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i LUIZA OLIVEIRA MACHADO SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA: compreendendo uma história CAMPINAS 2015

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  • i

    LUIZA OLIVEIRA MACHADO

    SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA:

    compreendendo uma história

    CAMPINAS

    2015

  • ii

  • iii

    Universidade Estadual de Campinas

    Faculdade de Ciências Médicas

    LUIZA OLIVEIRA MACHADO

    SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA:

    compreendendo uma história

    Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências

    Médicas da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos

    exigidos para a obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva: Políticas e

    Gestão em Saúde, área de concentração em Política, Gestão e Planejamento

    Orientadora: Profa. Dra. Ana Luiza Ferrer

    CAMPINAS

    2015

    Este exemplar corresponde à versão final da dissertação

    defendida pela aluna LUIZA OLIVEIRA MACHADO e

    orientada pela PROFA. DRA. ANA LUIZA FERRER

  • IV

  • V

  • VI

  • vii

    RESUMO

    Ao longo das últimas décadas, tanto a Atenção Básica quanto a Saúde Mental

    vem buscando traçar seu percurso e amadurecer através de experiências nas

    práticas cotidianas e das diretrizes e questões legais. A Saúde Mental passou por

    diversas transformações que culminaram na Reforma Psiquiátrica brasileira.

    Nos últimos anos vem avançando, principalmente no que diz respeito à atenção

    aos transtornos mentais graves, no âmbito da atenção especializada.

    Por outro lado, no contexto da Atenção Básica, ainda é frágil, suscita dúvidas e

    angústias nos profissionais envolvidos. Este estudo visou conhecer os dilemas

    atuais apontados por artigos científicos entre os anos de 2011 e 2013.

    A partir do destaque desses desafios, buscou compreender as propostas

    ministeriais relativas à inserção da Saúde Mental na Atenção Básica do ponto de

    vista histórico. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que se utilizou da revisão

    narrativa da literatura e da análise documental como técnicas de coleta de dados;

    e que se baseou na hermenêutica como referencial teórico. A partir da leitura dos

    artigos foram identificadas cinco categorias de análise: Rede de Saúde Mental,

    Ações de Saúde Mental desenvolvidas por profissionais da Atenção Básica,

    Apoio Matricial, Atenção em Saúde Mental e Outros. Em seguida, procedeu-se o

    destaque das propostas ministeriais em relação à inserção da Saúde Mental na

    Atenção Básica, de acordo com as categorias mencionadas. Estas duas fontes de

    informação foram postas em diálogo para melhor compreender as possíveis

    relações entre as propostas ministeriais ao longo dos últimos treze anos e os

    dilemas atuais destacados. Conclui-se que ao longo desse período houve diversas

    propostas, mas nem todas tiveram um tempo de implantação e avaliação

    suficientes. As propostas não foram sustentadas do ponto de vista financeiro e em

    termos de Recursos Humanos necessários. A ausência de um equipamento para

    se responder às necessidades de tratamento especializado para pacientes

    neuróticos leves e moderados aumentam a demanda por tratamento na Atenção

    Básica, que não tem tecnologia para atendê-la. As propostas do Departamento de

  • viii

    Atenção Básica nem sempre são consonantes com as da Coordenação Geral de

    Saúde Mental e vice-versa, demonstrando uma falta e/ou pouco potente

    articulação institucional. Por último, as propostas contra hegemônicas

    necessitariam de políticas de pré-implantação que lhes tornassem mais sólidas e

    lhes possibilitassem uma maior aceitação no momento da implantação.

    Palavras-chave: Atenção Básica à Saúde; Estratégia de Saúde da Família,

    Saúde Mental, Política Pública.

  • ix

    ABSTRACT

    Over the past few decades, both Primary Care Attention and Mental Health have

    been tracing its routes and developing through experiences in daily practices,

    guidelines and legal issues. Mental Health has been through several

    transformations that ended up in Brazilian Psychiatric Reform. In recent years it

    has been advancing, mainly regards to the concern about serious mental disorders

    within the specialized attention. On the other hand, in the context of Primary Care

    Attention, it is still fragile and raises doubts and anxieties in the involved

    professionals. This study aimed to know the current dilemmas pointed by scientific

    articles between 2011 and 2013. From the prominence of these challenges,

    it was sought to understand the Ministerial proposals concerning the integration of

    Mental Health in Primary Care from a historical point of view. It is a qualitative

    research, which used the narrative review of literature and documental analysis as

    data-collection techniques; and based on hermeneutics as a theoretical framework.

    From the reading of the articles five analysis categories were identified:

    Mental Health Network, Mental Health actions developed by professionals in the

    Primary Care Attention, Matrix Support, Mental Health Attention and Others.

    Then there was the highlight of the Ministerial proposals in relation to the

    integration of Mental Health in Primary Care, according to the categories

    mentioned. These two sources of information were put into dialogue to better

    understand the possible relationship between the Ministerial proposals over the

    past thirteen years and current dilemmas. The results indicate that during this

    period there have been several proposals, but not all had a sufficient evaluation

    and implementation time. The proposals have not been supported in terms of

    required financial and human resources. The gap of device to meet the needs of

    specialized treatment for mild and moderate neurotic patients increase the demand

    for treatment in Primary Care Attention, which has no technology to meet it.

    The proposals of Primary Care Department are not always in line with the General

    Coordination of Mental Health and vice versa, demonstrating a lack of an

  • x

    institutional articulation or/and an underpowered one. Lastly, the counter-

    hegemonic proposals would need pre implantation policies to turn them more solid,

    this would make possible a greater acceptance at the implantation time.

    Keywords: Primary Care Attention; Family Health Strategy, Mental health,

    Public Policy.

  • xi

    SUMÁRIO

    Pág.

    RESUMO....................................................................................................... vii

    ABSTRACT................................................................................................... ix

    AGRADECIMENTOS.................................................................................... xiii

    EPÍGRAFE.................................................................................................... xv

    LISTA DE ABREVIATURAS......................................................................... xvii

    APRESENTAÇÃO........................................................................................ 1

    1- INTRODUÇÃO.......................................................................................... 5

    1.1- A Atenção Básica e a Estratégia de Saúde da Família (ESF)...... 8

    1.2- A reforma psiquiátrica e a luta anti manicomial no Brasil........... 12

    1.3- A Saúde Mental na Atenção Básica............................................... 18

    1.3.1- Impacto epidemiológico........................................................... 18

    1.3.2- Década de noventa: protagonismo dos municípios e

    Estados..................................................................................

    20

    1.3.3- 2001 a 2013: o despertar das propostas ministeriais.............. 24

    2- OBJETIVOS.............................................................................................. 37

    3- PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS................................................... 39

    3.1- Pesquisa qualitativa........................................................................ 39

  • xii

    3.2- Fundamento teórico........................................................................ 40

    3.3- Coleta de dados............................................................................... 43

    3.4- Tratamento e análise de dados...................................................... 52

    4- RESULTADOS E DISCUSSÃO................................................................ 61

    4.1- Revisão narrativa dos artigos científicos...................................... 63

    4.2- Análise dos documentos ministeriais........................................... 91

    4.3- O diálogo entre dilemas da praxis e as propostas federais:

    uma narrativa possível?..................................................................

    123

    5- CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 139

    6- REFERÊNCIAS........................................................................................ 147

    7- ANEXO..................................................................................................... 163

  • xiii

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço a todos os colegas militantes do SUS que sempre me

    incentivaram a mergulhar nesse projeto de saúde pública para todos.

    Aos meus colegas e professores do mestrado, pelo entusiasmo,

    espírito crítico e bom humor que me ajudaram a fazer dessa empreitada muito

    mais do que uma pós- graduação.

    Às amigas Elisângela, Júlia e Célia, sempre confiantes no meu

    potencial como pesquisadora.

    À amiga Marycarmen pela força e pelos muitos livros emprestados.

    À minha analista, sempre firme em me manter firme.

    À minha orientadora, Ana Luiza, pela liberdade que me propiciou em

    minhas idas e vindas e confiança de que afinal o trabalho sairia.

    À professora Rosana Onocko Campos e Daniel de Almeida não só

    pelas contribuições na banca, mas pela delicadeza e gentileza em seus

    comentários.

    Ao departamento de Saúde Coletiva pela acolhida e entusiasmo criar e

    acreditar no mestrado profissional.

    Ao meu marido e minha filha por estarem em minha vida.

  • xiv

  • xv

    "O correr da vida embrulha tudo.

    A vida é assim: esquenta e esfria,

    aperta e daí afrouxa,

    sossega e depois desinquieta.

    O que ela quer da gente é coragem."

    Guimarães Rosa

    http://pensador.uol.com.br/autor/guimaraes_rosa/

  • xvi

  • xvii

    LISTA DE ABREVIATURAS

    AB Atenção Básica

    A/D Álcool e outras Drogas

    APS Atenção Primária em Saúde

    CAPS Centro de Atenção Psicossocial

    CAPSi Centro de Atenção Psicossocial Infantil

    CAPSad Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas

    CNSM Conferência Nacional de Saúde Mental

    DAB Departamento de Atenção Básica

    ESF Estratégia Saúde da Família

    MS Ministério da Saúde

    NASF Núcleos de Apoio à Saúde da Família

    OMS Organização Mundial da Saúde

    SIAB Sistema de Informação da Atenção Básica

    SM Saúde Mental

    SUS Sistema Único de Saúde

    TM Transtornos Mentais

    TMC Transtornos Mentais Comuns

    UBS Unidades Básicas de Saúde

    USF Unidade de Saúde da Família

  • xviii

  • 1

    APRESENTAÇÃO

    Das experiências vividas à escolha do objeto: a implicação da

    autora em relação a seu objeto de pesquisa

    Há dez anos, ainda em São Paulo (município), recebi um telefonema

    dizendo que havia passado no concurso do município de Amparo e que deveria

    assumir meu cargo de psicóloga o mais rápido possível.

    Naquela época, dividia apartamento com duas amigas queridas,

    consultório com quatro colegas e namorava já há alguns anos. Ou seja, vínculos e

    compromissos me “prendiam” a São Paulo. Depois de longa conversa com uma

    grande amiga, e por diversos motivos, decidi me arriscar. Mudar de cidade,

    sair de minha querida república e depois terminar um namoro...

