saldanha, nelson. da teologia a metodologia

145
Nelson Saldanha Da Teoía^ Metodofo^ Secularizaçáo e crise do pensamento jurídico 2- edição ÉM%e

Upload: du-paiva

Post on 19-Jan-2016

148 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

Nelson Saldanha

Da Teoía^ Metodofo^

Secularizaçáo e crise do pensamento jurídico

2- edição

ÉM%e

Page 2: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

DA TEOLOGIA À METODOLOGIA

Page 3: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA Membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Professor de Filosofia do Direito na UFPE.

DA TEOLOGIA À METODOLOGIA

Secularização e Crise do Pensamento Jurídico

2a edição

Belo Horizonte - 2005

Page 4: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

Copyright © 2005 by Livraria Del Rey Editora Ltda. e FCH-FUMEC.

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a permissão, por escrito, da Editora. Impresso no Brasil | Prinfed in Brazil

LIVRARIA DEL REY EDITORA LTDA. w w w . d e l r e y o n l i n e . c o m . b r

Editor Te!.: (31) 3284-9770 ed i to r@del reyon l ine .com.br

Editora / BH

Rua Aimorés, 612 - Funcionários

Belo Horizonte - M G - CEP 3 0 1 4 0 - 0 7 0

Telefax: (31) 3273 -1Ó84

ed i to ra@del reyon l ine .com.br

Editora / SP

Rua Humai tá , 5 6 9 - Bela Vista

São Poulo - SP - CEP 0 1 3 2 1 - 0 1 0

de l reyed i tora@ter ra .com.br

Editor: A rna ldo Ol ive i ra

Editora Assistente: Elisângela Menezes

Conselho Editorial: Antônio Augusto Cançado Trindade

Antônio Augusto Junho Anastasia

Ariosvaldo de Campos Pires (in memor iam

Aro ldo Plínio Gonçalves

Carlos Alberto Penna R. de Carvalho

Celso de Magalhães Pinto

Edelberto Augusto Gomes Lima

Edésio Fernandes

Eugênio Pacelli de Ol iveira

Hermes Vilchez Guerrero

José Adércio Leite Sampaio

José Edgard Penna Amor im Pereira

Misabel Abreu Machado Derzi

Plínio Salgado

Rénan Kfuri Lopes

Rodrigo da Cunha Pereira

Sérgio Lellis Santiago

Wil le Duarte Costa

Gerente Editorial: Cristiane Linhares

Projeto Gráfico/Diagramação: Lucila M a g d a Pangracio Azevedo

Estagiários: Fab iana Ca rva lho Pinto

João Henr ique Marques

Saldanha, Nelson. S262 Da teologia à metodologia: secularização e crise do pensamento jurídico /

Nelson Saldanha. - Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 144p. ISBN 85-7308-823-0

1. Direito-Filosofia. I.Título.

CDD: 340.1 CDU: 340.12

bibliotecária responsável: Maria Aparecida Costa Duarte CRBÓ/1047

Para Mario G. Losano,

Orlando M. Carvalho, Alberto Venâncio Filho e

in

Afonso Arinos de Melo Franco

V

Page 5: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

"Cuando a Io que es se opone pateticamente Io que debe ser, recelemos siempre que trás este se oculta un

humano, demasiado humano 'yo quiero'."

J. Ortega y Gasset, em 1924, no final do ensaio sobre Kant

(cf. Tríptico, 3. ed., p. 97).

vu

Page 6: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

SUMÁRIO

Nota prévia, xi

Nota do Autor, xv

CAPÍTULO I

INTRODUÇÃO

1. Alusões iniciais, /

2. Secularização e visão da história, 3

3. Secularização, teologia e ideologia, 5

4. Visão histórica da teoria jurídica, / /

5. Para uma concepção histórico-crítica dos métodos, 14

CAPÍTULO II

O LOGOS ORDENADOR

1. Teologia, cosmologia e alusão ao logos, 19

2. O logos antigo e o pensamento cristão, 24

3. Alusão ao problema do método, 28

4. Permanência do componente teológico, 31

5. Mais sobre a permanência do teológico, 36

CAPÍTULO III

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

1. Em torno da idéia de secularização, 39

2. Secularização e metafísica, 42

3. O racionalismo moderno e a teoria do Direito, 44

IX

Page 7: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4. Alusão ao problema da legitimidade, 50

5. Digressão sobre o pensamento utópico, 53

CAPÍTULO IV

TEORIA D O DIREITO,

POSITIVISMO E IDEOLOGIA

1. Razão, ciência, teoria, 57

2. Razão, ciência e ideologia, 60

3. Positivismo, direito e política, 63

4. Positivismo e formalismo, 68

5. Novamente sobre ideologia, 71

CAPÍTULO V

METODOLOGIA E METODOLOGISMO

1. Sobre método e metodologia, 73

2. Formalismo e metodologismo, 75

3. O metodologismo, uma nova teologia, 78

4. Metodologismo, reducionismo, teologia, 83

5. O chamado rigor conceituai, 88

6. Outros itens, 90

Capítulo VI

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

1. Referência ao historicismo e ao relativismo, 95

2. Conceitos necessitados de revisão, 99

3. Secularização e visão da historicidade, 103

4. "Teoria Geral" e Filosofia do Direito, 105

Posfácio, 115

Bibliografia, 127

X

NOTA PRÉVIA

Apesar de o capítulo primeiro ter sido escrito com caráter de "introdução", ocorreu-nos a necessidade de redigir umas tantas linhas para esclarecer algumas coisas ou completar alguns pontos. Este pequeno livro pro­veio de nosso constante interesse pelos problemas his­tóricos do pensamento jurídico. Após nosso estudo so­bre Legalismo e Ciência do Direito (São Paulo, 1976), onde assinalamos a relação entre a experiência do Direito1 le­gislado e a teoria jurídica contemporânea (inclusive o conceito de norma condicionado pela noção de lei), após a Formação da Teoria Constitucional (Rio de Janeiro, 1983), e em consonância com o que vimos chamando "crítica histórica", aplicando-a inclusive em ensaios outros, pa­receu-nos válido chamar a atenção para um certo des­caminho da teoria, descaminho vinculado a um exage­ro: o exagerado apego aos problemas de método, que tendem a se substituir aos problemas "de conteúdo".

Voltamos neste pequeno livro a tomar como ponto de referência o processo de secularização cultural, ne­cessário para a compreensão histórica da própria filo­sofia, e daí a alusão contida no título. Ou seja, a alusão ao advento do padrão (quase diria o "paradigma") meto­dológico, o qual, em verdade, conserva traços do anti­go padrão teológico. Evidentemente é sempre precária toda referência à "modernidade" e à história "contem­porânea", mas na linguagem das ciências sociais estes termos se tornam inteligíveis como demarcação de épo­cas ou contextos. Daí podermos situar a secularização

XI

Page 8: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

como algo mais ou menos correlato ao advento do mundo moderno. Mundo com o qual se instala nas men­tes a permanente sensação de instabilidade, que Sá de Miranda expressou em soneto célebre, e que Chaucer, muito antes, comentara dizendo:

"Mas o que fez o mundo assim mutável senão a eterna e humana dissensão?"

Poder-se-á, por outro lado, indagar por que tantas refe­rências à teoria pura do Direito e ao normativismo, posi­ções hoje consideradas nos grandes centros como coisas passadas, embora historicamente importantes. Realmente o tema central deste estudo é o surgimento do cientificismo, que de algum modo provém do racionalismo, e sua trans­formação em metodologismo. As alusões ao formalismo e ao normativismo entram em cena por conta da crítica ao metodologismo, dentro de cujas pretensões científicas jul­gamos entrever vestígios teológicos. Aliás, Pontes de Miranda já dizia, aludindo aos juristas, que "o respeito fa­nático dos textos é simples sobrevivência intelectual, su­perstição que nos ficou da teologia".1

Ao fazer a crítica ao formalismo desdobrado em metodologismo, não aderimos ao maniqueísmo fácil que considera "de direita" as posições formalizantes, e "de esquerda" os sociologismos ou a crítica histórica. Como não nos identificamos com certas formas de "teoria críti­ca", ainda apegadas a um marxismo esquemático, e às quais aludiremos no capítulo TV. A verdadeira crítica tenta com­preender as realidades que ocorrem na história por terem uma razão-de-ser, não sendo o caso de se buscar "cul­pas" nem de encarar com ressentimento as categorias do saber jurídico formadas no racionalismo dito "burguês".

Cf. nosso estudo em Setenta Giuridica e Science Soàali in Brasik: Pontes de Miranda, Atas de Seminário, p. 45.

XII

A respeito das notas, que contêm referências e cita­ções, e que talvez estejam muito extensas em relação aos textos dos capítulos, recorro outra vez — como fiz em trabalho anterior — à imagem dos dois teclados: são duas instrumentações, duas leituras complementares que o leitor utilizará como preferir. As vezes, as citações são um excurso; às vezes, são esclarecimentos que o autor sempre deseja que funcionem como sutis clarões — evo­co aqui a "arte de sutis clarões" que Valéry enxergava nas extensas luminosidades do mar.

E como de outras vezes, expresso neste ponto meus agradecimentos aos colegas e amigos que me prestaram ajuda na obtenção de livros ou de artigos necessários à construção deste trabalho. Assim Mario Losano, de Mi­lão; Alexandre Guerreiro, de São Paulo; Walter Costa Porto, de Brasília (e também Silvana Sasse de Matos, da Biblioteca do Ministério da Justiça, agora na do Senado); Maria Nazaré Pacheco Amaral, de São Paulo; Marcela Varejão (atualmente em Milão); Ivo Dantas, da UFPE. E ainda, a ajuda datilográfica da Sra. Lúcia Aquino.

Não encontro, no momento, nenhuma frase em la­tim para sublinhar minha gratidão a eles.

Recife, 19 de abril, 1992.

O autor

xm

Page 9: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NOTA DO AUTOR PARA A 2A EDIÇÃO

A Editora Del Rey traz ao público, para grande honra do autor, esta segunda edição de Da Teologia à Metodologia.

Este livro, concluído em 1992 (data da "Nota pré­via" que lhe serve de abertura), foi escrito para um pos­sível, mas nunca confirmado concurso para professor titular de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da UFPE. Durante certo tempo tive fechado o caminho para lecionar esta disciplina, que para mim se vincularia ao magistério exercido durante vinte anos (1970-1990) no curso de Filosofia da mesma UFPE: essa UFPE que a tantos tem desiludido, a mim inclusive, e na qual sem­pre trabalhei sem maiores apoios. Desfeito o projeto do concurso e optando pela aposentadoria antes do tem­po (como ocorreu com vários docentes no Brasil, ameaça­dos por um Governo Federal adverso aos professores), interessava-me rever o problema do formalismo jurídico, que visualizei na perspectiva histórica, indicando as origens teológicas do saber jurídico e sua posterior conversão ao racionalismo laico. Havia nesta perspectiva uma simplifi­cação evidente, completada pela imagem polêmica do "metodologismo" com o qual o saber jurídico se teria convertido (exagero talvez, mas não tanto) em uma nova teologia. Mas uma simplificação que não desnaturava a idéia central.

De fato pretendi chamar a atenção para o problema, acentuando um dos paradoxos da cultura moderna (e portanto, da moderna ciência do direito): o crescimen­to do racionalismo e da secularização após Descartes,

XV

Page 10: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

após o humanismo renascentista, e contudo a perma­nência de certos traços da fase teológica. Permanência da marca escolástica sobre o modo de pensar do jurista, tão bem patenteada por Otto Brusiin.

Mas a transformação do saber jurídico em uma ou­tra teologia é algo distinto, e não abrange todo esse sa­ber: configura-se no formalismo normativista como um aspecto que há de ser considerado. Destacar este aspec­to envolveu uma série de sublinhados que podem pare­cer excessivos. Estamos, há cem anos, em um tempo de relativismos e tipologias, e nele os maniqueísmos (como o que existiu no normativismo) não devem florescer.

Escrevi para a presente edição um texto adicional, a título de Posfácio, retomando o problema desde as ba­ses, resumidamente, e sugerindo algumas tematizações novas, entre outras a concernente ao tema da legitimida­de, que com a secularização assumiu novo sentido. Seria longo e descabido refazer todo o trabalho, mas o leitor terá no Posfácio um breve guia para reconsiderá-lo.

O mesmo leitor concordará em que uma crítica ao formalismo se refere a um tipo de pensamento jurídico, e não ao direito como tal. O direito sempre poderá ser visto como forma (não "puramente" forma), que dá certeza e clareza ao convívio dos homens entre si e ao seu trato com as realidades da vida. Certeza e clareza relativas, sempre necessitadas de reinterpretação.

E de novo meus agradecimentos, que repetem os da primeira edição e que agora se acrescentam com o regis­tro do valioso estimulo de diversos alunos e ex-alunos, no Rio de Janeiro, no Ceará, na Bahia e em Pernambuco.

Recife, em fevereiro 2004.

XVI

1 CAPÍTULO

INTRODUÇÃO

• SUMÁRIO •

1. Alusões iniciais. 2. Secularização e visão da história. 3. Secularização, teologia e ideologia. 4. Visão histórica da teoria jurídica. 5. Para uma concepção histórico-crítica dos métodos.

1. ALUSÕES INICIAIS

O "Direito" como processo, como atividade de ór­gãos específicos, o "Direito" como realidade cultural com­plexa e como constante histórica; ao seu lado a "Ciência Jurídica", o saber concernente àquela realidade ou apli­cado naquela atividade: eis algo que tem assumido, em certos momentos ou para certos espíritos, um cunho de mistério. Inclusive em Kafka, com a tensa narrativa do drama do homem posto diante de poderes desconheci­dos e de conexões pouco inteligíveis. O mistério, na aná­lise célebre de Rudoph Otto, é tremendum e é fasánans, mas nos labirintos de Kafka parece dar-se predominan­temente o misterium tremendum.

A perplexidade do leigo diante da linguagem do Direito tem sido um dos fatores que criam a impressão de mistério em torno do fenômeno jurídico. Por outro lado o Direito, em sua aplicação, significa concretamen-te, em muitos casos, o perder ou o ganhar: significa o surgimento de resultados ansiados ou temidos. A lin-

Page 11: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

guagem jurídica (e não é sem propósito que está posta logo acima a palavra "leigo") foi em certas fases irmã da linguagem teológica. Foi ritualística e rigorosa, não apenas nos atos e na prática, como também nos textos, no conhecimento referente aos atos e ao seu fundamento: formulismo processual no Direito romano antigo, referên­cia a autores, a conceitos e a "autoridades" no próprio e no medieval. No Direito medieval, a ciência jurídica em mãos de clérigos, ou assimilada ao saber dos clérigos por seus caracteres formais. Sempre, e até hoje, o culti­vo de um vocabulário específico, cujos portadores se orgulham de dominar, como nota distintiva em face de outros saberes, e em face da linguagem comum. Tudo isto, aliás, sociológica e epistemologicamente compreen­sível. De qualquer modo, o certo é que, vez por outra, aparecem alusões ao sentido esotérico ou esoterizante da ciência jurídica, e até ao seu cunho de mistério.1

*

O presente estudo não constitui, evidentemente, uma pesquisa sobre a metodologia da ciência do Direito. O que ele visa é apreender um dos aspectos da evolução do saber jurídico, desde as implicações teológicas de suas formulações mais antigas, até os positivismos moder­nos com suas peculiares projeções metodológicas. Não pretendemos tampouco vasculhar o problema da "lin­guagem jurídica", hoje deleite de alguns especialistas. Não por desconhecer a importância da linguagem (cabe recordar o dito de Condillac, segundo o qual criar uma ciência não é senão estabelecer uma língua, sendo a ciên-

BOORSTTN. The mysterious sáence of the Faw, Harvard Univ. Press, 1941. Ao publicar em 1776 o seu Fragment on Government, aliás surgido sem o nome do autor, Bentham critica duramente o consagrado Blackstone, considerando ficções e fantasias muitas das noções assentes no pensa­mento europeu de então (Fragmento sobre ei Gobierno, trad. J. L. Ramos).

INTRODUÇÃO

cia uma "linguagem bem feita"), mas por dirigir o questionamento para problemas de outra índole.

Desde que se descobriu a importância do pensamen­to de Viço, o que como se sabe tardou a acontecer, com­preendeu-se que ele correspondeu a uma alternativa em face do pensamento de Descartes2. Ou antes, a uma ou­tra via, talvez oposta, talvez paralela e complementar, em relação ao racionalismo linear e conceituante do carte-sianismo. A linha cartesiana, cuja relevância no mundo moderno não há como diminuir, levou entretanto ao logicismo e ao cientificismo (isto é, ao cientificismo mate-matizante), enquanto a linha viquiana levaria ao histo-ricismo, à compreensão e à hermenêutica.

2. SECULARIZAÇÃO E VISÃO DA HISTÓRIA

O corpo do trabalho alude ao processo chamado de secularização da cultura. Este processo, ao qual temos aludido em vários outros estudos, constitui sem dúvida um fenômeno histórico fundamental, como lastro pro­fundo sobre o qual se situam e se entendem diversas ocor­rências. O conceito de secularização, no sentido em que o empregamos, aparece em uma de suas primeiras explicitações na obra de Max Weber3, correspondendo de certo modo às idéias de Comte sobre a passagem do espírito teológico ao metafísico e ao positivo, e talvez às referências de Viço ao advento do mundo "humano"

Cf. CROCE. Fa Filosofia di Giambattista Viço (ver principalmente o cap. I). Cf. também PERELMANN; OLBRECHTS-TYTECA. Traité de 1'Argumentation. Fa Noupelle BJthorique (Principalmente as linhas iniciais da Introdução).

Em Weber a idéia de secularização, ou dessacralização, vem coligada à de racionalização e à de burocratização, no meio de suas minudentes exemplificações, que com freqüência seccionam e fragmentam a conti­nuidade dos textos teóricos. Cf. Economia j Sociedad, trad. J. M. Echevarria, Roura Parella, E. Imaz, E. Garcia Maynez e J. Ferrater Mora. Passim.

