa, é indicado pela conclusão, quando a assembléia “prorrompeunum clamor em alta voz, bendizendo ao Deus que salva os que neleesperam” (v. 60).
Isto é julgamento, como entendiam os hebreus. Há uma atividade
básica de discernimento. Daniel discerniu entre os anciãos e Susana,entre as palavras dos anciãos e a verdadeira questão. Esse ato dediscernimento é fundamental ao significado de shaphat.
Mas julgar não significava apenas uma atividade mental de pesarevidências, de separar o falso do verdadeiro. O ato de julgar eraessencialmente dinâmico. Um israelita pôde dizer a Moisés: “Quem te
pôs por príncipe e juiz sobre nós? pensas matar-me como mataste oegípcio?” (Êx 2.14). Ao assassinar o egípcio, Moisés tomou uma atitude
que dificilmente consideraríamos digna de um juiz. Mas essa atitudeindicava uma paixão pelo direito, uma preocupação existencial com aexecução da justiça. O juiz não apenas descobria o que era correto, masagia para tal. Se não surgissem todas as provas, ele saía até encontrar oque faltava, para que fosse feita justiça, a verdadeira justiça. Dessemodo, o mesmo verbo pode significar “punir” e “libertar”. Quando Jeúexterminou a casa de Acabe, diz-se que ele executou “juízo contra acasa de Acabe” (2 Cr 22.8); por outro lado, o fiel pode orar: “Viste,Senhor, a injustiça que me fizeram; julga a minha causa” (Lm 3.59).“Julgar” e “julgamento”, nestes dois sentidos, são freqüentes no AntigoTestamento.
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 25
2 • Julgamento e ação
É preciso enfatizar que, venha de Deus ou dos homens, o julgamento é fundamentalmente dinâmico. Em sua base é um processo pelo qual alguém discerne entre o certo e o errado e age em função disso. Há uma disputa entre dois, uma determinação do que é direito e,então, a ação. O caráter dinâmico da palavra precisa ser realçado. Nãoé uma atividade intelectual executada com imparcialidade acadêmica.
Não é exercício de pesar evidências. É uma atividade de discernimento
e vindicação. Aquele que faz mishpat procura o ímpio para puni-lo e oreto para defender sua causa.
O julgamento não se limita aos assuntos legais. Na verdade, até podemos dizer que o uso realmente significativo do julgamento começaquando ele é separado de todas as funções legais e governamentais,sendo aplicado à conduta em geral. Ele é uma qualidade de ação. Váriasvezes, os homens são conclamados a “praticar a justiça e o juízo”, a
“julgar com justiça” e assim por diante. Estas não são exortações paraque se abrace a profissão jurídica. São meios de inculcar a verdade deque, no cotidiano de suas vidas comuns, os homens precisam exercer avirtude do julgamento, do discernimento. Isso não significa quesimplesmente devem discernir entre o certo e o errado. Devem fazê-lo,mas “praticar a justiça” significa que também devem seguir ativamenteo direito. Mishpat denota um “bem-agir” dinâmico. Não é uma açãocorreta qualquer, mas uma ação correta específica que tenha resultado
de um discernimento. Sempre existe uma idéia básica de distinguirentre o certo e o errado. Mas há também a idéia adicional de açãodecisiva como resultado de discernimento.
Isso deve ser visto especialmente na ajuda aos fracos, pobres eindefesos. O julgamento tem um aspecto salvífico. “Aprendei a fazer o
bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito doórfão, pleiteai a causa das viúvas” (Is 1.17). Passagens como essa levamKõhler a dizer:"... em hebraico, ‘julgar’ e ‘ajudar’ são idéias paralelas”.Zacarias apresenta assim as obrigações do homem: “Eis as coisas quedeveis fazer: Falai verdade cada um com o seu próximo, executai juízonas vossas portas segundo a verdade, em favor da paz; nenhum de vós pense mal no seu coração contra o seu próximo, nem ame o juramentofalso” (Zc 8.16, 17). O famoso resumo de Miquéias também inclui o
julgamento: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o
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Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça (lit. “exerça o
julgamento”) e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teuDeus?” (Mq 6.8).Essas passagens demonstram que praticar o julgamento é uma das
exigências básicas de Javé em relação a Seu povo. E Ele a coloca sobreSeu povo, porque Ele é essencialmente justo, justo no íntimo do Seuser. A justiça não é um assunto indiferente, mas de interesse passional.Por despertar um interesse tão intenso em Javé, o julgamento éessencial para a vida religiosa daqueles que chamam a si mesmos por
Seu nome. O homem que julga tem a devida consideração pela lei, não pela lei em geral, não por algum conceito abstrato de retidão ética, mas pela lei de Javé. O julgamento representa o desempenho de suaobrigação para com Deus. Isso ocorre necessariamente dentro dacomunidade da aliança, e desse modo está intimamente ligado com todaa idéia de aliança. De fato, G. Pidoux sustenta que, na Bíblia, “julgar éinseparável do conceito de aliança. Quando duas pessoas entram em
aliança, têm direitos e deveres mútuos. Elas são justas na medida emque observam as obrigações impostas pela aliança. Julgar é, acima detudo, agir de forma a manter a aliança”. O indivíduo israelita estavaligado a Deus e aos outros israelitas pelos laços da aliança. O
julgamento deve ser exercido nesse contexto. Não é por acaso que, comfreqüência, ele aparece associado a palavras como chesed e tsedeq, quesão fundamentais para todo o conceito de aliança. “Manter a ‘lei’ e a‘justiça’ é, portanto, cuidar para que as verdadeiras relações não sejam
perturbadas (mishpat) e que a integridade de cada homem dacomunidade seja pleriamente mantida ( sedaqah). Apenas desse modose faz plena justiça à demanda do chesed e continua existindo a relaçãode aliança entre as pessoas.”
Deus não deixa os homens para que estes produzam o mishpat porsuas próprias forças. Ele lhes dá a ajuda que necessitam, para que possaser visto como o Autor do mishpat entre os homens. Desse modo, no
caso específico de Salomão, o povo viu “que havia nele a sabedoria deDeus, para fazer justiça” (1 Rs 3.28). Josafá pôde dizer a seus juizes: “...não julgais da parte do homem, e, sim, da parte do Senhor, e no julgar-des ele está convosco” (2 Cr 19.6). O princípio geral é este: “Muitos
buscam o favor do que governa, mas para o homem a justiça vem doSenhor” (Pv 29.26). É bastante claro que o mishpat não é só resultadodo esforço humano. Quando aparece entre os homens, é dom de Deus.
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 27
As leis devem ser vistas sob esse ângulo. Com freqüência, traz o sentido
de “lei”, sendo, então, geralmente traduzido como “ordenança”. Estasnão são decretos arbitrários de um governante cheio de caprichos, nem
a expressão concreta de alguma lei abstrata. São a providênciamisericordiosa de um Deus que ama Seu povo, para lhe mostrar o
caminho certo e lhe dar a orientação que necessita quando procura
viver em Seu serviço. São o auxílio proporcionado por um Deus que
ama o mishpat e o faz para que Seu povo, por sua vez, possa também
praticá-lo.
3 • O julgamento do Senhor
Os escritores do Antigo Testamento insistem em que o Senhor está
julgando ativamente. Repetidas vezes, usam as várias palavras quesignificam julgamento para descrever Suas atividades passadas,
presentes e futuras. Hoje, poucos usariam espontaneamente uma
fraseologia legal para descrever suas relações com Deus. Há umaaversão ao “legalismo” e suspeita-se das categorias legais como meio
de explicar o relacionamento de Deus com Seu povo. Os hebreus não
tinham tais inibições. Exultavam com figuras legais e eram
especialmente admiradores de ilustrações de ações judiciais em que
Deus e Seu povo estivessem em lados opostos (e. g. Is 41.1; Jr 12.1; Mq
ó.lss.). Eles faziam distinção entre o julgamento de Deus e o doshomens, pelo fato de o primeiro ser completamente justo. O
julgamento humano era por demais falível. Todos acolhiam a idéia deque os ricos e bem-relacionados não eram julgados como os pobres eos de classe baixa. Havia, na verdade, uma lei para os ricos e outra para
os pobres; às vezes, isso era inscrito nos estatutos. Mas o julgamento de
Javé era realizado com perfeita justiça. “Ele mesmo julga o mundo com
justiça; administra os povos com retidão” (SI 9.8). Isso traz uma ameaça
contra os ímpios, pois certamente serão punidos. “Segundo o seu
caminho lhes farei, e com os seus próprios juízos os julgarei; e saberãoque eu sou o Senhor” (Ez 7.27).
Mas, mesmo que o julgamento de Deus seja justo, não dando aos
ímpios nenhum motivo para se queixar, não se deve pensar nele como
uma pesagem cega de méritos e deméritos. O mishpat pode ter sua
origem em uma matriz legal, mas convive com qualidades como bondade, fidelidade, retidão, misericórdia, caridade, verdade e glória
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(veja SI 36.5, 6; 89.14; Ez 39.21; Os 2.19 etc.). Várias vezes, ele é
associado a qualidades desse tipo. É uma mistura de confiabilidade eclemência, de lei e amor. É um amor pelos homens e um amor pelodireito. Não um ou outro, mas ambos. Para nós, o legalismo adquiriuuma noção de aplicação rígida e desumana da letra da lei, emdetrimento dos valores humanos. Não era assim que os hebreusentendiam o julgamento. Para eles, a lei era uma muralha contra aopressão. Os pobres e fracos contavam com ela para salvá-los dodomínio dos ricos e poderosos. “Ó Deus, salva-me, pelo teu nome, e
faze-me justiça pelo teu poder”, diz o salmista” (SI 94.1), e pedidoscomo esse eram comuns. Podemos fazer distinção entre bondade e
processos legais, mas precisamos ver claramente que os hebreus nãofaziam isso.
O julgamento de Javé deve ser encarado como resultado de Suamisericórdia e ira. Isso, para nós, parece contraditório. Mas, no AntigoTestamento era o resultado de um propósito claro e coerente. Deus não
muda de atitude quando mostra misericórdia numa ocasião e ira emoutra, não mais que um pai dos dias de hoje, que recompensa o filho pelo bom comportamento e o pune pelas travessuras. Os propósitos deDeus são coerentemente retos.
Com freqüência isso significa libertação. O Senhor “faz justiça aoórfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes” (Dt 10.18).“Guia os humildes na justiça e ensina aos mansos o seu caminho” (SI25.9). Como resultado disso, há constantes apelos para que o Senhor
julgue, quando alguém está sendo oprimido, e a fórmula: “o Senhor julgue entre mim e ti” era um modo de protestar inocência. Por outrolado, indica-se um estado de completa desesperança quando não se
pode buscar nenhum julgam ento. Desse modo, Jó exclama,desesperado: “Eis que eu clamo: Violência, mas não sou ouvido; grito:Socorro! porém não há justiça” (Jó 19.7).
Mas o julgamento do Senhor significa perdição para os malfeitores.
Isaías pode imaginar Jerusalém sendo purgada “com o Espírito de justiça e com o Espírito purificador” (Is 4.4). Jeremias fala de Javé proferindo Seus julgamentos (Jr 1.16; 4.12) —uma palavra do Senhoré suficiente para trazer aos ímpios a punição que merecem. E Ele
profere uma palavra surpreendente em Deuteronômio 32.41: “Se euafiar a minha espada reluzente, e a minha mão exercitar o juízo, tomareivingança contra meus adversários, e retribuirei aos que me odeiam”. O
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 29
substantivo plural shephatim, “julgamento”, ocorre dezesseis vezes esempre indica uma punição infligida pelo Senhor (e.g., Êx 6.6; Nm 33.4).O uso em Ezequiel é especialmente notável. A palavra ocorre dez vezesem sua profecia, nove vezes nos discursos de Javé, quando Ele anunciaos castigos que irá infligir. A maior parte refere-se a Israel (5.10), masestão também incluídos Moabe (25.11), Sidom (28.22), Egito (30.14) eos que “tratam com desprezo” a Jacó (28.26). A escolha dessa palavramostra que os castigos não são arbitrários. São a devida penalidadecontra as más obras.
Às vezes, os homens são agentes de Javé no julgamento. Dessemodo, em Ezequiel 23.24 Ele diz: “Virão contra ti do Norte com carrose carretas e com multidão de povos; pôr-se-ão contra ti em redor com
paveses e escudos, e capacetes; e pore i diante deles o juízo, e julgar-te-âo segundo os seus direitos”. Isso é importante para seentender muito do que o Antigo Testamento ensina sobre julgamento.Os babilônios e os outros nem imaginavam que estavam cumprindo o
propósito de Deus. Pensavam estar fazendo sua própria vontade,executando seus próprios julgamentos. Mas o profeta teve uma visãomais profunda. Ele percebeu que aqueles soldados pagãos eram merosinstrumentos de Javé. Eram ferramentas que Ele usava para levar Seu
julgamento aos homens.Seja ou não através da ação de homens, o julgamento de Javé é um
processo que peneira os homens. O julgamento separa os retos dosímpios e, desse modo, faz aparecer o “remanescente”. Isso nos aponta
um elemento criativo no julgamento. Não devemos pensar nele comoalgo apenas negativo e destrutivo. O julgamento, por certo, temaspectos negativos e punitivos. Mas o que emerge como resultado do
julgamento é, por assim dizer, uma vantagem clara. É a comunidadeamada, e não conseguimos imaginar como ela podería surgir se nãofosse pelo julgamento.
Mas o ponto central com que Javé e o julgamento estão ocupadosé o futuro. Na grande maioria dos textos em que o verbo shaphat ocorre,
existe uma referência direta ou indireta ao julgamento do Senhor. Namaior parte dos casos, diz respeito ao futuro. Embora alguns delesfaçam referência a julgamentos temporais como o exílio, não se podeescapar da conclusão de que, para os homens do Antigo Testamento, ofator mais significativo naquilo era o julgamento escatológico doSenhor. A princípio, pode parecer que os ímpios triunfam. A injustiça
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e a desigualdade podem abundar. Os maus podem crescer como ocedro. Mas isso só acontece porque Javé, no exercício de Sua vontadesoberana, o permite. No final dos tempos, Ele estenderá Seu forte braçoe julgará. Por vezes, enfatiza-se a idéia de que Ele julgará Seu povo (Ez7.8) ou mesmo uma parte deste (Ez 34.20). Todavia, é mais comum aidéia de um julgamento geral das nações. “Porque vem, vem julgar aterra; julgará o mundo com justiça, e os povos consoante sua fidelidade”(SI 96.13). A freqüência de exemplos desse uso futuro do termo,comparada à escassez de exemplos em que se diz que Javé de fato julgou
os homens, mostra que os hebreus reconheciam o julgamento doSenhor, não tanto no que Ele fez, mas no que fará. É uma expressão defé e não de visão.
É também expressão de uma profunda convicção de que “o mundoestá fora dos eixos”. Os politeístas do mundo antigo eram, em geral,
pessoas to le ran tes e acom odadas. Em algum lugar, en tre amultiplicidade de deuses, haviam encontrado um mestre complacentee estavam satisfeitos em vaguear com ele. Não os hebreus; para eles,
cada obra do homem está sob o julgamento de Deus. Não se podeaceitar nenhuma situação no mundo que não se conforme à Suavontade. Isso significa que o mundo deve ser purgado de cada coisamaligna, e os hebreus esperavam por isso apenas no final dos tempos,
porque só então o julgamento de Deus seria visto em sua totalidade.Como afirma G. Ernest Wright: “Há uma profunda desarmonia entrea vontade de Deus e a ordem social vigente. Deus, em Seu trabalho
redentor, continua julgando os homens pelos seus pecados, e aafirmação alarmante é que o homem e sua sociedade só podem serredimidos através do fogo purificador do julgamento divino”.
Essa insatisfação incessante em relação ao mundo como ele seencontra no presente é muitas vezes desprezada, mas ela tem umaimportância fundamental para o pensamento do Antigo Testamento. Ohebreu piedoso sempre tinha diante de si a tarefa do “julgamento”. Eledevia corrigir os erros, libertar os oprimidos e derrubar o opressor. Mas,
realisticamente, percebia que homem nenhum podería completar.essatarefa de forma perfeita. Assim, pela fé esperava e ansiava pelo tempoem que Deus interviria e cumpriría com perfeição o fim desejado.
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 31
II. O JULGAMENTO NO ANTIGO TESTAMENTO:OUTRAS PALAVRAS ALÉM DE SHAPHAT
•
Das palavras do Antigo Testamento usadas para expressar a idéiade julgamento, shaphat e seus cognatos são de longe as maisimportantes e freqüentes. Por isso, nós as examinamos com certaminúcia. Mas várias outras palavras reforçam shaphat, e precisamosestudar as que são traduzidas por “julgar” ou alguma expressãosemelhante.
1 • Dyn
Brown, Driver e Briggs atribuem a esse verbo o significado de“julgar” e o consideram sinônimo de shaphat. Quando passam aclassificar os usos da palavra, alistam em primeiro lugar “atuar como
juiz, ministrar julgamento”. Sem dúvida, existe um cunho legal nesse
grupo vocabular, exatamente como no caso de shaphat e afins. Mas, nouso, ele pende para alguma ênfase na idéia de socorro ou livramento. Dyn quase significa “defender”. Isso não nega que haja outros usos,incluindo legais, como sustentam Brown, Driver e Briggs, que podemmuito bem nos aproximar mais do significado original. Mas seestivermos tentando descobrir o significado exato da palavra como erausada no Antigo Testamento, não devemos desprezar essa ênfase.Podemos classificar os usos do grupo vocabular da seguinte maneira(tomando tanto o substantivo dyn como o verbo):
A. Livramento
Esse é o uso encontrado em dez das vinte e três ocorrências doverbo e em dez das vinte do substantivo. A palavra pode ser usada emrelação a um livramento real concedido pelo Senhor no passado, como
quando Raquel exclamou, depois que sua serva teve um filho, Dã:“Deus me julgou e também me ouviu a voz e me deu um filho” (Gn30.6). Obviamente, o nome da criança é um reflexo disso. Ou pode serusada numa oração em que se pede livramento, como no caso dosalmista: “Ó Deus, salva-me, pelo teu nome, e faze-me justiça pelo teu
poder” (SI 54.1). O paralelismo com o verbo “salvar” faz com que o
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significado de dyn fique aqui bastante claro. A palavra também é usada
em relação aos homens, às vezes para os que “julgam” e às vezes paraos que “não julgam” dessa maneira. Josias “julgou a causa do aflito e
do necessitado” (Jr 22.16; tanto o verbo como o substantivo são usadosem relação a ele), enquanto, em contraste, os perversos a quem Josias
castiga “não defendem a causa, a causa dos órfãos, para que prospere;nem julgam o direito dos necessitados” (Jr 5.28; novamente o verbo e
o substantivo).
B. Punição
Esse uso não é freqüente (duas vezes o verbo, e três o substantivo),mas ocorre. Assim, Eliú assegura a Jó: “... tu te enches do juízo do
perverso, e, por isso o juízo e a justiça te alcançarão” (Jó 36.17), em que
seu significado é que os sofrimentos do patriarca são o julgamento deDeus sobre ele, por sua perversidade.
C. Um chamado para prestação de contas
Há ocasiões em que se diz que Deus julga Seu povo, mas não fica
claro se Ele está punindo ou libertando. Se isso pode ser determinado,
então esta modalidade desaparece, sendo absorvida pelas anteriores.Se não pode, então é um lembrete de que o julgamento, embora possa
ser distribuído em recompensa e livramento, ou em castigo econdenação, ainda é a execução de um propósito divino coerente. Se
pudermos citar Eliú novamente, ele prossegue, informando a Jó que
Deus “por estas coisas (L e., chuva etc.) julga os povos e lhes dá
mantimento em abundância. Enche as mãos de relâmpagos e os dardeja
contra o adversário” (Jó 36.31, 32). O julgamento, aqui, é a atividade
de Deus em controlar as condições climáticas. Ele não o faz ao acaso,
mas envia determinado clima para proporcionar um suprimento
abundante de alimentos para os justos, enquanto lança seus raios contraos ímpios.
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 33
D. Envolvimento numa ação judicial, contenda
“O Senhor se dispõe para pleitear, e se apresenta para julgar os
povos” (Is 3.13; dyn = “julgar”) é linguagem de uma corte judicial. Isso
está de acordo com uma tendência persistente no Antigo Testamento
de ilustrar as relações entre Deus e Seu povo pelo uso de linguagem
legal. Entretanto, com freqüência, os processos legais implicam
conflitos amargos e, assim, às vezes a palavra dyn é usada para indicarcontenda, mesmo quando a questão não envolve um problema legal.
Portanto, lemos em 2 Samuel 19.9 que, após o assassinato de Absalão,“todo o povo, em todas as tribos de Israel, andava altercando entre si”,
e novamente somos alertados: “Lança fora o escarnecedor, e com ele
se irá a contenda; cessarão as demandas e a ignomínia” (Pv 22.10).
E. Governo
Em paralelo com um aspecto de shaphat, às vezes este grupovocabular também pode significar “governo”. Assim, o profeta diz a
palavra do Senhor a Josué: “Se andares nos meus caminhos, e
observares os meus preceitos, também tu julgarás a minha casa...” (Zc3.7). Em relação ao substantivo, usado sem possibilidade de erro quanto
ao significado, vamos observar a expressão: “Assentando-se o rei no
trono do juízo” (Pv 20.8). Embora esse uso seja encontrado, não existe
evidência real para se pensar que, aqui, assim como no caso d q shaphat, a idéia de “governo” esteja dando o significado básico para a palavra.Podemos resumir o uso deste grupo de palavras, dizendo que ele
reforça e ressalta um pouco do que já vimos ser o significado
transmitido por shaphat. Talvez ele empreste uma nova ênfase ao
aspecto salvífico do julgamento. Com certeza, ele nos relembra de que
o conceito veterotestamentário de julgamento possui uma sólida base
legal, uma vez que surge daquela atividade judicial que discrimina, de
acordo com o direito que separa os justos dos perversos e age em funçãodisso.
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2 • PU
Este verbo interessante é usado no piei, com o sentido de “julgar”,
e no hithpael, com o sentido de “orar”. Ambas as formas são usadas em
1 Samuel 2.25, e se observarmos rapidamente a passagem, poderemos
entender melhor o sentido da palavra. Eli diz a seus filhos: “Pecando o
homem contra o próximo, Deus lhe será o árbitro (wuphiflo); pecando,
porém, contra o Senhor, quem intercederá (yithpallel) por ele?”Provavelmente, nesse versículo, devemos entender ’elohim como “o
árbitro” (RV, nota marginal) ou “os árbitros”. Se a palavra é entendidacomo uma referência a Deus, Ele estará, pelo menos, agindo através
dos juizes. Eli está dizendo que, se um homem peca contra outro, existe
uma possibilidade de reparação por meio dos canais competentes. Mas
para o tipo de pecado que seus filhos estavam cometendo, contra o próprio Deus, não há possibilidade de alguém se tornar mediador.
Nesse caso, nenhuma intercessão resolve.
O significado básico da raiz é, provavelmente, algo como “intervir,interpor-se”. Essa intervenção pode ocorrer quando há uma disputa
entre os homens. Nesse caso, o objetivo será decidir a questão. Embora
teoricamente isso pudesse fazer com que a palavra fosse usada tanto para defesa como para condenação (ambas ocorrem: uma das partes é
justificada e a outra, condenada), na prática, a palavra sempre é usada
para indicar punição. Algum outro verbo é usado para expressar a idéia
de defesa. Se a disputa é entre Deus e os homens, então nenhum ser
humano está em condições de atuar como mediador. O homem sempreestará errado, pois, por definição, Deus é perfeitamente justo,
perfeitamente reto. Só existe um recurso para um pretenso mediador:
orar. S. R. Driver interpreta a passagem de 1 Samuel exatamente damesma forma. Ele entende que o piei significa “mediar” e cita como
exemplo a mediação que vemos no Salmo 106.30 (“então se levantou
Finéias e executou o juízo”). Uma vez que Finéias “executou o juízo”,
matando Zimri e Cosbi, o tipo de “mediação” indicada aqui porwayephallel é um castigo por ações erradas. Driver pensa que o hithpael significa “interpor-se como mediador, especialmente por meio de
súplica”, e cita Gênesis 20.17 (“e, orando Abraão, sarou Deus
Abimeleque, sua mulher, e...”).
Portanto, pelo uso deste verbo, parece que podemos encontrar dois
fatores importantes para nosso propósito. O primeiro é que o
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 35
significado básico está ligado à intervenção. Isso quer dizer que a
iniciativa vem de fora. Por si, os homens nunca passariam por um julgamento, pelo menos por um julgamento final. Mas eles não sãodeixados à vontade. Haverá uma intervenção, uma intervenção do
próprio Deus. O segundo ponto é que o verbo sempre é aplicado a umtipo de intervenção que resulta na punição do transgressor. Muitasvezes afirma-se que o sentido da palavra indica arbitragem ou algo parecido, mas o uso sempre indica uma punição do ímpio. Somoslembrados da seriedade do pecado.
3 • Ykh•
Brown, Driver e Briggs dão como significado desse verbo: “decidir, sentenciar, provar (discutir com)”, enquanto Kõhler alista oito significados, começando com “1. reprovar... 2. discutir na presença de...” A
palavra denota um processo um pouco mais argumentative do que
aquelas com que viemos lidando até aqui. É freqüente a idéia dediscussão ou debate, embora com algum toque condenatório, pois ummostra para o outro que ele não tem razão. É possível perder-se namultiplicidade de significados; portanto, escolheremos três pontosimportantes para nossa pesquisa.
A. A palavra significa “julgar”
Há passagens inquestionáveis em que a palavra significa “julgar”,mesmo que esse não seja o significado básico deste grupo vocabular.Mas elas nos mostram que tal acepção nos dá uma parte da idéiaveterotestamentária de julgamento e que, portanto, não se pode deixar passar o seu universo de significado. Por exemplo, vamos ver oincidente em que, depois de ter seus pertences vasculhados por Labão,
que procurava os terafins que lhe faltavam, Jacó é levado a responder:“Havendo apalpado todos os meus utensílios, que achaste de todos osutensílios de tua casa? Põe-nos aqui diante de meus irmãos e de teusirmãos para que julguem entre mim e ti” (Gn 31.37). Aqu, percebemoso verdadeiro sentido de “julgar”. Jacó está convidando Labão a sesubmeter a um processo em que seus “irmãos” e os “irmãos” de Jacóarbitrarão entre um e outro.
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36 • IMORTALIDADE
B. A palavra tem o sentido predominante de “reprovar”
Mas se há passagens em que o sentido de “julgar” não pode sercontestado, também é verdade que o sentido predominante não é esse.Uma concordância mostra que a palavra é mais usada no sentido de“repreender” do que em qualquer outro. A tendência é de salientar amá recompensa do transgressor. Assim, Abraão “repreendeu aAbimeleque por causa de um poço de água que os servos deste lhehaviam tomado à força” (Gn 21.25). O salmista caracteriza Javé como
“quem repreende as nações” (SI 94.10), e também lemos que, enquantoos descendentes de Jacó “andavam de nação em nação... a ninguém
permitiu que os oprimisse; antes, por amor deles, repreendeu os reis”(SI 105.13, 14). Jó, por sua vez, disse aos que lhe atormentavam:“Acerbamente vos repreenderá, se em oculto fordes parciais” (Jó13.10). Não deve haver nenhuma dúvida de que esta palavra éempregada predominantemente quando se tem em vista algum tipo de
condenação.
C. O julgamento é racional
O grande ponto que aprendemos deykh e que não se apresenta deforma tão clara nas outras palavras (embora, é claro, esteja sempreimplícito) é que o julgamento é um processo racional. Há várias
passagens em que o significado evidente desse verbo é “raciocinar” oualgo semelhante. Ele é usado, por exemplo, na famosa passagem docapítulo inicial de Isaías: “Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor...”(Is 1.18); depois disso, o profeta passa a destacar o caminho onde oshomens podem encontrar o perdão para seus pecados, e o caminhoonde não podem esperar nada, senão a destruição. É usado em relaçãoa Jó, que deseja apresentar seu caso a Deus: “Quero defender-me
perante Deus” (Jó 13.3), e em relação à queixa de Deus contra Israel:
“O Senhor tem controvérsia com o seu povo, e com Israel entrará em juízo” (yithwakkah; Mq 6.2). Tendo em vista a atitude de algumas pessoas de hoje quanto ao conceito do julgamento divino, é bomressaltar que, de acordo com o Antigo Testamento, o processo todo éeminentemente racional. Não poderiamos pensar em um Deus cheiode caprichos, distribuindo arbitrariamente penalidades e recompensas,nem poderiamos pensar que o processo de julgamento seria diferente,
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se Deus tivesse resolvido deixar passar algumas coisas. Jeremiaslembrou aos homens de seu tempo: “A tua malícia te castigará, e as tuasinfidelidades te repreenderão” ( tokhihukh; Jr 2.19). A natureza da vida,do conflito moral e da eterna lei da justiça implicam que o julgamentoé a coisa mais lógica que se possa imaginar. É impossível vislumbrar um
processo que o ponha de lado, sem que resulte num caos.
4 • Elohim
É discutido se, em alguns lugares, esse termo, que é a palavracomum aplicada a “Deus” ou “deuses”, deve ser entendido como umareferência aos juizes. A Authorized Version traduz por “os juizes”, emÊxodo 21.6; 22.8,9 (duas vezes) e na margem de Êxodo 22.28, enquantoo singular é empregado em 1 Samuel 2.25. Em todas essas passagens,exceto na última, a Revised Version traz “Deus” no texto e “os juizes”na margem, enquanto que na última passagem a leitura marginal está
no singular, “o juiz”. Não parece haver dúvidas de que os processos judiciários estão por trás de todas essas passagens, qualquer que seja atradução do termo. Nem precisamos duvidar de que o processo judicialseja visto como algo de muita dignidade, que só deve ser executadocomo se fosse na presença de Deus. Brown, Driver e Briggs apresentamcomo o primeiro significado da palavra: “governantes, juizes, tantorepresentantes divinos em lugares sagrados quanto os que refletem amajestade e o poder divino”. Em ambos os casos, o julgamento tem uma
ligação estreita com Deus. É uma prerrogativa divina. É preciso quenão tenhamos nenhuma dúvida de que o julgamento é um processomajestoso, nem de que todos os julgamentos humanos nos fazem voltaros olhos para o julgamento de Deus.
Tradicionalmente, as referências aos “deuses” no Salmo 82 têmsido compreendidas da mesma maneira. Assim, F. Delitzsch entendeque se tratam de “magistrados... vassalos e portadores da imagem de
Deus e, sendo Seus representantes, são também chamados ’elohim”. Em tempos mais recentes, a tendência entre os eruditos em AntigoTestamento é de entender que o salmo está apresentando uma crençana existência real dos deuses pagãos. Eles são subordinados a Javé, eEste pode chamá-los para uma prestação de contas, mas são seres reais.Desse modo, Aubrey R. Johnson diz que o salmo “nos conduz de início
para a corte celestial, e revela Javé pronunciando uma sentença contra
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os deuses reunidos das nações, por causa do seu mau governo”. Por isso,
“apesar da posição deles como filhos de Deus, Javé passa a pronunciara senteça final contra eles, por não terem conseguido atingir esse ideal,
decretando que, conseqüentemente, devem morrer como sereshumanos comuns”. Não me convenço desse raciocínio, por uma série
de razões. Seria contrário ao sólido monoteísmo do AntigoTestamento, e não se deve esquecer que uma longa sucessão de
monoteístas convictos reconheceu a canonicidade desse salmo. Além
disso, as passagens que já consideramos nesta seção parecem-me
indicar que o termo ’elohim vez por outra era usado em referência aos juizes. Depois, existe a linguagem da passagem em si. Observe osversículos 2ss.:
Até quando julgareis injustamente,e tomareis partido pela causa dos ímpios?Fazei justiça ao fraco e ao órfão,
procedei retamente para com o aflito e o desamparado.
Socorrei o fraco e o necessitado;tirai-o das mãos dos ímpios.
Isso está de acordo com o que se requer dos juizes em todo o Antigo
Testamento. Mas não se pede nem se espera que os deuses pagãosexerçam essas funções. Parece-me que esse ponto não recebeu a devida
consideração dos eruditos que entendem essa passagem como umreferência aos deuses. O Antigo Testamento não carece de passagens
que mencionem os deuses pagãos. Mas onde se fala deles nessestermos? Ao que me parece, é muito melhor entender que o salmo fala
de juizes humanos. No versículo 1, Deus lhes chama a atenção. Nosversículos 6ss., Ele lhes lembra de que são mortais:
Eu disse: Sois deuses,sois todos filhos do Altíssimo.Todavia, como homens, morrereise, como qualquer dos príncipes, haveis de sucumbir.
Essas afirmações não são relevantes para os deuses das nações.
Nem o versículo final, que exige que Deus julgue “a terra”, L e., a
habitação dos juizes, não dos deuses.Mas, qualquer que seja o veredicto sobre o Salmo 82, tanto esta
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passagem como as estudadas antes ligam claramente a função de julgarao elemento divino. Assim, elas investem o julgamento de dignidade eseriedade de propósito.
5 • Pqd
Este é um verbo de numerosos significados, tendo “julgar” comoum sentido subordinado. Brown, Driver e Briggs alistam-no como “daratenção, visitar, passar em revista, designar”, uma definição que mostra
que a palavra tem uma grande abrangência. Kõhler dá como significadooriginal: “sentir falta, preocupar-se” e, depois, “cuidar, ir ver”. Atécerto ponto isso é sustentado pelo uso nas línguas cognatas, que muitasvezes parecem indicar “cuidado” ou “falta”. O que está claro é que a palavra tem vários significados, um dos quais (e bem comum) é“visitar”. E este significado dá lugar a mais um ou dois, pois uma visita
pode ter mais que um resultado.
Por conseguinte, a palavra é usada num sentido positivo, como porocasião do nascimento de Isaque, quando lemos: “Visitou o Senhor aSara como lhe dissera, e cumpriu o que lhe havia prometido” (Gn 21.1). Não são poucas as passagens que podem ser citadas, em que esse verboé aplicado a uma visita com bênçãos semelhantes. Mas se Deus visitauma pessoa ou nação, e essa pessoa ou nação é pecaminosa, então oresultado da visita será diferente. Assim, Jeremias, depois de relatar os
pecados da nação, prossegue: “Deixaria eu de visitar (ARA, ARC:
castigar) estas coisas, diz o Senhor, ou não me vingaria de nação comoesta?” (Jr 5.9; a expressão é repetida no v. 29). O mesmo profeta diz:“Pois que tanto amaram o afastar-se, e não detiveram os seus pés, porisso o Senhor se não agrada deles, mas agora se lembrará da maldadedeles, e visitará os seus pecados” (Jr 14.10, ARC). Às vezes, o verbo étraduzido em termos de julgamento, como em Jeremias 51.47:“Portanto, eis que vêm dias, em que visitarei as imagens de escultura
de Babilônia...” (ARC).Por tudo isso, precisamos nos lembrar de uma verdade importante.Deus não é nem pode ser neutro. Para Deus, uma visitação é o mesmoque cuidar graciosamente dos justos e necessitados, e punir os ímpios.
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6 • Ribh
Ao contrário das outras palavras pesquisadas até aqui, ribh não étraduzida por “julgar” ou vocábulos afins. Mas sua relevância para esteestudo é evidente, pois em muitas ou, talvez, na maioria dasocorrências, refere-se a processos judiciais. Seu significado básicoenvolve contenda; portanto, a idéia de partes debatendo-se num
processo judicial. Dessa maneira, é usada tanto nos contextos em quehá um julgamento em questão como nas situações em que não há
nenhum processo legal em vis ta . Examinamos esses usosseparadamente.
A. Contender, disputar
Este parece ser o significado fundamental desse grupo de palavras.Brown, Driver e Briggs apresentam “brigar, contender” como
significado principal e, então, passam a citar as palavras das línguascognatas com sentidos como “agitar”, “inquietar”, “chorar”, “gritar”,“discutir em alta voz” etc. Às vezes, a idéia de violência física está
presente, como quando Moisés abençoa a Judá: “... com tuas mãos peleja por ele” (Dt 33.7). O significado mais comum, como nota Kõhler,é uma briga de palavras, como quando certas águas foram chamadas“Meribá, porque os filhos de Israel contenderam com o Senhor” (Nm20.13; as palavras usadas nessa “contenda” são dadas no v. 3).
B. Queixar-se, repreender
A partir da noção de contenda, surge a de queixa e repreensão.Aqui, não há tanto a idéia de uma briga com ações recíprocas, mas, sim,de uma pessoa tomando a iniciativa e falando o que pensa da outra. A
passagem em que Jacó “se irou... e altercou com Labão” (Gn 31.36) é
um bom exemplo disso, assim como quando Neemias “repreendeu” osnobres (Ne 5.7).
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C. Conduzir um processo judicial
Mas o uso mais importante desse grupo de palavras é o quedescreve algum tipo de processo judicial (muitas vezes no sentidofigurado, em que se apresenta Javé tomando medidas legais contra Seu
povo). Esse tipo de uso corresponde a quase metade das ocorrências,tanto do verbo como do substantivo (30 das 68 ocorrências do verbo, e26 das 62 do substantivo). Vemos os processos legais comuns, quandose ordena: “... nem deporás, numa demanda, inclinando-te para a
maioria, para torcer o direito. Nem com o pobre serás parcial na suademanda” (Êx 23.2, 3), ou quando Absalão interpelou “todo homemque tinha alguma demanda para vir ao rei ajuizo” (2 Sm 15.2).
As passagens realmente significativas são aquelas em que Javé participa do processo. Algumas vezes se diz que Deus agiu. Quandosoube da morte de Nabal, Davi exclamou: “Bendito seja o Senhor, que
pleiteou a causa da afronta...” (1 Sm 25.39). Aqui, o Senhor já fez o quese pediu. Davi simplesmente se alegra com o fato. Mas, às vezes, issotambém acontece por meio de uma oração por socorro futuro, comoquando o salmista disse: “Faze-me justiça, ó Deus, e pleiteia a minhacausa contra a nação contenciosa; livra-me do homem fraudulento einjusto” (SI 43.1). Ele apela ao Senhor, confiantemente e procura
justificação e livramento, mas a linguagem usada para expressar seuapelo é a de uma corte judicial. Não é nenhuma surpresa que o povo deDeus seja exortado a reproduzir o mesmo tipo de comportamento: “...
defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas” (Is 1.17).É provável que nenhuma outra passagem nos dê melhor o gosto peculiar desta palavra do que a cena forense retratada com tanto vigor por Miquéias. “Ouvi agora o que diz o Senhor: Levanta-te, defende atua causa perante os montes, e ouçam os outeiros a tua voz. Ouvi,montes, a controvérsia do Senhor, e vós, duráveis fundamentos da terra;
porque o Senhor tem controvérsia com o seu povo, e com Israel entraráem juízo” (Mq 6.1, 2; “defender” e “controvérsia” vêm dessa raiz).
Então o profeta passa a dar as palavras com as quais o Senhor formulaSua acusação legal contra Seu povo. Dessa forma, Miquéias apresentacom ênfase a realidade do pecado da nação (ele está totalmente
provado: a prova resistirá à corte legal) e a seriedade desse pecado (éinevitável que a sentença caia sobre os que forem julgados culpados).Isaías faz uso semelhante dessa figura: “O Senhor se dispõe para
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pleitear, e se apresenta para julgar os povos” (Is 3.13), bem comoJeremias: “Ainda pleitearei convosco, diz o Senhor, e até com os filhosde vossos filhos pleitearei” (Jr 2.9). A figura é freqüente em Jó, e. g., “Direi a Deus: Não me condenes; faze-me saber por que contendescomigo” (Jó 10.2), e em outros lugares.
Ribh, portanto, salienta dois aspectos do julgamento. Um é arealidade da oposição. Uma palavra cujo sentido original é “contenda”não retrata um Deus levemente desgostoso com os pecadores. Ele Seopõe radicalmente a todo mal. É necessário que os pecadores não sejam
complacentes em relação à sua posição. O outro é que Deus não age demodo arbitrário quando lida com o pecado. Aqueles que sentem a mãode Deus pesar em julgamento podem saber que suas más ações foramcompletamente provadas. A acusação contra eles é límpida comocristal.
Existe ainda outro pensamento que, embora não receba muitaênfase, é importante. Nós o encontramos no último capítulo deMiquéias, onde o profeta diz: “Sofrerei a ira do Senhor, porque pequei
contra ele, até que julgue a minha causa...” (Mq 7.9). O pecado precisaser punido. A justiça exige isso. Mas a esperança final do profeta estáno Senhor; ele aceita os julgamentos punitivos de Deus e, pela fé, esperaque Este defenda sua causa.
7 • Outras palavras
Nãò conseguimos extrair todo o ensino veterotestamentário acercado julgamento, quando examinamos pacientemente, numaconcordância, cada palavra relacionada ao tema. Esse processo podenos ensinar muito sobre o julgamento; aliás, sem esquadrinhar comcuidado todas as evidências, não é possível falar sobre o assunto comalguma autoridade. Pronunciamentos ex cathedra baseados em textosou passagens isoladas têm pouco valor. Mus não esgotamos o assunto
depois de examinar todas as passagens que falam do julgamento. Àsvezes a idéia está presente, mesmo que não ocorra a palavra“julgamento”. Portanto, quando lemos que “a Luz de Israel virá a sercomo fogo e o seu Santo como labareda, que abrase e consuma osespinheiros e os abrolhos da Assíria num só dia” (Is 10.17), somoslembrados de que o relacionamento de Israel com Deus, visto como umDeus santo, implica necessariamente em julgamento. Ou então, Amós
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 43
pode alertar o povo: “Portanto, assim te farei, ó Israel! E porque issote farei, prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus” (Am4.12). Aqui, não encontramos a palavra “julgamento”, mas comointerpretar a passagem sem pensar em um julgamento iminente?
Mas talvez a idéia mais importante nesse contexto seja a do “dia doSenhor”. Quando encontramos esse termo pela primeira vez, o profetaAmós não se detém para explicá-lo, introduzindo-o como se fosse bemconhecido. Evidentemente, tratava-se de uma idéia bem antiga. “Ai devós que desejais o dia do Senhor! Para que desejais vós o dia do Senhor?
É dia de trevas e não de luz. Como se um homem fugisse de diante doleão, e se encontrasse com ele o urso; ou como se, entrando em casa,encostando a mão à parede, fosse mordido duma cobra” (Am 5.18,19).Parece claro que, na expectativa popular, “o dia do Senhor” era o diaem que o Deus de Israel iria atuar de forma evidente e inconfundível,mostrando que Ele está do lado de Israel. Ele os livraria de todos osopressores e, na verdade, colocaria cada opressor em suas mãos. MasAmós tem uma mensagem diferente. Deus diz à nação: “De todas asfamílias da terra somente a vós outros vos escolhi, portanto eu vos
punirei por todas as vossas iniqüidades” (Am 3.2). Precisamente pormanterem um relacionamento especial com Deus, eles devem esperarser julgados por um padrão mais alto e punidos por suas faltas. Mas o
povo de Deus, em especial, está sob Seu julgamento. Como disse H. H.Rowley: “Esse elemento do julgamento é parte essencial da idéia doDia do Senhor. O que Amós trouxe para o termo não foi a idéia de um
julgamento, mas de um julgamento moral. Não seria um simples julgamento dos inimigos de Israel, mas um julgamento dos homenscujas vidas eram ofensivas a Deus, dentro ou fora de Israel”. Essaverdade é reiterada em todas as passagens sobre o “dia do Senhor”.Deus não tem favoritos. Seu julgamento cairá sobre toda a humanidade,inevitavelmente. Não é por acaso que a última palavra impressa noAntigo Testamento é uma palavra de julgamento.
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44 • IMORTALIDADE
III. O JULGAMENTO NO NOVO TESTAMENTO:
UMA REALIDADE PRESENTE
1 • Introdução
A palavra básica para “julgamento” no Novo Testamento é o verbo
kriríõ, “julgar”. Esta palavra, bem como o seu equivalente em
português, aplica-se perfeitamente ao processo legal. Podemos ver issoem Mateus 5.40: “e ao que quer demandar contigo...” (c/. também 1 Co
6.1,6). A partir daí, passou a ser usada em sentido não-técnico de tomaruma decisão (de novo, exatamente como nós). Vemos isso na resposta
de Pedro e João ao Sinédrio: “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vosa vós outros antes do que a Deus” (At 4.19). Ocasionalmente há nuanças
de conotações do Antigo Testamento, como quando é usada no sentidode “governo” (Mt 19.28; Lc 22.30).
Mais notável, e mais importante, é o uso do termo em associação
com a vitória de Cristo sobre todas as forças do mal. Isso é muitosemelhante à maneira como as passagens do Antigo Testamento
referiam-se à libertação. Assim, com a cruz agigantando-se diante de
Si, Jesus disse: “Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora
o seu príncipe será expulso” (Jo 12.31). Ele também disse que o Espírito
Santo convencería “o mundo... do juízo” e prosseguiu, explicando: "...
do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado” (Jo 16.8-11).
A morte de Cristo era, em certo aspecto, uma transação judicial com o
diabo. Como no Antigo Testamento, isso não significa uma comparaçãoimparcial de evidências. Trata-se de uma negociação vigorosa com omal. O Senhor está ativamente envolvido na salvação de Seu povo. Mas,
como no Antigo Testamento, existe a idéia de que a transação de Deus
com Satanás não é arbitrária. Sua derrota está de acordo com a justiça.
Ele é lançado fora porque merece isso. Os fiéis podem saber que sua
libertação é judiciosamente embasada.
2 * 0 Pai e o julgamento no presente
O Novo Testamento deixa claro que Deus está engajado numa
atividade constante de julgamento. Algumas vezes temos uma
proposição geral como: “... há quem a busque e julgue” (Jo 8.50). Isso
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bem pode e deve ser aplicado ao julgamento final. Mas parece melhor
vê-lo como um processo que está ocorrendo aqui e agora. É verdadeque Deus é o único juiz e que no último dia isso será manifesto. Mastambém é verdade que os homens podem saber, aqui e agora, que suasações são pesadas pelo único juiz e que as medidas serão tomadas dessaforma. Isto confere significado moral à história. A não ser que Deusesteja ativo, julgando no presente, estamos condenados à idéia de queo resultado moral de nossas ações não têm importância para esta vida.
Paulo destaca um ponto importante neste julgamento presente. Ele
está tratando da Santa Ceia e aponta que, por causa do mau uso dosacramento, “há entre vós muitos fracos e doentes, e não poucos quedormem” (1 Co 11.30). Então, ele continua: “Porque, se nos
julgássemos ( diekrínomem) a nós mesmos, não seríamos julgados”. Overbo por ele usado significa “distinguir”, “discriminar”. Paulo estádizendo que, se fizéssemos distinção entre o que somos e o quedeveriamos ser, evitaríamos esse tipo de julgamento a que ele está se
referindo. Em outros termos, ele enxerga esses julgamentos não comoalgo a ser simplesmente temido e odiado, mas como um incentivo a umaauto-avaliação e a uma vida reta. Uma compreensão do fato de que oSenhor está julgando Seu povo aqui e agora pode ser um poderosoincentivo para os cristãos. Acrescenta dignidade e sentido à vida toda.O julgamento tem essa característica na Bíblia inteira. Leva as pessoasa um auto-exame e ao arrependimento. Jamais será uma simplesameaça.
Paulo extrai uma segunda conclusão: “Mas, quando julgados,somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com omundo” (v. 32). Os sofrimentos de vários tipos que o cristão podeencontrar não devem ser vistos como males sem nome. Na verdade, sãosinais do amor de Deus. São a indicação de que Sua mão paterna estásobre nós, e Ele não nos deixará continuar em alguma trilha pecaminosasem nos “julgar”, para que possamos retornar à nossa legítima aliança.
De modo semelhante, o escritor de Hebreus lembra-nos de que “oSenhor corrige a quem ama, e açoita a todo filho a quem recebe” (Hb12.6). Ele continua, dizendo que a disciplina “produz fruto pacífico aosque têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (v. 11). Aterminologia não é a mesma de 1 Coríntios, mas a idéia é semelhante.
De novo, Paulo agradece a Deus: “... à vista da vossa constância efé, em todas as vossas perseguições e nas tribulações que suportais, sinal
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46 • IMORTALIDADE
evidente do reto juízo de Deus” (2 Ts 1.4, 5). Normalmente, não
consideraríamos as perseguições e aflições como evidências do reto juízo de Deus, mas duas observações são oportunas. A primeira é que
o “sinal evidente” não são os problemas propriamente ditos, mas, aoque parece, o comportamento dos cristãos tessalonicenses nos
problemas. A outra é que, como vimos no parágrafo anterior, os problemas e as dificuldades fazem parte do relacionamento de Deus
com Seu povo. Ele os julga continuamente e os leva através das coisasdesagradáveis dessa vida para a glória que lhes preparou. As
dificuldades que os cristãos encontram não devem ser vistassimplesmente como acidente de percurso. São os meios que Deus usa
para disciplinar Seu povo. Elas têm o efeito de revelar algumas
qualidades do caráter cristão que nunca emergem durante os diasserenos de paz e tranqüilidade.
Mas, apesar de Deus usar a punição para trazer Seu povo ao
caminho do desenvolvimento cristão, não podemos achar que Seus julgamentos são arbitrários. Eles surgem da natureza do pecado
humano e estão relacionados a ele. Abraham Lincoln coloca assim a
questão: “Esperamos com otimismo —oramos com fervor —que esse
tremendo flagelo da guerra possa passar rapidamente. Ainda assim, se
Deus quiser que continue, até que seja sugada toda a riqueza
armazenada pelos escravos durante duzentos e cinqüenta anos de
fadigas não-reconhecidas, até que cada gota de sangue derramada pelochicote seja paga por outra derramada pela espada, como foi dito
trezentos anos atrás, ainda se deve dizer que ‘os juízos do Senhor sãoverdadeiros e todos igualmente justos’”. Eis aqui a retração humana
natural diante do sofrimento. Mas ela está associada à percepção de
que a vida é um negócio sério no qual os justos juízos de Deus são e
devem ser executados. Há também uma prontidão para aceitar os
julgamentos do Senhor por aquilo que são. Somente tal atitude pode
trazer proveito aos homens quando estão atravessando dificuldades.
Hoje, muitas punições “corretivas” têm pouca relação com o crime.
Aliás, confessa-se que a base não é a justiça. Elas são feitas para corrigir
e administradas em função disso. Muitas passagens das Escrituras
fazem-nos lembrar que os julgamentos de Deus são retos. “E toda
transgressão e desobediência recebeu justo castigo” (Hb 2.2). Pedro
nos lembra de que o Pai, “sem acepção de pessoas, julga segundo as
obras de cada um” (1 Pe 1.17), e O identifica como “aquele que julga
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 47
retamente” (1 Pe 2.23). Em Apocalipse há júbilo pela maneira como o
Senhor Deus adapta o julgamento ao crime: “Tu és justo, tu que és eque eras, o Santo, pois julgaste estas coisas; porquanto derramaram
sangue de santos e de profetas, também sangue lhes tens dado a beber;
são dignos disso” (Ap 16.5, 6). Até o altar moveu-se para dizer:“Certamente”, ó Senhor Todo-poderoso, verdadeiros e justos são osteus juízos” (v. 7). Talvez a idéia seja apresentada com muito mais vigor
no capítulo de abertura de Romanos, com seu lembrete de que a ira deDeus está sendo revelada (Rm 1.18) e seu tríplice “Deus os entregou”
(Rm 1.24,26,28). Mesmo agora o pecado está colhendo uma terrívelrecompensa.
Apresentamos duas últimas afirmações sobre os julgamentos
presentes do Pai. A primeira está em Apocalipse 18.8: "... poderoso éo Senhor Deus que a julgou”. O mal é forte neste mundo, e com muita
freqüência as forças do bem parecem miseravelmente incompetentes.Mas às vezes as aparências enganam. Os cristãos sabem com certeza
inabalável que o Senhor está sobre todas as coisas e que “poderoso é oSenhor Deus que julga”. A outra pode ser vista na parábola de Lucas
13.6-9. Depois de três estações infrutíferas, o proprietário da figueira
sugere que a cortem: “... para que está ela ainda ocupando inutilmentea terra?” Mas o viticultor pede mais um adiamento: “Deixe-a ainda este
ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar
fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”. Em outras palavras, não há
nenhuma precipitação nos julgamentos do Senhor. Ele esgota todos os
recursos para que haja muitos frutos. Mesmo quando os homens dizem:“Não há motivo para dar uma nova chance”, Ele diz: “Que haja uma
nova oportunidade”. Quando o julgamento de Deus cai sobre um
homem, ele pode estar seguro de que exauriu as reservas da paciência
divina, e tais reservas não são escassas.
3 • O julgamento de Cristo
Desde o início estava claro que a missão de Jesus incluía uma severa
condenação do mal. João Batista disse que Ele batizaria “com o Espírito
Santo e com fogo. A sua pá ele a tem na mão, e limpará completamente
a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em
fogo inextinguível” (Mt 3.11,12). O batismo com fogo bem pode indicar
o fogo do julgamento, o fogo que purga a impureza, e é certo que o
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restante da citação transmite essa idéia. O fato de Cristo exigir
continuamente o arrependimento e denunciar impiedosamente o mal,onde quer que o encontrasse, mostra com que seriedade se deve encararesse raciocínio.
A exigência de arrependimento leva-nos a outro aspecto do julgamento no Novo Testamento. É essencialmente um julgamento deindivíduos. No Antigo Testamento é freqüente a citação de naçõesinteiras, e o julgamento cai sobre elas. No Novo Testamento, embora aresponsabilidade social e comunitária não sejam desprezadas, a ênfase
do julgamento está naquilo que o indivíduo faz ou deixa de fazer.João tem algumas coisas interessantes a dizer sobre as atividades
presentes de Cristo como o juiz dos homens. Obviamente, isso nãodifere em essência do julgamento do Pai, porque os dois são um. Jesusdiz: “Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma por que ouço, julgo.O meu juízo é justo porque não procuro a minha própria vontade, e,sim, a daquele que me enviou” (Jo 5.30). E, novamente: “Se eu julgo,o meu juízo é verdadeiro, porque não sou eu só, porém eu e aquele queme enviou” (Jo 8.16). A unidade entre o Pai e o Filho, ressaltada comtanta força no quarto evangelho, significa que o julgamento feito porum é o julgamento feito pelo outro.
Mas esse evangelho deixa claro que o propósito da vinda de Jesusnão era o julgamento. “Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo,não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo porEle” (Jo 3.17). “Eu não vim para julgar o mundo, e, sim, para salvá-lo”
(Jo 12.4.7). João retrata sistematicamente a Jesus como o Salvador. Elefoi enviado pelo Pai com o propósito expresso de salvar os homens, eEle segue Seu caminho sem Se desviar. É verdade que Ele viránovamente para julgar. O objetivo de João não é descrever isso emdetalhes — seu tema é a salvação. Ele menciona isso e destaca que oPai deu ao Filho autoridade para executar o julgamento. Ele lembraaos leitores que “todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voze sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e osque tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo 5.28,29).Ele não se estende nessa verdade, mas sabe que ela existe; ele seconcentra na salvação.
Ainda assim, paradoxalmente, ele pode mostrar a Jesus, dizendo:“Eu vim a este mundo para juízo” (Jo 9.39). A contradição com ascitações já vistas é apenas aparente. Em sua primeira vinda, Jesus não
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 49
tinha a intenção de julgar os homens, assim como o sol não tem a
intenção de lançar sombras, mas se o sol brilha sobre uma paisagem, assombras são inevitáveis. O próprio fato de o sol brilhar implica nisso.E quando o Filho de Deus vem ao mundo, trazendo salvação, éinevitável que Ele julgue os homens pelo mesmo motivo. Ele não veiotrazer a paz, mas a espada (Mt 5.34). Há um processo de seleção. Aoferta de salvação é divisora. Faz separação entre aqueles quecorrespondem à oferta graciosa e aqueles que não. E esse processocontinua. Como E. Stauffer nos faz lembrar: “História é krisis, é a
separação das almas”.João tem uma passagem muito importante na qual ele nos diz como
esse julgamento opera: “... o julgamento é este: Que a luz veio aomundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suasobras eram más” (Jo 3.19). “Julgamento”, aqui, é krisis, que denota o
processo, não krima, que indica a sentença. João não está dizendo:“Esta é a sentença que Deus decretou”. Ele está dizendo: “Este é o
processo. É assim que ele funciona”. “A luz”, Cristo (Jo 8.12), veio aomundo. Por causa disso, os homens são forçados a uma decisão. E são julgados por suas atitudes em relação a Ele. A tragédia disso é que,quando se encontram face a face com Cristo, os pecadores não seinteressam por Ele. A verdade inacreditável é que os homens preferemsua escuridão à luz de Cristo. Suas obras são más e, portanto, fogemdEle.
Não se pode menosprezar a importância disso. Os homens hoje
muitas vezes rejeitam toda idéia de julgamento. Acham que a idéia deum Deus que julga os homens e os condena ao inferno não se harmonizacom o conceito de Deus como um Pai amoroso. Essa objeção ignoratotalmente a maneira como funciona o julgamento. Não há um Deustirânico olhando os homens com severidade, pinçando alguns comquem Ele não quer conversa. Deus é amor. Os homens sentenciam-sea si mesmos. Eles acolhem a escuridão e recusam a luz.
Em certo sentido, Judas não vendeu realmente a Cristo. O Senhorveio à terra com o objetivo expresso de chegar à cruz. Se pudermosimaginar isso, mesmo que Judas tivesse sido fiel e verdadeiro, não teriaevitado a crucificação. Jesus veio para morrer. Mas se ele não vendeua Jesus, Judas vendeu a si mesmo, irrevogavelmente. E o preço que eleestabeleceu para si foram trinta moedas de ouro!
E o processo continua. Um homem está determinado a desenvolver
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seu negócio e fazer dinheiro. Isso significa gastar, com o negócio, o
tempo que ele deveria estar dando para outras coisas, e envolve o usode práticas que podem, no mínimo, podem ser consideradas suspeitas.
Esse é o tipo de culto a Mamom que é incompatível com Cristo. Ele
constrói seu negócio. Ele faz seu dinheiro. Nunca se diga que Deus,
numa cruel vingança pelo sucesso do homem, jogou-o para fora do céu.Ele é que se jogou. Ele deu à sua alma imortal o preço do seu negócio
e passou a vendê-la por ele. “O julgamento é este: Que... os homens
amaram mais as trevas que a luz.”
O princípio de que maior privilégio significa maior responsabilidade e julgamento mais severo permeia todo o Novo Testamento. Em João 9.41, o pecado dos fariseus dependia do fato de
declararem que enxergavam (se fossem cegos, não teriam pecado). Em
João 15.22-24, aqueles que viram as obras de Cristo e ouviram Suas palavras não têm desculpas: viram e odiaram tanto o Filho como o Pai.
Paulo obteve misericórdia, porque o seu pecado de blasfêmia e
perseguição foi cometido “na ignorância, na incredulidade” (1 Tm
1.13). Em 2 Pedro 2.20ss., considera-se melhor nunca ter conhecido o
caminho da justiça do que voltar atrás depois de conhecê-la. O tema do
julgamento perpassa todas essas passagens. Se os homens escolhem ocaminho inferior quando podem ter o de cima, então condenam a si
mesmos. Não há motivo para fechar os olhos a esta realidade
implacável.
IV. O JULGAMENTO NO NOVO TESTAMENTO:UMA CERTEZA FUTURA
Se por um lado é verdade que os homens julgam a si mesmos no
presente, por sua reação perante Cristo, a luz do mundo, por outro,
também é verdade que nenhum julgamento é final, exceto aquele que
Deus dispensará no último dia. O Novo Testamento tem muita coisa a
dizer sobre isso, e nós selecionamos dez pontos específicos.
1 • Ojulgamentoéaxiomático
Hoje, é comum os homens terem dificuldades com a idéia de umdia de julgamento para toda a terra. Uns se perturbam com o
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 51
mecanismo disso; outros se incomodam com o conceito de Deus como
juiz. Como os gregos da antigüidade, eles rejeitam completamente aidéia, mas os homens do Novo Testamento não tinham essesescrúpulos. Pelo contrário, consideravam ser fundamental e básico queDeus julgasse todos os homens. Se Deus é Deus, Ele deve julgar todaa criação. Escrevendo aos romanos, Paulo pergunta: “... mas, se a nossainjustiça traz a lume a justiça de Deus, que diremos? Porventura seráDeus injusto por aplicar a sua ira?” Ele insere um parêntese paraexplicar sua linguagem dura: “falo como homem”, e então prossegue:
“Certo que não. Do contrário, como julgará Deus o mundo?” (Rm 3.5,6). O julgamento final não é algo que deva ser defendido. É umadoutrina que serve de base para outras defesas. Paulo pressupõe quenão pode haver dúvida quanto a isso. É um ponto pacífico para todosos cristãos. O escritor de Hebreus toma exatamente a mesma posiçãoquando fala do “juízo eterno” como um dos “princípios elementares dadoutrina de Cristo” (Hb 6.1, 2). Paulo também pode usar esse
julgamento final como base para exortar seus convertidos a não seremseveros ao julgar os outros. Não importa, diz ele, o modo como vocêsou qualquer tribunal humano possa me julgar quanto a isso. Eu mesmonão me julgo, acrescenta. Ele não sabe de nada que possa condená-lo
perante Deus, mas não é isso que o justifica. “Quem me julga é oSenhor. Portanto, nada julgueis antes de tempo, até que venha oSenhor” (1 Co 4.3-5). Isto é, julgar os outros ou julgar a si mesmo écompletamente fútil. Só um julgamento interessa; e ele ainda não
chegou. Esperemos até que o Senhor venha com Seu julgamento perfeito. A certeza do julgamento pode ser deduzida do fato de queJesus realmente pensava ser o Messias. Ele não entendia o messiadocomo os judeus de Sua época, mas sabia que era o Ungido. Parece quehavia, entre todos os que buscavam o Messias, uma crença universal deque Sua vinda iria introduzir um período de julgamento e tribulação aque denominavam “as aflições do Messias”. Seus ensinos sobre o
segundo advento e o julgamento que, então, executará mostram commuita clareza que Jesus não repudiava essa idéia (Mt 25.3lss.; Jo 5.22,27ss.) O messiado não exclui, mas, sim, implica julgamento.
C. F. D. Moule demonstrou que ambos os sacramentos implicamuma doutrina do julgamento. O batismo é visto como morrer com Cristoe ressurgir com Ele. Portanto, trata-se de “uma aceitação voluntária doveredicto do pecado, em união com Cristo, cuja perfeita obediência à
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sentença foi aceita e coroada pela ressurreição”. O batismo “é, em
essência, confessar o pecado, aceitar o veredicto”. Não pode serrepetido, e traz consigo aquela qualidade definitiva do julgamento final.A santa ceia deve ser precedida por um auto-julgamento, casocontrário, será seguida pelo julgamento divino (1 Co 11.28, 29).“Portanto, a eucaristia é, com certeza, uma ocasião de julgamento — tanto de auto-julgamento voluntário, na aceitação do veredicto de Deus
para os homens caídos, como de sujeição forçada ao julgamento deDeus.”
Os escritos mais recentes apresentam uma tendência de minimizarou menosprezar este elemento do ensino bíblico. Por exemplo, a“escatologia realizada” de C. H. Dodd coloca toda a ênfase no presente.Para ele, “o eschaton moveu-se do futuro para o presente, da esfera daexpectativa para a da experiência realizada”. “Sem dúvida, está claroque, para os escritores do Novo Testamento em geral, o eschaton entrouna história; o domínio secreto de Deus foi revelado; o porvir já chegou.”