    Recém-formada, com um desejo enorme de exercer minha profissão,

    saí de minha cidade rumo ao desconhecido e disposta a me jogar no trabalho.

    Foram quase dez anos de dedicação intensa, aprendizado e boas

    experiências com o SUS, com pessoas militantes desse grandioso projeto social,

    com três Secretárias de Saúde, todas mulheres, grandes mulheres!!

    Após seis meses em um Centro de Referência em Saúde do

    Trabalhador, solicitei minha transferência para a Atenção Básica, “lugar” em que

    permaneci de janeiro de 2005 a março de 2014, “lugar” com o qual me identifiquei

    e continuo me identificando.

    Passei a dividir meu cotidiano, minhas dúvidas, minhas angústias,

    meu cansaço e também minhas alegrias e sucessos com trabalhadores muito

    dedicados e dispostos a fazer a Atenção Básica funcionar, a viver uma experiência

    exitosa, a fazer a diferença na vida das pessoas e da comunidade.

    Entrei num momento em que a Secretaria de Saúde de Amparo estava a pleno

    vapor, a Atenção Básica era prioridade absoluta, os investimentos em pessoas,

  • 2

    capacitação, gestão eram enormes! Grande parte dos trabalhadores sentia muito

    orgulho de pertencer à “Saúde de Amparo”, eu certamente sentia!

    Durante a maior parte do tempo, fui a única profissional de saúde

    mental das equipes pelas quais passei. Acompanhei a batalha, o medo,

    o desgaste, a resistência, a irritação, a aflição, as dificuldades e alegrias dos meus

    colegas ao lidar com aspectos subjetivos do adoecer e a tratar de transtornos

    mentais diversos. Muitos foram os avanços alcançados, mas em algum momento

    paramos de avançar, chegamos a nosso limite. Chego a pensar que em alguns

    casos retrocedemos até, nos cansamos, nos sobrecarregamos, perdemos a

    esperança, adoecemos.

    Um episódio particularmente me toca. Uma colega dentista,

    que depois se tornou grande amiga, se dispôs a coordenar um grupo de apoio a

    usuários de álcool e outras drogas. Inicialmente teria o apoio de uma profissional

    com experiência em Saúde Mental. Diferentemente do que se diz em relação à

    resistência dos profissionais da Atenção Básica (o que de fato é uma realidade,

    não uma regra), essa colega se colocou no campo de batalha com toda disposição

    e boa vontade. Pouco tempo depois, sem o suporte da profissional experiente,

    e sem suporte dos outros membros da equipe (incluindo a mim),

    acabou adoecendo. Tirou licença, começou a usar medicamentos controlados,

    saiu da experiência muito machucada. Um dia me disse algo parecido:

    “Vocês da mental acham algumas coisas muito fáceis, mas pra gente tem coisa

    que é muito difícil!!”. Nunca esqueci esse “grito”, esse “pedido de compreensão”.

    Não se tratava de uma profissional fugindo de suas responsabilidades,

    pelo contrário, tratava-se de reconhecer seus limites da maneira mais dolorosa

    possível.

    Outro colega disse uma frase para mim inesquecível: “Nosso trabalho

    dói e sangra”. E disse sério, disse sentido, mas como quem fala de algo natural,

    algo que faz parte do trabalho. Aprendi com a Saúde do Trabalhador que o

    trabalho não foi feito para produzir sofrimento, e que se isso acontecesse é porque

    algo estava errado! Mas o trabalhador da Saúde está acostumado com sofrimento,

  • 3

    acostumado a detectar o sofrimento alheio. Mas quando o cuidar se torna tóxico,

    é preciso parar, refletir.

    Segui em frente sempre com essa dúvida de até que ponto os

    trabalhadores da Atenção Básica podem ir em relação à Saúde Mental sem se

    ferirem ou ferir “o outro”. É evidente que têm seu papel, mas até onde vai sua

    potência? Quais são as dificuldades? De que natureza são? São dificuldades

    pessoais, resistências a serem quebradas? São dificuldades de contexto, de

    estrutura, de condição de trabalho, de falta de treinamento?

    A partir daí, resolvi empreender uma pesquisa que pudesse clarear,

    pelo menos em parte, minhas angústias em relação a este tema. Após quase

    dez anos num município em que a Atenção Básica sempre foi prioridade,

    privilegiado pelas boas gestoras que por Amparo passaram, com equipes quase

    sempre completas, com muito investimento em recursos humanos, passei a me

    perguntar: por que, mesmo em boas condições, ainda é tão difícil a atenção em

    Saúde Mental na Atenção Básica? Por que parece que estamos sempre

    recomeçando de onde partimos? Será minha experiência muito particular?

    Como está se dando esta inserção em outros municípios do país?

    Passei a ficar curiosa não só em relação a outras experiências,

    mas também em relação às políticas federais. Isto porque, “se o problema não

    estava no meu município”, estaria a dificuldade relacionada às políticas nacionais?

    Que relação existiria entre as dificuldades cotidianas e essas políticas,

    ou a falta delas?

  • 4

  • 5

    INTRODUÇÃO

    Na década de mil novecentos e oitenta a sociedade brasileira,

    através do movimento sanitário, mobilizou-se para discutir e negociar novas

    políticas de organização dos serviços e práticas em saúde.

    Ao mesmo tempo, entre 1978 e 1980 fortes mobilizações de

    profissionais de Saúde Mental (SM) deram a arrancada inicial ao que viria a

    ser conhecido como Reforma Psiquiátrica brasileira. Péssimas condições de

    assistência nos “hospícios” provocavam oposição à hospitalização (Amarante,

    2007). Além disso, as discussões por liberdades democráticas e o direito à

    saúde eram incompatíveis com o modelo asilar.

    Ambos movimentos caminharam juntos até o final da década de

    oitenta. No entanto, enquanto os trabalhadores do movimento da Reforma

    Sanitária passaram a se incorporar ao aparato do Estado, o movimento da

    Reforma Psiquiátrica moveu-se em direção às pessoas e às comunidades

    (Amarante, 2007).

    Nesta mesma época, a saúde foi entendida como direito

    constitucional do cidadão brasileiro e como um dever do Estado. O Sistema

    Único de Saúde (SUS) foi implementado como política pública.

    Este sistema é responsável por diversos serviços e ações que

    devem estar articulados entre si. Não se limita à prestação de serviços

    assistenciais, mas também se responsabiliza por ações de promoção e

    prevenção à saúde.

    Assim como em outros países, o SUS articula sua rede a partir da

    Atenção Básica (AB), sendo esta proposta como porta de entrada e

    articuladora do sistema. Tem por objetivo desenvolver uma atenção integral

    que faça diferença não só na saúde e na autonomia das pessoas, mas também

  • 6

    em determinantes e condicionantes sociais relacionados a ela (Brasil, 2011).

    O Programa de Saúde da Família (PSF), atual Estratégia de Saúde da Família

    (ESF) foi considerada fundamental para a consolidação da atenção básica

    brasileira. Atualmente, a proporção de cobertura populacional da ESF é

    estimada em 54,84% da população (Brasil, 2012-a).

    Enquanto isso, a Saúde Mental (SM) também buscava traçar seu

    percurso e amadurecer tanto através de experiências nas práticas cotidianas,

    quanto nas diretrizes e questões legais. Nos últimos anos vem avançando,

    principalmente no que diz respeito à atenção aos transtornos mentais graves,

    através da sistemática desinstitucionalização dos pacientes, da implantação de

    diversos serviços substitutivos (CAPS), do Programa de Volta para Casa,

    dentre outros (Brasil, 2012-b).

    Por outro lado, diversos trabalhos ao longo dos últimos anos vêm

    apontando a fragilidade da atenção em SM na AB:

    O cuidado em saúde mental ainda acontece de forma esporádica por

    parte de alguns trabalhadores na atenção básica (Cavalcante et al, 2010,

    p.102).

    Verificou-se baixa capacidade de resolutividade no âmbito da Saúde da

    Família, uma vez que as ações desenvolvidas privilegiam consultas

    ambulatoriais médicas e encaminhamentos para internações,

    o que evidencia tanto a concepção biomédica ainda hegemônica nas

    práticas, quanto a desarticulação de uma rede para a garantia do cuidado

    integral (Arce, Sousa & Lima, 2011, p. 541).

    Há uma distância grande entre a proposta de atenção primária das

    políticas públicas e a maneira como efetivamente está acontecendo a

    implantação da prática de saúde mental, (...) esse processo caminha

    devagar e (...) os profissionais ainda estruturam seu trabalho com

    base na demanda e acontecem poucas ações voltadas para

    prevenção e promoção (Onocko & Gama, 2009, p.127).

  • 7

    (...) as ações de saúde mental desenvolvidas na atenção básica não

    apresentam uniformidade em sua execução e ficam na dependência

    do profissional ou da decisão política do gestor (...) (Correia, Barros &

    Colvero, 2011, p.1501).

    Ainda há muitas lacunas a serem preenchidas no caminho entre o

    modelo de atenção primária em saúde mental idealizado pelo

    Ministério da Saúde e o que tem sido praticado na saúde pública ( ...)

    o que foi preconizado pela reforma psiquiátrica ainda não foi

    implementado de forma satisfatória na atenção primária brasileira

    (Lima, Siciliani e Drehmer, 2012, p.143).

    É importante enfatizar que a Reforma Psiquiátrica só conseguirá

    avançar na medida em que seus pressupostos estiverem não só nos serviços

    especializados de Saúde Mental, mas também incorporados por todo o

    sistema de saúde.

    Ou teria a Saúde Mental na Atenção Básica suas questões para

    além da Reforma Psiquiátrica?

    Recente pesquisa intitulada “Agenda de prioridades de pesquisa

    para saúde mental no Brasil” (Gregório et al, 2012) aponta para a necessidade

    de investimentos em pesquisa na área de SM na AB; avaliação do sistema de

    serviços de cuidados em saúde mental e pesquisas para romper a barreira ao

    acesso e à equidade no tratamento de transtornos mentais.