Page 12: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

com seu correlato de prosaísmo4. Há também, contudo, um uso do termo secularização dentro da literatura cató­lica, uso presente inclusive em pensadores do Direito5.

Estas alusões indicam os esquemas históricos que utilizamos. Os estudos de Weber, que nem sempre se prendem ao conceito de secularização (ao menos ex­pressamente), podem ser, para o concernente aos mo­delos históricos, completados com os de Hannah Arendt, sempre sugestivos apesar de discutíveis. A validade de certas idéias de Augusto Comte (mencionado linha acima) é correlatada de algumas idéias de Marx, sobre as quais se vinha (ou vem) aplicando o fanatismo dos seguidores incondicionais, e também a intransigência dos contestadores radicais. A nosso ver a história se des­dobra em histórias que são as das diversas civilizações, e a trajetória de cada civilização apresenta quase sem­pre um sentido de complicação crescente, que é a um tempo urbanização, burocratização, racionalização, se­cularização, de sorte que ao olhar o todo somos tenta­dos a ver como percurso global uma série de linhas que preparam ou conjugam aqueles traços6. Há sem­pre labirintos, desde os das antigas mitologias aos do "organizacionismo" contemporâneo. Superpomos es­tes labirintos em função da exemplaridade assumida por certas imagens7.

Giambattista VIÇO. Cienàa Nueva, ttad. J. Camer. CROCE. ha Filoso­fia di Giambattista Vim, passim.

Cf. D 'AGOSTINO. Diritto e Secolari^a^ione, Pagine di filosofia giuridica e política, passim e esp., p. 205 et seq., 234 et. seq.

HABERMAS alude à presença dos esquemas interpretativos, geral­mente bipolares, no pensamento social moderno: do status ao contra­to, da comunidade a sociedade, domínio tradicional e domínio buro­crático, etc. (Técnica e Ciênda como "ideologia", trad. A. Morão, p. 56). Sobre a exemplaridade em história, cf. nosso ensaio incluído em Hu­manismo e história, Rio de Janeiro: Fundarpe/José 01ímpio,p. 34 et seq.

INTRODUÇÃO

3. SECULARIZAÇÃO, TEOLOGIA E IDEOLOGIA

Nas ciências sociais contemporâneas, o que tem ocor­rido, grosso modo, é uma crescente abertura para o debate crítico. A sociologia, que surgiu basicamente dentro da análise da "crise" proveniente da Revolução Francesa, mas que ao mesmo tempo recebeu a influência do racio-nalismo iluminista, não poderia ter-se furtado ao deba­te: daí ocorrer em seu âmbito um dualismo que enfeixa o formalismo a-histórico, de certo modo conservador, e o não-formalismo, inclusive com a questionante críti­ca da própria sociologia, como veio a ocorrer com Wright Mills8. Na ciência jurídica um certo fechamento, inclusive em relação as outras ciências sociais, sempre propiciou a persistência de uma auto-imagem onde o componente forma entra decisivamente. Não cabe aqui questionar com mais demora a distinção entre reconhe­cer no objeto "Direito" um sentido formal e aceitar para seu estudo métodos puramente formais (Bobbio inclusi­ve escreveu sobre isto), mas o formalismo como tal apare­ce como constante, no pensamento jurídico moderno, dentro de uma espécie de racionalismo que se mostra às vezes bastante anacrônico.

Este formalismo, que sob certa mira mostra-se pró­prio do jurista, ocorre em determinados casos como acomodação didática, assumindo inclusive a forma de supervalorização de certos nomes: quase uma volta do culto das "autoridades" tal como foi conhecido no Direi­to Justinianeo e no medieval. No Brasil, Tobias Barreto denunciava com carregada ironia o excessivo apego dos civilistas de seu tempo a Pothier ("o Pothierzinho"), e hoje não seria exagero afirmar que o nome de Kelsen ainda representa para certos professores - em número

Wright MILLS. A Imaginação Sociológica, trad. W Dutra.

Page 13: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

cada vez menor, felizmente — uma autoridade suprema e quase divinizada.

A nosso ver, um dos grandes problemas àoformalis-mo é a sua tendência reduáonista. O formalismo cancela de seu objeto (e o termo "objeto" é sempre muito caro aos formalistas) tudo o que não atenda a um determina­do (pré-determinado) molde epistêmico, estabelecendo que conhecer a forma é suficiente para conhecer a coisa. Evidentemente o conhecimento da forma é algo muito importante, pois o homem conhece basicamente formas; mas com elas busca conhecer sentidos, isto é, busca com­preender. Os formalismos não são, entretanto, a única espécie de reducionismo, pois este se encontra inclusive nos positivismos empiristas, cuja tendência tecnicista sem­pre se contrapôs ao humanismo abrangente9.

A alusão à história vale, no presente trabalho, como alusão à história das sociedades, em acepção geral, e tam­bém à história do poder e das estruturas, das crenças e dos valores, dos comportamentos e dos preceitos. A realidade histórica é em si mesma irredutível aos esquema-tismos, sobretudo os demasiado simétricos, mas é sem­pre necessário, para situar as coisas na história, adotar algum esquema. Daí a alusão a fases; daí a idéia de uma "fase teológica" vinculada à de uma secularização.

Retornando assim por um momento ao problema da secularização, temos que para entendê-la é preciso aludir a uma "fase teológica", ou em outros termos a um padrão cultural teológico. Este padrão será entendi­do evidentemente como produto histórico, o que aliás já foi afirmado — embora com equipagem conceituai algo

9 Mencionamos "humanismo" no sentido amplo, mas sempre com referência à matriz moderna situada no humanismo renascentista. Aquele sentido e essa matriz se encontram referidos no livro de GRAFTON e JARDINE. From Humanism to Humanities.

INTRODUÇÃO

tosca — por Thomas Huxley10. Contudo a historicidade do padrão teológico não corresponde apenas à sua tran-sitoriedade, eis que ele é "superado" pelos padrões ra­cionais, mas também à sua permanência, pois que ele persiste, sob formas mais ou menos discretas, dentro do racionalismo que o sucede. Talvez se realize nisto a ima­gem hegeliana da acumulação, que traduz a conservação do que foi eliminado, enriquecendo (complicando) a experiência cultural, permitindo a passagem às sínteses.

*

A referência a épocas e a linhas históricas envolve, dentro de temas como o deste trabalho, uma necessária visão seletiva: em parte se aceita a tradicional tripartição dos tempos (antigüidade, medievo, história moderna), em parte se adota a visão das culturas, remodelada em função de idéias como contextos e durações.

Parece aceitável que no período inicial de cada uma das grandes civilizações — há quem prefira dizer "socie­dades históricas" — ocorreu o predomínio de uma visão religiosa do mundo, que teve como correlato um modo teológico de pensar. Isto terá inclusive acontecido nas sociedades egípcia e babilônica, nas quais a burocrati-zação, enquanto "racionalização", veio com a crise da religiosidade inicial. No caso grego, convencionou-se

T. HUXLEY, Science and hebrew tradition, Essays (Londres: Macmillan, 1895): "From my present point of view, theology is regarded as a natural product of the operations of the human mind, under the conditions of its existence, just as any other branch of science, or the arts of archicheture, or music, or painting are such products. Like them, theology has a history." (p. 288). Junto com Huxley, vale citar seu contemporâneo de Oxford, MÜLLER. La Science de Ia Religion (trad. H. Dietz, Paris: G. Baillière, 1873). Vale igualmente reter que toda religião é uma ordem normativa, constante de recomendações e interdições, prescrições e regras: regras de culto, regras de conduta, regras individuais e coletivas.

Page 14: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

8 NELSON SALDANHA

considerar que após o período religioso sobreveio um padrão racional: Nestle expressou a coisa com a famosa fórmula "Vom Mytbos %um Logos". Na verdade o proces­so se relacionou com vários fatos histórico-sociais. O trânsito à racionalização, ou seja, a secularização, ocor­reu exemplarmente na cultura européia (ou seja, no "Ocidente"), com a queda dos modelos teológicos e com a gestação do iluminismo; depois é que os historiadores caracterizaram como análogo o ocorrido na Grécia. Como dissemos acima, Comte percebeu os caracteres do fenômeno, e Weber referiu-se a ele em termos que tiveram larga influência.

Entretanto a racionalização, que é um lado da secu­larização e que substitui o modo teológico de pensar por uma série de esquemas novos (ligados inclusive a uma realidade histórica nova), não elimina de todo os componentes teológicos anteriormente dominantes. Isto ficou afirmado linhas acima. Assim a metafísica, que se constrói na Grécia após a crise do pensar religioso, con­serva evidentes traços teológicos: no caso o poema de Parmênides, no caso a concepção platônica das idéias e da verdade11. No Ocidente moderno, marcas do pensar teológico continuam perceptíveis em Hobbes e em Locke, e mesmo ainda em Hegel. Secularização, ma non tanto11.

1 ' Sobre os pré-socráticos, entre outros, Olof G I G O N , Los orígenes de Ia filosofia griega, de Hesiodo a Parmênides, trad. M. C. Gútiez; CORNFORD. Prinápium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego, trad. M. Manuela R. Santos; Cf. também os fragmentos coligidos por M. Grünwald: Die Anfãnge der abendlãndischen Philosophie (Munique: Artemis Verlag, 1991). Para o caso da "verdade" platônica, voltare­mos ao assunto adiante. Para o de Parmênides, ver o estudo de COR-DERO, inserido em A A W (org. por J.-F. MATTEI), 1M naissance de Ia Raison en Grice, p. 207 et seq. — Cf. ainda Antônio A. Gorri, Estúdios sobre los presocraticos, passim.

12 Escreveu certa vez Mircea Eliade que o historicismo teria provindo da decomposição do cristianismo. Mas entre o cristianismo — o medieval, quero dizer — e o historicismo medeia o racionalismo "moderno", com

INTRODUÇÃO 5

Vêm depois os positivismos, que radicam no ilumi­nismo (em uma parte do Murninismo), mas que o negam na medida em que se apoiam sobre empirismos e sobre uma massa de conhecimentos que os homens do setecentos não possuíam. Os positivismos (evolucionismo, biologismo, etnologismo) não desmentem o racionalismo, evidentemen­te, mas de algum modo abrem um caminho à teologia, como nas bizarras concepções da fase final de Comte: dir-se-ia que de dentro das retortas e dos livros, no gabinete de Fausto, surgem demônios novos. Os positivismos, contu­do, dentro de sua linha central, são cientificismos, geral­mente comprometidos (como o próprio üuminismo) com programas de ação social: são portanto, sob certo prisma, ideologias. Por outro lado, o seu esforço de afirmação contra os não-positivismos, principalmente contra as concepções "ainda" metafísicas, das quais precisam distinguir-se, leva-os a uma constante e obsessiva preocupação metodológica. Este é um problema central.

As ideologias, voltadas a explicar as coisas em fun­ção de um motivo concreto que pode ser mais genérico ou mais específico, e que se articulam como "condena­ção" e "aprovação" de determinados valores, conservam portanto algo do padrão teológico. Desde logo o exclu-sivismo: cada ideologia considera as demais como ne-fandas e errôneas, estabelecendo sua explicação como única satisfatória, apta inclusive a explicar os erros das outras. Em seguida a tendência escatológica, designada­mente em certos casos: a descrição do processo histórico se transforma na anunciação de eventos em que se cum­pre o destino dos homens e das coisas. Mas conservam

seu derivado o criticismo; e ao lado do historicismo, ou em sua esteira, o metodologismo (vindo dos formalismos críticos e do neopositivismo) aparece como produto tardio que se distingue do historicismo por não se voltar à compreensão do fato de ser tardio Sobre a historicidade da pró­pria razão, e portanto da idéia de "Direito como razão", ver PERELMAN-TYTECA. Traité de lArgumentation, p. 1.

Page 15: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

•Kl ^ _ _ NELSON SAjJWHA

também um tanto do raáonalismo, inclusive em sua pecu­liar pretensão de objetividade, justamente uma preten­são que complementa e avaliza o exclusivismo.

Por sua vez a elaboração de grandes metodologias representa uma conseqüência do raáonalismo, ou antes, do componente de raáonalismo que se guarda na base dos positivismos. Isto se aplica às preocupações episte-mológicas de Comte e de Stuart Mill, bem como às in­tensivas reflexões dos neokantistas — ressalvado que a estes não se aplica propriamente o rótulo de positivistas. Este rótulo vem sempre de um mal-entendido de certos historiadores. Há entretanto, na permanência das for­mulações metodológicas — e sobretudo nos "debates metodológicos" —, um certo retorno à teologia: um questio­nar por questionar, um refletir sobre como fazer mais que sobre o que fazer, um pairar em logomaquias, em problemas esotéricos e em truísmos.

Temos assim que os reflexos da secularização da cul­tura sobre o pensamento jurídico, principalmente o mo­derno, levam a teoria do Direito (inclusive e malgrê tout a filosofia jurídica), desprendida já da antiga teologia, a en­trar em um corte formalista e a se transformar numa vasta e automotivada, autopropulsionada metodologia. Entretanto o pensamento jurídico parece conservar traços teológicos que ressurgem neste metodologismo, e aí está um processo que importa registrar. Passa-se aos poucos, no meio das crises e das complicações do pensar saturado, da fé no método ao método como fé.

A alusão a traços teológicos nas ideologias não tem que causar estranheza, até por ser próprio do prose­litismo ideológico o cultivo de uma mística interna. Nos séculos XIX e XX a proliferação dos ismos tem demons­trado esta mística13. Nos positivismos, porém, a ocor-

Cf. nosso estudo "Do maniqueísmo à tipologia", ora em Humanismo e História, cit., p. 57 et seq.

INTRODUÇÃO H

rência de traços teológicos se apresenta como contradi­ção; no caso dos positivismos do século XX, que são formalismos e metodologismos, esta contradição pare­ce mais aguda. Parece-o, na medida em que seu perfil doutrinário se caracteriza pelo repúdio à metafísica, e portanto, implicitamente e afortiori, a todo pensamento não "científico".

Entretanto cabe observar isto: uma coisa é a consciên­cia metodológica, que sempre deve ocorrer e que dá às diversas ciências fisionomias diversificadas. Outra coisa o que chamamos metodologismo, a mania ou pelo menos a preocupação excessiva que chega a fazer do método, ou dos problemas metodológicos, um fim em si, em vez de apenas meio. E não precisamos chegar ao ponto aonde chegou Eliot, que dizia que o único método consiste em ser inteligente. Podemos inclusive esperar que o exagera­do apego ao método como tema tenha sido somente um ponto de passagem, um fruto do entusiasmo formalista e do cientificismo excessivo.

4. VISÃO HISTÓRICA D A TEORIA JURÍDICA

Falamos, há pouco, na necessidade de conhecer as coisas na história, donde a importância de montar es­quemas (ainda que sejam flexíveis e mínimos) para or­ganizar a visão histórica das coisas. Obviamente o que mencionamos aqui é o interesse filosófico dessa visão — por incrível que pareça ainda há quem o ignore —, inclusive para a Filosofia do Direito: referir-se a pro­blemas históricos é aludir aos problemas mais reais do pensamento jurídico. E quando os problemas históri­cos são vistos como histórico-culturais, os esquemas correspondentes devem atender às chamadas conexões-de-sentido: nelas se acham (e isto constitui, como em Weber e em outros, o método da compreensão) os signi-

Page 16: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

18 NELSON SALDANHA

diar no idealismo de Platão a própria teoria clássica da verdade. Esta teoria, bem como o platonismo, teriam algo de teológico. E então poderia existir na "gramato-dologia" uma réplica pós-moderna da teologia, com o simultâneo desejo de destruí-la, "desconstruindo" as estruturas do dizer e do pensar. Wer verfolgt, folgt.

As coisas na história vão e voltam, passam e retor­nam, embora sempre diferentes.

2 CAPÍTULO

O LOGOS ORDENADOR

— • SUMÁRIO •

1. Teologia, cosmologia e alusão ao logos. 2. O logos antigo e o pensamento cristão. 3. Alusão ao problema do méto­do. 4. Permanência do componente teológico. 5. Mais so­bre a permanência do teológico.

1. TEOLOGIA, COSMOLOGIA E ALUSÃO AO LOGOS

Não se pode fazer afirmações muito seguras sobre épocas distantes, mesmo tratando-se de imagens prove­nientes do "mundo clássico". Há sempre uma margem onde incidem as dúvidas e onde o que se diz é conjectural, ainda que a erudição filológica e a devoção dos arqueó­logos tenham levantado e confirmado muitas coisas. En­tretanto, dentro de esquemas globais e em confronto com realidades "modernas", as imagens antigas são sempre passíveis de interpretação (e de reinterpretação), por conta da própria necessidade de "entender" a história.

Assim se tem a possibilidade de dizer que a vida "anti­ga" era mais simples, a tecnologia era então menos compli­cada, e que a relação entre a ação humana e as pautas éticas parece ter sido mais simétrica. A presença de uma dimensão teológica nessas pautas deve ter sido uma ca­racterística essencial: algo que se imagina como próprio das culturas "orientais" (Egito, Mesopotâmia, Pérsia) e que vinha das origens. No caso grego, posto que aqui men­cionamos o "mundo clássico", tais origens correspon-

Page 17: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

100

mo modo os trialismos e tridimensionismos, sobretudo os alimentados pela noção de experiência jurídica. Com freqüência a contraposição entre correntes ou posições é análoga à diferença entre a ordem de problemas assumida por umas e adotada por outras. Às vezes, porém, se tra­ta de diferentes modos de pensar, metodologicamente expressados, e distintas visões do objeto.

Enquanto os formalismos, mormente, os "puristas", continuaram aferrados aos seus temários vindos da teoria pura, com algumas variantes, o pensamento social mais recente tem trazido várias questões novas, com novos questionamentos, que importa à teoria jurídica conhecer e partilhar.