Ao tratar do julgamento, apesar de saber que Paulo, por exemplo, falade um julgamento final, Dodd coloca toda a sua ênfase no presente.“Deus está confrontando (os homens) em Seu reino, poder e glória.Este mundo tornou-se o palco de um drama divino. É a hora da decisão.Isto é escatologia realizada.” “Ainda assim, o reino de Deus vem com
julgamento. Os líderes religiosos, que censuraram Jesus por Seutrabalho e ensino, estavam naquele mesmo momento pronunciando
ju lgamento sobre si mesmos pela atitude que tiveram, por sua
precaução egoísta, seu exclusivismo, sua negligência em relação àsresponsabilidades e sua cegueira diante do propósito de Deus.” “Umfim absoluto para a história, seja Sua vinda concebida para cedo outarde, nada mais é do que uma ficção projetada para expressar arealidade da teleologia dentro da história.” A última frase em seu livroThe Apostolic Preaching (“A Pregação Apostólica”) faz do julgamentofinal nada mais do que “o mito mais inadequado do objetivo da
história”.Como insistimos numa seção anterior, o Novo Testamento dáênfase à idéia de um julgamento presente. Mas dizer que ele não atestanenhum outro julgamento é obviamente falso. As proposições sobre o
julgamento futuro são tão freqüentes e tão fundamentais para o pensamento dos escritores bíblicos que nenhuma teologia que deixe defazer justiça a isso pode ser considerada coerente com a fé do Novo
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 53
Testamento. “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a essa
vida, somos os mais infelizes de todos os homens”, escreveu Paulo
(1 Co 15.19). A esperança é uma das grandes chaves do pensamentoneotestamentário, e ela está centralizada nEle, que morreu uma vez
pelos homens e retornará para julgá-los e estabelecer o reino em toda
a sua plenitude. Uma escatologia puramente “realizada” é calamitosa,
tanto por não se ajustar à mensagem do Novo Testamento como por
suas trágicas conseqüências.As objeções levantadas contra a escatologia realizada de Dodd
aplicam-se também à “escatologia reinterpretada” de R. Bultmann. Eleafirma reiteradas vezes que o julgamento não passa de uma atividade
presente. “A historicização da escatologia, já introduzida por Paulo, é
completada radicalmente por João... O julgamento ocorre no simplesfato de que, no encontro com Jesus Cristo, efetua-se a separação entre
a fé e a incredulidade, entre os que vêem e os que são cegos... Portanto,
não é nenhum evento cósmico, dramático: ele acontece na resposta dos
homens à palavra de Jesus.” Mas, para provar sua teoria, Bultmann
precisa recorrer a uma boa dose de cirurgia crítica. Por exemplo, paraele, “no último dia”, em João 6.39, 40, 44; 12.48, seria “uma redaçãoeclesiástica posterior”, extirpando igualmente João 6.51b-58; 5.28, 29
etc. Tal procedimento dá-nos boas informações sobre as idéias de
Bultmann, mas muito pouco sobre o ensino do Novo Testamento.
2 * 0 dia do julgamento será majestoso
Quando o Senhor estava na terra, os homens podiam não tomar
conhecimento dEle. Agora que Ele foi para o céu, os homens podem
ignorá-10 e até negar Sua própria existência. Mas quando Ele vier de
novo para julgar, virá em tamanha majestade que não haverá como
deixar de reconhecer a grandiosidade de Sua pessoa. Ele virá “entre
suas santas miríades, para exercer juízo contra todos...” (Jd 14, 15),
“com os anjos do seu poder, em chama de fogo (i. e., a túnica do Juizmajestoso), tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e
contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus”
(2 Ts 1.7, 8). Naquele dia “os céus passarão com estrepitoso estrondo
e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que
nela existem serão atingidos” (2 Pe 3.10). Apocalipse descreve um
“grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença
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fugiram a terra e o céu”. Os mortos, “os grandes e os pequenos”,
estavam diante do trono e foram julgados pelos livros, de acordo com
suas obras (Ap 20.11,12). Paulo fala de um dia em que todos os homens
comparecerão perante o trono de Cristo para serem julgados (2 Co 5.10;
cf Rm 14.10). O próprio Senhor falou que Ele virá em “majestade”,com todos os anjos”, sentar-Se-á “no trono da sua glória”, e terá “todas
as nações” reunidas em Sua presença. Então “ele separará uns dos
outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas”. Ele mandará um
grupo “para o castigo eterno” e o outro “para a vida eterna” (Mt
25.31-46). O quanto disso tudo é apenas linguagem simbólica, nãoestamos aptos para dizer. Mas o que está claro é que o Juiz é visto como
um personagem magnífico, como alguém cuja aparência vai
assombrosamente além da descrição, aplicando a justiça final com mão
majestosa. Esse grande dia é confirmado em toda parte, ao longo do
Novo Testamento. Há julgamentos preliminares de Deus em toda a
história. Mas no final haverá o clímax, que procederá dos julgamentos
parciais e preliminares, e cumprirá perfeitamente tudo o que eles
prenunciam.Encontram-se várias formas de se referir ao dia. Ele é chamado “o
dia de Deus” (2 Pe 3.12), “o dia do Senhor” (2 Pe 3.10), “o dia do Senhor
Jesus” (1 Co 5.5), “o dia de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Co 1.8), “o
dia de Cristo” (Fp 2.16), “aquele dia” (2 Ts 1.10), “o último dia” (Jo
6.39), “o grande dia” (Jd 6), “o dia da ira e da revelação do justo juízo
de Deus” (Rm 2.5), “o dia da redenção” (Ef 4.30), “o dia da visitação”
(1 Pe 2.12), “o grande dia da ira” (Ap 6.17), “o grande dia do DeusTodo-Poderoso” (Ap 16.14), “o dia do juízo” (1 Jo 4.17). Essa
multiplicidade na maneira de se referir ao dia indica algo do fascínio
que ele exercia sobre os homens do Novo Testamento e também algo
da sua múltipla grandeza.
3 • Cristo, o Juiz
O Pai julga a todos os homens, mas Ele não o faz em pessoa. “Ao
Filho confiou todo o julgamento” (Jo 5.22). Isso acontece especial
mente no caso do juízo final. Na cena do julgamento em Mateus
25.31-46, o Filho do Homem é o juiz. Pedro nos diz que “ele é quem
foi constituído por Deus Juiz de vivos e de mortos” (At 10.42). Paulo
fala da “coroa da justiça... a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 55
dia” (2 Tm 4.8). Essa verdade é tão básica que foi inserida nos credos
da Igreja: "... e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e osmortos”; “de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos”.Em todo o Novo Testamento, Jesus aparece como nosso Salvador.
Ele veio à terra com o propósito expresso de aniquilar nossos pecados,o que significava morrer na cruz. Essa é a nossa segurança de que o
julgamento final será um julgamento de amor. Mas isso não quer dizerque o julgamento deixa de ser uma realidade implacável. O próprioamor auto-sacrificial que vemos no Calvário é o mais odioso julgamento
imaginável para uma vida egoísta. Jesus mesmo, imediatamente depoisde dizer “eu não vim para julgar o mundo, e, sim, para salvá-lo”,continuou: “Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras temquem o julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará noúltimo dia” (Jo 12.47,48). Embora Jesus tenha vindo com palavras deconforto e salvação, ainda assim o homem que se afasta delas iráconsiderá-las palavras de condenação no último dia. Esse é o outro ladoda salvação. Tiago nos diz que seremos julgados “pela lei da liberdade”(Tg 2.12). A mesma liberdade que temos nos condenará, se nãoconseguirmos usá-la corretamente.
4 • Todos os homens serão julgados
O julgamento será tal que ninguém poderá escapar dele. Os vivose os mortos estão envolvidos (2 Tm 4.1; 1 Pe 4.5); até os anjos estãoincluídos (2 Pe 2.4; Jd 6). “Deus é o Juiz de todos” (Hb 12.23). Atentação do homem religioso é pensar que ele escapará dessa hora. Ele
pode entender palavras como “Deus julgará os impuros e adúlteros”(Hb 13.4). Ele pode apreciar a força da máxima de Paulo de que todosserão julgados: “... todos quantos não deram crédito à verdade; antes,
pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça” (2 Ts 2.12). Mas ele gostade se considerar imune. É a atitude que T. F. Torrance critica na igreja
medieval: “Aqui o eschaton está domesticado e aninhado de tal formadentro da igreja que, longe de estar sob o julgamento final, a igreja oexecuta, usando seu poder de ligar e desligar; longe de ser penitente ereformável, a igreja pode apenas desenvolver-se de acordo com as próprias normas imanentes que correspondem ao padrão fixo doreino”.
Mas o Novo Testamento não deixa o homem religioso descansar
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em sua presunção complacente, instigando-o a ficar bem alerta,insistindo em que ele também está sob julgamento. Considere as
palavras citadas em Hebreus 10.30 (Dt 32.36): “O Senhor julgará o seu povo”. Isso coloca a questão a uma distância desagradável, muito pertode casa. E é ainda pior em 1 Pedro 4.17: “Porque a ocasião de começaro juízo pela casa de Deus é chegada”. Jesus assegura-nos de que pessoascomo os escribas, com pretensões religiosas, “sofrerão juízo muito maissevero” (Mc 12.40), e Tiago nos lembra de que os mestres cristãoshaverão de receber >‘maior juízo” (Tg 3.1). Jesus nos diz que, no
julgamento, alguns afirmarão: “Senhor, Senhor! porventura, não temosnós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios,e em teu nome não fizemos muitos milagres?” apenas para receber Suasentença: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais ainiqüidade” (Mt 7.22,23). Os que recebem privilégios especiais serão
julgados mais severamente. Como J. V. Langmead Casserley expressa:“Aqueles que tomam o evjangelho para si mesmos devem viver para aglória do evangelho ou morrer sob o julgamento dele”. Muito longe dese livrarem rapidamente do julgamento, os religiosos serão julgadoscom maior rigor, exatamente por causa de seus grandes privilégios.Ignorar isso é menosprezar uma verdade que o Novo Testamentoreitera seguidamente. É interessante notar que as pessoas surpreendidas naquele dia não serão os totalmente estranhos, mas aqueles quese consideram seguros dentro da igreja.
5 • Todas as coisas serão julgadas
O julgamento de que a Escritura fala é aquele em que nada podese manter oculto. “Deus há de julgar os segredos dos homens” (Rm2.16, ARC). O Senhor “trará à plena luz as coisas ocultas das trevas,mas também manifestará os desígnios dos corações” (1 Co 4.5; cf Mc4.22; Lc 12.2, 3). Muitos de nós conseguiriamos encarar o julgamento
com tranqüilidade, se pudéssemos nos assegurar de que certas coisas permaneceríam ocultas. Mas todas as nossas obras estarão sob julgamento, e aí está o problema. “Tudo” inclui todos os erros, pequenos e grandes. “De toda palavra frívola que proferirem oshomens, dela darão conta no dia do juízo” (Mt 12.36). É a natureza degrande abrangência do julgamento que o torna tão amedrontador. Aomesmo tempo, a idéia de que tudo que fazemos interessa a Deus faz
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com que a vida valha a pena. Ela dá dignidade até ao mais insignificantedos atos, à menos importante das palavras. Até um copo de água friaoferecido não passará sem ser notado. Devemos também ter em menteque, em Romanos 2.16, Paulo acrescenta a seguinte expressão às
palavras sobre julgamento citadas acima: “de conformidade com o meuevangelho”. Julgamento não é nenhum desastre horrível em oposiçãoao evangelho. É o cumprimento da essência da mensagem doevangelho. Não se pode repudiar ou reprimir o fato de que, para Deus,tudo na vida é suficientemente importante para que Ele tome
conhecimento e exija uma prestação de contas. Isso deve ser bem-vindo.Faz parte das boas novas.
6 • O julgamento é inevitável
“... aos homens está ordenado morrerem uma só vez e, depois disto,o juízo” (Hb 9.27). O julgamento é tão inevitável quanto a morte, ou
melhor, até mais, já que o Novo Testamento considera que alguns aindaestarão vivos na segunda vinda e, portanto, não verão a morte, mas nãovisualiza ninguém escapando do julgamento. Para alguns há “certaexpectação horrível de juízo”, mas, com ou sem medo, os homens não
podem escapar dele. Paulo faz uma pergunta retórica: “Tu, ó homem... pensas que te livrarás do juízo de Deus?” (Rm 2.3; c f Mt 23.33), e nãohá dúvida quanto à resposta. Basicamente a idéia remonta a Jesus.Como J. Jeremias afirma: “A mensagem de Jesus não é só a pregação
da salvação, mas também o anúncio da condenação, advertência econvite à conversão diante da tremenda seriedade da hora. O númerode parábolas deste grupo é grande, terrivelmente grande. O chamadoao arrependimento e o tom de urgência percorrem os evangelhos.
Esse aspecto do ensino de Jesus não agrada o homem de hoje.Portanto, ele simplesmente o rejeita, descartando do pensamento todaidéia de um juízo final. Ele não se considera envolvido. O Novo
Testamento não participa de seu otimismo irracional. Ele insiste emque, além e acima do julgamento que sobrevêm inevitavelmente, aquie agora, sobre o homem, há um julgamento final em que todos estarão
perante o tribunal de Deus. O julgamento então dispensado terá umcaráter irreversível que nenhum dos julgamentos parciais e preliminares dessa terra podem reivindicar.
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60 • IMORTALIDADE
9 • O julgamento é sério
O Novo Testamento não deixa a menor dúvida de que o julgamento
que nos espera está carregado das mais amplas conseqüências. Paulo
fala de certas coisas pecaminosas em Romanos 1, e então diz que asentença de Deus é que “são passíveis de morte os que tais coisas
praticam” (Rm 1.32; cf “o salário do pecado é a morte”, 6.23). Jesus
falou de alguns que sairiam das sepulturas “para a ressurreição do juízo”
(colocada em contraste com a “ressurreição da vida”, Jo 5.29). O
escritor de Hebreus diz que “se vivermos deliberadamente em pecado,depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não
resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível
de juízo” (Hb 10.26, 27). Embora possamos estar certos de que amisericórdia de Deus chega até onde pode chegar, não podemos estarcegos para o fato de que o julgamento final envolve sérios fatores. O
pecado deverá ser computado como pecado, recebendo sua justarecompensa.
Para nossa geração, isso é praticamente inacreditável. Parece-nos
axiomático que um Deus de amor liberte todos os homens. Não é isto
que as Escrituras ensinam. E, na verdade, esse ponto de vista acaba
perdendo o que tenta proteger. Como McNeile Dixon nos lembra, “os bondosos humanistas do século XIX decidiram aperfeiçoar o
cristianismo. A idéia do inferno feria suas susceptibilidades. Eles o
fecharam, e para surpresa deles a porta do céu também se fechou com
um estrondo melancólico. A face maligna de Satanás os perturbava.Eles o dispensaram, e no mesmo momento Deus bateu em retirada”.Se quisermos preservar o fundamento do otimismo cristão, temos de
insistir nas sérias questões envolvidas numa verdadeira doutrina do julgamento.
Outra crítica contra o ponto de vista a que nos estamos opondo é
que este não leva a sério o significado do amor. Como Aulen nos
lembra, “em última análise, o julgamento de Deus é entendido como
uma expressão do Seu amor, porque o único julgamento realmenteradical do pecado é o amor puro”. O pecado visto como transgressão
da lei de Deus é um assunto sério. Mas, quando os homens desviam-se
do dom que Deus oferece no amor redentor de Cristo, então é
infinitamente pior. O pecado contra o amor é o mais hediondo dos
pecados. Na Bíblia, o quinhão dos definitivamente impenitentes é a
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A DOUTRINA DO JULGAMENTO NA BÍBLIA • 61
condenação divina.
Com freqüência, isto se expressa no Novo Testamento nos termosda ira de Deus. Às vezes, retrata-se a ira atuando no presente (e. g. Rm13.4, 5), mas este é um conceito basicamente escatológico. É “a iravindoura” (hê mellousê orgê, Mt 3.7; hê orgê hê erchomenê, 1 Ts 1.10).Em Romanos 2, a idéia do dia do julgamento mistura-se com a da iravindoura. Na verdade, aquele dia é “o dia da ira” (Rm 2.5). Tenta-sedemonstrar que “a ira” é um processo impessoal no Novo Testamento.Em minha opinião, essas tentativas são totalmente fracassadas. O Deus
do Novo Testamento não Se recosta na cadeira, deixando as leis“naturais” provocarem a derrota do mal. Ele Se opõe ativamente aomal de todas as maneiras e formas. Sua mão está presente onde querque surjam conseqüências desagradáveis por causa de ações pecaminosas. Em todo caso, é difícil perceber o significado que se podeatribuir a um “processo impessoal” (aplicado a atividades morais) numuniverso onde Deus é onipresente e todo poderoso. Se Deus é um Deus
moral, certamente tomará atitudes enérgicas em oposição ao mal. A irade Deus é uma conseqüência necessária de Sua santidade, retidão eamor. Juntamente com isso, devemos ter em mente que todo o peso do
julgamento e da ira de Deus caiu sobre Cristo (Rm 3.24ss.; 2 Co 5.21;1 Jo 4.10). É exatamente no contexto do julgamento que se deveentender o sacrifício. Se Cristo suportou um julgamento tão pesado,“como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hb2.3).
10 • Os fiéis podem confiar no julgamento
Embora os fiéis passem pelo julgamento como todo o resto dahumanidade, eles não o enfrentarão da mesma forma. A atitude do Novo Testamento não é de retraimento covarde, mas de expectativanuma mistura de alegria e solenidade. Como na frase de P. T. Forsyth,
o julgamento “sempre significa a aurora do reino mais do que a ruínado mundo”. “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?”,
pergunta Paulo. “É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (Rm8.33,34). “Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho edo amor que evidenciastes para com o seu nome” (Hb 6.10). Amagnífica doxologia de Judas retrata a Deus como “aquele que é
poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com
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exultação, imaculados diante da sua glória” (Jd 24). João fala do amor
sendo aperfeiçoado em nós “para que no dia do juízo mantenhamosconfiança” (1 Jo 4.17). Sua palavra correspondente a “confiança” é parrhesia, que literalmente significa “toda a fala”. Isso indica umaatitude em que as palavras fluem livremente, quando nos sentimos àvontade. E os cristãos irão se sentir à vontade naquele grande dia, poisele marcará o triunfo de seu Salvador no reino do Pai. Por que não sesentiríam à vontade ao ver Sua vontade perfeitamente realizada?
A doutrina do julgamento final encerra muitas verdades
importantes. Ela salienta a responsabilidade do homem e a certeza deque, por fim, a justiça triunfará sobre todos os erros que são parteintegrante desta vida presente. A primeira empresta dignidade à maishumilde das atitudes; a última traz calma e segurança àqueles que estãono auge da batalha. Esta doutrina dá sentido à vida. O conceito gregoda história como um processo cíclico trancava os homens num moinhoonde eles podiam lutar com todas as forças, mas nem deuses nem
homens conseguiam avançar. O conceito cristão do julgamento indicaque a história caminha rumo a um objetivo. O. C. Quick refere-se ao“ato final de Deus numa comunidade de almas redimidas, num universoque é ao mesmo tempo um novo mundo e a perfeição do antigo”. O
julgamento preserva a idéia do triunfo de Deus e do bem. É impensávelque o presente conflito entre o bem e o mal possa durar toda aeternidade. O julgamento mostra que o mal será removido definitivamente, com autoridade e determinação. Ele demonstra que, no fim,
a vontàde de Deus será cumprida com perfeição.
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2 Alan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Parece oportuno que o segundo artigo desta coletânea discuta a irade Deus, pois as Escrituras nos dizem que ela está sendo reservada paraaquele dia final em que será revelada em fogo flamejante contra osinimigos de Deus (Ml 4.1; Hb 10.27). Ao levantar esse assunto, R. V.G. Tasker, teólogo inglês, traz para o primeiro plano algo que tem
recebido pouquíssima atenção nos últimos tempos. É muito maissimpático e agradável falar do amor e do perdão de Deus do quecontemplar Seu ódio ardente contra o pecado. Entretanto, Taskerafirma que, ao falar sobre Deus, não se pode ignorar a ira em favor doamor. Uma das heresias mais antigas da igreja é a crença de que o Deuscristão só é um Deus de amor, que não pode sentir ou externar emoções“inferiores”, tais como ciúme ou ira. No segundo século, Márcion criou
uma grande confusão na igreja, afirmando com veemência que todo oAntigo Testamento devia ser rejeitado como algo não-cristão, porque proclamava um Deus irado. Ele dizia que esse Deus devia ser diferentedo Deus revelado no Novo Testamento, onde lemos apenas a respeitodo Seu amor. Parece que Márcion negou-se deliberadamente a ver quea ira e o amor de Deus são encontrados nos dois testamentos. Afidelidade do amor de Deus é afirmada claramente nas alianças doAntigo Testamento e vista na paciência com que trata Seu povoescolhido. Da mesma foi .na, a ira do Senhor é claramente ensinada no
Novo Testamento, tanto por Cristo como por Paulo, e manifestada na própria cruz.
Aliás, cabe assinalar que, em Cristo, a ira e o amor de Deus se unem, pois foi Ele quem, por amor, aplacou a ira de Deus, e é Cristo quem,em ira, colocará em ação a fúria de Deus. Não é à toa que, em
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Apocalipse, Ele é retratado como o cordeiro morto e também como o
leão que ruge (Ap 5.5,6).
Em sua origem, este capítulo apareceu em The Biblical Doctrine o f the Wrath o f God,
publicado na Inglaterra por The Tyndale Press, em 1960. Reproduzido aqui na íntegra
com tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
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2 R. V. G. Tasker
A IRA DE DEUS
I. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA FORA DO PACTO
O locus classicus da Escritura em relação à manifestação da iradivina no mundo pagão é Romanos 1.19-32. Nesta passagem, Pauloinsiste em que o mundo não-judeu não pode apresentar a desculpa de
que não conhece a Deus, porque não foi favorecido com a revelaçãoespecial concedida a Israel, não merecendo ser objeto da ira divina.Porquanto, embora invisível ao olho humano, Deus se manifestouatravés das obras da sua criação, e por elas se deduzem “seu eterno
poder e divindade”. É evidente, então, que o poder que fez o sol, a luae as estrelas é um poder eterno que possui as qualidades da perfeição eda divindade. Em sentido real, portanto, o mundo pagão teveconhecimento de Deus; mas o pecado, inerente em cada filho de Adão,
conduziu o homem à cegueira de não conseguir deduzir desteconhecimento a obrigação que tinha de glorificar e louvar o Criador.Como resultado, o seu conhecimento de Deus foi pervertido de talmodo que, em Efésios 2.12, Paulo pode descrever os pagãos comoestando sem Deus no mundo (atheoi en toi kosmoi), se bem que nestemundo (este cosmos) o poder eterno de Deus e sua divindade se faziammais patentes. Isto se deve ao fato de que, quando os homens mudama verdade de Deus que lhes é manifesta, substituindo-a por um falsoconceito do caráter divino, perdem o sentido da diferença fundamentalentre o Criador e a criatura; caem então no pecado cardinal da idolatriae dão à criatura a adoração que deveria ser dada unicamente ao Criador.“E assim trocaram a glória de Deus pelo simulacro de um novilho quecome erva” (SI 106.20). Ser idólatra, seja qual for a forma que essaidolatria tome, é estar debaixo da ira de Deus.
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A entrada do pecado no mundo deveu-se à rebeldia de Adão, que
não aceitou a sua condição de criatura, seu estado de dependência esubmissão à soberana vontade de Deus e ao seu desejo de tornar-secomo Deus. Por conseguinte, a ira de Deus voltou-se para ahumanidade desde então. “Não aflige nem entristece de bom grado osfilhos dos homens” (Lm 3.33); todavia, assim, e só assim, pode servindicada a sua soberania. Um dos principais propósitos dos primeiroscapítulos de Gênesis — embora neles não apareça a expressão “ira deDeus” — é registrar os juízos divinos e os castigos que Deus se viu
obrigado a infligir para que a sua soberania absoluta e sua justiça perfeita pudessem ser demonstradas. A sentença de morte pronunciadacontra Adão, a maldição da terra por sua causa e a expulsão de Adão eEva do paraíso terrestre são manifestações - por palavras e obras -da ira divina, sendo, o que é mais importante, reconhecidas como tais
pelos outros escritores da Bíblia. O salmista, por exemplo, quandomedita no fato iniludível da morte, diz: “Pois somos consumidos pela
tua ira, e pelo teu furor, conturbados” (SI 90.7). É “em Adão”, explicaPaulo, que “todos morremos”: “Entretanto reinou a morte desde Adãoaté Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança datransgressão de Adão”, a saber, sobre aqueles que não desobedecerama mandamentos específicos como ele, mas cujos corações, como um dosresultados da queda de Adão, eram desesperadamente ímpios (Rm5.14). Os efeitos da maldição pronunciada contra a terra por causa deAdão, assinala Paulo, permanecerão até a manifestação final dos filhos
de Deus; porque a criação geme, com sinais de frustração, modifica-see decai, pois foi sujeita à vaidade por seu Criador (Rm 8.20). Comocomentou R. Haldane: “A mesma criação que declara a existência deDeus e publica a sua glória, prova também que Deus é o inimigo do
pecado e o vingador dos crimes dos homens, de maneira que a revelaçãoda ira divina é universal, estendendo-se a todo o mundo, e ninguém
pode alegar ignorância”.1A expulsão de Adão e Eva do paraíso — como aprendemos em
Gênesis — levou àquela sucessão de males que Paulo enumera comocaracterísticas da vida humana, em Romanos 1.29, 30. Neste relato
presta-se atenção especial (Gn 1.6) às primeiras etapas da existênciahumana até à natureza destruidora do pecado, com o assassinato deAbel pelas mãos de Caim, a primeira dentre muitas ilustrações bíblicasda verdade que Tiago expressou com estas palavras: “A ira do homem
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A IRA DE DEUS • 67
não produz a justiça de Deus” (Tg 1.20); também alude à
intranqüilidade do homem como “fugitivo e errante pela terra” (Gn4.14) e aos matrimônios incestuosos dos “filhos de Deus com as filhas
dos homens” (Gn 6.1), que constituíram uma violação da ordem moral
que Deus havia estabelecido e que resultou em uma impiedade tãogrande que “se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na terra, e
isto lhe pesou no coração” (Gn 6.6), expressão antropomórfica que
manifesta, mediante um vocabulário muito humano, os motivos esentimentos divinos que levaram o Senhor do universo a destruir com
água toda a raça humana, com exceção de Noé e outros sete. Dentro da perspectiva bíblica, este é o exemplo mais significativo da ira divina na
época pré-cristã, uma manifestação tão evidente do juízo de Deus quenão tem paralelo, só podendo ser comparada ao juízo que o Senhor farásobrevir aos pecadores no último “dia da ira”. A segunda carta de Pedro
não só leva a nossa atenção a concentrar-se neste paralelo com as
palavras: “... pelas quais veio a perecer o mundo daquele tempo,
afogado em água. Ora, os céus que agora existem, e a terra, pela mesma palavra têm sido entesourados para fogo, estando reservados para o diado juízo e destruição dos homens ímpios” (2 Pe 3.6,7), mas também o
próprio Filho de Deus coloca ambos os juízos um ao lado do outro,
quando diz: “Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda
do Filho do homem” (Mt 24.37).Pareceu possível à misericórdia de Deus um novo início para a
humanidade, depois da salvação de Noé e sua família, e a Escritura dá
a entender que Noé tornou notória a seus contemporâneos umarevelação pertinente da justiça soberana de Deus, porque este patriarcada antigüidade é descrito como “pregador de justiça”, em 2 Pe 2.5.
Todavia, o orgulho inerente ao homem levou-o uma vez mais a
esquecer-se da distância existente entre o céu e a terra, ou seja, entre
Deus e o homem, quando este ergueu a torre de Babel. Ludibriando a
misericórdia de Deus revelada na salvação do dilúvio, os homens só
conseguiram provocar novamente a ira divina, que deu lugar à confusãoda linguagem humana e também às numerosas línguas que têm causado
tantos mal-entendidos, constituindo sempre um fator de divisão da raça
humana.
Fica claro, diante destes primeiros capítulos de Gênesis, não só quea ira de Deus se manifesta especialmente para confundir o orgulhohumano, onde quer que este apareça, e infligir sofrimento e morte
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68 • IMORTALIDADE
como justos castigos, mas também que o homem, ao pecar, afunda em
maior pecado e na torrente de miséria e frustração que este sempre trazconsigo. Esta é a verdade que Paulo expõe explicitamente na última
parte do primeiro capítulo da Epístola aos Romanos, à qual devemosvoltar.
Os vários atos de impureza que o apóstolo menciona em Romanos
1.24-27 — alguns deles sendo os mesmos pecados que motivaram a
destruição de Sodoma e Gomorra, “que o Senhor destruiu na sua ira e
no seu furor” (Dt 29.23) —são os efeitos tanto da idolatria, que acarreta
a ira de Deus sobre os homens, como da corrupção inerente ao coraçãohumano. Nesses versículos, Paulo fala de Deus entregando os homens
a suas “imundícias” e “paixões infames”. Deus opera diretamente neste
processo de declínio moral, embora não seja responsável por esse malmoral. Faríamos bem em recordar o comentário de Haldane sobre esta
difícil passagem: “Devemos distinguir entre o ato pelo qual Deus
abandona o homem e as terríveis conseqüências desse abandono. O
abandono procedeu da justiça divina, mas as conseqüências, da
corrupção do homem, na qual Deus não tem parte alguma. O abandono
é uma ação negativa de Deus, ou seja: uma negação em agir, na qual
Deus é soberano e Senhor absoluto, pois, não estando obrigado aconceder a ninguém a sua graça, é livre para retê-la segundo o seu
beneplácito, de maneira que, na retenção da graça, não há injustiça,chegando um momento em que Deus cessa de contender com o homem
(Gn 6.3).
A razão pela qual se presta tanta atenção, nesta parte de Romanos,aos pecados de impureza provavelmente reside não apenas no fato de
que estes pecados eram muito corriqueiros no mundo romano, quando
a carta foi escrita por Paulo, mas porque estes pecados se associam mui
freqüentemente com a idolatria. A verdade que se revela é que, quando
o homem degrada ao seu Deus, também degrada a si mesmo, até chegar
a um nível mais baixo do que os próprios animais. Portanto, o apóstoloafirma, em Romanos 1.28: “E, por haverem desprezado o
conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição
mental reprovável, para praticarem cousas inconvenientes”. Charles
Hodge, parafraseando acertadamente este texto, assim o traduziu, para
ressaltar o jogo de palavras que se verifica no original: “Pelo fato de
eles não terem aprovado a Deus, Deus os entregou a uma disposição
mental que ninguém podia aprovar”.
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A IRA DE DEUS • 69
À luz da linguagem usada neste primeiro capítulo da Epístola aos
Romanos, não é satisfatório limitar o significado da “ira de Deus” no Novo Testamento unicamente às conseqüências que seguem as ações pecaminosas. Sentimos, por conseguinte, como é imprópria a afirmaçãodo professor C. H. Dodd, quando diz: “Paulo reserva o conceito da ‘irade Deus’ não para descrever a atitude de Deus para com o homem, mas
para descrever o processo inevitável de causa e efeito no universomoral”2.
“A ira de Deus”, como se tem dito com acerto, “é um ajfectus tanto
quanto um effectus, uma qualidade da natureza de Deus, uma atitudeda mente de Deus diante do mal”.
Em toda esta parte de Romanos é dada ênfase à justiça essencialde Deus em sua maneira de tratar os pagãos. As manifestações de suaira não são arbitrárias, porque Deus não se compraz na morte do ímpio(Ez 33.11), nem acontecem com nenhum outro propósito que não sejaa vindicação dos seus direitos soberanos como Criador. Os homens
mereceram plenamente a miséria que o pecado lhes acarreta.“Conhecendo eles a sentença de Deus”, escreve Paulo em Romanos1.32, “de que são passíveis de morte os que tais cousas praticam, nãosomente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem”. Aconseqüência está claramente exposta em 2.14,15: a consciência delesestá imersa na corrupção moral a que se entregaram, mas estaconsciência não manchou o sentimento de que são seres morais comum sentido moral e uma responsabilidade: "... testemunhando-lhes
também a consciência, e os seus pensamentos mutuamenteacusando-se ou defendendo-se”. Isto evidencia que, embora nãotenham recebido a revelação especial de uma lei moral como a que foidada a Israel, eles possuem por natureza um conhecimento da diferençaentre o bem e o mal. Em sentido real, “servem eles de lei para simesmos; estes mostram a norma da lei gravada nos seus corações,testemunhando-lhes também a consciência”, por mais que fracassemem agir segundo os ditames desta consciência.
A verdade essencial da questão está no fato seguinte: se o homem possui por natureza um sentido moral, fracassou não apenas emglorificar a Deus e agir de maneira agradável à sua vontade, mastambém se tomou incapaz de fazer qualquer dessas coisas, devido ao
pecado que se foi acumulando sobre os seus membros. Portanto, oshomens, segundo a expressão de Romanos 9.22, são “vasos de ira,
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preparados para a perdição”. O apóstolo volta a dar testemunho desta
verdade, em Efésios 2.3, onde afirma que ele próprio e seus irmãos nafé, não fosse a graça de Deus recebida por ocasião da sua conversão,
eram tekna phusei orines: objetos da ira de Deus, por natureza, tanto
quanto os outros. Por parte dos comentaristas modernos tem havidouma aversão manifesta em dar a esta expressão o seu sentido óbvio e
transparente. Alguns, por exemplo, devido à ausência da palavra Theou
depois de orines têm suposto que Paulo não faz nada mais além de
indicar a propensão dos gentios a violentos ataques de enfado humano.
Esta interpretação não apenas despojaria esta passagem de suasolenidade óbvia, mas também as palavras em questão pouco ou nadaacrescentariam à oração anterior; e há várias passagens do Novo
Testamento onde a palavra orine parece referir-se claramente à ira deDeus, embora não se mencione a palavra “Deus”. Outros
comentaristas, que reconhecem esta referência como indicando a ira
de Deus, parecem preocupados em suavizar tanto quanto possível otom de phusei. Assim, Armitage Robinson interpreta esta expressão
negativamente, convertendo-a em uma paráfrase com as palavras “em
nós mesmos”, ou seja, porque nos faltava a graça divina. Mas a palavra phusis refere-se, sem dúvida alguma, ao que é inato e arraigado nohomem e não a algo que se deve a defeito causado por condições
especiais ou circunstâncias adversas. Nesta passagem, por conseguinte,
o apóstolo sublinha a constituição essencial do homem decaído, que étanto a causa das práticas iníquas a que ele se entrega como o meio pelo
qual estas são persistentemente mantidas. Assim, como em virtude desua criação original à imagem de Deus, o homem está dotado de um
sentido moral e do dom da consciência, segundo Paulo afirma em
Romanos 2.14, também por causa da sua natureza decaída ele se acha
inevitavelmente envolto em uma forma de vida que o torna objeto da
ira divina. A conclusão, portanto, é que, sem o evangelho, toda a raça
humana, engendrada a partir da semente de Adão, é tekna phusei orines.
“O desfavor de Deus”, segundo a tradução que Knox faz de Efésios 2.3,
“é nosso direito de primogenitura”.3
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A IRA DE DEUS • 71
II. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA NO ANTIGO PACTO
Na última metade do segundo capítulo da Epístola aos Romanos,Paulo quer demonstrar que os filhos de Abraão, em virtude dos seus
privilégios como povo escolhido de Deus, estavam predispostos a pensar que tinham o direito de julgar o resto do mundo. Longe de severem livres da ira de Deus —herança que contempla todos os filhosde Adão, logo ao nascerem — eram, ao contrário, objetos especiais
dessa ira. Portador orgulhoso do nome de judeu, confiando na leimosaica e no conhecimento superior que tinha das coisas divinas,consciente de que a sua vocação consistia em ser guia de cegos e luz dosque se achavam nas trevas, ele era, na verdade, vítima desseauto-engano que embota e obscurece o sentido da realidade e da
presença do próprio pecado. Parece que o apóstolo, em Romanos2.16-19, está pensando não apenas nos israelitas de sua época, mastambém nos que viveram no decorrer de toda a história passada deIsrael, história que os denuncia como culpados dos mesmos delitos e pecados que eles condenavam nos demais povos. Paulo especifica aquialguns desses pecados, que podem ser ilustrados detalhadamente, serecorrermos ao Antigo Testamento.
Apesar de ficarem horrorizados com o delito de roubo, os israelitashaviam incorrido amiúde no tráfico desonesto e no engano em suasrelações comerciais, “diminuindo o efa e aumentando o siclo, e
procedendo dolosamente com balanças enganadoras” (Am 8.5; Rm2.21). A despeito do aborrecimento que professavam contra oadultério, o pecado de Davi com Bate-Seba é uma triste amostra de quemesmo o melhor dos israelitas havia cometido o pecado reconhecidocomo característica do paganismo e, por haver dado aos inimigos doSenhor ocasião para blasfemar, Davi incorreu inevitavelmente na iradivina (2 Sm 12.14). Assim mesmo, Deus havia protestado por meio deJeremias que a resposta do povo escolhido à bondade de Deus haviaconsistido em converter a mesma prosperidade que lhes havia sidooutorgada em mais um instrumento de pecado, em uma novaoportunidade para cometer este odioso pecado:"... depois de eu os terfartado, adulteraram, e em casa de meretrizes se ajuntaram em bandos.Como garanhões bem fartos, correm de um lado para outro, cada umrinchando à mulher do seu companheiro. Deixaria eu de castigar estas
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72 • IMORTALIDADE
coisas, diz o Senhor, ou não me vingaria de nação como esta?” (Jr 5.7-9;Rm 2.21).
“... abominas os ídolos, e lhes roubas os templos?” acusa Paulo a
seus irmãos de raça. Eles eram culpados de haver roubado a Deus.4 Pormeio do profeta Malaquias, o Senhor denunciou o desleixo com queeram celebrados os sacrifícios que a lei ritual do antigo pacto exigia:
“Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais, e dizeis: Em que
te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas. Com maldição sois
amaldiçoados porque a mim me roubais, vós, a nação toda” (Ml 3.8,9;
Rm 2.22). Por mais que se gloriasse na lei de Moisés, o israelita, aotransgredi-la, desonrava a Deus, que a havia dado na presença de todos
os povos vizinhos: “Tive compaixão do meu santo nome, que a casa de
Israel profanou entre as nações para onde foi” (Ez 36.20-23; Rm 2.23).O orgulho os impedia de compreender que a circuncisão não podia
oferecer nenhuma segurança aos transgressores da lei. Ela era um sinal
ou selo do pacto; mas, se as obrigações morais impostas pelo pacto eram
descuidadas, a circuncisão não tinha mais valor do que a incircuncisão
(Rm 2.25). Também a filiação à congregação visível de Israel não
subentendia necessariamente a participação no verdadeiro Israel de
Deus, para o que se exigia do crente algo mais do que a observância
minuciosa da letra da lei. Deus pedia uma adoração íntima do coração,
uma devoção que só ele podia reconhecer e cujo louvor só ele podia
outorgar (Rm 2.28,29).
Através das dramáticas perguntas que encerram o capítulo dois de
Romanos, Paulo dirige nossa atenção para o fato de que as pessoas quese orgulhavam de ser o povo de Deus estavam mais sujeitas à ira divina
do que aquelas que se encontravam fora dos privilégios do pacto divino,
porque “àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele
a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão” (Lc 12.48). O juízo
que deve começar pela casa de Deus (1 Pe 4.17) é, por esta mesma razão,
mais severo e terrível. A tragédia do israelita consistia em que ele se
negava a reconhecer o seu pecado, enquanto estava sempre pronto a
considerar como pecadores todos os outros homens. O estado patético
a que havia chegado a religião de Israel, nos dias de Paulo, é o clímax
do contínuo declínio espiritual descrito no Antigo Testamento.
Ao mesmo tempo em que resume a história de Israel, Paulo parece
perguntar-se por que a decadência moral não podia ser contida, apesar
dos castigos que Deus, em sua ira, havia infligido a seu povo, além do
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A IRA DE DEUS • 73
fato de que na lei de Moisés (essa dádiva única de Deus a Israel) havia
sido dada uma grande revelação da ira divina contra o pecado. Oapóstolo diz: “A lei suscita a ira” (Rm 4.15), porque exige perfeita
obediência aos seus mandamentos e, por conseguinte, a sua infraçãosubmete os desobedientes ainda mais às conseqüências da ira divina.Paulo conclui que a principal razão do fracasso de Israel em conter o
processo de corrupção moral estriba-se em sua reação equivocada à
paciência de Deus, sua compreensão incorreta da misericórdia divina
que, muito freqüentemente, não castigou os pecados do povo na plena
extensão que este merecia. Quando Deus guardou silêncio (SI 50.21),logo que o pacto foi violado pela iniqüidade de Israel (segundo a lista
de pecados que o salmista enumera nos primeiros versículos do salmo
citado e que são os mesmos que Paulo assinala nesta passagem deRomanos), os israelitas supuseram equivocadamente que Deus era
como eles: indolente e tolerante para com o pecado. Não conseguiram
entender que a bondade divina, ao dar um prazo para a execução docastigo em sua totalidade, tinha como único objetivo dar outra
oportunidade para o arrependimento (Rm 2.4): desprezaram “a
riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que
a bondade de Deus” os guiava ao arrependimento. Quantas vezes, aoconter a sua ira e recordar que eles eram nada mais do que pó,
“tornaram a tentar a Deus, agravaram o Santo de Israel” (SI 78.38-40)!
Não fizeram caso dos profetas que lhes ensinaram que Deus “é
misericordioso, e compassivo, e tardio em irar-se, e grande em
benignidade, e se arrepende do mal” (quer dizer: o Senhor não querdesencadear, por enquanto, toda a sua ira até o máximo), devendo,
assim, entregar o coração a Deus em uma conversão autêntica (J12.12,
13). “Eles, porém, zombavam dos mensageiros, desprezavam as
palavras de Deus e mofavam dos seus profetas até que subiu a ira do
Senhor contra o seu povo, e não houve remédio algum” (2 Cr 36.16).
Paulo insiste também, tanto quanto o cronista do Antigo
Testamento, em que o abuso das misericórdias divinas, longe de deter
a mão de justiça de Deus, redundará em acúmulo de ofensas que,
finalmente, receberão todo o castigo que merecem. Se os homens não
aproveitarem os convites ao arrependimento que lhes são feitos, se, à
semelhança de Faraó, persistirem em endurecer seus corações e se,
apesar de Deus te r estendido todos os dias a sua mão ao povo rebelde
(Is 65.2), continuarem sendo um povo rebelde, então os seus corações
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74 • IMORTALIDADE
endurecidos e impenitentes entesourarão para si mesmos ira para o dia
da ira e da revelação do justo juízo de Deus (Rm 2.5). Este é o único bem permanente que o ímpio possui, não porque Deus tenha retirado
a sua ira, mas porque ele a quer demonstrar e dar a conhecer o seu poder no grande “dia da ira”, pois “suportou com muita longanimidade
os vasos de ira, preparados para a perdição” (Rm 9.22).5 Neste
desdobramento final da ira divina, a justiça de Deus será vindicada e o
nome dele glorificado. A bondade de Deus, portanto, jamais pode
assegurar a impunidade dos pecadores; e o abuso que estes fazem dela
deve necessariamente agravar a sua culpa e o seu castigo.Portanto, a evidência do Antigo Testamento e o estado dos judeus
na época dos apóstolos testemunham em favor da verdade de que
judeus e gentios, igualmente, são objetos da ira divina, da qual só asalvação trazida por Jesus Cristo lhes poderá livrar, porquanto “não há
justo, nem sequer um” (Rm 3.10). Os que recebem um conhecimento
especial de Deus e são objetos peculiares de seu amor — como
insistiram os profetas — devem também ser objetos especiais da ira
divina, se desprezarem esse conhecimento e pisotearem esse amor: “De
todas as famílias da terra somente a vós outros vos escolhi; portanto eu
vos punirei por todas as vossas iniqüidades” (Am 3.2). Amós prossegueno capítulo 4 a descrição de algumas das maneiras pelas quais Deus
levaria a efeito a visitação das transgressões de Israel. Assim mesmo,quando Deus tiver decidido executar a sua ira contra o povo rebelde,
nada que este possa fazer irá detê-la. Ezequiel profetiza a futilidade da
defesa de Jerusalém diante dos exércitos da Babilônia que, naquelaconjuntura, foram o braço executor da ira divina; a queda de Jerusalém
havia sido decretada por Deus, e nada poderia frustrar seu propósito.
Os habitantes de Jerusalém haviam feito preparativos para a defesa,
mas estes não tiveram valor para enfrentar o inimigo; a ira de Deus já
havia predeterminado a sua covardia e a sua derrota: “Tocaram atrombeta e prepararam tudo, mas não há quem vá à peleja, porque toda
a minha ira ardente está sobre toda a multidão deles” (Ez 7.14). “Se te
iras, quem pode subsistir à tua vista?” (SI 76.7).
Todavia, não deduzamos desta longa história de um povo rebeldee apóstata que a eleição de Israel como instrumento escolhido dos
propósitos de Deus tenha fracassado. Se não houve base para nenhuma
superioridade arrogante por parte do judeu, tampouco o gentio tinha
algo de que se gloriar. O plano de Deus para a salvação dos seus
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A IRA DE DEUS • 75
escolhidos não pode ser frustrado, nem mesmo pela desobediência do
povo eleito, pela arrogância de seus opressores ou por aqueles a quemDeus chamou para serem instrumentos de sua ira e que se vangloriaram
da sua própria força, apegando-se à honra decorrente dela. Se a ira de
Deus vem sobre o seu próprio povo, também cai sobre os que procuramimpedir a realização da sua vontade concernente a Israel. Um exemplo
marcante desta espécie de intento para frustrar os propósitos de Deus
é o endurecimento de Faraó. Sem dúvida, o endurecimento de Faraó eo castigo subseqüente que lhe foi imposto foram os meios pelos quais
o poder de Deus tornou-se evidente e o seu nome foi anunciado portoda a terra (Rm 9.17; Ez 4.16). De maneira semelhante, porque
Amaleque colocou-se no caminho de Israel, quando este subia do
Egito, Saul recebeu a recomendação de ser o ministro da ira vingativade Deus: “Castigarei a Amaleque pelo que fez a Israel; ter-se oposto a
Israel no caminho, quando este subia do Egito. Vai, pois, agora e fere
a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver” (1 Sm 15.2, 3).
Quando Saul desobedeceu a este mandamento, perdoando a Agague e
retendo o melhor do despojo, percebe-se que ele incorreu na ira de
Deus: “Como tu não deste ouvidos à voz do Senhor, e não executaste
o que ele no furor da sua ira ordenou contra Amaleque, por isso o
Senhor te fez hoje isto” (1 Sm 28.18). “Por que se enfurecem os gentios
e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os
príncipes conspiram contra o Senhor e contra o seu Ungido, dizendo:“Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se
aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seutempo, lhes há de falar, e no seu furor os confundirá” (SI 2.1-5).
Quanto àqueles enviados por Deus para executar o seu castigo
sobre Israel, tais como os assírios, o Senhor lhes fala nestes termos: “Ai
da Assíria, cetro da minha ira! A vara em sua mão é o instrumento do
meu furor. Envio-a contra uma nação ímpia, e contra o povo da minha
indignação lhe dou ordens, para que dele roube a presa, e lhe tome o
despojo, e o ponha para ser pisado aos pés, como a lama das ruas. Por
isso acontecerá que, havendo o Senhor acabado toda a sua obra no
monte Sião e em Jerusalém, então castigará a arrogância do coração do
rei da Assíria e a desmedida altivez dos seus olhos; porquanto este disse:
Com o poder da minha mão fiz isto, e com a minha sabedoria, porque
sou entendido; removi os limites dos povos, e roubei os seus tesouros,
e como valente abatí os que se assentavam em tronos” (Is 10.5, 6,12,
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76 • IMORTALIDADE
13).
A profecia de Naum, que prediz a destruição de Nínive, capitalassíria, cujos crimes haviam merecido a sua queda, é precedida de um
notável poema introdutório que descreve a manifestação da ira deDeus: “O Senhor é Deus zeloso e vingador, o Senhor é vingador, e cheio
de ira; o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e reservaindignação para os seus inimigos. O Senhor é tardio em irar-se, mas
grande em poder, e jamais inocenta o culpado; o Senhor tem o seu
caminho na tormenta e na tempestade, e as nuvens são o pó dos seus
pés. Ele repreende o mar, e o faz secar, e míngua todos os rios;desfalecem Basã e Carmelo, e a flor do Líbano se murcha. Os montes
tremem perante ele, e os outeiros se derretem; e a terra se levanta
diante dele, sim, o mundo e todos os que nele habitam. Quem podesuportar a sua indignação? E quem subsistirá diante do furor da sua ira?
A sua cólera se derrama como fogo, e as rochas são por ele demolidas.
O Senhor é bom, é fortaleza no dia da angústia, e conhece os que nelese refugiam. Mas com inundação transbordante acabará duma vez com
o lugar desta cidade; com trevas perseguirá o Senhor os seus inimigos.
Que pensais vós contra o Senhor? Ele mesmo vos consumirá de todo;
não se levantará por duas vezes a angústia” (Na 1.2-9). A ira de Deusse concentrou em Nínive, “cidade sanguinária, toda cheia de mentiras
e de roubo” (Na 3.1).
De maneira semelhante, quando Habacuque, perplexo, perguntacomo era possível que os caldeus, a quem Deus havia levantado para
castigar Israel, tivessem sido chamados para tal fim, visto que erammuito mais ímpios do que o próprio Israel, ele recebeu a resposta de
que, a seu tempo, a Caldéia, devido à sua arrogância, sua tirania eimpiedade, também seria castigada, convertendo-se em objeto da ira
de Deus (Hc 2.4). O terceiro capítulo de Habacuque contém um poema
que descreve a marcha de Deus sobre todos os povos para executar a
sua ira: “Na tua indignação marchas pela terra, na tua ira calcas aos pés
as nações. Tu sais para salvamento do teu povo, para salvar o teu
ungido” (Hc 3.12,13).
Outro exemplo impressionante da vingança de Deus contra osinimigos de Israel é encontrado em Isaías 63.1-6. O profeta vê a Deus
“que vem de Edom, de Bozra, com vestes de vivas cores”, manchadas
com o sangue de seus inimigos. Deus diz a seu povo que só ele é grande
para salvar. A ira de Deus baseia-se em sua justiça: “Sou eu que falo
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A IRA DE DEUS • 77
em justiça, poderoso para salvar... dos povos, nenhum homem se achava
comigo; pisei as uvas na minha ira; no meu furor as esmaguei, e o seusangue me salpicou as vestes e me manchou o traje todo. Porque o dia
da vingança me estava no coração, e o ano dos meus redimidos é
chegado”.Estas passagens nos recordam de que, embora o povo de Deus
mereça e receba o castigo de Deus em parte, em sua maneira de tratar
Israel, segundo o pacto, Deus tem o cuidado de abrir caminho (emboraexterminando seus inimigos) para a realização do plano de salvação dos
seus eleitos. O amor de Deus não elimina a sua ira; quando esta sedefronta com o pecado, converte-se em ira santa, através do qual
encontram expressão a sua soberania e a sua justiça. A misericórdia de
Deus não exclui a sua ira, porém impede que esta alcance sua expressãomáxima nas relações com Israel. Em sua misericórdia amorosa, Deus
escolheu a Israel para que este lhe fosse um povo peculiar, o povo da
aliança; esta relação fundamentada no pacto não pode ser abandonada,
enquanto não se estabelecer um novo pacto. Por mais que Israel possa pecar, é chamado do Egito para ser o filho especial do amor de Deus
(Os 11.1). Samaria, cidade onde Israel morava, não foi jamaisconvertida em lugar como Sodoma ou como uma das cidades da
planície: “Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel?
Como te faria como a Admá? Como fazer-te um Zeboim? Meu coração
está comovido dentro em mim, as minhas compaixões à uma seacendem. Não executarei o furor da minha ira; não tornarei para
destruir a Efraim, porque eu sou Deus e não homem, o Santo no meiode ti” (Os 11.8,9).
Contudo, a mais terna das expressões do amor de Deus por Israel,
que o leva a ater-se às relações do pacto e que exige uma limitação de
sua ira santa, talvez seja a que se encontra em Isaías 54.8,10: “... num
ímpeto de indignação escondi de ti a minha face por um momento, mas
com misericórdia eterna me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu
Redentor... Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão
removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliançada minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de
ti”. A mesma verdade é exposta em Miquéias 7.18 com estas palavras:
“O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na
misericórdia”.Podemos resumir esta parte de nosso estudo, dizendo que, sob a
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78 • IMORTALIDADE
antiga aliança, tornou-se evidente a natureza do pecado; e os homens
foram obrigados, mediante as manifestações destruidoras do poder deDeus, a reconhecer que a ação divina frente ao pecado não pode seroutra senão de ira, a ira justa e santa de um Deus perfeito. O antigo
pacto, contudo, não podia salvar do pecado o homem, nem pôr emordem as relações deste com Deus. Mas quando, na revelação dada pelalei e os profetas, e também por meio dos sinais inequívocos da ira deDeus no ordenamento providencial dos fatos históricos, Deus serevelou como absolutamente soberano, perfeitamente santo e justo, o
antigo pacto cumpriu assim a sua missão e abriu-se o caminho para oestabelecimento da nova aliança. Em outras palavras, quando a verdadefoi compreendida (embora talvez em parte, em muitos casos), como Jóteve de aprendê-la, na amarga escola do sofrimento — a verdade deque o homem não deve contender com seu Deus e Criador, que todoorgulho humano deve se desvanecer na presença de Deus e que o
pecador deve humilhar-se e arrepender-se no pó e na cinza (Jó 42.6)
— então a piedade e a misericórdia infinitas de Deus, a respeito dasquais o Antigo Testamento nos ensina tantas coisas, eclodiram nahistória humana de maneira maravilhosa, mediante a encarnação doFilho de Deus.
Em Jesus, os propósitos amorosos de Deus, revelados no AntigoTestamento, finalmente encontram cumprimento, note bem, nãoabandonando a realidade da sua ira, nem por nenhuma renúncia a seudesenvolvimento. O Deus que se revela em Jesus Cristo é o mesmo que
desafiou a Jó para que derramasse, se pudesse, o ardor de sua ira, e que,ao fitar os altivos e soberbos, os humilhasse e abatesse (Jó 40.11,12).Manifestar rejeição contra o orgulho — que constitui a essência do
pecado do homem —continua sendo uma prerrogativa única de Deus,Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa próxima tarefa, porconseguinte, deve consistir de vermos como Jesus Cristo revelou nãoapenas a bondade de Deus, mas também sua severidade.
III. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA EM JESUS CRISTO
Já falamos o bastante, neste estudo, para demonstrar agora que aopinião sustentada por Márcion, no segundo século e, consciente ouinconscientemente adotada por certos setores que desejam ser
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A IRA DE DEUS • 79
conhecidos como “cristãos”, de que o Antigo Testamento revela apenas
um Deus de ira, e o Novo Testamento apenas um Deus de amor, écompletamente errônea. Ela pode ser refutada por qualquer pessoaque tenha da Bíblia um conhecimento pouco mais do que superficial, amenos que se faça uso de uma tesoura da crítica para cortar, aqui e ali,todos os textos que não se encaixem com as pressuposições dos críticos.É fato evidente, e bem comprovado, que no Antigo Testamento a idéiada ira divina nunca sofre menosprezo; mas também é verdade que arevelação de Deus como Pai amoroso não se limita ao Novo
Testamento, embora seja na pessoa e na obra de Jesus Cristo que essarevelação adquira sua expressão suprema. Poucas descrições do amorde Deus são mais belas do que as que encontramos no Salmo 103,especialmente nos w . 8,9: “O Senhor é misericordioso e compassivo;longânimo e assaz benigno. Não repreende perpetuamente, nemconserva para sempre a sua ira”. Não obstante, no mesmo saltério lemostambém: “Deus é justo juiz; Deus que sente indignação todos os dias”(SI 7.11). Por outro lado, um escritor do Novo Testamento, ao falar deDeus como Pai, enfatiza ao mesmo tempo o seu papel de juiz, diantedo qual os homens devem viver em santo temor (1 Pe 1.17); tambémoutro escritor do Novo Testamento, refletindo as palavras deDeuteronômio 4.24, diz: “... o nosso Deus é fogo consumidor” (Hb12.29).
Tampouco é no Antigo Testamento apenas que lemos históriasacerca da repentina destruição que cai como juízo divino sobre os que
querem desbaratar os planos de Deus ou pretendem zombar da suamisericórdia, histórias como a da matança que as ursas fizeram dequarenta e dois rapazinhos que zombavam de Eliseu com estas
palavras: “Sobe, calvo; sobe, calvo!” (2 Rs 2.23-2S).6 No NovoTestamento, Herodes Agripa, assassino do apóstolo Tiago e perseguidor de Pedro, foi ferido por Deus “e, comido de vermes, expirou...
por... não haver dado glória a Deus” (At 12.23), explica o texto sagrado; pelo contrário, vangloriou-se do aparato externo de sua realeza eaceitou a adulação idólatra dos seus súditos. De maneira parecida,Ananias e Safira foram castigados com morte repentina, por haveremtentado ao Senhor, da mesma forma como os israelitas tentaram a Deusno deserto e foram destruídos pelas serpentes (At 5.9; 1 Co 10.9). Osdois testamentos registram revelações tanto da bondade como daseveridade de Deus, pois estes dois atributos da natureza divina não
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podem ser separados um do outro. Como escreveu A. G. Hebert: “O
amor de Deus exige como seu corolário a ira de Deus, e isto aconteceexatamente porque Deus se preocupa com os homens e é seuverdadeiro Deus. Ele chamou o homem à comunhão consigo, e a recusaa este convite são a ruína e perdição humanas. O Novo Testamentoenfatiza o amor de Deus e, por isso mesmo, sublinha igualmente a suaira. O evangelista apresenta várias vezes o Senhor Jesus Cristo tomadode ira justa e santa”.7 Estas palavras encerram uma apreciação maiscorreta das evidências dos evangelhos do que as que escreveu o
professor C. H. Dodd: “O conceito da ira de Deus não aparece nosensinamentos de Jesus, a menos que forcemos alguns elementos das
parábolas de maneira ilegítima”.8Quando examinamos com cuidado as evidências dos evangelhos,
fica claro que a revelação da ira de Deus em Jesus Cristo constituirealmente uma parte importante do seu ministério profético esacerdotal. Como arauto de “palavras de vida eterna”, ele revela a ira
divina chamando os homens ao arrependimento —como João Batistahavia feito antes — com vistas à inevitável ira que há de vir e que seabaterá inexoravelmente sobre tantos quantos não se tenhamarrependido. O fato de que Jesus não ensinou nenhuma doutrina desalvação universal, mas, pelo contrário, exortou os homens a temeremo dia final da ira divina, é deduzido claramente de palavras como estas:“Não temais os que matam o corpo e, depois disso, nada mais podemfazer. Eu, porém, vos mostrarei a quem deveis temer: Temei aquele
que depois de matar, tem poder para lançar no inferno. Sim, digo-vos,a esse deveis temer” (Lc 12.4,5). “Ou cuidais que aqueles dezoito, sobreos quais desabou a torre de Siloé e os matou, eram mais culpados quetodos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram, eu vo-lo afirmo;mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (Lc 13.4,5). Jesus percebia que o que aguardava a geração à qual se dirigia nãoera salvação, mas condenação. Ele disse que o juízo seria mais
benevolente para com Tiro e Sidom, cidades pagãs, do que para com ascidades que haviam presenciado suas poderosas obras e continuado naincredulidade (Lc 10.14). É digno de nota que Lucas, o evangelista queDante chamou de “scriba mansuetudinis Christi”, discípulo queescreveu principalmente para os gentios, não teve dúvidas em registrartodas estas palavras de Jesus. Ademais, ele é o único evangelista quetoma nota das palavras de Cristo anunciando o desastre da destruição
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A IRA DE DEUS • 81
de Jerusalém, que estava próxima, como manifestação específica da iradivina (Lc 21.23).
Uma revelação semelhante da ira divina aparece nas parábolas deJesus, especialmente nas que se referem ao juízo de Deus. É verdadeque os detalhes das parábolas não devem ser violentados para seremconvertidos em alegoria fácil; mas alguns comentaristas têm pecado,talvez por terem se deixado levar pelo conceito oposto: o abandonocompleto do.elemento alegórico que parece estar implícito em algumasdelas. Assim, ao falar da Parábola das Bodas, em Mateus 22, o professor
Dodd escreve: “Ver o caráter de Deus no Rei que destrói seus inimigosé tão ilegítimo como encontrá-lo no caráter do juiz injusto”.9 Todavia,devemos assinalar que, apesar disso, no final da Parábola do JuizInjusto, Cristo deixa bem claro que o juiz não pode ser interpretadoalegoricamente, mas que o argumento implícito est áafortiori. Podemos
parafrasear Lucas 18.6, 7 da seguinte maneira: “O Senhor disse: Ouvio que disse o injusto (que, nessa ocasião isolada, parece terdemonstrado alguma consideração pelo homem). Acaso Deus não fará
justiça (Deus, cujo caráter é tão diferente do caráter do juiz injusto) aseus escolhidos, que clamam noite e dia?” Na Parábola das Bodas, emMateus 22, por outro lado, não nos é oferecida qualquer explicação
parecida; e os ouvintes supuseram naturalmente que, no versículo 7,Jesus estava pronunciando uma profecia acerca da destruição que sedevia abater sobre a cidade santa, como sinal da cólera divina. “O reificou irado e, enviando as suas tropas, exterminou aqueles assassinos e
lhes incendiou a cidade.”10 Na parábola paralela da grande ceia, emLucas, o anfitrião nos é apresentado irado contra os convidados querecusaram o convite para o banquete (Lc 14.21). Outra parábola, a doservo injusto, dá ao Senhor oportunidade de dizer que Deus trataráaqueles que não querem perdoar da mesma forma como o rei destahistória tratou a seu escravo que a ninguém perdoava. Ele mesmoalegoriza a narrativa: “E, indignando-se, o seu senhor o entregou aosverdugos, até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também meu Pai
celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão” (Mt18.34,35).
Em segundo lugar, Jesus revela a ira de Deus nas expressões nãodissimuladas de sua própria ira, às quais os evangelistas prestam adevida atenção em situações concretas do ministério profético doSalvador. Menção explícita da ira do Senhor é a que se registra em
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82 • IMORTALIDADE
Marcos, no relato da cura do homem que tinha a mão ressequida, nasinagoga, num sábado, onde lemos: “Olhando-os ao redor, indignado econdoído com a dureza dos seus corações, disse ao homem: Estende atua mão” (Mc 3.5). Mateus não apresenta paralelo à primeira partedesta oração; mas Lucas, que parece seguir mais de perto a Marcos, diz:“E, fitando a todos ao redor, disse ao homem: Estende a mão” (Lc 6.10;Mt 12.13).