    No sentido de contribuir com essas pesquisas, o presente trabalho

    buscou alguns caminhos.

    Inicialmente, na intenção de compreender quais os dilemas atuais

    enfrentados pela AB neste processo, buscaram-se artigos científicos recentes

    (2011-2013) que tratassem do tema. Então, para se compreender as propostas

    ministeriais relativas à inserção da SM na AB, buscaram-se documentos

  • 8

    federais concernentes ao tema. Por fim, através da promoção de diálogo entre

    artigos e propostas, buscou-se compreender possíveis relações desses

    dilemas com as políticas federais dos últimos treze anos.

    Trata-se, no fundo, de uma busca de compreensão, ainda que parcial,

    da razão pela qual avançamos tão pouco na atenção em SM no âmbito da AB.

    1.1- Atenção básica e a estratégia de saúde da família

    1- Atenção Primária de Saúde é a estratégia adotada pela

    Organização Mundial de Saúde e pela Organização Pan-americana de

    Saúde, referendadas pelos Estados Membros para a consecução da

    meta Saúde para Todos no Ano 2000 (Caracas,1990, p. 1-2).

    2- Os Sistemas Locais de Saúde (SILOS) foram

    estabelecidos pelos países da região para facilitar a consecução dessa

    meta por oferecerem melhores condições para o desenvolvimento de

    programas baseados nas necessidades da população e com

    características descentralizadas, participativas e preventivas

    (Caracas,1990, p. 1-2).

    A Atenção Básica, que remete aos conceitos da Atenção Primária,

    tão discutida na Conferência de Alma Ata em 1978, também fazia parte do

    referencial utilizado pelo movimento sanitário. Este referencial é parte integrante

    das abordagens da Atenção Básica e, como tal, foi utilizado na concepção legal do

    SUS.

    Recursos financeiros foram definidos para os municípios, ao mesmo

    tempo em que se lançaram programas norteadores de ação e atividades em áreas

    críticas do país. Em 1991, foi lançado o Programa de Agentes Comunitários

  • 9

    (PACS), que envolvia adscrição de famílias e responsabilização por um território

    definido assumido por Agentes Comunitários de Saúde e profissional de

    enfermagem. O foco deste programa foram as ações de imunização e de controle

    das diarreias (Luppi et al. 2011), buscando a redução da morbimortalidade infantil

    e materna do Nordeste (Souza, 2002).

    Em 1994, houve o lançamento do Programa de Saúde da Família

    (PSF), que nesse momento era apontado como capaz de mudar o modelo de

    assistência. As Unidades de Saúde da Família deviam assumir um papel ativo no

    território e na comunidade, além do trabalho em equipe. Expressões como

    promoção da saúde, ação inter setorial e vínculos de compromisso chegaram até

    aos municípios.

    Em 1996, o conceito de Atenção Básica ganhou nova abrangência.

    Buscou-se orientar a implementação de um PSF voltado a resolver problemas da

    AB no país (Brasil, 2006, apud Luppi et al. 2011). Examinando a íntegra do

    documento, destaca-se claramente a ideia do caráter substitutivo em relação às

    formas tradicionais de rede básica ainda existentes; a necessidade de realização

    de diagnóstico situacional para resolver problemas de saúde, o planejamento e a

    programação indicando um papel claramente gestor para a nova estratégia.

    A Estratégia de Saúde da Família não foi proposta para organizar

    temporariamente a AB. Ela assumiu um papel estruturador do sistema público de

    saúde, essa rede imensa e complexa que deveria ter a Atenção Básica como sua

    ordenadora. Neste mesmo ano, os municípios foram estimulados a assumirem a

    AB através da criação de um do Piso da Atenção Básica (PAB).

    Desde o início houve várias dificuldades à implantação dessa proposta,

    desde sua formulação incompleta, resistências em relação a uma ideia inovadora

    e indefinição da política de recursos humanos para assumir tal missão.

    Na medida em que a experiência e o aporte de novos conceitos foram

    amadurecendo, os documentos do Ministério da Saúde (MS) foram definindo,

    com mais clareza, os objetivos do PSF como uma estratégia governamental.

  • 10

    No documento “Saúde da Família: uma estratégia para reorientação do

    modelo assistencial” (Brasil, 1997), apareceram novos conceitos que foram a

    resolubilidade, humanização das práticas de saúde e a democratização do

    conhecimento do processo saúde-doença. Ao mesmo tempo, a Atenção Básica foi

    definida pela portaria 3925/98 como “conjunto de ações, de caráter individual ou

    coletivo, situadas no nível primário de atenção dos sistemas de saúde,

    voltadas para a promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e

    reabilitação” (Brasil, 1998). No decorrer dos anos, o Ministério da Saúde foi

    ampliando suas definições de Atenção Básica com o intuito de orientar a ação dos

    técnicos em nível descentralizado, evoluindo para a concepção do PSF como

    Estratégia de Saúde da Família (ESF) no país.

    Em 1999 iniciou-se o processo de execução do Pacto de Indicadores da

    Atenção Básica, que foi e vem sendo lentamente incorporado como mecanismo de

    planejamento e avaliação por parte dos gestores municipais. Em 2001 foi

    publicada a Norma Operacional Básica da Assistência à Saúde (NOAS- SUS

    01/01) que estipulava as responsabilidades e ações mínimas que os municípios

    deviam desenvolver na Atenção Básica, a saber: ações de saúde da criança;

    ações de saúde da mulher; controle da tuberculose; eliminação da hanseníase;

    controle da hipertensão arterial e diabetes mellitus, ações de saúde bucal e ações

    de saúde mental. A partir destas ações de Atenção Básica foram definidas

    também as redes regionalizadas e hierarquizadas, que garantiriam a integralidade

    da assistência nas microrregiões e regiões maiores (Souza, 2002). É importante

    ressaltar que a NOAS trouxe para a AB, dentre outras, a responsabilidade da

    atenção em SM.

    Em 2002, foi distribuído para os municípios um texto já conhecido nos

    Estados Unidos há uma década intitulado: “Atenção Primária: Equilíbrio entre

    necessidades de saúde, Serviços e Tecnologia” STARFILD (2002). Neste texto a

    autora apresentava resultados de estudos em vários países do mundo que

    apontavam o impacto positivo da Atenção Primária em Saúde via indicadores

    sanitários, além de propor métodos de pesquisa para avaliação de resultados

  • 11

    (Andrade, Barreto & Bezerra, 2007). O texto reforçava o enfoque da atenção

    básica na saúde e não na doença; na promoção, atenção e cura e não só na cura;

    entre outras importantes contribuições que poderiam ajudar no amadurecimento

    da experiência brasileira.

    Já entre os anos de 1996 e 2006 a produção de serviços do SUS

    cresceu 92% e parte dela se deve à Atenção Básica. Em 2007, 90% dos

    municípios estavam cobertos pelo PSF (CONASEMS, 2011).

    Em 2010 foi alcançada a cifra de 235.000 ACS e as equipes da Saúde

    da Família que eram 300 na época da criação, passaram a ser mais de 35.000

    (CONASEMS, 2011).

    Em 2011 50 % da população brasileira já estava coberta pela ESF.

    No ano seguinte a cobertura populacional estimada foi de 54,84% da população

    brasileira, ou seja, aproximadamente 105.504.290 habitantes (Brasil, 2012).

    Em 2012 a nova Política Nacional da Atenção Básica reafirma seu

    papel como principal porta de entrada do sistema, a necessidade de estar perto do

    local onde as pessoas vivem e ser o centro de comunicação da Rede de Atenção

    à Saúde. Reafirma também os princípios da universalidade, da acessibilidade,

    do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção,

    da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social

    (Brasil, 2012). A nova política busca enfatizar o papel da AB como ordenadora das

    Redes de Atenção, avançando na gestão e coordenação do cuidado do usuário.

    Passou a apoiar uma quantidade maior de modelagens de equipes para as

    diferentes populações e realidades do Brasil.

    A nova política incorporou a portaria que criou os Núcleos de Apoio à

    Saúde da Família (Brasil, 2008), que visam “ampliar a abrangência e o escopo das

    ações da atenção básica, bem como sua resolubilidade” (Brasil, 2011).

    Dentre outras ações prioritárias desses núcleos, estão as de SM.

  • 12

    Atualmente, existem 39.064 equipes de SF e 265.272 Agentes

    Comunitários de Saúde no Brasil. Isto significa uma população de

    120.577.650 pessoas cobertas por estes programas (Brasil, 2014).

    1.2- A reforma psiquiátrica e a luta anti manicomial no Brasil

    Antes de se falar da Saúde Mental (SM) no contexto da Atenção Básica

    (AB), é preciso contextualizar o percurso da SM no Brasil. Até a segunda metade

    do século XIX não havia qualquer assistência médica específica para os “loucos”.

    Muitas vezes estes eram considerados vagabundos e levados para a prisão,

    encarcerados em hospitais gerais ou ficavam vagando pelas ruas a sua própria

    sorte (Costa, 1976).

    A partir dos meados do século XIX até o final da Segunda Guerra

    Mundial predominou, no Brasil, o que Amarante chamou de “trajetória higienista”,

    na qual prevaleceu “um projeto de medicalização social” tendo a psiquiatria o

    papel de instrumento de poder tecno-científico (Amarante, 2006).

    Em 1934 foi promulgado o Decreto nº 24.559 que tratava da profilaxia

    mental, a assistência e proteção ao doente mental e a fiscalização dos hospitais

    psiquiátricos (Costa, 1976).

    Após a Segunda Guerra, iniciou-se o que foi chamado de “trajetória da

    Saúde Mental”. Nesse período, que coincide com o início dos anos 1970,

    são criados e implantados planos integrados de Saúde Mental em vários estados

    do país, notadamente em São Paulo e Rio Grande do Sul. Todos eles

    influenciados pelas propostas inovadoras europeias e americanas

    (Amarante, 2007).