Por outro lado, as discussões têm alcançado certos conceitos fundamentais, cuja compreensão resulta enri­quecida com a variedade de ângulos sob os quais são tratados. A ênfase dos formalistas sobre a noção de "ordenamento", por exemplo, ensejou o reestudo da idéia de ordem jurídica, e com ela a de sistema — além do reexame do pensamento do próprio livro de Santi Ro­mano sobre o ordenamento9. Dentro do tema situa-se o reflexo das idéias de Schmitt sobre decisão: sente-se a diferença entre dar prioridade à decisão sobre a forma, e portanto sobre a ordem, ou dá-la à ordem, isto é, à forma, sobre a decisão10.

9 Veja-se o cap. IV {Online positivo, ra^ionalità, giusti^ia) em CARRINO. L'Ordine delk norme. Política e diritto in Hans Ke/sen. Com a redução do Direito à norma, esta entendida em sentido lógico-formal, se descar­tam as implicações políticas do Direito, justamente do Direito positivo, único a que obviamente se referem os "puristas".

10 Este foi o tema do ensaio inicial do livro de CASTRUCCI. La forma e Ia decisione, op. cit. Carl Schmitt havia explicitado, por conta de suas inclinações doutrinárias, que "toda ordem descansa sobre uma deci­são" (Teologia Política, op. cit., p. 43-44). Na verdade o problema é circular, pois a configuração do decidir implica um mínimo de relações e de expectativas que prefiguram uma ordem.

SECULARIZAÇÂO E CRITICA HI5TÓRICA

Em Santi Romano, as normas se entendem em fun­ção do ordenamento, não ao inverso. Na mesma dire­ção outros autores têm revisto o problema das relações entre Direito e norma, com enfoques diversos daquele que se encontra no normattvismo reducente. Do mes­mo modo que ao legalismo simplificador (do tipo do de Kirchmann) já se havia respondido com a advertên­cia de que o Direito não se reduz à lei11, assim se contra­põe àquele normattvismo a noção óbvia segundo a qual "Direito" expressa mais do que "sistema de normas"12.

*

Entre as posições que divergem dos formalismos e dos purismos, não podem deixar de constar os sociolo-gismos. Com este termo estamos aludindo às teorias ou correntes que enfatizam as condições sociais do Direito e que tendem a reduzir a temática da teoria jurídica à dis­cussão sobre elas. Entre tais posições se encontra a dos críticos marxistas, com sua maniática visão do fator eco­nômico como fator demiúrgico. Na crítica marxista não apenas se tem a remoção do debate para o plano do "so­cial" e das condições "materiais" do Direito, como mes­mo, em certos casos, a conversão da análise em acusa­ção contra a "classe burguesa", considerada autora de

11 Cf. H E R N Á N D E Z - G I L . Problemas epistemo lógicos de Ia ciência jurídica, p. 17 et seq. Cf. nosso Legalismo e Ciência do Direito, op. cit.

12 Expressa muito mais. O professor chileno A. Guzman Brito chega a dizer — a frase é realmente excessiva, mas se explica pela perspectiva romanística do autor — que o Direito, historicamente, se desenvolveu sem precisar das leis, vindo a ser algo "reacio a Ias normas" ("La función jurisdicional en Ias concepciones clásica, moderna y con­temporânea", em A. Guzman e outros, La función judicial, p. 220). Em sentido análogo, Francisco Madrazo distingue entre a ordem jurí­dica e o direito judicial, este entendido como de certa maneira supralegal {Ordem jurídicoy derecho judicial, p. 58 et seq). Para Madrazo a estrutura da ordem jurídica não tem nada a ver com a "pirâmide" divulgada por

Page 18: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

102

todo o Direito moderno13. Com isto se tem o jurídico propriamente dito fora da reflexão, que o reduz às suas pretendidas condições, estas entendidas em termos de classes — nos termos em que se expressava o marxismo stalinista da época de Vishinsky e de Stucka. Em dados casos a crítica das condições sociais e do Direito dito burguês leva (velho tema, já presente em Marx e Engels) à crítica do Estado, e portanto, do estatismo do direito. Vêm então escritos sobre a possibilidade de sociedades sem Estado, inclusive com o recurso da antropologia (cita-se sempre o livro de Clastres sobre as sociedades pré-esta-tais); omite-se a idéia do Estado como configuração global dos grupos que integram a sociedade, idéia que estava já em Aristóteles e em Bodin; acentua-se, por arrastamento ideológico, a noção do Estado como aparato de classe — sempre o sediço texto de Althusser — e alguns aludem in­conseqüentemente ao "mito" do Estado.

Tem-se deste modo uma equivocada alternativa en­tre o conceito formalista-normativista de ordenamento, e sua radicalizante negação por parte dos que preten­dem um direito "informal" e "não-dogmático"14.

Não é deste tipo a crítica do formalismo e de suas correlações metodológicas, que aqui propomos — evi­dentemente.

Kelsen; as "normas secundárias", por sua vez, são vistas como integran­tes do Direito Judicial, e constituem a base de sustentação das primárias, eis que constam dos princípios que embasam o próprio direito.

13 FREUND, comentando a "Crítica da Razão Dialética" de Sartre, men­ciona "une interpretation scolastiquement marxiste de Ia philosophie", ortodoxa e apriorística (Archives de Philosophie du Droit, p. 219 et seq). Seria longo arrolar e comentar aqui as obras que aplicam ao direito os esquematismos marxistas, inclusive a medíocre "Introdução" de Miaille.

14 Realmente não cabe contundir uma crítica histórica com uma diatribe, nem sequer com uma tosca "sociologia dos fatores"; ela é antes de tudo uma compreensão do sentido histórico dos problemas ("histórico" como algo que não se reduz a uma "função das estruturas materiais").

SECUUXRIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

3. SECULARIZAÇÃO E VISÃO DA HISTORICIDADE

O caminho para a revisão destes problemas se acha evidentemente na perspectiva histórica. A história como perspectiva não se confunde com as enfáticas doutrinas do século XIX, que delineavam esquemas onde se encai­xavam os fatos, de sorte a desembocar "logicamente" em determinado estágio — como ocorreu no comtismo, no spencerismo, no marxismo.

Ao falar de perspectiva histórica tem-se como impli­cação um relativismo, que não é ceticismo (nem nihilismo) nem pragmatismo e que torna flexível o entendimento do "curso" dos fatos, mesmo admitindo-se que eles têm um sentido dialético (que o têm em certa medida). Este en­tendimento compreende a significação de cada esfera (a cultural, a religiosa, a econômica) em função da história, isto é, em função de um todo e em função da "práxis": não ao contrário, o todo e a práxis como resultado mecâ­nico de tal ou qual "fator".

Tem-se então o plano institucionalào viver dos homens como algo cuja estrutura se impõe sobre os comporta­mentos, mas que também depende de comportamentos; algo cujo caráter, como ordem, adquire significação em face de um entendimento que é comunitário, mas que inclui trabalho pessoal e que envolve valores e linguagem. Daí que ocorra uma hermenêutica, latente ou expressa, em cada grande contexto, com referência ao significado das insti­tuições e da relação que têm com os comportamentos.

No caso do Direito, que sem dúvida faz parte daquele plano institucional, e que emerge da politicidade exis­tente na convivência institucional dos homens, a combi­nação entre ordem e hermenêutica se apresenta com toda a clareza: o plano das normas positivas, que expressam vigências definidas, necessita, para sua atuação e sua com­preensão plena, da dimensão hermenêutica, isto é, do

Page 19: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

1Q4 NELSON

conjunto de significações e de elementos interpretativos que esclarecem aquele plano.

A conjunção de ordem e hermenêutica é evidentemen­te uma variável, a depender de contextos culturais e de épocas históricas. Vários autores têm aludido à perma­nência do padrão analítico existente no trabalho dos ju­ristas como algo específico desde a Idade Média: um pa­drão formalmente distinto do que correspondeu, por exemplo, à ciência jurídica romana. Otto Brusün, afirman­do a validade daquela permanência, conclui enfaticamen­te pela necessidade de um "fundo histórico-cultural" para a compreensão do "método de pensamento da moderna ciência do direito"15. Temos deste modo o Direito como história, além de "na" história: assim o emergir de um pen­samento secularizado dentro da teoria do Direito não pode ocorrer como algo anti-histórico ou a-histórico16.

O verdadeiro historicismo — não o que aparece distorcido nas inconseqüentes diatribes de Karl Popper - representa em verdade a secularização reconhecendo-se, assumin­do-se como posição crítica: a crítica da secularização partindo de uma reflexão, de um pensamento saído dela, isto é, de um estágio histórico marcado por ela própria. O historicismo, ao situar as coisas e os homens dentro de termos históricos, situa-se, situando assim sua validade e seus limites — os limites que Troeltsch discutiu17-, ca­racterizando as formas e os graus das "crises" que o cer­cam. Porque o historicismo é uma expressão de crise, da malaise que atingiu o Ocidente a partir de certos pon­tos históricos: seja da Revolução Francesa, seja do ad­vento dos conflitos ensejados pelo capitalismo, seja das próprias questões que o pensamento descobre dentro da

15 Elpensamiento jurídico, p. 242. 16 Cf. nosso O Problema da História na ciênáa jurídica contemporânea, passim. 17 TROELTSCH. Der Historismus und seine Probleme.

SECULAKIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

revisão de suas trajetórias. O positivismo foi uma filosofia da crise, e com ele, como ele, o ecletismo e os naturalismos do século XLX o foram: filosofias na crise e em crise, como talvez o hegelianismo e certamente o marxismo, e também as cor­rentes que surgem com a transição ao século XX18. O historicismo tematiza seu contexto, permite a discussão de seus próprios fundamentos e abre ao pensamento secularizado o espaço para o debate de seus "prós" e de seus "contras".

É importante registrar que a crítica, no pensamento jurídico contemporâneo, tende — em suas formulações mais fecundas - a assumir este sentido histórico, fazen­do da revisão dos itinerários e dos contextos (como tra­ços historicamente exemplares) a base para a reflexão sobre a experiência jurídica e sobre o saber jurídico. Pode-se inclusive admitir a existência de um padrão, que é feito de constantes e que configura através de suas li­nhas dominantes uma "filosofia jurídica européia", como aquela a que se refere Trigeaud19.

4. "TEORIA GERAL" E FILOSOFIA D O DIREITO

A consciência da continuidade de determinadas linhas do pensamento jurídico e de sua temática, em correlação com o reconhecimento da permanência do objeto "Direi­to", sem embargo das variações e através da diversidade de contextos, leva à idéia de uma Teoria Geraldo Direito. En­tendemos a esta em um sentido realmente genérico, isto é, abrangente dos diferentes aspectos do fenômeno jurídico: o jurídico em sua abrangência e em seu sentido "geral".

18 Uma das explicitações se acha no título do livro antipositivista de SOLOVIEV, de 1874. Crise de Ia Philosophie Occidentale. O tema nos remeteria à doutrina de Spengler sobre a decadência do Ocidente, reformulada por Toynbee e outros.

19 TRIGEAUD. Philosophie juridique européenne. Cf. também nosso "Texto Introdutório" em Teoria do Direito e Crítica Histórica.

Page 20: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

T f l f i ^ NELSON SAIJXÃMHA

Aqui recordo um breve e lúcido ensaio do civilista ita­liano Natalino Irti, a propósito da posição de Ferrara quanto ao método jurídico. Lembrando que Ferrara sempre man­teve o sentido da positividade e da historicidade do Direi­to, Irti agrega que, para o mestre do Trattato, o jurista cons­trói com referência ao Direito vigente, considerado como totalidade e situado em dada época, superando-se assim a equivocada antítese entre historicidade e dogmática20.

Não nos alongaremos na discussão sobre o conceito de Teoria Geral do Direito. Cabe entretanto mencionar que ela se relaciona com a própria experiência real do Direito através de um dos momentos desta: o momento hermenêutico. A existência de um momento herme­nêutico, ou mesmo de uma dimensão hermenêutica, inte­grando o fenômeno jurídico, vincula ao "Direito", como realidade dinâmica (não apenas como estrutura) as raízes da "teoria" que a ele se refere. Evidentemente tal teoria se distingue da Filosofia do Direito, que tem mais am­plas dobras e implica em indagações mais profundas; a teoria pode inclusive entender-se como um passo entre a visão "dogmática" do Direito - vai o termo por falta de outro melhor — e sua visão filosófica, cujos contornos epistemológicos nunca cessarão de ser discutidos21.

*

Ao reter as linhas fundamentais do que vem sendo através das épocas o pensamento jurídico, a crítica his-

20 IRTI. "Problemi di método nel pensiero di Francesco Ferrara", em Kev. de Direito Civil, át. — Cf. também FERRARA. "Teoria dei diritto e metafísica dei diritto", uma dura critica à Teoria Geral do Direito de Carnelutti.

21 Para o conceito de Teoria do Direito (e suas relações com a Filosofia do Direito), ver o excelente capítulo I da Teoria dei Derecho de ZULETA PUCEIRO. Muito interessante o artigo de WROBLEWSKI, "Uattítude philosophique et 1'attitude aphilosophique dans Ia théorie contemporaine du droit", em Archives de Philosophie du droit, p. 273 et seq.

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA JQ7

tórica se defronta com certos problemas, inclusive o de selecionar as imagens. Toda visão histórica é seleti­va, e ao distinguir as linhas centrais, a teoria envolve um momento interpretativo que revela suas próprias bases. Por outro lado, a compreensão das relações en­tre o pensamento jurídico de uma época e o de outras leva à noção do que muda e do que permanece. Al­guns autores lançam mão do conceito de paradigma, termo veiculado por Thomas Kuhn em 1962: o para­digma como padrão dominante no saber jurídico em determinado tempo22. Evidentemente o uso do con­ceito de paradigma confere à teoria do Direito um senti­do histórico, uma perspectiva onde as categorias se situam e se tornam inteligíveis em função do quadro contextual em que se acham situadas.

Na medida em que se percebe a permanência de de­terminadas linhas ou figuras - inclusive institutos e prin­cípios — pensa-se na cumulatividade do saber, que não significa apenas a junção e sobreposição de textos e de idéias, mas o enriquecimento das idéias e a alteração do sentido dos textos. Aqui cabe aplicar, até certo ponto, a noção hegeliana de A-ufhebung. em determinadas épocas se substituem os padrões dominantes, mas o que foi can­celado permanece, de algum modo, abrangido e absor­vido pelo que sobreveio. Assim se tem a substituição dos padrões e dos modos através de sucessivos "mode­los" e, ao mesmo tempo, a continuidade de algo que se pode tomar como o "objeto" do saber. Esta continui-

KUHN. A Estrutura das Revoluções Científicas, passim. Cf. PUCEIRO. El paradigma dogmático, op. cit., principalmente o prólogo e o cap. I. Também A. GENNARO. Introdu^ione alia storia dei pensiero giuridico (op. cit), ao balizar os diversos capítulos, utiliza a noção de paradigma. Veja-se ainda CANGUILHEM. "El papel de Ia epistemologia en Ia historiografia científica contemporânea", em Eco, (Buchholz, Bogo­tá), n. 247, maio 1982, p. 1 et seq., princ. p. 13.

Page 21: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

1 0 8 NELSON SALDANHA

dade, que é "do" objeto, é que o faz ou o perfaz em suas características, permitindo que se fale dele e que se pen­se sobre ele.

*

Mas o que importa, sobretudo, é a necessidade de que permaneça uma filosofia do Direito que efetivamente seja uma filosofia: um pensamento sem reducionismos, a não ser os que provêm da própria configuração dos temas. Aqui convém recordar o passo do Prefácio da Fenome-nologia do Espírito, onde Hegel se refere à "maneira dogmática de pensar", que corresponde a questões que pedem respostas fixas: para Hegel, estas questões não atin­gem a "verdade filosófica", que tem algo de "delírio báquico" e que se faz pelo próprio percurso de seus momentos no sentido da totalidade — a totalidade como movimento23. Mesmo sem adotar por inteiro esta pers­pectiva podemos extrair de dentro dela um conceito não-formalístico de filosofia e de "verdade filosófica", que pode aproximar-se da noção de hermenêutica e de pen­samento hermenêutico formulada em nosso século.

Valerá, no caso, aludir ao esforço dos pensadores não-formalistas, especificamente não-logicistas e não-normativistas, que vêm desde as décadas centrais do sé­culo vinte mantendo — com freqüência colocando — a filosofia do Direito em seus enfoques próprios, dentro de sua temática própria. Erich Schwinge, em 1930, em valioso ensaio sobre a Methodenstreit que ocupou os juris­tas de seu tempo, já se rebelava contra a idéia de um único método (uma frase de Heller, que então citava, alu­dia ao "imperialismo do método único") propondo um sincretismo metodológico como algo mais frutífero24.

Fhénomenologie de /'Esprit (op. cif.), p. 35 e 40.

S C H W I N G E . "La controvérsia sui metodi nella scienza giuridica moderna", loc. cit., p. 223-224 ("Tutti i metodi hanno i loro limiti:

SECLJLARIZAÇÁO E CRÍTICA HISTÓRICA ^Qt)

Bem mais recentemente — e é claro que estamos a omitir numerosos autores —, o professor Trigeaud, de Bor-deaux, em estudo sobre a situação atual da filosofia do Direito, salientou a permanência histórica da reflexão sobre a justiça como referência inegligenciável para o pensamento jurídico, contra as orientações estritamente positivistas que omitem aquela reflexão25.

*

Uma espécie de saturação, senão de enfado, pode ser observada em importantes setores na rejeição do estrito positivismo. Inclusive, no caso da filosofia geral e da metodologia, contra o neopositivismo. Seja exem­plo o sugestivo livro de Paul Feyrabend, Adeus à Ra^ão (Farewell to Reason). No capítulo 6 desse livro temos uma arrasadora crítica a Karl Popper e às suas "excursões" na filosofia, que considera banais e ingênuas (além de pre­tensiosas, acrescentamos); a Popper e ao neopositivismo, que, com suas "charadas lógicas" se teria servido "do nome da ciência para propagar uma perspectiva rígida, tacanha e irrealista"26.