É Marcos quem várias vezes nos mostra as emoções humanas deJesus, embora elas nunca tenham sido meramente humanas, porque
nelas se revela a reação divina às palavras e atos dos homens. Oscomentaristas têm observado que o particípio que expressa o olharcheio de ira de Jesus, neste incidente, está no tempo aoristo(periblepsamenos), enquanto o particípio que indica a pena de Jesusestá no presente do verbo ( synlupoumenos), deduzindo que a ira foiexpressa por um olhar fugaz, enquanto o pesar foi permanente.Contudo, o fato da ira de Jesus nesta ocasião continua de pé. Pareceque ele foi motivado não apenas ao ver que as pessoas que haviam
presenciado o seu milagre procuravam razões “legais” para acusá-lo,mas também ao contemplar a impotência daquela gente miserável emcompreender que a mera abstenção, o fato de não causar dano a nada(no sentido legal) não era a interpretação adequada do mandamentodivino de não trabalhar no sábado. Eles permaneceram calados, quandoJesus lhes perguntou: “É lícito no sábado fazer o bem ou o mal? salvara vida ou deixá-la perecer?” (Lc 6.9). Eles não entendiam que, em
determinadas ocasiões, não fazer nada implica de fato em fazer o mal. Náo curar o enfermo é o mesmo que matá-lo. Como podia Jesus aceitaruma interpretação do descanso sabático que levava à violação do sextomandamento? E certo que os rabinos permitiam a cura de um enfermose fosse verificado que a sua vida corria perigo, e os fariseus podiammuito bem ter pensado que, naquele caso, a vida do homem curado porJesus não estava em perigo. Mas parece que nosso Senhor irou-seexatamente por isso: eles pensavam que podiam decidir quando uma
vida humana se achava realmente em perigo. Isto faz parte daarrogância que gera o pecado, arrogância que nos cega, impedindo-nosde ver que nossa vida está de contínuo exposta ao risco e à incerteza eque não subsistiriamos, senão pela misericórdia de Deus, Senhor edoador da vida. Foi esta cegueira (verdadeiro sentido de porosis, emMarcos 3.5) que fez com que Cristo se irasse e entristecesse.
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A IRA DE DEUS • 83
Em Marcos 10.14, lemos que “Jesus indignou-se” com seusdiscípulos, porque repreendiam os que traziam seus filhos para que eleos tocasse ou, como diz Mateus, “para que lhes impusesse as mãos, eorasse” (Mt 19.13). A indignação de Jesus nessa ocasião não foimotivada por razões humanitárias apenas. Jesus indignou-se porque,com certeza, por trás das palavras de repreensão dos apóstolos, de quemse aproximavam, escondia-se o seguinte pensamento: “O que merecemou o que fizeram estas crianças para se tornarem credoras da bênçãodo Mestre? Mais tarde, quando houverem acumulado certa quantidade
de boas obras, elas poderão vir e reclamar com razão uma bênção, masnão agora”. Era esta maneira de entender a relação dos homens comDeus que despertou a indignação de Jesus. Os apóstolos estavamdemonstrando que em seu coração eram fariseus perfeitos. Como podiaCristo deixar de abençoar as crianças, quando, na realidade —segundoexplicou em outra ocasião — elas eram parábolas vivas da verdadeessencial que ele viera proclamar: a verdade de que exatamente porqueo pecado converte o homem em um ser orgulhoso e auto-suficiente, énecessário um novo nascimento levado a cabo pela atividade criadorado próprio Deus, antes que o coração humano possa receber o reino deDeus? O homem precisa receber a salvação, que jamais poderá merecer,
por mais que viva, e precisa recebê-la com a mesma disposição dacriança que aceita o que lhe dão.
Os evangelistas conservaram o testemunho desta indignação deCristo diante do fracasso dos discípulos, por entender a verdade
encerrada em Romanos 3.20: “... ninguém será justificado diante dele por obras da lei”.Eles também registraram a indignação do Mestre no templo, o que
ocasionou uma clara manifestação da sua justa ira. Nessa ocasião, acausa da sua cólera foi a torpeza dos fariseus, que confiavam cegamentenos sacrifícios do templo como meio para assegurarem a continuidadedo pacto e se livrarem da ira vindoura. Eles não conseguiram ver ocaráter temporal do sistema levítico nem conheceram a verdade
afirmada na Epístola aos Hebreus: “É impossível que sangue de tourose de bodes remova pecados” (10.4). Além disso, o templo havia deixadode ser “casa de oração para todos os povos” e, a partir do exílio, haviase convertido no símbolo externo do exclusivismo judaico. Ademais, elenão era nada mais do que “um covil de ladrões”, segundo palavras do
próprio Jesus (c/. Jr 7.8-11; Mt 21.13), onde os homens pensavam poder
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84 • IMORTALIDADE
salvar suas consciências mediante transações fraudulentas dentro da própria casa de Deus. Jesus, segundo o Evangelho de João, em sua
primeira visita a Jerusalém, “tendo feito um azorrague de cordas,
expulsou a todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou
pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas”. Naquela ocasião,ele não estava sendo levado apenas pelo zelo da casa de Deus —como
seus discípulos acertadamente interpretaram (Jo 2.15, 17) — mas
também se achava cumprindo as palavras de Malaquias 3.1,2, se bem
que o evangelista mencionado não as cita: "... de repente virá ao seu
templo o Senhor, a quem vós buscais... Mas quem pode suportar o diada sua vinda? e quem subsistirá quando ele aparecer? Porque ele é
como o fogo do ourives e como a potassa dos lavandeiros”. Nosevangelhos sinóticos, este é um dos últimos atos proféticos realizados
por Jesus e leva diretamente à sua morte e ressurreição ou, para
expressá-lo teologicamente, à destruição e reedificação do templo do
seu corpo, acerca do qual o relato de João fala de maneira acidental (Jo2.19-22), que viria a ser o meio pelo qual se tornaria possível uma
adoração mais pura e universal no santuário do coração dos remidos.Em Marcos e Mateus, este incidente encontra-se também ligado com
a misteriosa maldição da figueira. Israel era como uma árvore plantada junto a águas copiosas, das quais se podia esperar fruto a seu tempo. No
entanto, Israel não produziu esse fruto, e a sua condição era a mesma
da figueira que Cristo amaldiçoou como símbolo da maldição lançadasobre Israel. Por sua aparência, ela parecia ter muito fruto, mas na
realidade era infrutífera. Em lugar de produzir frutos dignos dearrependimento, que lhes teria permitido fugir da ira futura, os judeus,com seu legalismo pretensioso e a falsa segurança do seu templo,
estavam se tornando credores da maldição divina.
A terceira maneira pela qual Jesus manifestou a ira divina através
do seu ministério profético foi a severidade com que denunciou aqueles
cuja conduta e crenças eram contrárias ao que eles próprios sabiam ser
a vontade explícita de Deus ou que, deliberadamente, rejeitavam a
graça divina que lhes era oferecida na própria pessoa e obra doRedentor.
Uma de suas repreensões mais severas foi dirigida contra aqueles
que deliberadamente colocavam pedras de tropeço no caminho dos
crentes que não tinham maturidade: “Qualquer, porém, que fizer
tropeçar a um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora
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A IRA DE DEUS • 85
que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse
afogado na profundeza do mar” (Mt 18.6). O pecado dos pecados — disse alguém com razão — é o de levar outras pessoas ao pecado,
especialmente os fracos, os simples, os inconstantes etc. Os fariseus (emais tarde os judaizantes, que procuraram roubar dos convertidos de
Paulo a liberdade que tinham em Cristo) foram culpados deste pecado.
Portanto, não é de admirar que algumas das denúncias mais amargas
de Jesus tenham sido dirigidas contra os fariseus; e a série de “ais” que
preenchem Mateus 23 constitui uma descrição aguda e completa da
espécie de conduta pecaminosa que caracteriza os “religiosos erespeitáveis”. A única conduta de que eles são capazes é esta, pois
perm anecem fundam entalm ente inconversos, sem conhecer oarrependimento, cegos para o poder do pecado em suas vidas, o qual
continua minando suas intenções e pervertendo suas ações. O conteúdo
de Mateus 23 pode se aplicar não apenas aos fariseus que pela primeiravez o escutaram, mas a todos quantos foram satirizados por Jesus, como
as noventa e nove pessoas “justas” que não necessitam de
arrependimento, gente que olha com desprezo os demais, a quem
qualifica de “pecadores”, porque se negam a guardar suas tradições.
James Denney assim resumiu o conteúdo de Mateus 23: “Manter o
povo ignorante da verdade religiosa, seja porque não a vivemos ou
porque não o deixamos vivê-la (v. 13); fazer da piedade um pretexto
para a avareza (v. 14); fazer prosélitos para a nossa facção com adesculpa de que estamos recrutando homens para o reino de Deus (v.
15); enganar as consciências simples, através dos sofismas da casuística(w. 16-22); destruir o sentido da proporção nas questões morais,
fazendo da moralidade uma questão de legalismo frio, pelo fato de
todas as coisas poderem ser colocadas no mesmo nível (w. 23ss.); dar
mais importância às aparências do que à realidade; reduzir a vida a um
jogo, a uma comédia que tem tanto de tragédia como de farsa (w .
25-28); voltar a praticar os pecados do passado, enquanto, ao mesmo
tempo, simulam uma piedosa aversão por eles; crucificar os profetas
contemporâneos e construir monumentos aos profetas que sofreram
martírio no passado (w. 29ss.); tudo isto, como uma torrente, enchia de
santa e justa ira o coração de Jesus e provocou a denúncia cortante que
ele fez de seus inimigos”.11Contudo, os “ais” de Jesus, que falam tão eloqüentemente da ira
de Deus, são dirigidos não apenas aos fariseus e a tantos quantos
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86 • IMORTALIDADE
manifestam um espírito farisaico, mas também aos que se orgulham deseus bens materiais ou de seus dons pessoais, aos que se comprazem
em si mesmos, aos que estão cegos quanto à sua necessidade de
arrependimento e aos que imaginam que sua vida deve ser boa, porque
recebe a aprovação dos seus semelhantes. A ira de Deus, conforme sedepreende de Lucas 6.24-26, sobrevêm aos que se sentem “ricos”,
“abastados” ou que se “riem” ou merecem consideração da parte da
sociedade: “Ai de vós, os ricos, porque tendes a vossa consolação! Aide vós os que agora rides! porque haveis de lamentar e chorar. Ai de
vós, quando todos vos louvarem! porque assim procederam seus paiscom os falsos profetas”.
Cristo sabia que esta é a condição em que se encontram todos os
homens por natureza, embora a maioria deles não a perceba. Todavia,como a sua vinda ao mundo teve por objetivo revelar o amor de Deus,
tanto quanto a sua ira, ele precisava fazer algo mais do que somente proclamar a trágica sorte que aguarda os incrédulos nas mãos de um
Deus justo e irado contra o pecado. Além de um ministério profético,
Jesus precisava levar a cabo uma obra sacerdotal, uma obra que
implicava em nada menos do que beber o cálice da ira divina até o fim.Ele bebeu este cálice no Getsêmani e no Calvário, quando Deus “fez
cair sobre ele a iniqüidade de nós todos”. O conhecimento da amargura
desse cálice levou-o a orar: “Meu Pai, se possível, passa de mim este
cálice! Todavia, não seja como eu quero, e, sim, como tu queres” (Mt
26.39). “Agora está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai,
salva-me desta hora? mas precisamente com este propósito vim paraesta hora” (Jo 12.27).
Quando Paulo diz que “Cristo nos resgatou da maldição da lei,fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (G1 3.13) e que
“aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós” (2 Co5.21), ele está dizendo na verdade que Cristo, embora não tivesse
pecado, experimentou a ira de Deus contra os pecadores, que os
transforma em malditos segundo a sentença de morte da lei divina. Não
vamos supor, desde o início, que, ao beber o cálice da ira, Jesus pensou
que Deus estava irado contra ele. Como podia Deus irar-se contra
aquele de quem havia dito: “Este é o meu Filho amado, em quem me
comprazo” e que se levantou do Getsêmani, dizendo: “Não seja como
eu quero, e, sim, como tu queres”, e que sabia que Deus podia ser
glorificado de maneira suprema tão somente através da paixão de seu
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A IRA DE DEUS • 87
Filho amado (Jo 12.31)? Todavia, ele experimentou a miséria, a aflição,
o castigo e a morte que constituem a sorte trágica de todos os pecadoressujeitos —por serem pecadores —à ira de Deus. Deus é santo e justo,
completamente santo e perfeitamente justo; ele deve, portanto, castigar
os pecadores. Por isso, é lógico ver os cristãos, quando contemplam a paixão de Jesus, recorrerem às palavras de Jeremias sobre as ruínas deJerusalém, toda vez que observam alguma semelhança entre os
sofrimentos do Salvador e a destruição causada pela ira divina mediante
a invasão babilônica de Jerusalém: “Não vos comove isto, a todos vós
que passais pelo caminho? Considerai e vede, se há dor igual à minha,que veio sobre mim, com que o Senhor me afligiu, no dia do furor da
sua ira” (Lm 1.12).12 Foi o horror de experimentar a completa
separação de Deus, constituindo o estado inevitável e permanente dos
ímpios, que fez ressoar de novo, nas sombras da primeira Sexta-Feira
Santa, o clamor do salmista, saindo dos lábios de Jesus: “Deus meu,Deus meu, por que me desamparaste?” (SI 22.1; Mt 27.46). Naqueles
instantes, o Salvador bebia até o fim o cálice da ira divina.
O fato de beber do cálice da ira em lugar daqueles a quem ele estava preparado, constituía parte essencial dos “negócios do Pai” (Lc 2.49)
que Jesus viera realizar. Quando Pedro procurou dissuadi-lo, querendo
impedir a sua vocação, o Senhor falou-lhe em termos tão veementes
que é difícil não entendê-los como expressão da sua santa ira: “Arreda!
Satanás; tu és para mim pedra de tropeço...” (Mt 16.23).Os que não o aceitam como Cordeiro de Deus, por cujo sacrifício
é perdoada a culpa dos pecadores, escolhem para si a condenação edistanciam-se da salvação; preferem as trevas à luz, a morte à vida. Talé a verdade que Jesus ensinou em muitas ocasiões, segundo nos revela
o Evangelho de João em várias sentenças do Salvador nele registradas,
mas nenhuma delas tão explícita como a de João 3.36: “Quem crê no
Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o
Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus”.
Igualmente severas são as palavras registradas em Mateus 21.44,
quando Jesus refere-se a si mesmo como a pedra angular rejeitada pelosedificadores, que, todavia, é a pedra principal do novo edifício, novo
templo onde o homem pode encontrar segurança e obter a libertação
da ira divina que se avoluma sobre ele, e acrescenta: “Todo o que cair
sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará
reduzido a pó”. Os judeus haviam caído sobre essa pedra; portanto,
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Jesus profetizou que o reino de Deus lhes seria tirado e dado a outro
povo que produzisse os respectivos frutos (c/. Mt 21.43). Nãoreconhecer que os atos de Jesus eram, na verdade, um assalto divino à
fortaleza do mal e atribuí-los a algum poder maligno, como haviam feitoos escribas de Jerusalém, constituiu um pecado de blasfêmia contra o
Espírito Santo: “aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado eterno” (Mc 3.29). De
igual forma, não reconhecer o que Jesus é, ou seja, o Filho de Deus queveio proclamar a palavra de Deus e realizar a grande obra divina, fez
que os judeus não pudessem ser considerados filhos de Deus. Elesdemonstravam que eram, antes, filhos do diabo, condenados a morrer
em seus pecados e a receber o castigo preparado para o diabo e seusanjos ( çf. Jo 8.42ss.).
Estas palavras de Cristo são muito severas, porém fazem parte da
revelação de Deus dada a conhecer em Cristo Jesus, tanto quanto as
outras palavras do Mestre que expressam de forma tão maravilhosa o
amor e a misericórdia do Deus que se fez homem. Deixar de lado estas palavras tão duras e concentrar a atenção unicamente naquelas
passagens dos evangelhos que proclamam a paternidade de Deus é
apresentar um cristianismo debilitado e incompleto, que nunca poderá
fazer o que Cristo planejou que se fizesse com ele e por ele: salvar os
homens da ira que há de vir. Neste sentido queremos citar as palavras
de um escritor que fez a seguinte observação, com a qual estamos detotal acordo: “Os que têm olhos para ver apenas o amor de Deus
desviam seu olhar da doutrina antipática da ira de Deus. Todavia, aoeliminar a ira —a desgraça —de Deus, eles eliminam também a graça
de Deus. Onde não há temor não pode haver salvação. Onde não há
condenação não pode haver libertação. O amor deve estar baseado
na justiça”.13 Também podemos expressar esta verdade tão vital de
maneira um tanto distinta, dizendo que, ao procurar eliminar o inferno,
precisamos eliminar também o céu, o qual, nas palavras do Te Deum,
Jesus “abriu para todos os crentes”, mediante sua morte e ressurreição.
A ressurreição é a evidência constante de que o sacrifício
sacerdotal de Cristo foi aceito por Deus. O Novo Testamentoensina-nos claramente que a boa notícia do primeiro dia da Páscoa não
foi tanto o fato de que um Homem se havia levantado do túmulo, mas
que o sacrifício de Cristo, o verdadeiro Cordeiro pascal, havia recebido
a aprovação divina e que, por conseguinte, todos os que aceitassem
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A IRA DE DEUS • 89
aquele sacrifício para si, com fé como meio de salvação, estavam
colocados em uma nova relação com Deus, em um estado não dedesgraça, mas de graça; deixando de ser objetos da ira divina,convertendo-se em herdeiros da glória de Cristo, como filhosredimidos. Por isso, os apóstolos proclamam Jesus como aquele “quenos livra da ira vindoura” (1 Ts 1.10). “Logo, muito mais agora, sendo
justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5.9).O crente pode, portanto, esperar com confiança e segurança o dia emque a ira de Deus será revelada de maneira plena e final, sabendo que
o Senhor “não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvaçãomediante nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5.9).
Embora, em maior ou menor grau, a ira de Deus sempre tenha sidorevelada nos juízos de Deus que encontram expressão na ordem
providencial da história humana —tanto de nações como de indivíduos —continua de pé o fato de que em sua misericórdia ele suporta “commuita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição” (Rm
9.22).Portanto, visto que a Bíblia o afirma constantemente, deve haverum dia de juízo final que virá a ser de salvação completa para o crente,mas também de ira extrema para os ímpios.
IV. A MANIFESTAÇÃO DA IRA DIVINA NA NOVA ALIANÇA
O Novo Testamento ensina claramente que todos quantosrespondem com fé ao evangelho apostólico, colocando-se debaixo dainfluência santificadora do Espírito de Cristo, são conscientizados deuma mudança tão grande operada em suas vidas que as únicasexpressões da linguagem humana para descrevê-la são os conceitos de“nascimento” e “ressurreição”. Tais pessoas “nasceram de novo”,“passaram da morte para a vida”. Deus as libertou do poder das trevase as transportou para o reino do Filho do seu amor (Cl 1.13). Umelemento essencial desta experiência de conversão é saber que elas jánão se encontram debaixo da ira, mas sob a graça. Contudo, o NovoTestamento está longe de afirmar que o cristão encontra-se livre,automaticamente, de qualquer manifestação da ira divina. A mensagemneotestamentária declara que o pecador justificado deve converter-se
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em pecador santificado. Ele é chamado a permanecer no amor de Deus.A diferença essencial entre o crente e o incrédulo é que este,
percebendo ou não o que acontece, está inevitavelmente sujeito à irade Deus; o crente, mediante sua contínua submissão ao Espírito Santo,
permanece na graça e escapa dessa ira.Paulo teve grande cuidado em advertir os cristãos contra o perigo
de cair em uma falsa sensação de segurança. Se eles viviam pela fé emCristo, que se havia sacrificado por eles, então se encontravam naobrigação de se oferecer ao seu Senhor como um sacrifício puro e limpo
de toda cobiça ou imundícia. A contaminação moral demonstraria queeles não eram filhos de Deus, mas filhos da desobediência, sujeitos àira divina (Ef 5.1-6). No entanto, se antes eles eram “trevas” e agoraeram “luz no Senhor”, deviam andar como “filhos da luz”, produzindoos frutos da luz, que consistem na bondade moral (Ef 5.8,9). Pelo fatode terem ressuscitado com Cristo, podendo gozar dos benefícios da sua
paixão, eles estavam obrigados a olhar para “as coisas que são de cima...e mortificar os seus membros sobre a terra”; estes “membros”, segundosomos ensinados, são principalmente a sensualidade e a avareza, que éidolatria.14 Paulo acrescenta que, por causa destas coisas, “vem a ira deDeus [sobre os filhos da desobediência]” (Cl 3.1-6). O fato de nãoestarem mais debaixo da lei, mas sim debaixo da graça, não devialevá-los a se esquecerem de que há uma “lei de Cristo” que deve serobservada (G1 6.2). O fato de terem se despojado “do velho homemcom os seus feitos” e se “revestido do novo homem” devia levá-los a
lembrar que o novo “se refaz para o pleno conhecimento, segundo aimagem daquele que o criou” (Cl 3.9-11). É certo que, como disse Pauloaos fiéis de Tessalônica, “Deus não nos destinou para a ira, mas paraalcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo”, e isto mesmoconstitui uma razão que os impulsiona a responder ao chamado que selhes faz para serem sóbrios, vestidos com “a couraça de fé e amor,tomando como capacete, a esperança da salvação” (1 Ts 5.8,9).
Muitos dos cristãos de Corinto não conseguiram compreender, a
princípio, que o cristianismo era algo muito diferente das religiões demistério tão populares entre os gregos. Não se tratava de uma opus operatum que lhes daria uma segurança mecânica e permanente. Osque estavam “em Cristo”, sendo membros do novo Israel e filhos danova aliança, não se encontravam livres da obrigação de ocupar-se e
preocupar-se com as questões relativas à conduta moral. Porquanto,
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A IRA DE DEUS • 91
embora fosse certo que tudo lhes era lícito, também era verdade que
nem tudo lhes convinha. Em seu intento de fazê-los ver claramentetodas estas questões, o apóstolo Paulo recordava os seus leitores do
trágico destino que havia sofrido a maioria dos israelitas durante aviagem do Egito para Canaã. Ao agir assim, Paulo coloca em relevo ofato de que o Deus com que os antigos israelitas precisavam haver-seera o mesmo Deus que havia convertido esses cristãos coríntios em uma
parte do novo Israel, estabelecendo com eles uma nova aliança
inaugurada pelo sangue de Jesus. A história do antigo Israel não foi
escrita como simples tema de interesse para os amantes deantigüidades, mas por ser um registro inspirado por Deus, que contém
a palavra de Deus adequada para seu povo em todas as épocas. “Estas
cousas”, escreve Paulo, “lhes sobrevieram como exemplos, e foramescritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos
séculos têm chegado” (1 Co 10.11). Foram fatos históricos com um
significado único, porque neles o Deus vivo operou para revelar àhumanidade os elementos essenciais da sua natureza.
Estes israelitas do passado, recorda Paulo aos coríntios, foram um
povo privilegiado, não menos que os cristãos. Eles estavam “todos soba nuvem” da proteção divina. Eles também tiveram um salvador e
experimentaram uma salvação, embora houvessem sido remidos da
escravidão no Egito e tido o privilégio de serem conduzidos por Moisés,
um homem a quem Deus dotara de poderes sobrenaturais. Tambémeles tinham seus sacramentos, porque foram alimentados com o pão
que descia do céu e beberam da água viva da rocha. Não obstante, elesmui freqüentemente foram visitados de forma devastadora pela ira
divina. “Entretanto”, diz a Escritura, “Deus não se agradou da maioria
deles, razão por que ficaram prostrados no deserto” (1 Co 10.5).
No relato que o Antigo Testamento faz de todos os exemplos
apresentados por Paulo, em 1 Coríntios 10.1-10, torna-se explícita a
menção da ira de Deus sobre Israel. Lemos que o Senhor envioucodornizes do mar, em resposta ao desejo de comer carne demonstrado
pelos israelitas: “Estava ainda a carne entre os seus dentes, antes quefosse mastigada, quando se acendeu a ira do Senhor contra o povo, e o
feriu com praga mui grande” (Nm 11.33). Quando Arão levantou o
bezerro de ouro e disse: “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te
tiraram da terra do Egito”, e “o povo assentou-se para comer e beber,
e levantou-se para divertir-se, disse o Senhor a Moisés: ...o teu povo,
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92 • IMORTALIDADE
que fizeste sair do Egito, se corrompeu... Tenho visto a este povo, e eis
que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me; para que se acendacontra eles o meu furor, e eu os consuma” (Êx 32.4,6,7,9,10). Quando“começou o povo a prostituir-se com as filhas dos moabitas, estasconvidaram o povo aos sacrifícios dos seus deuses; e o povo comeu,inclinou-se aos deuses delas... a ira do Senhor se acendeu contra Israel...os que morreram da praga foram vinte e quatro mil” (Nm 25.1, 3, 9).Quando Israel provou a paciência de Deus e murmurou contra Arão eMoisés, dizendo: “Por que nos fizestes subir do Egito, para que
morramos neste deserto?”, a ira do Senhor (embora esta expressão nãoapareça explicitamente no texto) manifestou-se na praga das serpentesabrasadoras, até que, graças à intercessão de Moisés, eles foramlibertados por meio da serpente de bronze que funcionou como meiode graça salvadora de Deus (Nm 21.5-8). Quando, depois que a terratragou Coré, Datã e Abirão, líderes de uma rebelião contra osdirigentes que o próprio Deus havia constituído, a congregação deIsrael murmurou de novo contra Moisés e Arão, e “falou o Senhor aMoisés, dizendo: Levantai-vos do meio desta congregação, e aconsumirei num momento; então se prostraram sobre os seus rostos.Disse Moisés a Arão: ...vai depressa à congregação, e faze expiação poreles; porque grande indignação saiu de diante do Senhor; já começoua praga” (Nm 16.44-46). Paulo deduz destas referências, as quais citaem 1 Coríntios 10, que as mesmas espécies de penalidades que o antigoIsrael havia sofrido, cairão sobre o» cristãos, se eles pensarem que se
acham livres de toda insegurança: “Aquele, pois, que pensa estar em péveja que não caia” (1 Co 10.12). Sem dúvida, os cristãos de Corintovangloriavam-se de já não serem pagãos nem profanos. Mas o apóstololhes traz à lembrança que as divisões que há entre eles são sinais de queainda há sacrilégio neles. Eles estão profanando o templo no qual Deusagora se digna habitar; e Paulo os adverte, não de maneira incerta, deque “se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porqueo santuário de Deus, que sois vós, é sagrado” (1 Co 3.17).
É digno de nota que a Epístola aos Hebreus chama atençãotambém para os castigos que a ira divina infligiu a Israel durante suatravessia pelo deserto. Como resultado de persistente desobediênciados israelitas, o autor recorda a seus leitores, citando o Salmo 95, queDeus jurou “em sua ira” que eles não entrariam no seu descanso na terra
para a qual se dirigiam. Embora este repouso continue sendo uma
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A IRA DE DEUS • 93
esperança para os filhos do novo pacto, a oportunidade de obter suas bênçãos pode ser perdida para sempre, no caso de apostasia, conforme
o perigo em que se encontravam os leitores da referida carta (Hb 3.7-12;4). O perigo de cair nas mãos do Deus vivo, que é “fogo consumidor”,torna-se algo tão real na vigência da nova aliança como o fora na
da antiga (cf. Hb 10.31; 12.29).15Quando Paulo faz seus leitores se lembrarem de maneira tão
enfática do perigo em que se achavam, parece que ele proclama não
apenas uma verdade evidente no Antigo Testamento, mas também se
refere a algo que conhece por experiência própria, como cristão.Devido a estas contínuas advertências que ele faz a seus irmãos, se não
for por outro motivo, parece que devemos estar todos de acordo com
os intérpretes que asseguram que a dramática descrição da sua lutaíntima em Romanos 7 é um testemunho da experiência pessoal de
Paulo desde sua conversão e não anterior a ela. Nos dias que
precederam a sua conversão, embora já separado por Deus, desde oventre da sua mãe, para a grande tarefa que lhe estava reservada (G1
1.15), Paulo encontrava-se debaixo da ira divina. Todavia, longe de perceber isto, ele pensava ser um fariseu irrepreensível (Fp 3.6), cheio
de zelo por Deus. Ele havia guardado a letra estrita da lei; no entanto,
tal lei nunca havia influenciado realmente as motivações internas da
sua conduta, mas apenas alimentava as chamas do seu orgulho. Nãoobstante, ele fora feliz em sua auto-justificação, pois supunha
alegremente que estava fazendo a vontade de Deus, durante aquele
período de tempo. Quando, pois, ele olhava para trás, para aquela épocade sua vida que havia culminado no supremo pecado de perseguir aigreja de Deus (1 Co 15.9), sob o engano de pensar estar fazendo a obra
de Deus, ele podia dizer: “Outrora, sem a lei, eu vivia” (Rm 7.9). O sinal
característico do homem não-regenerado é que ele acha que está
completamente vivo, quando, de fato, está espiritualmente morto. Ele
supõe que é objeto de amor de Deus, quando, na realidade, é objeto de
sua ira. Em resumo, ele não tem idéia da extrema gravidade de sua
situação. Todavia, depois de sua conversão, Paulo viu com clareza que,até então, ele não havia sido nada mais do que um pecador o tempotodo, necessitado de uma salvação que não pudera alcançar por si
mesmo. Mas agora que a salvação havia lhe chegado pela misericórdia
de Deus, ele estava consciente da luta moral como nunca antes. Até
aquele momento, ele havia sido inteiramente “carnal”, alheio às
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94 • IMORTALIDADE
influências do Espírito Santo e, portanto, não havia conhecido a luta de
um “ego” dividido. Entretanto, como cristão, ele se torna bastante
consciente dessa luta, passando a saber que duas forças operam dentro
dele; uma “carne” que ainda é muito ativa e um “eu” mais alto, um “eu”
de tal maneira influenciado pelo Espírito divino que agora sua menteé sensível às coisas de Deus, odiando o pecado e deleitando-se na lei
divina. Entre esta “carne” e este “eu” há um conflito perpétuo; mas a
vitória, potencialmente, está com o “eu”, pois o “eu” já não é só “eu”,mas, como Paulo declara em Gálatas 2.20, “já não sou eu quem vive,
mas Cristo vive em mim”. Como resultado da conversão de Paulo, R.Haldane afirmou acertadamente: “O pecado foi deslocado do seudomínio, mas não da sua morada”.16
Quando, pois, Paulo exclama: “Desventurado homem que sou!quem me livrará do corpo desta morte?”, ele pode afirmar em seguida:
“Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 7.24,25). Contudo,
o fato de a luta moral prosseguir, mesmo depois de ele ter sido libertado
do domínio do pecado, é algo que o apóstolo afirma mui claramente,
ao acrescentar depois do seu grito de libertação estas palavras: “Demaneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo da lei de
Deus, mas, segundo a carne da lei do pecado”. A intenção de alguns
eruditos, como Moffatt, de simplificar toda esta passagem,
transportando a segunda metade do v. 25 para o final do v. 23, para que
possa se harmonizar com a interpretação que supõe que Paulo estádescrevendo a luta anterior à sua conversão, não tem apoio nos
manuscritos; por outro lado, esta interpretação não concorda com oensinamento de Paulo nos outros escritos seus. Por conseguinte, deve
ser rejeitada como arbitrária e improvável. Como acertadamente disse
Karl Barth, referindo-se a Romanos 7: “O que Paulo explica nesta
passagem foi muito bem com preendido pelos reform adores;
entretanto, não o entendem esses teólogos modernos que o lêem com
as lentes da sua própria piedade... Que grande abismo separa a atitude
arrogante de herói conquistador, muito característica do século XIX,
da que tiveram os homens que chegaram a desprezar a si mesmos, oque é característica da verdadeira religião!”17
Já vimos que no antigo pacto aqueles que pretenderam evitar os
propósitos de Deus e frustrar os seus planos para a salvação dos seus
escolhidos tiveram de enfrentar’a ira divina e os desastres dela
resultantes. Paulo manifesta a mesma certeza de que a ira divina
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A IRA DE DEUS • 95
descerá também sobre os que, como ele diz em 1 Tessalonicenses 2.15,“mataram o Senhor Jesus e os profetas, como também nos perseguiram,
e não agradam a Deus, e são adversários de todos os homens, a pontode nos impedirem de falar aos gentios para que estes sejam salvos”. A
ira do Senhor cairá sobre eles, a fim de, como diz Paulo, “irem enchendosempre a medida de seus pecados”. Mais de uma vez é afirmado na
Bíblia que Deus adia o desencadeamento da sua ira até que os
pecadores tenham alcançado certo grau de saturação iníqua, além doqual Deus não deseja que prossigam. Assim, em Gênesis 15.16,
adverte-se a Abraão de que a iniqüidade dos amorreus não haviachegado a seu ponto máximo. Da mesma forma, o Senhor disse aos
fariseus de sua época que eles deviam encher a medida da iniqüidade
de seus pais, antes que recebessem o juízo do inferno, do qual não poderíam escapar (Mt 23.32,33). Deduz-se, segundo 1 Tessalonicenses
2.16, que o tempo a que Jesus se referia já havia chegado nos dias doapóstolo: “A ira, porém, sobreveio contra eles, definitivamente”. A
destruição de Jerusalém pelos exércitos de Tito culminaria esse
processo. As palavras de Paulo se cumpriram nessa época, embora nãocompletamente, quando a cidade santa foi assolada em 70 A. D. Aquele
dia foi um dia de ira, como Jesus especifica em Lucas 21.23, em cujotexto, depois de profetizar o cerco de Jerusalém, ele acrescenta:
“Haverá grande aflição na terra (a terra da Palestina), e ira contra este povo (o povo judeu)”. O lugar em que se encontra esta profecia da
destruição de Jerusalém, em Lucas 21, dentro de um âmbito
escatológico mais amplo, torna evidente que Cristo considerou esseacontecimento como precursor do último dia da ira, quando ele mesmo
voltará para executar o juízo final. Consideraremos em seguida a
revelação bíblica concernente a esse dia.
V. O DIA FINAL DA IRA
A expressão “o dia úo Senhor”, tão comum na época dos grandes profetas de Israel, significava para os israelitas o dia final em que Jeová
vindicará a justiça do seu povo contra seus inimigos. Uma das tarefas
dos profetas era insistir no fato de que “o dia do Senhor” seria uma
oportunidade em que Deus vindicaria “a sua própria justiça”, não
apenas diante dos inimigos de Israel, mas também contra o próprio
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Israel. Esse “dia do Senhor” aparece sempre no Antigo Testamentocomo uma realidade futura, se bem que houve acontecimentos na
his tór ia que abrange esse reg is t ro insp i rado que foram
verdadeiramente dias de juízo para Israel e os povos vizinhos que ooprimiam.
A certeza deste último “dia do Senhor”, quando a absoluta justiçade Deus será completamente vindicada e o furor da sua ira, livre de
impedimentos, passa para o Novo Testamento. E este é um dos fatores,
entre outros, que dão unidade à teologia bíblica. Resta, todavia, uma
“ira vindoura”, quando João Batista apresenta a sua mensagem,inaugurando a era do cumprimento assinalada no Antigo Testamento,
um cumprimento que, no entanto, não será realizado completamente
antes da segunda vinda de nosso Senhor Jesus Cristo; porque resta ainda
uma “ira vindoura”, quando o Novo Testamento termina com as
palavras: “Vem, Senhor Jesus!”.
O principal propósito da missão de João foi capacitar seus
contemporâneos a escaparem da ira final; com esse objetivo
apontava-lhes Cristo como o Cordeiro de Deus, por cujo sacrifícioexpiatório seriam tirados os pecados do mundo (Mt 3.7; Jo 1.29).Contudo, este Cordeiro de Deus também está destinado a ser, como
afirma João 5.22, o agente divino do juízo final: “E o Pai a ninguém
julga, mas ao Filho confiou todo o julgamento”. Por esta razão, o “dia
do Senhor” — ainda esperado quando se encerra o Antigo Tes
tamento18 — “o dia da ira e do justo juízo de Deus”, como Paulo o
chama em Romanos 2.5, no Novo Testamento é sinônimo do dia davolta de Jesus, o divino Filho do homem, em glória. Um elemento
essencial da salvação experimentada pelos que se encontram na novaaliança é a espera alegre e anelante da gloriosa aparição do Senhor e
Salvador. Paulo assegura aos tessalonicenses que, se eles per
manecerem fiéis, gozarão naquele dia a completa libertação da ira queserá manifestada (c/. 1 Ts 1.10). Deus, que os chamou (Rm 8.28-30),
não os destinou à ira, mas à salvação final por meio do Senhor Jesus
Cristo (çf. 1 Ts 5.9). Os que eram perseguidos, quando Paulo escreviasua carta, mas permanecessem fiéis, apesar da perseguição, receberíam
o “alívio... quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do
seu poder” (2 Ts 1.7). Todavia, por outro lado, aqueles que não
obedeceram ao evangelho de Jesus e não conheceram a Deus terão de
enfrentar aquele dia como um dia de ira, no qual “sofrerão penalidade
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A IRA DE DEUS • 97
de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu
poder” (2 Ts 1.9). No Novo Testamento, por conseguinte, o dia final do juízo pode
ser chamado não somente de “dia do Senhor”, mas também, como é
denominado em Apocalipse 6.17, “dia da ira” (“a ira de Deus e do
Cordeiro”), em completo paralelismo com o Antigo Testamento. OApocalipse de João ensina que, por ter Cristo, em sua paixão expiatória,
bebido pessoalmente o cálice da ira preparado para os pecadores, eletambém é o agente divino através do qual a ira de Deus será finalmente
manifestada. Esta parece ser a razão principal pela qual se admoesta oscrentes a não se vingarem por si mesmos. Se eles o fizessem, ususpariam
uma função que pertence exclusivamente a Deus, e que será executada pelo seu Cristo. Contudo, enquanto aquele dia não chega, os queexercem autoridade legítima nos governos do mundo e se opõem
legitimamente ao mal, castigando os transgressores, podem
considerar-se, em certo sentido, ministros de Deus, pois através deles
se manifesta, embora de modo parcial, o ministério da ira divina (Rm
13.4).Quando Paulo, em Romanos 12.19, adverte os cristãos: “Não vos
vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito:
A mim me pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor”, está se
referindo, sem dúvida, à manifestação da ira divina em sua eclosão finalno dia de juízo. A presença do artigo definido neste versículo, antes da
palavra “ira”, e o fato de que Paulo termina a sua advertência com a
menção de Deuteronômio 32.35 —“a mim me pertence a vingança, euretribuirei, diz o Senhor” —corrobora nossa interpretação de que esta
passagem se refere à ira divina, sem sombra de dúvida.Virá o dia em que, segundo Apocalipse, o Senhor ressurreto e
glorificado abrirá os selos do livro divino dos destinos, no qual estão
escritos os juízos do Deus Todo-poderoso. O Cristo ressurreto é o único
digno de abrir este livro, porque é, ao mesmo tempo, o Cordeiro que
foi imolado e o Todo-poderoso Leão da tribo de Judá que, com seu
sangue, comprou para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação
(c/. Ap 5.9). O fato de que o Cordeiro é, ao mesmo tempo, o Leão
aumenta o aspecto terrível da sua ira, quando ele abre os selos do livro
e desencadeia os últimos ais e pragas que marcarão o fim. Todosquantos tiveram alguma responsabilidade nos problemas da huma
nidade, mas agiram de maneira contrária aos propósitos de Deus, se
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esconderão da ira do Cordeiro naquele dia, segundo a viva e terrível
descrição de Apocalipse. Swete comentou acertadamente Apocalipse6.16: “O que os pecadores temem não é a morte, mas a revelação da presença de Deus... Há uma profunda psicologia — acrescenta ele — na observação de Gênesis 3.8: ‘Esconderam-se da presença do SenhorDeus, o homem e sua mulher”’. O mesmo autor prossegue: “Apocalipse
prevê uma fuga semelhante da presença do Senhor, por parte da últimageração da raça, da mesma forma como a que ocorreu no princípio, naqueda dos pais da humanidade. Na ocasião final, porém, haverá outro
motivo de terror: junto com a revelação da presença de Deus serámanifestada a ira do Cordeiro”.19
O Santo Cordeiro de Deus, mediante seus anjos, lançará sua foiceà terra, vindimará a videira da terra (chamada assim por ser fruto deuma videira, em contraste com a verdadeira videira, cujos ramos produzem fruto para Deus) e lançará as uvas no grande lagar da cólerade Deus (Ap 14.19). Cristo é a Palavra de Deus, o Rei dos reis, o Senhor
dos senhores, que ferirá e regerá com vara de ferro as nações, e pisaráo lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-poderoso (Ap 19.13,15,16). É ele, Jesus Cristo, quem dará de beber aos povos o vinho queessa videira produz, o vinho mortal da ira de Deus. Todos os quehouverem adorado a besta ou qualquer outro substituto do verdadeiroDeus, e todos quantos houverem perseguido o povo de Deus, “beberãodo vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da suaira” (Ap 14.10). Em 15.7 é utilizada uma metáfora um tanto diferente.
Aos sete anjos são dadas sete taças de ouro cheias da ira de Deus paraque derramem seu conteúdo sobre a terra. Por meio destas figuras esímbolos, o livro de Apocalipse ensina, sem deixar dúvidas, o último ecompleto derramamento da ira divina sobre o mundo.
Os vinte e quatro anciãos, que representam a igreja de Deus, sãoapresentados em atitude de louvor e adoração ao Senhor, porque elevingou de maneira absoluta e suprema a sua justiça e porque a ira divinademonstrou ser mais forte do que o vão rugir das nações. Assim, osservos de Deus, os profetas e os santos, tanto grandes como pequenos,recebem seu galardão {cf. Ap 11.18). Porquanto, por grandes e terríveisque sejam os desastres que sobrevenham à terra, quando os vasos deira são esgotados, eles não alcançarão os servos de Deus, cujas testasestão seladas com o bendito nome do seu Redentor e cujos nomes estãoescritos no livro da vida do Cordeiro ( cf. Ap 7.3; 3.5). Para os redimidos,
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A IRA DE DEUS • 99
está reservado um paraíso muito mais sublime do que aquele que Adão perdeu, lugar de inefáveis bênçãos onde eles verão e adorarão a Deuse gozarão eternamente da sua presença.
razão por que se acham diante do trono de Deus e o servem dedia e de noite no seu santuário; e aquele que se assenta no tronoestenderá sobre eles o seu tabemáculo. Jamais terão fome, nunca maisterão sede, não cairá sobre eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiroque se encontra no meio do trono os apascentará e os guiará para asfontes da água da vida. E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima”
(Ap 7.15-18).
NOTAS DO CAPÍTULO
1. Robert Haldane, The Epistle to the Romans, p. 55.2. C. H. Dodd, The Epistle to the Romans, p. 23.3. “Os pagãos não serão julgados por uma revelação que não conheceram.
Contudo, como têm uma revelação do caráter de Deus nas obras da criação (Rm 1.19) e da regra do dever em seus próprios corações (Rm 2.14,15), são indesculpáveis. São tão impotentes para justificar-se mediante a norma que lhes há d e julgar, como nós de cumprir a norma mais severa pela qual seremos julgados, nós que já conhecemos a revelação especial de Deus. Ambos, portanto, necessitamos de um Salvador (Rm 2.12)”. Charles Hodge, A Commentary on the Epistle to the Rom ans, p. 89.
4. Paulo não acusa os judeus de idolatria, porque, desde o exílio, a idolatria em sua forma mais grosseira se havia tornado algo cada vez mais desprezível aos israelitas. Todavia, no Antigo Testamento, a idolatria — particularmente o culto a Baal — havia
provocado mais de uma vez a ira do Santo de Israel (cf. Dt 32.16,21; 29.24-28).5. Neste versículo, o particípio thelon é causativo e não concessivo.6. Para uma interpretação cuidadosa deste texto tão mal compreendido,
remetemos o leitor à obra de John W. Wenham, O Enigma do M al, pp. 129-131.7. The Authority o f the Old Testament, p. 252.8. The Epistle to the Romans, p. 23.9. The Epistle to the Romans, p. 23.
10. Muitos comentaristas críticos da atualidade consideram esta passagem um vaticinium po st eventum; contudo, incluída na suposição de que aceitamos esta crítica
tão subjetiva, continua de pé e digna de ser considerada a convicção de que o evangelista que fez esta “inserção” não parece ter verificado qualquer incongruência na identificação do rei irado da parábola com o próprio Deus.
11. Dictionary o f Christ and the Gospels, p. 61.12. É claro que é infinita a distância existente entre a dor experimentada por
Cristo, ao fazer a expiação do pecado, e a sofrida por Jerusalém, ao ser destruída pela Babilônia. No entanto, o autor quer sublinhar aqui a origem idêntica de ambos os sofrimentos; a ira de Deus que fulmina o pecado (nota do tradutor).
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13. F. C. Synge, The Epistle to the Ephesians, p. 46.
14. Uma possível explicação da identificação que Paulo faz da “avareza” como
“idolatria” é a que nos dá E. F. Scott: “Provavelmente a verdadeira explicação deve ser
procurada no modo hebraico de falar, que sobrecarregava a gravidade de uma ofensa
por meio da sua identificação com outra que todo mundo conhecia como tal” (Epistle
to the Colossians, Moffatt Commentary, p. 67). Sem dúvida, também pode ser que Paulo
tenha querido dizer que a riqueza, o poder, a influência e as demais coisas que a cobiça
leva o homem a desejar tendem a converter-se em ídolos. Há uma associação parecida
da avareza com a idolatria, que levou o Senhor a pronunciar terríveis palavras de ira,
em Isaías 57.17, depois de descrever vividamente a idolatria na primeira metade do
capítulo: “Por causa da iniqüidade da sua cobiça eu me indignei e feri o povo; escondi
a face, e indignei-me; mas rebelde, seguiu ele o caminho da sua escolha”.15. Quanto a um estudo mais completo das passagens “severas” da Epístola aos
Hebreus, veja-se minha monografia: The Gospel in the Epistle to the Hebrews (Tyndale
Press), pp. 47-50.
16. Commentary on Romans, p. 294.
17. The Epistle to the Romans, pp. 269-270.
18. “Pois eis que vem o dia, e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os
que cometem perversidade, serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o
Senhor dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo. Mas para vós
outros que tem eis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas;
saireis e saltareis como bezerros soltos da estrebaria. Pisareis os perversos porque se
farão cinzas debaixo das plantas de vossos pés naquele dia que prepararei, diz o Senhor
dos Exércitos” (Ml 4.1-3).
19. The Apocalypse o f John, pp. 94,95.
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3 Alan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Neste artigo de Packer, encontramos uma defesa curta, mas clara,da convicção de que o inferno é real e não está vazio. Não é um pontode vista muito popular em nosso tempo. A teologia liberal e críticaopõe-se universalmente à idéia de que a ira de Deus permanecerá parasempre sobre aqueles que ficam sem Cristo. Eles argumentam que a
idéia do inferno não faz justiça à profundidade do amor de Deus nemà total eficácia da vitória da cruz. Ademais, diz-se que acreditar nocastigo eterno seria fazer de Deus um fracasso na redenção e, talvez,um demônio disfarçado. Qualquer que seja o período de purificaçãoque possa haver na próxima vida, no final, o inferno ficará vazio e todosencontrarão o caminho para chegar à presença de Deus. No relato deGênesis, lemos o que Satanás prometeu a Adão e Eva: “É certo quenão morrereis”. Hoje, isso se transformou em: “Não sereis irreme
diavelmente condenados”.O desejo de negar a existência do inferno, ou de pelo menos
encará-lo como um lugar temporário, é um pensamento natural muitomais confortador do que o contrário. Quem se sente moralmente capazde condenar alguém ao castigo eterno, sabendo que todos nós somossalvos pela graça? E se a graça é suficiente para me salvar, não ésuficiente para salvar a todos? Por que, então, os evangélicos continuamagarrados à doutrina do inferno? Pela simples razão de que a Bíbliaensina isso. Não importa o quanto consideremos difícil esse pensamento: a existência da condenação eterna e da separação de Deusdeve ser sustentada, porque é ensinada pelos profetas, pelos apóstolose também por Cristo. Ela deve continuar sendo parte essencial daquiloque cremos acerca da natureza do mundo. Por outro lado, isso deve serafirmado com temor e tremor (Fp 2.12), pois todos precisamos
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102 • IMORTALIDADE
reconhecer que, não fosse a graça de Deus, é ali que também
encontraríamos nosso lugar.Originalmente, este capítulo apareceu como artigo na revista The Banner o f Truth, de
março/abril de 1966, publicada na Inglaterra. Reproduzido aqui na íntegra com
tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
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3 James I. Packer
NEM TODOS OS
HOMENS SERÃO SALVOS
O evangelho é “o poder de Deus para a salvação de todo aqueleque crê” (Rm 1.16). Esta é a proclamação universal do cristianismo.Deus “notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam”(At 17.30). Esta é a conclamação universal do cristianismo. Jesus disse:“Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28.19). Esta éa missão universal do cristianismo.
Temos aí um tipo de universalismo, e este universalismo é ponto pacífico. O que está sendo debatido é se esta proclamação universal dagraça redentora a todos os que a receberem, concede a esperança deque, por fim, todos os homens encontrarão lugar no reino da graça. Emsua acepção comum, a palavra “universalismo” denota a posição dos
que abraçam esta esperança. É neste sentido que estaremos usando esta palavra neste capítulo.Hoje o universalismo está avançando rapidamente no mundo
protestante. Embora tenha sido aventado em primeiro lugar como umsério ponto de vista teológico pelo grande Orígenes, no começo doséculo terceiro, e durante dois séculos tenha experimentado con-sideráveis avanços, ele foi condenado quase no fim do século sexto e,desde aquela época, o universalismo fracassou no seio da cristandade.
Ele se tornou uma hipótese desacreditada; durante séculos ninguém olevou a sério. Na corrente principal do protestantismo, até o séculoXIX, o universalismo conservou sua condição de nada mais do que um
ponto de vista de uma minoria heterodoxa. Mas, então, no século XIX,as coisas começaram a se modificar.
O dogma universalista foi mantido pelo pioneiro do liberalismo,
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104 • IMORTALIDADE
Schleiermacher, e por muitos liberais que seguiram suas pegadas. Uma
vez que aquela época foi marcada por otimismo e confiança ilimitadano futuro do homem, o espírito universalista difundiu-se por toda a
cristandade.
Neste século, pela primeira vez na história do protestantismo,muitos líderes missionários, bem como teólogos das principais
denominações, estão dando ênfase à teoria do universalismo.
De fato, este é um desafio muito radical que os universalistas estão
lançando aos ortodoxos, dizendo que só eles estão fazendo justiça à
realidade do amor de Deus e da vitória da cruz. A crença em qualquerforma da doutrina da perdição eterna ou do castigo eterno, dizem eles,
faz de Deus um fracasso; de fato, alguns vão ao ponto de dizer que faz
dele um diabo.Se isto está sendo afirmado, não podemos simplesmente ignorá-lo.
As implicações
Quais são as implicações do universalismo?
Se todos os homens serão salvos, a urgência da evangelização deixade existir. Torna-se possível argumentar que outras maneiras de amar
seu próximo são mais importantes do que procurar em primeiro lugar,
como coisa mais importante, ganhá-lo para a fé no Senhor Jesus Cristo.
Dessa forma, torna-se muito fácil nos afastarmos do evangelho daconversão para um evangelho social.
Agora, consideremos o problema que se nos levanta. No decorrerda história da igreja, certos indivíduos carregaram um fardo de oraçãoe pleitearam junto a Deus, noite e dia, em favor de homens que eles
criam estarem perdidos. Essas pessoas oraram em termos de uma
convicção viva de que, sem conversão, os homens irão para o inferno
— irreparável e irrevogavelmente. Por amor e compaixão, elas caíam
de joelhos e oravam para que Deus tivesse misericórdia e salvasse as
almas. A questão para nós é: isto era necessário? O universalismo tema ver não apenas com o que dizemos ao povo, mas também com a
maneira como oramos pelo povo.
O universalismo é um problema hoje, também, porque é forte seu
apelo pessoal. Os evangélicos tradicionalmente têm considerado ouniversalismo como um ensino moralmente debilitante e espiritualmente mortal. Dizemos que ele sugere que a conduta da pessoa
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NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 105
aqui não importa e que estimula falsas esperanças de vida eterna,embora a pessoa não se arrependa nem creia. Os evangélicos,historicamente, têm reconhecido no universalismo a forma moderna damentira de Satanás no jardim: “É certo que não morrereis”.
Todavia, para sermos perfeitamente honestos, o universalismo éuma doutrina confortadora, quando nela se crê. O pensamento de quemuitos de nossos queridos amigos estão se dirigindo para a desgraça eo tormento não é agradável, para com ele vivermos constantemente. Sesomos cristãos normais, gostaríamos de não precisar viver com estas
convicções. O universalismo, por outro lado, tem um forte apelo pessoal. É uma doutrina confortável, com a qual podemos viver, tãoconfortável quanto nunca podería ser a doutrina evangélica acerca docastigo eterno. E temo que muitos de nós tenhamos nos esgueirado paraa idéia de viver e nos comportarmos como se o universalismo fosse umaverdade, embora jamais tenhamos endossado por escrito essa teoria.
O que a Bíblia diz
Agora, vejamos o que a Bíblia tem a dizer acerca do universalismo.Com respeito à esperança do crente, quando morrer, não há dúvidas denenhum lado. Como podería haver, quando o Novo Testamento é tãoexultantemente claro acerca da glória da esperança cristã? “Não hácondenação para os que estão em Cristo Jesus” é a maneira como seinicia Romanos 8, e ele encerra dizendo que nada, nem no céu nem naterra, pode nos separar do “amor de Deus que está em Cristo Jesusnosso Senhor”.
Levanta-se uma interrogação a respeito do destino dos que estão“sem Cristo... não tendo esperança, e sem Deus no mundo” (Ef 2.12).O que podemos dizer deles? Os oito primeiros capítulos da Epístolaaos Romanos declaram que eles estão (1) debaixo da lei, (2) debaixodo pecado, (3) debaixo da ira e (4) debaixo da morte.
Eles estão debaixo da lei não simplesmente no sentido de seremobrigados a observá-la, mas por estarem sujeitos a serem julgados porela. Eles estão debaixo do pecado, com o seu poder dinâmico de
perversidade que impulsiona os homens para fora do caminho de Deus, para a rebelião e a revolta. Eles estão debaixo da ira; pois a ira de Deusé revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens. Comohomens que estão debaixo do pecado e da ira, eles também estão sob a
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morte. “O pendor da carne dá para a morte” (Rm 8.6). “Porque, se
viverdes segundo a carne, caminhais para a morte” (Rm 8.13).A mera justaposição desses dois textos mostra-nos que na Bíblia a
morte não significa a cessação do ser. Pelo contrário, significa a
continuação do ser em um estado em que a pessoa perdeu algo deessencial para a vida que Deus preparou para vivermos. Agora, em certo
sentido, os homens estão mortos, mas eles estarão mortos em sentido
mais profundo, depois desta vida. Com base nisso, não é surpresa
descobrir que o Novo Testamento prossegue, desenvolvendo o que
parece ser uma doutrina forte e indiscutível de castigo eterno ( kolasis aionios).
Aionios significa “relativo ao mundo vindouro”. Ao mesmo tempo
em que os exegetas têm questionado se esta palavra subentende ou nãoa eternidade em termos do tempo marcado pelo relógio, o que é certo
é que, de fato, ela dá a entender fixidez e irreversibilidade. A Bíblia só
conhece duas ainoesages, o estado de coisas atual e o estado de coisas
futuro. O primeiro é temporário e passará, mas o segundo é permanente
e subsistirá sem fim. Na parábola das ovelhas e dos bodes (Mt 25.46), somos informados
de que aqueles a quem o juiz rejeita vão para o kolasis (castigo) aionios
(um estado final). Esta frase é equilibrada na primeira metade do
versículo pela referência a zoe aionios (vida eterna), que também é um
estado fixo e final. Mesmo que a palavra aionios venha a significar
somente “pertencente à aion (era) vindoura”, e não subentenda por si
própria a perenidade no sentido de continuidade perpétua, o pensamento de perenidade por certo está implícito na frase “vida
eterna” e, portanto, dificilmente pode ser excluído da frase
correspondente e oposta “castigo eterno”. O argumento exegético de
que, neste texto, aionios, ao ser aplicado a kolasis, necessariamente
subentende perenidade, parece ser iniludível.
O Novo Testamento sempre concebe este castigo eterno como
consistindo de uma consciência agonizante da má recompensa que a
pessoa está recebendo, do desprazer de Deus, do bem que a pessoa perdeu e do estado fixo irrevogável em que se encontra. Esta doutrinade castigo eterno foi ensinada na sinagoga, mesmo antes de nosso
Senhor tê-la tomado e reforçado nos evangelhos. Toda a linguagem que
causa terror em nossos corações — choro e ranger de dentes, trevas
exteriores, o verme, o fogo, geena, o grande abismo no meio — é
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NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 107
extraída diretamente dos ensinamentos de nosso Senhor. É com JesusCristo que aprendemos a doutrina do castigo eterno.
Uma segunda chance
No entanto, o universalista desenvolveu uma tese alternativa, umadoutrina de que, depois da morte, os que morrerem na incredulidadee entrarem no inferno, de que falou nosso Salvador, terão uma segundachance. Deus ainda continuará lutando com eles por seu Espírito degraça; e o sucesso nesta luta ulterior é uma certeza. Deus continuaráconclamando os homens ao arrependimento e fé, até que eles atendame se submetam ao senhorio de Jesus.
Assim, esta não é uma doutrina que negue a realidade do inferno.O inferno é uma realidade, dizem eles, e os homens de fato irão paralá. Mas ele é apenas temporário; os homens podem sair dele. Nas
palavras de Emil Brunner, o inferno é, segundo este ponto de vista,
apenas “um processo pedagógico de purificação”. O inferno, de acordocom esses homens, parece corresponder ao purgatório cató-lico-romano. Esta não é uma doutrina do inferno como destinodefinitivo, mas como estado penúltimo, uma doutrina de salvação foradas condições que o Novo Testamento descreve como castigo edestruição eternos. Os livros falam dela corretamente como otimismoda graça.
Os argumentos usados
Que argumentos poderíam ser apresentados para fundamentaruma opinião como esta? Duas espécies de argumentos positivos sãousadas. O primeiro grupo é de argumentos exegéticos; o segundo, deargumentos teológicos.
Os argumentos exegéticos, extraídos diretamente das Escrituras,
são baseados em três classes de textos:(1) Há um grupo de textos que parece prever a salvação de todos
os homens: “a restauração de todas as coisas” (At 3.21); “atrairei todos(os homens) a mim mesmo” (Jo 12.32); “por um só ato de justiça veioa graça sobre todos os homens” (Rm 5.18s.); todas as coisas, e até amorte, serão submetidas a Cristo (1 Co 15.25-28); “ao nome de Jesus
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108 • IMORTALIDADE
se dobrará todo joelho” (Fp 2.9-11); e há alguns outros textos desse tipo.
(2) Há um grupo de textos que parece dizer que a intenção de Deusé salvar todos os homens: ele “deseja que todos os homens sejam salvos”
(1 Tm 2.4); “não querendo que nenhum pereça, senão que todoscheguem ao arrependimento” (2 Pe 3.9).
(3) Há um grupo de textos que parece nos dizer que a cruz
estabeleceu uma relação entre Deus e o homem que deve significar
salvação universal: “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o
mundo” (2 Co 5.19); “ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não
somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”(1 Jo 2.2); “Jesus provou a morte por todo homem” (Hb 2.9); “a graçade Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tt 2.11).
Todavia, estas três classes de textos, que supostamente provam ouniversalismo, na verdade não provam nada semelhante. Eles não são
conclusivos pelas três razões seguintes:
(1) Todos eles admitem outra explicação, uma explicação maiscoerente com o seu contexto do que a universalista (veja comentários
da Série Cultura Bíblica).
(2) Todos eles estão justapostos a textos que afirmam que alguns
perecem. Por exemplo, depois de Atos 3.21, onde Pedro fala da“restauração de todas as coisas”, ele também diz que quem “não ouvir
a esse profeta, será exterminado do meio do povo” (At 3.23). Em João
12.32, nosso Senhor diz: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei
todos a mim mesmo”; contudo, anteriormente ele havia dito que alguns
homens, diante do som da sua palavra, serão ressuscitados dentre osmortos para a ressurreição da condenação (Jo 5.29). E ao mesmo tempoem que Filipenses 2.9 diz que “ao nome de Jesus se dobre todo joelho”,
afirma também, no capítulo seguinte (3.19), que o fim de algumas
pessoas é a destruição.
(3) Não há nenhuma passagem bíblica que defenda qualquer
insistência de Deus junto aos homens, depois da morte. Os
universalistas têm apelado a 1 Pedro 3.19, concernente ao fato de nosso
Senhor ter ido no Espírito pregar aos espíritos em prisão, os quaishaviam sido desobedientes nos dias de Noé. Contudo, não importa
como se exponha este texto, ele certamente não propicia base para a
afirmação de que haverá uma pregação de nosso Senhor, depois da
morte, a todas as almas no inferno e muito menos que tal pregação terá
sucesso em todos os casos.
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NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 109
Não há base para desafiar a velha doutrina do castigo eterno no quetange às linhas exegéticas e, quanto a isto, os universalistas modernosconcordam, em sua maior parte. Por isso, eles passam dos argumentosexegéticos para os teológicos.
Seus argumentos teológicos baseiam-se principalmente em duasconsiderações: (1) o caráter de Deus; (2) a vitória da cruz.
Deus é amor
O Novo Testamento declara que Deus é amor. É impensável,dizem eles, a idéia de que, visto que o caráter de Deus é de amor, eletenha qualquer outra intenção a não ser a de salvar todas as suascriaturas racionais. O seu amor, em termos de redenção, precisa ser tãoamplo quanto o seu amor na criação e, porque ele é soberano eonipotente, este propósito não pode falhar. Nels Ferré diz: “Deus nãotem filhos problemáticos permanentes”. O Bispo Robinson diz que a
justiça de Deus precisa ser imaginada como uma função do seu amor.Certamente é suficiente responder que na Bíblia os atributos de Deusnão são em qualquer ponto representados como atributos uns dosoutros.
A Escritura nos diz que Deus é santo e que, dentro da sua santidade,há um amor redentor manifestado na salvação dos crentes, enquantouma justiça pura é manifesta na condenação dos incrédulos. Deus éamor, diz João (1 Jo 4.8), mas na mesma epístola nos é dito que Deusé luz (1.5). Os universalistas dizem que o fato de permitir que qualquerde suas criaturas sofra eternamente será um inferno para Deus.Todavia, onde a Bíblia ensina qualquer coisa parecida com isto? Estaé uma inferência especulativa que se afasta completamente dotestemunho bíblico em relação ao mistério do Ser Divino.
A vitória da cruz
O segundo argumento teológico que eles usam deriva diretamenteda crença que eles têm na vitória da cruz. Visto que a cruz, na verdade,assegurou a salvação de todos os homens, dizem eles, a fé não éobjetivamente decisiva. A fé é simplesmente uma questão de chegar areconhecer que você já foi salvo; quando você reconhece isso, então
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sorri, por assim dizer, e diz a Deus: “Muito obrigado!” No entanto,
outra vez, este é um conceito que se afasta completamente do espíritodas Escrituras.
O Novo Testamento diz que a salvação é encontrada em Cristo. Ninguém está em Cristo, enquanto não for levado a ele e ninguém é
levado a Cristo sem fé. A fé é essencial. A reconciliação precisa serrecebida, e os que não a recebem permanecem sem ela. “Quem nele
crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no
nome do unigênito Filho de Deus... mas sobre ele permanece a ira de
Deus” (Jo 3.18,36). “O evangelho... é o poder de Deus para a salvaçãode todo aquele que crê” (Rm 1.16). A Escritura parece deixar bem claro
que a vitória do Calvário propicia salvação tão somente à pessoa quecrê.
Além disso, o Novo Testamento define o propósito salvífico e o
efeito da cruz em termos particularizados. “Cristo amou a igreja, e a simesmo se entregou por ela” (Ef 5.25). Ele morreu para poder nosdesarraigar deste mundo perverso” (G1 1.4). Os universalistas não
conseguem explicar o que está fazendo nas Escrituras esta limitação
que particulariza.