    Entre 1978 e 1980 fortes mobilizações de profissionais da Saúde

    Mental deram a arrancada inicial para o que viria a ser conhecido como a Reforma

    Psiquiátrica Brasileira. Péssimas condições de assistência nos então

  • 13

    denominados hospícios começaram a ser denunciadas pelo crescente movimento

    dos trabalhadores do setor. Ao mesmo tempo ocorriam todas as discussões e

    mobilizações por liberdades democráticas e por saúde como um direito do

    cidadão, que tiveram como consequência a Constituição de 1988 e as leis que

    regem o SUS. As características desse processo eram claramente de oposição à

    hospitalização do paciente mental grave e crítica ao poder médico. Ao mesmo

    tempo propunham o reconhecimento da medicina alternativa; incorporavam

    conceitos da Medicina Social, como a determinação social das doenças;

    da Psiquiatria Democrática com serviços substitutivos tais como hospital-dia,

    hospital-noite, pré-internação, lares abrigados, núcleos autogestionários.

    Propunham também internação em hospitais gerais. A esse processo

    Paulo Amarante chamou de “trajetória alternativa” (Amarante, 2007).

    Enquanto isso, já no início da década de 1980, os trabalhadores do

    Movimento da Reforma Sanitária passaram a se incorporar ao aparato de Estado.

    Tratou-se de uma estratégia de mão dupla. Os trabalhadores ocupavam espaço

    na estrutura do Estado e o Estado cooptava o pessoal crítico para seu interior.

    Foi o momento institucionalizante que passou a ser menos crítico e incorporou

    preocupações com a gestão e o planejamento em saúde, prerrogativas do

    sanitarismo. A ciência médica e a administração passaram a ser vistas como

    conhecimentos úteis na resolução dos problemas das coletividades,

    por isso o autor citado a chama de “trajetória sanitarista”.

    Em 1987 ocorreu a I Conferência Nacional de Saúde Mental.

    Essa conferência, cujo lema foi “Por uma sociedade sem manicômios” marcou

    espaço, ganhou as ruas e chegou à imprensa e à opinião pública. A partir daí

    houve um rompimento com o ideário do sanitarista, voltando o movimento a se

    focar no conceito de desinstitucionalização ou desconstrução. Assim o movimento

    pela Reforma Psiquiátrica reencontra suas origens de perfil desinstitucionalizante,

    que o orientava a mover-se em direção às pessoas e às comunidades

    (Amarante, 2007).

  • 14

    “Reconheceu-se que não é suficiente a oferta de tratamento psicoterápico

    e farmacológico ao paciente, mas importa também agir na sociedade e

    com ela, promovendo uma maior compreensão do que é a doença

    mental, de quem é esse paciente que dela sofre, derrubando assim

    preconceitos e dilatando as possibilidades de trânsito social para esses

    pacientes” (Ferreira Neto, 2006, p.75).

    Desta forma, a Reforma Psiquiátrica brasileira fica melhor denominada

    como movimento ou luta antimanicomial, na medida em que não é mais somente

    liderada por trabalhadores médicos ou de SM, mas composto por diversas forças

    sociais.

    O principal equipamento substitutivo ao hospital psiquiátrico foi o Centro

    de Atenção Psicossocial (CAPS). Trata-se de um serviço de saúde aberto e

    comunitário do SUS, que oferece tratamento para pessoas que sofrem com

    transtornos mentais graves e persistentes. Já no final da década de 1980,

    inúmeros municípios iniciaram a implantação dos CAPS ou Núcleos de Atenção

    Psicossociais (NAPS) (Sávio, 2003 apud Pinto).

    Segue tabela que ilustra a expansão desses serviços de 1998 a 2011

    (Brasil, 2012b).

  • 15

    Os 1.742 CAPS implantados até 2011 estavam divididos em: 822 CAPS

    I; 431 CAPS II, 63 CAPS III, 149 CAPSi, 272 CAPSad e 5 CAPSad III.

    Neste mesmo ano de 2011 o país também contou com 625 Residências

    Terapêuticas e 3961 beneficiários do Programa de Volta pra Casa.

    Apesar de todo esse avanço, segundo Daúd Junior (2011),

    esta é uma política

    (...) naps-caps-cêntrica, vertical e compartimentalizada em relação às

    práticas mais avançadas da reforma sanitária no contexto do Sistema

    Único de Saúde, e que nega, em sua essência, a possibilidade ampla de

    recursos a uma atenção integral à saúde mental (Daúd Junior, p.121,

    2011).

  • 16

    Daúd Junior considera ainda que os CAPS/NAPS não podem ser

    considerados centros de irradiação de práticas substitutivas, já que em sua

    maioria reproduzem “práticas cronificadoras, segregadas das ações gerais de

    saúde (...)”. Acredita tratar-se de uma política espaçocêntrica e que seduz em

    razão do “financiamento fácil e bem orquestrado”,

    (...) cujos paradoxos reforçam a imagem tradicional da tragédia nacional:

    politicamente dependente, clientelista e falsa, quando se refere à

    contradição entre o discurso e a prática (Daúd Junior, 2011, p. 120).

    Boarini (2011) nos lembra que os municípios estão buscando gerenciar

    a “pulverização das políticas públicas e a precarização dos direitos

    constitucionais”. E mais,

    (...) os gestores municipais, pressionados pela política econômica,

    estão ávidos por novos recursos financeiros (...). Os incentivos para a

    implantação de CAPS, as novas formas de pagamento das ações

    representariam para o gestor municipal somente uma nova fonte de

    captação de recursos financeiros (Boarini, 2011, p.155).

    A mesma autora coloca que a expansão dos CAPS não está

    necessariamente a serviço da construção de um modelo de Atenção Psicossocial.

    Muitos CAPS estariam funcionando, “na melhor das hipóteses, como um outro

    ambulatório de Saúde Mental” (Boarini, 2011).

  • 17

    Aidecivaldo Jesus aponta ainda dois problemas em relação à política

    dos CAPS:

    (...) o dispositivo recomendado pelo Ministério da Saúde como estratégico

    para a organização da rede de saúde mental, não tem estabelecidas as

    condições prévias para sua implantação na imensa maioria dos

    municípios brasileiros. Basta lembrar que 70% desses municípios têm

    uma população abaixo de 20 mil habitantes (IBGE, 2011) (Jesus, 2011,

    p.38).

    (...) a lógica de regionalização e/ou das propostas de parceria/consórcios

    intermunicipais (...) compromete, por outro lado, as práticas comunitárias

    e/ou aplicadas no território (...) (Jesus, 2013, p.39).

    Por outro lado, em Campinas, município que conta com diversos CAPS,

    uma pesquisa com o objetivo de avaliar seis CAPS III chegou à conclusão de que

    “(...) os CAPS fazem parte de uma política eficaz de saúde mental voltada para os

    pacientes psicóticos e neuróticos muito graves (...)” e que esta “(...) política deve

    ser ampliada e sustentada garantindo sua viabilidade em termos de recursos,

    capacitação e contratações (...)” (Onocko Campos, 2009).

    A despeito de aspectos positivos e negativos desta política,

    hoje os CAPS têm expressiva presença no cenário brasileiro, contando com um

    total de 2.062 unidades em dezembro de 2013. Destes, 978 CAPS I, 471 CAPS II,

    78 CAPS III, 187 CAPSi, 301 CAPSad e 47 CAPSad III (Brasil, 2014, p. 485).

    Além dos CAPS, os usuários portadores de transtornos mentais graves

    contam também com o programa de Volta pra Casa, as Residências Terapêuticas

    e iniciativas de inclusão social pelo trabalho (Brasil, 2012-b).

  • 18

    1.3- Saúde Mental na Atenção Básica: tessituras de uma história

    1.3.1- Impacto epidemiológico

    Há quatorze anos a Organização Mundial de Saúde (OMS) nos alertou

    que:

    (...) cerca de 450 milhões de pessoas atualmente vivas sofrem

    transtornos mentais ou neurobiológicos, ou então problemas

    psicossociais como os relacionados com o abuso do álcool e das drogas.

    Muitas sofrem em silêncio. Além do sofrimento e além da ausência de

    atenção encontram-se as fronteiras da estigmatização, da vergonha,

    da exclusão e, mais frequentemente do que desejaríamos reconhecer,

    da morte (OMS, 2001, p. vi-vii).

    Há muito tempo os profissionais da Atenção Básica se deparam com

    demandas de SM. Talvez a demanda sentida por profissionais da área de saúde

    no SUS possa não ser o melhor critério de avaliação, embora aponte para uma

    necessidade sentida nas redes primárias municipais (Lancetti, 2000; Pinto, 2004;

    Campos, Domitti, 2007).

    No documento “Saúde Mental e Atenção Básica: o vínculo e o diálogo

    necessários” (2004), o Ministério da Saúde reconhece a magnitude dos problemas

    da área da SM, além de afirmar que estes já fazem parte do dia-a-dia de até 56%

    da demanda das Unidades Básicas.

    Em 2004, Fortes publicou pesquisa realizada em Unidades do

    Programa de Saúde da Família de Petrópolis, em que encontrou uma prevalência

    média de 56% de Transtornos Mentais Comuns [TCM] nos pacientes.

    Dentre estes 33% eram de quadros graves, a maioria era de pacientes com

    Transtornos Depressivos e Ansiosos; e 43% dos pacientes com TMC

    apresentavam queixas somáticas inespecíficas (Fortes, 2004).

  • 19

    Somente em 2010, dez anos após o citado documento da OMS,

    é disponibilizado pelo MS a prevalência de transtornos mentais na população em

    geral, extraída de estudos internacionais.

    Segundo esses estudos, três por cento da população apresentam

    transtornos mentais severos e persistentes; nove a doze por cento transtornos

    mentais leves, que necessitam cuidados eventuais; e seis por cento transtornos

    decorrentes da dependência do álcool e outras drogas (Brasil, 2010).

    Segundo o MS, na Atenção Básica, entre 33% a 56 % dos pacientes

    atendidos podem apresentar transtornos mentais leves (Brasil, 2010).

