sabores negros, paladares brancos: gÊnero, … · são oito horas e quarenta minutos da manhã de...
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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
SABORES NEGROS, PALADARES BRANCOS: GÊNERO, TRABALHO E
DESLOCAMENTOS
Maíra Samara de Lima Freire
Resumo: Este trabalho procura refletir sobre deslocamentos, trabalho e gênero numa
comunidade negra rural do Caribe colombiano. A tentativa é a de acompanhar o
movimento das mulheres negras palenqueras em circulação com o trabalho com os
doces em diversos territórios colombianos e em outros países fronteiriços, e assim
pensar nos fluxos, nos deslocamentos, migrações, nas interações e nos significados
desta atividade em termos das relações de gênero, trabalho, raça e classe social.
Objetiva-se realizar uma análise que leve em conta as relações de trabalho, de gênero e
de raça/etnia das mulheres afrocolombianas de San Basílio de Palenque.
Palavras-chaves: gênero, deslocamento, trabalho, raça.
São oito horas e quarenta minutos da manhã de um domingo ensolarado, numa
comunidade negra rural na Colômbia. Ao caminhar pelas ruas de terra batida, já é
possível perceber a movimentação de pessoas. São mulheres, homens e crianças que vão
para o espaço da rua para providenciar o que é necessário para o dia. Saem para
comprar mantimentos, trabalhar, visitar familiares. Em uma dessas saídas de um
domingo movimentado, perceber-se o intenso fluxo de pessoas, de carros e mercadorias;
domingo é um dia, por excelência, de efervescência na localidade. É dia de receber os
turistas que chegam para conhecer um pedaço de África na Colômbia, é dia dos parentes
distantes se verem. É dia de festa, bebida e de champeta1. Na praça principal, nota-se o
deslocamento de diversas mulheres palenqueras que vão até os municípios vizinhos para
trabalhar e retornar ao final do dia para suas casas. Elas trabalham vendendo doces de
diferentes tipos, em diversas cidades pela Colômbia e países fronteiriços. São
reconhecidas em Palenque como comerciantes e desbravadoras.
Caminhando mais um pouco, às nove horas da manhã, encontro na casa de uma
vendedora que está prestes a iniciar sua rotina de venda. Ela termina de tomar seu café
reforçado, à base de peixe, aipim e banana da terra, junto com uma sopa, para logo
calçar suas sandálias, passar um óleo corporal nos seus pés e pernas e dispor seu avental
1 Champeta é um fenômeno musical e cultural e também uma dança da região do Caribe colombiano, de origem de áreas de afrodescendentes colombianos de Cartagena e Barranquilla e de San Basilio de Palenque, influenciada por gêneros musicais do continente Africano.
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em sua cintura. Pega a sua bacia de alumínio regada de doces e leva alguns instantes
para colocá-la sobre sua cabeça, até a chegada da moto que nos conduzirá até a saída de
Palenque. São cerca de vinte e cinco quilos sustentados na cabeça e, para aliviar a
pressão do peso, coloca-se um pedaço de trapo em forma de rodilha antes de alojar a
bacia. É chegada a hora de subir na moto e sair de Palenque. A bacia com os doces,
neste momento já se encontra disposta na parte dianteira da moto, e na parte de trás a
senhora carrega, em uma de suas mãos, o banquinho de plástico que servirá para apoiar
os doces em alguns momentos. Após essa pequena digressão, o que me interessa e
possibilita essa escrita é a vivência desse tipo de trabalho informal, de mulher negra, de
agência, e os desdobramentos dessa experiência. A tentativa é a de acompanhar o
movimento das mulheres negras palenqueras em circulação com os doces, assim pensar
nos fluxos, nos deslocamentos, nas interações e nos significados desta atividade em
termos das relações de gênero, trabalho, raça e classe social. Assumindo que a raça e o
gênero estão inexoravelmente conectados à oportunidade ocupacional (Branch, 2007),
pretendo articular como gênero, raça/cor e classe reforçam categorias estruturais em
espaços econômicos e sociais e como são vivenciadas através dos corpos de mulheres
negras. Perceber suas estratégias e formas de atuação na manutenção de um fazer-saber
tradicional, e como este trabalho revela aspectos que informam sobre a diferença no
regime de trabalho entre homens e mulheres, além de refletir sobre o uso doméstico do
dinheiro, sobre relações políticas, sociais e econômicas presentes na estrutura familiar
palenquera.