Deixando de lado o problema especial dos “que nunca ouviram” e
concentrando nossa atenção inteiramente nos que ouviram o evan
gelho, permitam-me fazer agora duas perguntas finais:(1) A idéia de uma segunda chance, uma chance que resultará em
sucesso final, não ignora a fixidez, a irredutibilidade de um homem não
regenerado, natural, escravo do pecado? Ferré escreve: “Na vidafutura, Deus apertará os parafusos o suficiente para fazer que oshomens desejem mudar a sua maneira de ser”. Certamente o que a
Escritura sugere é que tal tratamento produziría simplesmente um
endurecimento maior, amargura ulterior e incredulidade. Deus não
tem uma revelação mais rica da sua graça para mostrar a Judas no
mundo vindouro do que a que lhe foi mostrada no curso da sua vida
neste mundo. Se você quer ver o amor de Cristo, há apenas um lugar
para onde se recomenda que você olhe: para a cruz histórica. Se vocêrejeitar o evangelho da cruz nesta vida, porque o pecado cegou sua
mente, não existem razões para esperar que você aja diferentemente
no mundo futuro. A “persuasão moral”, tão somente, por mais intensa
que seja, não modificará o coração dos homens, aqui ou na vida futura.
(2) A idéia de uma segunda chance com sucesso, para aqueles que
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NEM TODOS OS HOMENS SERÃO SALVOS • 111
morrerem na incredulidade, não ignora a insistência da Bíblia no fato
de que esta vida é decisiva? Havia um grande abismo colocado entre orico e Lázaro (Lc 16.26). “Aos homens está ordenado morrerem uma
só vez e, depois disto, o juízo” (Hb 9.27). Não há sugestão de nenhumasegunda chance com sucesso, nestes versículos. No contexto de
Hebreus, coisa terrível é cair nas mãos do Deus vivo. “Porque importa
que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada
um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”(2 Co 5.10). As coisas que realmente foram executadas no corpo
voltarão para nós como nosso destino. Este será o nosso destino, umdestino que manipulamos para nós mesmos, mediante as nossasescolhas aqui, o qual Deus, em seu último e solene ato de respeito pela
realidade da responsabilidade humana, permitirá que tenhamos.Deus perguntará: “Você escolheu permanecer sem mim? Então
permanecerá sem mim!”. Você escolheu, neste mundo, apartar-se de
Jesus? No mundo futuro, Jesus dirá: “Afaste-se de mim. Você terá oque escolheu”. Esta é a essência da doutrina bíblica acerca do juízo e
do inferno.Os destinos eternos são formados nesta vida. “Eis agora o tempo
sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação” (2 Co 6.2).
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4 A lan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Diz-se que a consciência pesada, junto com a culpa que aacompanha, é a mais universal das experiências humanas. Se isso forverdade, então, em segundo lugar, e quase empatado, deverá vir ohorror da morte. Na Bíblia, a morte é personificada como terror (Jó18.14), caçador (SI 18) e escravizador (Hb 2.15). É algo que lança uma
“sombra” sobre a vida (SI 23.4) e pode escurecer, com desalento etristeza, os momentos mais ensolarados de felicidade humana. Paulodisse que Cristo removeu dos cristãos o aguilhão da morte. Mesmoassim, a dissolução da união entre o espírito e o corpo não é uma coisanatural. A Bíblia descreve-a como o retomo ao pó (Gn 3.19), ainterrupção da respiração (SI 104.29), o desnudamento do espírito (2Co 5.3,4) e o distanciamento do corpo (2 Co 5.8).
Na sociedade de hoje, ser mentalmente saudável significa rejeitar pensamentos de morte. A morte foi transferida do lar para os hospitaise centros médicos ou, adiante, para as agências funerárias. Neste artigo,Packer afirma que é sábio contemplar a morte. Embora ela só ocorraum a vez (Hb 9.27), é inevitável (Jó 14.22). Ainda que incerta quanto aotempo (PV27.1), é universal (Gn3.19); é o destino de todos nós. Moisésdisse que devemos aprender a “contar os nossos dias” e a refletir sobreo nosso fim (SI 90). Esse fim não é definitivo (como pensa a ciência
moderna), mas, antes, um fim e um começo: o fim desta vida atual e oinício de um novo destino em que cada um colhe o que semeou (2 Co5.10; G16.7).
Em sua origem, este artigo apareceu como capítulo de G od ’s Words, de James I. Packer, publicado pela Inter-Varsity Press, na Inglaterra, em 1981. Reproduzido aqui na íntegra com tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
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4 James. I. Packer
A MORTE
“Ele teve bastante sucesso em sua vida profissional, e a únicaIntrusa com a qual teve dificuldades de lidar foi a morte.” Assim, aofinal de seu romance mais vigoroso, Charles Williams apresenta asdespedidas do jovem de fino trato que não tinha senso de valores, a nãoser a utilidade para si mesmo. As palavras de Williams dariam um bomepitáfio para muitas pessoas nos dias de hoje, pois declaram com grandeexatidão como a morte atinge o homem natural. Na verdade, ela semanifesta como intrusa, sem ser convidada e sem que se faça com elanenhum acordo. Quando uma pessoa percebe que ela está seaproximando, aparece o pânico. Por mais que queira fingir que écorajosa ou mesmo que a despreza, por dentro ela se sente isolada,
paralisada, drenada de toda força. Na verdade, o homem é incapaz delidar com a morte em pé de igualdade.
De todas as experiências humanas, disse James Denney, a maisuniversal é a má consciência. Se isto é verdade, a segunda na ordem deuniversalidade é certamente o medo da morte. A Epístola aos Hebreusdescreve os remidos como seres que “pelo pavor da morte, estavamsujeitos à escravidão por toda a vida” (Hb 2.15). Todos conhecem amorte segundo é chamada em Jó: “o rei dos terrores” (Jó 18.14). Todasas idades e culturas consideram traumático o pensamento da morte: elechoca, intranqüiliza, enerva. Por todo o mundo, as pessoas ficamembaraçadas e gaguejam se você lhes fala sobre a morte. Em toda parte,a experiência de privação, ou a morte de um amigo, abala as pessoasaté o âmago; em todos, os lugares, a expectativa da morte lança osinválidos em um desespero apático. (É por isso que os médicos efuncionários de hospitais, muitas vezes cruelmente, procuram esconderdos moribundos a sua verdadeira condição.) Dezenove vezes a Bíblia
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116 • IMORTALIDADE
chama de “sombra” a perspectiva da morte, e esta figura expressa muito bem o que sentimos a respeito dessa nossa inimiga. Vemos a morte seagigantando diante de nós como uma ameaça tenebrosa, grosseira,lançando diante de si uma sombra, escurecendo os nossos momentosmais ensolarados com arrepios e tristeza. A cada dia avançamos emdireção a ela; depressa a sua sombra nos envolverá completamente, ea luminosidade da vida deixará de existir para sempre. Teremos passado
para as trevas. Ao contemplarm os esta passagem, sentimo-nos,obscuramente, pouco à vontade. O que está reservado a nós além das
trevas? Quando esta vida terminar, o que terá início? Esta interrogação perturba as pessoas mais do que elas geralmente estão dispostas aadmitir.
É claro que algumas pessoas resolutamente manifestamindiferença em relação a ela. Pensar na morte, dizem, é coisa mórbida;as pessoas que têm mente sadia não pensam nisso. Contudo, duvidamosde que a sua atitude seja a mais sábia. Porquanto, em primeiro lugar,haver-se com a morte não é nada mais do que realismo sóbrio, visto que
a única coisa certa que temos na vida é a morte. O escapismo que levao homem a fechar os olhos para a perspectiva da morte é tão estúpidoquanto neurótico e desmoralizante. Revela mente tão sadia quanto achamada atitude “vitoriana” para com o sexo. Se, para termos saúdemental e moral, achamos que é necessário enfrentar os “fatos da vida”em relação ao sexo, devemos nos lembrar de que um fato muito maisfundamental da vida é que a morte, mais cedo ou mais tarde, intervirá
para fazê-la cessar, e não devemos duvidar da necessidade de enfrentareste fato, se quisermos que nossa maneira de encarar a vida seja sadia.Filipe da Macedonia foi sábio, quando encarregou um escravo delembrá-lo todas as manhãs: “Filipe, lembre-se de que você devemorrer”. Alguns de nós devemos achar uma forma de, igualmente, ter
pessoas que nos lembrem disso. Nos últimos anos, a comunidade científica tem estudado in
tensamente a morte e o ato de morrer. O desenvolvimento de técnicas
médicas para reanimar o coração desfez a antiga idéia de que omomento da morte ocorria quando o coração parava de bater, dandolugar ao conceito de um processo de morte que se torna irreversívelquando cessam no cérebro as vibrações elétricas, aproximadamentevinte minutos depois que o coração pára. Algumas pessoas têm relatadomuitos tipos de experiência entre o momento em que seu coração parou
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A MORTE • 117
e o instante em que foi reanimado, e expoentes do ocultismo têm se
apegado a esses relatos como revelações a respeito do destino humano;visto, porém, que nenhum deles pode nos dizer o que acontece quando
se completa o processo da morte e o cérebro não consegue mais ter
consciência, o homem sábio não considera esses relatos como decisivosem relação a nada. Da mesma forma, ele não imagina que a curiosidade
em relação à morte, que todas estas notícias suscitaram, tem feito algo
para diminuir o efeito traumático dos pensamentos a respeito da forma
como a pessoa sai deste mundo, indo para —o quê?
Parece claro que os jovens são mais capazes de pensar de maneiranão distorcida a respeito da morte do que pessoas em outras faixasetárias, pois quando se cristaliza na mente humana o sentido daindividualidade própria e das ilimitadas possibilidades da vida, o
verdadeiro horror da aproximação da morte atinge a pessoa mais forte
e dolorosamente do que nunca. Há muitos jovens na idade entre quinze
e vinte e cinco anos que algumas vezes —sonhando acordados, talvez,
durante a noite, ou a sós no campo — se surpreenderam pensandoassim: “Quero viver — estou apenas começando a viver — mas, que
horror, eu devo morrerl” — e esse pensamento fere como um golpe
sobre o plexo solar. Os membros desta faixa etária consideram a morte
um mal antinatural, um atentado cósmico, que zomba de todos os seus
recém-nascidos anseios pela verdade, beleza e realização. Corrói-lhesa dúvida: “Existe qualquer significado em lutar por objetivos sem valor,se no fim da sua busca, ou antes dela, você terá de morrer?”
Via de regra, só na juventude é forte esta sensação do caráterultrajante da morte. Por volta da meia-idade, a visão da juventude se
torna difusa, e a pessoa simplesmente se resigna a morrer no tempo
devido, como necessidade natural a que precisa se submeter (embora
ninguém chegue a amar a morte por causa disso). Já na velhice, a visãodos dias da mocidade está quase esquecida, e a vitalidade física chega
a níveis tão baixos que a morte pode até ser bem-vinda, como um alívio.
Mas o adulto jovem considera a morte como monstruosidade malévolae ressente-se dela; desta forma, demonstra que seu senso de realidade
é mais agudo do que o dos mais velhos; porque, de fato, a morte é um
mal que de modo algum é natural, como veremos daqui a pouco.
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118 • IMORTALIDADE
A natureza da morte
Quando uma pessoa morre de enfermidade ou de velhice, damosa isto o nome de “morte natural”, reservando a expressão “morte nãonatural” para casos de acidente ou violência. Mas as Escriturasconfirmam os nossos sentimentos instintivos de que, num sentido mais
profundo, toda e qualquer morte não é fato natural. O que é morte? Éa dissolução da união existente entre o espírito e o corpo; “o pó volte àterra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (Ec 12.7). Existe
aqui uma referência à história da criação. Assim como no princípioDeus fez o homem, soprando vida em uma forma feita de pó (Gn 2.7),assim também agora, na morte, ele parcialmente desfaz o homem,separando as duas realidades que originalmente havia unido. Estadesintegração é, para ó homem, antinatural até o mais alto grau. Porisso as pessoas sensíveis se ressentem na presença de cadáveres.Algumas vezes se diz que os mortos parecem estar em paz, masdificilmente esta observação é correta. O que é verdade é que oscadáveres parecem vazios. É o evidente vazio neles que achamosenervante — a sensação de que a pessoa de quem eram este corpo eesta face simplesmente se foi.
A morte significa aniquilação pessoal? Na verdade, não. A morteé, segundo a frase de Paulo, o “despimento” de uma pessoa, ao sedesmontar a sua “tenda” ou “tabernáculo” terreno (2 Co 5.1ss.), masnão significa o fim da sua vida pessoal. Por toda parte, a Bíblia considera
como óbvia a sobrevivência pessoal. O Antigo Testamento retrata amorte como uma “descida” (metáfora natural) para o lugar que ela própria chama de Sheol (Septuaginta e Novo Testamento grego: Hades). Algumas versões traduzem Sheol e Hades como “inferno”, masesta tradução é errônea, visto que nenhum desses termos dá a entenderqualquer coisa quanto à felicidade ou qualquer outro sentimento doshabitantes desse lugar.
Todavia, Sheol não é a morada final dos mortos. As Escrituras predizem um esvaziamento do Hades, quando os mortos foremressuscitados fisicamente para o juízo, por ocasião da volta de Cristo(Jo 5.28s.; Ap 20.12s.; cf. Dh 12.2s.). Aqueles cujos nomes estão escritosno livro da vida (Ap 20.12) serão então recebidos na bem-aventurançaeterna (“vida eterna”, Mt 25.46; “glória, honra e paz”, Rm 2.10; “umreino”, Mt 25.34; “nova Jerusalém”, Ap 21.2-22.5). Mas os restantes
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A MORTE • 119
então suportarão a manifestação extrema do desprazer divino (“fogo
inextinguível”, Mt 3.12; Mc 9.43; “Geena” — o lugar de incineraçãofora dos limites de Jerusalém —“onde não lhes morre o verme”, Mc
9.48; “trevas exteriores”, lugar de “choro e ranger de dentes”, Mt25.30); “castigo eterno”, Mt 25.46; “o fogo eterno preparado paraSatanás e seus anjos”, v. 41; “ira e indignação... tribulação e angústia”,Rm 2.8-9; “penalidade de eterna destruição, banidos da face do
Senhor”, 2 Ts 1.9; “lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda
morte”, Ap 21.8; cf. 20.15).
Algumas pessoas afirmam que estes textos subentendem aaniquilação dos que forem rejeitados —um momento de incineração
no fogo e, depois, o esquecimento. Contudo, parece claro que, na
realidade, a “segunda morte” não é a cessação do ser —tanto quantoa primeira. Porquanto, (1) a palavra traduzida como “destruição”, em
2Tessalonicenses 1.9 ( olethros), significa não aniquilação, mas ruína {cf. seu uso em 1 Ts 5.3); (2) a insistência, nesses textos, no fato de que o
fogo, o castigo e a destruição são eternos ( aiõnios, literalmente, “através
dos tempos”) e que o verme da Geena não morre, seria sem sentido e
imprópria, se tudo o que se pretende descrever é uma extinçãomomentânea, da mesma forma como seria sem sentido e impróprio
falar de uma dor “infindável” resultante de um ferimento mortal
causado por uma bala. Essas palavras indicam como o tormento éinfindável, a não ser que sejam supérfluas e enganosas; (3) quanto ao
argumento de que aiõnios significa somente “relativo à era futura”, sem
qualquer implicação de perpetuidade ou duração eterna, parecesuficiente dizer que, se em Mateus 25.46 vida “eterna” significa
bem-aventurança sem fim (e, certamente, significa isto), então o castigo“eterno” mencionado ali precisa também ser sem fim; (4) somos
informados de que no “lago de fogo” (o “fogo eterno preparado para
Satanás e seus anjos”, Mt 25.41), o diabo será atormentado “de dia e de
noite pelos séculos dos séculos” (Ap 20.10). O fato de que todo homem
enviado para juntar-se a ele suportará semelhante eternidade de
retribuição é claro diante da linguagem paralela de Apocalipse 14.10s.:"... esse (o adorador da besta) será atormentado com fogo e enxofre...
a fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos, e não tem
descanso algum, nem de dia nem de noite”.
Parece claro que esses textos não estão ensinando uma extinção,
mas a perspectiva muito mais terrível de uma consciência infindável do
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desprazer justo e santo de Deus. Embora o consideremos doloroso e
achemos mórbidas as imagens apocalípticas judaicas, naquilo queCristo e os apóstolos falam deste assunto (afinal de contas, esta é aépoca posterior ao holocausto), um inferno sem fim não pode serretirado do Novo Testamento, tanto quanto um céu sem fim. Por issoa morte física (a primeira morte) é perspectiva tão temível para oshomens sem Cristo; não por significar extinção, mas precisamente
porque não significa extinção, mas só a dor infindável da segunda morte.O homem ímpio só percebe vagamente esta verdade, através da
revelação genérica de Deus (Rm 1.32); portanto, não é de admirar queele tenha medo de morrer.
De qualquer modo, no Antigo Testamento, as referências à mortedenotam superficialmente apenas a dissolução física. No NovoTestamento, porém, o conceito de morte é aprofundado de formaradical. Ali, a morte é considerada primordialmente como um estadoespiritual, o estado da humanidade sem Cristo. Da mesma forma como
a morte física significa um estado em que o espírito é separado do corpo,assim também a morte espiritual significa um estado em que o homemé separado de Deus, excluído do seu favor e comunhão, “mortos emnossos delitos” (Ef. 2.1, 5; cf. Mt 8.22; Jo 5.24; Rm 8.6; Cl 2.13; 1 Tm5.6). Como na Bíblia “vida” denota repetidas vezes a alegria dacomunhão com Deus {cf. 1 Jo 5.12), assim também a alienação desta“vida de Deus” (Ef 4.18) é igualada à “morte”. É da morte espiritualque, antes e acima de tudo, precisamos ser libertos.
A morte e o pecado
Por toda a Bíblia, a morte, tanto física quanto espiritual, éconsiderada como um mal penal, como o julgamento de Deus contra o
pecado {cf. Ez 18.4). A morte, diz Paulo, é o “salário” pago aosempregados do pecado (Rm 6.23). Quando Deus disse a Adão “no dia
em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17), a referência básica e explícita foi à dissolução física, como 3.19 torna claro. (As palavras “no dia em que” expressa a certeza da seqüência e nãonecessariamente a sua proximidade', cf. o uso da mesma frase em 1 Rs2.37. Adão só morreu muito depois, Gn 5.5). Assim, quando Paulo diz,em 1 Coríntios 15.22, que “em Adão todos morrem”, o contexto mostraque ele tem em mente apenas a mortalidade física, que Cristo deve
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A MORTE • 121
abolir, ressuscitando os mortos.
Mas, em Romanos 5.12ss., quando ele fala que Cristo liberta os“muitos” que são seus, tendo saído da “morte” em que Adão os haviaenvolvido, a sua referência é mais ampla. Sim, pois a libertação que elemenciona não é meramente a ressurreição física (de fato, a ressurreiçãofísica não é de forma alguma mencionada nessa passagem). Pelocontrário, é a presente “justificação” (w. 16-19) que leva a umarestauração da “vida” (w. 17, 18, 21) — em outras palavras, a curadaquela relação com Deus que se havia corrompido, da qual a morte
física era prova e símbolo. Portanto, em Gênesis 2.17 devemosencontrar implícita também uma referência à morte espiritualretratada quando Deus expulsou o homem do Éden (lugar decomunhão), para impedi-lo de comer da árvore da vida.
O que teria acontecido ao homem no fim do seu período probatóriona terra, se ele não tivesse pecado? Teria ele morrido fisicamente?Provavelmente, não; de qualquer forma, não da maneira como morre
agora. Talvez Deus apenas o “tomasse”, como “tomou” Enoque e Elias(Gn 5.24; 2 Rs 2.1, 11). Alguns acham que seríamos fisicamentetransfigurados, como Cristo (Mc 9.2ss.). Mas isso é especulação acercade um assunto sobre o qual as Escrituras silenciam, e perguntas às quaisa Bíblia não responde devem ficar sem resposta.
O caráter definitivo da morte
De modo geral, o mundo se refere à morte física meramente comofim —o ato de fechar uma porta na vida terrena da pessoa; mas o NovoTestamento a considera também como início — a abertura de uma porta para o destino de uma pessoa, a nova vida em que ela começa acolher o que semeou ( cf. 2 Co 5.10, G16.7). No Antigo Testamento, éverdade, encontramos os santos recuando diante da perspectiva damorte, crendo que no Sheol, embora Deus não estivesse ausente (SI
139.8), eles não poderíam esperar ter uma comunhão tão íntima e docecom ele, como a que haviam gozado na terra {cf. SI 88.10-12; 115.17; Ec9.5,10; Is 38.18, etc.). O Novo Testamento parece sugerir que os santosdo Antigo Testamento de fato estavam aguardando, até que o próprioCristo entrasse no Sheol (a “descida ao inferno”, do Credo; cf. At2.27ss.), antes que a sua comunhão com Deus na Sião celestial setomasse completa e perfeita como é agora {cf. Hb 11.40 com 12.18-23).
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122 • IMORTALIDADE
Seja como for, torna-se claro no Novo Testamento que nestes
“últimos dias” as rodas da recompensa divina estão girando domomento da morte em diante e que, de repente, todo homem se
descobre experimentando de forma intensificada essa relação com
Deus e (se durante a sua vida ele ouviu o evangelho) com Jesus, que
ele escolheu ter, durante a sua vida neste mundo —ou para estar com
Cristo e Deus, o que agora se define como Paraíso e alegria (Lc 23.43;
Fp 1.23; 2 Co 5.6-8; cf At 7.55-59), ou então para permanecer sem nenhum dos dois, nas trevas espirituais de uma existência egoística e
egocêntrica (cf. Jo 3.19) — condição que agora, quando se começa a perceber o que se perdeu, descobre-se ser de agonia (Lc 16.23ss.). Para
os que estão com Cristo, Deus, pela graça, faz com que a nova vida seja
de alegria crescente sem qualquer dor ulterior (Ap 7.15ss.); para os que
estão sem Cristo, Deus, pela justiça retribuidora, faz com que a nova
vida seja de dor crescente, sem qualquer alegria ulterior (Lc 16.25).Portanto, já está se verificando a predição de nosso Senhor: “A todo o
que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado”(Lc 19.26).Todavia, é tarde demais para mudar; depois da morte existe “um
grande abismo” colocado entre os que Deus aceita e os que ele rejeita(Lc 16.26). O tempo de escolha passou. Tudo o que resta agora é
receber as conseqüências da escolha já feita; até certo ponto, no “estado
intermediário”; mais plenamente, depois da ressurreição e do julgamento final (cf. Hb 9.27). Não há nada de arbitrário em relação à
doutrina do castigo eterno: em essência, é o caso de Deus estarrespeitando a nossa escolha, permitindo que tenhamos, por toda a
eternidade, as condições espirituais que escolhemos ter enquanto naterra.
Para muitos, isto acontecerá como ensinamento doloroso,
indesejável; porém, seremos sábios se não o ignorarmos, pois grande
parte dele vem diretamente do próprio Senhor. Uma reação melhor
será nos determinarmos a viver como viveram os santos que existiram
antes de nós, sub specie aetemitatis —à luz da eternidade. Bem orou osalmista: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos
coração sábio” (SI 90.12). Murray M'Cheyne pintou um sol no ocaso no
mostrador do seu relógio, para lembrar a si mesmo como o tempo é
curto. Com verdade tem sido dito que temos toda a eternidade para nos
regozijarmos com as vitórias obtidas para Cristo, mas apenas algumas
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A MORTE • 123
horas fugidias aqui em baixo, nas quais podemos conquistá-las. Todos
nós precisamos de uma consciência apurada da brevidade do nossotempo e do significado eterno da hora presente.
Outras opiniões
“Acabei de ler o seu artigo sobre a morte e achei-o revoltante”.Assim começava uma carta escrita por um querido evangelista irlandês,
que agora está na glória, quando os parágrafos acima apareceram emforma impressa pela primeira vez. Outras pessoas podem sentir amesma coisa, e eu não posso fazer nada a esse respeito, mas vejamos seum pouco mais de exposição pode ajudar.
Quais alternativas existem para a opinião acerca do caráter final damorte que acabo de expor? Apenas três: imortalidade condicional,evangelização post-mortem e universalismo. Observemo-las.
A imortalidade condicional (doutrina da aniquilação dos rejeitados
por ocasião do dia do juízo) foi colocada de lado acima, por razões bíblicas. O meu amigo evangelista me fez lembrar de que vários edistintos evangélicos britânicos, que passaram pela Universidade deCambridge entre as duas grandes guerras, defenderam o condi-cionalismo. Isto é verdade, mas não acho que lhe dê o direito de afirmar,como fez: “Você apenas citou das Escrituras o que concorda com a suateoria, e ignorou o resto”. “O resto” não é texto, mas interpretação. É
bom que seja dito claramente: não existe nenhuma passagem bíblica a partir da qual o condicionalismo possa ser interpretado de modoconfiável. Há passagens em que ele pode ser interpretado e passagens,como as que vimos, em que dificilmente ele pode ser interpretado, onde
precisa haver uma defesa especial para que o condicionalismo não caia por terra. Como pessoa que não está interessada naquilo que se possainterpretar na Escritura, mas tão somente no seu significado natural, tenho a dizer que a defesa especial que tenho encontrado não consegue
convencer.De fato, a corrente principal do condicionalismo não é exegética,
mas teológica. Partindo do pressuposto de que a honra e a glória deDeus não requerem a continuação da existência dos perdidos namiséria, depois do juízo, a opinião é de que se Deus deixar deaniquilá-los naquela ocasião, será desnecessariamente cruel. Esteargumento, porém, derrota a si próprio: segundo esse pressuposto, é
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124 • IMORTALIDADE
desnecessariamente cruel o fato de Deus conservar os perdidos
existindo na miséria do estado intermediário (acerca do qual veja Lc16.23ss.), até o dia do juízo; ele deveria aniquilá-los por ocasião da
morte — coisa que a Escritura mostra claramente que ele não faz. Defato, porém, um julgamento justo (isto é, merecido) não é crueldade, e
a posição bíblica é de que o que Deus destinou aos ímpios é um julgamento justo (c/. Lc 12.47s.; Rm 2.5-16), incrementando o seu
louvor (c/. Ap 16.5-7; 19.1-3).A evangelização post-mortem, incluindo a todos os que nunca
haviam ouvido o evangelho pregado “inteligentemente”, foi
mencionada por meu amigo evangelista. Contudo, não existe nenhuma
passagem bíblica clara a este respeito. Os versículos misteriosos de 1Pedro 3.19s. não podem ser usados para defender esta posição, pois (1)
os “espíritos em prisão” muito provavelmente podem ser anjos
decaídos tanto quanto homens decaídos (cf Gn 6.1-4; Jd 6); (2) a
declaração de que Cristo pregou a espíritos que desobedeceram nos
dias de Noé dá a entender mais naturalmente que a pregação foi paraaqueles e não para outros; (3) “pregou” (grego: Icêryssõ), não sendo
especificada qual a mensagem, não subentende mais naturalmente umaoferta de vida do que uma mera proclamação do triunfo de Jesus.
Assim, estes versículos não provam uma evangelização post-mortem
universal, bem como qualquer outra passagem. Além disso, textos
claros falam contra esta idéia, notavelmente os que consideram estavida decisiva para o futuro de uma pessoa (2 Co 5.10; G16.7, etc.).
De qualquer forma, os que não ouviram o evangelho apresentado“inteligentemente” assim mesmo tinham da parte de Deus luz em suasconsciências, à qual ouviram ou desprezaram, decidindo-se a buscar ou
não o Deus do qual tinham indícios. Podemos dizer com segurança: (1)
se qualquer bom pagão chegou ao ponto de se lançar sobre a
misericórdia de seu Criador, pedindo perdão, foi a graça que o levou
até ali; (2) certamente Deus salvará qualquer pessoa que ele levar até
esse ponto ( cf. At 10.34s.; Rm 10.12s.); (3) qualquer pessoa assim salvaficará sabendo, no mundo vindouro, que foi salva através de Cristo. Maso que não podemos dizer com segurança é que Deus sempre salva
pessoas dessa forma. Simplesmente não o sabemos. Tudo de que
estamos certos é que “a ira de Deus é revelada do céu contra toda a
impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça”e que Paulo não hesita em refletir a generalização do salmista: “Não há
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A MORTE • 125
justo, nem sequer um ” (Rm 1.18; 3.10; cf. 9-18); nem Deus deve algumaapresentação do evangelho, muito menos “inteligente”, a qualquerhomem.
O universalismo, a terceira das alternativas, é geralmente declaradacomo forma otimista do ensino de uma “segunda chance”: todosaqueles que Deus fez, e que não se voltaram para ele nesta vida, eleencontrará em Cristo depois da morte e levará a amá-lo, mesmo quetenha de enviá-los a uma geena de fogo no purgatório, durante algumtempo, para fazê-los voltar a seus sentidos. Todavia, é bem claro que
esta não foi a opinião de Cristo (veja Mt 12.32; 26.24) nem é osignificado necessário ou natural de qualquer texto bíblico consideradoem seu contexto.
Um dos grandes detetives de ficção estabeleceu a doutrina de quequando você elimina todas as impossibilidades, o que resta, embora sejaimprovável, deve ser verdade. À semelhança disso, o teólogo sabe quequando você elimina todas as opções não-bíblicas, o que resta, emboraseja uma verdade desagradável, necessariamente será a verdade deDeus. Não estou dizendo que a posição que estabelecí com respeito à
perdição eterna seja agradável ou confortável para com ela se conviver;insisto apenas em que ela é, na verdade, ensinada por Cristo e pelo
Novo Testamento, devendo ser considerada sob essa luz.
A vitória sobre a morte
Se você não consegue compreender a morte, não pode com preender a vida; e qualquer filosofia que não nos ensine como enfrentara morte não vale nada para nós. A esta altura, os filósofos se retiramderrotados —e o evangelho apresenta-se por si próprio. Sim, pois, decerto ponto de vista, a vitória sobre a morte é o seu tema central — otema que John Owen resumiu como a morte da morte na morte de Cristo.
A ressurreição de Cristo não foi meramente uma ressurreição
temporária, como as ressurreições de Lázaro, da filha de Jairo e do filhoda viúva de Nairn. “Havendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, jánão morre; a morte já não tem domínio sobre ele... vive para Deus”(Rm 6.9s.). “Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dosséculos, e tenho as chaves da morte e do inferno” (Ap 1.18). Aressurreição dele proclamou e garantiu perdão e justificação atuais parao seu povo (Rm 4.25; 1 Co 15.17) e também a sua presente co-
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126 • IMORTALIDADE
ressurreição com ele, em novidade de vida espiritual (Rm 6.4-11; Ef
2.1-10; Cl 2.12s.; 3.1-11). Esta co-ressurreição espiritual será alcançada
quando Cristo voltar, mediante uma transformação física do nosso ser,
se estivermos vivos (Fp 3.21), ou mediante um revestimento do nossoser, se estivermos mortos (cf 2 Co 5.4s.; 1 Co 15.50-54), e isto significará
a destruição final da morte, como intrusa hostil e destruidora neste
mundo de Deus (1 Co 15.26,54s.). Nesse ínterim, para o cristão, foi abolido o medo da morte física,
que se originou da idéia de que a morte era a porta para sofrimento e
julgamento (Hb 2.15): o “aguilhão” da morte foi tirado (1 Co 15.55s.),através do conhecimento de que o pecado de uma pessoa é perdoadoe que “nem morte, nem vida... nem cousas do futuro... nem qualquer
outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em CristoJesus nosso Senhor” (Rm 8.38s.). A morte física agora é “sono” (isto é,
descanso e refrigério, Ap 14.13 — e não inconsciência) “em
Jesus” (1 Co 15.18,51; 1 Ts 4.13ss.; At 7.60), um “sono” ocasionado pelavinda de Cristo, para receber para si aqueles para quem estivera
preparando lugar (Jo 14.2s.). Eles partem para “estar com Cristo”, oque é “incomparavelmente melhor” (Fp 1.23).
O cristão pode pensar corretamente no dia da sua morte como uma
data no diário de Jesus: quando chegar a hora marcada, o Salvador
estará lá para guiar seu servo para a luz da sua própria presença ecomunhão mais íntima. A morte, portanto, por penosa e dolorosa que
seja em termos físicos, torna-se uma viagem para a alegria. Uma peça
exibida em Londres, há alguns anos, tinha este título surpreendente: Feliz Dia da Morte, e para o crente de fato será assim. A comunhão com
Cristo, e com Deus através de Cristo, uma vez iniciada aqui na terra,
jamais tem fim: através da morte, através do “estado intermediário”,
entre a morte e a ressurreição, e pela eternidade que se seguir, Cristo
estará com o seu povo; e isto é vida eterna. Desta forma, ele cumpre a
sua promessa, proclamada a Marta, quando esta se lamentava por causade Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda
que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim, não morreráeternamente” (Jo 11.25s.).
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A MORTE • 127
Esteja preparado
Há três séculos circulou uma história a respeito da visita de umestudante a Thomas Goodwin, presidente da Faculdade Magdalen, deorientação puritana, em Oxford, na Inglaterra. No escritório em
penumbra, Goodwin iniciou a conversa, perguntando se seu visitanteestava preparado para morrer. O rapaz fugiu. À época, esta história eracontada como anedota, como seria também hoje; porém, deve-se dizerque, se ela é verídica, Goodwin estava fazendo uma pergunta pastoral
apropriada com a qual não se devia brincar, seja qual for a idéia quetenhamos a respeito da sua técnica; pois, não importa se você é jovemou velho, um dos segredos da paz interior e da vida em plenitude é estar
preparado realisticamente para a morte — com as malas prontas, podemos dizer, e pronto para partir. Não é absurdo lembrarmos unsaos outros este fato.
Os cristãos de outrora o conheciam bem. Eles consideravam todaa vida como uma preparação para a morte e a eternidade, e daíconsideravam (não a si mesmos, mas) cada momento com todaseriedade. As instruções medievais e puritanas com respeito à arte demorrer vêm a ser uma abordagem à arte de viver; as palavras de Ken,“viva cada dia como o seu último dia”, servem sempre como linhamestra. Vivendo desta forma, os cristãos de outrora, sem dúvida,usufruíram mais da vida do que a maioria dos cristãos atuais. Hoje,como temos visto, a mente sadia é definida em termos não dos
pensamentos acerca da morte, mas de não pensarmos nela, e até mesmoos cristãos que insistem na segunda vinda de Cristo parecem não estar percebendo que a preparação para esse evento e para a morte são doislados da mesma moeda, duas facetas do mesmo tema —a saber, o fimdeste mundo para você e para mim, porque Cristo veio até nós. Tudoisto é retrógrado, e uma volta à sabedoria mais antiga seria de grandevantagem para nós.
Como os cristãos podem viver com as malas prontas e prontos para
partir? Não há mistério a este respeito; o bom senso deve nos indicarcomo fazê-lo. Esteja inteiramente dedicado ao serviço de Cristo, todosos dias. Não toque no pecado com vara curta. Acerte as contas comDeus. Pense em cada hora como uma dádiva de Deus para você, paratirar dela o melhor proveito. Planeje a sua vida, levando em contasetenta anos (SI 90.10), entendendo que se o seu tempo for menor do
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128 • IMORTALIDADE
que esse prazo, isso não será uma privação injusta, mas uma promoção
mais rápida. Nunca permita que as coisas boas, ou as que não são tão boas, excluam as melhores, e alegremente abra mão do que não é o
melhor, em favor do que é. Viva no tempo presente; goze com alegria
dos seus prazeres e abra caminho através das suas dores, contando com
a companhia de Deus, sabendo que tanto os prazeres quanto as doressão passos na viagem para casa. Abra toda a sua vida para o Senhor
Jesus e gaste tempo conscientemente na companhia dele, expondo-see correspondendo ao seu amor. Diga a si mesmo, com freqüência, que
a cada dia você está mais perto. Lembre, como disse George Whitefield,que o homem é imortal enquanto o seu trabalho não for realizado
(embora seja apenas Deus quem defina que trabalho é esse), e continuea realizar aquilo que você sabe ser a tarefa que Deus lhe determinou
para aqui e agora.
Paulo disse: “... o tempo da minha partida é chegado. Combati o
bom combate, completei a carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele
dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a suavinda” (2 Tm 4.6-8). Pedro recomendou: "... por isso mesmo, vós,reunindo toda vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com avirtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio; com
o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade; com
a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor... procurai, com
diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição;
porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum. Pois,desta maneira é que vos será amplamente suprida a entrada no reino
eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 1.5-7,10s.).
Este é o caminho.
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5 A lan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Como é o inferno? O que significaria ser banido da presença de
Deus? Seria um lugar de escuridão e fogo? Seria como o abismoflamejante retratado de forma tão vivida por Jonathan Edwards no
sermão de enxofre e fogo do inferno, “Pecadores nas Mãos de um Deus
Irado”? De fato, essa tem sido a imagem tradicional do inferno. A
história da igreja está cheia de descrições ardentes de cenas horrendasque sempre incluem fogo. Até os solenes credos da igreja, mesmo
deixando os detalhes para a imaginação, não retratavam o inferno de
modo mais animador.
Neste artigo, Vernon Grounds dá uma feição um pouco maishumana ao inferno. Isso não significa que ele minimize a seriedade ou
o horror do castigo eterno. Quem ousaria fazer isso, quando Jesus
alertou que “é melhor entrar na vida eterna com uma só mão, do que
ter as duas e ir para o inferno” (Mc 9.43, BLH)? Entretanto, por setratar de um lugar tão intolerável, o conceito de inferno que sedesenvolveu através dos séculos chega quase à irracionalidade.
Grounds traz à discussão os pensamentos de C. S. Lewis, Robert
Anderson e Friedrich von Hügel. Cada um menciona, à sua própria
maneira, a possibilidade de o inferno não ser bem como tem sidoretratado tradicionalmente. Sugerem que, para os condenados, o
tormento talvez não seja assim tão insuportável. Pode ser que o castigo
pareça tão grande do ponto de vista do céu, por causa daquilo que se
ganha ali, ou como Grounds afirma: “o inferno é um inferno, não do
nosso ponto de vista, mas do ponto de vista celestial”.
Também se propõe que já não consideremos plenamente humanas
as pessoas que encontram seu lugar no inferno. Não seria melhor,
pergunta-se, encarar os espíritos humanos julgados e não-redimidos
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130 • IMORTALIDADE
como se fossem as ruínas da humanidade? Faz-se uma comparação com
uma tora queimada e reduzida a cinzas. Apesar de seus elementosterem sido preservados em forma de gás, calor e cinza, já não é uma
tora. De modo semelhante, o espírito humano perdido é algo diferente
e inferior em relação àquilo que a humanidade devia ser em sua origem.Esse processo de desumanização começa nesta vida e termina numa
morada que não foi projetada para o homem (Mt 25.41). O leitor
encontrará muita coisa para pensar neste artigo que convida à reflexão.
Publicado primeiramente como artigo da Journal o f Evangelical Theological Society, vol. 24, nfi 3, de setembro de 1981, nos Estados Unidos, e reproduzido aqui
integralmente com tradução de Adiei Almeida de Oliveira.
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5 Vernon C. Grounds
O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS
Pode ser que não compartilhemos com Robert Browning de seu
robusto otimismo acerca da vida humana:
O mundo está tão ch eio de tantas coisas,que e stou certo d e que todos podem os ser tão felizes com o reis.
A maioria de nós, porém, em grande parte do tempo, sente-se
moderadamente alegre e feliz. Como cristãos, cremos com Browning
que “Deus está nos céus” e, portanto, embora o pecado faça que nos
seja impossível acrescentar a frase “tudo está bem com o mundo”,
estamos convencidos de que, em última análise, tudo necessariamente
acabará bem para a criação de Deus. O nosso pessimismo relativo emrelação à ordem temporal é afogado por um otimismo final em relação
ao telos eterno, na direção em que está se movendo a história, sob adireção divina. Raramente, suponho eu, encontramo-nos meditando na
terrível doutrina do castigo eterno. Só em ocasiões das mais raras e,
mesmo assim, de passagem, a nossa disposição mental é a do
“Pensador”, a famosa estátua de Rodin, sentado em muda admiração,
vendo as almas entrarem no inferno. O que William Gladstone
escreveu a respeito do castigo eterno, no fim do século XIX, é
igualmente verdadeiro nos dias de hoje: “Parece que atualmente essa
idéia foi relegada aos cantos mais remotos da mente cristã, para aliadormecer em trevas profundas”.1 Exceto pelos estudos em sala de aula
ou na pregação evangelística, “o estado final dos ímpios” é um assunto
que reprimimos na privacidade de nossas mentes, e em nosso convívio
social preferimos envolvê-lo em um véu de silêncio.
No entanto, o jurista inglês Fitzjames Stephen fez esta observação
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132 • IMORTALIDADE
contundente:
Embora o cristianismo expresse os sentimentos ternos e amorososcom ardor apaixonado, ele também tem um lado terrível. O amorcristão subsiste apenas durante certo tempo, e condicionalmente; elecessa pouco antes das portas do inferno, e este constitui parte essencial de todo o esquema cristão.2
Isto é verdade? Se for, o que pode ser dito, biblicamente, a este
respeito?Ao nos aventurarmos nesta região de pressentimentos e escuridãoda teologia, consultemos alguns relatórios fornecidos pelas hostes deexaminadores que nos precederam. As observações deles são confusase contraditórias; contudo, podemos tirar delas cinco conclusões.
A primeira é de um agnosticismo cru. É impossível obter a certezade que existe uma realidade chamada inferno, pois não se podedeterminar o que acontece depois da morte. Algumas dessas pessoas
—podemos chamá-las de agnósticos escatológicos? —afirmam que osseres humanos não passam de organismos biológicos que expiram e sedesintegram como qualquer outro aglomerado acidental de átomos,segundo frase memorável de Bertrand Russell. O segundo grupoagnóstico, confiante de que o homem, em certo sentido, sobrevive àmorte, porém descartando-se in toto da afirmação de que a Bíblia é umBaedeker do terreno existente além-túmulo, submete um relatório quecorresponde a um encolher de ombros. Nenhum dado confiável podeser obtido. É inevitável que se façam suposições. Daí, o melhorresultado disponível é um “talvez” francamente especulativo. Oterceiro grupo, embora esteja certo de existir um mundo do porvir, edesejoso de aceitar a Bíblia como revelação, afirma que a maneira comoela delineia esse mundo futuro é vaga e imprecisa demais para permitirque se trace qualquer topografia detalhada. Este grupo afirma aindaque Deus, em sua sabedoria, limitou deliberadamente os homens a um
estado de ignorância reverente. Basta-nos saber que estamosdestinados a uma vida depois da morte. Com confiança infantilaceitamos nossa ignorância acerca de como será a vida depois desta.Somos parecidos com as crianças imigrantes que sabem apenas que onosso Pai sábio e amoroso nos espera em uma terra estranha e nova e, portanto, não precisamos nos preocupar com o fato de que nossas pequenas mentes não conseguem imaginar —mesmo com a ajuda dos
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 133
esboços que ele nos enviou —o que experimentaremos, uma vez que
estejamos ali. O agnosticismo reverente concorda com as evidências deuma fé profunda que se recusa a empenhar-se numa especulação
inquiridora. Permitamos que Joseph Butler, autor do outrora celebrado Analogy of Religion (“Analogia da Religião”), resuma este relatório:
“Não devemos nos confessar na presença de enunciados obscuros,destinados a ministrar esperança tanto quanto advertência, mas
fragmentários demais e incompletos para formarem sistemas?”3
A segunda conclusão extraída pelos examinadores do destino
humano é a do aniquilacionismo. Grande número de eminentesfilósofos e cientistas esposa esta opinião negativa. Muitas vezes comdogmatismo emocional, eles afirmam que a pesquisa intensiva e a
reflexão árdua não apresentam nenhuma evidência convincente deoutro mundo, seja ele qual for. De fato, eles proclamam todos os
relatórios acerca desse suposto mundo como enganosos ou fictícios. Em
seu juízo sóbrio, ele é uma “terra do nunca”. E a Erehwon de SamuelButler, e o nome dessa utopia imaginária é, sem dúvida, nowhere (lugar
nenhum) escrito ao contrário. Desta forma, o não-cristão, o incorrigívelateu, o “playboy” sacrílego, o tirano sádico, o fideísta desprovido de
temores —nenhum deles realmente precisa permitir-se uma pontada
de medo para nublar sua consciência. Bertrand Russell assegura a todos
nós que, por ocasião da morte, apodrecemos. Expressa com taldeselegância, embora de maneira tensa, esta é a sorte tanto dos ímpios
quanto dos justos.
Segundo Russell, é muito melhor um sono infindável do que uma peregrinação que leva a maioria dos nossos companheiros de viagem a
um inferno sem fim.
A terceira conclusão tirada pelos examinadores do destino humano
é a do universalismo. Certas passagens bíblicas deixam entrever, no
mínimo, que a eternidade não abrange nada correspondente ao inferno
da teologia tradicional. Lá no futuro post-mortem do homem, não há
nenhum abismo sulfuroso em que as almas perdidas suportarão para
sempre um sofrimento consciente. Nels Ferré, que no começo de sua
carreira pensava de modo diferente, é absolutamente positivo ao dizer
que os teólogos tradicionais interpretaram mal os dados bíblicos. Com
uma paixão restrita, ele rejeita a distorção trágica que eles fazem da
verdade a respeito do mundo do porvir.
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134 • IMORTALIDADE
O conceito cristão das últimas coisas... está diretamente baseado no
amor eterno e Gel do Senhor soberano. O inferno eterno está
naturalmente fora de cogitação, como justiça e amor inferiores. O
próprio conceito de um inferno eterno é monstruoso e constitui
insulto ao conceito das últimas coisas existente em outras religiões,
para não mencionar a doutrina cristã do amor soberano de Deus.
Essa doutrina faria de Deus um tirano, diante do qual qualquer Hitler
humano correspondería a um santo, e os campos de concentração
para torturar os homens seriam como parques de piquenique do rei.
O fato de tal doutrina ter sido concebida, para não mencionar o fato
de ser crida, mostra como muitas pessoas outrora estavam longe de qualquer compreensão do amor de Deus, e oh! ainda estão!
Nenhum insulto pior podería ser feito contra Deus e contra Cristo,
e nenhuma blasfêmia contra Deus podería ir a estágio mais profundo
do que esta. O nome de D eus tem sido acusado de maneira incrível,
mesmo por aqueles que acreditam sinceramente que O conhecem,
O amam e O servem. Não obstante, eles servem a um ídolo, e não ao
Deus da fé cristã. Um famoso evangelista da atualidade, segundo se
conta, pregou acerca da “melhor risada” de Deus, expressa à vista dos que são torturados eternamente! Que indescritível falta de sen
sibilidade, de compaixão, e que dolorosa distorção do nosso Deus
maravilhoso!... Não existem pecadores incorrigíveis; Deus não tem
filhos permanentemente problemáticos... O Bom Pastor insiste em
encontrar a centésima ovelha. A misericórdia de Deus, diz a Bíblia, é
eterna -, e o amor jamais falha.4
William Barclay é tão positivo quanto Ferré, ao rejeitar ainterpretação tradicional dos dados bíblicos como um engano triste e
grosseiro. Por entre a névoa da eternidade, ele percebe um céuresplandecente para todo membro da raça decaída de Adão, sem umaúnica exceção.
Creio que é impossível estabelecer limites para a graça de Deus.
Creio que não apenas neste mundo, mas em qualquer outro mundo
que possa existir, a graça de Deus ainda é eficiente, ainda opera, ainda atua. Não creio que sua operação esteja limitada a este mundo. Creio
que a graça de Deus é ampla como o universo.
Creio implicitamente no triunfo final e completo de Deus, opor
tunidade em que todas as coisas lhe serão sujeitas, e quando Deus
será tudo para todos (1 Co 15.24-28). Para mim, isto tem certas
conseqüências. Se um homem permanecer fora do amor de Deus no
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 135
fim dos tempos, isto significa que aquele único homem derrotou o
amor de D eus— e isto é impossível. Além disso, há apenas uma forma
pela qual podemos pensar no triunfo de Deus. Se ele não fosse nada mais do que um Rei ou Juiz, seria possível falar do seu triunfo, se seus
inimigos estivessem agonizando no inferno ou fossem completa e
totalmente obliterados e varridos. Mas Deus não é apenas Rei e Juiz
— ele é Pai — de fato, acima de qualquer outra coisa, Deus é Pai. Nenhum pai podería sentir-se feliz, se ainda houvesse membros da
sua família sofrendo uma agonia perene. Nenhum pai consideraria
como triunfo o fato de obliterar os membros desobedientes de sua
família. O único triunfo que um pai pode experimentar é ter toda a sua família de volta ao lar. A única vitória que o amor pode desfrutar
é o dia quando a sua oferta de amor for respondida pelo retorno do
amor. O único triunfo final possível é um universo amado e que ame
a Deus.5
O quarto grupo de examinadores apresenta um relatório menosanimado. Os membros deste partido percebem os contornos tanto de
bem-aventurança sem fim quanto de ruína perene no territóriotenebroso da vida do homem depois da morte. Por isso, eles optam por
uma doutrina chamada condicionálismo. Um resumo autorizado desuas descobertas é dado por David Dean (deve-se notar que Dean,
diplomado pelo Seminário Teológico de Westminster, esposa o ponto
de vista evangélico acerca da autoridade da Bíblia).
O oposto da imortalidade condicional é imortalidade natural — a
opinião de que todos os homens são, por natureza, imortais e existirão para sempre. A imortalidade condicional declara que algumas condições precisam ser preenchidas antes que o pecador possa
receber uma existência pessoal eterna. Essas condições são duas. Deus precisa outorgá-la, e o homem precisa recebê-la. A primeira
condição deve ser óbvia. Visto que só Deus possui a imortalidade, só
ele pode dá-la a alguém. Deus é a Fonte de toda a vida, incluindo a
vida física dos seres humanos. Ele soprou nas narinas de Adão, e o
primeiro homem tornou-se uma criatura vivente. Ele sopra na mortalidade do coração do pecador, e este se torna uma nova criatura em
Cristo, vivificada como crente. Desta forma, não precisamos nos
surpreender pelo fato de Deus ressuscitar os santos no último dia e
lhes conceder a plenitude da vida eterna. Desta forma, esses corpos
fracos, pecadores e enfermos serão ressuscitados em pureza, perfeição e poder. “Seremos como e le é ” (1 Jo 3.2).
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136 • IMORTALIDADE
O Deus que ressuscita os mortos é também o Deus que confere imortalidade como sua dádiva graciosa aos pecadores por quem Cristo morreu. Paulo mostra que a outorga da imortalidade (ele a chama de glorificação nesta passagem) é simplesmente o passo final na série de coisas que Deus faz para que tudo coopere para o bem do crente (Rm 8.28-30). A salvação é a dádiva de Deus ao homem e inclui a outorga da vida eterna e a concessão da imortalidade. Essas dádivas dependem da graça de Deus e são providas como resultado da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2.8).
Se Deus recusar-se a propiciar imortalidade a um pecador, não há maneira pela qual este a possa conseguir. Louvado seja Deus, e le a propicia a todos os que crêem.
Isto nos leva à segunda condição. Por ocasião da ressurreição, o dom da imortalidade depende somente da atividade de Deus. Mas ele não a concederá a todas as pessoas; só aos que durante esta vida se arrependeram e creram em Jesus Cristo! Do ponto de vista humano, a imortalidade é condicional, dependendo do arrependimento e da
fé. Ninguém a receberá, se não crer. E ninguém que verdadeiramente crê deixará de recebê-la.6
Todavia, qual é o destino final daqueles que, recusando-se a searrepender e crer, “deixam de receber a imortalidade”? É um castigoconsciente que durará enquanto Deus continuar a existir? Não, é aobliteração da consciência, a anulação da existência. Só os quemediante o arrependimento e a fé estão em Cristo têm vida e a terão
eternamente. Os que de forma deliberada rejeitaram Cristo estãoespiritualmente mortos e destinados à morte eterna. Ouçamos uma vezmais a apresentação deste ponto de vista, nas palavras de autoridade deDean:
Na Bíblia, a vida e a morte são apresentadas como opostos. A morte é a destruição, cessação ou perda da vida. Morte espiritual é a destruição ou perda do desejo e da capacidade do homem de ter comunhão com Deus. Esta condiçfio é evidente nos fatos de que Adão se escondeu de Deus depois de ter caído no pecado e de que os pecadores são chamados inimigos de Deus (Rm 5.10). Quanto às aparências externas, a pessoa espiritualmente morta pode parecer viva. Não obstante, a pessoa "que se entrega aos prazeres, mesmo viva, está morta” (1 Tm 5.6). A Bíblia apresenta isto como morte em delitos e pecados (Ef 2.1,5 ,6) .
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 137
A morte física— a destruição ou cessação das funções vitais do corpo
— é o segundo resultado do pecado.
A Bíblia tom a claro que o homem é uma unidade orgânica, um ser psicofísico que vive e funciona como pessoa completa. O homem não
é uma alma aprisionada em um corpo, nem um corpo que está vivo, tão somente! O homem é uma pessoa completa, e cada componente
seu é necessário, a fim de que ele viva. Certamente o corpo humano
é indispensável para a vida do homem. Mas a morte física abate o ser
humano e destrói o seu corpo, de forma que cessam suas funções
vitais. Os homens são mortais, e a morte física espera a todos.
Amorte eterna, chamada na Escritura de “segunda morte” (Ap 21.8), é a destruição completa e total dos pecadores no fogo do juízo dos
últimos dias. Nesta morte, os perdidos serão destruídos “corpo e
alma” no inferno, de forma que haverá uma perda irrecuperável da
existência e da vida pessoal. Os ímpios serão “como se nunca tivessem
sido” (Ob 16).As mortes espiritual, física e eterna são estágios através dos quais os
pecadores não-redimidos estão passando — irreversivelmente, sem
esperança de volta.7
Esta é a visão condicionalista em relação aos pecadores que não se
arrependem e nem crêem. O seu fim é o término da sua existência.
Desta forma, o seu destino, embora não seja consciente, é eterno; o seu
castigo eterno é irreversível e imutável.
O último grupo de examinadores da vida futura é formado de
cristãos que diferem amplamente entre si em algumas opiniões
doutrinárias, mas concordam em relatar que tanto o céu quanto oinferno encontram-se diante da humanidade como realidadesescatológicas inescapáveis e biblicamente desvendadas. Por exemplo,John Henry Newman, que abandonou o anglicanismo para tornar-se
católico-romano, expressa em sua Apologia Pro Vita Sua uma crença
que o protestantismo, não menos que a igreja de Roma, tem sustentado
tradicionalmente a respeito da certeza do inferno:
Este é o ponto de divergência inicial entre o cristianismo e o
panteísmo, é a doutrina crítica — você não pode evitá-lo — é a
própria característica do cristianismo. Portanto, precisamos encarar
os fatos de frente. É mais improvável que seja verdade um castigo
eterno ou que não haja um Deus? Pois se existe um Deus existe
castigo eterno (a posteriori).8
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138 • IMORTALIDADE
Pelo fato de a revelação bíblica do inferno estar no mesmo terrenológico e exegético da revelação do céu, conforme a opinião e o veredicto
da ortodoxia cristã, é impossível prever a bem-aventurança do céu semao mesmo tempo afirmar o terror do inferno, correlação esta apontada
por H. McNeile Dixon:
Os bondosos humanistas... decidiram aperfeiçoar o cristianismo. A
idéia do inferno feria suas susceptibilidades. Eles o fecharam, e para
surpresa deles a porta do céu também se fechou com um estrondo
melancólico.9
Portanto, de forma triste, porém inequívoca, a ortodoxia cristã nofim do século XX continua a advertir que, na vida futura, as almasimpenitentes e incrédulas serão consignadas ao inferno.
Nos últimos anos, a lógica desta posição tradicional foi expressa por
C. S. Lewis em sua convincente apologia O Problema do Sofrimento, e
ele é apenas um dos mais recentes de uma longa lista de expoentes que
concordam com a racionalidade intrínseca da existência do inferno. No entanto, a razão básica da recusa da ortodoxia em redesenhar
a sua topografia do mundo futuro é, em última análise, exegética e nãológica. A ortodoxia empenha-se, sem dúvida, em uma discussão
racional para defender sua visão da escatologia como compatível coma justiça, a sabedoria e o amor divinos. Com valentia, ela procura
demonstrar a nulidade das críticas levantadas contra a sua maneira de
entender o castigo eterno. Contudo, a despeito da maneira convincente
ou inferior como ela dispõe a lógica, a ortodoxia cristã sustentainflexivelmente a sua crença no inferno, pois diz ter a própria revelaçãode Deus acerca da vida futura do homem. Não apenas isso, ela diz
entender corretamente o significado da linguagem algumas vezes
enigmática que Deus resolveu usar para essa revelação. Consideremos
como ilustradora dessas declarações a série de “Ensaios Exegéticos
Acerca de Várias Palavras Relativas ao Castigo Eterno”, que Moses
Stuart, distinto erudito bíblico, preparou e publicou em 1830, quandoa controvérsia acerca do inferno estava agitando os protestantes no
mundo ocidental. Um século se passaria antes da publicação da
monumental obra de Kittel, Wõrterbuch, para não falar das monografiasespecializadas pesquisando termos e conceitos neotestamentários que
apareceram intermitentemente. A ciência filológica, ajudada pela
arqueologia, fez enormes progressos entre os anos trinta do século XIX
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 139
e anos setenta do século XX. Não obstante, a obra de Moses Stuart permaneceu virtualmente imune a qualquer ataque. As suas conclusões
acerca de aiõn, aiõnos, holan, Sheol, Hades e Tártaro, ainda não foram
invalidadas. Consideradas ao lado de outros dados relevantes sobre a
revelação, elas compelem os estudantes da Bíblia a crerem em umcastigo futuro, eterno, para os pecadores impenitentes e incrédulos.
Stuart, conseqüentemente, estabelece uma antítese assombrosa:
Ou as declarações das Escrituras não estabelecem os fatos de que
Deus e sua glória e o louvor e a felicidade são eternos e de que a felicidade dos justos em um mundo futuro é eterna, ou, então, elas
estabelecem igualmente o fato de que o castigo dos ímpios é eterno. Todo o conjunto fica de pé ou cai a uma. Devido à própria natureza
desta antítese, aqui não pode haver lugar para qualquer dúvida
racional, de maneira que assim possamos interpretar a declaração dos
escritores sagrados. Precisamos admitir a miséria infinita do inferno
ou desistir da felicidade infinita do céu.10
Stuart também desafia seus colegas de erudição a refutar seus
resultados e não simplesmente a se envolverem em contradição ou
negação. Ele assevera que
... nem contradição nem negação, neste caso, originam-se da filologia, mas de inclinação, desejos, filosofia ou preconceito. Se não for assim, por que a filologia não é preparada, em toda a sua força, para opor-se
à idéia de que há um lugar de castigo futuro? Quem fez isto? Como
isto deve ser feito? Todos os exemplos das Escrituras... são
produzidos nestes ensaios. Nada foi escondido. Confio que não há
nenhuma tentativa para perverter ou desperdiçar seu significado
óbvio. Estou certo de que não existe de minha parte esse objetivo.Que esse significado seja filológica ou criticamente colocado de lado
ou que se demonstre que eles foram interpretados de forma errônea
e, no que me concerne, prometo instituir de novo outro exame da
questão.11
Depois de um século e meio, o desafio de Stuart ainda não foi aceito
nem enfrentado vitoriosamente. A Escritura ensina “a miséria infinita
do inferno” tão irrefutavelmente quanto ensina “a felicidade infinita do
céu”.A revelação, da maneira como agora a estamos pressupondo, esta-
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140 • IMORTALIDADE
belece a realidade do inferno, desvendando-o como um lugar de castigo
eterno. Será que ela, com a mesma certeza, revela como é o inferno,contra cujo destino nosso Salvador e Senhor repetidamente advertiu?
Será que ela permite dogmatismo acerca dos detalhes de uma existência post-mortem que parece ser de sofrimento sem mitigação? Ou será queela, ao mesmo tempo em que requer dogmatismo com respeito à sua
realidade, limita-nos ao agnosticismo reverente de Joseph Butler
quanto a seu conteúdo?
Concordamos que desde os tempos apostólicos os cristãos têmdado livre curso às suas imaginações ao tratar deste dogma;
concordamos que um zelo bem intencionado tem se esgueirado,entrando no serviço da evangel ização uma hermenêut ica
grosseiramente literalista, e até nos casos de grandes teólogos, comoAgostinho, Aquino e Jonathan Edwards, têm sido feitas figuras
lúgubres que revoltam tanto os sentidos como a sensibilidade.
Concordamos que pregadores populares — como Charles Haddon
Spurgeon, por exemplo — têm sido culpados de pintar um retratoinconscientemente sádico das almas perdidas. Até que ponto,
precisamos perguntar, qualquer desses pronunciamentos escatológicos
foi baseado em um estudo sóbrio, cuidadoso e refletido? Até que ponto
um Jonathan Edwards, cuja percepção filosófica é aplaudida até por
não-cristãos, é justificado com esta espécie de exposição?
O mundo provavelmente se converterá em um grande lago ou em um
globo líquido de fogo, em que os ímpios serão mergulhados, queestará sempre em tempestade, onde serão lançados para todos oslados, não tendo descanso nem de dia nem de noite, pois grandesondas de fogo rolarão continuamente sobre suas cabeças, coisa deque eles estarão sempre bem cônscios, interior e exteriormente; suascabeças, seus olhos, suas línguas, suas mãos, seus pés, suas costas esuas entranhas estarão para sempre cheias de um fogo resplandecente, fundido, suficiente para fundir as próprias rochas e elemen
tos. Eles também estarão cheios da sensação mais viva e palpitante para sentir os tormentos, não por dez milhões de eras, porém paratodo o sempre, sem ter em vista qualquer fim.12
Será que um estudo sóbrio, cuidadoso e refletido, garante — ou
melhor, exige —uma perspectiva tão horrível? Será que isto nos força
a adotar uma atitude que Walter Moberley estigmatiza como “en-
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 141
durecimento inconcebível”? Será que ela fecha nossos ouvidos e
mentes e, o que é muito pior, os nossos corações para este comentáriode Langton Clarke?
Lembro-me de uma vez ter visitado as masmorras de um de nossoscastelos feudais e ter visto o escuro buraco no piso da masmorra, aúnica entrada ou saída daquele lugar, um daqueles terríveis “lugaresde esquecimento”. Lembro-me bem de que pensei: “Como as pessoasque ficavam lá em cima conseguiam ter o coração tão empedernido,a ponto de se sentirem alegres e felizes, enquanto tudo isto se passavadebaixo dos seus próprios pés? E então repentinamente relampejouem minha mente a idéia de que isto é dito acerca dos bem-aventurados no mundo vindouro! — que eles são supremamente felizes,enquanto estão acontecendo continuamente tormentos de-sesperadores e infindáveis diante de seus próprios olhos.13
Se um estudo sóbrio, cuidadoso e refletido garante — ou melhor,
exige — que concordemos com estas descrições, exposições e
asseverações tão corriqueiras, então nós, evangélicos, aparentemente precisamos nos tornar esquizofrênicos. Precisamos isolar as nossas
“psiques”, conservando os nossos processos mentais normais e as
nossas reações emocionais incapacitadas de contaminar nossas crençascom sanidade e compaixão. Portanto, o que garante e exige o
pensamento perscrutador cristão?Aqui, como em muitas outras áreas difíceis da crença ortodoxa,
C. S. Lewis demonstra ser uma grande, imensa ajuda; ele é sábio, lúcidoe, acima de tudo, tem a mente desanuviada. Defrontando-se com asferozes objeções feitas contra a própria noção do inferno, tiradas não
apenas da arte medieval, mas também de “certas passagens daEscritura”, ele argumenta que três símbolos dominam particularmente
os ensinos de nosso Senhor: castigo, destruição e “privação, exclusão
ou banimento”. Ele sugere que “a imagem prevalecente do fogo é
importante, porque combina as idéias de tormento e destruição”.