    Recentemente, importante estudo multicêntrico na AB pesquisou a

    prevalência e fatores sócio demográficos relacionados em quatro capitais

    brasileiras (Gonçalves et al, 2014). Usando o General Health Questionary

    (GHQ-12) e o Hospital Anxiety and Depression Scale (HAD) achou os seguintes

    dados. Pacientes que apresentam transtorno mental: Rio de Janeiro: 51,9%;

    São Paulo: 53.3%; Fortaleza: 64.3%; Porto Alegre: 57.7%. Além disso,

    ressalta que:

    Com mais da metade dos adultos que frequentam a atenção primária

    sendo classificada como tendo Problemas Mentais Comuns, as políticas

    de saúde devem ser desenvolvidas para este problema de saúde,

    que difere substancialmente do público que frequenta a atenção

    especializada, que tem sido a ênfase do planejamento em saúde mental

    nos últimos anos no Brasil (Gonçalves et al, 2014, s/p)¹.

    O mesmo estudo, em sua conclusão, aponta a necessidade de se levar

    em consideração os Transtornos Mentais Comuns (TMC) como prioridade junto a

    outras condições crônicas de saúde (Gonçalves et al, 2014), assim como já

    recomendava a pesquisa de 2008 sobre o perfil nosológico de TMC feita em

    Petrópolis (Fortes, 2008).

  • 20

    Alguns pesquisadores têm críticas em relação ao conceito Transtorno

    Mental Comum, sugerindo que este pode levar a uma medicalização e

    psiquiatrização da vida (Fonseca, Guimarães & Vasconcelos, 2008).

    Por outro lado,

    (...) se tal conceito for visto como um modo de apreender uma

    determinada manifestação do sofrimento e como uma categoria

    que torna possível a investigação, a pesquisa e as associações

    com variáveis sócio-demográficas, pode-se enxergar esse conceito

    como um instrumento que aponta para além da perspectiva

    medicalizante (Fonseca, Guimarães &Vasconcelos, 2008, p. 287).

    Quatorze anos após a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira

    continuamos com muitas percepções e algumas pesquisas locais, mas sem dados

    epidemiológicos em SM de abrangência nacional, ou mesmo instrumentos

    padronizados que possam ser utilizados pelos municípios ou regiões de saúde e

    comparados entre si.

    1.3.2- Década de noventa: protagonismo dos municípios

    Em 1990, a Declaração de Caracas estabeleceu uma recomendação:

    as autoridades nacionais deviam adotar, entre outras, a estratégia da Atenção

    Primária em Saúde como um caminho para alcançar a Reforma Psiquiátrica.

    Entre os anos 1992 e 1997 foram os governos estaduais que

    promulgaram leis da Reforma Psiquiátrica em seus estados. Dentre eles o Ceará,

    Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul e

    Rio Grande do Norte. Estas leis estaduais dispuseram, em sua maioria, sobre a

    redução progressiva dos leitos hospitalares e sua substituição por outros recursos

    assistenciais, sem incluir neles qualquer menção à SM na Atenção Primária

  • 21

    (Brasil, 2002). Consideraram, em sua totalidade, modalidades médico

    assistenciais substitutivas como atendimento ambulatorial; emergência em pronto-

    socorro geral; leitos psiquiátricos em hospital geral; hospital-dia; hospital-noite;

    núcleos e centros de atenção psicossocial; centro de convivência;

    atelier terapêutico; oficina protegida; pensão protegida; lares abrigados,

    centros residenciais de cuidados intensivos; unidade de desintoxicação em

    hospital geral. Algumas das leis apontaram a necessidade de se usar uma rede de

    atendimento integral em SM. Lembraram sempre do hospital geral e dos

    ambulatórios como recursos a serem utilizados, mas nenhum, como foi dito,

    mencionou a rede de atenção primária.

    Oito portarias relativas à SM baixadas pelo Ministério da Saúde na

    mesma década de 1990 têm, primordialmente, o objetivo de implantar a rede de

    atenção em SM. No entanto, destas portarias, observa-se somente algumas

    tímidas aproximações ao tema da AB: a Portaria/SNAS 189 de 1991 resolveu

    aprovar a inclusão de novos procedimentos no Sistema de Informações

    Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS) (040-0 e 031-0) entre eles atendimento em grupo

    executado por profissionais de nível médio, desde que pertencentes aos quadros

    do ambulatório de SM. Entre os procedimentos incluídos estavam: orientação,

    reunião em sala de espera e oficinas terapêuticas, atividades passíveis de serem

    realizadas pela AB (Brasil, 2002). A Portaria/SNA 224 de janeiro de 1992

    estabeleceu que atendimento grupal, visitas domiciliares, atividades comunitárias

    poderiam ser realizadas por equipe técnica de SM (pessoal de nível médio,

    médico psiquiatra, psicólogo e assistente social) em atuação direta em Unidades

    Básicas ou em interação com médicos generalistas, enfermeiros, auxiliares e

    agentes de saúde. Apesar de indicar a participação da AB, mantinha a

    necessidade das atividades serem executadas por profissionais da SM

    (Brasil, 2002).

    Enquanto isso, os municípios, pressionados pela necessidade de

    acolher as demandas de seus usuários e também pela normatização da NOAS de

    1996, já haviam iniciado uma série de experiências municipais de atendimento aos

    transtornos mentais.

  • 22

    Na verdade, essas experiências tiveram seu início no final da década

    de 70, começo da década de 80. Já a partir do modelo “(...) preventivista,

    a saúde mental foi pensada como uma proposta de base comunitária, desde as

    unidades básicas de saúde, passando por ambulatórios e hospitais gerais”

    (Pôrto, 2012, p. 35).

    Por tanto, essas experiências se adiantaram bastante em relação às

    orientações do MS, que só começaram a ser sistematizadas a partir de 2001.

    Em 2000, Lancetti organizou um livro denominado “Saúde e loucura 7,

    Saúde Mental e Saúde da Família”, no qual são apresentadas várias experiências

    de parcerias entre a SM e a SF, todas ocorridas no Brasil dos anos 1990

    (Lancetti, 2000).

    Em 1992 o estado do Ceará aprovou a lei estadual “Mário Mamade”

    (nove anos antes da lei federal da Reforma Psiquiátrica), além de diversos CAPS.

    O CAPS de Quixadá estabeleceu um modelo que supervisiona as ações de SM na

    AB; serve de retaguarda para internações em hospital geral regional;

    promove reabilitação psicossocial e fornece tratamento ambulatorial. Outras

    cidades como Iguatu, Canindé, Quixadá, Icó, Juazeiro do Norte, Cascavel,

    Arati e Fortaleza também implantaram seus CAPS.

    O Projeto Qualis-PSF do governo de São Paulo organizou capacitação

    das equipes de SM e da SF como “amigos qualificados” para intervir em famílias

    com “maior dificuldade” (Pinto, 2004). Nessa experiência, os profissionais da SM

    eram volantes, não estavam lotados em nenhuma unidade e, para cada duas

    equipes, existia um profissional especializado como apoiador. A abordagem se

    dava sobre o grupo familiar e não sobre um paciente especificamente.

    O psiquiatra tinha o papel de ser uma ponte entre os profissionais e entre

    moradores.

    Camaragibe (município de médio porte da Região Metropolitana de

    Recife - PE) possuía, em 1995, o Programa de Saúde da Família e estava com o

    PSF estruturado, qualificado, com ampla cobertura e território bem definido.

  • 23

    Buscava promoção da qualidade de vida e a valorização do papel do indivíduo no

    cuidado com sua família. Diante da necessidade de prestar assistência aos

    transtornos mentais observou-se que o número de casos parecia muito grande e o

    nível de preparo do pessoal muito baixo. Estruturaram-se oficinas de capacitação

    para o pessoal do PSF. A estratégia foi privilegiar o local onde “surgem os

    problemas”. Só depois foram estruturados o NAPS e o Ambulatório de SM

    (Pinto, 2004).

    No município de médio porte pernambucano, Cabo de Santo Agostinho,

    o PSF foi universalizado no território. Já contava com um NAPS em

    funcionamento e um ambulatório de Psiquiatria quando, em 1998, a Equipe de SM

    iniciou ações junto às equipes do Programa de Saúde em Casa. Capacitou suas

    23 equipes para conhecer os transtornos mentais da comunidade e, a partir daí,

    iniciaram-se encontros sistemáticos entre os dois grupos. Os Agentes

    Comunitários aceitaram melhor as novas atribuições e o novo olhar. Na verdade,

    eles já estavam acostumados a viver perto dos problemas. Já os médicos

    ofereceram mais resistência, principalmente o receio de que poderia ser

    aumentada sua carga de trabalho. Foi estabelecida uma maior proximidade da

    equipe da SM com seu coordenador. Definiu-se um técnico especializado para

    cada quatro equipes do PSF, que fazia supervisão com frequência mensal.

    Foi criado um instrumento municipal de notificação dos transtornos mentais para

    permitir conhecer o perfil epidemiológico dos transtornos por equipe e no

    município (Lancetti, 2000).

    Em Minas Gerais, Araçuaí (pequeno município do Vale do

    Jequitinhonha), havia um médico clínico que fazia atendimento medicamentoso a

    pacientes portadores de transtorno mentais. Foram visitadas todas as famílias

    onde havia pessoas identificadas como portadores de sofrimento mental.

    Quando foi criado o PSF, o Programa de Saúde Mental já havia sido criado com

    um intercâmbio entre os dois programas (Silva et al., 2000, apud Pinto).

    Outra experiência se deu no Ceará, com destaque para o município de

    Sobral. Foi estabelecida parceria entre o PSF e os CAPS. Havia 42 equipes da SF

    implantadas quando foi criado o CAPS de Sobral. Para os partícipes dessa

  • 24

    experiência o CAPS adquiriu “impulso, operacionalidade, logística e

    sustentabilidade com a expansão do PSF” (Sampaio & Barroso, 2000).

    Esse trabalho apresentou como resultado a redução significativa no uso de

    benzodiazepínicos na população e a redução das internações em hospital

    psiquiátrico de oito por semana para seis por ano, uma vez que passaram a ser

    encaminhados para o hospital geral.