Esta fala busca refletir, então, sobre a especificidade do trabalho do fazer doces
de mulheres negras da comunidade de San Basilio de Palenque, localizado no município
de Mahates, no departamento
de Bolívar, na Colômbia,
distante 45 km da cidade de
Cartagena de Índias. San
Basilio de Palenque é
uma comunidade
fundada por pessoas
escravizadas que se
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refugiaram nos palenques da Costa Norte da Colômbia desde o século XV.
Mapa 1: Localização de San Basilio de Palenque, Bolívar,
Colômbia.
Os doces sempre estiveram presentes na culinária de palenque, sobretudo, o doce
de nome alegría (à base de milho, coco e rapadura), assim como os doces que são feitos
e consumidos durante a Semana Santa. Embora a comercialização e a atividade em se
trabalhar com doces ocorreu pelo menos nas últimas seis décadas, anteriormente as
mulheres de Palenque trabalhavam com outras atividades que envolviam relações
comerciais. Sobretudo, com o a venda de frutas e verduras adquiridas pelo cultivo
realizado pelos maridos nas suas roças, e tocava a elas sair para vender. A feitura dos
doces é a base da renda familiar e, na maioria dos casos, a principal fonte de renda. Os
produtos elaborados, em sua maioria, são cocadas, as alegrías, alguns doces em forma
pastosa e também o bolo de aipim.
Bacia de doces, abril de 2015, Bucaramanga, Colombia.
As idades dessas empreendedoras variam. Há mulheres que começaram a
trabalhar desde os dez anos, outras na adolescência. A maioria é de mulheres que
apresentam ter de 30 a 60 anos. Muitas delas são mulheres mais velhas que já possuem
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filhos e netos, ou outras mais jovens que saem para vender com suas mães e depois
passam a vender sozinhas para custearem sua carreira universitária.
A rotina de trabalho começa em casa, ou antes, quando elas saem em direção aos
municípios vizinhos a fim de comprar os insumos para os doces. Realizam o trabalho
da negociação e compra dos produtos. Durante a permanência em San Basilio de
Palenque, pude acompanhar com proximidade as rotinas de trabalho e venda de três
mulheres: Andrea, Sol Maria e “La Burgo”. Fora de Palenque (para além da cidade de
Turbaco), fui até a cidade de Bucaramanga, e acompanhei as rotinas de outras sete
mulheres durante um mês.
No período de meu trabalho de campo, raras vezes as vi vendendo para os
palenqueros. O cliente é sempre o outro, de fora, a sua grande maioria é de pessoas
brancas de estados colombianos, mas também de países vizinhos. Muitas vezes lhes
informava sobre a presença de turistas na localidade. Quando passava na lateral da casa
de Andrea, por exemplo, ela sempre me perguntava se eu havia visto turistas na praça
principal da comunidade. Quando eu dizia que sim, prontamente ela vestia a sua roupa
(um vestido multicolorido) e saía com a bacia de alumínio. Em outros momentos, me
solicitava para que fosse até a praça carregando sua ponchera, enquanto ela terminava
de fazer alguma atividade doméstica ou trocar de roupa. Diversas vezes fiquei na praça
sem ela, apenas com seus doces, e me encarregava de vendê-los. Fazia isso também
com La Burgo, que saía para fazer algum mandado “rápido” ou para terminar de fazer o
almoço em sua casa. Com elas, eu ajudava a carregar o banquinho nos deslocamentos
pelas ruas de Palenque, e em suas casas ajudava a fazer os doces. Em alguns momentos,
percebi a ocorrência de pequenos conflitos entre elas. Andrea reclamava que La Burgo
era a mais requisitada pelos guias locais, que era muito “exibida”, pois cantava e
dançava, e por isso vendia mais.