Então, em uma extensa passagem, desenvolve a realidade prognos
ticada através de formas literárias bíblicas:
O que pode ser então aquilo de que as três imagens são símbolo? Adestruição, podemos naturalmente presumir, significa a eliminaçãoou aniquilação dos destruídos. E as pessoas falam com freqüênciacomo se a “aniquilação” de uma alma fosse possível. Em nossa
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142 • IMORTALIDADE
experiência, porém, a destruição de uma coisa significa a emergência
de outra. Queime um pedaço de madeira e terá gases, calor e cinzas.
Ter sido um pedaço de madeira significa agora ser essas três coisas.Se a alma pode ser destruída, não haverá um estado de ter sido uma
alma humana? E não é esse, talvez, o estado que é igualmente bem
descrito como tormento, destruição e privação? Você estará
lembrado de que, na parábola os salvos vão para um lugar preparado
para eles, enquanto os perdidos vão para um lugar que não foi
absolutamente feito para homens. Entrar no céu é tornar-se mais
humano do que jamais alguém o foi na terra; entrar no inferno é ser
banido da humanidade. O que é lançado (ou se lança) no inferno não é um homem: são “refugos”. Ser um homem completo significa ter
as paixões obedientes à vontade e essa vontade oferecida a Deus: ter
sido um homem — ser um ex-homem ou um “fantasma perdido” —
iria presumivelmente significar consistir de uma vontade completa
mente voltada para o Eu e paixões não controladas pela vontade.
Torna-se, naturalmente, impossível imaginar com o que a consciência
de tal criatura — já então um agregado indefinido de pecados mutua
mente antagônicos em lugar de um pecador — poderia comparar-se. Pode haver grande parte de verdade no ditado: “o inferno é inferno,
não de seu próprio ponto de vista, mas do ponto de vista celestial”.
Não acredito que isto interprete mal a severidade das palavras de
Nosso Senhor. Somente aos condenados é que seu destino poderia
parecer menos do que insuportável. E deve ser admitido que, nestes
últimos capítulos, à medida que pensamos na eternidade, as
categorias de dor e prazer, que nos prenderam por tanto tempo,
começam a retroceder, enquanto bens e males mais vastos surgem no
horizonte. Nem a dor nem o prazer como tais têm a última palavra. Mesmo se fosse possível que a experiência (se pode ser chamada
assim) dos perdidos não contivesse dor mas muito prazer, ainda assim,
esse prazer negro seria de um tipo tal que faria qualquer alma, ainda
não condenada, voar para as suas orações num terror de pesadelo.14
Também de Robert Anderson provém ajuda para se quebrar a
concha das formas literárias bíblicas e, assim, extraírem-se delas os
ensinamentos pretendidos. Como inspetor da Scotland Yard na época
da Rainha Vitória, na Inglaterra, ele foi um talentoso e prolífico autor
de obras teológicas. A sua discussão de escatologia Human Destiny: After Death — What? foi louvada por Spurgeon como a discussão mais
satisfatória que ele já havia lido acerca do problema. Depois de
examinar as teorias do universalismo, condicionalismo e aniqui-
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 143
lacionismo e, tendo demonstrado a sua indefensabilidade segundo a
perspectiva bíblica, Anderson apresenta alguns conceitos errados queestão em voga a respeito do inferno. Em seguida ele passa a minar as
alegações contra o castigo eterno, mediante um apelo aos princípios derevelação. Suponha que, com um mínimo de trabalho editorial,
possamos citar com suas próprias palavras essa refutação:
1.0 destino dos perdidos é um grande mistério, mas é apenas umafase do mistério que coroa o mal. Tem de haver alguma necessidade
moral para que o mal, uma vez existente, deva continuar a existir...Mediante a redenção, Deus obteve o direito indisputado de restaurar
a raça decaída, levando-a de novo à bem-aventurança. Mas quem pode
dizer que é possível que impedimentos morais rejam o exercício desse
direito e desse poder?
2. Em uma esfera em que a razão nada nos pode dizer, somos
obrigados a nos limitar estritamente às palavras da Escritura, semexpandi-las nem fazer inferências delas. Contudo, em contraste comisto, as palavras inspiradas têm sido usadas de maneira a produzir uma
revolta mental que põe a fé em perigo.
3. Todo julgamento é deixado nas mãos de Jesus Cristo, precisamente “porque Ele é o Filho do Homem”. Daí, porque ele é
tanto Filho do Homem e o Deus Filho, a Sua justiça, bondade e amor
estão além de qualquer questão ou dúvida.
4. A Bíblia não foi escrita para satisfazer a curiosidade... Com
relação ao destino daqueles que o evangelho não consegue alcançar,
ela é absolutamente silenciosa. O destino dos pagãos está nas mãos de
Deus; e “não julgará retamente o Juiz de toda a terra?”
5. Os perdidos não serão enviados a seu destino, sem serem
ouvidos. Duas vezes na Escritura eles são representados dialogando
com seu Juiz. Cada um será julgado justamente. O registro de cada vida
será desnudado. Os livros serão abertos, e os mortos, julgados, cada
homem de acordo com suas obras. Cada pecador da incontável
multidão que deve ser chamada a juízo na grande assembléia ouvirá a
sua acusação e será ouvido em sua defesa.
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144 • IMORTALIDADE
6. Em vez de igualdade absoluta, a Escritura indica uma
desigualdade infinita na punição. Haverá “poucos açoites” e “muitosaçoites”.
7. O “fogo eterno” não deve ser o reino do diabo, mas será sua prisão, não seu palácio... As figuras de linguagem que descrevem osgritos e as maldições emitidas pelos perdidos na terra, enquanto osdemônios zombam da sua angústia ou colocam mais combustível nofogo da sua tortura, são aliviadas da acusação de loucura somente pela
acusação mais grave de profanação ou blasfêmia. Não há nenhum lugarem todos os domínios humanos em que o reinado da ordem seja tãosupremo como na prisão. Assim também acontecerá no inferno.
8. Obediência será a condição normal no inferno. É inútilespecular como ela será conseguida. Pode ser que o reconhecimentoda perfeita justiça e bondade de Deus leve os perdidos a aceitarem o
seu destino.
9. Não há ociosos em uma cadeia bem disciplinada; na grande penitenciária de Deus, deve a ociosidade reinar suprema?... Devemossupor que todas as energias dos perdidos deverão ser consumidas emtarefas de castigo sem objetivo?... Não podemos supor que na infinitasabedoria de Deus há propósitos para cuja realização até eles serãofeitos ministros?... Por que presumir que os perdidos irão se refestelar
em alguma masmorra gigantesca, sem nenhuma ocupação a não serlamentar para sempre o seu destino?
10. A Escritura não deixa dúvidas de que no mundo vindouro ocastigo do pecado será real e perscrutador. Sabemos que ele acarretará
banimento da presença de Deus e, além disso, que um amor infinito euma justiça perfeita medirão o cálice que cada um precisará beber.
Todavia, além disso não sabemos absolutamente nada.15Confessamos que estes princípios de revelação, com sua inegável
mistura de extrapolação lógica, não conseguem remover todas asdificuldades, mas de qualquer forma eles fazem do inferno umadoutrina que não ofende o coração nem crucifica a mente.
Mais ajuda para dissipar o nevoeiro retórico desta área da teologia
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 145
também é propiciada por Friedrich von Hügel. Ele faz distinção, por
um lado, entre “a essência da doutrina do inferno”, que considera umamentira “acima de tudo com respeito à eternidade daquele destino” e,
por outro lado, quanto “às várias imagens e interpretações dadas à suaessência”. Em contraste com os espíritos salvos, raciocina ele, os
espíritos perdidos “de acordo com o grau de deserção permanente e
voluntária da sua vocação sobrenatural”, persistirão em quatro padrões
de disposição e orientação de comportamento trágicos e destruidores.Primeiro, eles persistirão na “mera mutabilidade perturbação e
dispersão, características da sua vida terrena, que havia sido escolhida por eles mesmos”. Só no inferno sentirão muito mais intensamente “ainsatisfação dessa sua não-lembrança permanente, mais do que a
sentiram sobre a terra”.Segundo, os espíritos perdidos persistirão no “egocentrismo e
subjetividade variados e quase completos da vida terrena que eles
mesmos haviam escolhido”. Só no inferno sentirão muito mais
intensamente a fal ta de crescimento, a auto-mutilação, o
aprisionamento envolvido nesta sua infindável ocupação consigo
mesmos, e sua ciumenta fuga de toda a realidade e não simplesmente
de si mesmos”.Terceiro, eles persistirão “em suas reivindicações e invejoso
auto-isolamento, em sua dor avarenta e mesquinha, ao ver ou pensar
na inigualável grandeza e bondade das outras almas”. Só no inferno eles
experimentarão a consciência deste fato “de modo mais pleno e
intermitente”.Quarto, as almas perdidas persistirão nas dores sentidas na terra —
“as dores da falta de crescimento estéril, contração... os empedernidos
e tristes, ou os irados e negligentes, à deriva em sentimentos imorais ou
infiéis agridoces, em atos e hábitos que, desta forma tolerados,
propiciam uma cegueira espiritual sempre crescente, paralisia da
vontade e uma morte viva”. Só “as próprias dores do inferno consistirão
em grande parte na percepção, da parte da alma perdida, de como é
inatingível” a oportunidade de suportar os sofrimentos santificadoresque os espíritos salvos suportaram na terra. Essa própria sensação será
uma fonte intensificadora de “dores de parto que nada dão à luz”.16
Embora toda a extrapolação de von Hügel esteja diametralmente
afastada do literalismo canhestro e ofensivo de grande parte da teologia
tradicional, ele se encontra mais próximo, segundo se subentende, da
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146 • IMORTALIDADE
verdade bíblica e da realidade escatológica.Lewis e Anderson, juntamente com von Hügel, ajudam a fazer do
inferno um dogma crível, a despeito das dificuldades residuais quecompelem ao exercício de um reverente agnosticismo e de uma fé
pós-crítica.O que dizer, portanto, em conclusão? Os problemas que temos
estado a considerar são indescritivelmente importantes; de fato, são osmais momentosos que podem ocupar a mente humana. É impossívelexagerar a seriedade e a urgência que a doutrina do inferno transmite
à vida aqui e agora. Como expressar isto melhor, senão repetindo asmagistrais afirmações de James Orr?
As Escrituras desejam que compreendamos agora o fato daexperiência probatória, da responsabilidade aqui. Devemos conservar isto em mente e, concentrando todas as nossas exortações einsistências no presente, devemos recusar-nos a sancionaresperanças que as Escrituras não confirmam, lutando, pelo contrário,
por levar os homens a viverem debaixo desta impressão: “Comoescaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hb2.3). 7
NOTAS DO CAPÍTULO
1. Citado em The Ethics of Punishment, de W. Moberley (Londres: Faber and
Faber, 1968), p. 339.2. Citado em ibid., p. 365.
3. Citado em ibid.4. N. F. S. Ferré, The Christian Understanding of God (Nova Iorque: Harper,
1951), pp. 228-229.
5. W. Barclay,.<4 Spiritual Autobiography (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp.
60-61.
6. D. A. Dean, Resurrection: His and Ours (Charlotte: Advent Christian General Conference of America, 1977), pp. 114-115.
7. Ibid., p. 110.8. Citado em Hell and the Victorians, de G. Rowell (Oxford: Clarendon, 1974), p. 163.
9. Citado em The Biblical Doctrine of Judgment, de L. Morris (Londres: Tyndale, 1960), p. 69. Este livro apresenta-se reproduzido aqui (com exceção das notas de rodapé), no capítulo 1. A citação em português encontra-se na p. 60.
10. M. Stuart: Several Words Relating to Eternal Punishment (Filadélfia: Presbyterian Publishing Commitee, s. d.), p. 89.
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O ESTADO FINAL DOS ÍMPIOS • 147
11.Ibid., p. 202.12. F. W. Farrar, Eternal Hope (Londres: Macmillan, 1892), p. 57.
13. Citado em Ethics, de Moberley, pp. 333-334.14. C. S. Lewis, O Problema do Sofrimento (São Paulo, Editora Mundo Cristão, 1983), pp. 90-91.
15. R. Anderson, Human Destiny: After Death — What? (Londres: Pickering and
Inglis, 1913), pp. 113-179.16. F. von Hügel, “What Do We Mean By Heaven? And What D o We Mean By
Hell?”,£íí«yí and Addresses on the Philosophy o f Religion (Londres: J. M. Dent, 1924),pp. 216-221.
17. J. Orr, The Christian View of Go d and World (Nova Iorque: Scribner’s, 1897),
pp. 345-346.
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6 Alan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Jacques Ellul, o brilhante historiador de Direito, oferece nestecapítulo suas melhores reflexões sobre a nova Jerusalém. No clássicode Agostinho, A Cidade de Deus, usa-se a imagem de uma cidade comosímbolo do trabalho de Deus na redenção do homem ao longo das eras.Mas, na Bíblia, ela se apresenta como um lugar real de habitação, se
bem que inteiramente singular, pois é feita unicamente pelas mãos deDeus (Ap 3.12; 21.2). Ela surge sobre a terra no final dos tempos, plenamente formada e em glória resplandecente. Segundo Ellul, é umacidade como o Éden original, um paraíso feito para o homem, no meioda ordem natural.
Ellul enfoca os significados dos símbolos usados na descrição dacidade, tais como seus muros, por exemplo. A maioria das cidadesantigas possuía muros para proteção e defesa contra inimigos. A
Jerusalém celeste também é circundada por uma imensa muralha, masdificilmente teria como finalidade a defesa. Em vez disso, Ellul sugereque ela seria símbolo de ordem, harmonia, equilíbrio e precisão. Diz-seque o fundamento da cidade são os doze apóstolos. Isso, diz Ellul,refere-se à Palavra de Deus da qual eles eram portadores. As portas dacidade carregam os nomes das doze tribos. Isso representa a origemhistórica de nossa redenção, pois foi por meio de Israel que a salvaçãoveio ao mundo. As belas pedras de jaspe, safira, topázio etc., quecompõem os muros da cidade, também são alistadas na Bíblia. Ellul dizque cada uma pode ter um significado diferente. O sárdio (ou rubi?),
por exemplo, talvez se refira à realidade mais profunda e perfeita dohomem. O topázio pode simbolizar o amor de Deus. Sugere-se que aárvore da vida dentro da cidade é a mesma que havia sido plantada noÉden, representando, como no princípio, a certeza da cura e da vida
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150 • IMORTALIDADE
eterna. Resumindo, Ellul leva-nos num passeio sugestivo pela futura
cidade de Deus. Esse período de contemplação é um tempo bemempregado, pois esse lugar especial é um símbolo muito real da
perfeição do plano de Deus para a humanidade.
Publicado em sua origem como capítulo de The Meaning o f the City (tradução inglesa
do original francês Sans Feu ni Lieu), do mesmo autor, lançado por William B.
Eerdmans Publishing Company, nos Estados Unidos, em 1970. Traduzido integral
mente aqui por Adiei Almeida de Oliveira.
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6 Jacques Ellul
YAHWEH-SHAMMAH
O SENHOR ESTÁ ALI
De acordo com os historiadores, a Jerusalém celestial como “idéia”é uma mistura de várias tendências presentes durante os três séculos de
história judaica que precederam a destruição de Jerusalém pelo general
Tito. Esta noção é registrada tanto em livros canônicos como em
não-canônicos: Daniel, Zacarias, Esdras, Enoque, Jubileus, os Doze
Patriarcas e Baruque. Dentre estes, o livro cristão de Apocalipse é a
única fonte que difere um pouco das outras. O centro em que todasestas tendências se cristalizaram era obviamente a Jerusalém terrena.Vendo os ais e sofrimentos do povo escolhido, além da destruição da
Jerusalém terrena e sua impotência, os judeus daquele período difícil,completamente desanimador, interpretaram as profecias que
proclamavam uma Jerusalém abençoada e gloriosa como se elas sereferissem ao fim dos tempos. Tudo o que fora prometido como vindo
a acontecer nesta terra, devia realizar-se no céu, depois do fim da
história. Esta transformação de antigas profecias não foi feita
arbitrariamente, por causa de um desejo de justificar os profetas, mas
em resposta às próprias necessidades espirituais autênticas dos homens
daquela época. Era essencial que o povo de Deus não se entregasse ao
desespero, devido apenas às circunstâncias históricas adversas.
Ao mesmo tempo, dizem os historiadores, podemos ver entre essesescritores religiosos o que tem sido chamado de “regressão mística”.Em vez de conservar o pensamento forte, realista e concreto dos
profetas, eles se deixaram levar a aventuras semi-poéticas, em uma
apaixonada desordem, desconhecida entre os grandes profetas e
aparentemente não edificada sobre fundamentos muito sólidos. Sem
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152 • IMORTALIDADE
outras verdades espirituais a anunciar, ou praticamente sem nenhuma,
os escritores apocalípticos lançaram-se em um delírio poético um tantovago. Tudo se tornou universal, os símbolos tornaram-se excessivos,
enquanto a verdade tornou-se obscura, a história era considerada uma
máquina e a falta de inspiração foi substituída por conspiraçõesmisteriosas e cálculos livrescos, teóricos. Foi nesta atmosfera complexa
que ocorreu a transferência da Jerusalém terrena para a celestial, sendo
a Jerusalém celestial entendida como tipo acerca do qual era legítimointerpretar tudo o que fora escrito pelos profetas acerca da Jerusalém
terrena, até o grau absoluto. Não podemos fazer objeções contra este ponto de vista, a não ser
pelo fato de ser em sua totalidade hipótese pura e até imaginação pura.Porquanto, basicamente, tudo depende deste conceito psicológicomuito rudimentar: as coisas estão indo mal na terra e, por isso, passemos
a depender das coisas celestiais que ainda estão por vir. Uma psicologiaum tanto sem arte e, o que talvez seja mais importante, bastante
moderna. Quem pode dizer qual era a psicologia do povo hebreu nosegundo século a. C ? Como podemos julgar — nós, que estamos tão pouco familiarizados até com a psicologia moderna, a despeito de
Freud? Certamente, nada pode ser edifícado tendo como base os poucos livros mencionados acima. O que me impressiona particularmente nesta busca da evolução da idéia de uma Jerusalém celestial
é que o caráter específico desta evolução não é mencionado. Deve-senotar que esta tradição é independente de qualquer tradição de outros
países (note, por exemplo, o fracasso da hipótese que relaciona omovimento apocalíptico judaico com o masdeísmo). Além do mais,
simplesmente não há nenhuma evidência que necessariamente leve a
pensar que os escritores apocalípticos judeus centralizaram na Je
rusalém terrena sua visão do mundo futuro. De fato, podemos tes
temunhar aqui o nascimento de uma nova terra surgindo do mar, um
passo radical adiante, em termos de revelação —e o último passo, pois
a revelação acerca de Cristo e sua obra precisava apenas ser completada
antes da vinda do Messias. O que os historiadores não podem confirmar
é que a noção de uma Jerusalém celestial corresponde a uma realidade
objetiva. Nenhum dado textual ou arqueológico pode lhe dar qualquer
prova irrefutável disso — só o Espírito, que fez surgir esta noção na
mente dos profetas. A humildade da história: ela dificilmente pode ser
vista como a grande senhora, terrível em sua simplicidade, que Renan
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YAHWEH-SHAMMAH • 153
estabeleceu como a grande dispensadora de dogmas.
No entanto, mesmo que a interpretação dos historiadores sejacorreta, em que aspectos isto pode modificar nosso ponto de vista
acerca da nova Jerusalém? O que nos impede de vê-la como a revelação
da verdade objetiva? Obviamente, não o fato de que esta noção aparece
em dado momento da história, visto que a originalidade do pensamento
judaico-cristão é precisamente que a sua revelação sempre concorda
com a história. Deus, até certo ponto, submete-se às leis da história.
* *
Outra evolução também precisa ser indicada, e é um tanto
surpreendente o fato de que, de modo geral, os historiadores não a
enfatizaram: a evolução da visão de Ezequiel até a visão de João. Estas
duas visões apocalípticas referiam-se ao mesmo assunto, mas foram
vistas e entendidas de maneiras diferentes. Ezequiel anuncia que vêuma cidade (cap. 40), mas, na extensa descrição de fatos vindouros que
se segue, ela nunca mais é mencionada. Ele fala interminavelmente do
templo, durante sete capítulos, com todas as medidas minuciosas que
qualquer leitor de Ezequiel conhece tão bem. Por fim, nas últimas
linhas do capítulo 48, ele adiciona mais algumas palavras a respeito da
cidade, mas sua ênfase claramente está no santuário; tudo é entendido
em termos do santuário —a habitação de Deus. Por certo, este é um
dos textos apocalípticos mais antigos e deve ser situado bem antes do
movimento do segundo século a. C. Esta evolução não procede da
Jerusalém terrena para a celestial, mas do templo de Salomão para o
templo de Deus. Neste contexto, Jerusalém é, como acabamos de ver,
apenas acessória em relação ao templo. Esta evolução, portanto, é
especificamente espiritual e não social, como alguns estudiosos
gostariam de nos levar a crer. O templo de Salomão, mesmo em época
bem anterior a Ezequiel, era apenas uma imagem da habitação de Deus,como demonstram textos bem antigos. Portanto, na descrição de
Ezequiel não há nada de novo, mas só a declaração profética daquilo
que a revelação mosaica já continha com relação à arca. Contudo, na
visão de João, tudo está centralizado na cidade. Ele não fala nada do
templo. Pelo contrário, é fortemente enfatizado que não há templo:
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154 • IMORTALIDADE
“Pois o templo é o Senhor Deus Todo-poderoso e o Cordeiro”.
Estou bem consciente de tudo o que pode ser dito para explicar
esta mudança. Alguns estudiosos citarão o fato de que o templo em
Jerusalém foi destruído antes de ter sido escrita a revelação de João,
acontecimento interpretado pelas primeiras gerações de cristãos como
cumprimento da profecia de Jesus em relação ao templo. Outros
argumentam com o pensamento de que os homens não devem mais
adorar em um templo, mas em qualquer parte, em espírito e em
verdade, que é exatamente o espírito de Apocalipse. Ainda outros farão
referência ao conceito cristão de dessacralização do templo por Cristoem sua encarnação, morte e ressurreição. Finalmente, alguns indicarão
o extraordinário deslocamento da glória de Deus, que não habita mais
no templo, mas no corpo do Crucificado. Entretanto, todas estasexplicações são insuficientes.
Sim, pois não há contradição entre estas duas visões. Elas são
coerentes. O que é importante na declaração da presença total e
exclusiva de Deus —primeiramente a sua presença no templo e, depois,
quando já se desenvolveu o conceito messiânico, em toda a cidade de
Jerusalém, que é acessória ao templo na visão de Ezequiel e que, de
acordo com o ambiente em que ele viveu, tornou-se também um
templo, pois Deus torna-se tudo em todos. Isto é apenas uma expansão
do pensamento escatológico, e é muito significativo o fato de a
Jerusalém celestial estar arraigada e fundamentada na visão
escatológica do templo e não na Jerusalém terrena. A evolução descrita
pelos historiadores é, talvez, psicologicamente verdadeira, mas nãoespiritualmente. João, em Patmos, também viu um templo, mas tão
grande que se tornara a nova cidade. O próprio significado de
Jerusalém deve ser o contrapeso da Babilônia. Ela pode desempenhar
este papel apenas se ela mesma for o templo de Deus. O templo era
uma sombra das coisas do porvir, um penhor da presença de Deus na
cidade; e quando a cidade se torna propriedade de Deus, quando as
coisas do porvir chegam ao presente, o penhor e a sombra sedesvanecem diante da presença e do cumprimento. Aquilo que
Ezequiel diz quanto à cidade onde se encontra o templo deve ser
considerado uma semente, como veremos, do que João viu — o
progresso imprevisível da solene marcha de Deus, transcendendo até
em suas descrições a imaginação dos escritores inspirados. Que
distância notável entre o desanimador apocalipse de Enoque e a
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YAHWEH-SHAMMAH • 155
fantástica concatenação, através dos séculos, de outros que escreveram
no mesmo Espírito!
* *
Mas quando chega a hora de falar desta nova cidade, somos
tomados de medo. Pois não devemos tentar penetrar os segredos de
Deus. Não podemos tentar desvendar o que nos está oculto. Quando
pensamos nos textos acerca dessas coisas que nos são dados, somostentados a ir além do que eles dizem e lançar mão do mistério que Deusconservou para si. Podemos também ser tentados a nos entregar a
especulações intelectuais, a uma espécie de “gnosis”, que pode sermuito atraente como diversão, mas que nada acrescentaria à nossa fé e
à nossa vida em Cristo. Os textos que falam de Yahweh-shammah são
extremamente moderados, se comparados com a exuberância
apocalíptica dos outros livros judaicos. Eles não nos apresentam nem
uma explicação nem uma descrição estritamente real do que
acontecerá. O rigor do pensamento de João acerca da Babilôniacoloca-se em agudo contraste com a nebulosidade da sua descrição de
Jerusalém, que é claramente irrealizável em forma concreta. Esses
textos evitam revelar-nos os segredos de Deus e são muito discretos
quanto aos últimos acontecimentos e sua conclusão. O que precisamos
ter em mente, antes de tudo, é que a cidade nos é apresentada como
visão, algo situado além do alcance da nossa inteligência. Não é algoacessível às leis da nossa razão. Ela é apresentada por Deus, vista de
fora, percebida tão somente durante um piscar de olhos. As nossas
mentes não conseguem classificá-la nem dissecá-la; e não podemos ir
além desta visão. Ela não pode ser transformada em um elemento deum sistema intelectual. Tudo o que podemos fazer é ficar tão perto
quanto possível da figura apresentada e, a partir daí, dizer o que ela é
e o que ela representava para um homem da época de Ezequiel ou de
João.Por outro lado, não podemos perder de vista o fato de que a
linguagem dos profetas usava coisas materiais para descrever verdades
espirituais e que, obviamente, a descrição feita não é materialmente
exata. Quando somos informados de que os muros da cidade são feitosde ouro precioso, isto, é claro, não deve ser considerado literalmente.
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Precisamos ver aqui apenas imagens, quando muito símbolos, e isto
significa que essa cidade, cuja existência é real, possui sua realidade emuma situação complexa, nem material nem abstratamente espiritual
(como costumamos entender algo espiritual). Este é o ponto em que averdade a tudo encobre e assume a realidade, onde toda ambigüidadecessa, sendo, por conseguinte, incompreensível a nós. O mesmo
problema que se levanta em relação à cidade encontramos também em
relação a nossos corpos ressurretos, uma questão que de forma alguma podemos abrir, pois isto é um segredo de Deus.
Finalmente, precisamos aceitar uma última limitação, imposta anós pelo próprio alvo do livro de Apocalipse. Ela é alimento para a fé
atual da igreja e dos cristãos, tendo sido escrita como resposta a certos
problemas da vida (não para incentivar a especulação). No meio dasdificuldades e da angústia do tempo presente, a esperança ministrada
pela revelação é, em primeiro lugar, de que a nossa história tem um
significado e um propósito, que ela se encaminha para o fim mostrado
a nós na revelação da Jerusalém celestial. Esta cidade, portanto, não énada menos do que o objeto da nossa esperança. Ela nos fortalece pela
certeza de que os eventos da história não podem mudar o seu destino
e de que tudo deve ser dirigido em termos desse alvo único. Contudo,não podemos considerar esta Jerusalém de forma diversa da sua
natureza revelada. Ela não pode se tornar objeto de algum sistema
místico ou conhecimento intelectual; da mesma forma, ela não pode setornar um meio de fuga à vida presente, que Jesus Cristo nos pede que
vivamos.Fuga de nossas condições espirituais? A alegre esperança não pode
nos levar a esquecer a luta de fé a que somos chamados a nos empenhar.
Pelo contrário, ela está ali para nos ajudar em nosso combate. O seu
único valor está neste combate.
Fuga de nossas condições materiais? A gloriosa visão da cidade não
nos pode fazer esquecer a cidade material em que estamos vivendo. Ela
não pode nos prejudicar no trabalho material que precisamos realizar.
Pelo contrário, ela está ali para tornar esse trabalho digno de ser
realizado. Ela não tem propósitOi ,excetO em relação a esse trabalho deque fomos encarregados por Deus, nós que somos homens plenamente
vivos e responsáveis nesta terra humana.
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YAHWEH-SHAMMAH • 157
I. A NOVA CIDADE
Um quarteirão imenso, com doze portas — Jerusalém estáchegando — capaz de acomodar todos os que Deus escolheu! Ela estádescendo do céu, diz Apocalipse. Ela vem através da destruição,anuncia Zacarias. Pois antes que ela possa vir, precisa acontecer orompimento definitivo entre a Jerusalém terrena e a cidade de Deus.O maior sinal do “dia de Javé” é o colapso de Jerusalém. Isto não é um
rejuvenescimento, nem purificação, nem renovação, nem modificaçãode forma, mas ruptura total, a viagem para a morte, completadestruição: “Congregarei todas as nações para que ataquem Jerusalém.A cidade será tomada, as casas pilhadas, as mulheres violadas...”. Danieltambém anuncia que a abominação da desolação estará presente nacidade santa, e Jesus citou as palavras dele. Deus destrói e constrói. Oque os profetas estão anunciando é um rompimento completo entreJerusalém e Yahweh-shammah. A nova cidade é única e exclusivamente
obra de Deus. Só ele a edifica (SI 51.20), sendo tanto seus muros quantoseu templo.Esta declaração feita pelos profetas é ainda mais importante, visto
que contradiz a opinião dos historiadores de que os judeus viam uma
continuidade entre as duas Jerusalém, sendo ligado cada aspecto ainda
mais glorioso à cidade celestial. A verdade é exatamente o oposto: só
através da destruição da cidade terrena a outra pode ser vislumbrada.
Pois a cidade, como representação de segurança humana, garantia e
força inata precisa ser destruída. Todos esses meios humanos precisamdar lugar à segurança dada por Deus. Esta cidade precisa ser um ato de
graça (SI 51.20). O próprio Deus será a força da cidade (e não apenas
a santidade dela). Seus muros serão salvação, e suas portas, a glória de
Deus (Is 60.18). Deus diz: “Pois eu lhe serei, diz o Senhor, um muro de
fogo em redor, e eu mesmo serei, no meio dela, a sua glória” (Zc 2.5).
Isto dá a entender que o trabalho material de Deus e a sua presença sãoabsolutamente inseparáveis. Uma nova encarnação ocorreu, e este é o
significado literal do nome dado à nova cidade; Ezequiel nos diz que
ela será chamada ‘Yahweh-shammah”, isto é, “o Senhor está ali” (Ez
48.35). Este nome, que substituiu o antigo, ‘Yerusalem”, é a
contrapartida exata da profecia relativa a Emanuel. Em Cristo, Deus
está conosco. Na nova cidade, a sua presença será constante. A nossa
comunhão com ele não sofrerá interrupção. Mas outro aspecto dessas
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158 • IMORTALIDADE
profecias precisa ser enfatizado: o simples fato de que Deus adotará otrabalho do homem quando a nova cidade for construída, ipso facto não
dá a entender que Deus estará presente nesse trabalho. Em outras palavras, Deus prepara um mundo novo para o homem por ocasião daressurreição e, para assegurar uma comunhão absoluta, Deus não éincluído na nova criação. Ele permanece transcendental. Deus vem àcidade, mas por natureza não faz parte dela. Deus está vindo — isto éo que os profetas anunciam.
Quando ele edificar, virá. Ele virá do Oriente (Ez 43.2; Zc 14.4).
Que milagre na harmonia do Espírito Santo — nenhum acidente,nenhum desígnio humano! Ele vem do Oriente, como veio Caim, a fimde que, como Caim, edifique e habite uma cidade. A vinda de Deuscorresponde exatamente à vinda de Caim. Mas ela também completa aviagem de Caim. Pois, se Caim nunca foi capaz de se estabelecer emuma cidade, se ele teve que continuar permanentemente a sua viageme, no decorrer da história, vir do Oriente, a vinda de Deus com o mesmoalvo de Caim põe fim às jornadas dos homens. É aí que a instabilidade
do homem chega ao fim, e Deus é o único responsável por isso, porquelhe dá a nova cidade. Zacarias acrescenta o detalhe de que, antes deentrar na cidade, “os seus pés (do Senhor) estarão sobre o Monte dasOliveiras, que está defronte de Jerusalém para o oriente” (Zc 14.4).Como alguém poderia deixar de ver nestas palavras uma profecia danoite em que Jesus foi preso? Por esse mesmo caminho Deus entra nacidade. Quando Jesus decidira pessoalmente ir de encontro à suamorte, quando ele se humilhara até à mais vergonhosa condenação eescolhera ser abandonado por Deus, então foi fundada a novaJerusalém. Foi então que Deus veio a ela do Oriente, antes de tomar posse dela. Portanto, ela é uma cidade fundamentada em humildade,construída na aceitação das decisões de Deus, na aceitação decondenação e sacrifício. Este é o significado de Yahweh-shammah. Istoabre uma nova perspectiva para nós, uma perspectiva queencontraremos muitas outras vezes: da mesma forma como a nova
cidade é a realização daquilo que o homem jamais foi capaz de realizar,ela também é o oposto exato da cidade terrena, tanto nos elementos deque é formada quanto em seu significado. Por isso, Apocalipseestabelece um paralelo entre Jerusalém e Babilônia. Ambas sãomulheres, mas uma é prostituta e a outra, esposa. Ambas são ricas eadornadas de pedras preciosas, mas as riquezas de uma provêm da
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YAHWEH-SHAMMAH • 159
venda das almas dos homens, e as da outra são devidas à graça de Deus.Uma cidade é um lugar de “muitas águas”, a outra tem apenas um rio,o rio da vida. A nova cidade é a contrapartida exata do que o homemquisera fazer — não no sentido de verso e reverso, ou tipo e antítipo,mas no sentido do inverso de um bordado e o seu lado de cima.Enquanto o lado em que o homem está trabalhando é uma confusãosem forma, o lado em que Deus trabalha é o lado certo, o lado da novaJerusalém. A presença de Deus é o ponto essencial em tudo o que sedisser a respeito da cidade. Ele está tomando posse do mundo do qual
o homem gostaria de vê-lo excluído. Ele próprio é a cidade, visto queé seus muros, suas portas, sua praça central e seu templo. Ele é tudo eestá em tudo. Mas, ao mesmo tempo, ele é infinitamente diferente dacidade. Esta unidade é muito mais completa do que aquela por ocasiãoda criação. Falando de modo adequado, não há mais um mundoseparado de Deus, mas um mundo em que a comunhão com Deus é
perfeita e ilimitada para todos os que vivem ali. Pois este milagre éinseparável dos habitantes da cidade.
* *
Yahweh-shammah é sempre representado como estando em umalto monte. “Fundada por ele sobre os montes santos” (SI 87.1). OEspírito do Senhor “me pôs sobre um monte muito alto; sobre este
havia como um edifício de cidade para a banda do sul” (Ez 40.2). “Eme transportou, em espírito, até a uma grande e elevada montanha...”(Ap 21.10, 11). É certa a associação entre os dois lugares onde erarealizada a adoração do Senhor, entre o templo de Jerusalém e osmontes. Com certeza, é isto que os profetas tinham em mente.Enquanto a adoração nos lugares altos era condenada, a ponto de serconsiderada idolátrica, não pode haver dúvida de que, na revelação deDeus ao seu povo, os montes desempenharam um papel predominante.
A adoração em Jerusalém e a adoração nos lugares altos eramfreqüentemente comparadas. Isto é confirmado por Jesus em suaconversa com a mulher samaritana: “A hora vem, quando nem nestemonte, nem em Jerusalém adorareis o Pai...”. É verdade que na novacriação o monte não tem parte na adoração mais do que Jerusalém temrealidade por si mesma; entretanto, ambos se encontram presentes.
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YAHWEH-SHAMMAH • 161
nesta cidade, e apenas ali, Deus se mostrará como ele é, na era da nova
criação. Isto significa que ele estará com todos e para todos,verdadeiramente o centro e a plenitude da criação, o centro entãorevelado a todos, em toda parte. Por isso, a cidade precisará estar nomonte mais elevado, um lugar para o homem, um lugar para a glóriadivina, visto de toda a criação, elevado até o ponto mais alto de toda anatureza — não para ser glorificado em si mesmo, mas a fim de quetoda a criação possa se voltar para o Deus que não é mais um Deusoculto e que aparece nos muros resplandecentes de ouro precioso e na
luz eterna com que rebrilham as portas de pérola. Esta é a explicaçãoda profecia antiga. Quase não precisamos acrescentar que os autoresdessas obras não colocaram conscientemente todas estas minúcias emseus sinais, pois estes só puderam assumir o seu significado e valor plenos depois da vida, morte e ressurreição de Cristo.
* *
Esta cidade não é apenas o centro da nova criação, mas também ocentro das nações; e Deus lhe dá um papel muito singular paradesempenhar com respeito a elas. Primeiramente ela precisa ser “umcálice de tontear” para as nações (Zc 12.2). Tontura, tremor, incerteza.Quando as nações da terra vierem a se colocar diante de Jerusalém,serão feridas de cegueira. Elas não saberão nem o que fazer nem o que
dizer. Mediante a presença de Jerusalém, elas são privadas, por assimdizer, dos seus alvos e da sua vontade —porém, por algo mais do quea presença dela. A palavra “cálice” é significativa. É sabido que, no
pensamento hebraico, dar um cálice é determinar o destino de alguém.Dar a alguém um cálice de bênção não é tanto abençoar aquela pessoaquanto colocá-la em separado, por um ato mágico, no caminho das
bênçãos. O mesmo acontece no sentido oposto. Aqui vemos queJerusalém é dada para as nações como “cálice de tontear”, isto é, acidade nova vencerá as nações e as encherá de uma intoxicação que lhestirará seu verdadeiro significado. Este é o primeiro ato da progressãoatravés do julgamento das nações até a gloriosa procissão que sobe emdireção à nova cidade. Para isto é estabelecido o novo laço entre oshomens, seus reis e suas nações e a cidade santa, que eles recebem doalto. Esta cidade, antes de tudo, não é mais a cidade da escravidão, nem
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162 • IMORTALIDADE
o mundo de confusão. As portas de Yahweh-shammah devem estar
sempre abertas. “Abri vós as portas!”, clama o profeta (Is 26.2). Todosos outros textos refletem esta ordem: “As tuas portas estarão abertas
de contínuo; nem de dia nem de noite se fecharão” (Is 60.11). “As suas
portas nunca jamais se fecharão de dia, porque nela não haverá noite”(Ap 21.25). Portanto, ela é um lugar limitado para o homem, massempre aberto. Jerusalém é uma cidade aberta.
Em nossos dias, a noção de uma cidade aberta tem um significadoum tanto diferente. Quando Paris foi declarada cidade aberta, ficamos
sabendo que a guerra havia terminado — mas em uma derrotavergonhosa. Roma tornou-se também uma cidade aberta — mas
bombardeada e massacrada! E Jerusalém foi declarada cidade aberta
em 1948 — mas a decisão militar dos homens só iniciou um novo período de provocação e derramamento de sangue. A cidade aberta de
nossos dias não é nada mais do que uma cidade derrotada pedindo
misericórdia e um sinal do que a está ameaçando.
A abertura de Jerusalém, por outro lado, é de triunfo e realização, para permitir aos homens chamados por Deus que entrem e, o que é
ainda mais importante, para permitir que todas as nações entrem. “Astuas portas estarão abertas... para que te sejam trazidas riquezas das
nações, e, conduzidos com elas, os seus reis” (Is 60.11). Que outros
vejam aqui o pensamento político de Isaías, seu liberalismo econômico
e suas políticas de aliança. Eles têm este direito. Mas este não é o nosso
assunto e, provavelmente, também não é o significado das profecias,
pois Apocalipse responde: “As nações andarão mediante a sua luz, e osreis da terra lhe trazem a sua glória” (21.24, 26).
Esta é outra tradição constante em Israel. Já estudamos aquele
salmo magnífico que proclamava este ponto de vista acerca do fim da
história — o fim glorioso, quando as nações da terra marcharãotriunfantemente em uma imensa coluna na direção da consecução de
todos os seus alvos, numa procissão inumerável, estando os homens
sábios indo ao berço de Belém como sua escolta profética. Este é o fim
glorioso de todos os seus esforços —a glória do homem adquirida como
tributo para a cidade! Eles estão vindo do recenseamento mais prodigioso jamais realizado, ao lugar que se tornou seu lar e lugar de
nascimento. E o Senhor diz; “Dentre os que me conhecem, farei
menção de Raabe e de Babilônia; eis af Filístia, e Tiro com Etiópia; lá
nasceram. E com respeito a Sião se dirá: Este e aquele nasceram nela...”
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(SI 87). Jeremias acrescenta a sua confirmação: “Naquele tempo
chamarão a Jerusalém o trono do Senhor; nela se reunirão todas asnações em nome do Senhor” (Jr 3.17). E as nações se tornam os povos de Deus. Apocalipse apresenta-nos um belo plural (21.3). Não existeum povo de Deus escolhido dentre as nações. Todos agora estão unidosem Deus, mas ainda mantêm suas particularidades, suas riquezasindividuais.
Por que mencionar de novo o que já dissemos a respeito da novacidade como lugar de reunião e não de dispersão? Babel já não existe,
deixou de existir porque Yahweh-shammah desempenha o papel queBabilônia tentava desempenhar. Ela se tornou o ornamento das nações(Is 60.15), o próprio título dado à Babilônia (Is 13.19). Mas em tudo istonão cabe nenhuma glória ao homem. Todavia, aqui mesmo verificamosque é realizado o alvo do homem de colocar na cidade toda a suagrandeza, toda a sua força e todas as suas riquezas.
Como é importante não entender estas profecias em umsentimento pejorativo e restritivo! Como é importante que não digamosnada assim: “Esses judeus e cristãos — que destino pretensioso! Asnações precisam se tornar sujeitas à sua maneira de ver as coisas. Elas
precisam aceitar o jugo da sua cidade e a dominação do seu poder.Todas as riquezas de todos os esforços humanísticos devem convergirem sua história pessoal. (Humanismo, porque até o pensamentointelectual e as artes estão incluídos: ‘Todos os cantores saltando de
júbilo entoarão: Todas as minhas fontes são em ti’ — SI 87.7.) O
egoísmo de uma fé estreita, o sectarismo do povo que pensa que averdade lhe pertence!”Mas isto é exatamente o oposto do verdadeiro significado dos
textos. O ato de Deus é uma resposta à oração e não uma vitóriaesmagadora. É um ato de graça e não de constrangimento. O que ohomem tem estado a buscar, desde a alvorada da civilização, elefinalmente encontra quando Deus lhe oferece a nova cidade —a somade todos os seus esforços. As nações não trazem suas riquezas apenasa fim de tornar rica a cidade dos cristãos; elas o fazem para o bem de si
próprias. Os reis não trazem a sua glória para aumentar a dela. Pois queglória histórica podería jamais aumentar aquela que jorra da presençado Senhor? Pelo contrário, eles trazem a sua glória a fim de vê-latransfigurada. O que o homem queria da sua cidade, ele por fim obtém —na visão única, promessa e realidade, no fim dos tempos. As riquezas
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e a glória fugidia do homem (quem podería negar que assim é?)tornam-se eternas quando são trazidas e depositadas nesta cidade de
portas abertas, nesta cidade aberta onde, por fim, reina a segurança.Podemos ver como Deus completa para todas as civilizações o que elefez para a cidade. Podemos ver como a cidade é verdadeiramente o augede toda a história. A nossa tarefa, é bom que o digamos novamente, nãoé julgar pessoalmente essas riquezas; não devemos decidir quem podeentrar na cidade. Pois as nações e os reis estão vindo, e anjos devemembelezar as suas portas. Nada nos é dito do que então acontece.
Sabemos que eles não são o querubim flamejante que guardou as portasdo Éden, mas os anjos benevolentes que Deus constituiu mensageirosda sua graça. Nada é dito dos julgamentos que eles podem fazer para agloriosa congregação de homens e coisas que se acumularão a seus pés,das grandes decisões que eles deverão tomar entre as inúmeras obrasdos homens. Mas temos uma boa descrição dos homens que habitarãoa cidade. Eles não têm mais que conquistar a glória ou a belezahumanas. Eles verdadeiramente já receberam seu quinhão.
* *
A mesma antítese que encontramos entre os habitantes deYahweh-shammah e a condição do homem, encontramos entre a
própria cidade nova e as cidades terrenas. Os habitantes de
Yahweh-shammah também são diferentes da multidão humana,embora sejam inumeráveis. Aqui não podemos tratar dos problemasgenéricos de escatologia ou do julgamento. Estamos preocupados comos habitantes da cidade. Eles são caracterizados, como já dissemos, pelacomunhão com Deus. Mediante essa comunhão, eles se tornam e
permanecem justos. A contra-criação do homem é recriada, de formaque agora (algo que não conseguimos entender) ela é, ao mesmo tempo,
plenamente livre como criação individual, em total comunhão com
Deus, e plena unidade com os homens. A cidade de divisão tornou-sea cidade de conhecimento e de unidade em todas as suas formas. Isto éo que também significa o fato de ela ser “a noiva, a esposa do Cordeiro”(Ap 21.9). A primeira mensagem deste versículo é esta: tudo o que lheconcerne e tudo o que diz respeito aos habitantes da cidade é dirigidoa Jesus Cristo. Mas isto também nos leva necessariamente à figura da
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igreja como corpo de Cristo ou como sua noiva; à ligação entre Jesus e
sua igreja, a mesma ligação que une um homem e sua esposa. A noiva, por fim, aparece aos olhos de todos como a noiva que ela realmente é.
Desta forma, a cidade segue e toma o lugar da igreja. Ela cer
tamente não é a igreja, nem no presente nem no futuro. A sua natureza
não é a da humilde serva dos tempos históricos. Aqui também vemosuma transposição: não é apropriado dizer que a igreja triunfante sucede
a igreja sofredora, nem é apropriado dizer que na nova criação nãohaverá igreja. De fato, a cidade criada por Deus torna-se a substituta
da igreja da maneira como a conhecemos, mediante uma extraordináriasíntese da obra do homem adotada por Deus e a obra do Espírito levadaà perfeição. O que conhecemos de maneira medíocre será então vivido
plenamente na cidade. Podemos dar um passo a mais? Precisamos pelo
menos mencionar que os habitantes daquela cidade se gloriarão todos
na extraordinária luz que provém dos olhos de Deus.
Toda a visão explode em luz —as pedras do alicerce da cidade, com
suas facetas brilhantes, mencionadas por Isaías, a brancura das
vestimentas, as águas cristalinas, o ouro resplandencente. Tudo irradia
uma luz que provém de Deus. Mas este ouro não é mais o ouro pesadoe orgulhoso da Babilônia —ele é leve e transparente como cristal. Elese incendeia com a glória de Deus, e o Cordeiro é a sua chama. Os
habitantes da cidade moram na luz que ilumina todas as nações (Ap
21.24). “Eu sou a luz do mundo”, disse Jesus, e isto tem seu
cumprimento agora, como indica o tempo presente do verbo usado pelo
Filho do homem. A oposição do mundo não pode impedi-lo de ser oque ele é. A cidade, em seu reino de trevas, pode recusar a luz, mas, no
fim, esta luz a atravessa, e nada escapa a esta reconciliação. Assim, seus
habitantes tornam-se verdadeiramente filhos da luz, e isto, talvez, é o
que os caracteriza melhor. As trevas da cidade, as trevas da tristeza do
homem na cidade, as trevas de suas obras, tudo foi transformado pelavinda dessa luz sem par. Ali não permanece nada mais que seja impuro,
nada mais que seja morto; as faces mortas dos homens da cidade
brilham repentinamente com a beleza de Deus.Entretanto, quem é digno, quem é digno de uma coisa dessas?
Ninguém, ninguém por si mesmo possui esta luz. O segredo de Deus
está inteiramente à disposição dos que entram, dos que estão na luz,
assim como Deus dá graça por graça. Isto é tudo que podemos dizer,
pois o rei da luz é também o Filho do homem.
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166 • IMORTALIDADE
II. O SIMBOLISMO
Nos dias de hoje, não está mais em moda sondar o significadosimbólico e figurado de um texto bíblico. A razão é fácil de perceber:
este costume deixa a porta aberta para tanta fantasia, que é
perfeitamente inteligente rejeitar este método. Entretanto, há umaspecto do simbolismo que não pode de forma alguma ser eliminado;
trata-se do simbolismo usado conscientemente pelos autores bíblicos
para expressar seus pensamentos. Todos eles viveram em época em queera comum usar símbolos, e eles também os empregaram, não tanto
para ocultar o que estavam falando (o que nos parece ser a causa,
porque perdemos o significado de seus símbolos) quanto para
explicá-lo de maneira a que seus leitores estavam acostumados.
Precisamos descobrir o significado que eles davam aos seus símbolos,
para que não entendamos de maneira errônea a mensagem desses
textos. Se nos recusarmos a fazê-lo, seremos semelhantes ao leitor deum livro de álgebra que se recusa a enxergar a realidade oculta por trás
dos símbolos algébricos, usando o pretexto de que tal linguagem não é
clara. Neste caso, ainda teremos a idéia geral, a direção genérica queos textos estão tomando, mas todos os detalhes propositalmenteinseridos pelo autor (com a intenção de provar suas idéias) nos
escaparão. Não somos obrigados a crer, por exemplo, que o número
sete é, por si mesmo, o número perfeito, mas devemos entender, cada
vez que o encontramos nas Escrituras, que o autor o colocou ali paraexpressar a idéia de perfeição. Embora este simbolismo seja constante
em toda a Bíblia, ele é mais desenvolvido nos textos apocalípticos. Oque esta forma de expressão nos ensina acerca da nova cidade?
Na série de símbolos relacionados com a cidade, alguns são
perfeitamente claros e simples. Jerusalém é cercada por um muro, mas
este muro já não tem o significado de um artifício para defesa, de uma
ruptura entre interior e exterior. Pelo contrário, é o sinal de ordem,
harmonia, equilíbrio, precisão. O fato de a cidade santa ter como seu
alicerce os doze apóstolos obviamente significa que ela está alicerçada
na Palavra de Deus. O que importa não são os apóstolos como pessoas,
mas o fato de que eles foram portadores da Palavra. Esta cidade é o
oposto da confusão de línguas, o oposto de Babel. Só neste fato já temos
a solução para toda a tragédia da nossa história. O fato de as portas da
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cidade ostentarem os nomes das doze tribos de Israel é também muito
simples de interpretar. O autor está dizendo que se pode entrar nacidade apenas através de Israel, que, com seus anjos, guarda as suas
portas (não São Pedro). Israel é “restaurado à sua unidade e verdadeiro
destino, o de ser uma porta aberta para a glória do Reino divino”. Todos precisam, por assim dizer, tornar-se membros de Israel, a fim de
pertencer ao povo de Deus, como o próprio Paulo ensinou. Isto dá a
entender que aquilo que é estabelecido pela eleição é a ligação entre o
homem e a cidade, e não a ligação de poder ou, acima de tudo, daquele
pertencer inconsciente ao mundo dos demônios que caracteriza oshabitantes da cidade.
Contudo, outros símbolos são menos claros.
* * *
Em primeiro lugar, consideremos os números simbólicos. Há
apenas dois: “quatro” e “doze”. O número quatro não é declaradoexpressamente. Apocalipse diz apenas que Jerusalém é edificada como
um quadrado, até mesmo como um cubo, visto que a sua altura é igualà sua largura e ao seu comprimento. O número “quatro” étradicionalmente o número do universo, que era compreendido, na
antigüidade, de acordo com um ritmo de quatros: os pontos cardeais,
as quatro estações, quatro reinos, quatro elementos, e quatro até
mesmo como o número do corpo humano. Portanto, este númeroexpressa toda a criação. Quando Jerusalém é assim apresentada,
edificada na forma de um retângulo, isto significa que simbolicamente
ela inclui toda a criação —por um lado, porque nela todos os povos e
nações são chamados e, por outro, por ser a pedra fundamental de toda
a criação, por ela conduzida à luz de Deus. Mas Jerusalém tem formacúbica, e isto lhe dá um significado um pouco diferente: o cubo é
símbolo de força, constância, firmeza, e nos livros sacros Deus
recomendou o uso do cubo (por exemplo, na arca). Este símboloespiritual foi interpretado por Santo Agostinho da seguinte maneira: o
cubo é o símbolo dos que são predestinados, indicando que nenhumatentação ou queda pode causar a sua rejeição definitiva (Gn 6.14).
Deixaremos por conta de Agostinho a responsabilidade por esta
exegese, mas se ela corresponde ao pensamento bíblico, isto significa
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que a cidade de Deus é definitivamente a cidade dos predestinados e
que nada pode jamais removê-los da comunhão com Deus; a forma docubo é a garantia de que a história da tentação e queda nunca mais
poderá começar outra vez, pois tudo foi realizado.Todavia, o número predominante em Apocalipse é doze. Há doze
portas e doze fundamentos; o muro tem 144 côvados de altura (12x 12)
e sua circunferência é de 12.000 estádios. Ora, doze é o produto de três
e quatro, o que significa simbolicamente o produto de Deus (visto que
ele é trino) e a criação. Portanto, esse número expressa uma realidade
complexa. Em primeiro lugar, expressa a unidade que mencionamosentre Deus e a sua nova criação, que nunca mais poderá ser destruída.
Esta unidade produz uma realidade superior a qualquer realidade quetenha existido antes na criação (este é o significado da multiplicação),indicada a nós primeiramente pela igreja como corpo de Cristo, mas
que assume o seu significado pleno apenas em sua forma concreta como
a cidade santa. Por outro lado (este é um modo um pouco diferente de
expressar a mesma verdade), o número doze expressa a difusão daPalavra de Deus, da sua Palavra e do seu Espírito, a todas as partes da
criação. Portanto, “doze” é o algarismo ecumênico par excellence,
indicando que a criação está cheia do Espírito Santo. O número dozeé, por conseguinte, o número do triunfo, porque expressa o resultado
final da obra de Deus, que era reconciliar o mundo consigo mesmo. Não
expressa muita coisa que já não tenhamos visto com clareza no texto,
mas reforça e enfatiza fortemente esse significado. Em todas estas
coisas, mais do que tudo, a visão de João corresponde àquela deEzequiel, uma vez que este também apresenta a cidade com doze
portas. Havia quatro muros, e cada muro tinha três portas.
Outro elemento comum a João e a Ezequiel é o símbolo da vara de
medir. As medidas tomadas pelo anjo para a nova Jerusalém são feitas
com uma vara de medir, com um caniço de ouro. O ato de medir
expressa o estabelecimento de limites protegidos. O perímetro dafortaleza é estabelecido. O limite até onde qualquer inimigo pode
chegar é traçado. Isto é bem claro no livro de Enoque. Mas também
pode ser um limite para a ação de Satanás ou para a condenação
pronunciada por Deus. O fato de que o anjo está medindo a cidade
significa que ela está absolutamente protegida tanto das ameaças de
Satanás quanto dos juízos de Deus. Portanto, o julgamento é impedido.
Isto se torna ainda mais certo quando pensamos que o caniço é feito de
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ouro: é, por conseguinte, uma vara de medir perfeita, com uma
finalidade celestial. Contudo, dirão os exegetas racionalistas,Apocalipse refere-se aqui à “medida de homem, isto é, de anjo” (Ap21.17). Isto significa que João crê que no céu as medidas usadas são asmesmas do homem. Este é apenas mais um exemplo dos grosseirosantropomorfismos desses textos. Contudo, precisamos responder, porcerto isto é ver as coisas ao contrário. Pois esta identificação nãosignifica que “no céu” encontraremos medidas de homem, mas quenessa ocasião haverá semelhanças entre homens e anjos, e os atos de
anjos serão também atos do homem que atingiu a sua estatura perfeita! Não podemos isolar este texto de outros que ensinam, juntamente como evangelho, que os homens “serão como os anjos no céu”. Esta é aforma que o vidente de Patmos encontrou e escolheu para nos informarque, até em seus atos, os habitantes da nova cidade dependerão de um
poder espiritual diferente do poder da cidade tradicional. Outro anjoencontra-se ali. Tudo é novo.
4c 4c 4c
Os muros da cidade estão apoiados em doze fundamentos feitos dedoze pedras preciosas. A tradução apropriada dos nomes dessas pedrasé bem clara, mas o significado de várias delas é extremamente difícil dedeterminar. Que se pode dizer do crisópraso ou do ônix? Até as pedras
com que estamos mais familiarizados, como jaspe ou topázio,apresentam problemas. Quando lemos o que Plínio escreveu a respeitodelas, começamos a duvidar de que ele esteja falando das mesmas
pedras, embora elas sejam designadas hoje pelos mesmos nomes quetinham na Roma do primeiro século. Todavia, o problema torna-seainda mais complicado quando vemos que estas são as mesmas pedrasengastadas no peitoral do sumo sacerdote do Antigo Testamento,fazendo-se delas uma longa descrição nas listas de Êxodo, quanto àsvestes usadas pelo sumo sacerdote ao executar suas funções. Entre elasse encontra um peitoral chamado peitoral do juízo (Êx 28.15ss.). Sobreesse peitoral estão doze pedras, em quatro fileiras de três cada uma,engastadas em ouro e unidas ao tecido que formava o bolso para contero Urim e o Tumim. Nessas doze pedras estavam gravados os nomes dasdoze tribos de Israel. Isto nos é enigmático. Qual é o significado dessa
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obra de ourives? Para começar, ficamos quase completamente às
escuras quanto à identidade das pedras usadas.As palavras hebraicas que as designam são dificilmente usadas emoutros textos, e a maioria delas não provém de raiz hebraica, masaramaica, cananéia ou outra origem indeterminada. Alguns tradutoressimplesmente transliteraram as palavras hebraicas, enquanto outros sereferiram ao texto de Apocalipse, imaginando que são as mesmas
palavras. Esta hipótese não é absolutamente gratuita ou imaginária, pois os poucos nomes identificáveis correspondem com exatidão à lista
de João, a saber: topázio, esmeralda, safira e jaspe. Além disso, Joãoescolheu claramente as pedras segundo o seu significado, comoveremos, e as traduções de Êxodo para o grego vertem os nomes dessas pedras com as mesmas palavras usadas em Apocalipse (com umaexceção). Assim, a tradição é muito antiga, e podemos aceitar aidentificação dos doze fundamentos de Yahweh-shammah como asdoze pedras do peitoral. Mas isto não nos ajuda muito. O enigma aindaé o mesmo: por que estas pedras? Por que foram escolhidas estas e nãooutras? Qual é o seu significado? Alguns estudiosos têm tentadoexplicá-las em relação ao simbolismo da cor, mas isto é muito incerto,
pois não temos certeza nem sobre as pedras com que estamos lidando.Sem dúvida, todas elas são pedras translúcidas, e toda esta luz
colorida tem levado algumas pessoas a dizer de modo errado que Joãoconhecia muito bem o seu esquema de cores. Há jaspe iridescente — muitas cores, atraindo todas as cores, outrora chamada a pedra de Deus,
por causa das muitas nuanças de cor que ela reduzia à unidade. Há ovioleta e o azul irradiando-se do jacinto e da ametista, o azul profundoda safira, o verde da esmeralda, unidos com o vermelho do sárdio. Estascores definidas colocam-se em oposição às sombras mais misteriosas ecomplexas do jacinto, a unha humana revelada no ônix, e a safira que
pode ser incolor, mas é toda luz. Contudo, a mágica da luz não ésuficiente para explicar a razão pela qual os profetas e apóstolosescolheram estas pedras, quando nada no pensamento hebraicoleva-nos a esse simbolismo.
Outros estudiosos têm aventado a hipótese de que elas são as pedras do zodíaco. Mas o que conhecemos a respeito do zodíaco deforma alguma corresponde com o pouco que podemos aprender dasdoze pedras do peitoral do sumo sacerdote. Alguns historiadores eexegetas, por outro lado, têm chegado à conclusão de que essas pedras
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preciosas podem não ter nenhum significado. É fácil presumir que, visto
que os sacerdotes egípcios e babilônicos também tinham placasadornadas com pedras preciosas, os judeus estavam apenas imitando oque acontecia entre os pagãos. Mas isto dificilmente é provável, vistoque o resto das vestimentas do sumo sacerdote não imitava as dosegípcios. Mais do que isso, as pedras dos amuletos egípcios não tinhamnada a ver com o que podemos aprender das doze pedras do relatos
bíblicos. Podemos nós acreditar que as doze foram escolhidasabsolutamente ao acaso ou pelo fato de serem abundantes em Canaã?
Por que pedras diferentes? Por que tal abundância de detalhesexplicativos, se tudo isto não tem significado algum? O fato de alguémquerer uma jóia somente por luxo ou por sua beleza não contraria amentalidade do nono século a. C. ou mesmo do século sétimo a. G?Tudo parece indicar que a escolha dessas pedras tem algum significado.Entretanto, onde encontrá-lo?
É claro que havia um simbolismo das pedras usadas em artesmágicas. Todas as pedras preciosas eram usadas em prescriçõesmédicas e na feitiçaria, e é surpreendente notar que há uma certaconcordância entre os poderes atribuídos às pedras pelos textosmágicos caldeus, por exemplo, pelos romanos e, mais tarde, pelos textosmágicos medievais. Mas esta certamente não é a direção que
precisamos seguir. Não é pelo fato de que se pensava que o sárdioremovia tumores e o carbúnculo expulsava demônios, que a fé do povoisraelita as usava para expressar uma verdade divina. Isto se contrapõe
ao cerne de tudo o que Israel recebera como verdade. Nenhuma coisacriada jamais fora considerada como detentora de poder inato, por si própria. Não por terem algum poder mágico inerente é que essas pedrasforam escolhidas, mas, sim, por uma razão contrária à mágica: elasdesignavam algo divino. As únicas vozes que podemos ouvir, portanto,são as dos rabis que através dos séculos expressaram o significado dessas
pedras para o povo de Israel. Não nos importa saber que significadoinato essas pedras podiam ter ou quais eram seus poderes, pois sabemosque, se elas foram colocadas no peitoral do sumo sacerdote, isto se deu
por terem um significado para o povo de Deus, quando este se reunia para contemplar a majestade daquele personagem, quando ele entravano Santo dos Santos. E se João as viu nos alicerces da nova Jerusalém,certamente foi pelos mesmos motivos que haviam chamado a atençãode Israel no passado e que não haviam mudado. Assim, as razões eram
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puramente simbólicas. O problema é que os rabis eram muito discretos
quanto aos seus significados simbólicos, e mesmo aqui precisamos noscontentar com imaginação e alguns indícios. O ’odhem (rubi ousárdio?), segundo se pensava, era um símbolo de fogo e sangue e estavaligado ao próprio homem; contudo, ao homem como Deus desejava queele fosse em Adão. Assim, talvez esta pedra seja o sinal da realidademais profunda e mais perfeita do homem. A pedra seguinte na primeirafileira é o topázio, símbolo do amor de Deus, aquele que perdoa
pecados e ama a seus inimigos, que inclui toda a natureza no seu amor.