    Em Campinas ocorria, na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp,

    a elaboração de uma proposta teórico-prática que objetivava contribuir para a

    reforma das organizações e do trabalho em saúde. Entre tantos outros se

    destacou o conceito de apoio matricial que tem por objetivo oferecer retaguarda

    especializada a equipes e profissionais encarregados da atenção a problemas de

    saúde (Campos, 1999). Este novo arranjo substituiria os encaminhamentos feitos

    pela rede básica através de planilhas, por um sistema personalizado com contato

    direto entre o encarregado do caso e o especialista. Haveria três planos de

    articulação: atendimento e intervenção conjunta; série de atendimentos realizados

    pelo especialista mantendo ao mesmo tempo um padrão de seguimento

    complementar pela equipe de referência; e troca de conhecimentos e alteração na

    avaliação do caso (Campos & Domitti, 2007).

    1.3.3- 2001 a 2013: o despertar das propostas ministeriais

    Mais de dez anos depois da já citada Declaração de Caracas,

    também a OMS afirma que para se efetivar a atenção em SM no mundo deve-se

    proporcionar tratamento na AB/Atenção Primária:

    O manejo e tratamento de transtornos mentais no contexto da atenção

    primária é um passo fundamental que possibilita ao maior número

    possível de pessoas ter acesso mais fácil e mais rápido aos serviços -

    é preciso reconhecer que muitos já estão buscando assistência nesse

    nível. Isso não só proporciona uma atenção melhor como também reduz

  • 25

    o desperdício resultante de exames supérfluos e de tratamentos

    impróprios ou não específicos. Para que isso aconteça, porém, é preciso

    que o pessoal de saúde em geral receba treinamento nas aptidões

    essenciais da atenção em saúde mental (OMS, 2001, p vi-vii).

    Após vinte anos de experiências municipais acumuladas, em março de

    2001, com participação de técnicos de municípios pioneiros, o Ministério da Saúde

    (MS) realizou uma oficina para discutir um Plano de Inclusão da Saúde Mental

    na Atenção Básica.

    Na ocasião, reconheceu que existiam experiências em diversas regiões

    do país obtendo resultados importantes, mas que eram ainda isoladas.

    Afirmou que era preciso transferir conhecimento do campo da SM para outro que

    já vem atuando junto à comunidade - o PSF (Brasil, 2001).

    Em documento propôs, entre outras coisas, metas para 2001.

    Essas propostas, entretanto, não foram acompanhadas de recursos federais,

    ficando mais uma vez a cargo dos municípios a iniciativa financeira de implantar

    as inovações. Havia a proposta de que os municípios elaborassem planos

    municipais de inclusão da SM no PSF e pactuação na Comissão Inter-gestores

    Bipartite dessa adesão. Nessa oficina houve trocas de experiências;

    discutiram-se as ações que deviam ser desenvolvidas pela SM em articulação

    com o PSF; qual seria a composição da equipe de SM; a relação quantitativa entre

    técnico suporte/equipes do PSF; inserção direta do profissional de SM atuando

    junto aos membros do PSF; intervenção conjunta em consultas e visitas

    domiciliares; capacitação; planejamento; educação continuada; mobilização;

    supervisão; estímulo à organização de redes sociais, etc. Uma das conclusões foi

    a indicação de uma equipe de SM como suporte para 8 a 10 equipes do PSF.

    Uma questão bastante polêmica foi a discussão da inserção direta dos técnicos

    especialistas na USF (Brasil, 2001). Essa mesma oficina seria uma das bases

    para a elaboração de dois documentos: “Diretrizes para a política de Saúde Mental

    na Atenção Básica” e um segundo, “Saúde Mental e Atenção Básica - O Vínculo e

  • 26

    o diálogo necessários. Inclusão das ações de Saúde Mental”. Voltar-se-á a falar

    dos dois mais adiante.

    Em abril deste mesmo ano, uma década depois da proposta inicial,

    foi sancionada a Lei nº. 10.216. Esta ficou sendo conhecida como “Lei Paulo

    Delgado” e se tornou a Lei Nacional sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil.

    Nela pôde-se notar menção de que a assistência aos portadores de

    transtornos mentais deva ser realizada especificamente em “estabelecimento de

    Saúde Mental” (Brasil, 2001). Não houve aceno para uma assistência na rede

    geral do SUS e mostrou um amadurecimento muito desigual entre as discussões

    que ocorriam no âmbito do Ministério da Saúde e o ambiente político que aprovou

    e sancionou a referida lei.

    Ainda em 2001, aconteceu a III Conferência Nacional de Saúde

    Mental que, em seu relatório final, contemplou a SM na AB em três títulos:

    - Sob o título de “Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde” apresentou

    um subitem específico para a AB, refletindo preocupações de gestores e

    trabalhadores com a mesma. Entre as preocupações estavam: inclusão do PSF

    como porta de entrada às ações de SM; inserção das ações de SM como

    exigência da NOAS para inclusão do município no nível de gestão do PAB

    ampliado; atenção à depressão e ansiedade pelos profissionais das Unidades

    Básicas; destaque de profissional de SM para atuar junto às equipes de Saúde

    da Família, como volantes, na proporção de um profissional especialista para

    cada duas equipes; criação de uma Ficha B para SM como parte do SIAB

    (Brasil, 2002).

    - Sob o título “Recursos Humanos” propôs-se: capacitar médicos generalistas

    que atuam na AB por meio de protocolos assistenciais, para uso de

    medicamentos essenciais; capacitar em SM a equipe de Saúde da Família como

    um todo (Brasil, 2002).

  • 27

    - Ainda um terceiro título “Financiamento” propunha a inclusão de ações de

    Saúde Mental na relação de ações da AB a ser exigido pela NOAS e criação de

    um incentivo mensal específico para SM para os municípios que

    desenvolvessem tais ações na rede básica (Brasil, 2002).

    Nota-se que havia um acúmulo de ideias e propostas para a criação de

    diretrizes e propostas detalhadas do processo de inclusão da SM no âmbito da

    AB.

    Apesar das discussões promovidas pelo Ministério da Saúde,

    das ideias propostas pela III Conferência Nacional de Saúde Mental e da

    aprovação da Lei 10.216, não houve apoio financeiro para colocar em prática as

    propostas apresentadas.

    Mais uma vez os municípios continuaram tendo de se haver com a

    crescente necessidade de atenção em SM sem o apoio financeiro federal.

    Um exemplo foi a Prefeitura Municipal de Campinas que,

    por conta própria, aplicando o conceito de apoio matricial (dentre outros),

    implantou em 2001 o “Projeto Paidéia de Saúde da Família”, cujo objetivo foi

    reformar e ampliar a rede básica de atenção à saúde. Um dos novos arranjos foi a

    utilização de apoio matricial de especialistas a equipes locais de referência

    presentes nas UBS, não só para a Saúde Mental, mas para todas as

    especialidades.

    Amparo, município do estado de São Paulo onde a pesquisadora

    trabalhou por dez anos, possuía um ambulatório de SM desterritorializado que

    contava com psiquiatra, psicólogos e fonoaudiólogos. No ano de 2004 este

    equipamento foi desativado e os psicólogos foram para as USF, onde faziam um

    misto de apoio matricial e atendimento direto à demanda do território.

    O psiquiatra passou a trabalhar como apoiador matricial para todas as equipes da

    ESF. Esta experiência indicou que

  • 28

    (...) a ampliação de ofertas em saúde mental na atenção primária

    possibilitou atendimento a pacientes com sofrimento mental leve e

    moderado que muitas vezes não chegavam ao ambulatório e

    permaneciam sem resposta (Machado & Siqueira, 2008, s/p).

    Outros municípios, cada um a seu modo, buscaram desenvolver

    experiências que dessem conta da crescente demanda de Saúde Mental na

    Atenção Básica (Moreno et al, 2004; Tanaka, Ribeiro, 2006; Gomes, 2006; Nunes,

    Jucá, Valentim, 2007; Dimenstein et al, 2007; Sampaio, Carneiro, 2007; Tófoli,

    Fortes, 2007; Tanaka, Ribeiro, 2007; Ribeiro, Ribeiro, Oliveira, 2008;

    Jucá, Nunes, Barreto, 2009; Delfine et al, 2009; Silveira, 2009; Rodrigues, Moreira,

    2010; Barreto et al, 2010).

    Em julho de 2003, no documento “Desafios da integração com a rede

    básica” (Brasil, 2003), o MS sinaliza para a necessidade de que seja incorporada

    como tarefa a compreensão da dimensão subjetiva dos usuários;

    a responsabilização em relação à produção da saúde e a necessidade de

    obedecer a um modelo de redes de cuidado. Aponta o apoio matricial das equipes

    de SM às equipes da ESF como caminho de compartilhamento e

    co-responsabilização pelos pacientes, aumentando a resolutividade das ações da

    ESF no atendimento aos casos de pacientes portadores de sofrimento psíquico

    (Brasil, 2003). As diretrizes foram apresentadas e divididas em três partes:

    - Apoio matricial no nível local: Equipes de CAPS ou equipes de SM se

    vinculariam às equipes de Saúde da Família, com encontros semanais e formas

    de contatos em intercorrências (Brasil, 2003);

    - Responsabilidades das equipes matriciais: Ações conjuntas, atendimento dos

    casos graves, uso de álcool e drogas, egressos de internações psiquiátricas,

    discussão de casos com as equipes da SF, difundir a cultura de assistência não

    manicomial, orientar e apoiar mobilização comunitária. (Brasil, 2003);

  • 29

    - Ações e responsabilidades mínimas das equipes do PSF: busca ativa de

    usuários em situação de risco, diagnóstico clínico de casos, cadastramento de

    portadores de transtornos mentais, ações educativas e medidas de promoção à

    saúde (Brasil, 2003).

    Segundo Porto (2012), nesta época,

    Ainda não havia uma política mais clara para este campo, por parte do

    Ministério da Saúde, institucionalizada em normas ou portarias,

    com mecanismos fortes de indução junto a estados e municípios,

    definição de metas, financiamento específico e uma forma de avaliação e

    monitoramento para estas ações (Porto, 2012, p.102).

    O terceiro documento, de 2004, “Saúde Mental e Atenção Básica

    - O Vínculo e o diálogo necessários. Inclusão das ações de Saúde Mental”

    reitera grande parte das diretrizes do primeiro e do segundo documentos.

    Aponta diretrizes gerais e orientações para o desenvolvimento e a organização

    das ações de SM na AB (Brasil, 2004-b).