Nas ruas de Turbaco: Casera, cómpreme a mí
O município de Turbaco fica próximo a San Basilio de Palenque, distante 45
minutos de ônibus. Acompanhei Sol Maria de 49 anos, que vende doces desde os 19.
Trabalha nas quartas-feiras, sábados, domingos e feriados. Sol Maria já é reconhecida
em Turbaco, as pessoas a chamam de “Case”, que é uma abreviação de “Casera”,
pessoa que vende comidas caseiras, e uma referência também para as mulheres que
vendem cocadas. Ao me apresentar para os moradores de Turbaco, Sol Maria,
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informava: “Essa é uma amiga brasileira que veio aqui para conhecer Turbaco, e está
aqui caminhando comigo para saber como eu trabalho”. E continuava: “Ela quer saber
como é o trabalho das palenqueras”. Algumas pessoas falavam: Coitadinha. Está
fazendo-a caminhar nesse sol tão quente!”.
Nas vezes que saí com Sol, eu pagava o nosso almoço, mas pude perceber que
ela não tem o costume de parar para almoçar. Nas primeiras idas, Sol pedia que eu
caminhasse à sua frente, creio que seu intuito era ter uma visão das coisas, ou melhor,
de mim, para que nada de ruim me acontecesse. No momento de cruzar a rua, ela
pegava na minha mão e falava: “Pare aí! Agora vamos! Cuidado com a moto!”, e
sempre pedia que eu ficasse atenta com os carros, com as pessoas, e que não pegasse a
minha câmera nos bairros muito movimentados, porque poderia sofrer um assalto.
O momento em Turbaco, para além do trabalho, é aproveitado para realizar
ligações telefônicas. Nos raros momentos de pausa das caminhadas, Sol Maria realizava
ligações para o seu marido, que hoje vive na Venezuela, e para sua filha, que vive em
Cartagena. A sua filha vive em Cartagena, pois recentemente passou no vestibular para
o curso de Comunicação Social. Sol Maria é quem custeia a faculdade da filha com a
venda dos doces, porque, apesar de estudar em uma universidade pública, não há
isenção de custos para o semestre letivo. Seu marido foi para a Venezuela há pelo
menos três anos, em busca de trabalho.
A brincadeira, o riso, as piadas e certas frases compõem o universo de
estratégias facilitadoras da venda dos produtos. As doceiras constantemente estão
fazendo usos de frases que chamarei aqui de apelativas. São frases que apelam,
convidam, incitam e chamam atenção do público comprador. São estratégias
persuasivas de venda. As frases apelativas como: “Não me queres?”, “Venha comprar
dessa negrinha que está caminhando no sol quente”, ou até mesmo o “Aleegrem-se!”,
são frases chaves na interação entre a vendedora e o cliente. O “Não me queres?”
geralmente é anunciado para possíveis compradores masculinos, “Venha comprar dessa
negrinha que está caminhando no sol quente” faz com que o possível cliente tenha
piedade da condição dessa mulher que caminha horas a fio sob sol intenso, sustentando
uma bacia de alumínio extremamente pesada. E outra, mais comumente usada nas ruas
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de Palenque, Turbaco e Cartagena, como mencionei anteriormente, é o “Alegrem-se!”2,
que é o nome de um doce.
Deslocamentos e a noção de trabalho com os doces
Trabalhos sobre a feminização dos fluxos migratórios, Ariza (2000), Velasco
(2002) e Guarnizo (2006), chamam a atenção para uma maior e mais ativa participação
feminina nos processos de descolamento migratórios. São, em sua maioria, mulheres
adultas, mães (chefes de família) que são mais propensas a migrar em busca de melhor
qualidade de vida.