Este amor era descrito pelo verso secreto: Natura deficit, Fortuna mutatur, Deus omnia cemit. A terceira, a esmeralda, é a pedra dorelâmpago e do golpe de espada semelhante ao raio, sendo também osímbolo de castidade e de palavras verdadeiras, de virgindade eimortalidade. A segunda fileira começa com nophekh, que tem nelainscrita o nome de Judá. Ela brilha “como um carvão incandescente” eé o símbolo da união com Deus que, desde o início da era cristã, eraligada com a Última Ceia: para os primeiros cristãos, nophekh era osímbolo da Santa Ceia. A safira é a pedra de que era feita o trono deDeus, de acordo com Ezequiel (1.26), e o seu próprio nome está ligadocom a escrita, com a fala e a inscrição, uma imagem para o povo deIsrael do homem que fala a verdade —a pedra dos oráculos verdadeirose dos milagres da justiça de Deus. A pedra seguinte é a yahalom (oudiamante?), símbolo de força ou daquilo que não se quebra nem semodifica. A terceira fileira começa com uma pedra desconhecida, a
leshem, acerca da qual somos informados apenas de que ela representaa caridade do homem pelos outros homens, e a sua humildade. A shebbo, cuja raiz hebraica faz lembrar a idéia de cativeiro, parecedesignar completa felicidade em Deus, no sentido de que o homem éfeliz em ser um cativo de Deus. Esta fileira termina com uma’achlamah, também desconhecida, que não podemos identificar nemquanto ao nome nem quanto ao significado. Alguns a consideram comosímbolo de um salário ou recompensa dada por Deus. Outros enxergam
uma ligação com o significado da sua raiz e a interpretam comoreferência ao sonho profético pelo qual o homem recebe uma revelação
pessoal de Deus. A décima pedra é o tarshiysh, à qual normalmente sãoatribuídos poderes perniciosos, mas aqui ela representa a posição dohomem diante de Deus — quebrantado, esmagado, mas recebendoforças de Deus, em quem habita. A penúltima pedra é a shoham (ônix?),
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a pedra do medo: o homem perturba o seu mundo e prostra-se diantede Deus, que afasta a vergonha do homem prostrado. Esta lista de
pedras preciosas term ina com o jaspe, sinal de destituição,simbolizando arrependimento ao qual Deus responde outorgando
purificação.Para conservarmos estes valores simbólicos, precisamos ler o
peitoral de baixo para cima. A fileira de baixo contém os sinais ousímbolos do arrependimento, temor e humilhação do homem,enquanto as fileiras superiores contêm os sinais do encontro do homem
com Deus, de caridade, da força para chegar à união com Deus, àverdade, e da estrutura de um homem perfeito em Deus. Esta écertamente a ordem em que uma “mente primitiva” leria, mas tambémé talvez o que se pretendia que o adorador fiel visse no peitoral.
Portanto, tudo isto se dirige para Deus, como imagem da aliançaeterna, e para o homem, como imagem do esplendor de Deus e dahumildade de suas criaturas. Sem dúvida, outros significados são
possíveis, e não temos como provar que a nossa interpretação é exata.Todavia, tudo nos leva a crer que o mesmo significado pode ser dadoàs doze pedras preciosas dos alicerces da nova Jerusalém: o de umarelação múltipla entre Adão e Yahweh, entre o novo Adão e seu Pai.De fato, é sobre esta união de verdade, justiça e amor, humildade dotemor e felicidade, que a cidade está fundamentada. Desta forma,aprendemos que a nova criação assume a aliança, a função do sumosacerdote, e a glória do peitoral. Contudo, não podemos nos esquecer
de que este peitoral é um peitoral de julgamento. O uso exato do Urime Tumim no peitoral é algo que está além do nosso conhecimento atual.Todavia, sabemos com toda certeza que em qualquer caso eles eramusados para aprender os juízos de Deus, para descobrir a sua Palavra ea sua vontade quanto a certo assunto. Também sabemos que essas duas
palavras significam “Luz” e “Perfeição”, e que estavam ligadas às dozetribos de Israel: “Assim Arão levará o juízo dos filhos de Israel sobre oseu coração diante do Senhor continuamente” (Êx 28.30). Este é o juízo
ou julgamento de Deus acerca da cidade. E a nova cidade, desta forma,é estabelecida perenemente sobre a Palavra de Deus, que é súa lei deamor, e sobre o juízo de Deus, o de sua misericórdia. Não podemos nosesquecer de que o peitoral pertencia ao sumo sacerdote. As pedras sãoencontradas na cidade, porque representam o que o sumo sacerdoteostentava. Elas decoram a cidade, como outrora adornavam o sumo
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sacerdote. Elas estão escondidas nos alicerces do muro, como outrora
ficavam escondidas no misterioso bolso do qual saía o oráculo daPalavra de Deus. Elas estão presentes na cidade para nos dizerem que
o ofício do sumo sacerdote foi exercido e levado à perfeição. Todos os
sacrifícios oferecidos por ele têm seu lugar e seu significado; e a vítima,incluindo o sacerdote, enche toda a cidade, que, por sua vez, está
baseada no ofício do sacerdote em sua perfeição final. Todas as
mediações do sumo sacerdote entre Deus e o homem, todas as profecias
que ele pronunciava para o povo e a respeito dele, toda a justiça de Deus
que ele personificava diante de Israel, agora têm fim. Mas nada do queele fez se perdeu, visto que as mesmas pedras que outrora brilhavam
em seu peito, quando ele se empenhava em executar as suas funções,
agora estão reunidas na vida mais profunda da cidade — ummonumento de graça, unindo a mediação realizada por Deus com a
conquista que o homem empreendeu. Isto faz parte do que pode ser
descoberto no fato de João ter adotado as jóias sagradas do Antigo
Testamento.
Sem dúvida, seria incorreto separar o significado destas pedras da profecia abrangente de Jacó acerca de seus doze filhos. Talvez seusignificado mais profundo esteja ligado com a lembrança desta profecia. Neste caso elas seriam um memorial ou, talvez, sejam um sinal
contrário. Talvez sejam um apelo para que os filhos obtenham asvirtudes a eles negadas por Jacó. A pedra de Dã expressa sabedoria e
retidão no falar. A de Rubem, a devastação e a violação dos direitos do
Pai. A pedra de José pode ser a de bênção cumprida, e a de Benjamim pode ser a pedra de dilaceração e conquista sangüinária.
Todavia, as doze tribos de Israel não são os alicerces ou
fundamentos da cidade. Sim, pois os primeiros nomes agora foram
substituídos pelos nomes dos doze apóstolos. A tentativa de Oleaster
de descobrir que pedra correspondia a que apóstolo pode ter sido
infantil, mas essa substituição por si mesma nos fornecería alimento
para muita meditação. Os nomes dos filhos de Israel estão agora
gravados nas portas da cidade. Para entrar, a pessoa precisa tornar-secomo Israel, a pessoa precisa ser o Israel de Deus. Israel, porém, não é
mais o alicerce. Este direito é reservado somente aos que levaram as
palavras de Cristo, o seu evangelho, aos que foram instrumentos de
juízo e misericórdia, ao anunciarem as boas novas à humanidade, e
lançaram os alicerces da igreja. Agora eles se tornaram para sempre as
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bases dos muros que rodeiam a nova criação de Deus: um monumento
de glória dado ao homem, por sua luz e perfeição.O povo ostentara a Palavra de Deus, mas agora os apóstolosassumiram esse papel. Talvez devamos concluir deste fato que, natradição mística, estas doze pedras eram visualizadas como a totalidadeda mensagem de revelação, indicando a estrada que leva doarrependimento à ressurreição e, talvez, devamos ver nela umaconfissão de fé, uma declaração teológica. Desta forma, desde os
primórdios de Israel como nação, a profecia e o anúncio mediante a
palavra e o julgamento divinos estiveram presentes no coração dotemplo, no coração do lugar santo.
Contudo, as Escrituras capacitam-nos a darmos mais um passo paraentendermos o simbolismo destas pedras preciosas. A lista que temosestado a estudar é encontrada não apenas em Êxodo e Apocalipse, mastambém em Ezequiel (28.13). Ela não é completa, visto que sãomencionadas apenas nove pedras pelo profeta, em vez de doze, mas sãoexatamente as mesmas de Êxodo, e a lista é prefaciada por estas
palavras: “De todas as pedras preciosas te cobrias”. Portanto, esta lista provavelmente não tinha a intenção de limitar. Todavia, deve ela serconsiderada em relação com as pedras preciosas do peitoral? Umhistoriador necessariamente levantaria esta questão, e a sua respostaseria a seguinte: o texto de Êxodo não data da época de Moisés; provémda “quarta fonte”, escrita no sexto século, sob a direção de Ezequiel.Assim, as vestimentas do sumo sacerdote foram decididas por membros
da “escola” de Ezequiel. Neste caso ele devia estar bem familiarizadocom o peitoral e suas pedras. Como se pode duvidar de que, se Ezequielreproduz a lista em uma de suas profecias, o faz de propósito e sabeexatamente o que está fazendo: ele tem em mente a nova instituição e,talvez, até a esteja anunciando. Quanto aos que não reconhecemabsolutamente nenhum valor nesta crítica histórica, considerando quea lei e as vestimentas dos sacerdotes foram estabelecidas no deserto,em algum tempo entre 1300 e 1200 a. C., eles vêem as palavras de
Ezequiel como inspiradas por Deus, enxergando na sua menção das pedras um propósito de Deus e uma referência ao peitoral do sumosacerdote. Em que profecia é encontrada essa enumeração das pedras
preciosas? A quem estavam elas adornando, na mente de Ezequiel? AsEscrituras sempre terão novas surpresas para nós: o príncipe de Tiro:“Filho do homem, dize ao príncipe de Tiro: Assim diz o Senhor Deus...
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estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te
cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante... tu eras querubim da guarda;ungido, e te estabelecí; permanecias no monte santo de Deus; no brilhodas pedras andavas... na multiplicação do teu comércio se encheu o teuinterior de violência, e pecaste; pelo que te lançarei profanado fora domonte de Deus, e te farei perecer, ó querubim da guarda, em meio ao
brilho das pedras”. Assim, o anjo daquela cidade, cujo poder e sedução já estudamos e descrevemos, que inspirou o homem a se tornarconstrutor e que está sujeito aos juízos de Deus, é o mesmo que é
adornado com as pedras preciosas que encontramos na nova Jerusalém.Que meio mais adequado podería ser usado para dar a entender queele era um poder celestial que havia começado a sua obra de revolta nomundo e que se entregara a Deus? Que maneira melhor se acharia paradizer que essas pedras simbólicas lhe haviam sido tiradas porque elehavia empreendido aquela própria obra condenada por Deus? Quemaneira melhor de declarar que a cidade do homem nunca é alicerçadana presença do Senhor nem na verdade do homem? Nem no amor deDeus nem na misericórdia do homem; nem na justiça do reino nem notemor de Deus. Essas pedras são tiradas do príncipe de Tiro porque acidade, obra dele, está alicerçada na ausência de Deus e na falsidadedo homem, na dureza do coração e em um espírito de poder, eminjustiça, em medo. Mas essas são também as mesmas pedras que Deusmanteve reservadas através da história, miseravelmente representadasna imperfeição das pedras engastadas no peitoral, que encontram o seu
verdadeiro lugar e significado quando a cidade do homem é tirada dasmãos do anjo que se revoltou e é transfigurada, para se tornar a cidadedo Senhor —uma cidade onde tudo voltou à sua natureza eterna, ondetoda luz reflete a luz eterna e onde reina a ordem.
* *
Finalmente, estudaremos dois símbolos pelos quais os escritoresapocalípticos pareciam ter afeição especial: a árvore e a água. No meioda cidade encontram-se um rio e uma árvore: “Então me mostrou o rioda água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e doCordeiro. No meio da sua praça, de uma e outra margem do rio, está aárvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês em
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mês, e as folhas da árvore são para a cura dos povos” (Ap 22.1ss.). Estadescrição concorda quase exatamente com a de Ezequiel (cap. 47). Alitambém o rio flui do centro do templo. Este rio também é de águas vivasque espalham a sua vida por onde flui; as águas amargas e salobras(sinais de pecado e morte) tornam-se doces e saudáveis. Em ambas asmargens crescem árvores que dão o seu fruto a cada mês, cujas folhassão curativas. Podemos dizer, portanto, que as duas visões são
perfeitamente idênticas. Não ficamos abertamente perturbados pelofato de João usar imagens extraídas de Ezequiel. Talvez isto signifique
apenas que a inspiração dada pelo Espírito de Deus era a mesma emambos os casos. Todavia, também é certo que João entendeu a sua visãoem sentido espiritual, e não materialmente, como alguns escritoressustentam no caso de Ezequiel. Também é óbvio que tudo o que Joãoescreve é enriquecido e sustentado pelas idéias evangélicas de águaviva, batismo e salvação.
Contudo, limitaremos o nosso estudo ao que isto significa para acidade. Um item sobressai: a árvore cresce no meio da cidade, na praça
pública, mas também está em ambas as margens do rio (não é coisa fácilde visualizar!). A intenção de João é clara (muito mais clara do que ade Ezequiel — certamente deve ser entendida como um progresso narevelação). As árvores vistas por Ezequiel agora foram reduzidas aapenas uma, e essas árvores com seus frutos maravilhosos e folhascurativas agora obtêm o seu verdadeiro nome — a árvore da vida.Portanto, a árvore é a árvore da vida plantada no meio do jardim do
Éden, da qual Adão podia comer antes de ter desobedecido, mas que posteriormente foi proibida. Ela foi proibida porque, quando a pessoaestá em desarmonia com Deus, separada dele, comer dela é a própriaessência do inferno. Portanto, essa árvore é encontrada novamente (eapenas) na nova Jerusalém. Esta é outra afirmação óbvia do que temosdito acerca da substituição do Éden por Yahweh-shammah.
Todavia, não existe mais nenhuma árvore do conhecimento do beme do mal. Isto significa, em primeiro lugar, que o que foi feito está feito,
que o conhecimento adquirido em rebeldia não é destruído, mas que,mediante a reconciliação com Deus, ele é colocado de volta em seudevido lugar. Da mesma forma como a liberdade volta ao homem emCristo, porém ainda não é uma gloriosa liberdade enquanto estamos naterra, mas um tanto precária, ameaçada e incompleta, assim também oconhecimento do bem e do mal por parte do homem, mediante o
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sacrifício de Jesus, passa a ser parte integrante da nova aliança e devedesabrochar plenamente na cidade santa. Desta forma, a comunhãocom Deus é mais completa do que era no princípio, e o conhecimentodos demônios é substituído pelo conhecimento do amor proclamado
por Paulo: então conhecerei como também sou conhecido” (1 Co13.12). Conheceremos de maneira diferente de tudo o que chamamosde conhecimento hoje em dia, visto que será o conhecimento de Cristo,aprendido quando ele se deu a si mesmo por amor. Este passo avantenos dá uma nova perspectiva da cidade de Deus: ela é o lugar onde
conheceremos por amor. A cidade santa anuncia o triunfo do amor enão o triunfo do conhecimento objetivo, das conquistas intelectuais dohomem, da pirataria que ele exerceu sobre o mundo. Quanto à árvoreda vida que permanece sozinha, a sua função dupla é indicadaclaramente: ela dá alimento mediante os seus frutos e cura através desuas folhas. Aqui temos a plena certeza da vida.
Os mesmos pensadores astutos que notam o absurdo de muros parauma cidade que não é ameaçada por ninguém também apontam para ofato de que, se ali a vida é eterna, não há necessidade de árvore da vida.Afinal de contas, lemos em alguns versículos logo acima que ali nãohaverá mais doença nem morte. Por que medicamentos? Contudo,esses pensadores astutos obviamente são escravos da sua lógica e, comotais, estão excluídos de algumas realidades. Isto acontece porque alógica desses astutos pensadores não é de Deus, como ensina Paulo.
O propósito desta árvore é fazer toda a criação de Deus se lembrar
da longa história da redenção posterior à queda. O seu propósito não éutilitário, mas, mediante a sua própria inutilidade, repetir para ohomem ressurreto, glorificado, vivo com a própria vida de Deus, agrandeza da obra divina, a sua paciência e amor. Por que deveriamosabandonar a tradição cristã desta árvore? Muitos acham que a árvoreno meio do jardim do Éden era o símbolo da cruz de Cristo. Mas aárvore no meio da cidade é a própria cruz! De fato, o termo usado notexto grego é “o madeiro da vida”. Não é ela uma reminiscência do
madeiro em que foi pendurado o Senhor crucificado? Ela é o símbolovivo, bem no centro da cidade, da cura e da nutrição que os homensreceberam de Cristo, em sua morte. Ela dá o seu fruto indefinidamente,doze vezes por ano, símbolo do fruto que outrora foi pendurado na cruz.Assim, o Deus que é tudo em todos ainda continua sendo o Deusredentor, o Deus cujo símbolo entre os homens é preservado no meio
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daquela obra adotada por Deus.
Outra confirmação deste fato é o próprio rio —água da vida, águaviva, fluindo do trono de Deus ou do templo, espalhando saúde e pureza
por onde chega. A imensidade do mundo representada pelo mar étransformada por esse rio. Aqui outra vez nos encontramos com a idéiade que a nova Jerusalém é verdadeiramente a capital da nova criaçãoe o elo entre as duas é o rio, fluindo perenemente da cidade, levando
para a criação circunvizinha a comunhão com aquele que reina na
cidade. “Onde o rio toca, tudo revive”. O rio flui do trono de Deus e do
Cordeiro. Que visão perfeita da torrente perpétua de vida, fluindo daTrindade, para infundir plenitude de vida por onde passa. Assim, vida
eterna não é a fixação da vida em um instante que dura para sempre,
não é imóvel, granito imutável, nem uma imobilidade fria, nem a fusãode tudo em um grande todo. Ela é evolução, vitalidade, uma renovaçãorápida como uma torrente borbulhante vinda das montanhas, juventude
perene recriada pela comunhão com aquele que é a própria Vida.Podemos evitar, quando nos defrontamos com a claridade e
simplicidade da imagem usada, quando nos defrontamos com a
multidão de imagens diferentes que convergem, se sobrepõem,
confirmam e sustentam umas às outras —podemos evitar as palavras
de Cristo?Os historiadores dizem que Ezequiel apresentou esta visão comum
significado histórico, e estava se referindo apenas à transformação doMar Morto. Outros, que crêem em um milênio aqui na terra, acham
que este versículo se cumprirá nesta terra e que todos veremos esse rio,como um rio adoçando os oceanos que conhecemos tão bem. Contudo,como alguém pode esquecer o pensamento tão freqüentemente
expresso, por exemplo, por Jeremias (escolhido exatamente porque ele
não é um autor apocalíptico): “O nome dos que se apartam de mim (o
Senhor) serão escritos no chão; porque abandonam o Senhor, fonte das
águas vivas” (Jr 17.13)? Aqui vemos a oposição que existe entre o nosso
mundo moderno, carnal, e o mundo transformado pela fonte de água
viva. O mesmo pensamento está em Jesus, levando-o a dizer: “Sealguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz
a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7.37,38). Este
rio deve ser símbolo da fé total e absoluta que caracteriza a cidadecriada por Deus. Ela flui da cidade e propicia purificação em Jesus
Cristo a toda a terra e a todos os céus. Ela também corresponde aos
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quatro rios que fluem do Éden. Contudo, ao mesmo tempo em que eles profetizavam a queda, este rio é a realidade da vida eterna, porque neleo batismo se torna uma realidade. O que era apenas um sinal visívelagora é realizado em plenitude. Passamos para além da morte,atravessamos a morte com Cristo e estamos de posse daquilo que aságuas do batismo somente prefiguravam. Com Cristo deixamos a morte
para trás, e isto é o que significa o rio de águas vivas, bem ali no coraçãoda nova criação, como reminiscência da história da salvação. Nestacidade, portanto, encontramos que o rio é um sinal de vida. A cidade
tornou-se o mundo da vida, a cidade mais nova e de maior frescor quese pode encontrar. O símbolo aqui é o mesmo que nos é dado porocasião do batismo, para todos os dias de nossa existência miserávelaqui neste mundo. A terrível mistura feita pelo homem é reordenada
pela graça e pela benevolência, e pelo ato de Deus, aceitando eagraciando a cidade escolhida com a sua presença. A ordem disso tudoestá além da capacidade de nossas mentes, sendo exprimível tãosomente por figuras de linguagem. Mas, agora, os subúrbios detestáveise gangrenados que tenho de atravessar, as cabanas dos trabalhadorescom sua pintura descascada e camadas permanentes de sujeira, os
barracões de ferramentas despencando sobre torrentes provindas dosesgotos e córregos que exalam mau cheiro dos lavatórios e banheiros,e o ferro retorcido que constitui o melhor material de construçãoencontrado pelo homem — tudo isso já se foi, transformado em ummuro de ouro puro, um novo limite para a cidade, atravessada pelo rio
de águas vivas como por um cristal eterno.
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7 Alan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Este capítulo apresenta um método cuidadoso e uma abordagem
sistemática que o tornam muito útil. Aqui, o leitor encontrará uma
discussão exegética cautelosa e detalhada acerca da morte, do estado
intermediário e da ressurreição. O autor tem como método rastrear
sistematicamente cada um desses tópicos através do Novo Testamento, primeiro nos sinóticos, depois em João, a seguir em Atos, Paulo e, porfim, nos demais escritos neotestamentários. Em cada tópico, o autor
discute as passagens centrais e agrupa os temas principais.
A quantidade de informações reunidas sobre nosso estado do porvir é impressionante e mostra como o cristianismo é uma religião
do futuro. A Bíblia não menciona o futuro apenas aqui e ali. Pelocontrário, o Novo Testamento está repleto de passagens que descrevem
nossa vida futura com Deus. Embora a esperança cristã esteja ancorada
no passado, na cruz de Cristo, o cristianismo como um todo é umareligião voltada para o futuro. Cada vez que participamos da ceia, por
exemplo, não apenas lembramos a cruz, mas também olhamos para o
futuro, para o dia em que todas as conseqüências da cruz estarão
plenamente concretizadas e transformarão o mundo. O cristianismo, portanto, é uma religião utópica, pois espera um futuro melhor em que
o homem estará em paz com Deus, com o mundo e consigo mesmo. Nos
dias de hoje, mais de uma filosofia tem desenvolvido uma visão do
mundo baseada numa secularização dessa esperança cristã no futuro.Dentre elas, a que tem tido maior aceitação é o marxismo, que troca a
esperança num reino de Deus futuro por uma sociedade materialista
em que não haverá opressores nem oprimidos. O marxismo nunca
explica como essa mudança tão radical ocorrerá no mundo e na
natureza humana. A Bíblia aponta para Deus como a verdadeira
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resposta para tal esperança. É apenas pelo Seu poder que veremos odespertar de uma nova era em que serão realizadas todas as esperançasmais ardentes do homem. É sobre os primeiros movimentos dessa eraque Guthrie fala com tanta clareza.
Este capítulo faz parte de New Testament Theology, do mesmo autor, pp. 818-848, publicado em 1981 pela Inter-Varsity Press, na Inglaterra. Trecho traduzido na íntegra por Adiei Almeida de Oliveira.
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7 Donald Guthrie
A VIDA APÓS A MORTE
Neste capítulo nos preocuparemos principalmente com o assuntoda ressurreição dos crentes e da imortalidade, bem como com asevidências de um estado intermediário. O assunto da ressurreiçãosempre foi importante entre os judeus e causou uma divisão marcanteentre os fariseus e saduceus.1 Os primeiros a aceitavam (bem como os
essênios), mas estes últimos a rejeitavam. É em contraposição a esse pano de fundo que o ensinamento específico de Jesus2 precisa serconsiderado.
OS EVANGELHOS SINÓTICOS
A ressurreição do corpo
Em vista da controvérsia existente entre os saduceus e fariseusacerca deste assunto, é razoável começarmos considerando a tentativadestes últimos para apanhar Jesus numa armadilha, com uma perguntacapciosa (Mc 12.18-27 = Mt 22.23-33 = Lc 20.27-40). A perguntatinha o objetivo de testar as idéias de Jesus acerca de uma ressurreiçãofísica. Se certa mulher havia sido casada com sete irmãos, de qual deles
seria ela na ressurreição? Como resposta, Jesus ressalta as idéiaserradas deles acerca da ressurreição. O casamento não faz parte doestado ressurreto, o qual é comparado com o dos anjos. A declaraçãoadicional de Jesus, de que Deus não é Deus de mortos, mas de vivos,registrada em todos os evangelhos sinóticos, está baseada na relaçãocontínua entre Deus e Abraão, Isaque e Jacó.
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184 • IMORTALIDADE
O método de debate é tipicamente rabínico. Jesus está indicandoque a própria expressão “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”, com suavigorosa confirmação no Antigo Testamento (Êx 3.6), pressupunha queos patriarcas ainda estavam existindo de uma forma ou outra.5
Embora o método de argumentação possa parecer estranho, nãohá como negar que Jesus estava afirmando a existência de um estadode ressurreição, em oposição aos saduceus.6 No relato de Lucas, as
palavras de Jesus são mais explícitas acerca do estado de ressurreiçãodo que no relato de Marcos ou Mateus. Ele fala dos que são “havidos
por dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre osmortos”. Jesus assevera decisivamente que os mortos são ressuscitados.É também Lucas quem registra as palavras de Jesus acerca daressurreição dos justos, quando serão recebidas recompensas pelas
boas obras (Lc 14.14).Outras palavras envolvendo os patriarcas encontram-se em Mateus
8.11s. = Lucas 13.28s., onde se diz que muitos virão do Oriente e doOcidente para sentarem-se à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino,
enquanto “os filhos do reino” serão consignados às trevas exteriores, para chorar e ranger os dentes. Aqui, mais uma vez, a linguagem usada pressupõe algum tipo de ressurreição física.
Quando, no Sermão da Montanha (Mt 5.29s.), Jesus faz comentários acerca do adultério, ele fala da possibilidade de “todo o corpo”ser lançado no inferno. Além disso, Jesus adverte os seus discípulos atemerem aquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no
inferno (Mt 10.28), o que mostra mais uma vez a importância corporalou física da vida futura. Nos evangelhos sinóticos encontramos muito pouca informação
acerca da vida depois da morte, mas o que temos é enfático emafirmá-la. Jesus, entretanto, não apresenta dados acerca da natureza docorpo da ressurreição ou sobre a natureza da morte, temas estesmencionados nas epístolas paulinas. No Evangelho de João, há algumas
palavras importantes que lançam mais luz sobre esse assunto e ajudam
a complementar a apresentação sinótica.Surge outra interrogação. Será que Jesus apoiou a idéia da
imortalidade da alma? Esta idéia como coisa distinta da ressurreiçãodo corpo é essencialmente grega, expressa, por exemplo, em Platão.7Ela surgiu, em parte, da crença de que o corpo, sendo matéria, eramaligno e, portanto, mortal. De acordo com esta opinião, todas as
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A VIDA APÓS A MORTE • 185
pessoas são essencialmente imortais em suas almas, mas não em seuscorpos. O Novo Testamento, contudo, não apóia uma dicotomia tãoclara. De fato, não há nada de relevante acerca desse assunto nos
evangelhos sinóticos, a não ser as passagens mencionadas acima, das
quais nenhuma a apóia.8 Este tema requererá maiores comentários,quando for considerada a doutrina de Paulo acerca da vida depois da
morte (vejapp. 194ss.).
O estado intermediário
Em seguida, voltamos a nossa atenção para as idéias acerca do
estado intermediário. Esta é uma expressão usada para designar oestado de existência entre a morte do crente e a ressurreição no último
dia. Embora não encontremos nenhum detalhe direto a respeito dissonos evangelhos sinóticos, há certas passagens importantes que
merecem a nossa atenção. No Antigo Testamento, o Sheol era
considerado a habitação de uma existência de sombras. Contudo, no período intertestamentário, ele passou a ser considerado um estágio
entre a morte e o juízo. Nos ensinos de Jesus, Sheol, palavra hebraica
correspondente à grega Hades, ocorre três vezes nos evangelhos
sinóticos (Mt 11.23; 16.18; Lc 16.23). Ao dizer que Cafarnaum seria
derrubada até o Hades, Jesus estava indicando a sua completadestruição, caso em que Hades é usada de modo figurado. No segundo
texto, a igreja é mostrada como inexpugnável contra as portas do Hades,
que aqui parece dar a entender uma oposição humana — outro uso
metafórico.A terceira ocorrência é a Parábola do Rico e Lázaro (Lc 16.19-31),
que pressupõe uma divisão na morada dos mortos, com um abismo
intransponível entre as duas partes divididas. Algum paralelo a estaidéia é encontrado no Livro de Enoque e parece ter sido comum entre
os judeus daquela época.9 Seria precário considerar esta parábola como
base suficiente para deduzir dela a natureza da vida após a morte, daforma como era entendida por Jesus, pois sua intenção clara não era
doutrinária, mas moral. O foco está na vida egoística do rico. A parábola
não fala nada acerca da possibilidade de aquele homem mudar a sua
condição; de fato, dá a entender o contrário. O único fato certo arespeito da vida além-túmulo que emerge dessa parábola é a realidade
da sua existência.10 Ela não teria sentido, se a vida além-túmulo fosse
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por si mesma um mito. O estado ou condição dos que já partiram, alémdisso, está diretamente ligado ao seu comportamento nesta vida, o quelevanta a questão de a parábola ter pretendido ou não ensinar que
haverá uma inversão total de condição na vida futura. Não se pode
sustentar que Jesus pretendia ensinar isto, não importando quaisfossem as circunstâncias.
No caso do rico, o centro da parábola não é o fato das suas riquezas,
mas o que ele fez com elas. Ele era inteiramente egoísta e indulgente para consigo mesmo e não se preocupava nem um pouco com as suas
responsabilidades sociais. De fato, ele era um representante típico damaneira como os saduceus consideravam a vida.11 Estava claro que
ele jamais havia considerado que o seu comportamento durante a suavida afetaria a sua existência futura. Provavelmente ele não cria em umavida além-túmulo, como sabia que seus irmãos também não criam.
Além disso, ele é lembrado de que estes não iriam crer, mesmo que um
dos mortos voltasse.1 Aqui, mais uma vez, presume-se que o
testemunho das Escrituras (Moisés e os profetas) era suficiente para
demonstrar a vida depois da morte, não por causa do ensinamentoexplícito deles acerca do assunto, mas por causa da sua revelação sobre
a natureza de Deus (como na controvérsia de Jesus com os saduceus, já mencionada).
Outra passagem que tem alguma relevância para esta nossadiscussão é Lucas 23.42s., em que Jesus assegurou ao malfeitor
moribundo que estaria com ele naquele mesmo dia no paraíso.13 Visto
que se trata de uma resposta ao pedido para que Jesus se lembrassedaquele homem quando entrasse no seu reino, ela levanta a questão dorelacionamento entre o paraíso e o reino. Têm sido propostas duas
explicações possíveis para esta passagem. Uma é a de que paraíso é uma
esfera interina em que tanto o malfeitor quanto Jesus esperariam o
reino. A outra é de que o paraíso é sinônimo de céu, e que Jesus entraria
no seu reino naquele mesmo dia. Visto que paraíso, no período
intertestamentário, passara a ser considerado como lugar de descanso
intermediário para as almas justas, isto confirmaria a primeirainterpretação.14 Não obstante, em 2 Coríntios 12.4 e Apocalipse 2.7,
paraíso é usado como símbolo ou sinônimo de céu, o que confirmaria
a segunda hipótese.
Ambas as interpretações suscitam dificuldades acerca daressurreição de Cristo e da sua parousia. O máximo que pode ser dito
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A VIDA APÓS A MORTE • 187
é que esta passagem tem possibilidade de suprir evidências do estado
intermediário, mas ela não o faz necessariamente. O que é mais certoé que o malfeitor, presumindo-se que o seu pedido incluía arrepen
dimento, estaria na presença de Cristo depois da morte.1
A atitude em face da morte
Estaria incompleta a nossa discussão do que acontecerá depois
desta vida, se não discutíssemos a morte. Indubitavelmente a crença deuma pessoa acerca da vida além-túmulo afeta a sua atitude para com a
morte. Embora muitos evitem o assunto da morte e consideremmórbida qualquer pessoa que enfrente os problemas que ele suscita,
Jesus nunca adotou uma abordagem evasiva. Tanto o seu ensino como
o seu exemplo estão cheios de inspiração quanto a este assunto. Em
seus dias, a vida humana tinha pouco valor, e a morte violenta eraocorrência comum. As crianças chegavam até a brincar nos funerais (Mt
11.16s.; Lc 7.32), tão desinibida era a atitude geral com respeito a esseassunto. Na narrativa de Lucas a respeito da natividade, Simeão
expressa o desejo de partir em paz depois de ter visto o Cristo (Lc
2.25-35). A sua atitude em relação à morte foi afetada pelo seuconhecimento do advento de Cristo. No cântico de Simeão, a referência
à espada que traspassaria a alma de Maria leva a paixão de Cristo Jesus
a uma proximidade muito grande com a sua vinda.Quando “os mortos” são mencionados nos sinóticos, a palavra
geralmente está no plural, indicando uma idéia coletiva de morte.
Embora a morte ocorra a cada pessoa individualmente, ela é coletiva
no sentido de que ninguém é excluído. A morte violenta caracteriza
algumas parábolas (Mt 21.39; 22.6). Jesus lamenta o assassinato dos
profetas (Mt 23.37) e prediz que alguns dos seus discípulos sofreriam
morte violenta (Mt 24.9; Lc 21.16). O nosso interesse, todavia, é
considerar a atitude de Jesus com respeito à morte propriamente dita.
Aqui notamos que ele não apoiou o ponto de vista de que sofrimentoe morte eram evidências de pecaminosidade especial (como, porexemplo, os casos citados em Lucas 13.1-5). Embora, de conformidade
com a lei mosaica, a morte fosse considerada contaminadora, a ponto
de qualquer pessoa que tocasse um cadáver ser vista como contaminada
(cf. a caiação de túmulos: Mt 23.27), Jesus não ensinou essa idéia. De
fato, ele não disse nada acerca dos efeitos corruptores da morte. Ele
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188 • IMORTALIDADE
mantinha respeito pela morte, sem se tornar obcecado por ela.
Além disso, precisamos considerar o significado de “dormir” comofigura da morte. Esta idéia era conhecida e comum no pensamento
hebraico.16 Ela encontra expressões em alguns casos nas palavras de
Jesus. No Antigo Testamento, o conceito de “dormir”, quando aplicado
à morte, sempre aparece em contexto que mostra que ele está sendousado metaforicamente. No período intertestamentário, ele também
foi usado como sinônimo de morte. Mas, no relato da ressurreição da
filha de Jairo, Jesus diz acerca da menina que ela “não está morta, mas
dorme” (Mt 9.24 = Mc 5.39 = Lc 8.52). As carpideirase outras pessoasque se lamentavam ali não acharam que ele estava igualando sono e
morte, pois riram, zombando dele. Por outro lado, não faria sentido
esse incidente todo, se Jesus queria dizer meramente que ela estava emcoma. Todos os evangelistas retratam o incidente como ressurreição.
Como deve ser entendida, então, a metáfora do sono? Tem sidosugerido que “sono” era uma descrição da morte do ponto de vista deDeus.17 Contudo, isto subentendería um estado de “sono” entre a
morte e a ressurreição, opinião que não parece ser confirmada emoutras passagens dos evangelhos (c/. por exemplo as palavras de Jesusacerca do paraíso para o ladrão moribundo, que pressupõe umaexperiência consciente). Parece melhor reafirmar que, do ponto devista dos que se lamentavam, aquela morte acabaria sendo um “sono”, porque a menina estava para ser despertada dela. Isto vem a ser umanova forma de encarar a morte, em virtude do poder de Cristo, o qualnão seria detido por ela (veja a próxima divisão, onde usamos umaanálise semelhante com respeito à morte de Lázaro).
Alguns comentários precisam ser feitos quanto à atitude de Jesus
em relação à sua própria morte. Já foi demonstrado que ele a predisse
e a considerou como estando ligada ao pecado do homem. Ele sabia,
portanto, que a sua morte possuía significado especial. Há diferença
entre a maneira como Jesus encara a morte e a maneira como outras pessoas o fazem, com respeito ao seu significado. Contudo, havia
diferença no encarar a experiência física da morte? Alguns eruditos18enfatizam que a “tristeza” que Jesus experimentou ao pensar na sua
paixão (no Getsêmani: Mt 26.38 = Mc 14.34 = Lc 22.44) foi
ocasionada pelo medo da morte física. De fato, costuma-se dizer que o
medo da morte por parte de Jesus o ligaria com a verdadeirahumanidade, pois todos precisam morrer, e a maioria tem medo damorte.
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parte da ressurreição do corpo. De fato, ao declarar “eu sou aressurreição”, Jesus dá a entender que o seu próprio corpo daressurreição será tomado como padrão e exemplo para a ressurreiçãodos crentes.19
A outra passagem é João 5.25-29, onde a ressurreição estáintimamente ligada ao juízo. Jesus está descrevendo um acontecimentofuturo: “Vem a hora” (w. 25, 28).20 Este acontecimento é ulterior-mente designado como ressurreição da vida e ressurreição do juízo (v.29). A idéia de que “vida” aqui é simplesmente um conceito espiritual
é excluída pela descrição da abertura dos sepulcros. Certamente esta passagem confirma o ponto de vista de que a ressurreição aplica-se atodos, embora seja feita uma clara distinção entre os que fizeram o beme os que praticaram o mal. Neste caso, a “vida” resultante é contrastadacom a “condenação” resultante. É importante notar que Jesus nãosepara no tempo a ressurreição dos justos e a dos injustos, seja em Joãoou nos sinóticos. Presume-se que ambas acontecerão simultaneamente.
O estado intermediário
Já vimos que os evangelhos sinóticos apresentam poucasinformações acerca do estado intermediário. No Evangelho de João, háainda menos. Algumas pessoas têm considerado João 14.2 — “vou
preparar-vos lugar” —como referência a algum lugar especial que podeser identificado com o estado intermediário.21 O contexto enfatiza a
expectativa de que “onde eu estou estejais vós também” e pressupõeuma entrada imediata dos justos na presença do Pai. Um temasemelhante é expresso em João 17.24, quando Jesus ora para que osque o Pai lhe dera pudessem estar com ele onde ele iria estar. Naqueleestado, eles veriam a glória que o Pai havia dado ao Filho. Não hánenhuma sugestão de que se passaria algum intervalo de tempo antesde o crente poder estar com Cristo em seguida à morte, embora
admitamos que isso não é especificamente excluído.22 O ponto centralencontra-se decisivamente na bem-aventurança de estar com Cristo,sendo muito difícil que isto se refira a um estado temporário ou deinconsciência.
Há poucas passagens no Evangelho de João que se relacionam aoassunto da morte. Jesus disse: “Se alguém guardar a minha palavra, nãoverá a morte, eternamente” (8.51). Não é de admirar que os judeus
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A VIDA APÓS A MORTE • 191
que afirmavam que Jesus tinha um demônio achassem que estas palavras confirmavam a sua opinião. Eles pensaram claramente queJesus estava propondo uma forma de fuga da morte física. Elesmencionam que até Abraão e os profetas haviam falecido. Comoresposta, Jesus não elucida este ponto, mas torna-se claro, con-siderando-se a seqüência, que ele não estava pensando na morte física.É neste contexto que ele diz: “Antes que Abraão existisse, eu sou”(8.58).24 Estas palavras não nos falam nada acerca da morte, mas seconcentram no caráter de Jesus. É digno de nota o fato de que, embora
Jesus tenha dito “ver” a morte, os seus críticos alteraram a palavra para“provar” (8.52), presumivelmente por ter o mesmo significado.25 Jesusqueria dizer que os seus seguidores teriam uma postura totalmentediferente da abordagem das outras pessoas quanto à experiência damorte, uma experiência que removería dela os seus terrores. Umainterpretação alternativa seria presumir que Jesus estava se referindoà morte espiritual, que os seus seguidores não experimentariam. Isto é
possível, mas não há nada no preâmbulo que prepare os seus ouvintes para tal transferência de pensamento.
Duas declarações na passagem de Lázaro têm relevância para onosso estudo. Em João 11.4, Jesus diz: “Esta enfermidade não é paramorte, e, sim, para a glória de Deus”. Aqui ele deve estar olhando alémdo acontecimento da morte física, para a restauração de Lázaro à vida.Portanto, esta declaração contribui pouco para entendermos a morte,além do fato de que a morte não é obstáculo no caminho da glória de
Deus. A segunda declaração está em 11.11: “Nosso amigo Lázaroadormeceu, mas vou para despertá-lo”. João comenta que os discípulos pensaram que Jesus estava falando literalmente que Lázaro haviaadormecido, embora ele logo em seguida tenha lhes explicado queLázaro estava morto. Notamos uma distinção semelhante entre sono emorte nos sinóticos, pois Jesus está outra vez usando sono comosinônimo de morte. É fundamentalmente a mesma idéia do caso da filhade Jairo. Não é um estado inconsciente, mas um estado de morte do
qual a pessoa pode ser libertada. Nem Lázaro nem a filha de Jairodeixaram no registro evangélico qualquer impressão da experiência damorte através da qual passaram.
Quando consideramos o material sinótico, notamos várias opiniõesacerca da atitude de nosso Senhor em relação à morte. No relato deJoão, o episódio do Getsêmani está ausente, mas uma frase paralela é
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A VIDA APÓS A MORTE • 193
De fato, a declaração de maior importância ocorre no discurso de Paulo
no Areópago. Os epicureus e estóicos haviam ouvido falar quePaulo andava pregando Jesus e a ressurreição (17.18). O discurso
subseqüente no Areópago foi interrompido à primeira menção da
ressurreição dos mortos.26 Paulo fala da ressurreição de um“homem” ou “varão” apontado por Deus (17.31). A forte reação de
zombaria reflete o ceticismo dos ouvintes em relação à idéia toda de
ressurreição. Em um contexto grego, isto deve ser entendido em relaçãocom a ressurreição do corpo, distintamente da imortalidade da alma,
que era aceita pelos gregos que seguiam as idéias de Platão. A ênfasede Paulo na ressurreição de Cristo imediatamente o colocou em
conflito com a opinião que prevalecia em Atenas.27 Visto, porém, que
esta idéia formava o cerne do seu evangelho cristão, ele não tinha
opção, a não ser proclamá-la, mesmo em face do ceticismo. No discurso anterior de Pedro, no dia de Pentecoste, há duas
referências ao Hades (2.27, 31). A primeira é uma citação do Salmo
16.8-11: “Porque não deixarás a minha alma na morte {Hades), nem
permitirás que o teu Santo veja corrupção”. A segunda é um comentário
a respeito desta citação, que previa o seu cumprimento em Cristo. O próprio salmo contém mais verdades profundas do que o salmista tinha
conhecimento. Para ele, tratava-se de uma tensão entre a vida com
Deus e a vida sem Deus. A primeira pelo menos tinha alguma
continuação depois da morte. A ligação entre Hades e corrupção é
importante quando aplicada a Cristo, visto que é impossível atribuir-lhe
corrupção e, portanto, o Hades não tem relevância para ele. Paulo, emseu discurso em Antioquia da Pisídia, registrado em Atos 13, tiraconclusões idênticas do mesmo salmo (13.35-37). Ele estabelece o
contraste entre Davi, que viu corrupção, e Cristo, que não a expe
rimentou. Todavia, nem Pedro nem Paulo relacionam a ressurreição de
Cristo com a ressurreição dos crentes. Ambos se contentam em revelar
o resultado prático da ressurreição de Cristo, isto é, a disponibilidade
do perdão de pecados.Em relação ao tema da morte, Atos não é mais explícito. Ele relata
a morte de várias pessoas. Em alguns casos, a morte parece ter a
natureza de um julgamento divino, como aconteceu com Herodes, por
sua arrogância (12.23), e com Ananias e Safira, por causa de mentira
(5.1ss.). Neste último caso, Lucas comenta meramente que grandetemor caiu sobre a igreja. Em duas ocasiões, as pessoas foram trazidas
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de volta à vida; Dorcas, por Pedro (9.36ss.), e Êutico, por Paulo (20.9).
Em nenhum dos casos alguém expressa surpresa particular, emboraquando Dorcas foi ressuscitada muitas outras pessoas tenham crido noSenhor. Admitimos que, por si mesmos, casos de restauração da vidaaos mortos não nos falam nada acerca da vida além-túmulo.
É necessário outro comentário acerca de Atos, visto que Lucasdescreve o falecimento de Estêvão em termos de “adormecer”, fato queele, não obstante, logo identifica como morte (At 7.60; 8.1). Isto estáem consonância com o uso desta idéia nos evangelhos, conforme citado
acima. É provável que Lucas desejasse contrastar a profunda pazinterior do falecimento de Estêvão com a crueldade e violência dascircunstâncias externas da sua morte. Ele certamente desejava ressaltaro paralelo entre a atitude de Estêvão diante dos seus assassinos(“Senhor, não lhes imputes este pecado”, 7.60) e a oração de Jesus nacruz, que só Lucas registra (Lc 23.34). Parece evidente que a atitude do
próprio Jesus em relação à morte era considerada por seus seguidorescomo padrão para a atitude que deviam ter. Não há sinal, no primeiromártir cristão, de qualquer medo do último inimigo do homem. Aoração seguinte, “Senhor Jesus, recebe o meu espírito!”, é tambémreminiscente da atitude de Jesus na hora da morte ( çf. Lc 23.46).
PAULO
A ressurreição do corpo
Paulo tem bem mais a dizer sobre a vida além-túmulo, mas hámuitas interrogações que ele deixa sem resposta, em especial acerca docorpo da ressurreição. Notaremos, antes de tudo, as evidências daquiloem que Paulo crê quanto à ressurreição dos crentes. Há várias
passagens que estabelecem este fato, sem nenhuma dúvida.
Consideraremos, em primeiro lugar, Filipenses 3.20s.: “... aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nossocorpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória”. Nestadeclaração são enfatizados dois fatos importantes. É predita umatransformação para os crentes, que será efetuada por ocasião da
parousia, e a condição final é física, corporal, assemelhada ao corpo deglória do Jesus ressurreto. Esta íntima ligação entre o corpo da
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A VIDA APÓS A MORTE • 195
ressurreição de Jesus e o corpo da ressurreição dos crentes é a chave
para compreendermos os ensinamentos de Paulo a este respeito.Contudo, precisamos notar que ele não se refere ao corpo de carne de
nosso Senhor exaltado. Isto tem levado muitos estudiosos a argumentar
que ele não cria nisso.29 Em lugar disso, o corpo celestial de Jesus,alegam eles, consiste de “glória”. Visto, porém, que na frase paralela
que descreve os nossos corpos atuais, o substantivo no genitivo
(traduzido como “de humilhação”) não pode ser levado a expressar a
forma de nossos corpos, mas a sua qualidade,30 assim também precisa
ser dado o mesmo sentido qualitativo à palavra “glória”. Neste caso, taldeclaração não apresenta nenhuma indicação quanto à substância, quer
do corpo de ressurreição de Jesus quer dos crentes.
Em 1 Coríntios 15, Paulo apresenta uma descrição extensa do tema
da ressurreição e novamente liga a ressurreição de Cristo com a dos
crentes. A primeira parte do capítulo tem como objetivo estabelecer o
fato da ressurreição de Cristo e indica as conseqüências terríveis para
a fé cristã, se Cristo não tivesse ressuscitado (cf. 1 Co 15.17). Na última
parte, ele aborda um assunto diferente, resumido na pergunta: “Como
ressuscitam os mortos? e em que corpo vêm?” (v. 35). A resposta de
Paulo leva-nos a duas áreas principais: a figura da semente e a
comparação entre Adão e Cristo. Visto que ele usa a analogia de Adão
na primeira parte do capítulo e também em Romanos 5, trataremos
primeiramente do segundo ponto.O paralelo Adão-Cristo tem relevância tanto para a pessoa como
para a obra de Cristo e também lança luz sobre o tema do corpo daressurreição. Em 1 Coríntios 15.22, Paulo diz: “Porque assim como emAdão todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo”,
declaração que algumas pessoas dizem sustentar uma ressurreição
universal. Comentários posteriores a esta idéia serão feitos no
parágrafo abaixo, que trata da extensão da ressurreição, mas o nosso
interesse no momento é notar a convicção de que há um elo definido
entre a vida do Cristo ressurreto e a dos crentes. Neste contexto, a
ressurreição de Cristo é considerada como “primícias” (1 Co 15.20,23).
Ela é uma garantia de que outras a seguirão.
Quando Paulo volta ao paralelo entre Adão e Cristo, em 1 Coríntios
15.45, ele estabelece uma importante distinção entre o primeiro Adãocomo “ser vivente” e o último Adão como “espírito vivificante”.
Embora alguns tenham suposto que Paulo está refletindo a idéia do
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homem celestial, de Filo, ao referir-se a Cristo como o último Adão,
isto pode ser dissipado se considerarmos que o homem celestial de Filoera o primeiro e não o último Adão. Não é impossível que os coríntiostivessem sido influenciados erroneamente por Filo e que Pauloestivesse corrigindo os seus mal-entendidos. Parece natural supor queele derivara a sua inspiração diretamente do Antigo Testamento e que
pretendia chamar a atenção para a diferença essencial entre o potencialespiritual para a humanidade, em Adão e em Cristo. Há uma enormediferença entre receber vida e dar vida.
O fato de que Cristo é descrito como “espírito” vivificante nãosignifica que o Cristo ressurreto não tenha forma física. Esta observaçãotem importância em nossa consideração do corpo da ressurreição docrente, pois se Cristo tem poder para dar vida (isto é, para ressuscitarà vida), pode-se esperar que dê o mesmo tipo de vida que ele mesmo
possui. Como último Adão, Cristo é o representante de todos os quetêm uma medida plena do Espírito. É isto que está em jogo e não umcontraste em termos de substância física entre Adão e Cristo. De fato,tanto Adão como Cristo são descritos como “homem”.
O segundo tema na exposição de 1 Coríntios 15 é a analogia dasemente nos versículos 35-44.33 Ela é feita por Paulo em uma tentativade responder à questão sobre o tipo de corpo que os mortos têm. Estadiscussão deve ser lida e interpretada em contraposição ao ceticismodos gregos quanto à ressurreição do corpo, e é provável que a analogiada semente usada por Paulo tivesse o desígnio de responder a tal
ceticismo que se havia insinuado na igreja. A força da ilustração dasemente está apenas na evidência que ela fornece do poder que Deustem de extrair vida de coisas mortas. Não é uma analogia exata. Elailustra que a nova vida não é apenas uma reprodução da vida anterior,
porém algo melhor. Sem experiência anterior disso, ninguém deduziría,a partir da aparência morta da semente, que nela estivesse encerradauma forma nova e mais gloriosa de vida em potencial. Paulo sustentaque, embora haja continuidade entre o corpo atual de carne e o corpoda ressurreição, também há transformação. Não se pode escapar àconclusão de que Paulo está argumentando em favor de alguma espéciede corpo glorioso que tem relação direta com o presente corpode carne. Isto é confirmado adiante por sua idéia de que cada espéciede semente tem seu corpo característico (v. 38), cujo significado é queexiste uma continuidade definida entre a semente e a planta que dela
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resulta. Um grão de trigo nunca produzirá um pé de cevada. Assim,Paulo estende o seu argumento a outros aspectos do mundo natural —
para o mundo animal e para os corpos celestes — para demonstrarainda mais o poder de Deus em propiciar formas adequadas para assuas criaturas.
Ao aplicar esta idéia, o apóstolo diz que o que está morto éressuscitado “na incorrupção”, “em glória” (v. 42) e “em poder” (v. 43).Ele se torna um “corpo espiritual” (v. 44).35 Essa transformação é,sobretudo, necessária, visto que “carne e sangue” não podem herdar o
reino de Deus (v. 50). Apenas o que é imperecível pode herdar o queé imperecível. Parece haver poucas dúvidas de que Paulo considera este processo como consistindo de uma transformação de substância mortal para substância imortal, com uma continuidade entre elas. A expressão“corpo espiritual”, mencionada acima, é notável, pois está diretamenteligada ao “corpo físico” (v. 44). Embora em ambas ocorra a palavra“corpo”, é clara a intenção de que “espiritual” (pneumatikon) denoteuma espécie de substância inteiramente distinta, em contraposição a“natural” (psychikon).36 Isto precisa ser levado em conta em qualquerconceito do corpo da ressurreição como “carne”. É claro que pode serargumentado que, se Paulo quisesse excluir a idéia de “carne” doconceito de corpo espiritual, ele o teria contrastado com um corpo decarne ( sarkikon) e não com um corpo natural {psychikon)?1 Mesmoassim, a idéia verdadeira da declaração de Paulo é que os nossos corposnaturais do presente ressuscitarão em forma espiritual.38
Outra passagem de algum significado para o nosso estudo éRomanos 8.11: “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitouJesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesusdentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meiodo seu Espírito que em vós habita”. Novamente torna-se claro que égarantida alguma transformação de nossos corpos atuais. Algunsestudiosos negam que isto se refira ao estado futuro e interpretam as
palavras deste versículo em relação à nossa experiência cristã atual.
Embora haja alguma verdade nisto, a íntima ligação entre a ressurreição de Cristo e a revitalização de nossos corpos mortais não pode serencoberta, e não é impossível detectar algum princípio que se apliqueao corpo da ressurreição, mesmo que a ressurreição não seja o pontocentral do contexto. O efeito do Espírito habitando em nós é muitonotável, pois ele chama a atenção para a agência através da qual são
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executados todos os processos de vivifícação. Não apenas na vida atual,
mas em todos os processos de vivifícação e transformação, a obra doEspírito é dominante. Em Gálatas 6.8, Paulo fala de colher vida eterna“do Espírito”, em contraste com colher corrupção “da carne”.40Portanto, o Espírito é uma agência indispensável em todo o processode transformação de um estado de corrupção para o de incorrupção.
Para os nossos objetivos imediatos, a passagem mais importante, bem como a mais difícil, é 2 Coríntios 5.1-10.41 Ela é preparadamediante a clara convicção expressa em 2 Coríntios 4.14: “... sabendo
que aquele que ressuscitou ao Senhor Jesus, também nos ressuscitarácom Jesus, e nos apresentará convosco”. Esta declaração serve de
paralelo íntimo a Romanos 8.11. Em 2 Coríntios 5, Paulo fala do queacontece quando a “nossa casa terrestre deste tabernáculo” é destruída(isto é, por ocasião da morte de nosso corpo físico). Ele afirma que“temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna,nos céus” (v. 1).
Há duas interpretações possíveis para esta declaração. Ela pode serentendida em sentido individual ou coletivo. Geralmente se supõe que“edifício” é o corpo da ressurreição dos cristãos, que abrigará a alma
por ocasião da morte42 ou da parousia. Isto é baseado no pressupostode que Paulo é influenciado aqui pela maneira grega de pensar, vistoque o conceito de “casa” era usado neste sentido nas obras gregascontemporâneas (cf. Filo, depraem. 120; de som. 1.122).
Contudo, esta opinião, que tem desempenhado um papel
importante nas discussões acerca do estado intermediário na teologiade Paulo (veja a divisão abaixo), está aberta a sérios desafios. Outrasocorrências da idéia de um edifício não feito por mãos aparecem emum sentido quase técnico, com significado coletivo. Marcos 14.58apresenta um relatório de pessoas que haviam ouvido Jesus dizer queiria edificar outro templo não feito por mãos. Embora seus ouvintes otivessem entendido mal, é logicamente certo que Jesus estava pensandono “corpo de Cristo” coletivo (isto é, sua igreja). É provável que umaalusão semelhante se encontre na referência de Estêvão ao novo templo(At 7.48s.). Se Paulo tem a mesma idéia em mente, em 2 Coríntios 5.1,ele está afirmando que os que estão em Cristo já têm outro “edifício”.Eles se revestiram de Cristo por ocasião da conversão, e o despimentoda tenda ou tabernáculo terreno não pode afetar a incorporação docrente no corpo de Cristo.43 Tal interpretação implica em que o estilo
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de existência caracterizado pelo “tabernáculo terrestre” precisa ser
considerado coletivo, estado que afeta a todos os que estão em Adão.
Os que ainda gemem por causa das limitações do tabernáculo terrestre,mas que, todavia, estão em Cristo, anseiam por revestir-se da
“habitação celestial” (2 Co 5.2).Outra consideração importante que surge da mesma passagem é o
significado da palavra “nus” (gymnos), no versículo 3. Em geral ela é
vista como referente ao espírito desencarnado (sem corpo) e, portanto,
esta declaração, segundo se alega, sustenta a idéia de uma existência
fora do corpo no estado intermediário (veja a discussão abaixo). Anossa preocupação, agora, é decidir se, de fato, a maneira correta de entender
o pensamento de Paulo é interpretar gymnos desta maneira. Mais uma
vez tem sido dada atenção exagerada a antecedentes supostamentegregos, em detrimento aos antecedentes hebraicos. Pode-se demonstrar que “nus”, no Antigo Testamento, freqüentemente está
ligado com “vergonha” na presença dos juízos de Deus ( cf. Ez 16.37,
39; 23.26,29).45 Portanto, a expressão precisa ser considerada como de
significado ético, e há apoio para esta idéia em outras passagens do Novo Testamento {cf. Rm 10.11; 1 Jo 2.28). Então , a idéia de
“revestir-se” (endyõ) teria relação com o fato de o crente estar no
contexto do corpo de Cristo por ocasião do juízo.
O terceiro fator que surge de 2 Coríntios 5 é a clara associação entre
a obra do Espírito e o pensamento escatológico de Paulo nesta passagem. O Espírito já foi dado como “penhor” ( arrabõn, 2 Co 5.5).
Isto se liga com o que já foi dito acerca do significado do Espírito na
ressurreição dos crentes. Visto que a palavra arrabõn era comumenteusada para designar uma amostra que garantia a qualidade daquilo que
se lhe seguiría, a declaração de Paulo necessariamente significa que a
presença do Espírito agora é uma segurança da vida com a qual será
revestido aquilo que agora em nós é mortal.
Consideraremos agora se Paulo confere algum apoio à idéia grega
de imortalidade da alma como algo distinto da ressurreição do corpo.
Já foi apresentada evidência suficiente deste último fato, mas algunseruditos que interpretam esta evidência no sentido espiritual sus
tentam que Paulo esposava a idéia grega de imortalidade.47 Todavia,
quando Paulo fala de imortalidade, ele jamais a relaciona com a alma.Ele declara explicitamente em 1 Timóteo 6.16 que só Deus tem imor
talidade. Para os gregos, a morte era uma libertação da prisão da alma
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200 • IMORTALIDADE
(que é o corpo); contudo, para Paulo a imortalidade é considerada domde Deus. A idéia de que ele se apegava a um ponto de vista grego acerca
da vida futura precisa ser rejeitada, à luz de seus ensinamentos como
um todo.
Alguns comentários precisam ser feitos sobre o suposto desenvolvimento do ensino de Paulo acerca da ressurreição do corpo. Várioseruditos48 têm reivindicado um avanço em quatro estágios: (i) a forma
judaica de crença escatológica em que se presumia que os corpos
ressuscitariam na mesma forma em que haviam descido ao túmulo.
Supõe-se que isto está implícito em 1 Tessalonicenses; (ii) os primórdios da escatologia pneumatológica, em que se cria que oEspírito ocasionaria uma transformação no momento da ressurreição.Diz-se que isto é verificado em 1 Coríntios; (iii) o avanço do momento
de transformação dramática para o momento da morte. Isto é algumas
vezes ligado com a idéia de que o corpo do crente já está preparado no
céu e baseia-se em 2 Coríntios 5.1-8; (iv) a opinião de que a trans
formação do corpo já começou nesta vida no crente, presumivelmente
baseada e expressa em 2 Coríntios 3.18 e 4.17.49Antes de podermos apoiar qualquer teoria de desenvolvimento em
Paulo, precisaria ser mostrado não apenas que essas presumíveisdiferenças são baseadas em uma forma válida de entender as
evidências, mas também que a melhor interpretação dessas diferenças
é uma seqüência de desenvolvimento. Poderia ser estabelecido umverdadeiro desenvolvimento, se cada novo estágio acarretasse e
envolvesse uma superposição do último. Isto, porém, é umasimplificação exagerada de uma série complexa de dados. As opiniões
de Paulo são expressas apenas em termos mais genéricos. De fato, é
mais razoável supor que ele se expressa de várias maneiras
não-contraditórias entre si, mas que apresentam ênfases distintas. Mais
do que isto, é inconcebível que Paulo tivesse mudado de opinião no
tempo incrivelmente curto decorrido entre 1 e 2 Coríntios.50 Outracaracterística inconcebível é que, visto que o suposto estágio inicial em
1 Tessalonicenses apresenta semelhanças marcantes com os ensinos deJesus, o pensamento posterior de Paulo seria, então, correspondente a
uma correção no pensamento de Jesus. Contudo, não há justificativas
para supor que Paulo tivesse feito isto.
Uma cuidadosa comparação entre 1 Tessalonicenses 4.13ss., 1
Coríntios 15 e 2 Coríntios 4-5 não revela nenhuma modificação
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A VIDA APÓS A MORTE • 201
fundamental na escatologia de Paulo. Os defensores da teoria dodesenvolvimento confundem o efeito atual da vida da ressurreição nocrente com a forma do corpo da ressurreição depois da morte. As idéiasde Paulo, contudo, abrangem tanto o presente como o futuro.
A nossa consideração final visa determinar a extensão daressurreição dos crentes. Precisamos começar com 1 Coríntios 15.22:“... todos serão vivificados em Cristo”. Aparentemente, esta frase dá aentender não apenas uma ressurreição universal, mas também umasalvação universal. O “todos” deste versículo encontra-se em paralelo
com a declaração de que “em Adão todos morrem”. Todavia, estas duasdeclarações podem ser entendidas com o significado de que todos osque estão “em Adão” morrerão, e todos os que estão “em Cristo” serãovivificados. Paulo está afirmando “não a universalidade da lei, mas auniversalidade do seu modus operandi no contexto em que ela atua”.51A ênfase recai não no “todos” em si, mas na palavra “todos” ligada a“em Adão” e “em Cristo”. Esta declaração não nos revela nada acercada extensão da ressurreição do corpo além da sua aplicação aos crentes,
e não se pode considerar que esteja ensinando salvação universal. No mesmo contexto (v. 23) ocorrem as palavras “cada um, porém, por sua própria ordem” ( tagma), e julga-se que elas confirmam a idéiade ressurreição em dois estágios.52 Todavia, visto que o próprio Cristoé uma ordem e os santos ressuscitados são outra, não se encontra aquiapoio para uma ressurreição em dois estágios posterior à ressurreiçãode Cristo.
Não podemos abordar este tema sem levar em conta o ensinamentode Paulo em 1 Tessalonicenses 4.13-18, que inclui o fato de que algumas pessoas que estiverem vivas por ocasião da parousia serão reunidas aosmortos ressurretos, para encontrar o Senhor nos ares (veja pp. 213ss.).Surge a interrogação: esses sobreviventes receberão um corpo daressurreição à semelhança daqueles que são ressuscitados dos mortos? Não parece que Paulo esteja percebendo qualquer dificuldade a esterespeito. Nesta passagem ele não está preocupado com a natureza do
corpo da ressurreição. O centro do seu interesse é a relação entre ossobreviventes e os mortos ressurretos. Os tessalonicenses tinham medode que os mortos fossem colocados em situação de desvantagem porocasião da parousia, mas Paulo sustenta que não haverá distinção entreeles. É justo presumir que ele cria que todos possuirão a mesma espéciede corpo da ressurreição, o que acarretará uma transformação
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instantânea dos que forem arrebatados. Paulo insiste em que todosestarão “com o Senhor” (v. 17), mas não faz nenhum outro comentárioacerca do seu estado. Nesta passagem não há mais sugestão do que em1 Coríntios 15.23, a respeito de uma ressurreição em dois estágios.