    Em 2005, no documento “O SUS de A a Z, Garantindo saúde nos

    municípios”, novamente é salientada a elevada prevalência de transtornos

    mentais na população brasileira. Reconhece que aumentar a acessibilidade ainda

    é um desafio e reitera como política a desinstitucionalização da assistência

    psiquiátrica e a necessidade de inclusão da AB na rede de cuidados em SM

    (Brasil, 2005).

    Novamente, mesmo após tantas discussões e propostas, o documento

    da Política Nacional da Atenção Básica de 2006 não faz nenhuma referência às

    ações de SM e tampouco propõe indicadores relacionados ao tema.

  • 30

    Neste mesmo ano, em Campinas, onde se implantou o Projeto Paidéia

    de Saúde da Família, um estudo avaliativo buscando identificar mudanças e

    dificuldades em relação à implantação do apoio matricial em SM chegou às

    seguintes conclusões: houve rompimento do isolamento e troca de conhecimentos

    entre as equipes de referência e de apoio; aumento da resolutividade das ações

    de SM na AB; concepção ampliada de SM foi enfatizada; a capacidade resolutiva

    do pessoal da rede básica em unidades onde há profissionais da SM lotados é

    menor do que naquelas onde só se trabalha com profissionais do Apoio Matricial

    (Figueiredo, 2006).

    Em janeiro 2007 saiu o documento: “Saúde Mental no SUS:

    acesso ao tratamento e mudança no modelo de atenção-Relatório de Gestão

    2003-2006”. Este documento aponta a inclusão de parâmetros para ações de SM

    na AB nas diretrizes para a Programação Pactuada e Integrada da Assistência à

    Saúde - PPI, publicados na portaria GM nº 1097 de 2006. Segundo o documento,

    a estratégia de implementação de Equipes Matriciais de Referência em SM foi

    articulado junto aos gestores e cada vez mais os municípios têm aderido à

    proposta. (Não há informação de quantos municípios aderiram). Reconhece que

    mecanismos de indução financeira, pelo MS, são fundamentais para a indução e

    qualificação da SM na AB e que deverá ser uma das prioridades na gestão

    2007-2010 (Brasil, 2007).

    Em 2007, o Pacto pela Vida aprovou a inclusão da SM como

    prioridade. Desta vez dois indicadores foram propostos: taxa de cobertura de

    CAPS e do Programa de Volta pra Casa. Novamente, as necessidades

    relacionadas aos transtornos mentais mais graves são as únicas consideradas

    (Brasil, 2007-b).

    Enquanto a Política Nacional de AB nada trata do tema SM;

    e o MS ainda estava pensando em acionar a estratégia de indução financeira para

    incorporar a SM na AB, uma pesquisa de 2007 contatou que seus entrevistados

  • 31

    (...) já lidam no seu cotidiano com portadores de sofrimento/transtorno

    mental. Ademais, existe uma manifestação do desejo de se qualificarem

    para esse tipo de manejo por duas razões igualmente importantes:

    pelo sentimento de estarem descumprindo a ética do cuidar ao não

    saberem como o fazer, ou pela angústia provocada ao defrontar-se com

    situações humanamente e afetivamente exigentes, como frequentemente

    o são problemas dessa natureza. A maioria desses profissionais se sente

    despreparada para o manejo com pessoas portadoras de transtornos

    mentais, o que gera sentimentos de impotência e frustração (Nunes,

    Jucá & Valentim, 2007, p. 2381).

    Em 2008 o MS cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF),

    mediante a Portaria GM 154/08, que reconhece a necessidade de ampliar a

    abrangência e as ações da AB, assim como aumentar sua resolubilidade.

    O apoio matricial é reiterado como estratégia para se alcançar este objetivo

    (Brasil, 2008). No entanto, não há proposta de equipe de apoio matricial específica

    em SM, com equipe de SM. A única proposta específica continuou sendo o

    Apoio Matricial sob responsabilidade dos CAPS.

    Curiosamente, em 2009, a pesquisa “Avaliação da rede de centros de

    atenção psicossocial: entre a saúde coletiva e a saúde mental” chega à conclusão

    de que:

    Os coordenadores de unidades básicas se mostraram como tendo ideia

    vaga e distorcida sobre o trabalho do CAPS, independentemente do

    número de pacientes que sua unidade encaminhou para a Saúde Mental.

    Os agentes de saúde estudados desconheciam a função dos CAPS e

    afirmaram praticar ações de saúde mental baseadas em senso comum

    (Onocko Campos et al, 2009, p.19).

  • 32

    Isto nos faz pensar o quanto o CAPS está de fato exercendo sua função

    de apoiador matricial.

    Ainda neste ano, importante trabalho de revisão bibliográfica

    denominado “Saúde Mental na Atenção Básica - Uma pesquisa bibliográfica

    exploratória em periódicos de saúde coletiva (1997-2007)”, traz diversas questões

    fundamentais para se pensar. São elas:

    (...) inconsistência da política pública, no sentido de que ela prevê o nível

    secundário para os casos graves, mas não aponta quais seriam os

    equipamentos que dariam conta da demanda de casos menos graves

    que precisariam de tratamento (Gama & Onocko Campos, 2009, p.127).

    Existe um risco grande de, à revelia da proposta do governo, os

    profissionais do NASF serem utilizados para fazerem atendimentos

    clínicos curativos da população nas equipes de PSF, sem tempo para

    matriciamento, prevenção e promoção (Gama & Onocko Campos, 2009,

    p.127).

    (...) há uma dificuldade grande de integração entre as equipes de PSF e

    os CAPS. (...) esta desarticulação reflete a ambiguidade da política

    pública. Por exemplo, (...) o CAPS é responsável pela organização da

    rede de cuidados em saúde mental no território, isto vai de encontro às

    diretrizes relacionadas à atenção básica, que também teria este papel

    (Gama & Onocko Campos, 2009, p.127).

    (...) a existência de políticas públicas com diretrizes modernas e

    avançadas não garante a sua implementação (...) (Gama & Onocko

    Campos, 2009, p.127).

    (...) identificamos uma proposta de política pública bastante genérica para

    a área, que ainda não se deparou com os questionamentos oriundos de

    uma prática concreta. O desenho atual parece-nos ainda bastante

    incompleto: de um lado temos o Caps, cuidando dos casos graves;

  • 33

    de outro, o PSF, muitas vezes sem profissionais específicos da saúde

    mental, arcando com uma demanda crescente (Gama & Onocko

    Campos, 2009, p.128).

    Em 2010, vinte anos após a Declaração de Caracas e nove anos após

    a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, houve a IV Conferência Nacional de

    Saúde Mental. Nesta, ainda houve a necessidade de se enfatizar a relevância de

    se garantir o cuidado em SM na AB; de incluir a SM como área estratégica da AB;

    e incluir a SM no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) (Brasil, 2010).

    Neste mesmo ano é lançado o caderno “Diretrizes do NASF:

    Núcleo de Apoio a Saúde da Família” dessa vez, há um amadurecimento nítido

    em relação ao documento de 2003 no que tange às diretrizes gerais, referência às

    situações de risco, responsabilidades conjuntas das equipes de referência de

    apoio em relação à SM, articulação com a rede especializada, etc (Brasil, 2010-b).

    Em 2011 o documento “Saúde Mental no SUS: As Novas Fronteiras

    da Reforma Psiquiátrica. Relatório de Gestão 2007-2010”, a inclusão dos

    profissionais de SM nas equipes dos NASF foi considerada pelo MS um dos

    principais avanços do período de 2007-2010 para a inclusão da SM na AB. (Brasil,

    2011-d) No entanto, é importante lembrar que o NASF não é uma política de SM,

    mas que pode ou não incluir, dentre outras necessidades, as questões de SM.

    Em 2011 foi lançada a nova Política Nacional de Atenção Básica,

    que revisou as diretrizes e normas para a organização da AB, para a ESF e o

    Programa de Agentes Comunitários. Apesar de incorporar as diretrizes do NASF,

    não trata em nenhum momento das questões de SM de forma específica! Seus

    programas e estratégias colocados como prioritários para a AB não incluem a SM.

    Reafirma ser a porta de entrada e ordenadora do sistema de saúde. Ao mesmo

    tempo a Política de SM afirma ser o CAPS o responsável pela ordenação dos

    casos de SM...

  • 34

    Ainda este ano, sai um dos mais importantes documentos em SM dos

    últimos tempos, a Portaria nº 3.088 de Dez./2011 (Brasil, 2011-e). Este institui a

    Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno

    mental e com necessidades decorrentes do uso de A/D. Em seus objetivos

    enfatiza a necessidade de ampliar o acesso à atenção psicossocial da população

    em geral; promover o acesso das pessoas com transtornos mentais e com

    necessidades decorrentes do uso de A/D e suas famílias aos pontos de atenção; e

    garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no

    território. Pretende também monitorar e avaliar a qualidade dos serviços por meio

    de indicadores de efetividade e resolutividade da atenção.

    Para finalizar o ano de 2011, bastante rico em documentos e propostas,

    é lançado o “Guia Prático de Matriciamento em Saúde Mental”,

    documento bastante detalhado e propositivo.

    Em 2012, a Portaria nº 3124 redefine vinculação dos NASF 1 e 2 e cria

    NASF 3 (Brasil, 2012-c).

    Recentemente, em 2013, a coleção Cadernos da Atenção Básica

    lançou um número sobre “Saúde Mental”, nele reafirma a necessidade de se ter

    um primeiro acesso em SM na AB (Brasil, 2013).

    Vale refletir por que razão um guia tão rico a respeito de Apoio Matricial

    sai sete anos após o documento que propõe este arranjo, em 2004

    (Brasil, 2004-b) e por que um Caderno específico de SM sai após tantas décadas

    de pressão da população por atendimentos às suas necessidades?

    Por fim, em 2014, sai o “Relatório de Gestão da Secretaria de

    Assistência à Saúde (SAS)- 2013”. Segundo ele,

    (...) foram realizadas várias ações de qualificação do processo de

    trabalho, como a inclusão do NASF no Programa de Melhoria do Acesso

    e da Qualidade (PMAQ) e no e-SUS AB (novo sistema de informação

  • 35

    SISAB), a realização de Oficinas estaduais e/ou regionais, a construção

    de documentos e manuais para orientação das atividades, além da

    criação de um grupo de discussão na Comunidade de Práticas. Houve

    também a ampliação do acesso e cobertura com a vinculação do NASF

    às equipes de Atenção Básica para populações específicas e às

    Academias da Saúde (Brasil, 2014, p.70-71).