Uma saturação que devemos compreender como recusa dos reducionismos e empobrecimentos contidos nos positivismos em geral. A importância metodológica de obras como a de Kant, por exemplo, ou mesmo a de Husserl, pode ser admitida em termos de momentos his­tóricos, sem que se tenha de "depender" de seus esque­mas para o encaminhamento da reflexão filosófica.

dove un método falisce a causa di questi limiti, devono subentrare per 1'appunto metodi nuovi", p. 224). Sobre o assunto ver também L. RODRIGUEZ-ARIAS. Filosofia j Filosofia dei Derecho, p. 92 et seq. e nosso Formação da Teoria Constitucional (op. citi).

25 TRIGEAUD. Persona — ou, Ia justice au double visage, p. 11 et seq. 26 FEYERABEND. Adeus à RaZão, p. 223.

Page 22: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

110

Esta reflexão se desenvolve com a absorção de diver­sos outros momentos, que no pensamento contemporâneo incluem Hegel, o historicismo e a axiologia, ou seja, dire­ções menos formais. A presença de um grau menor de for-malismo não representa necessariamente carência de "ri­gor", mas sim abrangência, flexibilidade e possibilidade de abertura para temas fibsoficamente ligados ao humano.

A excessiva concentração do pensamento jusfílosó-fico nos temas metodológicos conduz, como temos re­petido, a um reducionismo. Conforme ficou visto, ela chega a parecer uma nova teologia, como se por um paradoxo o processo de depuração das formas de pen­sar desembocasse em algum ponto do trecho inicial: uma nova teologia com textos e autores sagrados, linguagem específica, correntes internas e proselitismo.

O chamado rigor formal é admissível e até necessá­rio no saber dito dogmático, isto é, no trato específico dos diversos ramos do direito positivo. Não cabe trazê-lo, mais ainda sob toques cientificistas, para dentro da teo­ria jurídica; menos ainda, da filosofia, onde o rigorismo e o cientificismo significam muitas vezes renúncia às re­flexões mais representativas.

Queremos entretanto acrescentar outras observações. Na medida em que o conceito de ordenamento foi toma­do pelos formalistas e puristas como uma noção pura­mente formal, constituída por um "sistema de normas", a exclusão dos aspectos não-formais do problema acar­retou e implicou a redução do objeto "Direito" à con­dição de um ente abstrato. Disto aliás vários críticos se têm ocupado. Ocorre porém que o Direito, em sua ob­jetividade e sua positividade, representa uma ordem entre outras, dentro da dimensão geral de politicidade que corresponde ao plano institucional da vida dos ho­mens. Representa igualmente uma ordem concreta e efe­tiva, composta de relações e decisões, além de normas e

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

de princípios. A concentração sobre problemas metodo­lógicos desvia o pensamento jusfilosófico do sentido real de ordem, que possui o Direito.

Desvia-o, também, da dimensão hermenêutica que existe na experiência jurídica. O cientificismo subjacente ao metodologismo mantém a problemática da teoria jurídica na ante-sala das questões concretas, isto é, man-tém-na na temática que alguns chamam metateórica. As exigências lógicas que se acham dentro do metodo­logismo, e com elas o prazer lúdico que se lhes refere, prendem o questionamento em uma série de indagações formais que não afetam a realidade.

Considerando-se no que se chama "Direito" a exis­tência de um componente ordem e de outro hermenêutica, percebe-se que neste segundo ocorrem implicações teó­ricas fundamentais, e ao mesmo tempo se encontram componentes da própria atividade prática. A hermenêu­tica, para a filosofia do Direito, aparece como um tema bastante complexo, que inclui correlações históricas e teóricas de profundo interesse cultural, correlações que servem de base à chamada "teoria da interpretação": a interpretação como momento característico dentro do processo de aplicação e de "concreção" do Direito. O tema da hermenêutica jurídica, no fundo, se relaciona com a inteligibitidade de toda a dimensão institucional da sociedade, visto que toda instituição - enquanto ordem - possui um potencial de significações que demanda uma interpretação. Tocamos nisto linhas acima.

Uma visão puramente formal do Direito, e um tra­tamento predominantemente metodológico da teoria do Direito, tendem a esvaziar a temática da hermenêutica, quando não a elidem. Os elementos culturais e axioló-gicos presentes no trabalho interpretativo não são al­cançados pelo instrumental puramente lógico (lógico-

Page 23: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

formal) dos "puristas", que apenas permite a referência a esquemas e a elementos: a norma como esquema de in­terpretação, a interpretação como análise ou utilização de determinados "elementos" concernentes ao entendi­mento dos textos legais.

O esforço exemplar de Savigny, situando ao início de seu Sistema o problema da interpretação e de seus "elementos" constituiu um passo importante em rela­ção às rotinas anteriores. O século XIX, não acrescentou grande coisa aos "elementos", mas elaborou a noção de hermenêutica dentro da filosofia e da teoria das ciências "do espírito". A importante contribuição de François Gény, teve, ao que parece, menos repercussão do que merecia, dentro da teoria geral e mesmo da filosofia da interpretação27. As alusões de Kelsen à interpretação, no capítulo 8 do volume II da Teoria Pura, não vão muito além da referência ao "ato de aplicação" da norma e sua "relativa indeterminação"28.

Registre-se entretanto que nos anos 50 algumas obras valiosas para o tema apareceram na literatura jurídico-teórica: destaquemos a Teoria Geral de Betti, a Tópica de Viehweg e o Tratado da Argumentação de Perelman. Betti reviu em um vasto panorama toda a problemática da her­menêutica e da interpretação, em vários campos e não só no jurídico; Viehweg propôs uma retomada do sentido do "problema" tal como este se deu na retórica e no

27 Sobre Savigny, entre dezenas de indicações, mencionaremos os dois tomos de estudos comemorativos de seu bicentenário, em 1979, pela Revista de Ciências Sociales da Univ. do Chile [Savigny j Ia Ciência dei Derecho, Valparaiso, 1979). Sobre Gény aludiremos às referências que ocorrem em B O N N E C A S E . La pensée juridique française, de 1804 à 1'heure presente, passim.

28 Teoria Pura do Direito (versão de 1960), op. cit., v. II, cap. 8. A menção à norma como "esquema de interpretação", que se acha na Teoria Pura em sua formulação inicial, não é retomada neste passo.

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA 113

pensamento jurídico greco-romano; Perelman, tentan­do declaradamente um prisma não-cartesiano, repassou sistematicamente todo o elenco de recursos da retórica e da lógica, inclusive para o Direito29. Todos estes contri­butos têm de ser elevados em conta, hoje, na considera­ção do tema da hermenêutica, ainda quando em sentido efetivo não se aceitem certos aspectos: a demasiado fácil recusa do "sistema" na obra de Viehweg, por exemplo, ou a ausência de uma reflexão histórica mais densa, no Tratado de Perelman.

29 BETTI . Teoria Generale, op. cit.; V I E H W E G . Tópica e Jurisprudência; P E R E L M A N ; OLBRECHTS-TYTECA. Traité de FArgumentation, Ta Nouvel/e Rhetorique, op. cit.

Page 24: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

POSFÁCIO

O tema do método e a crítica histórica. Racionalismo e normativismo. Épocas da ciência jurídica. Digressão so­bre legitimidade. A-lusão à hermenêutica.

Falei de método e de metodologismo. O método como ne­cessária ordenação das etapas de uma ação ou de um processo (no sentido comum e no técnico, do termo); o metodologismo como exacerbação da crença no método ou nos métodos, e do apego a ele ou eles. Obviamente podemos aludir à metodologia como descrição do método, ou como desdobramento de sua configuração. O método é uma necessidade, relacionada às mais remotas expressões do trabalho racional dos homens: geometrias, arquiteturas, aquedutos, navegações. Códigos também.

Mencionei, sobretudo nos capítulos III, IV e V, a passagem do "alto racionalismo" ocidental ao racionalismo aplicado (dir-se-ia: de Descartes a Sieyès); e deste, ao qual se uniu o empirismo, a passagem ao positivismo e ao cientificismo. Esta seqüência cor­reu em paralelo ao processo de secularização social e cultural. E depois a concentração do cientificismo no cuidado metodológico, na crença de que a fidelidade a determinado método seria a causa do progresso das ciências. Secularização, racionalismo, cientificismo: o quarto mosqueteiro terá sido o metodologismo.

Mencionei, por outro lado, o fato de que certas filosofias contemporâneas apareceram como métodos. No caso a fenomeno-logia, urdida por Edmund Husserl como esforço de retificação ou objetivização das bases do conhecimento. Também a Teoria Pura do Direito, aliás parcialmente inspirada na fenomenologia, buscando impor ao pensamento jurídico um método adequado (justo o método jurídico) e evitando deixar que o invadissem, àquele pensamento, perspectivas metodológicas do outra índole. Tanto na fenomenologia, desenvolvida por seu criador com gran-

Page 25: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

de coerência, quanto na Teoria Pura (também designada como normativismo, ou como o exemplo principal de normativismo) tanto em uma como em outra encontramos uma espécie de ritualismo semelhante ao das teologias. Até porque lhes falta a ambas uma perspectiva histórica. Faltam-lhes condições para que em sua estrutura caiba uma crítica histórica.

A presença de uma crítica histórica, dentro do pensamento jurídico moderno (como do político), tem sido uma constante desde Altúsio, desde Viço, desde Montesquieu e mesmo (com discrepâncias internas) no caso de Savigny. Não se entenderia Ihering sem uma perspectiva histórica interior em seus estudos. A ausência de crítica histórica, em teorias como a fenomenologia ou o normativismo, veio aproximá-las do logicismo e do detalhis-mo analítico, este tão caro aos autores de língua inglesa que no século vinte reduziram a teoria do direito (e da ética) a uma escolástica sem profundidade1.

*

Não quero dizer, evidentemente, que toda teoria que tenha sido divergente em relação à teologia, no processo de seculariza-ção ocidental, seja em si mesma um método. Ou que o método (como a metodologia) exista apenas como forma de combater ou substituir o modo teológico de pensar. É que o processo secula-rizador foi (ou vem sendo) algo complexo; e o racionalismo, que não se reduz ao componente metodológico, trouxe também a entronização do conceito de sistema, além da valorização da pró­pria referência a conceitos e a processos.

O componente metodológico, no âmbito do racionalismo, representa um modo de encarar a realidade diferente do que ocor­ria no período teológico: assim, em um autor medieval, os méto­dos escolásticos eram importantes pela tradição consolidada mais

N o caso de Kelsen, certos debates o compeliram a entrar em temas históricos, inclusive no livro Teoria Geral das Normas. Ele se manteve, entretanto, fiel à separação entre visão jurídica e visão política, o que acentuou, no curso dos anos, sua diferença (não polêmica pessoal) com relação a Carl Schmitt, bem como a Heinrich Triepel, a Gerhard Leibholz e outros.

POSFACIO

do que por seu caráter de criação ou descoberta2. No fundo a fé dispensa métodos (e daí a distinção entre crer e saber tematizada por Jaspers), métodos que são, para a razão, raiz e segurança.

Descartes confirmou, por meio do método, seu afastamen­to da escolástica. Ou, ao menos, pelo recurso à duvida, referin­do-se à qual reencontrou o pensar,e com ele o eu. Uma espécie de subsunção às avessas. No eu os filósofos medievais acredita­vam implicitamente; os românticos acreditariam enfaticamente3. No racionalismo cartesiano o eu foi deduzido do "penso", e este, do "duvido": um caminho cauteloso e linear, recuando para dentro da substancialidade do eu (Husserl, em paragens seme­lhantes, chegou ao termo "egologia", que Cossio aproveitou em outro sentido).

*

Como foi visto, a crise do legalismo não coincidiu historica­mente com o advento da secularização. Ela ocorreu dentro do amadurecimento do racionalismo jurídico e político, já na etapa posterior à criação dos códigos, quando a doutrina começou a es­gotar seus recursos conceituais4.

A crise do legalismo foi posterior à crise da legitimidade. Esta atravessou diversos momentos: o surgimento do Estado ab-solutista, com uma legitimidade ainda dinástica mas crescente­mente independente da unção eclesiástica; o advento da demo­cracia com a derrubada dos tronos e com o apelo à vontade

2 Obviamente o entendimento de determinado método dependerá da compreensão de seu contexto. Sílvia Rivera se refere à "idealização do método", que ocorre quando este se desvincula das concretas circunstân­cias em que se produz ("La epistemologia y sus formas cambiantes", em Filosofia, Política, Derecho. Homenaje a Enrique Marí, ed Prometeo, p. 65). Em 1710, Giambattista Viço aludia ao uso freqüentemente des­propositado do "método geométrico" [Sabiduría primitiva de tos italianos, p. 90 et seq.)

Para Hegel, menos ligado ao eu do que Fíchte, "o método não é senão a estrutura do todo, exposta em sua pura essencialidade" (Laphénomenologe de 1'esprit, p. 41).

4 SALDANHA. Ijegalismo e Ciência do Direito.

Page 26: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

após o humanismo renascentista, e contudo a perma­nência de certos traços da fase teológica. Permanência da marca escolástica sobre o modo de pensar do jurista, tão bem patenteada por Otto Brusiin.

Mas a transformação do saber jurídico em uma ou­tra teologia é algo distinto, e não abrange todo esse sa­ber: configura-se no formalismo normativista como um aspecto que há de ser considerado. Destacar este aspec­to envolveu uma série de sublinhados que podem pare­cer excessivos. Estamos, há cem anos, em um tempo de relativismos e tipologias, e nele os maniqueísmos (como o que existiu no normativismo) não devem florescer.

Escrevi para a presente edição um texto adicional, a título de Posfácio, retomando o problema desde as ba­ses, resumidamente, e sugerindo algumas tematizações novas, entre outras a concernente ao tema da legitimida­de, que com a secularização assumiu novo sentido. Seria longo e descabido refazer todo o trabalho, mas o leitor terá no Posfácio um breve guia para reconsiderá-lo.

O mesmo leitor concordará em que uma crítica ao formalismo se refere a um tipo de pensamento jurídico, e não ao direito como tal. O direito sempre poderá ser visto como forma (não "puramente" forma), que dá certeza e clareza ao convívio dos homens entre si e ao seu trato com as realidades da vida. Certeza e clareza relativas, sempre necessitadas de reinterpretação.

E de novo meus agradecimentos, que repetem os da primeira edição e que agora se acrescentam com o regis­tro do valioso estimulo de diversos alunos e ex-alunos, no Rio de Janeiro, no Ceará, na Bahia e em Pernambuco.

Recife, em fevereiro 2004.

XVI

1 CAPÍTULO

INTRODUÇÃO

• SUMÁRIO •

1. Alusões iniciais. 2. Secularização e visão da história. 3. Secularização, teologia e ideologia. 4. Visão histórica da teoria jurídica. 5. Para uma concepção histórico-crítica dos métodos.

1. ALUSÕES INICIAIS

O "Direito" como processo, como atividade de ór­gãos específicos, o "Direito" como realidade cultural com­plexa e como constante histórica; ao seu lado a "Ciência Jurídica", o saber concernente àquela realidade ou apli­cado naquela atividade: eis algo que tem assumido, em certos momentos ou para certos espíritos, um cunho de mistério. Inclusive em Kafka, com a tensa narrativa do drama do homem posto diante de poderes desconheci­dos e de conexões pouco inteligíveis. O mistério, na aná­lise célebre de Rudoph Otto, é tremendum e é fasánans, mas nos labirintos de Kafka parece dar-se predominan­temente o misterium tremendum.

A perplexidade do leigo diante da linguagem do Direito tem sido um dos fatores que criam a impressão de mistério em torno do fenômeno jurídico. Por outro lado o Direito, em sua aplicação, significa concretamen-te, em muitos casos, o perder ou o ganhar: significa o surgimento de resultados ansiados ou temidos. A lin-

Page 27: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

guagem jurídica (e não é sem propósito que está posta logo acima a palavra "leigo") foi em certas fases irmã da linguagem teológica. Foi ritualística e rigorosa, não apenas nos atos e na prática, como também nos textos, no conhecimento referente aos atos e ao seu fundamento: formulismo processual no Direito romano antigo, referên­cia a autores, a conceitos e a "autoridades" no próprio e no medieval. No Direito medieval, a ciência jurídica em mãos de clérigos, ou assimilada ao saber dos clérigos por seus caracteres formais. Sempre, e até hoje, o culti­vo de um vocabulário específico, cujos portadores se orgulham de dominar, como nota distintiva em face de outros saberes, e em face da linguagem comum. Tudo isto, aliás, sociológica e epistemologicamente compreen­sível. De qualquer modo, o certo é que, vez por outra, aparecem alusões ao sentido esotérico ou esoterizante da ciência jurídica, e até ao seu cunho de mistério.1

*

O presente estudo não constitui, evidentemente, uma pesquisa sobre a metodologia da ciência do Direito. O que ele visa é apreender um dos aspectos da evolução do saber jurídico, desde as implicações teológicas de suas formulações mais antigas, até os positivismos moder­nos com suas peculiares projeções metodológicas. Não pretendemos tampouco vasculhar o problema da "lin­guagem jurídica", hoje deleite de alguns especialistas. Não por desconhecer a importância da linguagem (cabe recordar o dito de Condillac, segundo o qual criar uma ciência não é senão estabelecer uma língua, sendo a ciên-

BOORSTTN. The mysterious sáence of the Faw, Harvard Univ. Press, 1941. Ao publicar em 1776 o seu Fragment on Government, aliás surgido sem o nome do autor, Bentham critica duramente o consagrado Blackstone, considerando ficções e fantasias muitas das noções assentes no pensa­mento europeu de então (Fragmento sobre ei Gobierno, trad. J. L. Ramos).

INTRODUÇÃO

cia uma "linguagem bem feita"), mas por dirigir o questionamento para problemas de outra índole.