Racializando o debate, ao examinar os fatores das complexidades das relações
informais de trabalho das mulheres negras, o livro da socióloga negra americana,
Winnifred Brown-Glaude (2011) aponta para uma análise sobre o papel da
informalidade da economia vivenciada por dois grupos de mulheres negras na Jamaica,
em especial sobre as suas imagens públicas e auto identificações e interações com as
comunidades locais e estaduais. Nesse sentido, a pesquisadora alega que há um padrão
internacional que evolui em termos de economia informal, e as mulheres pobres negras
passam a ocupar essa seara desenvolvendo formas criativas para “ganhar a vida” que
fornecem um meio pelo qual as mulheres podem estabelecer sua autonomia e garantir
um futuro para suas famílias.
Ao mencionar esse panorama mundial, desloco novamente para as mulheres
palenqueras, a fim de pensar a trajetória do trabalho com doces nas últimas décadas. A
circulação dessas mulheres para outras regiões também tem relação com a entrada de
seus filhos na universidade. Como destacou Josefa Hernandez, que tem 32 anos e
atualmente é cientista política, mas já trabalhou vendendo doces para custear a sua
carreira universitária, discorre que “se vendiam por aquí, mas só dava para a
alimentação, não dava para pagar os estudos dos filhos, então começaram a sair”.
Ao trazer essa referência, lembro que, quando estava na cidade de Bucaramanga,
uma das discussões que surgiram durante a noite na nossa casa era sobre a filha de uma
vendedora que pretendia cursar Medicina. As mulheres presentes argumentaram que o
curso é muito caro para ser sustentado pela venda das cocadas, e a recomendação
2 Na cidade de Bucaramanga, as mulheres vão utilizar de outras frases enunciativas para a venda. O
“Alegrem-se!” deixa de existir nesse contexto.
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daquela noite seria que a mãe orientasse a filha a escolher um curso que fosse viável
pagar. Recordo que sugeriram Enfermagem ou Serviço Social, cursos, segundo elas, que
tinham valores mais baixos, pois o ensino nas universidades, mesmo nas públicas,
demanda despesas financeiras. Recuperando o movimento através dos doces, é
importante notar que a primeira ida para territórios longínquos a fim de desbravar o
interior do país se deu com uma “olhada” no mapa colombiano. Assim destacou,
novamente, Josefa Hernandez: Algunos salían inclusive sin saber para donde iban
porque no conocían el interior del país por ejemplo, entonces comenzaban a mirar en el
mapa, miraban en el mapa! [Surpressa] la primera ciudad en la que empezaron a ir fue
Bucaramanga.
Doces caminhos. Levantamento inicial da circulação, 2016.
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O trabalho das mulheres negras já tem sido amplamente tematizado na literatura
sociológica, antropológica e pela história, remetendo aos tempos da escravidão em
diversos contextos afroamericanos. Angela Davis (2010 [1981]), por exemplo, no
primeiro capítulo do livro “Mujeres, Raza e Clase”, aponta para questões fulcrais rumo
a “uma reexaminação da história das mulheres negras durante a escravatura”, alega que
proporcionalmente as mulheres negras sempre trabalharam fora, ao contrário das
mulheres brancas, e o imenso espaço que atualmente ocupa o trabalho em suas vidas
corresponde a um modelo estabelecido desde da escravatura.
Na tentativa de fazer uma análise da noção de trabalho exposta nas falas das
interlocutoras em questão, pretendo dialogar com Sidney Mintz (2010). Em seu artigo
intitulado: “Caribe: História e Força de Trabalho”, o autor traz dois aspectos para pensar
essa categoria: “(...) o trabalho como meio de conferir sentido à vida, e o trabalho como
fonte de orgulho e autoestima para o indivíduo” (Mintz, 2010:64). É com base nesses
dois aspectos acima citados que procuro conduzir a análise. Gostaria de pensar o sentido
do trabalho, suas representações, assim como as idealizações acerca do sentimento de
liberdade e autonomia dessas mulheres, advindo do exercício de vender os doces. Como
as palenqueras se sentem a respeito de seu trabalho, como é percebido e experimentado
o seu ofício.