  • 36

  • 37

    OBJETIVOS

    2.1- Objetivo geral

    Compreender, a partir dos dilemas atuais apontados por artigos

    científicos, o processo histórico das propostas ministeriais relativas à inserção da

    Saúde Mental na Atenção Básica brasileira.

    2.2- Objetivos específicos

    - Identificar e compreender o que os trabalhos científicos atuais (2011 a 2013)

    apontam em relação à inserção da Saúde Mental na Atenção Básica

    brasileira.

    - Identificar, a partir das questões trazidas pelos artigos científicos atuais,

    as propostas do Ministério da Saúde em relação à inserção da Saúde

    Mental na Atenção Básica ao longo dos últimos treze anos.

    - Favorecer um diálogo entre os principais dilemas encontrados nos

    artigos científicos atuais, com as propostas do Ministério da Saúde em

    relação à inserção da Saúde Mental na Atenção Básica.

  • 38

  • 39

    PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS

    3.1- Pesquisa qualitativa

    Levando-se em consideração o objeto desta pesquisa, a compreensão

    do processo histórico das propostas ministeriais relativas à inserção da Saúde

    Mental (SM) na Atenção Básica (AB) a partir de seus dilemas atuais, optou-se por

    uma abordagem qualitativa. Isto porque este método pode ser usado para o

    estudo das políticas, das práticas, dos sistemas e modelos de saúde

    (Onocko Campos et al, 2013).

    Minayo enfatiza que o campo da Saúde trata de uma realidade

    complexa e que exige conhecimentos integrados.

    Se falamos de Saúde ou Doença essas categorias trazem uma carga

    histórica, cultural, política e ideológica que não pode ser contida apenas

    numa fórmula numérica ou num dado estatístico (Minayo, 1996, p.22).

    A mesma autora destaca que o campo da Saúde

    (...) coloca de forma imediata o problema da intervenção. Nesse sentido,

    ele requer uma dialética que compreende para transformar e cuja teoria,

    desafiada pela prática, a repense permanentemente (Minayo, 1996,

    p.13).

    Neste sentido, esta pesquisa pretende colocar em diálogo práticas e

    políticas que possam ajudar a repensar a questão da SM na AB brasileira.

  • 40

    Trata-se de uma investigação que pretende contribuir de forma concreta

    com o fazer da política pública. Segundo Onocko Campos (2005), a consequência

    prática é apontada como fundamental, algo sempre desejável em se tratando de

    pesquisas científicas.

    A mesma autora faz um alerta a respeito da dificuldade de imaginar

    “abordagens potentes para jogar luz sobre objetos tão complexos como as

    políticas públicas” (Onocko, 2005) e que o pesquisador tem obrigação de elucidar

    como pensou, os passos de seu pensamento.

    A seguir, buscar-se-á conduzir o leitor aos passos metodológicos que

    a pesquisadora propõe para compreender seu complexo objeto de estudo.

    3.2- Fundamento teórico

    A presente pesquisa tem como ponto de partida a hermenêutica crítica,

    uma vez que ela “privilegia a historicidade do objeto e a reflexão vinculada à

    práxis” (Figueiredo, 2006).

    Minayo, falando a respeito da hermenêutica e da dialética, enfatiza sua

    (...) capacidade de realizar uma reflexão fundamental que ao mesmo tempo não se

    separa da práxis, podemos dizer que o casamento dessas duas abordagens deve

    preceder e iluminar qualquer trabalho científico de compreensão da comunicação

    (Minayo, 1996, p.219).

    Importante lembrar que para Gadamer (2005) a hermenêutica não é um

    método no sentido de prescrição a ser aplicada, mas uma postura de interrogação,

    uma busca pela compreensão. Para ele, a escolha do objeto de pesquisa

    acontece a partir do presente e daquilo que não compreendemos, questões que

    nos causam estranheza.

  • 41

    Muitas questões causavam estranheza à pesquisadora, mas a pergunta

    fundante que, segundo Gadamer, põe em movimento a conversa (Onocko

    Campos R et al, 2013) foi:

    Por que, levando-se em consideração as mais de três décadas de luta

    por uma Atenção Psicossocial digna e acessível a todos, a atenção em SM na AB

    é tão frágil no Brasil até hoje?

    A escolha deste objeto de pesquisa busca oferecer subsídios para que

    se possa debruçar sobre a atual fragilidade da atenção em SM no território.

    Busca também produzir material através do qual se possa refletir sobre as atuais

    dificuldades, sem se esquecer da história, evitando perpetuar enganos,

    buscar saídas que já foram propostas, tomar sintomas por problemas,

    entre outros.

    A partir daí muitas outras perguntas vieram...

    - Haveria uma política consistente de S.M. no âmbito da A.B.?

    - Se não, por quê? Se há, ela foi colocada em prática ou existe uma dificuldade

    neste sentido?

    - A prática proposta é viável no contexto atual?

    - Existem fatores e/ou interesses “dificultadores” e/ou facilitadores deste

    processo?

    - Quais seriam as consonâncias e dissonâncias existentes entre as políticas e as

    práticas de S.M na A. B.?

    - Qual seria o papel das políticas federais em relação aos dilemas atuais vividos

    no cotidiano da AB?

    - Por último, devido à necessidade de se fazer um recorte, foi necessário optar.

    Optou-se por compreender o possível papel das políticas federais em relação

    aos problemas atuais da atenção em SM na AB. Qual seria este papel ao longo

    dos últimos treze anos? Existe uma evolução contínua e progressiva nesse

    processo? Houve retrocessos?

  • 42

    O próximo passo foram as leituras de artigos e documentos, de forma a

    compreender suas verdades. Segundo José Ricardo Ayres, é importante lembrar

    que, da perspectiva hermenêutica, aproximar-se da verdade é deixar-se pertencer

    ao curso que ela estabelece (Onocko Campos et al, 2013). Gadamer rejeita o

    discurso de verdade como correspondência ou representação. Não se trata de

    algo que pode ser observado à distância e de forma objetiva (Lawn, 2010).

    Para Gadamer a experiência da verdade é hermenêutica até onde a parte

    modifica o todo, portanto, a experiência da verdade encontrada no novo,

    a novidade, o inesperado, está numa situação de tensão com aquilo que

    já foi entendido. É com o desejo de assimilar ou entender a novidade,

    de acordo com aquilo que já foi experienciado, que a verdade adota essa

    dimensão hermenêutica” (Lawn, 2010, p.87).

    Nesta busca pelo novo, pelo inesperado, a pesquisadora foi à procura

    de entender as novidades através de duas fontes de pesquisa: artigos científicos e

    documentos oficiais do Ministério da Saúde.

    Por fim, a busca por compreender o objeto nos traz certos desafios.

    Em sua obra Verdade e Método (2005) Gadamer nos alerta que “Quem busca

    compreender está exposto a erros de opiniões prévias (...)” (p.368).

    Estas opiniões, os preconceitos do pesquisador devem estar em constante

    análise. Deve-se fazer um exercício de indagação em relação a eles para se

    examinar sua legitimidade, sua origem.

    (...) a questão central de uma hermenêutica verdadeiramente histórica,

    a questão epistemológica fundamental, pode ser formulada assim: qual é

    a base que fundamenta a legitimidade de preconceitos? Em que se

    diferenciam os preconceitos legítimos de todos os inumeráveis

    preconceitos cuja superação representa a inquestionável tarefa de toda

    razão crítica? (Gadamer, 2005, p.368).

  • 43

    Não é necessário esquecer nossas opiniões prévias, já que apenas os

    preconceitos não identificados nos tornam “surdos para a coisa que nos fala a

    tradição” (Gadamer, 2005).

    Tradição que expressa tanto o hegemônico quanto o novo.

    Tradição na qual estamos sempre imersos e que se expressa através de múltiplas

    vozes. O presente e suas questões remetem o pesquisador ao passado, para a

    historicidade de suas questões. Para Gadamer (2005), é através do

    distanciamento histórico que se cria condição de indagar a respeito de uma

    realidade.

    A práxis da pesquisadora produziu-lhe um incômodo. A percepção de

    que pouco se fazia na AB em relação SM. Mais que isso, pouco tendo em vista o

    processo histórico que levou à implementação do SUS, o processo histórico da

    Luta anti-manicomia, do desenvolvimento da AB no Brasil, dos anos de

    experiência municipais atendendo as demandas de SM. Este olhar para trás

    aumentou o incômodo e deu mais força à questão: Por que, apesar de todo esse

    longo percurso, ainda temos uma atenção à SM tão frágil na AB?

    E quão frágil de fato está? A pesquisadora foi buscar, para além de

    seus próprios preconceitos, a voz de outros trabalhadores e pesquisadores que se

    propuseram a olhar de perto a práxis da SM na AB.

    Por fim, foi-se buscar também a voz das políticas para compor a

    compreensão da relação entre os dilemas atuais e as propostas federais neste

    âmbito.

    3.3- Coleta de dados

    Inicialmente foi feita uma série de leituras de textos sobre o tema da SM

    na AB. A partir dos primeiros textos, muitos outros foram sendo “descobertos”.

    Cada texto se multiplicava através de sua bibliografia. Passou-se então a ter uma

    percepção de que muita coisa já havia sido escrita sobre o tema.

  • 44

    Era hora de proceder a uma busca mais sistemática.

    Artigos científicos

    Segundo Minayo (1996),

    (...) o exercício proposto pela hermenêutica repudia o objetivismo que

    estabelece uma conexão ingênua entre os enunciados teóricos e os

    dados factuais, cujo paradigma é o mundo natural. Mas opõe-se também

    ao idealismo filosófico ou teológico que coloca a verdade nalgum lugar

    fora da práxis (p.223).

    Levando-se em consideração a importância que esta pesquisa deposita

    na aproximação da práxis, optou-se por buscar somente artigos científicos