Desde que se descobriu a importância do pensamen­to de Viço, o que como se sabe tardou a acontecer, com­preendeu-se que ele correspondeu a uma alternativa em face do pensamento de Descartes2. Ou antes, a uma ou­tra via, talvez oposta, talvez paralela e complementar, em relação ao racionalismo linear e conceituante do carte-sianismo. A linha cartesiana, cuja relevância no mundo moderno não há como diminuir, levou entretanto ao logicismo e ao cientificismo (isto é, ao cientificismo mate-matizante), enquanto a linha viquiana levaria ao histo-ricismo, à compreensão e à hermenêutica.

2. SECULARIZAÇÃO E VISÃO DA HISTÓRIA

O corpo do trabalho alude ao processo chamado de secularização da cultura. Este processo, ao qual temos aludido em vários outros estudos, constitui sem dúvida um fenômeno histórico fundamental, como lastro pro­fundo sobre o qual se situam e se entendem diversas ocor­rências. O conceito de secularização, no sentido em que o empregamos, aparece em uma de suas primeiras explicitações na obra de Max Weber3, correspondendo de certo modo às idéias de Comte sobre a passagem do espírito teológico ao metafísico e ao positivo, e talvez às referências de Viço ao advento do mundo "humano"

Cf. CROCE. Fa Filosofia di Giambattista Viço (ver principalmente o cap. I). Cf. também PERELMANN; OLBRECHTS-TYTECA. Traité de 1'Argumentation. Fa Noupelle BJthorique (Principalmente as linhas iniciais da Introdução).

Em Weber a idéia de secularização, ou dessacralização, vem coligada à de racionalização e à de burocratização, no meio de suas minudentes exemplificações, que com freqüência seccionam e fragmentam a conti­nuidade dos textos teóricos. Cf. Economia j Sociedad, trad. J. M. Echevarria, Roura Parella, E. Imaz, E. Garcia Maynez e J. Ferrater Mora. Passim.

Page 28: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

com seu correlato de prosaísmo4. Há também, contudo, um uso do termo secularização dentro da literatura cató­lica, uso presente inclusive em pensadores do Direito5.

Estas alusões indicam os esquemas históricos que utilizamos. Os estudos de Weber, que nem sempre se prendem ao conceito de secularização (ao menos ex­pressamente), podem ser, para o concernente aos mo­delos históricos, completados com os de Hannah Arendt, sempre sugestivos apesar de discutíveis. A validade de certas idéias de Augusto Comte (mencionado linha acima) é correlatada de algumas idéias de Marx, sobre as quais se vinha (ou vem) aplicando o fanatismo dos seguidores incondicionais, e também a intransigência dos contestadores radicais. A nosso ver a história se des­dobra em histórias que são as das diversas civilizações, e a trajetória de cada civilização apresenta quase sem­pre um sentido de complicação crescente, que é a um tempo urbanização, burocratização, racionalização, se­cularização, de sorte que ao olhar o todo somos tenta­dos a ver como percurso global uma série de linhas que preparam ou conjugam aqueles traços6. Há sem­pre labirintos, desde os das antigas mitologias aos do "organizacionismo" contemporâneo. Superpomos es­tes labirintos em função da exemplaridade assumida por certas imagens7.

Giambattista VIÇO. Cienàa Nueva, ttad. J. Camer. CROCE. ha Filoso­fia di Giambattista Vim, passim.

Cf. D 'AGOSTINO. Diritto e Secolari^a^ione, Pagine di filosofia giuridica e política, passim e esp., p. 205 et seq., 234 et. seq.

HABERMAS alude à presença dos esquemas interpretativos, geral­mente bipolares, no pensamento social moderno: do status ao contra­to, da comunidade a sociedade, domínio tradicional e domínio buro­crático, etc. (Técnica e Ciênda como "ideologia", trad. A. Morão, p. 56). Sobre a exemplaridade em história, cf. nosso ensaio incluído em Hu­manismo e história, Rio de Janeiro: Fundarpe/José 01ímpio,p. 34 et seq.

INTRODUÇÃO

3. SECULARIZAÇÃO, TEOLOGIA E IDEOLOGIA

Nas ciências sociais contemporâneas, o que tem ocor­rido, grosso modo, é uma crescente abertura para o debate crítico. A sociologia, que surgiu basicamente dentro da análise da "crise" proveniente da Revolução Francesa, mas que ao mesmo tempo recebeu a influência do racio-nalismo iluminista, não poderia ter-se furtado ao deba­te: daí ocorrer em seu âmbito um dualismo que enfeixa o formalismo a-histórico, de certo modo conservador, e o não-formalismo, inclusive com a questionante críti­ca da própria sociologia, como veio a ocorrer com Wright Mills8. Na ciência jurídica um certo fechamento, inclusive em relação as outras ciências sociais, sempre propiciou a persistência de uma auto-imagem onde o componente forma entra decisivamente. Não cabe aqui questionar com mais demora a distinção entre reconhe­cer no objeto "Direito" um sentido formal e aceitar para seu estudo métodos puramente formais (Bobbio inclusi­ve escreveu sobre isto), mas o formalismo como tal apare­ce como constante, no pensamento jurídico moderno, dentro de uma espécie de racionalismo que se mostra às vezes bastante anacrônico.

Este formalismo, que sob certa mira mostra-se pró­prio do jurista, ocorre em determinados casos como acomodação didática, assumindo inclusive a forma de supervalorização de certos nomes: quase uma volta do culto das "autoridades" tal como foi conhecido no Direi­to Justinianeo e no medieval. No Brasil, Tobias Barreto denunciava com carregada ironia o excessivo apego dos civilistas de seu tempo a Pothier ("o Pothierzinho"), e hoje não seria exagero afirmar que o nome de Kelsen ainda representa para certos professores - em número

Wright MILLS. A Imaginação Sociológica, trad. W Dutra.

Page 29: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

cada vez menor, felizmente — uma autoridade suprema e quase divinizada.

A nosso ver, um dos grandes problemas àoformalis-mo é a sua tendência reduáonista. O formalismo cancela de seu objeto (e o termo "objeto" é sempre muito caro aos formalistas) tudo o que não atenda a um determina­do (pré-determinado) molde epistêmico, estabelecendo que conhecer a forma é suficiente para conhecer a coisa. Evidentemente o conhecimento da forma é algo muito importante, pois o homem conhece basicamente formas; mas com elas busca conhecer sentidos, isto é, busca com­preender. Os formalismos não são, entretanto, a única espécie de reducionismo, pois este se encontra inclusive nos positivismos empiristas, cuja tendência tecnicista sem­pre se contrapôs ao humanismo abrangente9.

A alusão à história vale, no presente trabalho, como alusão à história das sociedades, em acepção geral, e tam­bém à história do poder e das estruturas, das crenças e dos valores, dos comportamentos e dos preceitos. A realidade histórica é em si mesma irredutível aos esquema-tismos, sobretudo os demasiado simétricos, mas é sem­pre necessário, para situar as coisas na história, adotar algum esquema. Daí a alusão a fases; daí a idéia de uma "fase teológica" vinculada à de uma secularização.

Retornando assim por um momento ao problema da secularização, temos que para entendê-la é preciso aludir a uma "fase teológica", ou em outros termos a um padrão cultural teológico. Este padrão será entendi­do evidentemente como produto histórico, o que aliás já foi afirmado — embora com equipagem conceituai algo

9 Mencionamos "humanismo" no sentido amplo, mas sempre com referência à matriz moderna situada no humanismo renascentista. Aquele sentido e essa matriz se encontram referidos no livro de GRAFTON e JARDINE. From Humanism to Humanities.

INTRODUÇÃO

tosca — por Thomas Huxley10. Contudo a historicidade do padrão teológico não corresponde apenas à sua tran-sitoriedade, eis que ele é "superado" pelos padrões ra­cionais, mas também à sua permanência, pois que ele persiste, sob formas mais ou menos discretas, dentro do racionalismo que o sucede. Talvez se realize nisto a ima­gem hegeliana da acumulação, que traduz a conservação do que foi eliminado, enriquecendo (complicando) a experiência cultural, permitindo a passagem às sínteses.

*

A referência a épocas e a linhas históricas envolve, dentro de temas como o deste trabalho, uma necessária visão seletiva: em parte se aceita a tradicional tripartição dos tempos (antigüidade, medievo, história moderna), em parte se adota a visão das culturas, remodelada em função de idéias como contextos e durações.

Parece aceitável que no período inicial de cada uma das grandes civilizações — há quem prefira dizer "socie­dades históricas" — ocorreu o predomínio de uma visão religiosa do mundo, que teve como correlato um modo teológico de pensar. Isto terá inclusive acontecido nas sociedades egípcia e babilônica, nas quais a burocrati-zação, enquanto "racionalização", veio com a crise da religiosidade inicial. No caso grego, convencionou-se

T. HUXLEY, Science and hebrew tradition, Essays (Londres: Macmillan, 1895): "From my present point of view, theology is regarded as a natural product of the operations of the human mind, under the conditions of its existence, just as any other branch of science, or the arts of archicheture, or music, or painting are such products. Like them, theology has a history." (p. 288). Junto com Huxley, vale citar seu contemporâneo de Oxford, MÜLLER. La Science de Ia Religion (trad. H. Dietz, Paris: G. Baillière, 1873). Vale igualmente reter que toda religião é uma ordem normativa, constante de recomendações e interdições, prescrições e regras: regras de culto, regras de conduta, regras individuais e coletivas.

Page 30: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

8 NELSON SALDANHA

considerar que após o período religioso sobreveio um padrão racional: Nestle expressou a coisa com a famosa fórmula "Vom Mytbos %um Logos". Na verdade o proces­so se relacionou com vários fatos histórico-sociais. O trânsito à racionalização, ou seja, a secularização, ocor­reu exemplarmente na cultura européia (ou seja, no "Ocidente"), com a queda dos modelos teológicos e com a gestação do iluminismo; depois é que os historiadores caracterizaram como análogo o ocorrido na Grécia. Como dissemos acima, Comte percebeu os caracteres do fenômeno, e Weber referiu-se a ele em termos que tiveram larga influência.

Entretanto a racionalização, que é um lado da secu­larização e que substitui o modo teológico de pensar por uma série de esquemas novos (ligados inclusive a uma realidade histórica nova), não elimina de todo os componentes teológicos anteriormente dominantes. Isto ficou afirmado linhas acima. Assim a metafísica, que se constrói na Grécia após a crise do pensar religioso, con­serva evidentes traços teológicos: no caso o poema de Parmênides, no caso a concepção platônica das idéias e da verdade11. No Ocidente moderno, marcas do pensar teológico continuam perceptíveis em Hobbes e em Locke, e mesmo ainda em Hegel. Secularização, ma non tanto11.

1 ' Sobre os pré-socráticos, entre outros, Olof G I G O N , Los orígenes de Ia filosofia griega, de Hesiodo a Parmênides, trad. M. C. Gútiez; CORNFORD. Prinápium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego, trad. M. Manuela R. Santos; Cf. também os fragmentos coligidos por M. Grünwald: Die Anfãnge der abendlãndischen Philosophie (Munique: Artemis Verlag, 1991). Para o caso da "verdade" platônica, voltare­mos ao assunto adiante. Para o de Parmênides, ver o estudo de COR-DERO, inserido em A A W (org. por J.-F. MATTEI), 1M naissance de Ia Raison en Grice, p. 207 et seq. — Cf. ainda Antônio A. Gorri, Estúdios sobre los presocraticos, passim.

12 Escreveu certa vez Mircea Eliade que o historicismo teria provindo da decomposição do cristianismo. Mas entre o cristianismo — o medieval, quero dizer — e o historicismo medeia o racionalismo "moderno", com

INTRODUÇÃO 5

Vêm depois os positivismos, que radicam no ilumi­nismo (em uma parte do Murninismo), mas que o negam na medida em que se apoiam sobre empirismos e sobre uma massa de conhecimentos que os homens do setecentos não possuíam. Os positivismos (evolucionismo, biologismo, etnologismo) não desmentem o racionalismo, evidentemen­te, mas de algum modo abrem um caminho à teologia, como nas bizarras concepções da fase final de Comte: dir-se-ia que de dentro das retortas e dos livros, no gabinete de Fausto, surgem demônios novos. Os positivismos, contu­do, dentro de sua linha central, são cientificismos, geral­mente comprometidos (como o próprio üuminismo) com programas de ação social: são portanto, sob certo prisma, ideologias. Por outro lado, o seu esforço de afirmação contra os não-positivismos, principalmente contra as concepções "ainda" metafísicas, das quais precisam distinguir-se, leva-os a uma constante e obsessiva preocupação metodológica. Este é um problema central.

As ideologias, voltadas a explicar as coisas em fun­ção de um motivo concreto que pode ser mais genérico ou mais específico, e que se articulam como "condena­ção" e "aprovação" de determinados valores, conservam portanto algo do padrão teológico. Desde logo o exclu-sivismo: cada ideologia considera as demais como ne-fandas e errôneas, estabelecendo sua explicação como única satisfatória, apta inclusive a explicar os erros das outras. Em seguida a tendência escatológica, designada­mente em certos casos: a descrição do processo histórico se transforma na anunciação de eventos em que se cum­pre o destino dos homens e das coisas. Mas conservam

seu derivado o criticismo; e ao lado do historicismo, ou em sua esteira, o metodologismo (vindo dos formalismos críticos e do neopositivismo) aparece como produto tardio que se distingue do historicismo por não se voltar à compreensão do fato de ser tardio Sobre a historicidade da pró­pria razão, e portanto da idéia de "Direito como razão", ver PERELMAN-TYTECA. Traité de lArgumentation, p. 1.

Page 31: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

•Kl ^ _ _ NELSON SAjJWHA

também um tanto do raáonalismo, inclusive em sua pecu­liar pretensão de objetividade, justamente uma preten­são que complementa e avaliza o exclusivismo.

Por sua vez a elaboração de grandes metodologias representa uma conseqüência do raáonalismo, ou antes, do componente de raáonalismo que se guarda na base dos positivismos. Isto se aplica às preocupações episte-mológicas de Comte e de Stuart Mill, bem como às in­tensivas reflexões dos neokantistas — ressalvado que a estes não se aplica propriamente o rótulo de positivistas. Este rótulo vem sempre de um mal-entendido de certos historiadores. Há entretanto, na permanência das for­mulações metodológicas — e sobretudo nos "debates metodológicos" —, um certo retorno à teologia: um questio­nar por questionar, um refletir sobre como fazer mais que sobre o que fazer, um pairar em logomaquias, em problemas esotéricos e em truísmos.

Temos assim que os reflexos da secularização da cul­tura sobre o pensamento jurídico, principalmente o mo­derno, levam a teoria do Direito (inclusive e malgrê tout a filosofia jurídica), desprendida já da antiga teologia, a en­trar em um corte formalista e a se transformar numa vasta e automotivada, autopropulsionada metodologia. Entretanto o pensamento jurídico parece conservar traços teológicos que ressurgem neste metodologismo, e aí está um processo que importa registrar. Passa-se aos poucos, no meio das crises e das complicações do pensar saturado, da fé no método ao método como fé.

A alusão a traços teológicos nas ideologias não tem que causar estranheza, até por ser próprio do prose­litismo ideológico o cultivo de uma mística interna. Nos séculos XIX e XX a proliferação dos ismos tem demons­trado esta mística13. Nos positivismos, porém, a ocor-

Cf. nosso estudo "Do maniqueísmo à tipologia", ora em Humanismo e História, cit., p. 57 et seq.

INTRODUÇÃO H

rência de traços teológicos se apresenta como contradi­ção; no caso dos positivismos do século XX, que são formalismos e metodologismos, esta contradição pare­ce mais aguda. Parece-o, na medida em que seu perfil doutrinário se caracteriza pelo repúdio à metafísica, e portanto, implicitamente e afortiori, a todo pensamento não "científico".

Entretanto cabe observar isto: uma coisa é a consciên­cia metodológica, que sempre deve ocorrer e que dá às diversas ciências fisionomias diversificadas. Outra coisa o que chamamos metodologismo, a mania ou pelo menos a preocupação excessiva que chega a fazer do método, ou dos problemas metodológicos, um fim em si, em vez de apenas meio. E não precisamos chegar ao ponto aonde chegou Eliot, que dizia que o único método consiste em ser inteligente. Podemos inclusive esperar que o exagera­do apego ao método como tema tenha sido somente um ponto de passagem, um fruto do entusiasmo formalista e do cientificismo excessivo.

4. VISÃO HISTÓRICA D A TEORIA JURÍDICA

Falamos, há pouco, na necessidade de conhecer as coisas na história, donde a importância de montar es­quemas (ainda que sejam flexíveis e mínimos) para or­ganizar a visão histórica das coisas. Obviamente o que mencionamos aqui é o interesse filosófico dessa visão — por incrível que pareça ainda há quem o ignore —, inclusive para a Filosofia do Direito: referir-se a pro­blemas históricos é aludir aos problemas mais reais do pensamento jurídico. E quando os problemas históri­cos são vistos como histórico-culturais, os esquemas correspondentes devem atender às chamadas conexões-de-sentido: nelas se acham (e isto constitui, como em Weber e em outros, o método da compreensão) os signi-

Page 32: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

18 NELSON SALDANHA

diar no idealismo de Platão a própria teoria clássica da verdade. Esta teoria, bem como o platonismo, teriam algo de teológico. E então poderia existir na "gramato-dologia" uma réplica pós-moderna da teologia, com o simultâneo desejo de destruí-la, "desconstruindo" as estruturas do dizer e do pensar. Wer verfolgt, folgt.

As coisas na história vão e voltam, passam e retor­nam, embora sempre diferentes.

2 CAPÍTULO

O LOGOS ORDENADOR

— • SUMÁRIO •

1. Teologia, cosmologia e alusão ao logos. 2. O logos antigo e o pensamento cristão. 3. Alusão ao problema do méto­do. 4. Permanência do componente teológico. 5. Mais so­bre a permanência do teológico.