É necessário tecer alguns comentários acerca de Filipenses 3.10-14,onde Paulo expressa os seus anseios acerca do futuro. O que deseja elefalar quando diz, em relação às suas aspirações: “... para de algpm modo(ei põs) alcançar a ressurreição dentre os mortos” (v. II)?53 Algunsestudiosos têm interpretado isto como referente a uma ressurreição
especial reservada aos mártires. Mas é claro que esta idéia não pode sersustentada, em vista de Filipenses 3.20-21, onde Paulo afirma que atransformação do corpo, que terá lugar por ocasião da parousia, afetaa todos, e não se faz nenhuma distinção entre os mártires e os outroscristãos.54 Por outro lado, a declaração de Paulo tem sido interpretadacom o significado de que ele estava expressando a esperança desobreviver até a parousia, mas novamente não existem justificativas
para supor que ele tenha confundido seus termos, especialmente pelo
fato de, em Filipenses 1, mostrar-se bastante disposto a partir para estarcom Cristo.
Se eipõs significa “com vistas a alcançar” a ressurreição, então seria possível supor que o apóstolo está expressando o seu reconhecimentode que a profissão da fé cristã pode ser igualada à vida cristã correspondente. Esta convicção está em grande evidência em todas as suasepístolas, mas de forma alguma abre portas para a opinião de que atingir
a ressurreição dependería por completo dos seus próprios esforços. Na passagem de Filipenses, Paulo está apresentando apenas um lado doquadro, contudo uma apreciação séria do seu significado precisa levarem conta o outro lado (isto é, a doutrina paulina de justificação somente
pela fé).
O estado intermediário
Duas questões intimamente ligadas têm sido levantadas a respeitodos ensinos de Paulo, as quais podem ser resumidas com o títulogenérico de estado intermediário. A primeira é: que informação Paulodá acerca da existência posterior à morte do crente, até a ressurreição
por ocasião da parousia? A segunda é: ele apóia a idéia de “sono daalma” durante esse período? Esta expressão é usada para descrever um
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A VIDA APÓS A MORTE • 203
estado existencial da alma, comparável a uma experiência de sono, ouseja, de inconsciência. Logo de início precisa ser admitido que Paulo
não tra ta de nenhum desses temas de maneira frontal. Ele está muito
mais interessado na ressurreição, a qual discute minuciosamente, do
que no estado do crente por ocasião da morte. Não obstante, há certas passagens nas quais ele dá indicações da sua maneira de pensar.
Voltemos a 2 Coríntios 5. lss., que já foi discutido na última divisão,
porque este tem sido o bastião mais importante da exposição do
ensinamento de Paulo acerca do estado intermediário.56 O pensamento
central está nos versículos 6 e 8: “no corpo” como sinônimo de“ausentes do Senhor” e, por outro lado, “deixar o corpo” comosinônimo de “habitar com o Senhor”. Desde a antigüidade presume-se
que “deixar o corpo” relaciona-se com o estado intermediário,57 e istotem forte apoio da maioria dos exegetas modernos. Fica imediatamente
claro que Paulo não pretende que os seus leitores suponham que, por
ocasião da morte, eles serão separados de Cristo. Em Romanos 8.38s.,
ele torna claro que a morte não tem poder para fazer tal coisa. No
presente contexto, as palavras “habitar com o Senhor” devem ter a forçade uma experiência imediatamente seguinte à experiência de “deixar o
corpo”. Portanto, não é válido nenhum conceito de estado inter
mediário que não forneça também uma consciência da presença do
Senhor. No entanto, tem sido questionado se 2 Coríntios 5.lss. deve ser
citado em referência ao estado intermediário. “Deixar o corpo” não
precisa significar nada mais do que separação “das solidariedades docorpo mortal”.58 Neste caso, “habitar com o Senhor” indica o estado da
vida espiritual, mas não dá nenhuma indicação a respeito da forma
“física” dessa condição.Outra declaração de Paulo tem algo a ver com a sua opinião acerca
do estado intermediário. Em Filipenses 1.23, ele expressa um dilema
em sua mente: “... tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o
que é incomparavelmente melhor”. 9 Aqui, mais uma vez, é inegável
que Paulo não está sugerindo nenhuma lacuna entre o momento da partida (isto é, morrer) e o de estar com Cristo. O seu conceito acercado estado intermediário era de um estado existencial em que ele estaria
plenamente consciente da presença do Senhor.60
Todavia, há várias opiniões acerca do ponto de vista de Paulo com
respeito ao estado dos crentes entre a sua morte e a parousia. Estão
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abertas as seguintes possibilidades: (i) os crentes estão existindo emespíritos desencarnados (sem corpo), esperando a ressurreição, quando
lhes serão dados corpos gloriosos e eternos; (ii) os crentes recebem um
corpo “temporário” por ocasião da morte, que será substituído pelo
corpo glorioso da ressurreição, no momento da parousia. Esta opiniãoinclui uma espécie de processo em dois estágios para a ressurreição do
corpo; (iii) uma modificação desta última opinião é que a ressurreição
plena dos crentes acontece por ocasião da morte, e a ressurreição dos
incrédulos na hora da parousia] (iv) outra opinião ainda é que os mortos
entram em um estado de inconsciência até a ressurreição, quando serãoressuscitados e lhes será dado um corpo glorificado.
Não é fácil determinar o que Paulo teria imaginado, se estivesse
sugerindo que os mortos em Cristo subsistem como espíritosdesencarnados.61 De fato, nas epístolas paulinas não existe nenhuma
evidência específica para a idéia de espíritos desencarnados, se for
excluído 2 Coríntios 5. Todavia, também não há nada específico que
exclua esta idéia, contanto que se tenha em mente algum estado
existencial que permita uma plena consciência da presença de Cristo.A segunda proposta de um revestimento do espírito em dois
estágios é difícil de imaginar, porque diminui o significado do corpo
pleno da ressurreição por ocasião da parousia. Não há explicação para
este último, se um corpo temporário é adequado.62 Algumas formas
dessa teoria pressupõem uma espécie de armazém celestial de corpos
preparados para os crentes, na hora da morte, mas isto parece estar
muito longe do modo de pensar de Paulo. Não obstante, esta opiniãotenta explicar como pode ser considerada a existência entre a morte e
a parousia, sem se recorrer a uma ressurreição em dois estágios, mas
deixa sem resposta o problema principal.
A dificuldade que existe com a terceira opinião, de que a
ressurreição do crente tem lugar por ocasião da morte, é que ela parece
envolver uma série inteira de ressurreições e não um único evento, oque parece ser exigido pelas várias referências de Paulo. A única
maneira de evitar isto é afirmar que começa a funcionar umaconsciência diferente de tempo, como se explica abaixo.
A quarta opinião mencionada acima — o sono da alma —requer
exame mais específico, por causa do grande apoio que recentementetem recebido (em especial na obra de Cullmann). O nosso primeiro
interesse é notar as passagens onde Paulo se refere aos mortos como os
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A VIDA APÓS A MORTE • 205
que estão dormindo. O verbo que Paulo usa é koimaomai, que
basicamente significa sono, mas que também era usado no períodointertestamentário para designar os mortos.63 Ele não dá a entender
necessariamente inconsciência.64 O apóstolo usa-o em 1 Coríntios7.39;11.30; 15.6,18,20,51; 1 Tessalonicenses 4.13-15. Em relação a morrer,
ele usa outra palavra ( apothriêskõ) com mais freqüência, o que lhe dá
alguma razão especial para ter escolhido a metáfora do sono nos casos
citados. Notar-se-á que, exceto nas duas primeiras, elas ocorrem em
contextos escatológicos. Em 1 Coríntios 15.18, Paulo está pensandoespecificamente naqueles que dormiram em Cristo. Em duas ocasiões
(1 Co 11.30 e 1 Ts 4.13),65 ele emprega o presente do verbo, e isto temsido usado para sustentar a idéia de uma condição contínua de sono,
distinta de um único ato. Contudo, é provável que nas duas ocasiões ele
esteja pensando em um número contínuo de mortes, caso em que assuas palavras não sustentam a idéia de um sono da alma contínuo. Em
1 Tessalonicenses 4.14, 15, quando Paulo fala dos que morreram em
comparação com os que ficarem, por ocasião da parousia, ele escolhe
a expressão “os que dormem”.66 Ele faz a mesma coisa, ao se referir aCristo como “primícias”, em 1 Coríntios 15.20 (“primícias dos que
dormem”). Ele declara, em 1 Coríntios 15.51, que nem todos “dor
miremos”, mas todos seremos transformados.
Portanto, qual o significado da figura do sono usada por Paulo para
designar a morte? Estará ele dando a entender um estado de sono da
alma anterior à ressurreição? Não é de admirar que ele empregue ametáfora do sono para designar a morte, mas esta aplicação, na maneira
contemporânea de pensar, não tem em si a idéia de inconsciência. Não parece haver razão para supor que Paulo cria que o crente, por ocasião
da morte, cairia em um estado de inconsciência do qual se levantaria
apenas na hora da ressurreição. Isto contradiría o significado claro tanto
de Filipenses 1.23 (estar com Cristo) como de 2 Coríntios 5.8 (habitar
com o Senhor). Estas declarações demandam uma consciência de estar
com o Senhor, e isto deve afetar qualquer exposição da teoria do sono
da alma.67 Neste aspecto, o ensinamento de Paulo concorda com as
palavras de Jesus ao ladrão penitente, em Lucas 23.43 (observe também
a história do rico e Lázaro, em Lucas 16.22s., e o clamor dos mártires
debaixo do altar, em Apocalipse 6.9-11).Parte do problema do ensino do Novo Testamento a respeito da
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206 • IMORTALIDADE
vida futura é suscitada pelo intervalo cronológico entre a morte e a
parousia. Cullmann diz haver uma consciência diferente de tempo navida futura e, se ele está correto, não podemos aplicar a esse intervaloa consciência de tempo que temos agora. De fato, é possível que, do
ponto de vista de Deus, não haja nenhum intervalo, que a ressurreição por ocasião da parousia aconteça imediatamente depois da morte docrente. Mas aqui estamos na área de pensamentos sobre os quais, pelanatureza do caso, ninguém de nós tem experiência. A nossa conclusãodeve ser de que o máximo que podemos nos aproximar da idéia de Paulo
a respeito do estado imediatamente posterior à morte é dizer que eleconsistirá de comunhão com Cristo. Quando vamos além disso,entramos na esfera da especulação.
É notável o fato de que Paulo não fala praticamente nada a respeitoda ressurreição dos injustos, mas não é possível deduzir deste fato queele excluía essa idéia. Pode-se inferir da sua convicção que todos serão
julgados, todavia precisa ser aventada a possibilidade de julgamento deseres incorpóreos. O fato é que Paulo não dá indicação específica doestado dos ímpios. Em 2 Timóteo 4.1, ele fala de Cristo Jesus “que háde julgar vivos e mortos”, o que pode pressupor uma ressurreição deambos, embora ele não faça menção disso. Podemos dizer que a
preocupação dele não é com os destinos finais, mas com o interesse quea vida futura tem para o crente.
A atitude diante da morte
Aqui nos limitaremos à morte física. O que foi dito acima mostraque o apóstolo tem uma abordagem otimista em relação à morte. Eleconsidera que, através de Cristo, a morte perdeu o seu aguilhão,identificado por ele com o pecado (1 Co 15.55, 56). Esta abordagemotimista acerca da morte baseia-se na opinião de que a entrada da morteno mundo foi causada pelo pecado (Rm 5.12ss.) e de que Cristo
efetivamente já tratou da sua causa.69 Paulo não vê mais a morte comoinimigo a ser temido, mas, pelo contrário, como ponto de transição parauma vida mais plena. A sua experiência ostenta esta característica. Eleviveu sob constantes ameaças de morte (1 Co 15.31; 2 Co 1.8; 11.23ss.),
pôde debater friamente se é preferível a vida ou a morte em Cristo(Fp 1.19ss.) e exemplifica um homem que venceu todo medo damorte.70
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A VIDA APÓS A MORTE • 207
É necessário referirmo-nos ainda à morte concebida como
julgamento. Em 1 Coríntios 11.30, Paulo, ao comentar acerca dos que participam da ceia do Senhor de maneira indigna, declara: “Eis a razão por que há entre vós muitos fracos e doentes, e não poucos quedormem” (morreram). Parece que ele está reconhecendo que asenfermidades e a morte poderíam ser evitadas através de uma vida maisdigna. Mas a referência à morte neste contexto deixa-nos perplexos. Há
possibilidade de que Paulo tenha em mente alguma espécie deavaliação disciplinar da morte, paralela à que sobreveio a Ananias e
Safira (Atos 5). É claro que há muitos casos em que Paulo aplica“morte” no sentido espiritual como julgamento de Deus sobre o pecado(Ef 2.1; Cl 2.13).
O RESTANTE DO NOVO TESTAMENTO
Com respeito ao assunto da vida além-túmulo, Hebreus tem poucacoisa explícita a dizer, embora haja certos pensamentos valiosos que
podem servir de indicadores. A crença na ressurreição dos mortos étratada como uma das “doutrinas elementares de Cristo” (6.1,2), umadoutrina básica, sem a qual ninguém poderia ser cristão. Sobretudo, elaestá ligada com “juízo eterno”. Contudo, nenhuma outra explicação édada a respeito da ressurreição. O escritor não se importa com o corpoda ressurreição neste contexto.71 Quando ele fala de Cristo no céu,
refere-se a ele sentado à direita de Deus (1.3; 8.1; 10.12), mas não dánenhuma indicação da espécie de corpo que ele tem.Quando a segunda vinda de Cristo é citada em 9.28, faz-se menção
dos que o estão esperando ansiosamente, mas nenhuma distinção é feitaentre os vivos e os mortos em Cristo (como em 1 Ts 4). Evidentementeisto não representava problema nas comunidades para as quais estacarta foi enviada. Talvez a passagem mais esclarecedora para os nossosobjetivos seja 12.22, que, mesmo sendo uma descrição de uma cenacelestial, não obstante abrange os adoradores atuais (note o verbo“chegastes”). A passagem inteira sugere uma combinação atual deadoradores angelicais com a assembléia dos primogênitos, e os espíritosdos homens justos aperfeiçoados, todos em assembléia na Jerusalémcelestial.72 Aqui não se encontra nenhuma sugestão de existênciainconsciente ou nebulosa para os justos, embora o uso da palavra
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“espíritos” (pneumata) possa dar impressão de uma existência
desencarnada (fora do corpo). Visto que em Hebreus é usada a mesma palavra (1.14) a respeito dos anjos (espíritos ministradores), não se
pode tirar nenhuma conclusão da palavra propriamente dita, em
relação à forma física ou corporal. Seria seguro concluirmos que o
escritor não mostra nenhum interesse no assunto do corpo da
ressurreição e não diz nada a respeito do estado intermediário.
Quanto ao estado futuro dos crentes, o escritor se contenta com a
idéia de “glória” (2.10; çf. também 2.9; 3.3), mas isto não nos revela
nada a respeito da substância com a qual o crente será revestido. De
fato, embora esta epístola se concentre nas realidades celestiais que
estão por trás do culto antigo, e por isso tem uma perspectiva
essencialmente voltada para o futuro, seu objetivo é esboçar a maneira
certa de se aproximar de Deus no presente. Existe uma convicção básica
de que, embora haja um descanso futuro reservado para o povo de
Deus, o assunto mais urgente é o desafio de “hoje” (capítulos 3 e 4). O
restante, sobretudo, não deve ser concebido como prometendoinatividade, visto que o padrão do descanso do crente não é nada mais
do que o descanso sabático de Deus. A epístola em epígrafe é um
exemplo soberbo da mistura dos aspectos presente e futuro, com a
ênfase recaindo no desafio do presente.73
Quanto à atitude em relação à morte, Hebreus expressa a natureza
radical da mudança de atitude que acontece para os filhos de Deus.
Enquanto o medo da morte é natural para os que estão no cativeiro dodiabo, Cristo trouxe libertação (2.14,15). O seu povo não precisa mais
abordar a morte com medo, porque aquele que tem o poder da morte
(isto é, o diabo) está destruído. Se os cristãos temem a morte, é somente
porque não conseguem apreciar o fato de que não estão mais
escravizados a ela. O escritor não tem dúvidas de que essa libertação já
aconteceu.
Em uma epístola essencialmente prática como Tiago, não é de
admirar que se fale pouco a respeito da vida além-túmulo. Uma “coroa
de vida” é oferecida para aquele que suportar a tentação (1.12), e isto
presumivelmente será alcançado na vida futura. De forma semelhante,
os humildes serão exaltados (4.10). Mas Tiago é prático demais para se
deixar levar por especulações acerca do corpo da ressurreição.
Pode-se dizer acerca de Pedro e Judas que o interesse pela
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A VIDA APÓS A MORTE • 209
escatologia, onde ele ocorre, é prático e não especulativo. 1 Pedro
começa mencionando a herança reservada no céu (1.4), mas não falanada acerca dos herdeiros em seu estado ressurreto. Embora diga queo fim de todas as coisas está próximo (4.7), Pedro não acrescenta nadaacerca da parousia, da ressurreição dos mortos ou da relação entre estese os sobreviventes, no fim. Ele parece estar interessado principalmenteno desafio moral que a aproximação do fim deve ocasionar na vidaatual. O clímax que se aproxima também é chamado de “dia davisitação” (2.12), onde mais uma vez esse pensamento é usado para
fazer uma exortação moral (c/. também 1.13).Há uma passagem característica nesta epístola, que, segundo se
pensa, faz referência específica à vida além-túmulo, isto é, 3.19, uma passagem notoriamente difícil, que se refere a Cristo pregando aos“espíritos em prisão”.74 O contexto menciona a desobediência anteriordesses espíritos e os liga com o dilúvio. Algumas pessoas vêem aqui uma
proclamação para os mortos, mas não há nesta passagem nenhumadeclaração que justifique isto. É altamente improvável que esta
passagem se refira à pregação do evangelho para dar aos mortosincrédulos uma segunda chance. Nenhuma outra passagem do NovoTestamento sustentaria tal sugestão. Mesmo que esta interpretaçãoesteja correta, esta passagem não nos fala nada acerca do estado doscrentes depois da morte ou do corpo da ressurreição. Não obstante, a
palavra “pregação” certamente favorece mais uma pregação doevangelho do que uma proclamação de julgamento. Todavia, nenhuma
interpretação é satisfatória, se não a relacionar de algum modo com aépoca de Noé e não tiver alguma importância para os leitores de Pedro. Não pode ser dada aqui nenhuma resposta final. Contudo, parece
bastante razoável supor que o pregador era Cristo (não especificandoa forma em que ele pregou), mas que a pregação foi feita na geração de
Noé.75 Neste caso, os “espíritos em prisão” são os condenados pordesobediência na época do dilúvio, e a arca, instrumento divino desalvação, foi o meio pelo qual Cristo lhes pregou naquela época. Todaa passagem seria parte do apelo de Pedro ao exemplo de Cristo. Estainterpretação não se faz sem dificuldades, mas se ela é aceita, significaque a passagem não apresenta idéias acerca do estado de coisasexistente na vida pós-morte, sem se contar a expressão “espíritos em prisão” que descreve os que haviam sido desobedientes nesta vida. Os“espíritos” (pneumctía) não são definidos de maneira mais detida. A
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descrição de Cristo como estando “morto, sim, na carne, mas vivificadono espírito” simplesmente aponta para seu ser em forma espiritual, masnão deve ser relacionada à sua pregação na antigüidade. Sobretudo, édigno de nota o fato de que aqui não se faz menção do Hades.
Uma segunda declaração feita por Pedro, igualmente difícil, estáem 4.6: pois, para este fim foi o evangelho pregado também amortos”. À semelhança da passagem anterior, tem havido váriastentativas para explicar esta declaração enigmática. O que nos interessaaqui é a opinião de que o evangelho é pregado aos que já estão mortos,
isto é, para os falecidos, quer justos, quer injustos. Se esta opinião écorreta, ela significa que na vida depois da morte haveria oportunidade para a pessoa reagir ao evangelho, mesmo dentre as que não haviamreagido a ele durante a vida. Esta interpretação, quaisquer que sejamas atrações que tenha, não concorda com a redação precisa dadeclaração, pois o fato a que ela se refere é uma ocasião passada de
pregação (tempo aoristo).Uma explicação mais provável é que os cristãos que agora estão
mortos, a quem o evangelho foi pregado no passado, não precisamtemer o juízo,76 pois, embora sejam julgados no que concerce à carne(isto é, eles morreram), eles podem estar certos de uma vida renovadaem um estado espiritual. Esta explicação presume que os “mortos” sãoos que foram maltratados (v. 5) e que essas palavras têm a conotaçãode ânimo para os irmãos, perplexos porque os cristãos não estavamescapando à morte física.77 Neste caso. os “mortos” aqui são
diferentes dos “espíritos em prisão”, de 3.19. Podemos concluir desta passagem, tanto quanto da outra, que as interpretações mais prováveisnão favorecem uma extensão do ministério da graça até o Hades.
A epístola de Judas não contém nenhuma referência à ressurreição.Embora nela haja uma alusão aos anjos decaídos que foramconservados nas trevas até o dia do juízo (v. 6), não há referênciasespecíficas aos mortos ímpios. Judas não oferece nenhuma ajuda pararesolver o problema da vida além-túmulo. O mesmo pode ser dito a
respeito de 2 Pedro, que entra em grandes detalhes a respeito do dia doSenhor (cf. especialmente cap. 3). No entanto, há duas declarações em2 Pedro que merecem a nossa atenção. Em 1.14, Pedro fala de “deixaro meu tabernáculo” e da “minha partida” (v. 15). Nada ele diz acercado estado depois da morte. Em 3.4, a morte é mencionada através dametáfora do sono, mas outra vez nada mais pode ser deduzido acerca
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A VIDA APÓS A MORTE • 211
do que aconteceu aos pais depois da morte.
Yim Apocalipse, livro que se concentra no futuro, não é de admirarque encontremos referências à ressurreição dos mortos. Mas essasreferências suscitam certos problemas. Notamos, em primeiro lugar,que os mártires são vistos “debaixo do altar” (6.9). Tem sido afirmadoque a sua presença debaixo do altar mostra que eles ainda não estavamna presença imediata de Deus, o que não aconteceria antes da primeiraressurreição.79 É provável, porém, que esta dedução esteja errada, poisos paralelos que contêm a expressão “debaixo do altar” na literatura
judaica sugerem que isso pode significar debaixo do trono de Deus e, portanto, na presença de Deus.80 Nada se diz nessa passagem a respeitodo corpo da ressurreição. Os mártires estão vestidos de “vestiduras
brancas”, frase que alguns estudiosos têm pensado referir-se a umcorpo glorificado; mas dificilmente isto pode ser considerado como“vestimenta” para mártires, e é mais provável que se refira às roupasde justiça que Cristo fornece (cf 7.13s.; cf. também 19.8).81 O fato deque eles são descritos como “almas” (psychai) não significa que sejamespecificamente considerados como incorpóreos.82 Esta declaração,
porém, parece indicar alguma espécie de estado pré-ressurreição,embora esteja claro que não se trata de um estado de inconsciência.
Levanta-se um problema da referência à primeira ressurreição,encontrada em 20.4, 5, 13, que parece ser restrita aos mártires. Deacordo com esta passagem, a primeira ressurreição é anterior aomilênio, e a segunda, depois dele. A segunda é para os ímpios e
incrédulos. Naturalmente, a nossa interpretação dos estágios daressurreição dependerá da nossa interpretação do milênio. Se otratarmos como período literal de mil anos, durante os quais Cristoreinará na terra, não há dúvidas de que o “descanso dos mortos”, quenão voltam à vida enquanto não termina esse período, precisa seridentificado com os mortos incrédulos. Se, porém, for feita umadistinção entre os mártires e os outros crentes, esta idéia requererá um
ponto de vista da primeira ressurreição em dois estágios. 3Certamente não existe nenhuma declaração específica dizendo
isto, caso em que a reconstrução feita, seja ela qual for, deve serconsiderada como especulativa. Pode ser alegado, sem dúvida, que estaé a hipótese mais provável para explicar todos os fatos, mas não se podedizer que ela é a única interpretação possível. Se os mil anos não foremconsiderados como literais, mas simbólicos, a reconstrução acima não
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se aplicará. De fato, a opinião de que a teoria de uma ressurreição em
dois estágios é a mais provável precisa ser questionada. Ela envolve uma posição que não encontra confirmação em nenhuma outra passagem do Novo Testam ento. Todas as referências à ressurreição do corpo presumem apenas uma ressurreição. Apenas em Apocalipse 20 é quese faz menção de primeira e segunda ressurreição.
Levanta-se a interrogação sobre a possibilidade de Apocalipse 20ser entendido de qualquer maneira que não subentenda duasressurreições físicas. O problema não surge do fato de Apocalipse 20
ser a única referência a uma ressurreição dupla, pois uma testemunhaúnica não pode ser condenada simplesmente porque está sozinha. O problema se origina da reconstrução que a teoria de duas ressurreiçõestorna necessária, incluindo o pressuposto de que os corpos ressuscitados fisicamente se misturarão com as pessoas não-ressuscitadasdurante o milênio.84
Contudo, se o milênio simboliza o presente reino de Cristo na terra,a primeira ressurreição pode ser considerada como ato espiritual, e asegunda como ato físico. Isto é confirmado pelo fato de que a primeiraressurreição é diferenciada da segunda morte, que com toda a certezadeve ser a morte espiritual (20.6). É digno de nota o fato de que. nãose faz nenhuma menção a corpos em ligação com o milênio, mas só aalmas (20.4). Mais do que isto, a declaração de que elas “viveram”(ezêsan) inclui um verbo que não é usado habitualmente a respeito daressurreição física (embora seja usado assim em Romanos 14.9). De
suprema importância na mente de João é a posição dos que haviam sidoameaçados com o martírio cristão, a quem ele está encorajando em faceda ameaça vindoura. A eles é assegurado que reinarão com Cristo.Apocalipse 20.4 pode ser entendido como incluindo outras pessoasalém dos mártires, visto que João fala também dos que não haviamadorado a besta nem haviam recebido a sua marca. Assim, estes doisgrupos juntos poderíam abranger todos os cristãos mortos.
Nas várias cartas às igrejas em Apocalipse 2 e 3, são feitas promessas aos vencedores (2.7, 11, 17, 26; 3.5, 12,21), e é importante perguntar se estas promessas lançam alguma luz sobre a vida futura.87Certamente os vencedores são crentes em Cristo, e não parece quedenotam um grupo específico no contexto do conjunto dos remidos.Eles podem esperar a vida eterna, a libertação da segunda morte(referência ao juízo), uma relação peculiar com Deus, vestiduras
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A VIDA APÓS A MORTE • 213
brancas (isto é, através de Cristo), um lugar importante na cidade deDeus e uma participação na vitória de Cristo. Contudo, nada se diz
acerca do estado dos crentes depois da morte.88
NOTA ACERCA DO “ARREBATAMENTO”
Como resultado dos claros ensinamentos de Paulo acerca da
parousia e da ressurreição dos crentes, não é de admirar que alguns dos
seus convertidos ficassem perplexos com a posição comparativa doscrentes que haviam morrido antes da parousia e dos que ainda estarão
vivos por ocasião da vinda de Cristo. Isto deu origem ao seu ensi
namento acerca do “arrebatamento”. A expressão “arrebatamento”vem do latim rapio, que significa “tirar com violência” ou “enlevar,
extasiar”, e serve de tradução para a palavra grega harpazõ, em 1
Tessalonicenses 4.17.89 Nessa passagem, Paulo afirma que os que permanecerem até a vinda de Cristo serão arrebatados juntamente com
os cristãos que forem ressuscitados, para estarem com o Senhor (ao
encontro dele) nos ares. A função do “arrebatamento” é dupla: (i) unir
os sobreviventes com o Senhor que vem e (ii) transformá-los no mesmo
estado ressurreto em que os outros estão. O “arrebatamento” é, portanto, uma parte necessária da vinda de Cristo. Não há indicação do
estado do crente arrebatado nem do tempo em que isso ocorrerá. Estas
observações são importantes, em vista da teoria de que o arreba
tamento acontece antes da grande tribulação. Precisamos fazer algunscomentários acerca das evidências apresentadas para apoiar esta idéia.
As únicas passagens em que é mencionada uma transformação
súbita em ligação com a vinda do Senhor, além desta, são 1 Coríntios
15.51,52 e Filipenses 3.20,21. Na primeira, Paulo fala de um “mistério”,
mas não se pode afirmar, como alguns alegam, que este mistério seja o
tempo em que ele ocorre (isto é, pré-tribulação), pois nenhuma
referência a tal tribulação é feita no contexto. De fato, a única
referência cronológica é “a última trombeta”, que, seja quando for queaconteça, deve referir-se claramente a um evento público. A idéia deum “arrebatamento” secreto é inteiramente excluída. Também não há
base para a opinião de que os santos precisarão em primeiro lugar ser
arrebatados para poderem descer com Cristo dos céus; pois o texto não
diz que os santos arrebatados virão dos céus — só que eles serão
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transformados. O mistério é, portanto, a transformação instantânea doscrentes que estiverem vivos. A mesma idéia aparece em Filipenses 3.20,21, onde são prometidos aos crentes corpos gloriosos como o de Cristo
(veja página 194ss.).90Duas passagens em 2 Tessalonicenses, que apontam para a vinda
futura de Cristo e ao mesmo tempo se referem aos crentes, nãorequerem claramente, da mesma forma, a teoria de um arrebatamento
secreto pré-tribulacionista.91 O texto de 2 Tessalonicenses 1.6-10
refere-se ao aparecimento do Senhor Jesus do céu com os seus
poderosos anjos, em fogo resplandecente, e isto não se pode aplicar auma vinda diferente de uma demonstração pública. Esta passagem nãodescreve o evento como parousia,92 e isto tem levado alguns estudiosos
a traçarem uma distinção entre uma vinda para os santos (por ocasiãodo arrebatamento) e outra manifestação a todas as pessoas (no dia final
de ajuste de contas).93 Mas Paulo não faz essa distinção, pois é por
ocasião do “aparecimento” que todos serão julgados (crentes e
incrédulos igualmente). Isto não confirmaria a teoria de uma cena
dupla de juízo, que faz parte integrante da visão de um arrebatamento
pré-tribulacionista. Na segunda passagem, 2 Tessalonicenses 2.1-8, a vinda de Cristo é
ligada com o juízo, que ocorre depois que o empecilho (“aquele que
agora o detém”) é removido, tornando-se conhecido o iníquo. Alguns,
que interpretam esse empecilho como o Espírito Santo, dizem que a
sua remoção coincidirá com o arrebatamento.94 Mas esta passagem não
faz menção ao arrebatamento, o que parece estranho se ela forma o ponto central para a liberação de uma intensidade maior de iniqüidade.
Há uma passagem nos ensinos de Jesus que pode ter algo a ver como assunto do “arrebatamento”. Ela ocorre em Mateus 24.40,41 = Lucas
17.34,35, em relação à vinda do Filho do homem. De dois homens que
estarão no campo, um será tomado, o outro deixado; semelhantemente,
acontecerá com duas mulheres que estiverem trabalhando no moinho
(Lucas se refere a duas pessoas numa cama, de noite). Alguma espécie
de remoção súbita acontece, simultânea com a vinda de Cristo,exatamente da mesma forma como Paulo descreve o arreba-
tamento. Mas Jesus não deu nenhuma indicação de quando isto
aconteceria. De fato, ele usou a ilustração do “ladrão de noite” para
indicar a sua natureza imprevisível. Esta passagem podería referir-se a
um arrebatamento secreto, mas não requer necessariamente essa
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A VIDA APÓS A MORTE • 215
interpretação, pois não há razão para que essas palavras não possamreferir-se à manifestação final de Jesus, por ocasião da qual só os quecrêem nele serão arrebatados para o encontro com ele nos ares.
Além da passagem acima, há outras que usam a ilustração do ladrãoem relação à vinda de Jesus: Lucas 12.39, 40; 1 Tessalonicenses 5.1-4;2 Pedro 3.10-12; Apocalipse 3.3; 16.15. Em todas essas passagens avinda do ladrão ilustra subitaneidade e surpresa, mas nenhumasubentende segredo. Além disso, em 1 Timóteo 6.14 e 2 Timóteo 4.1,Paulo usou a palavra “manifestação” (epiphaneia), que descreve uma
manifestação gloriosa (ou aparição). De fato, nesta última passagemPaulo está esperando receber uma coroa de justiça. Em nenhuma delashá qualquer apoio para um arrebatamento secreto.
RESUMO
Embora haja uma grande carência de declarações explícitas acerca
da vida além-túmulo nos evangelhos, há indicações suficientes para seestabelecer a existência de vida depois da morte. Jesus considera istocomo fato provado, como se torna evidente no relato do rico e Lázaro,embora não seja possível preencher ali muitos detalhes. Ele prevê a sua
própria posição como no paraíso e não no Sheol sombrio.Jesus fala de uma ressurreição para a vida e uma ressurreição de
juízo. A ressurreição das pessoas é um evento assegurado no futuro. Em
algumas ocasiões, Jesus falou da morte como sono, mas nada indica queisto fosse mais do que uma expressão metafórica. Certamente, Jesusenfrentou a sua morte com força de ânimo e esperava que os seusseguidores fizessem o mesmo.
É principalmente nas epístolas de Paulo que este assunto da vidafutura é explicitado de forma mais plena, mas ainda assim há muitosdetalhes obscuros. Paulo não tem dúvidas de que os crentes receberãoum corpo de ressurreição. Sobretudo, ele liga a ressurreição deles com
a de Cristo, que é considerado as primícias. Ele resiste à idéia deestarmos nus. Toda a sua maneira de encarar este assunto é radicalmente distinta da idéia grega de imortalidade da alma, libertada docorpo que é considerado como prisão dela. Com respeito à pergunta doque acontece aos crentes por ocasião da morte, Paulo dá a entenderque eles se vêem com o Senhor, mas apresenta poucos dados acerca de
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quando é recebido o corpo da ressurreição. Algumas vezes ele usa aimagem do sono para descrever a morte, mas não parece estar suben-tendendo uma existência inconsciente. Tudo o que se pode afirmar emdefinitivo é que o fiel será revestido com um corpo espiritual.
Há dificuldades acerca das duas ressurreições mencionadas emApocalipse 20. Contudo, não há discordância sobre o fato de queacontecerá uma ressurreição geral por ocasião da consumação da eraem que vivemos.
NOTAS DO CAPÍTULO
1. Um exame completo dos antecedentes judaicos deste assunto pode ser encontrado em H. C. C. Cavallin, Life After Death (1974). Este estudo tinha o objetivo de ser uma preparação para uma análise dos argumentos de Paulo em 1 Coríntios 15.
2. Para estudar um relato das esperanças da ressurreição no período intertestamentário, cf G. W. E. Nickelsburg, Jr.: Resurrection, Immortality, an d Eternal
Life in Intertestamental Judaism (1972). Quanto à crença de Qumran, cf. K. Schubert: The Dead Sea Community (tradução para o inglês, 1959), pp. 108ss.; idem, “Die Entwicklung der Auferstehungslehre von den Qumrantexten und in der Trührabbinischen Zeit”, B Z 6,1962, pp. 177-214.
3. Cf. W. Strawson em sua discussão desta passagem, em Jesus and the Future Life (1959), pp. 203ss.
4. Em um comentário a Lucas 20.27-40, E. E. Ellis, Luke ( NCB, 1966), ad loc, considera que esta passagem não sustenta a imortalidade de Abraão, que ele está agora individualmente no céu. Ele concorda com R. Bultmann (TNT. 1, p. 209) e W. G. Kümmell, (Man, pp. 43ss., 86) em que o ponto de vista do Novo Testamento acerca do
homem não sustenta um dualismo entre corpo e alma. Ellis considera que esta passagem ensina a ressurreição e não a sobrevivência.
5. R. Otto, The Kingdom o f God and the Son o f Man (1938), p. 239, nota declarações de que os patriarcas foram libertados da morte, mas não ressuscitados.
6. V. Taylor, Mark (21966), p. 483, diz que aqui Jesus está pensando apenas nos justos. Strawson, op. cit., p. 209, concorda.
7. Cf. Platão em Phaedo, em que ele descreve a morte de Sócrates e registra a exposição da imortalidade feita por Sócrates pouco antes de sua morte.
8. Cf. O. Cullman, Immortality o f the Soul or Resurrection o f the Dead? (1958);
quanto a uma discussão mais completa deste tema.9. J. M. Creed, Luke (1930), pp. 209s., rcfere-se às histórias egípcias e judaicas
comuns a respeito de um rico e um pobre.
10. K. Hanhart, The Intennediate State in the New Testament (1966), pp. 190ss., discute esta passagem mais detalhadamente e conclui: “O problema do estado intermediário surge quando se tenta combinar os dois ‘fins’ em um sistema lógico”. Cf. também J. D. M. Derrett: “Fresh Light on Lk. xvi. I. The Parable of the Unjust Steward”, NTS 7, 1960-1, pp. 198ss., e “II. Dives and Lazarus and the Preceding
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A VIDA APÓS A MORTE • 217
Sayings”, NTS 7, pp. 364ss. Ele liga as duas passagens. Em sua interpretação, Lázaro
está ligado a Eliézer, servo de Abraão. Derrett considera esta história com a intenção
de encorajar e não d e desanimar. Ela se concentra no que resta desta vida.11. Cf. T. W. Manson, The Sayings o f Jesus (1949), p. 299.12. Diante desta expressão é bem possível que Jesus estivesse pensando em sua
própria ressurreição.13. Para obter uma discussão completa desta passagem, cf. K. Hanhart, op. cit.,
pp. 199ss. Ele sustenta que esta passagem não confirma um estado intermediário. Além
disso, afirma que o paraíso não mantém contraste com o reino, mas é paralelo a ele.14. Quanto ao paraíso, cf. J. Jeremias: TDNT 5, pp. 765ss.15 .1. H. Marshall, Luke, p. 873, compara a esperança do criminoso no sentido de
alcançar a vida por ocasião da parousia com a certeza de Jesus de que ele teria entrada imediata no paraíso.
16. Cf C. Ryder Smith, The Bible Doctrine o f the Hereafter (1958), pp. 42ss.17. Assim também pensa W. Strawson, Jesus and the Future Life, pp. 84ss.18. Cf. O. Cullmann, op. cit., pp. 21s.; W. Strawson, op. cit. pp. 95s.19. Observe também João 6.44, que afirma que Cristo ressuscitará no último dia
a todos os que se achegarem ao Pai através dele.20. R. E. Brown, John, p. 220, atribui João 5.25 aos versículos anteriores, 19-24, e
vê nele uma escatologia realizada. Os versículos 26-29 são considerados como
escatologia final. Brown entende os mortos no versículo 25 como espiritualmente mortos. Contudo, ele rejeita a dicotomia de Bultmann entre as duas escatologias. Cf.
P. Gàchter em seu ensaio acerca da forma de João 5.19-30, em Neutestamentlich
Aufsâtze. FestschriftfiirJ. Schmid (ed. J. Blinzer, D. Kuss e F. Mussner, 1963), pp. 65ss.21. U. Simon, Heaven in the Christian Tradition (1958), p. 216, considera João 14.2
como confirmação específica de um estado intermediário, apresentada por Jesus.22. E. Kãsemann, The Testament of Jesus (tradução para o inglês, 1968), p. 72,
rejeita a opinião de que João 17.24 deve ser visto no sentido de que Jesus leva os seus
para si na hora da morte. Ele rejeita uma interpretação semelhante de João 14.2ss. A
sua idéia é de que João espiritualizou velhas tradições apocalípticas. Contudo, veja R.
E. Brown, John, pp. 779s., onde se encontra um comentário acerca desta opinião. Ele
apela para Filipenses 1.23 para mostrar que pode ter sido cristã a opinião de que os
cristãos estariam com Cristo por ocasião da morte. Brown é cauteloso demais, pois há
boas bases para se sustentar que este é o ponto de vista do Novo Testamento.23. L. Morris, John, p. 469, comenta que a palavra “morte” aqui está em posição
enfática.24. J. Marsh, John (21968), p. 371, considera que estas palavras ligam o tempo
terrestre e a eternidade celestial. Contudo, assim mesmo elas nada nos dizem acerca
do estado da existência na esfera celestial.25. B. Lindars, John ( NCB, 1972), pp. 332s., é da opinião de que esta declaração
baseia-se em Mateus 16.28, a única outra passagem em que a expressão “provar a
morte” ocorre nos evangelhos.26. Cf. F. F. Bruce, The Acts of the Apostles (21952), p. 340, que considera o plural
(“mortos”) como um plural generalizador.27. Cf. Phaedo, de Platão. Veja nota 7.
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28. J. A. Schep, The Nature o f the Resurrection Body, pp. 185s., indica que foi a
idéia de ressurreição dos mortos que ofendeu os atenienses e não a de imortalidade.
Cf. N. B. Stonehouse, Paul before the Areopagus and other New Testament Studies
(1957), pp. 1-70.29. Cf. R. Bultmann: TNT 1, p. 192; O. Cullmann, op. cit., pp. 46s.30. R. P. Martin, Filipenses (Série Cultura Bíblica, 1985), ad. loc., sustenta que isto
significa “o estado de humilhação causado pelo pecado”.31. Com toda probabilidade, em Corinto havia pessoas que rejeitavam a idéia da
ressurreição, porque o pensamento de reanimação dos cadáveres lhes era repugnante. É possível que eles tenham argumentado que Paulo devia deixar de lado esta idéia que
ele herdara do judaísmo. Cf. F. F. Bruce, “Paul on Immortality”,SJT 24,1971, pp. 464s.
32. Alguns estudiosos vêem aqui vestígios da distinção feita por Filo entre um homem celestial e outro terreno. Cf. R. Bultmann, TNT 1, p. 174; E. Kásemann, Leib
und die Leib Christi (1933), pp. 166ss. Cf. os comentários de E. E. Ellis, Paul’s Use of
the Old Testament (1957), p. 64.33. Veja a discussão completa de Schep acerca desta passagem, op. cit., pp. 189ss.34. R. Bultmann, TNT 1, p. 192, que não pode aceitar esta idéia, precisa afirmar
que Paulo se permitiu ser levado pela argumentação dos seus oponentes. Kásemann,
op. cit., pp. 135s., considera que Paulo cometeu um erro.35. Cf. “Breves Remarques sur la Notion de soma pneumatikon”, de H. Clavier,
em The Background of the New Testament and its Eschatology (ed. W. D. Davies e D. Daube, 1964), p. 348. Ele se opõe à idéia de que Paulo argumenta em favor de um corpo
ressurreto de carne.36. Com respeito à aplicação destas duas palavras em 1 Coríntios, cf. B. A.
Pearson: ThePneumatikos-Psychikos Terminology in I Corinthians (1973). Pearson nota
que, embora os cristãos possam ser considerados prolepticamente com o pneumatikos,
a sua existência plena de pneumatikos ainda está por ser realizada na ressurreição dos
mortos (p. 41).37. Assim pensa Schep, op. cit., p. 200.
38. R. H. Gundry, Soma in Biblical Theology (1976), p. 165, sustenta que o
psychikon soma é um corpo físico animado pela psych ê e que o pneumatikon soma é
um corpo físico renovado pelo Espírito de Cristo.39. Whiteley, The Theology of St. Paul, p. 254, considera o contexto como
soteriológico e não escatológico.40. Cf. G. Vos em sua detalhada discussão da importância do Espírito na
escatologia de Paulo, The Pauline Eschatology, pp. 159ss.41. Quanto às discussões desta difícil passagem, além dos comentários, c f, de E.
E. Ellis, “The Structure of Pauline Eschatology (2 Cor. 5.1-10)”, em seu livro Paul and
His Interpreters (1961), pp. 35-48; W. L. Knox, St. Paul and the Church o f the Gentiles
(1939, reimpresso em 1961), pp. 125-145; M. J. Harris, “2 Corinthians 5.1-10: Watershed in Paul’s Eschatology”, TB 22,1971, pp. 32-57; R. Cassidy, “Paul’s Attitude
to Death in 2 Cor. 5.1-10” EQ, 43, 1971, pp. 210ss.; O. Cullmann, op. cit., pp. 52ss. Quanto a um resumo completo das opiniões recentes, cf. F. G. Lang, 2 Korinther 5.1-10
in derneueren Forschung (1973).42. Quanto à opinião de que isto acontece por ocasião da morte, cf. R. F.
Hettlinger, “2 Cor 5.1-10” SJT 10,1957, pp. 193ss., e C. Masson, “Imortalité de l’âme
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A VIDA APÓS A MORTE • 219
ou résurrection des morts?” RThPh 8,1958, pp. 250-267. Quanto à opinião alternativa, cf. R. Bultmann, Exegetische Probleme des Zweiten Korintherbriefes (1947), p. 12; TNT
I, pp. 202s. Quanto a uma crítica de Hettlinger, cf. R. Berry, “Death and Life in Christ”, SJT 14,1961, pp. 60-76.
43. Assim também pensa E. E. Ellis, “The Structure of Pauline Eschatology”, em
sua obra Paul and his Recent Interpreters, pp. 35ss., que considera que a trilha grega foi um desvio falso.
44. H. N. Ridderbos, Paul, p. 503, rejeita uma forma grega de entender gymnos e
considera que esta palavra significa não estado incorpóreo, mas estado em que falta a
glória de Deus.45. Cf. E. E. Ellis em sua discussão, op. cit., pp. 44ss. Sua interpretação é criticada
por Whiteley, op. cit., pp. 256ss.46. O. Cullmann, op. cit., pp. 52ss., liga o gymnos com o estado de sono de 1
Tessalonicenses 4 e 1 Coríntios 15.47. Quanto às idéias gregas de imortalidade, cf. E. Rohde, Psyche: The Cult o f
Souls and Belief in Immortality among the Greek, 2 vols. (r. p. 1966); W. Jaeger: “The
Greek Ideas of Immortality”, em Immortality and Resurrection (ed. K. Stendahl, 1965), pp. 97-114. O. Cullmann, op. cit., pp. 19ss. Quanto a outros estudos dos antecedentes,
cf. R. B. Laurin, “The Question of Immortality in the Qumran ‘Hodayot”’, /5 5 3,1958, pp. 344-355; J. Van der Ploeg, “LTmmortalité de Phomme d’après les textes de la Mer
Morte”, FT 2, 1952, pp. 171ss.; F. F. Bruce, “Paul on Immortality”, SJT 24,1971, pp.
457-472.48. Cf. G. Vos, op. cit., pp. 172ss., quanto a uma discussão completa destes
supostos estágios de desenvolvimento. Cf. R. H. Charles, A Critical History o f the
Doctrine o f a Future Life (21913), pp. 455ss. Cf. também os comentários de Schep, op.
cit., pp. 206ss.49. Cf. Vos, op. cit., pp. 200ss., onde se encontra uma crítica do quarto estágio.50. Foi C. H. Dodd quem fez fortes afirmações em favor de um desenvolvimento
entre 1 e 2 Coríntios.
51. Assim também pensa G. Vos, op. cit., 241.52. Quanto à ressurreição dos cristãos e não-cristãos, cf. H. Molitor, Die
Auferstehung der Christen und Nichtchristen itach dem Apostei Paulus (1933), pp. 44ss.,
Cf R. Schnackenburg, G od ’s Rule and Kingdom (tradução para o inglês, 1963), p. 293. Veja a digressão em E.-B Alio, Première Épitre aux Corinthiens (EB, 21956), pp.
438-454.53. Cf. Vos, op. cit., p. 253. J. D. G. Dunn Jesus and the Spirit (1975), p. 334, sugere
que o que Paulo está querendo dizer é que apenas os que sofrerem a morte de Cristo
alcançarão a ressurreição, visto que só a morte de Cristo resultou em ressurreição. Cf.
J. Gnilka, Der Philipperbrief (HTKNT, 21976), pp. 196ss. E. Lohmeyer, Philipper,
Kolosser und Philemon (KEK, 91953), pp. 139s., restringe o sofrimento ao martírio. Cf.
também R. C. Tannehill, Dying and Rising with Christ (1967).54. Por certo, Filipenses 3.21 sustenta com firmeza a opinião de que a ressurreição
envolve uma transformação do corpo. Cf B. Ramm, Them He Glorified (1963), pp.
101-122, que indica que a redação de Paulo dá a entender um elo direto entre o corpo
de glória de Cristo e os nossos corpos. M. E. Dahl, Tlte Resurrection of the Body
(tradução para o inglês, 1962), pp. 103s., considera a combinação das palavras
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220 • IMORTALIDADE
metasclíêmatizõ esym morphon neste versículo como a sugerir “que Cristo modificará
externamente o nosso estado de humilhação”.
55. Cf. J. N. Sevenster, “Einige Bemerkungen über den ‘Zwischenzustand’ bei
Paulus”, NTS 1,1954-5, pp. 291ss., que considera que é essencial pressupor que Paulo
esposava a idéia de um estado intermediário, embora não a tivesse mencionado
especificamente.
56. K. Hanhart, The Intermediate State in the New Testament, p. 73, que relaciona
tanto “casa” como “vestimentas” com realidades celestias, com o templo celestial e
com a vida vivida com Cristo nos céus, não considera isto como indicador de um estado
intermediário. Cf. também a sua discussão completa de toda a passagem, pp. 149-179.
Quanto à possibilidade de Paulo estar pensando em um julgamento por ocasião da
morte ou do juízo final, isto não está claro. Hanhart sustenta que a ênfase é dada ao
fato e não ao mom ento (p. 178), negando que, ao falar em um edifício no céu, Paulo
estivesse se referindo à questão antropológica de corpo ou alma (p. 167).
57. C f Clemente de Alexandria, Stromata, iv, xxvi; Tertuliano, De resurrectione
cantis, xiii.
58. E. E. Ellis, op. cit., p. 46. Ele considera que é provavelmente um conceito
errado falar do estado intermediário em relação a 2 Coríntios 5.8. Cf. Schep, op. cit.,
p. 210, n. 69. H. A. A. Kennedy, St. Paul’s Conceptions o f the Last Things, p. 269.
59. Quanto a Filipenses 1.21-23, cf. J.-F. Collange, Phillipiens (1973), pp. 62-65.
R. P. Martin, Filipenses (Série Cultura Bíblica, 1985), pp. 89ss. A. Schweitzer, The Mysticism o f Paul the Apostle (1930, trad, para o inglês 21953), p. 137, sugeriu que Paulo
esperava um tratamento especial, por ser um mártir.
60. Bultmann, TNT 1, p. 346, considera Filipenses 1.23 como estando em
contradição com a doutrina da ressurreição, quando Paulo expressa a idéia de que
estar com o Senhor segue-se imediatamente à morte. Contudo, como o indica H.
Ridderbos cm Paul, p. 499, n. 29, é difícil aceitar idéias contraditórias dentro da mesma
epístola acerca de assunto tão básico.
61. Cf. P. E. Hughes, 2 Corinthians ( NICNT, 1962), pp. 160ss. Cf. também J. N.
Sevenster, “Some remarks on the Gymnos o f 2 Cor. v. 3”, em Studia Paulina in honorem Johanitis de Zwaan (ed. J. N. Sevenster e W. C. van Unnik, 1953), pp. 212ss.
62. Cf. J. Lowe, “An examination of attempts to detect developments in Paul’s
theology”, IT S 42 (1941), pp. 129ss.
63. Cf. Whiteley, op. cit., pp. 264ss.
64. B. F. C. Atkinson, Life and Immortality (s . d.), p. 51, chega à conclusão de que
os homens ficam dormindo na morte e que o túmulo é um lugar de trevas e silêncio
onde não há atividade, lembrança de Deus nem louvores a Ele. Observa-se que grande
parte do raciocínio deduzido para apoiar esta idéia está baseada no Antigo
Testamento.65. Cf. Grosheide, I Corinthians (NICNT, 1983), ad loc., e Barrett, 1 Corinthians
(BC, 21971), ad loc., acerca de 1 Coríntios 11.30. Cf. também L. Morris, The Epistles to
the Thessalonians (TCNT, 1956), ad loc, acerca de 1 Tessalonicenses 4.13.
66. Quanto a uma discussão de 1 Tessalonicenses 4 acerca da idéia do sono da
alma, cf. K. Hanhart, op. cit., pp. llls s.
67. Atkinson, op. cit. p. 64, explica estas referências como provas de que a
experiência subjetiva da morte para os crentes é de passagem instantânea deste mundo
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A VIDA APÓS A MORTE • 221
para a glória da ressurreição. A inconsciência da alma é tão profunda, de acordo com
Atkinson, que para os crentes o instante seguinte é a manhã da ressurreição. Todavia,
esta não parece ser a maneira mais natural de entender as palavras de Paulo em
Filipenses 1.23 e 2 Coríntios 5.8.68. Cullmann, op. cit., p. 57.69. A. J. M. Wedderburn, “The Theological Structure o f Romans v. 12”, NTS 19,
1973, pp. 339-354, argumenta que o pano de fundo é o determinismo apocalíptico, que dizia que Adão era responsável pela morte.
70. K. Hanhart: “Paul’s Hope in the Face of Death”, JBL 88, 1969, pp. 445ss., argumenta que Paulo não tinha expectativa específica para o futuro, mas uma radiante esperança de vida eterna.
71. A capacidade de Deus no sentido de ressuscitar os mortos reflete-se em
Hebreus 11.19,35.72. Em Hebreus 12.1 se diz que as testemunhas estão rodeando os cristãos, mas
isto não pode ser considerado como evidência de que os espíritos dos mortos estão
presentes nesta vida. Hb 12.1 precisa ser interpretado à luz de 12.22.73. Cf. G. E. Ladd em sua discussão acerca do dualismo em “Hebreus”, TNT, pp.
572ss.74. Bo Reicke, The Disobedient Spirits and Gxristian Baptism (1946), faz uma
análise detalhada desta passagem. A maioria dos eruditos concorda em que os espíritos
citados são demônios, e a proclamação a eles feita é de vitória. Isto se baseia nos pressupostos de que o livro de Enoque está por trás desta passagem. Cf também W. J. Dalton em sua ótima exegese: Christ’s Proclamation to the Spirits (1965).
75. Cf S. D. F. Salmon, The Christian Doctrine o f Immortality (31897), pp. 471s.76. C f E. G. Selwyn em seu extenso ensaio de 1 Pedro 3.18-4.6, em 1 Peter, pp.
314-369.77. K. Hanhart, op. cit., pp. 218s., considera forçada a explicação de Selwyn e
prefere concluir, a partir do uso do tempo aoristo do verbo, que a referência é a um
ato já realizado (isto é, o ato de Cristo pregando no Hades). Portanto, não é um
acontecimento que se possa repetir.78. K. Hanhart, op. cit., p. 218, não concorda em que os “espíritos”, de 3.19, devam
ser identificados com os “mortos”, de 4.6, mas apóia a idéia de que há alguma ligação
entre as duas passagens.79. Cf I. T. Beckwith, The Apocalypse o f John, ad loc.
80. Cf. G. R. Beasley-Murray, Revelation, ad loc.
81. K. Hanhart, op. cit., pp. 239s., concorda em que, se o que se tem em mente são os mártires cristãos, a expressão “um pouco mais” refere-se a um período intermediário. Mas ele sugere que os mártires podem ser os santos que morreram por sua
fé na vigência da antiga aliança, caso em que esta expressão se referiría ao período imediatamente anterior à encarnação.
82. Cf E. Schweitzer, TDN T 9, p. 654.83. Cf. R. Pache, The Future Life (1962), pp. 190ss., faz distinção entre uma
ressurreição anterior e outra posterior aos três anos e meio de tribulação.84. Cf. J. W. Hodges, Christ’s Kingdom and Coming, pp. 229s.85. Há força na insistência de H. Alford de que fazer ezêsan significar uma coisa
no versículo 4 e outra no versículo 5 esvazia a linguagem do seu significado (The Greek
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8 Alan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Até este ponto do livro foram discutidos vários aspectos da vida
após a morte. A morte propriamente dita, o intervalo entre ela e o julgamento, o inferno, o dia do julgamento, a ressurreição do corpo e a
nova cidade de Jerusalém; todos foram discutidos, um após o outro.Falta dizer alguma coisa acerca da vida que teremos no reino vindouro.A imagem que muita gente tem do céu não passa de alguém sentado
nas nuvens, cantando um hino com uma harpa na mão. Mesmo entre
os teólogos evangélicos, há os que não acreditam que haja muito o que
falar, exceto que a vida por vir é “espiritual” ou “abençoada”. Este
capítulo tenta mostrar que é possível saber mais do que isso e que
existem alguns princípios claros de hermenêutica que nos ajudam nessa
tarefa.Estamos hoje na extremidade de uma longa tradição de estudos
bíblicos que vem refinando cada vez mais seus métodos hermenêuticos.Isso permite que a compreensão do texto bíblico torne-se mais precisa
e, por conseguinte, mais significativa. Um conceito útil que está sendo
usado hoje é o do “horizonte”. Na natureza, a palavra “horizonte”
refere-se à linha onde o céu parece encontrar-se com a terra. Na
hermenêutica, a mesma palavra é usada de forma figurada, para indicar
a autoconsciência de um autor. O “horizonte” de um autor é tudo o que
forma sua compreensão do mundo e o que ele vê como significado da
vida. Em resumo, seu “horizonte” é sua cosmovisão. O alvo de qualquerestudo de texto é reconstruir esse horizonte ou essa cosmovisão
original, de modo que possamos participar dos pensamentos do autor.*
Raramente isto é fácil, pois a idéia de horizonte aplica-se não apenas
ao autor original, mas também ao leitor de hoje. Assim como cada autor
escreve a partir de um horizonte de significado, cada leitor também
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224 • IMORTALIDADE
interpreta aquele texto a partir de sua própria compreensão particular
do mundo. As vezes há um abismo considerável entre esses horizontes,ainda mais quando o autor e o leitor vêm de culturas radicalmentediferentes. Considere, por exemplo, a postura em relação à questão dalei. Note a diferença entre o ponto de vista de um brasileiro do séculoXX, acostumado ao “jeitinho”, e o de um profeta judeu ortodoxo, comoIsaías, que vivia no século VII a. C. e observava meticulosamente todosos detalhes da Torá. É exatamente esse tipo de diferença quanto atempo, cultura e visão do mundo que cria as diferenças de com
preensão. O leitor de hoje precisa atravessar esse abismo para obter umverdadeiro entendimento. Quando isso acontece, diz-se que houve uma“fusão” de horizontes. A conquista dessa fusão muitas vezes é um
processo lento e ocorre invariavelmente em etapas. Ela começa quandoo leitor chega ao texto com a mente aberta e tem algumas questões
básicas à mão. O texto fornece algumas respostas iniciais para asquestões. Os dois horizontes começam a convergir. As questões doleitor vão sendo reformuladas, à medida que ele ganha consciência dosignificado do texto e das pressuposições que o sustentam. As respostastornam-se mais claras e perspicazes. Sua compreensão aprofunda-se eos horizontes fundem-se um pouco mais. E assim prossegue.
A figura dos “horizontes” e a idéia de uma “fusão” entre eles sãoúteis, porque esclarecem o que se busca atingir no estudo da vida apósa morte. Nesse estudo, os dois horizontes não são os do autor originale do leitor de hoje, mas, sim, os de nossa vida presente e do reino
vindouro. Por natureza, as diferenças entre os dois mundos são muitase fundamentais. Hoje, vivemos em um mundo alienado de Deus. Navida por vir, a Bíblia nos diz que haverá uma existência significativa e
jubilosa sem fim, no louvor e serviço a Deus. Essas diferenças profundas e importantes indicam que os dois “horizontes” são bemdiferentes entre si.
Este artigo começa com a pressuposição de que é possível obter,no mínimo, uma fusão parcial. Não estamos totalmente no escuro.Podemos saber algumas coisas a respeito do céu e da natureza da vidanaquele lugar. Obviamente, esse assunto excede em muito o escopo deum simples artigo —ou até de um grande livro. Quantos livros sobre avida após a morte já foram escritos e quantos mais ainda surgirão? Nenhum deles terá a palavra final. Quantos livros seriam necessários para descrever de forma adequada a ordem mundial presente? Quantos
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PENSANDO NO CÉU • 225
mais seriam necessários para se fazer uma descrição completa domundo vindouro? Portanto, a intenção deste artigo é bem modesta. Ésugerir uma forma de classificar e discutir aqueles textos que falam daoutra vida. Na realidade, o objetivo é fazer melhores perguntas, paraque o texto possa fornecer respostas mais claras acerca da maravilhosasalvação que nos foi prometida.
Escrito especialmente para ser incluído nesta coletânea, o presente artigo foi traduzido por Lucy Yamakami.
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8 Alan B. Pieratt
PENSANDO NO CÉU
Há uma riqueza de imagens, símbolos e descrições da vida futurado cristão que nos chegam através dos profetas e salmistas do AntigoTestamento, dos ensinos de Cristo e dos apóstolos, e das visões finaisde João. São passagens fascinantes, porque falam de coisas querepousam no futuro. Mas são ao mesmo tempo frustrantes, pois
descrevem eventos e modificações que vão muito além da experiênciahumana presente, sendo, portanto, difíceis de interpretar. Assim comoos homens piedosos de antigamente, nós também pesquisamos asEscrituras e não entendemos plenamente o que estamos lendo. Aindaassim, não deixamos de ter recursos para nos ajudar nessa tarefa. Ànossa disposição, temos a tradição, a experiência e a razão. Por“tradição” entendam-se os quase 2000 anos de meditação na Bíblia, quenós, santos dos últimos dias, temos por herança. Em termos conceituais,
erguemo-nos por sobre os ombros daqueles que se foram antes de nóse, por isso, enxergamos mais longe e, quem sabe, quase sempre melhor.Em segundo lugar, temos a ajuda de nossa própria experiência. Isso nãose refere às visões ou revelações individuais, mas às emoções eexpectativas do Espírito que habita em todo cristão. O Catecismo deHeidelberg expressa muito bem o que se deseja, em sua qüinquagésimaoitava pergunta: “Qual o consolo que obténs da fé na vida eterna?” A
resposta apresentada é: “Uma vez que sinto agora em meu coração ocomeço do gozo eterno, após esta vida possuirei perfeita salvação...” Aexperiência de profunda alegria que o Espírito concede ao que crê éuma amostra da realidade da era vindoura e nos ajuda a entender comoserá a vida na presença de Deus. Por fim, temos nossa razão, atributoque abre possibilidade para todo o entendimento humano.
Um estudo das últimas coisas e da vida por vir podería usar
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228 • IMORTALIDADE
qualquer um desses instrumentos, ou todos. Podería analisar, por
exemplo, as opiniões dos grandes teólogos acerca da vida após a morte,comparando-as entre si. Ou poderia concentrar-se nos sentimentos
profundos e especiais que chegam junto com a contemplação de Deus
e Seu reino. Entretanto, este capítulo irá se concentrar unicamente nouso de nossa razão como ferramenta para entendermos melhor ostextos que descrevem nossa esperança para a vida futura. Na
introdução, foi dito que o objetivo ou o alvo do estudo de textosescatológicos era obter a fusão dos “horizontes” desta vida com os da
próxima. Esta é, antes de tudo, uma tarefa para a razão.1 Com umraciocínio cuidadoso, pode-se alcançar algum entendimento da vidafutura. Mas que tipo de raciocínio? A idéia de uma “fusão de
horizontes” esclarece nosso alvo, mas não o método. Será que existealgum procedimento ou método que possa nos ajudar a atingir uma
compreensão da vida no céu, que não seja uma simples leitura e
meditação sobre os textos bíblicos? O propósito deste capítulo é
afirmar que sim. O raciocínio ou método aqui usado possui trêsaspectos. Primeiro: as passagens serão separadas entre as quedescrevem o céu como uma continuidade de nossa vida presente e asque o descrevem como uma descontinuidade. Segundo: as passagens
que retratam a vida futura como continuação da vida presente ou algo
semelhante a ela podem ser discutidas pelo raciocínio dedutivo, i. e.,
podemos raciocinar, partindo do que foi afirmado para o que é inferido.Terceiro: as passagens que retratam a vida por vir como algo distinto
ou diferente da vida presente são mais difíceis e, em geral, devem serdeixadas como estão. Cada uma dessas diretrizes ainda exige um poucode explicação, antes que se considerem alguns textos-chave.