Em minha vivência com o trabalho com os doces e a partir de suas falas, pude
adentrar em um universo no qual persiste a ideia de que esse é um ofício doloroso, duro,
mas que é recompensado e se torna satisfatório na medida em que é possível alcançar
alguns logros, sobretudo, a possibilidade de que um membro da família, principalmente
os filhos, realizem um curso de nível superior.
O trabalho com a venda dos doces é uma constante. Neste caso, quando se
trabalha em outra cidade durante vários meses, o descanso do corpo físico só é realizado
enquanto se dorme. Também é intenso para aquelas que trabalham no Palenque e que
circulam nos municípios mais próximos, começando desde a preparação dos doces
seguido pelo próprio percurso exaustivo da venda. O fato de caminhar em longas
distâncias por cerca de 7 horas, muitas vezes com sol intenso ou sob chuva e frio,
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sustentando em suas cabeças pesos que podem alcançar mais de 30 quilos, traz
sofrimento ao corpo e exige disciplina para suportar a maratona diariamente.
Escutei delas que o trabalho é uma tradição de Palenque que foi passada por
familiares, e há várias décadas as mulheres trabalham dessa maneira. É certo que, de
algumas décadas para cá, houve modificações na forma de preparar os doces, o uso do
forno a gás ao invés do uso do fogão à lenha, por exemplo, amenizou alguns esforços.
Elas falam que com a venda dos doces foi possível comprar utensílios para suas
residências, como: fogões, geladeiras, televisões, roupas e sapatos para os filhos,
produtos alimentícios, de higiene pessoal, fazer reformas e construção de novos
cômodos em casa. O maior motivo de orgulho para elas é que, com esse trabalho, foi
possível “sostener a família y los hijos”, sendo possível garantir, de forma árdua, o
acesso dos filhos a um curso de graduação, como já mencionado.
As queixas sobre o trabalho vão se acumulando aos poucos, para depois ser
afirmado que o sofrimento vivenciado, domesticado e disciplinado poderá trazer
momentos de satisfação pessoal. Como apontou Mintz: “(...) O orgulho no trabalho
pode tornar o trabalhador mais vulnerável e explorável – que (também) o trabalho pode
proporcionar confiança renovada, satisfação, realização, mesmo quando as condições de
trabalho são duras e socialmente injustas” (Mintz, 2010:63). Fazendo eco a Mintz, o
exercício que me proponho a fazer é o de refletir sobre o que é trabalhar no nível da
exaustão humana e entender como elas conseguem enxergar o que é um trabalho que
mata, e, ainda assim, recorrem a essa prática para sobreviver e trazer dignidade ao seu
feito.
“Isso é um trabalho que mata”, diz Sol Maria (36), É um trabalho duro. Me
pego a fazer os doces das sete horas até as doze horas, e no dia seguinte eu saio a
vender”. La Burgo diz (45): “Esta é uma herança que também estou deixando aos
meus filhos. Quando eles não tiverem trabalho de nenhum lado, que recorram a este”.