1. TEOLOGIA, COSMOLOGIA E ALUSÃO AO LOGOS

Não se pode fazer afirmações muito seguras sobre épocas distantes, mesmo tratando-se de imagens prove­nientes do "mundo clássico". Há sempre uma margem onde incidem as dúvidas e onde o que se diz é conjectural, ainda que a erudição filológica e a devoção dos arqueó­logos tenham levantado e confirmado muitas coisas. En­tretanto, dentro de esquemas globais e em confronto com realidades "modernas", as imagens antigas são sempre passíveis de interpretação (e de reinterpretação), por conta da própria necessidade de "entender" a história.

Assim se tem a possibilidade de dizer que a vida "anti­ga" era mais simples, a tecnologia era então menos compli­cada, e que a relação entre a ação humana e as pautas éticas parece ter sido mais simétrica. A presença de uma dimensão teológica nessas pautas deve ter sido uma ca­racterística essencial: algo que se imagina como próprio das culturas "orientais" (Egito, Mesopotâmia, Pérsia) e que vinha das origens. No caso grego, posto que aqui men­cionamos o "mundo clássico", tais origens correspon-

Page 33: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

I.'. NELSON SALDANHA

14 Permitimo-nos remeter ao nosso "Historicismo e Culturalismo", e também a "A obra de Dilfhey e o Mundo Histórico", incluídos em Historicismo e Culturalismo.

15 Sobre ius, com seus correlates lingüísticos inclusive védicos e iranianos, ver Georges DUMEZIL. Idées Romaines, p. 31 etseq. Ao enfoque lingüístico valerá completar com o antropológico, conforme o sugestivo estudo de O. BEHRENDS. "Anthropologie juridique de Ia jurisprudence classique romaine", Reme historique de Droit français et étranger.

INTRODUÇÃO 13

guir permanecerá como peculiar ao pensamento jurídico, e é desnecessário apontar para as analogias daquele defi­nir e daquele distinguir, em relação ao pensamento teoló­gico posterior. Não seria extrapolante indagar, aliás, se a moderna preocupação com métodos, dentro do saber jurídico, teria algo a ver com estas antigas e ilustres raízes, desde muito cedo misturadas ao pensar teológico: um atavismo.

Na verdade o que se chama "pensamento jurídico"16

consiste em uma longa elaboração-reelaboração de te­mas, que se formam em torno de alguns conceitos es­senciais (essenciais segundo cada época), conceitos que incluem alusão a problemas e a "sistemas". A alusão a sistemas é, às vezes, implícita, sendo a nosso ver um fal­so dilema a opção entre sistema e problema.

Esta visão do pensamento jurídico como produto histórico não exclui certamente a indagação epistemo-lógica: não exclui a aplicação, à "ciência jurídica", da tipologia neokantiana que classifica as ciências em posi­tivas (ou naturais) e culturais (ou do espírito, ou huma­nas, ou sociais). Mesmo por que esta tipologia, e com ela a teoria do conhecimento dos neokantianos, surgi­ram em uma dada época, na qual por sua vez a ciência jurídica — vindo das mãos da Escola Histórica e da Pan-dectística — aparecia como uma construção conceituai bastante definida.

Por sinal que os adeptos do positivismo formalístico não definem a ciência jurídica como ciência positiva no sentido dos neokantianos (isto é, como ciência distinta das ciências culturais), embora pretendendo fazer dela um conhecimento positivo e, se possível, matemático; mas também não a definem como ciência social. O pró­prio Kelsen, em ensaio famoso, onde discutiu a possibi-

16 Cf. BRUSIIN. Elpensamiento jurídico, trad. J. P. Brutau.

Page 34: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

II NELSON SALDANHA

lidade de encaixar a ciência jurídica no sistema de Rickert, tende a recusar o rótulo de ciência cultural, que inclusive envolve a idéia de valor. Neste ensaio, onde tentava refu­tar as idéias de Emil Lask, Kelsen adotava sem mais e de saída a noção de direito-como-norma, afirmando como um axioma a separação absoluta entre ser e dever ser. A ciência jurídica caberia então o título de ciência normativa17. Com este título, na verdade questionável (uma ciência não pode ser "normativa"), o criador da "teoria pura" consolidava a ambigüidade própria do formalismo, ao escapar à sistemática epistemológica neokantiana e ao ancorar sua positividade sobre um objeto abstrato, o "dever-ser". A posição normativista, sendo e ao mesmo tempo não sendo "filosofia do Di­reito", terminou crescendo como uma proposta meto­dológica ampliada em "teoria" autônoma. Somente a larga presença de preocupações metodológicas no pensa­mento jurídico contemporâneo (sobretudo desde Gerber e Laband) poderia na verdade explicar que tão larga parte do pensamento filosófico ocidental se ocupas­se com os temas da chamada "teoria pura", com o fim de assimilá-la ou de refutá-la.

5. PARA UMA CONCEPÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA

DOS MÉTODOS

Sempre acontece, com a elaboração de um trabalho como este, que as anotações em que se baseia não abran­gem todas as questões, de modo que certos aspectos fi­cam insuficientemente desenvolvidos. A coordenação das

17 KELSEN, "La giurisprudenza come scienza normativa o culturale. Studio di crítica metodológica", em A A W , org. por A. Carrino, Metodologia delia sàen^a giuridica (trad. A. Carrino e G. Stella. p. 103 et seq. O tom de Kelsen, tal como na maioria de suas obras, não é bem o da análise "crítica", assumindo em certas passagens o m o d o dogmático e autoritário do teólogo.

INTRODUÇÃO :iü

partes e a redação dos textos termina por cancelar idéias que estiveram presentes nos primeiros passos, algumas in­clusive sugeridas por leituras específicas. Parece-nos contu­do aceitável este tipo de trabalho, em que certos pontos se perdem, como seixos que rolam à subida de uma encosta, ou se sepultam no meio das notas preparatórias.

Aqui retomamos algumas tentativas de reflexão histó­rico-crítica, expressas em outros livros, onde a visão crítica não se confunde com certos modismos, como os consis­tentes em falar no Direito como "discurso do poder" e outras coisas: este tipo de crítica, mais ataque do que críti­ca, se toma por vezes mais ideológica do que a ideologia que visa a denunciar. A função do enfoque histórico consis­te precisamente em permitir que se compreendam em sua plenitude os dados da experiência, evitando os reducionis-mos e os unilateralismos. Por isso mesmo não nos preocu­pamos em "defender" a ciência jurídica de certas denúncias (uma das mais célebres, a de Kirschmann, já foi por várias vezes refutada), nem em "negar" isto ou aquilo: o propósito negativista, sempre presente nos appwaches diversionistas e naqueles que nascem do ressentimento, cai geralmente em reducionismos e em unilateralismos, equivalentes aos dos enfoques a-bistóricos.

*

Os métodos em princípio refletem concepções do mundo. Dilthey colocou o assunto em seu sempre recor-rível livro sobre a teoria das concepções do mundo. E em vários momentos da história das idéias se encontram op­ções metodológicas a refletirem posições ideológicas ou de qualquer sorte tendências doutrinárias fundamentais.

Em dados períodos, por outro lado, se encontra o fenô­meno da passagem do método ao sistema, ou à doutrina, no sentido teorético da palavra. Terá sido, de certo mo­do, o caso da passagem do socratismo, que não era bem

Page 35: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

uma "teoria", ao sistema platônico e ao aristotélico; terá sido um pouco o caso de Descartes, e de certa maneira o de Husserl18. A passagem do método ao sistema tam­bém se encontra sob certo aspecto na primeira fase do pensamento de Kelsen, dentro das discussões contidas nos Hauptprobkme e nos ensaios escritos até 1934.

Tal passagem significa de certo modo uma conversão do instrumento em obra: o que inicialmente se afina e se articula como meio, desdobra-se como estrutura que se pre­tende completa, reabsorvendo o próprio "momento" metodológico. E ao considerarmos que os positivismos contemporâneos carregam, em seu excessivo afã metodo­lógico, um traço teológico, teremos pela frente algumas indagações. Haverá neste metodologismo um sistema pres­suposto, ou o conceito de sistema se acha, nos formalismos lógicos, dependente de seus resultados metodológicos? Estaria o teológico na própria permanência do método, ampliado em metodologismo e em escolástica?

O que ocorre com os positivismos é que fazem con­fusão entre filosofia e ciência. Platão, como se sabe, exigia para o filósofo formação matemática e pretendia para a filosofia um rigor específico19, superior à doxa e enten-

18 Sendo que em Descartes a preocupação com o método teria convivi­do, segundo ORTEGA y GASSET, com a desestima da lógica: cf. La idea de principio en Eeibni^j Ia evolucción de Ia teoria deductiva, p. 281. — Para aspectos gerais, CONILL, El crepúsculo de Ia metafísica (Barcelona: ed. Anthropos, 1988), passim. No cap. 2, p. 46, esta observação: que o movimento filosófico "analítico" não se caracteriza por doutrinas, e sim por propostas em termos de método. — Para a relação entre método e sistema na teoria jurídica contemporânea (alemã sobretudo), CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direi­to, trad. A.M. Cordeiro, p. 66 et seq.

19 Ver BRUNSCHVICG. Les ages de 1'inteligence, PUF, 4. ed., Paris: 1953, p. 57 et seq. Ver também CASSIRER, El problema dei conocimiento, v. I (trad. W Roces, México: FCE, 1953), Introd., p. 45. FEYERABEND colocou o problema da formação histórico-filosófica do racionalismo em termos de opção pela unidade e pelo "pouco", contra o "muito"

INTRODUÇÃO ..

dido como epistème, mas seu pensamento, enquanto filo­sofia, não se confundiu jamais com aquelas exigências. Os positivismos modernos tendem a confundir as duas coisas, do que resulta uma redução do filosofar aos mode­los científicos: vale dizer, científico-positivos. Ao propor uma crítica dos positivismos - sobretudo de sua versão neopositivista e lógico-formal —, o que se visa é basica­mente o resgate do pensamento filosófico, tal como apare­ce nos momentos mais válidos da história da cultura.

Vale observar que o pensamento contemporâneo, vez por outra, apresenta momentos em que a tradição racio-nalista é contraditada: assim foi com Viço, de certo modo, e assim também com os trabalhos de Feierabend; igualmente, com os de Perelman. Por outro lado, a defesa do racionalismo ocidental, empreendida por Husserl, no livro tardio sobre a crise das ciências, é uma revisão do próprio metodologismo latente na fenomenologia, e foi justamente a tardia adoção da perspectiva histórica que permitiu a Husserl fazer tal revisão20.

Talvez se possa, entretanto, vislumbrar outros mo­dos de repontar do pensamento teológico dentro das filosofias de nosso século. Na filosofia pós-heideggeriana, isto é, nas últimas décadas, inclusive no "pós-modernis-mo" declarado ou implícito de certos autores (citaría­mos Deleuze, Derrida, Vattimo), ocorre um desneces­sário acúmulo de paradoxos e de sutilezas que às vezes encobre a nostalgia do ontos da metafísica. Deleuze, por exemplo, em sua teoria geral da gramática ("grama-tologia") se refere às estruturas do pensar que cercam o sujeito, problema pressentido por Nietzsche ao repu-

e as variedades que seduzem o vulgo: isto já no tempo e na obra de Parmênides [Adeus à Ra-^ão, trad. Maria G. Segurado, p. 140 et seq.). A coisa me parece questionável. HUSSERL, The Crisis of European Sciences and transcendental phenomenology, trad. D. Carr.

Page 36: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

18 NELSON SALDANHA

diar no idealismo de Platão a própria teoria clássica da verdade. Esta teoria, bem como o platonismo, teriam algo de teológico. E então poderia existir na "gramato-dologia" uma réplica pós-moderna da teologia, com o simultâneo desejo de destruí-la, "desconstruindo" as estruturas do dizer e do pensar. Wer verfolgt, folgt.

As coisas na história vão e voltam, passam e retor­nam, embora sempre diferentes.

2 CAPÍTULO

O LOGOS ORDENADOR

• SUMÁRIO •

1. Teologia, cosmologia e alusão ao logos. 2. O logos antigo e o pensamento cristão. 3. Alusão ao problema do méto­do. 4. Permanência do componente teológico. 5. Mais so­bre a permanência do teológico.

1. TEOLOGIA, COSMOLOGIA E ALUSÃO AO LOGOS

Não se pode fazer afirmações muito seguras sobre épocas distantes, mesmo tratando-se de imagens prove­nientes do "mundo clássico". Há sempre uma margem onde incidem as dúvidas e onde o que se diz é conjectural, ainda que a erudição filológica e a devoção dos arqueó­logos tenham levantado e confirmado muitas coisas. En­tretanto, dentro de esquemas globais e em confronto com realidades "modernas", as imagens antigas são sempre passíveis de interpretação (e de reinterpretação), por conta da própria necessidade de "entender" a história.

Assim se tem a possibilidade de dizer que a vida "anti­ga" era mais simples, a tecnologia era então menos compli­cada, e que a relação entre a ação humana e as pautas éticas parece ter sido mais simétrica. A presença de uma dimensão teológica nessas pautas deve ter sido uma ca­racterística essencial: algo que se imagina como próprio das culturas "orientais" (Egito, Mesopotâmia, Pérsia) e que vinha das origens. No caso grego, posto que aqui men­cionamos o "mundo clássico", tais origens correspon-

Page 37: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

dem ao período creto-micênico, desdobrado na proto-história helênica representada pelo contexto homérico1. A dimensão teológica, no pensamento grego, permeou obviamente as primeiras manifestações filosóficas e se expressou de modo peculiar em Platão, com seu con­ceito absoluto de verdade e sua referência a um mundo de formas superiores, incorruptíveis e imperecíveis.

Esta vinculação a algo superior, tido como verdade, é que constituiria a marca do pensar teológico2. Neste sen­tido todo o pensamento "dogmático" (no sentido de Kant) teria ainda um traço teológico, e isto se aplica às grandes filosofias ontológicas da antigüidade e do medievo, além dos sistemas produzidos pelo raciona-lismo moderno. Não por acaso Nietzsehe dissera que "mundo verdadeiro" (ou por outra, verdade universal) é o outro nome de Deus; e todos recordam a passagem de Ortega que alude ao conceito de ser como algo em que se converteu o antigo e terrível Deus hebraico: um tanto como a domesticação do tigre da Hircânia ou do Leão da Líbia3. Destarte a teoria do ser, na filosofia gre­ga, teria sido uma das condições do advento da teoria de Deus no sentido cristão. Compreende-se então que, em lugar do aristotelismo (São Boaventura falava nas "trevas do aristotelismo"), os primeiros organizadores do pensamento cristão tenham-se prendido a Platão -evidentemente sem deslindar as dificuldades da teoria do ente dentro da doutrina das idéias4.

1 FINLEY, O Mundo de Ulisses, ttad. A. Cerqueira. 2 "La ventas costituisce il núcleo dei teológico, il punto dove si sviluppa

pienamente Ia Sinnfrage dei molteplici ordinamenti delia vita" -CASTRUCCI. La forma e Ia decisione, studi critici ("II problema delia teologia política"), p. 104.

3 A imagem é de ORTEGA. ~La idea de princípio en Leibni%, p. 241 e 314. Comparar com RAHNER. Escritos de Teologia (Schriften %ur Theologie), p. 93 et seq.: "Theos en ei Nuevo Testamento".

4 Para as alusões de São Boaventura a Aristóteles, VIDAL (org.), Textos de los Grandes Filósofos. Edad Media, p. 84 et seq.

21

Emmanuele Castrucci se vale do termo ontoteologia para designar esta especial junção do ontológico com o icológico no pensamento clássico, ligado a uma predo­minância da forma (que no caso "precedia à decisão") e a um mundo onde ao homem ainda era dado chegar a uma síntese satisfatória5.

*

O legado clássico trouxe consigo a imagem de uma bri­lhante mitologia, que se liga a uma cosmogonia, ou que a inclui. O mesmo ocorreu com o legado do Oriente - Egi­to, índia, etc. - , mas no caso greco-romano as figuras ad­quiriram para nós especial exemplaridade. Assim as imagens iniciais do justo e do bem, como outras imagens fundamen­tais, se encontram, no pensamento grego, presas a alusões a divindades: Temis e Dikè aparecem como entidades sim-bolizadoras daquilo que se impõe e daquilo que convém6. Assim se tem, nos chamados "pré-socráticos", um ingre­diente teológico dentro das cogitações mais genéricas7.

Sobre as dificuldades da teoria platônica das formas ideais, o genial e erudito diletantismo de BORGES. Historia de Ia Eternidad, p. 20 e 21 . CASTRUCCI, op. cit, p. 3. O termo, como se sabe, remonta à termi­nologia heideggeriana. Conduzindo sua esplêndida reflexão sobre Platão, Mattei escreveu, a propósito do neutro: "Le neutre apparait comme ce mouvement an-archique du refus de 1'origine qui annule rinitialité onto-theodogique (...) et efface (...) ses propres traces" ÇL'ordre du monde. Platon, Nietzsehe, Heidegger, p. 119.

Sobre Themis e Dikè, ver, entre outros, GUÉRIN. L'Idée de Justice dans Ia Conception de IXJnivers ches les premiers philosophes Grecs, de Th ales à Héraclite, p. 15 et seq. Ver também LENOBLE. História da Idéia de Natureza, p. 54 et seq. E ainda OLIVIERI. "La noción de justicia en los orígenes dei pensamiento griego", em Anuario de Filosofia Jurídica y Social. Cf. ROUSSEL. "Rationalité et vocabulaire mystique. A propôs de certains termes ayant une origine ou une connotation religieuse en usage chez les pressocraüques", em A A W org. por MATTEL La Naissance de Ia liaison en Grèce, op. cit, p. 153 et seq. Complementarmente, o estudo de Hans G. Gadamer sobre a religiosidade de Sócrates, que é o cap. I de seu livro L 'anima alie soglie dei pensiero nella filosofia greca.