Em primeiro lugar, as passagens sobre a vida após a morte podem
ser divididas entre as que mostram continuidade e as que mostram
descontinuidade em relação a este mundo.2 Bastam duas perguntas
para decidir isso: a passagem descreve a vida futura como sendo
semelhante à nossa vida atual? Ou ela retrata a vida vindoura como
sendo diferente da nossa vida presente? A maioria dos versículos quefalam do céu situam-se claramente em um desses dois grupos. Esse tipo
de classificação dialética é fundamentado na Bíblia, sendo sugerido por
Paulo em 1 Coríntios 2.9, 10.3 O versículo 9 diz: “... mas como está
escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrouem coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o
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PENSANDO NO CÉU • 229
amam”. Aqui, a implicação é que nossa vida no céu é tão diferente de
nossa vida atual que nenhum de nossos sentidos percebe, nem nossaimaginação pode retratar como será. Entretanto, Paulo não pára nesse ponto. Se tivesse parado, teria imposto um limite hermenêutico estreitoao que poderiamos conhecer acerca dessa vida futura. Mas no versículo10 ele diz: “Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito atodas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus”. Isso nãoé uma contradição, mas, digamos, o outro lado da moeda. Àquelesdentre nós que crêem nas Escrituras e se preocupam em pesquisá-las,
Deus revelou algumas características do mundo vindouro.Paulo está usando uma dialética do tipo sim-não para expressar o
caráter incomum de nosso conhecimento do céu. Sim, a vida futura étotalmente nova e diferente, mas não, não fomos deixados numaescuridão total, pois Deus nos revelou alguns traços de sua natureza.Essa dialética indica que uma forma fácil de estudar as passagensrelevantes é agrupá-las de acordo com a dialética de continuidade oudescontinuidade. No primeiro grupo, podem ser alistadas as quedescrevem ou pressupõem uma continuidade entre a vida de agora e avida por vir. No segundo grupo podem ser colocadas as que indicamque a vida vindoura difere da ordem presente ou não mantémcontinuidade em relação a ela. Esses dois grupos prestam-se adiferentes tipos de raciocínio. As passagens que descrevem o céu comoalgo semelhante à nossa vida presente prestam-se bem ao raciocíniodedutivo, em que a mente parte daquilo que é afirmado explicitamente
no texto ou na conversa para aquilo que está implícito.Um bom exemplo do uso desse tipo de raciocínio na Bíblia é ahistória de Abraão e Isaque (cf Gn 22.2-14). Você se recorda de queAbraão recebeu uma promessa de Deus: apesar de sua idade avançada,ele seria abençoado com um filho e, por meio desse filho, Deus iriaestabelecer uma linhagem de descendentes que cresceria até formaruma nova nação (Gn 17). Isaque era esse filho da promessa, e Abraãoficou num dilema quando, mais tarde, recebeu de Deus uma ordem para
sacrificá-lo. Deus havia prometido abençoá-lo por intermédio dessefilho, e aquele mesmo filho era requisitado como sacrifício humano.Como essas duas coisas poderíam ser verdadeiras? Somos informadosde que Abraão creu que Deus cumpriría Sua promessa, levantandoIsaque dentre os mortos após o sacrifício (Hb 11). Aparentemente, eleraciocinou que se Isaque era o filho escolhido, então, por inferência,
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teria de ser trazido de volta à vida, para cumprir aquela promessa. Essa
dedução partiu do que havia sido claramente prometido por Deus echegou ao que estava implícito naquilo. Isto é raciocínio dedutivo, e eleé útil na interpretação de textos que descrevem a vida após a mortecomo algo semelhante à nossa vida hoje, pois, como a promessa de Deusa Abraão, eles insinuam mais do que afirmam.
As passagens que descrevem a vida vindoura como algo distinto emrelação à ordem presente não se prestam a esse tipo de raciocínio.Muitas consistem em negações que indicam o que o céu não é, ou não
contém, e pouco se pode inferir delas. Por exemplo, considere aafirmação de que na vida por vir não haverá morte (Ap 21.4). Essa éuma das promessas básicas da vida futura e indica uma mudança deimportância fundamental, mas o que ela nos ensina sobre a própria vidano reino? Além do fato de não ter fim, é difícil entender como poderíaser uma vida sem morte. Será que podemos deduzir que não haveráacidentes? Nesse caso, como haveria liberdade? Significaria que, se
houvesse um acidente e nossos corpos fossem destruídos, eles seriamrefeitos imediatamente? É evidente que esse tipo de discussão emtorno de uma negativa leva a resultados insuficientes, pois não podemos
partir da inexistência de algo para deduzir as condições de possibilidadedessa inexistência. Portanto, em geral, os aspectos novos e descontínuosda vida futura são mais difíceis de questionar e, muitas vezes, precisamser deixados como estão.
Estamos, então, prontos para tentar agrupar as passagens, de
acordo com a forma como retratam o céu. As duas categorias não sãosimétricas. As que indicam continuidade oferecem muitas possi bilidades de especulação e reflexão. As que indicam descontinuidadedão pouca margem para isso e, portanto, receberão menos espaço. As
passagens que indicam continuidade serão estudadas primeiro, porqueé somente por elas que podemos falar dos aspectos distintos. Se nãofosse por aquilo que é reconhecido como igual, não seria possível falardas diferenças. Espera-se que ambas as seções sejam sugestivas eilustrativas; daí o título do capítulo: “Pensando no Céu”. Sem dúvida,seria possível elaborar um trabalho muito maior a partir dessa
perspectiva, mas, aqui, os tópicos estarão limitados a três: nós mesmos,nosso mundo e nossa cultura.
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PENSANDO NO CÉU • 231
1 • Continuidade
Comecemos observando três passagens dos evangelhos queapresentam um ponto básico sobre o céu. Em Mateus 8.11,22.23-33 eLucas 13.28, Jesus refere-Se a Abraão, Isaque e Jacó, como se vivessem hoje no reino. A passagem de Mateus 22 afirma isso de forma maisexplícita, como parte de uma discussão com os saduceus. Eles estavamtentando apontar uma falha lógica na crença de que os homensressuscitam. Jesus condenou-os por falta de fé em Deus e por um
conhecimento deplorável das Escrituras. Então, Ele responde àsobjeções, citando Êxodo 3.6: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus deIsaque e o Deus de Jacó”. O argumento de Jesus depende do verbo“ser”, empregado no tempo presente. Deus é o Deus dos patriarcas agora, porque eles estão vivos hoje no reino. Para o caso de os ouvintesnão terem entendido, Jesus esclarece, acrescentando: “Ele não é Deusde mortos, e, sim, de vivos”. Nos relatos de Mateus 8 e Lucas 13, Jesustambém Se refere aos patriarcas no céu, embora o fato de estarem vivosseja um pressuposto e não o ponto central. Em Mateus 8, Jesus diz quemuitos gentios entrarão no reino e gozarão a presença dos patriarcas,enquanto muitos judeus serão excluídos. Em Lucas 13, Jesus diz a umamultidão pouco receptiva: “Ali haverá choro e ranger de dentes,quando virdes, no reino de Deus, Abraão, Isaque, Jacó e todos os
profetas, mas vós lançados fora”.O ponto-chave em cada uma dessas passagens, esteja explícito em
Mateus 22 ou implícito em Mateus 8 e Lucas 13, é que os patriarcas (eos profetas) estão vivos, passam bem no reino de Deus e continuamsendo os homens que eram. Eles eram e são Abraão, Isaque e Jacó.Várias inferências podem ser extraídas daqui. Em primeiro lugar, aalma que ressurge dos mortos é exatamente a mesma que fechou osolhos na morte. Assim como os antigos patriarcas, os cristãos de hojeirão se levantar dos mortos conhecendo a si próprios. Essa afirmaçãode auto-reconhecimento é a mais básica das continuidades entre estavida e a próxima. É a condição que possibilita todos os outros aspectosda vida na presença de Deus. Segunda, assim como os patriarcas e os
profetas reconhecem a si mesmos e são reconhecidos pelos outros comoas pessoas que eram, nós também nos conheceremos mutuamente noreino. A memória social, a capacidade de reconhecer os outros, é uma
parte necessária de nosso autoconhecimento. Aliás, conhecer a nós
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232 • IMORTALIDADE
mesmos significa saber quem somos em relação aos outros ao nosso
redor: família, amigos, colegas, companheiros de trabalho, empregadosetc. Somos seres sociais, e nossa autoconsciência é construída sobre
essas relações. A terceira inferência, que tem ligação estreita com aanterior, é que o céu não é como um mosteiro, em que o culto a Deus
acontece em silêncio e isolamento. Pelo contrário, Jesus descreve os patriarcas sentados à mesa, banqueteando-se uns com os outros. Cenas
semelhantes são encontradas em vários discursos de Jesus, pois várias
vezes Ele descreve o reino em termos de alegres multidões reunidas
para uma festa, um casamento ou um banquete nupcial.4 Da mesmaforma, o livro de Apocalipse descreve grandes assembléias de santos
louvando juntos a Deus ( cf. Ap 7.9; 19.1,6). Essas reuniões festivas dão
a entender que a natureza gregária do homem será confirmada, se nãointensificada.
Por fim, pelo modo como Jesus menciona os patriarcas, podemosinferir que manteremos a memória de nossa vida passada. Os patriarcas
não seriam reconhecidos se não pudéssemos lembrar quem haviam sido
nas narrativas do Antigo Testamento. Também não poderiamos noslembrar dos relatos do Antigo Testamento sem nos recordarmos de
nosso treinamento na igreja e na escola dominical. Nem nos
lembraríamos da escola dominical sem uma recordação de nossas
famílias nos levando até lá. E assim por diante. A dedução clara é quenossas lembranças permanecerão intactas. As passagens que des
crevem o dia do juízo final confirmam essa conclusão. Sabemos que os
homens prestarão contas de cada palavra dita (Mt 12.36), cada segredoescondido (Rm 2.16), cada desígnio oculto no coração (1 Co 4.5) e cadaato que praticaram ou deixaram de praticar {cf. Mt 10.42 com Ap 20.12).
Quer o resultado seja uma recompensa, quer seja uma condenação, só
poderá haver um julgamento legítimo e justo se a lembrança desses
feitos estiver presente. A lembrança é a repreensão de Abraão para o
homem rico na história do rico e Lázaro (Lc 16.25). A pessoa que
perdeu a memória e não consegue se lembrar do que fez ou deixou de
fazer não conhece a si mesma. Ela não consegue situar-se no tempo ouna sociedade. As cortes humanas não submetem a julgamento os
incapazes, os que sofrem de amnésia e os portadores de insanidade
mental, e podemos esperar que Deus não seja menos justo.
Para resumir, o fato de Jesus referir-Se aos patriarcas como se eles
estivessem vivos no céu comporta uma série de inferências acerca da
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PENSANDO NO CÉU • 233
continuidade entre esta vida e a próxima. Continuaremos sendo asmesmas pessoas que somos agora. Reconheceremos a nós mesmos e osoutros ao nosso redor. Lembraremos nossa vida na terra, o que fizemose o que não fizemos. Simplificando, pelo menos em termos mentais,seremos as mesmas pessoas que fomos. É bom notar que este ensinoelimina as possibilidades de reencarnação e panteísmo. A reencarnaçãodiz que nascemos e renascemos vezes sem conta no mundo, mas semnossa memória. O panteísmo ensina que, após a morte, somosabsorvidos no Absoluto, ou Espírito, e perdemos nossa identidade. O
ensino bíblico afirma que “eu” ressuscitarei dos mortos, reconhecereia mim mesmo e me lembrarei de minha vida passada. Isso não dá espaço para nenhuma idéia de que minha identidade pessoal possa seresquecida, apagada ou dissipada.
Entretanto, ser um homem é mais do que conhecer e lembrar.Também somos seres físicos, com uma vasta gama de emoções esensações físicas. Há outras passagens que indicam que esses aspectosde nossa humanidade também continuarão no reino. Por exemplo, asEscrituras descrevem o céu como um lugar repleto de emoções.Basta aqui, como prova, considerar a própria pessoa de Cristo. Seremoscomo Ele em todas as coisas, pois Ele é o alvo e o exemplo para estavida e a próxima. Os evangelhos deixam claro que nosso Senhor era (eé) uma pessoa afetuosa, cheia de vigor emocional. Relata-se que, aolongo da vida, Jesus consumiu-Se pelo zelo da casa de Deus (SI 69.9;Mt 21.12), afligiu-Se com o pecado dos homens (Mc 3.5) e sentiu grande
compaixão pelas multidões (Mt 9.36; 14.14; 15.32; Mc 6.34; Lc 7.13).Somos informados de que Ele chorou pela morte de um amigo (Jo11.33, 35) e pela dureza da resposta dos judeus contra Si (Lc 19.41).Afirma-se que, no final de Sua vida, Ele desejou ardentementecompartilhar a páscoa com Seus discípulos (Lc 22.15). Ressurreto, usou
palavras fortíssimas para reprovar a falta de paixão pelas coisas de Deus(Ap 3.16). Além disso, os relances do céu que recebemos mostram ossantos experimentando emoções intensas: expectativa (Ap 8.1),
satisfação (SI 17.15; Mt 5.6), alegria (Is 12.3; 1 Ts 2.19; Jd 24), riso (Lc6.21) e temor santo (SI 5.7; 33.8; Ap4.8-ll;5.11-14). Portanto, podemosinferir que, na vida vindoura, nossa constituição emocional continuaráexatamente como era ou, pelo menos, manteremos pleno uso dasemoções que são puras.
As Escrituras também indicam que nossos sentidos continuarão
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atuando no reino. Manteremos a visão, pois a promessa é de queveremos a Deus (Mt 5.8; Ap 22.4). Seremos capazes de ouvir, pois,como João nas visões do Apocalipse, vamos ouvir a voz de Deusdizendo: “Tudo está feito” (Ap 21.6). Ao que parece, teremos o sentidodo olfato, pois se diz que, na sala do trono, o fumo do incenso sobediante de Deus (Ap 8.4). Sentiremos o gosto da comida e da bebida,
pois se diz que comeremos pão e beberemos vinho (Lc 22.18; Ap 22.17).Podemos deduzir que iremos nos mover e sentir o movimento, poislemos que eles se prostram diante do trono e depositam suas coroas
diante de Deus (Ap 5.8, 14; 7.11; 19.4). Por fim, seremos capazes defalar, cantar e orar, pois vemos homens e anjos, juntos, cantando elouvando a Deus (Ap 7.9,10).
E quanto aos corpos? As Escrituras dizem que nossos corposressuscitarão dos túmulos, e lemos sobre isso no capítulo escrito pelo
professor Guthrie. Mas podemos ter um pouco mais de conhecimentoda natureza desse corpo refeito, além do fato de que ele será“espiritual”.6 Em Romanos 8.11, Paulo diz que “o Espírito daquele queressuscitou a Jesus dentre os mortos... vivificará também os vossoscorpos mortais”. A palavra “mortal” é um adjetivo importante, poisindica que o mesmo corpo que viveu na terra — o corpo que cresceu,envelheceu e por fim morreu — ressurgirá dentre os mortos. Não
podemos deduzir que nossos corpos consistirão dos mesmos átomos,moléculas e partículas subatômicas que os compõem hoje. Mas aimplicação é que, no reino, teremos a aparência de hoje e reconhe-
ceremos uns aos outros por ela. Dessa forma, podemos concluir quemuito do que somos permanecerá na vida por vir: a identidade pessoal,o reconhecimento de outras pessoas, a memória, as emoções e aconstituição física. Em suma, em muitos aspectos continuaremos sendoos homens que somos.
E quanto ao mundo em que iremos habitar? Todos temosconsciência das passagens que predizem a destruição da presenteordem pelo fogo e a criação de um novo universo. Será que, no novo
mundo, haverá alguma coisa semelhante ao que temos em nossa vidahoje? Será que haverá objetos reconhecíveis no céu? Haverá mon-tanhas e vales, vento e chuva, árvores e florestas, rios e oceanos? Poucose fala a respeito da maioria dessas coisas. Mas no céu existe pelo menosuma coisa, descrita por João, que não podería ser mais familiar. É aárvore de Apocalipse 22.2. É chamada a árvore da vida, o que significa
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que sua natureza deve ir muito além de toda e qualquer árvoreconhecida nos dias de hoje.7 Entretanto, ela também é denominada“árvore” e descrita com os atributos das árvores, tais como asconhecemos hoje. Seu formato geral é o de uma árvore, tem folhas efrutifica como uma árvore. Alguns preferem ver, nessas palavrasdescritivas, figuras, imagens ou símbolos espirituais que nãocomunicam nenhum conteúdo real. Entretanto, prefiro seguir a lógicade Tomás de Aquino, que observou que a linguagem bíblica deve seranalógica e não unívoca nem equívoca.8 Isto significa que sempre há
uma correspondência entre aquilo que entendemos por meio da palavra bíblica e aquilo a que ela se refere no âmbito celestial. Não setrata de uma correspondência equívoca nem exata, mas é próxima osuficiente para fornecer uma informação real. Portanto, uma árvore docéu deve ser alguma coisa parecida com uma árvore da terra, casocontrário não se podería identificar um objeto celestial como algo que
pudesse ser chamado de árvore. Tal conclusão é lógica e necessária, pois, a menos que as coisas citadas na Bíblia sejam como as queconhecemos hoje, não havería razão para descrevê-las, pois nadacomunicariam. As coisas que existem na vida do porvir e que sãototalmente distintas de nossa experiência precisam ser deixadas emsilêncio. Portanto, as descrições do céu são analógicas, i. e., comunicamum conhecimento real, embora esse conhecimento não seja perfeitonem exato. Se o que João descreveu é mais do que uma árvore, pelomenos também é o que hoje denominamos de árvore. Pode-se inferir
o mesmo dos outros itens mencionados na nova Jerusalém: o rio daágua da vida, as pedras preciosas, os muros semelhantes à luz e ruas queespalham cores em todas as direções. Às vezes, essas descriçõesapresentam grande atenção aos detalhes (considere a descrição daqualidade do linho que cobre os cavalos do exército celeste, em Ap19.14), dando a impressão de que João está tentando registrar commáxima fidelidade aquilo que está vendo. No céu também há outrosfenômenos semelhantes aos da terra, tais como relâmpagos, trovões,
estrondos e terremotos, até uma saraivada, e é dito que tudo isso ocorredentro da área do templo (Ap 11.19). Podemos concluir, portanto, quea l g u m a s coisas que veremos no mundo vindouro nos serão pelo menosfamiliares, ainda que mais grandiosas.
Resta considerar nesta seção uma série de passagens a respeito da possível continuidade entre a cultura humana de hoje e a cultura da vida
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do porvir. É impressionante a variedade de culturas na história humana;
cada uma apresenta as características de determinado tempo edeterminada organização.9 Por exemplo, a Europa da Idade Médiaorganizava-se e via-se de uma forma bem diferente da índia de hoje,assim como a cultura atual dos estados centro-africanos é profundamente diferente da cultura dos índios peruanos. Existe umatendência natural de os diversos grupos humanos se organizarem demaneiras distintas que expressem suas condições materiais e suacompreensão do mundo. Como resultado disso, a diversidade de
culturas humanas como fenômeno histórico é tão complexa quanto a própria vida e poderia ser estudada ad infinitum. A questão que temosé: será que tais diferenças culturais, raciais e institucionais continuarãono reino de Deus, formando a base para a estruturação da vida na
próxima era? Essa questão possui pelo menos quatro aspectosdiferentes. Primeiro: alguma parcela da diversidade cultural presentesubsistirá no novo século? Segundo: o céu será como a presente ordem,em que existe uma profusão de culturas, ou todos os homens irão sefundir em uma única cultura sob o comando de Deus? Terceiro: haveráno céu uma estrutura de poder, como há na presente ordem? E, porúltimo: se houver “cultura” no céu, ela proporcionará algumaoportunidade de crescimento e desenvolvimento?10 Em outras palavras, haverá alguma oportunidade de o homem continuar seu desenvolvimento para a glória de Deus? Nossa inteligência, nossa moralou nosso senso estético (a capacidade de ter prazer em Deus e em Sua
criação) crescerão com o tempo ou permanecerão fixos para sempre naressurreição?Em relação à primeira questão, pelo menos dois conjuntos de
passagens indicam que alguns aspectos da cultura bíblica subsistirão noreino. Diz-se em Hebreus que o tabernáculo do Antigo Testamento era“figura”, “sombra” e “modelo” da realidade celestial (Hb 8.5; 9.24).Isso indica que no céu haverá uma organização ou estrutura semelhanteque incluirá os fundamentos do culto veterotestamentário: purificação,
lembrança do. sacrifício, ofertas e a presença de Deus. Essa noção deum modelo celestial pode abranger também as festas judaicas. Todosos adultos de sexo masculino eram convocados três vezes por ano parauma assembléia (Dt 16.16).11 É possível que ocorra no céu umaassembléia semelhante, em que os santos do reino se reunirão paraadorar. Essa possibilidade é reforçada pelas passagens de Jó, em que
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os anjos parecem participar de assembléias periódicas (Jó 1.6; 2.1). No
Evangelho de Mateus, Jesus diz que o que conhecemos hoje como“santa ceia” terá seu cumprimento no reino, onde comeremos e beberemos juntamente com Ele (Mt 26.29). Assim, podemos dizer que,no mínimo, alguns aspectos da cultura bíblica continuarão na eravindoura.
Segundo, no céu haverá uma única cultura ou uma profusão delas?Haverá uma única maneira de adorar a Deus ou o homem será livre
para usar suas habilidades como base para edificar uma nova ordem?
Encontramos um indício de resposta para esta pergunta quandoobservamos, no livro de Apocalipse, aquelas cenas que prevêem o fimdesta era e o início da próxima. Quatro palavras diferentes são usadasrepetidas vezes para expressar a variedade de tipos humanos que estãoesperando a mudança das eras: tribo, língua, povo, nação (Ap 5.9; 7.9;11.9; 13.7; 14.6). É possível inferir que essas distinções culturais,nacionais e raciais não serão apagadas, fornecendo material para a
construção de uma profusão de culturas que irá muito além daquilo quevemos hoje na história humana. Isso é reforçado pelo fato de Deushaver criado o cosmos presente de tal forma que ele seja infinito emvariedade e mude continuamente com o tempo. Nada se repete. Cadagrão de cereal, cada folha de grama, cada ser humano, cada estrela, cadagaláxia é diferente e, assim também, cada átomo e cada partículasubatômica. Além disso, tudo muda com o tempo, sofrendo um
processo de surgimento, crescimento, maturidade e decadência.
Quanto mais complexo o elemento, tanto mais isso é verdade. O fato éque a presente ordem reflete a natureza de um Deus infinitamentecriativo, cuja natureza gloriosa é honrada através de um mundoinfinitamente variado. Faria algum sentido insinuar que o mundo porvir será de natureza monolítica, com todos os caminhos traçados e todosos dias iguais? Harmoniza-se melhor com o que sabemos acerca deDeus acreditar que, no mundo vindouro, a cultura humana será muitomais maravilhosa em sua variedade e bem mais grandiosa em suacapacidade de expressar a verdade e a beleza.
Terceiro, haverá uma estrutura de poder no reino sob a autoridadede Deus? Nessa questão, a esfera angelical pode ser útil. Há uma sériede passagens que se referem a distinções de poder e autoridade entreos anjos. Paulo alista “tronos”, “soberanias”, “principados” e“potestades” (Cl 1.16; 2.15). Isaías descreve os serafins (Is 6) como
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anjos privilegiados que permanecem continuamente na presença de
Deus. Para Daniel, Miguel é o “príncipe” dos anjos (Dn 12.1). Essesrelances fascinantes da ordem angelical sugerem uma estrutura de
autoridade bem complexa. A referência aos apóstolos sentados em
tronos (Mt 19.28) aponta para uma estrutura semelhante na nova
ordem humana.12 Afirma-se que, no céu, não somente eles, mas todosos fiéis governarão por intermédio de Jesus e juntamente com Ele (2
Tm 2.12; Ap 3.21; 5.10). A idéia de que, mesmo ali, haverá canais de
autoridade subordinados a Deus parece coerente com a liberdade que
Deus dá às Suas criaturas. Deus é honrado pelo uso que Suas criaturasfazem da vontade, para glorificá-lO em todas as áreas — seja naadoração, na ação, no estudo ou no poder —e parece razoável crer que
isso não vai mudar.A questão final é: o homem continuará tendo oportunidade para
se desenvolver por intermédio dessas formas culturais ou a natureza
humana será determinada de uma vez por todas na hora do
despertamento, na ressurreição? Esse problema pode ser consideradosob dois aspectos. Primeiro: as Escrituras indicam que haverá atividade,
trabalho ou objetivos no céu? Segundo: se houver, será possível um progresso na santidade pessoal como parte dessa atividade? A Parábola
dos Talentos volta-se claramente para esse primeiro aspecto. O homem
que empregou melhor os seus talentos durante a vida terrena recebe a
maior responsabilidade na outra vida (Lc 19.11ss.). Isso indica que nocéu haverá serviço a fazer e alvos a atingir. Não se deve pensar no céu
como um estado permanente de descanso perpétuo. A idéia de queexiste um descanso à espera do cristão está solidamente enraizada tanto
em Hebreus como em Apocalipse (Hb 4; Ap 14.13), mas nada indicaque esse descanso seja uma ociosidade eterna.13 Pelo contrário, po
demos esperar que o céu seja repleto de atividades significativas
centradas em deveres e responsabilidades. Os alvos que esta
belecermos e as realizações que conseguirmos contribuirão para a
glória de Deus e, portanto, também para nossa alegria e satisfação.O segundo aspecto, se haverá ou não crescimento em santidade, é
mais difícil de responder. O que se pensa tradicionalmente é que o
estado da ressurreição é completado de uma vez por todas em um único
ato recriativo de Deus.14 Entretanto, esse ponto de vista enfrenta uma
dificuldade em relação a questões como morte prematura. A maioriados habitantes deste mundo, incluindo muitos cristãos, morre antes de
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PENSANDO NO CÉU • 239
chegar à maturidade, por doença, fome, guerra, catástrofes naturais etc.
Essas pessoas não tiveram oportunidade para desenvolver seu potencial. Além disso, mesmo que atinjam a idade adulta, vivem em umnível muito mais baixo de autoconsciência e de conhecimento de Deuse do mundo do que poderíam, não fossem as circunstâncias fora docontrole delas. Em suma, grande parte das pessoas nunca desenvolveumais do que uma fração de seu potencial. Na maioria das religiões domundo, uma das esperanças em relação à vida após a morte é que nocéu se alcancem algumas dessas possibilidades. A Bíblia ensina que o
alvo de Deus em relação ao homem é que ele se torne como Cristo (Rm8.29, Ef 4.13). Os primeiros passos nesse sentido foram dados
juntamente com a decisão de crer e com o processo de santificação quese seguiu. A conclusão desse processo ocorre do outro lado do túmulo.A distância entre o “já” e o “ainda não”, entre o que somos e o quedeveriamos ser, ainda precisa ser transposta. Isso poderia acontecernum único ato recriativo de Deus ou por um processo de maturação e
purificação. A Bíblia não dá essa ou aquela resposta definida para aquestão, mas vale a pena notar que o Novo Testamento usa metáforasde semeadura e colheita, semente e planta adulta, para descrever nossocrescimento atual, de onde podemos deduzir que o processo continuarána ressurreição. Da mesma forma como não há metamorfoses mágicasna natureza nem transformações instantâneas nesta vida, no reino deDeus também é bem possível que não haja. O que nos espera além damorte pode ser uma estrada contínua num nível superior e um alvo mais
claro diante dos olhos. Talvez esse seja o significado da profeciamessiânica ainda não cumprida de que “do incremento deste principado... não haverá fim” (Is 9.7, ARC). Nosso progresso no reino pode consistir de um contínuo aprofundamento de nossa relação comDeus e da vontade e capacidade de trabalhar para Sua glória. Na
próxima vida, optaremos por buscar a santidade e o conhecimento deDeus, e nossa escolha será completada por oportunidades ilimitadas.Os que buscarem, acharão.
Depois de considerar vários aspectos da continuidade entre estavida e a próxima, estamos prontos para observar as mudanças quetornam o mundo futuro tão diferente do nosso. Vale a pena repetir quesó se pode conceber a descontinuidade em função dos aspectos de nossavida que têm continuidade no mundo por vir. É somente porquecontinuamos sendo nós mesmos, com nossa memória, nossa capacidade
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240 • IMORTALIDADE
de reconhecer os outros, nossas emoções e nossos sentidos intatos, que podemos reconhecer o novo e perceber que ele é diferente. Muitasformas do novo mundo nos serão familiares, e não há dúvidas de quenos sentiremos em casa. Teremos capacidade de criar culturas piedosas,
procurar atividades significativas e progresso pessoal — tudo para aglória de Deus. Mas muita coisa será estranha e nova, de uma formamaravilhosa. É para essa descontinuidade que nos voltamos agora.
2 • Descontinuidade
Um filósofo alemão disse certa vez que a vida após a morte não écomo trocar de cavalos e sair em disparada.15 Em sua origem, essecomentário serviu para zombar da esperança cristã do céu, mas eleexpressa uma verdade básica acerca da nova ordem da ressurreição:apesar das semelhanças, a vida do porvir não é simplesmente a mesmavida, apenas melhorada. Esse é o tipo de pensamento encontrado na
mitologia grega. Zeus, Apoio, Posêidon e o restante do panteão doMonte Olimpo eram semelhantes aos homens e às mulheres, emboramuito maiores e mais poderosos. A descrição bíblica do céu não é assim.O reino vindouro não é apenas maior em termos quantitativos; é muitomais: é uma ordem existencial diferente, e isso faz com que seja difícildescrevê-lo ou imaginá-lo. A impressão que se tem de várias passagens
bíblicas é que o autor está sofrendo por falta de palavras, um tipo deinsuficiência literária. O texto de 2 Coríntios 3.8-11 é um bom exemplo.
Paulo tenta descrever em que medida os resultados do ministério deCristo são muito melhores do que a ordem do Antigo Testamentomediada por Moisés. Em apenas três períodos ele usa dez vezes a
palavra “glória” e seus derivados. Na Bíblia, normalmente, a idéia deglória é usada em referência ao poder ou à majestade de Deus (Êx33.18; SI 19.1) ou à honra devida a Ele (Êx 14.18; Jd 25; 2 Pe 3.18). Masaqui, ela aparece como um tipo de auxílio retórico ou adjetivo restritivo
que indica alguma coisa mais grandiosa, sem que se possa dizerexatamente o que é nem como é.Sem dúvida, Paulo pensou muito nesse problema — como des
crever, de modo convincente, a maravilhosa natureza do reino vindouro. Começamos com sua tentativa dialética em 1 Coríntios 2.9,10,cuja primeira metade dizia: “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram...o que Deus tem preparado para aqueles o amam”. Ninguém viu nem
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PENSANDO NO CÉU • 241
ouviu as coisas do reino porque não existe nada exatamente igual nestemundo. Quando tentamos descrever o céu, deparamo-nos com ummuro conceituai que, em certos aspectos, é intransponível. Essa talvezseja a razão pela qual muito do que a Bíblia diz acerca do reino sejaexpresso em forma de negativas. A frase repetida com maior freqüênciaé “não haverá...”16 O raciocínio dedutivo geralmente não funciona comessas passagens porque não se pode partir da não-existência de algo
para se chegar às condições de possibilidade de sua não-existência. Nadiscussão inicial, consideramos a promessa de que na vida por vir não
haverá morte. O fato de a morte ser extirpada da vida humana vai mudartudo. Não há nenhuma dúvida quanto a isso. Mas há poucas indicaçõessobre como seria uma vida sem morte. Em geral, é muito mais difícilfalar acerca dos aspectos descontínuos da vida do porvir, e só ocasionalmente se pode inferir algo de substancial. Muito do que se dizsobre o céu oferece pouca possibilidade de uma “fusão de horizontes”.Com essas reservas, estamos prontos para considerar pelo menosalguns versículos que expressam a descontinuidade entre este mundo
e a ordem vindoura. Comecemos com as passagens que falam dadestruição e da recriação do mundo para, depois, considerar as quedescrevem em que será diferente a vida na presença de Deus.
O cosmos que nossos cientistas estudam hoje com tanta diligêncianão passará do dia do julgamento (2 Pe 3.5, 6; 1 Co 7.31; Ap 21.1). Seo universo está se expandindo infinitamente ou passando por ciclos deexpansão e colapso, essa questão será decidida num instante.1 As
mudanças no cosmos serão tão impetuosas que Isaías escreve: “Pois eisque eu crio novos céus e nova terra; e não haverá lembrança das coisas passadas, jamais haverá memória delas” (Is 65.17). Como se podedescrever essa nova ordem? É provável que não se possa, a não ser pornegativas como: não haverá morte (Is 25.8; 1 Co 15.26), não haveráescuridão ou noite (Ap 22.5); não haverá mar (Ap 21.1); não haverámaldição (Ap 22.3); não haverá doença, luto ou dor (Ap 21.4) e, talvezo mais importante, não haverá mal (Ap 20.10-15). Qualquer que tenha
sido sua origem misteriosa — angelical ou humana — o mal não persistirá na era vindoura. A natureza já não ameaçará o homem, e estenão violará nem prejudicará a natureza, incluindo a humana, poisnossas vidas serão vividas em corpos glorificados ou espirituais (1 Co15.50ss.; 2 Co 5.1).
Embora essas declarações sejam quase totalmente negativas, uma
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das mudanças mais fundamentais da ordem do porvir está expressa na
declaração afirmativa de que Deus habitará com o homem (Ap 21.3).18Ele estará perto, visível, sem véu, e fornecerá luz para todos (Ap 21.23;
22.5). Quer as culturas humanas sejam muitas, quer uma única; quer
haja progresso, quer uma consolidação definitiva; qualquer que seja aforma assumida pela vida humana, tudo será reconstruído à luz da
presença de Deus. Mas para descrever a vida na presença de Deus,
precisamos voltar para as negativas: essa vida estará livre do pecado (Ef
5.5; G1 5.20, 21) e do pecador (G1 5.19-21; Ap 21.27). Não haverá
tentação nem capacidade para pensar de uma forma egoísta ou pecaminosa. Não haverá mágoa, lágrimas, luto, saudade, frustração
nem tristeza (Ap 7.17; 21.4; 22.5). Os sentimentos pecaminosos delascívia, cobiça e inveja não estarão presentes (1 Co 6.9,10). Não haverá
ameaça de discriminação, nem ódio ou medo. Também não haverá
casamento e, provavelmente, tudo o que o acompanha, incluindo areprodução, pois se diz que, nesse aspecto, os homens serão como osanjos de Deus (Mt 22.30). Por fim, no reino vindouro, haverá uma
inversão de valores em que muito do que hoje é julgado importante será
considerado sem valor. Jesus faz uma alusão a essa inversão de valores
em Sua lacônica declaração de que os primeiros serão últimos, e os
últimos, primeiros (Mt 19.30). Dinheiro, poder, prestígio, posses,
coisas pelas quais a maioria dos homens luta a vida inteira, deixarão de
ter significado. A mansidão e a humildade serão valorizadas; aarrogância e o orgulho, eliminados (Mt 5.3; 18.3; Lc 6.20). O
conhecimento e o amor de Deus serão os valores supremos, e ambosserão plenamente satisfatórios.20
Tentamos aqui refletir sobre as passagens bíblicas que falam do
céu, separando as que indicam continuidade das que apontam para
descontinuidade em relação ao mundo presente, usando um raciocínio
dedutivo com as que aceitam esse processo. Essa abordagem permite
muita reflexão. Mas de todos os pensamentos que podem ser
concebidos a respeito da era vindoura, talvez o mais forte e, certamente,
o mais motivador, é o de que esses eventos não são mitologiasatemporais nem sonhos utópicos. São fatos que estão sendo preparados
agora mesmo. A vinda deles está bem próxima no horizonte do tempo.
Voltando à idéia do começo deste livro, sabemos que esses eventos irão
se concretizar e que o reino vindouro chegará, porque temos uma
palavra segura de profecia para prová-los. Tão certo como o Messias
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PENSANDO NO CÉU • 243
veio, sofreu, morreu e ressuscitou dos mortos, assim também esses
eventos grandiosos do futuro irão se concretizar e o plano de Deus serácumprido. Nossa obrigação é trabalhar e estarmos prontos.
NOTAS DO CAPÍTULO
*Nem todos concordam que essa seja a função da hermenêutica. Trata-se hoje de uma forte tradição secular que afirma que o objetivo de interpretar um texto é criar um novo significado. Dentre os livros contemporâneos que defendem esse ponto de vista, o mais importante é Truth and Method (“Verdade e Método”), de Hans George Gadamer. Basta dizer que tal ponto de vista é incompatível com todo e qualquer conceito da Bíblia como o continente da verdade para todos os homens de todos os tempos.
1. Alguns grupos protestantes rejeitam o uso da razão em matéria de fé. Há dois motivos para isso. O primeiro é o medo dos efeitos destrutivos do raciocínio crítico, cuja essência é questionar todas as coisas. O segundo é o desejo de enfatizar o trabalho do Espírito e não o da mente. Contrária a ambos, a Bíblia encoraja o uso da razão em matéria de fé. Paulo oferece um exemplo claro disso, pois seu método básico para alcançar os judeus de seu tempo era o de debater com eles (c/. At 17.2,17; 18.4,19).
2. Veja a discussão em Hendrikus Berkhof, Christian Faith, Eerdmans, 1986, pp. 490-494.
3. Paulo tinha prazer em tais construções dialéticas. Considere Fp 2.8,9 ou 2 Co 4.8. Muitos grandes filósofos e teólogos, incluindo Platão, Lutero, Pascal, Hegel, Kierkegaard, Barth e Tillich também usaram o pensamento dialético na tentativa de descrever o mundo. Veja Ernst Koenker, Great Dialecticians in Modem Thought, Augsburg, 1971.
4. Cf Mt 22.1-14; Mt 25.1-13; Lc 12.35-40; 13.29; 14.7-24; 15.11-32; 22.15,16; Ap
19.7,9.5. Jonathan Edwards apresenta uma excelente discussão sobre o lugar das
emoções na vida cristã, em On Religious Affections, seção 1.6, Banner of Truth, Edimburgo, 1834.
6. Donald Guthrie, comentando sobre a vida por vir, no final do capítulo intitulado “A Vida Após a Morte”, neste volume, diz que “tudo o que se pode afirmar em definitivo é que o fiel será revestido com um corpo espiritual”. Mas o que significa ser espiritual? A Bíblia fala de várias coisas chamadas espirituais, incluindo a mente (Rm 8.6, lit. “mas a mente do Espírito...), as bênçãos (Ef 1.3), os dons (Rm 1.11), a lei
(Rm 7.14), o culto (Rm 12.1, BJ), o zelo (Rm 12.11), a sabedoria (Cl 1.9), a verdade e as palavras (1 Co 2.13), os cânticos (Ef 5.19) e o corpo (1 Co 15.44). O adjetivo “espiritual” não significa necessariamente “material” ou desconhecido, como o é qualquer coisa relacionada ao Espírito de Deus ou influenciada por Ele. A s pessas ou as coisas são chamadas espirituais quando mantêm uma relação com o Espírito. Os cristãos são chamados espirituais, não por serem menos físicos que os outros, mas porque são nascidos do Espírito, e Este habita neles (cf. 1 Co 2.13, 14). Na Bíblia, portanto, a palavra “espiritual” não é usada como um adjetivo que insinue uma
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imposição de limites quanto ao que se podería conhecer a respeito da vida por vir.7. Quanto ao fato de a árvore da vida ser idêntica à do Jardim do Éden, veja os
comentários de Ellul no capítulo 6.8. Veja Aquino, Summa Theologica, questão 13, artigo 2.9. A cultura humana é um conceito vasto que inclui todas as estruturas sociais e
materiais que formam determinada sociedade, incluindo riqueza material, lei, religião, moralidade popular, expressões artísticas etc. Também inclui a organização de suas
atividades programadas por intermédio de instituições religiosas, educacionais, políticas e militares. Esse complexo de atitudes sociais, crenças pessoais e estruturas
institucionais é construído gradualmente, através de um longo processo baseado na
capacidade de apurar o gosto, os costumes e a inteligência das pessoas por meio da
educação, disciplina e experiência. Para esta discussão, são dois os aspectos importantes da cultura: primeiro, todas as culturas têm uma estrutura de poder que
mantém a ordem social; segundo, todas as culturas refletem, nas estruturas
institucionais e sociais, a sua compreensão do significado ou propósito da vida.10. Desde o final do século XVIII, a idéia de desenvolvimento ou progresso tem
sido incluída em todas as discussões sobre cultura. J. B. Bury, Vie Idea o f Progress,
Macmillan, 1921 e R. Nisbet, History o f the Idea o f Progress, Harper & Row, 1979.11. Veja também Zc 14.16, 17, onde se faz uma descrição de ajuntamentos
regulares, reunindo judeus e gentios.
12. Outras passagens também podcriam ser consideradas, tais como a promessa feita a Davi no Antigo Testamento, dizendo que sua descendência reinaria para
sempre. Aqui, nosso ponto de vista acerca do milênio influencia nossa compreensão
do céu. Existe uma discussão sobre se certas passagens — tais como a do leopardo
deitado junto ao cabrito, do reinado de Cristo em Jerusalém, da restauração do templo
e da terra de Israel — fazem referência a um reino eterno ou a um reino milenar. A
maioria desses textos controvertidos não será usada, já que o propósito deste artigo é
apresentar uma forma de abordar essas passagens sobre o céu e não defender ou
combater a posição milenista.
13. Berkhof nota que, nas épocas mais difíceis da história, a fé cristã demonstra maior interesse pelas imagens neotestamentárias do tipo “descanso” e “sábado”. Não
sem razão, pois na vida do porvir o homem poderá respirar livremente, sem receio.
Aqu ele que sofreu e labutou nesta vida tem motivos para imaginar a vida eterna como
um descanso imperturbável, enquanto a pessoa dinâmica, que viveu uma vida plena de
serviço, pode igualmente esperar alcançar alvos mais elevados, com maiores
responsabilidades. Deus é ilimitado e inesgotável. Quanto mais próximos dEle, tanto
mais veremos que as possibilidades da vida com Ele também são assim. Portanto, é
possível que a atividade e o serviço eterno ao Rei devam ser considerados paralelos ao
descanso e ao gozo eterno. Christian Faith, pp. 537-545.14. Quanto a uma defesa da posição tradicional de que não há santificação, apenas
conclusão, após a morte, veja Herman Bavinck, Reformed Dogmatics, pp. 797-803.15. A fonte dessa frase é desconhecida, mas ela tem sido atribuída a Feuerbach,
filósofo alemão.16. Faz parte da tradição da igreja falar acerca de Deus e do mundo por vir usando
frases negativas. Houve um tempo em que a via negativa era um método teológico
respeitável. A idéia básica era que não podemos falar acerca do que Deus é, apenas
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PENSANDO NO CÉU • 245
do que Ele não é, pois Sua natureza é diferente da nossa. Pseudo-Dionísio, o
Areopagita, (c. 500) recebe o crédito pela introdução dessa idéia nos círculos cristãos.
Veja C. E. Rolt, Dionysius the Areopagite on the Divine Nam es and the Mystical
Theology, Macmillan, 1920.17. O ensino bíblico de que Deus criará todas as coisas novamente não parece
compatível com nenhuma das concepções evolucionistas usadas hoje. O cientista e
teólogo católico Teilhard de Chardin sugeriu que a matéria é o útero ou a matriz de
onde surge a vida espiritual e, depois que isso acontece, sua missão está cumprida, sendo posta de lado. Mas isso não parece coerente com a distinção bíblica entre corpo
e alma, matéria e espírito. E também não faz justiça à ênfase que a Bíblia dá à idéia de
uma separação completa entre esta era e a próxima (Is 65.17; 66.22; 2 Pe 3.13; Ap 21.4).
Embora o modelo evolucionista de Chardin seja atraente em nossa época, por estar
recebendo tanta aprovação das ciências naturais, não é uma perspectiva histórica
aprovada pela Bíblia. Veja Teilhard de Chardin, The Phenomenon o f Man, Harper and
Row, 1955.18. C f também Zc 8.3; Jo 14.2ss.; 17.24; 2 Co 5.8; 1 Ts 4.14-17.0 conceito de uma
visão beatífica, a idéia de que a visão de Deus é o destino final do homem e seu maior
bem, tem uma fundamentação bíblica. Moisés pede para ver a glória de Deus (Êx
33.18ss.). Davi disse: “... buscarei... a tua presença” (SI 27.8). Veja em Aquino, Summa
Contra Gentiles, III, c. 37, 47-63 e Summa Teologica, Sup. 92, uma discussão sobre a
visão beatífica. Veja também Berkhof, Christian Faith, pp. 534-535.19. Friedrich Nietzsche, sempre observador, vociferou contra o fato de o
cristianismo ensinar uma inversão dos valores do mundo. Ele disse que, em vez de
ensinar a “vontade de potência”, pela qual o homem pode se exaltar e dominar tanto
a natureza como a si mesmo, o cristianismo ensinava mansidão, humildade, bondade, dar a outra face etc. Nietzche pensava que esses valores cristãos eram destrutivos, inimigos do progresso humano. Ele era, de fato, como afirmava, um “anticristo”. Veja
Friedrich Nietzsche, O Anticristo.
20. Há razão para se crer que os valores da ordem natural também serão
revertidos. A lei da sobrevivência dos mais aptos também deixará de vigorar. O cabrito se deitará com o leopardo, em vez de ocupar o degrau logo abaixo na cadeia alimentar.
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9 Alan B. Pieratt
INTRODUÇÃO
Fechamos esta coletânea com uma parte de um livro de Oswald J.Smith. Pode parecer que uma compilação de declarações feitas porhomens famosos no leito de morte, tanto ateus como fiéis, teria poucoespaço num livro sério a respeito da vida após a morte. No entanto, emtodas as discussões sobre o reino vindouro de Deus, a palavra final deve
ser pessoal. Na verdade, todos os tópicos deste livro são intensamente pessoais. Nós é que vamos morrer, ressurgir dos mortos e ser julgados. Nós é que vamos gozar a vida com Deus ou ser banidos da presença deDeus, de acordo com o que escolhemos: crer ou não crer. Decerto, ascrenças cristãs podem ser estudadas como qualquer outro assunto, taiscomo a biologia, a física ou a filosofia. Suas origens históricas podemser traçadas com grandes detalhes acadêmicos. É possível fazer análises
minuciosas dos textos bíblicos. Mas, no fim, o cristianismo exige umadecisão. Muitas pessoas só consideram essa questão quando a morteestá próxima e o coração sonda a si mesmo, procurando aquilo em querealmente acredita. Espera-se que esses testemunhos induzam o leitor,qualquer que seja sua condição, a considerar essa decisão agora.
Nesses relatos encontraremos as afirmações de homens que, pelaúltima vez, estão se confrontando com a decisão de crer ou não crer. Ogrande contraste entre as duas decisões é evidente. Para aqueles semfé, a morte é uma perspectiva sombria e pavorosa. Para aqueles queagiram de acordo com a fé em Deuss ao longo da vida, o medo da morteé derrotado, e brilha do outro lado uma esperança. A Bíblia nuncainsinua que alguém possa ser empurrado para dentro do reino, movido
pelo medo (embora a história do carcereiro filipense chegue pertodisso). Mas a perspectiva da própria morte é um espectro que nos leva
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a buscar fé e esperança. Essas histórias podem induzir cada um de nós
a empreender essa busca agora, antes que chegue o tempo.
Em sua origem, o presente texto fez parte de um capítulo em The Gospel We Preach,
de Oswald J. Smith, publicado por Marshall, Morgan and Scott, na Inglaterra, em 1949.
A tradução é de Gérson Dudus.
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9 Oswald J. Smith
TESTEMUNHOS NO LEITO
DE MORTE
Agora, para terminar, permitam-nos citar as últimas palavras doscéticos e descrentes em geral. Ouça o que têm a dizer em seus leitos demorte estes homens e mulheres que ousaram atacar a Deus e SuaPalavra. Pois só quando estão às portas da morte os verdadeiros
segredos do coração são expostos; só então dizem em que realmenteacreditam. Não enquanto vivem; vivos, eles o encobrem; procuramesconder o verdadeiro ego. Mas coloque-os face a face com a morte eveja o que fazem, ouça o que dizem. Ficar ao lado de um incrédulo queestá morrendo é uma experiência que poucos iriam querer repetir. Ecomo é diferente o leito de morte de um verdadeiro cristão! Quecontraste! Mas, deixemos que falem por si mesmos.
Thomas Paine
“Ele gritava ininterruptamente durante seus paroxismos deangústia: ‘O Deus, me ajude! Senhor, me ajude! Jesus Cristo, me ajude!Ó Senhor, me ajude!’ etc., repetindo as mesmas expressões sem a menorvariação, num tom que alarmava a casa toda. ‘Daria mundos, se ostivesse’, gritava, ‘para que The Age of Reason (“A Idade da Razão”)nunca tivesse sido publicado.”’
Voltaire
“Por três meses, o remorso, a reprovação e a blasfêmia acom panharam e caracterizaram a longa agonia daquele ateu moribundo.Sua morte, dentre as registradas, a mais terrível a atacar um ímpio, nãofoi negada nem por seus companheiros de impiedade. O silêncio deles,
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po r m ais que quisessem negar, é a ú ltim a das evidênciascomprobatórias que podem ser citadas. Nem um deles jamais ousoumencionar algum sinal de firmeza ou tranqüilidade dado pelo premier. Tal silêncio demonstra como foi grande a humilhação que sofreram namorte dele.
Apesar de todos os filósofos pagãos que se congregavam a seuredor, ele deu sinais de desejar retornar ao Deus contra quem
blasfemara com tanta freqüêpcia. Chamou um padre. Aumentando o perigo, escreveu suplicando ao Abade Gaultier que fosse visitá-lo. Maistarde, fez uma declaração na qual renunciava à sua infidelidade.Voltaire permitiu que essa declaração fosse levada ao Reitor de S.Sulpice e ao Arcebispo de Paris, para saber se ela seria suficiente.Quando o Abade Gaultier retornou com a resposta, foi impossibilitadode chegar até o paciente. Os conspiradores envidaram todos os esforços para impedir que seu chefe consumasse sua retratação, e todos oscaminhos foram fechados ao sacerdote enviado por Voltaire. A raivaseguiu-se à fúria e a fúria à raiva novamente durante o restante de sua
vida.D’Alembert, Diderot e cerca de vinte outros conspiradores nuncase aproximavam dele, a não ser para evidenciarem suas própriasignomínias; e freqüentemente ele os amaldiçoava e exclamava:‘Retirai-vos! Fora! Que glória infame conseguistes para mim!’ Eles
podiam ouvi-lo, uma presa da angústia e do pavor, suplicando ou blasfemando alternadam ente àquele Deus contra quem haviaconspirado; e em tons queixosos gritava: ‘Ó Cristo! Ó Jesus Cristo!’ e
se lamentava por ter sido abandonado por Deus e pelos homens.Aterrados, seus médicos se afastaram, afirmando que a morte de umímpio era terrível demais.
O orgulho dos conspiradores prontamente suprimiu essas declarações, mas foi em vão. O Marechal Richelieu fugiu de sua cabeceira,declarando que era por demais terrível suportar aquela visão; e o Dr.Tronchin, dizendo que a fúria de Orestes podia oferecer apenas uma
pálida idéia da fúria de Voltaire.
Em uma de suas visitas, o médico o encontrou nas maiores agonias,exclamando com o mais puro horror: ‘Fui abandonado por Deus e peloshomens’, e então disse: ‘Doutor, dar-te-ei metade do que possuo se mederes mais seis meses de vida’. O médico respondeu: ‘Senhor, não
podes viver nem seis semanas’. Voltaire respondeu: ‘Então vou para oinferno’, e logo depois expirou.”
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TESTEMUNHOS NO LEITO DE MORTE • 251
Francis Newport
‘“Pobre de mim! Quem pode escrever sua própria tragédia semlágrimas ou copiar a sentença de sua própria condenação sem horror?Que há um Deus eu sei, porque continuamente sinto os efeitos de Suaira; de que há um inferno também estou certo, pois já recebi em meu
peito uma porção da minha herança de lá. Desprezei meu Criador eneguei meu Redentor; juntei-me aos ateus e profanos, e continuei nessecaminho sob inúmeras condenações, até que minha iniqüidade ficoumadura para a vingança e o justo julgamento de Deus.
Quão inútil é pedir ao fogo que não queime quando se acrescentacombustível, e ordenar ao mar que fique calmo no meio de umatempestade! Esse é o meu caso; e o que significa o conforto de meusamigos? Para onde estou indo? Condenado e perdido para sempre.Deus tornou-Se meu inimigo e não há ninguém que possa salvar-me.’
Sua voz falhou e ele começou a lutar para manter a respiração;quando a recuperou, com um gemido medonho e horrendo, como seaquilo tivesse sido algo sobrehumano, gritou: ‘Ó, as insuportáveis
angústias do inferno e da condenação!’, e então expirou.”
Um universalista à morte
“‘Minha chance se foi!’, disse ele. ‘É tarde demais para mim! Tardedemais!’ ‘Não, Senhor, não é tarde demais’, insisti. ‘Se você quiser amisericórdia de Deus, você a terá.’
‘Misericórdia! Misericórdia!’, ele vociferou. ‘É ela que torna minha
situação tão pavorosa! Eu desprezei a misericórdia! Eu zombei deDeus! Eu recusei a Cristo! Minha chance se foi! Estou perdido!Perdido! Ó, tolo! tolo! Fui tolo a vida inteira!’
O pai dele entrou, dizendo: ‘Você nunca fez mal a ninguém’.‘Não fale comigo, pai’, disse ele num tom de ódio e raiva. ‘Você foi
meu pior inimigo! Você me arruinou! Você me disse que não haviainferno. Não me venha agora tentar me enganar de novo. Eu zombeido inferno; agora o inferno zomba de mim! Deus punirá os pecadores!
Ele se apoderou de mim, e eu não posso fugir das suas mãos. Existe,sim, um inferno horrendo.”’
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Outros
“Tudo é escuro e incerto.” — Gibbon
“Todas as minhas posses por um pouquinho de tempo!” — Rainha Elizabeth
“Pedindo um copo d ’água à esposa, disse: ‘Não poderei consegui-lono lugar para onde estou indo’. Bebendo sofregamente, fitou os olhosda esposa e exclamou: “Ó! Marta, Marta; você selou minha perdiçãoeterna!” e morreu. — Um ateu
‘“Os demônios estão chegando; ó, salvem-me! Eles me arrastam p ara baixo! Perdida! Perdida! P erd id a!’ Pouco depois, eladisse:‘Atai-me, ó grilhões da escuridão! Oh! Se eu pudesse deixar deser, mas continuo existindo! O verme que nunca morre, a segundamorte.’” — Jennie Gordon
“Até este momento eu pensava que não havia nem Deus neminferno. Agora sei e sinto que ambos existem, e fui condenado à
perdição pelo justo julgamento do Todo-Poderoso.” — Sir Thomas Scott
“Estou perdido! Perdido!” — Gambetta
“Meu pecado é maior do que a misericórdia de Deus. Eu neguei aCristo, voluntariamente. Sinto que Ele não me reserva nenhumaesperança.” — Francis Spira
“Estou sofrendo a agonia dos condenados.” — Tallyrand Perigord
CENAS DA MORTE DE FIÉIS
Agora, observemos algumas cenas da morte de fiéis. Ouça o queeles dizem e note o contraste:
John Payson
Seu leito de morte presenciou uma cena extraordinária e sublime;ele gritou: “Isto basta: Cristo morreu por mim. Estou subindo para otrono de Deus!” Então, rompendo em acordes de louvor arrebatadores,
juntando as mãos como se estivesse orando, disse: “Sei que estoumorrendo, mas meu leito de morte é um leito de rosas; não tenho
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TESTEMUNHOS NO LEITO DE MORTE • 253
espinhos plantados no travesseiro de minha morte. O céu já começou;a vida eterna está ganha, ganha, ganha. Tenho uma morte fácil, segurae feliz. Tu, meu Deus, estás presente, eu sei, eu sinto Tua presença.Jesus precioso! Glória a Deus!” Logo depois, expirou exclamando:“Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!”
David Brainerd
“Meu desejo é servir a Deus e ser completamente devotado à Suaglória; este é o céu pelo qual anseio, esta é minha religião e minha
felicidade, e sempre foi, desde que julguei ter uma verdadeira religião.O guardião está comigo; por que a carruagem custa tanto a chegar? Porque tardam as rodas de Sua carruagem?”
John Wesley
Quando os amigos se acercaram de seu leito de morte, ele tentoufalar, mas, observando que não estava sendo entendido, parou.
“Então”, disse uma testemunha ocular, “erguendo seus braçosenfraquecidos num gesto de vitória, e elevando a voz debilitada emsanto e indizível triunfo, gritou: “O melhor de tudo é que Deus está
conosco”.Enquanto umedeciam-lhe os lábios, disse: “Agradecemos-Te,
Senhor, estas e todas as Tuas misericórdias; abençoa a Igreja e o Rei;e concede-nos paz e verdade através de Jesus Cristo, nosso Senhor, paratodo o sempre!”
“Ele faz com que seus servos descansem em paz”; as nuvensdestilam fartura”; “O Senhor está conosco, o Deus de Jacó é o nossorefúgio” —são algumas de suas exclamações fragmentadas, mas cheiasde êxtase, nas últimas horas de vida.
Novamente ele convocou os companheiros para orar à beira de suacama; o quarto havia se tornado não apenas em santuário, mas nos
portais dos céus; ele participou da liturgia com crescente fervor;durante a noite, várias vezes tentou repetir o hino de Watts que havia
cantado no dia anterior; mas só conseguia proferir: “Eu te louvo... Eute louvo...”
Na manhã seguinte, fechou-se a cena sublime. Joseph Bradford, parceiro de longa data em suas viagens ministeriais, o companheiro emsuas provações e sucessos, orou com ele. “Adeus!” foi a última palavra
e bênção do apóstolo ao falecer.
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254 • IMORTALIDADE
Billy Bray volta para casa
Na sexta-feira, ele desceu as escadas pela última vez. A um de seusvelhos amigos que, poucas horas antes de sua morte, perguntou-lhe senão tinha nenhum medo da morte, ou de se perder, ele disse: “O quê?Eu temer a morte? Eu perdido? Ora, meu Salvador venceu a morte. Seeu fosse para o inferno, iria gritando glória! glória! ao meu benditoJesus, até fazer o inferno ressoar, e o miserável e velho Satanás diria:“Billy, Billy, isso não é lugar para você; saia daqui”. Então eu iria parao céu, gritando glória! glória! glória! louvado seja Deus!” Pouco depois,
ele disse: “Glória!”, e essa foi sua última palavra.
Mortinho Lutero
Os amigos queriam que ele tomasse algum remédio. “Estou partindo e, em breve, vou render meu espírito”, disse Lutero, repetindotrês vezes: “Pai, em Tuas mãos entrego meu espírito, porque Tu meredimiste, Tu, Deus da Verdade”. Então, ficou completamente imóvel,
não respondendo às perguntas que lhe dirigiam, até que, friccionandoseu pulso com uma solução revigorante, o Dr. Jones lhe disse ao ouvido:“Reverendo, o senhor permanece com Cristo e com as doutrinas quetem pregado? Elas resistem à agonia da morte?” “Sim! Sim! Mil vezes,sim!”, gritou Lutero e, virando-se, adormeceu.
Toplady
“A doença não é aflição; nem o sofrimento, maldição; nem a morte,dissolução, o céu está claro, não há nuvens. Vem, Senhor Jesus, vemdepressa.”
John Oxtoby
“Oh, o que contemplei; uma visão que não posso descrever. Haviatrês figuras brilhantes próximas a mim; suas vestes eram tão brilhantes,
seus semblantes tão gloriosos que a nada que eu tenha visto antes poderíam se comparar”. Esta foi sua oração final: “Deus, salva as almas;não as deixes perecer”. Logo depois, exclamou: “Glória, glória, glória!”e se foi.
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TESTEMUNHOS NO LEITO DE MORTE • 255
Catherine Booth retoma ao lar
“As águas estão subindo, mas eu também. Não vou submergir, massubir. Não se preocupe com sua morte, apenas continue a viver bem, ea morte correrá bem.” Suas últimas palavras foram ditas ao General:Até que a aurora surja e as sombras se dissipem”.
A morte triunfante do Dr. Wakely
“Pela manhã, irão perguntar: ‘O irmão Wakely morreu?’ Morreu?
Não! Digam que ele está melhor e vive para sempre. Eu conheço ovelho barco. O Piloto me conhece muito bem. Ele me levará seguro ao porto. As brisas celestes já sopram no meu rosto. Não serei um estranhono céu. Sou bem conhecido lá em cima. Como Bunyan, vejo umaenorme multidão com vestes brancas e anseio por estar com eles. Émuito melhor partir e estar com Jesus. Quando forem à sepultura, nãovão chorando. A morte não tem aguilhão. O túmulo não traz nenhumterror. A eternidade não possui escuridão. Cantem em meu funeral.
Ouçam! Ouçam! Não estão escutando a canção? A vitória é nossa. Hágrande regozijo no céu. Abri-vos, portais dourados, e deixai meu carro passar.”
A partida de Whitefield
“Senhor Jesus, estou exausto em Teu trabalho, mas não do Teutrabalho. Se ainda não completei meu curso, deixa-me ir e falar por Ti
mais uma vez nos campos, e selar a verdade, e voltar para casa paramorrer. Prefiro me consumir a me enferrujar.” Ele correu até a janela,lutando para respirar, dizendo: “Estou morrendo”. E quase imediatamente deu o último suspiro em sua cadeira.
O martírio de Latimer
“Tenha bom ânimo, Mestre Ridley, e seja homem! Neste dia,
acenderemos na Inglatei ’•a, pela graça de Deus, uma vela que, confio,nunca será apagada!” Depois disso, exclamou: “Ó Pai Celeste, recebeminha alma!”
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Outros
“Estou satisfeito com Tua semelhança; satisfeito — satisfeito — satisfeito!” — Charles Wesley
“Logo estarei com Jesus. Talvez eu esteja por demais ansioso. Issoé a morte? Ora, ela é melhor que a vida! Diga-lhes que morro feliz emCristo.” — John Arthur Lyth
“Ainda nos encontraremos para sempre, para cantar a nova cançãoe estarmos felizes eternamente num mundo sem fim. Toma-me, pois
estou indo para Ti.” — John Bunyan
“O sol está se pondo, o meu está nascendo. Vou desta cama parauma coroa. Adeus.” — S. G. Bangs
“A terra recua, os céus se abrem diante de mim!” — D. L. Moody
COMO SERÁ A SUA?
Amigo, diga-me, como será sua morte? Lembre-se, não há comofugir. “Aos homens está ordenado morrerem uma só vez.” Quem disseisso? Deus! O Deus a quem você rejeita e despreza. Mas como você vaimorrer? Quais serão seus pensamentos naquela terrível e última hora?Será a morte de um ateu ou a de um fiel voltando para casa? É vocêquem deve decidir. Ó, deixe-me implorar, agora, antes que seja tardedemais, que lance fora suas dúvidas e diga: “Sim! Eu o farei! Creio agoraque Jesus morreu por mim”, e neste momento fique de joelhos, aímesmo onde você está, e diga-Lhe isso. Pois Ele terá misericórdia e perdão abundante.
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E n tr a m o s em águas profundas quando estudamos a
natureza da imortalidade e da vida após a morte, pois
estamos esquadrinhando além do finai do mundo presente
e o início de uma nova ordem.
O t d t i d D t ã i t