Lucia Helena (45 anos) menciona: “É um trabalho independente, você é dona
do seu próprio negócio. Dá para levar a família adiante”. Flor Maria (56 anos)
completa: “Nicolas [esposo] me ajudava, mas eu colocava mais força. Dava de tudo
para os meus filhos: roupa, sabonete, creme, desodorante, sapatos. Nunca deixei faltar
nada. Deixava de comprar para mim e dava para eles, queria que eles tivessem tudo, que
estudassem, para não ficarem como eu. Caminhávamos como loucas, levando sol
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como a terra, graças a deus meus filhos saíram agradecidos” Nayelis Miranda (26
anos, filha de Flor Maria) argumenta: “É um trabalho forte, forte! Quando eu vim de
lá [Venezuela], falei para minha mãe: papel e lápis, mãe! Porque esse trabalho não
é para mim, é muito forte. Para Catalina Herazo (56 anos): “Com os doces ficamos
escravas do trabalho, escravas dos doces, tem que ficar o tempo todo ralando coco,
cortando mamão”. Yosaín, opina (36 anos): “Bom, graças a isso conheci boa parte
da Colômbia, ou seja, é muito bonito. Eu sou uma das palenqueras que o lugar que
frenquentava, eu tirava fotos, tudo era muito bonito…”
Bernadina (43 anos) replica: “Esse é um negócio que faço... Mas é algo que eu não
me sinto bem. Não soube aproveitar as coisas que meus pais deram. Tive que sair para
trabalhar, porque eu me casei, tive filhos...”
Como dito, a vivência com os doces retrata uma realidade de trabalho
extremamente dura para a maioria. Apesar dessa dureza, é possível encontrar espaços
para a valorização do empreendimento, a exemplo, da percepção de que não é
necessário se trabalhar para outra pessoa, ter um chefe. Sendo a dona do próprio
negócio, o ritmo do trabalho é conduzido e assumido mais ou menos individualmente. O
deslocamento para outros estados da Colômbia e para países vizinhos, como a
Venezuela, dá a estas mulheres uma visão ampliada de mundo, distinta daquela de seus
outros familiares e maridos. Elas se tornam agentes de suas ações cotidianas.
Parafraseando Saba Mahmood: “A agência não é simplesmente um sinônimo de
resistência a relações de dominação, mas sim uma capacidade para ação criada e
propiciada por relações concretas de subordinação historicamente configuradas”
(Mahmood, 2006:123). A autora traz um discurso positivo de estar e habitar o mundo,
na busca de formas de agir dentro de um ambiente de adversidades. O trabalho é duro,
ainda assim, elas decidem aonde ir, escolhem o momento favorável para o descanso.
Isto remete também à pergunta de Anne McClintock (2010): quais são as possibilidades
de agência em contextos de extrema desigualdade social?
As mulheres aprendem a reconhecer, por exemplo, as localidades que poderiam
ser mais rentáveis financeiramente para as vendas (bairros residenciais de classe média,
centros comerciais), e os horários propícios. O êxito das vendas também depende desses
fatores, assim como da personalidade de cada uma e da voz forte para anunciar os
produtos.
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Há alguns aspectos para pensar sobre essas mulheres negras que se deslocam
diariamente, semanalmente, quinzenalmente e mensalmente para o mundo da rua, e
neste universo conseguem construir leituras do espaço. Ao caminhar, elas elegem as
rotas que consideram melhores ou menos perigosas, tecem relações de amizade e
confiança, constroem estratégias para a venda e buscam no mundo dos doces uma
salvação, no sentindo de sobrevivência e perpetuação de si e de suas famílias.
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Black flavors, white palates: Migrations, gender and work
Abstract: This paper seeks to reflect on displacement, work and gender in a rural black
community in the Colombian Caribbean. The attempt is to accompany the movement of
black women in circulation by working with sweets in various Colombian territories
and in other border countries, and thus to think about the flows, the displacements,
migrations, the interactions and the meanings of this activity in terms Of gender, labor,
race and social class relations. The objective is to carry out an analysis that takes into
account the labor, gender and race / ethnic relations of the Afro-Colombian women of
San Basilio de Palenque.
I will try to answer the following questions: what meanings does gender play in the
palenquera community? What would the black female body be reporting about social
imagery about work? How are the personal trajectories of black women experienced in
these territories characterized as black and rural? The fact that women leave their
territory to work, what about family organization? How does work impact the family
organization? Or how does family organization relate to women's work? What would
work mean for these women on an existential level? What is their role within the
family? What do your papers tell about the socio-racial order in Colombia? What are the
forms of relationship and interaction with cartagenera society (with a preponderant
white elite)?
Keywords: gender, migration, work,race