Page 38: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2 2 NELSON SALDANHA

Ocorre deste modo uma cosmoteologia, que é sem­pre uma gênese mas é também uma ordenação, é algo que envolve um logos ordenador, que dá sentido à gênese e que se impõe sobre o mundo dos mortais, desdobrado em lei inexorável e entretanto justa. Isto reaparecerá, no fim da Grécia clássica, com os estóicos, que ofereceram aos romanos a base e o modelo para um pensamento jurídico fundado sobre uma cosmoteologia8.

O "logos ordenador", entendido como ordem cós­mica, esteve portanto presente nas grandes culturas an­tigas, e no caso grego assumiu um caráter especialmente expressivo. Antônio de Gennaro emprega o termo "pa­radigma cosmológico" para designar a presença, no pensamento grego, de uma ra^ão baseada sobre a estru­tura do mundo. Mircea Eliade, por sua vez, registrou a importância dos arquétipos nas sociedades antigas, em cuja mentalidade aparecem como imagens ideais9.

O conceito de logos, especificamente grego, passou à his­tória da cultura como uma imagem essencial, a um tempo forma e fundamento das coisas, configuração do pensa­mento e também da realidade10. A idéia de um logos ordenador, como um dado central do pensar, definido na Grécia, encontrou lugar na teologia cristã e no racionalismo

Sobre os estóicos, ZELLER. Outlines of the history of Greek Philosophy (trad. L. Palmer), terceiro período. Ainda MANCINI. Uetica stoica da Zenone a Crisipo.

GENNARO. íntrodu^ione alia Storia deipensiero giuridico. A página. 69, nota 8, há uma citação de VERNANT, que "pone in stretta connessione 1'awento di una astronomia sferica o geométrica - ai posto di quella aritmética dei babilonesi — nel pensiero cosmológico greco, con Ia nascita delia polis e con Ia struttura anche spaziale, incentrata cioè sulla piazza o agora, di quest ultima". Nossa alusão a ELIADE remete ao seu livro Ee mythe de lEtemel Retour (Idées, Gallimard, NRF). Sobre o termo logos, ver ROUSSEL, artigo citado, em La Naissance de Ia Raison en Grèce, p. 153 et seq. Ver também PETERS. Termos filosóficos gregos. Um léxico histórico, p. 135 et seq.

O LOGOS ORDENADOR

moderno; em Kant ela ressurgiria modificada, passada para dentro do sujeito, através da noção de "razão legislante"11.

Certos autores, inclusive Marrou, pretendem que a cultura grega teria legado dois modelos básicos para o ideal da educação: o de Platão e o de Isócrates, um ba­seado na filosofia (com rigoroso prendimento à verda­de) e outro na retórica, com um humanismo flexível12. O tratamento retórico dado ao problema da verdade não seria evidentemente o mesmo que o ontológico. Entretanto a permanência do legado clássico consagrou em larga medida o predomínio do modelo platônico, so­bretudo dentro do modo ontológico e teológico de pensar, desde o final do período helenístico13. Tanto mais que o sistema platônico constitui uma severa visão da ordem das coisas, com uma montagem que se desdobra e que alcança os diversos planos do real e do humano — o mundo, a cidade, a alma14 —, atendendo assim às neces­sidades de organização da teologia cristã inicial.

1 ' CONILL se refere à presença, desde os gregos, de um sentido normativo (além de "canônico" e "exemplar") no conceito de ser, expressado inclusive pela "reduplicação lingüística" ocorrente na alusão às idéias: ontos on {El crepúsculo de Ia metafísica, op. cit, p. 19). Sobre Kant consi­dero relevante citar este texto do notável livro MOYA. De Ia áudady de su ra^ón, p. 214: " E n ei íntimo de Ia fórmula kantiana - en ei impera­tivo categórico como posibilidad para una comunidad universal regida por Ia razón pura de sus miembros — se esconde, como significación latente, Ia mediación racional entre Ia vieja escatologia de Ia Ciudad Celestial como Reino de Dios sobre Ia Tierra, y Ia nueva utopia de Ia disolución dei Estado, desde Ia cual anarquismo y socialismo van a intentar llevar a sus ultimas consecuencias ese "Estado fundado so­bre Ia Razón" cuya carta constitucional es Ia Declaración de los Derechos de 1789". Cf. ainda GRONDIN. "La renaissance de Ia Raison Grecque Chez Kant", em Naissance de Ia Raison, op. cit., p. 11 et seq.

' MARROU. História da Educação na Antigüidade. Sobre o assunto cf. também FINLEY. Uso y abuso de Ia historia.

1 Cf. TAYLOR. El platonismo y su influenüa, trad. L. Farré. Cf. também o cap. III do fundamental livro III da Paideia de JAEGER.

1 ' Ver o livro um tanto inconvencional de CHANTEUR. Platon, le désir et Ia cite.

Page 39: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2 4 NELSON SALDANHA

O que se chama "paradigma teológico" inclui um problema de conceituação e de ontologia, aparecendo os valores e as referências (inclusive as da sociedade, isto é, o Direito e a Justiça) como reflexo ou emanação do ser divino; e um problema de linguagem, este direta­mente transmissível através de diferentes instâncias pe­dagógicas, pela terminologia e pela retórica.

Da visão positivista, que com suas enfáticas certezas fala­va do estágio "teologista" da humanidade, passou-se no começo do século XX à antropologia e ao relativismo, este complementado e perturbado, mais recentemente, por estu­dos sobre a relação entre origens, sacralidade e violência15.

2 . O LOGOS A N T I G O E O P E N S A M E N T O CRISTÃO

O logos, presente na ontologia grega e na respectiva teologia, bem como nas teologias pós-helênicas, apare­ce como elemento essencial dentro da idéia de uma orde­nação das coisas. Destarte ele surge na idéia de justiça — no fundo a justiça em sentido ontoteológico seria a própria ordem — e na de Direito, o Direito como ordem tam­bém. Os gregos não tiveram um termo para designar o que chamamos "Direito" (isto só viria com o ius roma­no), mas falaram de leis, de ordem política e de processo. Deste modo designaram as leis eternas, inclusive pela voz trágica de Antígona, que a seu modo prefigurou a idéia do "Direito Natural" tal como ocorreria nos estóicos e na Idade Média, bem como no racionalismo ocidental

15 Em 1875 P. Lafitte iniciava a publicação de sua vasta obra Les grands Tjpes de 1'Humanitê, com base em cursos apanhados por P. Dubuisson. O primeiro volume versava sobre as Théocraties; o segundo, editado em 1876, tratava da Evolution ocádentak. O tema da história antiga aparece mais "historiograficamente" em E. Littré em alguns dos estudos incluí­dos em La Science au point de vue phihsophique. Com a menção a estudos sobre origens e violência, estamos destacando os livros de GIRARD. D es choses cachées depuis Ia fondation du monde, e La vioknce et le sacré.

O ÍOGOÍORDENADOR 25

moderno. A passagem a este último representou, confor­me examinaremos adiante, uma peculiar passagem do contexto teológico para suportes metafísicos.

A alusão de Antígona às leis não-escritas, que aliás tem recebido diferentes interpretações, aparece em um cli­ma religioso, próprio aliás da tragédia ática como gêne­ro e como forma de arte. Aristóteles falou em "terror e piedade" como objetivos do poeta trágico16; de qual­quer sorte o fundamento religioso da tragédia — sempre dionisíaca, segundo certos autores17 — se vinculava a um largo sentido cósmico de justiça, no qual se integrava a própria violência da ação. Tudo isto pressupunha uma teologia, com seus dualismos, seu maniqueísmo latente e seu sistema de metáforas.

Será válido pensar que, historicamente, o padrão teo­lógico existente na base do teatro trágico foi o mesmo que, em proporção distinta, se encontra nos pré-socráticos: na cosmologia dos elementos, no simbolismo pitagórico, nas alusões de Anaxágoras à infinitude do espírito18.

Vernant menciona, ao estudar as origens do pensa­mento grego, o fato de que com a dessacralização cultu­ral, ocorrida desde os séculos VIII e VII antes de Cristo, vários objetos relativos à tradição sagrada saem do palá­cio, recinto fechado, para o templo, espaço aberto, passando o culto público a predominar sobre as confrarias secretas19.

. _ * _

16 O u "compaixão e t emor" , como out ros t raduzem (cf. (ARIS­TÓTELES. LM poética, p. 21).

17 Dionisíaca e popular, conforme ADRADOS. Ilustración j política en Ia Grécia clásica, p. 162. Enquanto isto anote-se a ressalva de H. D. KITTO, para o qual Esquilo teria sido um poeta religioso, mas não um teólogo LA Tragédia Grega — estudo literário, p. 22).

IB "Todo Io demás tiene una parte de cada cosa, pero ei espiritu es infinito y autócrata y no está mesclado con nada, sino que está solo él mismo por si mismo" - Anaxágoras, Fragmentos, p. 62.

1'' VERNANT. As origens do pensamento grego, p. 38 e 39.

Page 40: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2Jt________ NELSON SALDANHA

O advento do cristianismo, que após a inicial vivência mística se organizou institucionalmente como Igreja, trouxe a gradativa estruturação de uma teologia siste­mática, na qual o fundamento platônico cedeu vez, de­pois de algum tempo, aos esquemas aristotélicos. Nem sempre recordamos bem, hoje, quão intensas e prolon­gadas foram as polêmicas travadas nos primeiros sécu­los da era cristã, envolvendo o conceito de Deus e seus atributos, a noção de pecado, a de culpa e tantas outras.

Com o surgimento da "escolástica" e com o método das Sumas, o pensamento da Igreja dominou a cultura medieval, incluindo em seus escaninhos todos os temas que a cultura clássica havia legado e mais os que o tem­po impunha, inclusive problemas éticos e políticos. Ao se formarem as primeiras Universidades, a teologia e a Ciência Jurídica foram os grandes domínios do saber sistematizado: o método escolástico serviu de base para o estudo e a exposição dos problemas jurídicos. Um mé­todo com substrato teológico, ligado a uma cosmovisão estática e a uma imagem hierática das coisas, além da referência formal a determinados textos. Mesmo com o surgimento do nominalismo - a partir de Occam, no sé­culo XTV - , as estruturas expositivas seguem sendo basi­camente as mesmas. Os gêneros cultivados incluíam os compêndios ou abreviações, as "concordâncias" destina­das a resolver contradições aparentes, os comentários, os opúsculos, as questões disputadas e os Quodlibetct®.

* _

Cf. GRABMANN. Historia de Ia Teologia Católica, desde los fines de Ia patrística hasta nuestros dias, p. 115 et seq. Sobre o substrato cultural, o artigo de Michel Villey. "Bible et philosophie gréco-romaine de S. Thomas au droit moderne", em Archives de Philosophie du Droif n. 18, p. 27 .et seq., e também - mas este um tanto envelhecido - o de COMIN. "Influence du Christianisme sur Ia civilisation et sur le droit", p. 141 et seq. Cf. ainda o breve estudo de M O R E N O . "Lógica Medieval", em

O ÍOGOSORDENADOR 27

Quando falamos no mundo clássico (bem como em imagens conservadas das civilizações pré-helênicas e não-helênicas), aludimos a representações trazidas pela lite­ratura e pela arqueologia. Assim temos algumas idéias centrais e seus correlates. Se em nossa exposição as idéias que se tomam como centrais são a ética clássica e sua relação com as instituições — as religiosas inclusive —, seus correlates abrangem a cosmovisão grega (ou greco-romana), o "espírito" que alguns vêem na própria cultura, atribuindo-lhe dois ou três caracteres essenciais, e ainda, obviamente, o que se chamaria com mais concretude histórica o ethos antigo.

Ao que se depreende da exposição de certos auto­res, a fase inicial da cultura grega correspondeu a pa­drões dominados pela sacralidade. A passagem à secu-larização terá sido uma passagem da palavra sagrada à palavra leiga: de uma verdade teológica a uma verdade racional. Esta passagem implicou um trânsito "do pré-direito ao direito", segundo Detienne21. O Direito — cujas origens alguns procuram hoje dentro da inicial difusão da escrita22 — atingiu o modelo legal dentro do qual se desenvolveram alguns códigos históricos23, sem detri­mento da continuidade da experiência costumeira. Os antigos componentes do pensamento jurídico arcaico, um tanto alegóricos, cedem vez a questionamentos polí-

Sapientia. Para um estudo "de caso" sobre a metodologia jurídica medieval, especificamente a do século XII, A. GIULIANO. "Abelardo e il diritto. Alie origini delia interpretazione mecanicistica delia legge". Aliás Victor Cousin escreveu um extenso estudo sobre Abelardo: cf. Fragments Philosophiques. Philosophie Scholastique, p. 280 et seq.

•'•' D E T I E N N E . Les Maítres de verité dans Ia Grèce archaique, p. 100 et seq. ("Les serments qui tranchaient par Ia force religieuse cèdent Ia place à Ia discussion qui permet à Ia raison de donner ses raisons", p. 101).

'• GOODY. The domestication ofi the savage Mind, Cambridge Univ. Press, reimpressão 1988, passim. A lógica da escrita e a organização da sociedade.

•u Sobre a polis, o saber dessacralizado e a escrita, VERNANT. As origens, p. 36. Cf. também D E T I E N N E , loc. cit.

Page 41: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2 8 NELSON SALDANHA

ticos relacionados com a democracia, e a modos de pen­sar e de falar relacionados com a sofistica, dentro de formas mais urbanas de vida24.

Aquilo que Castrucci, conforme vimos acima, de­nominou ontoteologia, vai-se fragmentando e diluindo diante das transformações institucionais e do crescente número de reflexões críticas que se delineiam a respeito do mundo e da polis. O amplo sistema platônico, que elaborou um modelo ainda ontológico e de certo modo teológico, se atravessa um tanto anacronicamente em meio ao processo crítico oriundo da sofistica25, mas após Aristóteles recomeça a crise do pensar ontoteológico, com as escolas "menores" e com a ruptura das relações entre polis e sofia.

3. ALUSÃO AO PROBLEMA D O M É T O D O

O questionamento trazido pelos sofistas, cujo modo de tematizar foi a um tempo compartido e combatido por Sócrates, levaria (sobretudo em Aristóteles) à preo­cupação com a técnica de pensar. Ou seja, ao problema do método. Tal problema não teria ocorrido aos redato­res do Zend-Avesta nem aos da Bíblia; não ocorreu aos pré-socráticos (salvo talvez e como que implicitamente a Heráclito e Parmênides). Aristóteles, assumindo a defe-

24 Sobre os sofistas, SAITTA. Uilluminismo delia sofistica greca. Mais perto de nosso tema o artigo de ROSSETTI . "La filosofia penale di Tppodamo e Ia cultura giuridica dei sofisti". Ver ainda KERFERD. The sophistk movement. Um exemplo romano da passagem do teológico ao metafísico, com influência sobre o pensamento jurídico, estaria no trân­sito da concepção cosmológica (estóica) à antropológica, ao tempo da Terceira Academia, com Carnéades, cuja teoria do homem teria servido de base ao Direito Romano clássico: é a interpretação de BEHRENDS em seu artigo na 'Reme historique de D. firançais et etranger, op. át.

25 Sobre as relações entre os mitos e a razão no pensamento grego, FEYERABEND. Adeus à Ra^ão (op. át), p. 111 et seq. Sobre o apare­cimento do racionalismo, p. 140 et seq.

O Z.OGOÍORDENADOR

sa da "tradição socrática", teorizou sobre os "sofismas" e enquadrou os sofistas como subversores do pensar. Exa­gerada e comprometida, a crítica aristotélica manteve entretanto por séculos a imagem negativa do movimen­to sofistico. De qualquer modo a questão do método estava colocada, e durante os séculos do medievo os escritores cristãos tiveram de assumi-la. Assumiram-na sobretudo quando, com a Escolástica, o legado aristoté-lico teve de ser reformulado e compaginado com os dogmas do Evangelho.

Destarte não surpreende que um dos passos decisi­vos da filosofia moderna, em seus inícios, tenha sido a exemplar reflexão de Descartes sobre o método — que de resto vinha na esteira da "dialética" de Nicolau de Cusa e de Mestre Eckhart26. Não seria demais comparar o papel de Descartes, fundando o racionalismo moderno (e com ele um idealismo subjetivista, diferente do idea­lismo antigo), com o papel de Sócrates, que iniciou e encarnou um padrão racional; mas a relação que Des­cartes terá guardado com o Cusano e com Eckhart, ou com Giordano Bruno, ao menos implicitamente, corres­pondeu à ligação de Sócrates com seus contemporâneos "sofistas", explicitada de um modo em Platão e de ou­tro modo em Aristófanes.

O que se chamaria de ética moderna não tem, entre­tanto, a figura definida que tem o que chamamos de éti­ca antiga. O processo de sua formação está obviamente mais próximo de nós no tempo, e há diversos "fatores" que entraram em sua produção. A sociedade moderna (no sentido de pós-medieval, a aceitar-se o esquema sediço

Sobre o contexto onde aparece Descartes, CASSIRER. El problema dei conocimiento en Ia filosofia y en Ia ciência modernas; H E G E L , nas "Adi­ções" acrescentadas ao texto da Lógica (da Enciclopédia), mencionou os momentos do termo "dialética" anteriores ao seu sistema: Encyclo-pédie des sciences philosophiques — I, La science de Ia logique, p. 513 e 514.

Page 42: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

3Q NELSON SALDANHA

mas inteligível) aparece desde o começo como estrutura mais "móvel" e mais mutável do que a feudal-estamental27; e depois de certas análises, inclusive a de Max Weber, tem-se a "racionalidade" como nota distintiva do mundo moder­no. O próprio esquema weberiano sobre os tipos de poder repousa sobre uma distinção entre o ethos feudal e o ethos moderno (ou seja, capitalista e urbano), sendo a moderna uma sociedade onde a tradição pesa menos, e onde o "racio­nal", entendido funcionalmente, define os padrões28.

A ética moderna (na medida em que cabe apertar os diversos contextos em um rótulo unificante) terá provin­do do humanismo renascentista, do dinamismo capita­lista, do individualismo e do protestantismo. Conside­ramos discutíveis certas alusões fáceis ao "individualismo", mas as referências ao protestantismo são sem dúvida rele­vantes, quer pela conexão com o livro famoso de Weber, que inclusive provocou vários outros, a seu modo tam­bém já clássicos, quer pela relação do movimento pro­testante com certas tendências intelectuais — algumas delas relacionadas precisamente com o problema do método. O assunto foi aliás mencionado por Feierabend29.

A propósito da ética moderna, e de seus correlates metodológicos, vale lembrar que a separação conceituai entre moral e direito, no pensamento contemporâneo, teve relação com a necessidade de livre crença dos huguenotes, desejosos de separar do Estado (e das leis) as coisas da religião, correspondentes ao "foro Íntimo"30.

27 Entre outras coisas, ver o estudo clássico de MARTIN. Sociologia dei Kenacimiento.

28 WEBER. Economiay Sociedad, loc. cit. Cf. também WEBER. Sociologie du Droit. Para um cotejo TILLICH. The protestant era.

29 Sobre as relações entre o protestantismo e as implicações metodológicas do empirismo moderno, FEYERABEND. Contra o Método, p. 62 e 63.

30 Puffendorf havia pouco antes retomado a distinção entre fórum externum e fórum internum; Tomasius fixou sobre a interioridade e a

O /.OG050RDENADOR

4. PERMANÊNCIA D O COMPONENTE TEOLÓGICO

Entretanto um dos aspectos que se podem observar, dentro da estruturação e dos desenvolvimentos do "mun­do moderno", é a permanência do teológico. Permanên­cia certamente parcial e relativa. Em parte a pervivência de problemas religiosos e mesmo místicos trazidos da Idade Média, em parte o prosseguimento dos grandes temas da ontoteologia, tais como Deus, a alma, o ser, a substância. Mas também, e sob influência de prementes realidades políticas, a ressurgência de antigos modelos monárquicos, acolitados por emblemas teocráticos e por velhas imagens, como a do direito divino dos reis, a da sacralidade da coroa, a do juramento na investidura31.

O Direito, durante o Renascimento, ainda se achava (assim como a ciência-do-Direito) preso a componen­tes teológicos. Não que o jurista dos tempos de Alciat ou de Bodin não fosse suficientemente "racional"; mas na verdade a vivência concreta do ensino jurídico, e da prática, continuava acompanhando figurinos tradicio­nais. Assim encontramos em Rabelais a denúncia da lin­guagem dos juristas, cheia de complicações e de obscu-ridades, de sottes et desraisonables raisons32.

exterioridade a distinção entre moral e direito. Cf. Gioele Solari, "Cristiano Tomasio", em Studi Storici di Filosofia dei Diritto, p. 157 et seq. Em geral se considera a posição de Tomasius como representante da idéia de uma religião não condicionada a autoridades externas, em um sentido já iluminista (Solari, p. 158 e 160).

11 "La idea de corona en Ia alta edad media se corresponde con una concepción teocrática de Ia sociedad y dei orden político", diz M. GARCIA-PELAYO, em seu ensaio "La Corona" (em Del Mito j de Ia Ra^ón en eipensamiento político, p. 28). Sobre o juramento-da-coroação, cf. LAPSLEY. Crown, Communiiy and Tarliament in the later middle ages, passim; mais recentemente, GROSS. Empire and sovereignity, p. 168 e 181-2.

12 Cf. LACLAU. "La historicidad dei derecho" (em Anuario de EU. jurídica j Social, p. 29).

Page 43: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

O problema da convivência do processo de secula-rização cultural, inclusive na etapa que abrange os sécu­los XVII e XVIII, com as sobrevivências teológicas, deve ser obviamente abordado com cautela. Há vários ângu­los a considerar. A persistência de termos e de temas, vin­dos da metafísica grega, se combina àquele tempo com a permanência de concepções políticas geradas ou redi-mensionadas durante a Idade Média. Concepções, inclusi­ve, referentes à hierarquia social e à estrutura das funções essenciais dentro da sociedade e da ordem política: assim a permanência das idéias de João de Salisbury, ou a discussão sobre as duas espadas, na raiz das concepções iluministas sobre o fundamento do poder e sobre a repartição dos poderes. Assim, em linha paralela, a retomada da velha teoria do contrato, nos séculos XVII e XVIII, para tornar persua-siva a idéia da legitimidade dos governos33.

Os huguenotes, anteriormente mencionados, desen­volveram através de famosos panfletos o tema da limita­ção do poder, sempre com alegações tiradas da Bíblia34. Com a problemática da teologia luterana na Inglaterra, e de suas opções políticas, surgiu a chamada ra^ão purita­na, com categorias peculiares e com uma especial ver­são do jusnaturalismo, que inclusive iria prosperar na América do Norte35.

Em Spinoza encontramos, igualmente, uma vigorosa meditação política, que ao mesmo tempo se desenvolveu como crítica da religião e preocupação teológica. A posi­ção de Spinoza, no Tratado Teológico-Político, se aproxi-

Sobre as concepções referentes à hierarquia, cf. HATTENHAUER. Los fundamentos histórico-ideológkos dei derecho alemân, p. 17 et seq.; sobre o tema das funções; SILVESTRI. Ta Separa^ione dei poteri. Sobre os panfletistas franceses, chamados mona rcômacos , cf. T O U C H A R D e outros. História des idées politiques, p. 278 et seq. Com referência a este ponto permitimo-nos remeter ao nosso livro Formação da Teoria Constitucional, cap. III.

O /.OGOJORDENADOR

ma já do üuminisrno, na medida em que denuncia o inte­resse das tiranias em manter o povo na superstição, e em que preconiza o desenvolvimento da "liberdade de julgar" sem detrimento da piedade nem da "paz do Estado"36.

Encontramos também conteúdos teológicos, na fi­losofia social do século XVII, dentro da teoria do cor­po social, cuja elaboração teve relação com a idéia do corpo místico, que vinha da teologia medieval e que in­fluiu sobre diversos conceitos do direito público duran­te o absolutismo monárquico37.

O que acontece é que o processo de laicização, ou secularização, não constituiu de modo algum uma mu­dança rápida, mas sim uma lenta e defasada alteração de padrões. Há quem considere que o ideal do progresso, pretendido no século XVIII como "lei" (e tratado por alguns críticos como "mito"), teria sido durante o ilumi-nismo um substituto da "Cidade de Deus", que Agos­tinho platonicamente havia descrito ao início dos sécu­los ditos medievais38.

16 Extratos do Tratado teolágieopolíúco em Ch. APPUHN. Spinoza. (Col. Civilisation et Christianisme, p. 175 et seq. Sobre Spinoza e o protestantismo francês, ver VERNIERE. Spinoza et Ia pensée française avant Ia rwoluúon, p. 38 et seq. Para o caso de Leibniz (racionalismo mais teologia em seu pensamento jurídico), ver o artigo de GARDIES nos Archives de Phil. du Droit, p. 115 et seq. Cf. também a alusão de SCHMITT. Politische Theologie, p. 50. Para as sobrevivências da teologia, um tema específico seria o das relações entre a teoria social do século XVII, com a alusão ao corpo social, e a teoria do corpus mysticum vigente na teologia medieval. Ver G. GURVITCH. T'idée du droit social, sobre os pensadores do século XVII. Mais especialmente Sérgio Mochi ONORY, Fonti canonistiche deli' idea moderna de lio Stato: toda a parte II, e o cap. I da parte IV, principalmente. Cf. também, o cap. I da Segunda Parte do livro de Otto von G I E R K E sobre Altusio (Johannes A.lthusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien, Aalen: Scientia Verlag, 1968; trad. italiana parcial, Turim: Einaudi, 1974). Cf. ainda Mario LOSANO, Struttura e Sistema, op. cit., p. 175 et seq.

Livro sempre mencionado sobre o ponto é o de Carl BECKER. Ta àudad de Dios en ei siglo Xl/III (op. cit). Uma visão típica do cientismo

Page 44: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Destarte, com a permanência de elementos teológi­cos dentro da fase já racional da política moderna (sobre­tudo após o iluminismo), tem-se a imagem de estrutu­ras constitucionais ou ideológicas contraditórias ou ao menos ecléticas, corroborando as observações de Carl Schmitt sobre a "teologia política" - no fundo, variante expressionista de um tema weberiano39.

*

No Direito inglês, a sobrevivência das estruturas medievais condicionou, durante a época de que falamos -o racionalismo pós-renascentista, proto-iluminista e ilu-minista - , alguns aspectos que merecem referência. No século XVI, conforme destacou William Holdsworth, as formas teológicas de pensar prosseguiram com todo o seu peso40. Os problemas da Reforma, entretanto, coin­cidiram com o da formação do Estado absoluto, culmi­nando com o movimento puritano e seus reflexos41.

Na mesma Inglaterra o rei Jaime I escreveu, no sécu­lo XVI, o mais característico tratado de seu tempo so­bre o chamado direito divino dos reis, estabelecendo a respectiva doutrina no livro The true Law offree Mo-

oitocentista se acha em WHITE. Histoire de Ia brite entre Ia sáence et Ia thêologie.

39 Politische Thêologie. Vier Kapitel %ur lehre von der Souverãnitãt {op. cit). Seja válido remeter ao nosso artigo "Templo e Palácio: pensamento reli­gioso e pensamento político na história do Ocidente".

40 HOLDSWORTH. "Renaissance, Reformation and Reception of Roman Law", em Some Makers of English Taw, p. 69 et seq.

41 The constitutional documents of the Puritan Kevolution, seleção e edição de S. R. GARDINER. No caso se encontra, como exemplo de fusão entre o racionalismo e os componentes teológicos, a obra de Blacks-tone: cf. BOORSTIN. The mysterious sáence of Taw, op. cit., p. 50 et seq. Cabe aludir também à presença do teológico na obra de HOOKER. teólogo inglês do século XVI que tratou de assuntos jurídicos: Of the laws of ecclesiastical polity, passim.

) Í0GO5ORDENADOR

narchies42. Na verdade o que possibilitou, no sentido temá­tico, a construção específica da teoria do direito divino dos monarcas, foi a vigência, desde a alta Idade Média, de alusões e imagens concernentes à ligação entre o po­der e a religião - embora algumas delas tendo sentido diverso daquele do divine right. Assim na clássica frase de Bracton: "Ipse autem rex non debet esse sub homine, sed sub Deo et sub lege, quia lexfacit regem,Hi, onde Deus e a lei são mencionados como instâncias superiores ao poder do rei. Deus e a lei, e portanto a religião e a política (dentro des­ta o Direito) como coisas vinculadas.

No famoso episódio que envolveu o imperador ale­mão Henrique V, no século XII, e o papa Gregório VII, a Cúria Romana entendeu que o "direito divino" não eximia o monarca de obedecer às leis de Deus, repre­sentadas pela Igreja: o imperador era entendido como um "oficial removível" em função daquelas leis44.

O substancialismo medieval, que conferia um espesso sentido de essência aos atos simbolizadores do poder reli­gioso e do político, iria permanecer até avançado o está­gio monárquico ("absoluto") do Estado Moderno, com imagens como a da incoronatio, e com temas polêmicos como o da translatio imperii, provindo da referência às duas espadas, a temporal e a espiritual45. Podemos aludir tam­bém à persistência do conceito de maiestas, objeto, ainda no século XVII, de definições onde o modelo teológico-escolástico de pensar se acha bastante visível46.

! Cf. HOLDSWORTH. Some Makers, p. 119. Para outros aspectos, SABINE. Historia de Ia teoria política (trad. V. Herrero, México: FCE, 1945) parte III, cap. XIX. Para textos, a antologia org. por D. WOOTON. Divine Right and Democracy — Political Writing in Stuart England.

1 Os textos se acham em STUBBS. Se/ect Charters and other illustrations of Eng/ish Constitutional History, p. 411 et seq. Ver BENDIX. Kings orpeople. Power and the mandáte to rule, p. 139. Cf. ONORY. Te origini canoniche, op. cit..

I GROSS. Empire and Sovereigni/y, op. cit, p.T52 et seq., 165 et seq.

Page 45: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Tudo isto revela a duplicidade de andamentos das duas vias, a do pensar teológico permanecendo e a do pensar secularizado se estabelecendo. A visão hierárquica do mundo e da sociedade, abalada pela nova astrologia e pela física, convivendo com a persistência das aristocracias e do Estado absoluto; ao mesmo tempo o crescimento dos questionamentos racionalistas, dos começos da bio­logia e do espírito iluminista47.

5. MAIS SOBRE A PERMANÊNCIA D O TEOLÓGICO

Entretanto, um dos momentos mais relevantes da visão teológica do Direito e do Estado, dentro da histó­ria contemporânea, corresponde à concepção de Hegel. Hegel o vasto e complexo, o despreocupado das caute­las kantianas, o grandiosamente sistematizante e concei-tualizante, mas também penetrado de temática religiosa desde a juventude. Hegel teológico na mesma medida em que não analítico (e eis uma contradição, seu racionalismo foi e não foi "burguês", o burguês tendo sido caracteristi-camente analítico), na medida em que não "gnosiológico", mas sempre sintetizante e de certo modo platonizante. Como Platão, houve em Hegel uma referência essen-cializante à verdade — a verdade sempre um tópico do pen­sar teológico, conforme já registramos —, e também ao absoluto, que terá tido no sistema hegeliano uma função comparável ao do "ser" na metafísica escolástica, ao ser­vir de Ersat% para a noção de Deus48.

47 Cf. HAZARD. A crise da consàênàa européia (1680-1715), passim. 48 "Ce à quoi en general j 'ai travaillé et travaille dans mes efforts

philosophiques, c'est à Ia connaissance scientifique de Ia verité. Elle est ele chemin le plus difficile, mais qui seul peut avoir de Finterét et de Ia valeur pour Fesprit" - isto dizia Hegel no Prefácio da edição de 1827 da Lógica (cf. Engclopédie des Sciences Philosophiques, I: La science de Ia Logique, op. cit., p. 122). O texto logo a seguir menciona o Estado; c encontramos na Filosofia do Direito, Parte III, 3a secção, item 270,

O ÍOGQÍORDENADOR

Há quem entenda, inclusive, que a teologia hegeliana se desdobrou em teodicéia49. De qualquer sorte sua asser­tiva referente à correlação entre o real e o racional pode ser equiparada a uma consagração do real, dentro aliás de um certo spinozismo não estranho ao espírito de Hegel (neste aspecto comparável ao de Goethe). O pen­samento hegeliano sobre o Estado e sobre o Direito - o Estado são os passos de Deus sobre a terra —, com suas conotações teológicas, não constitui apenas um modo teo­lógico e quase escolástico de linguagem jurídica, como o que ocorreu em épocas anteriores, mas constitui real­mente um pensamento teológico, ou teológico-metafísico (de novo a ontoteologia?) referido ao Direito e ao Esta­do, abrangendo-os, absorvendo-os50.

*

Ainda sobre a permanência de componentes teológi­cos dentro do pensamento jurídico já durante a fase cha­mada racionalista: à proporção que se fixou, dentro dos quadros ocupacionais da sociedade moderna, a auto-ima-gem ào jurista (durante muito tempo chamado na prática legista, advogado, etc), consolidou-se o fechamento de seus representantes em relação a outros grupos profissionais. Este aliás é um fenômeno que continuou ocorrendo, e que

uma referência à "verdade absoluta" como conteúdo da religião, de onde o alto nível que lhe corresponde. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechfs, com Introd. de B. Lakebrink, Stuttgart: ed. Reclam, 1976, p. 405; trad. francesa por A. Kaan, Príncipes de Philosophie du droit, NRF, Galümard, p. 285.

49 LEBRUN. O avesso da dialética. Hegel à lu\ de Niet^sche. 1 H E G E L . Philosophie du Droit, op. cit., p. 286. E como disse Nicolai

HARTMANN "é na Lógica, uma obra que ultrapassa toda a medida humana, que se pode ver mais claramente do que em qualquer outra parte que a Filosofia hegeliana no seu conjunto é basicamente Filoso­fia da Religião" (A Filosofia do Idealismo Alemão, p. 329). Sobre Hegel, v. ainda VAZ. Antropologia Filosófica, p. 117 et seq.

Page 46: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

continua a ocorrer em certa medida. Com aquele fecha­mento propiciou-se a continuação, dentro da mente do homo

juridicus, das formas escolásticas de pensar e de escrever — citar, distinguir, demonstrar, concluir - , mesmo depois do advento de idéias modernas e de debates renovadores: mesmo depois das "escolas" dos séculos XIX e XX.

Deste modo o que se chama de pensamento jurídico fi­cou incorporando traços de inquestionável origem me­dieval: vimos, linhas acima, como a forma escolástica de pensar dominou os estudos jurídicos desde o século XIII. Do mesmo modo que a filosofia funcionou e figurou no medievo como andlla theologiae, o saber jurídico se desen­volveu dentro dos marcos da cultura teológica: não seria impróprio lembrar o hábito das distinções e das hipóte­ses argumentativas, presente ainda hoje no jurista, como parte da permanência de um modo de pensar51.

E o possível conservadorismo do jurista, vinculado ao seu sentido da forma (bem como talvez ao pathos da letra e das literalidades), seria também, em sua realidade ainda hoje, herança do conservadorismo teológico, ou seja, de uma teologia do hierático e do estático, preser­vada estamentalmente através do próprio mundo mo­derno, dentro das Universidades, da Igreja e da Buro­cracia. Sempre a persistência do logos ordenador.

Nisto entraria a noção de "princípio", de fonte metafísica e ligada à de dogma com algo de teológico. Para as relações entre direito e teologia a partir da Idade Média, BRUSIIN. Elpensamiento jurídico, op. cit,, p. 238 et seq.

CAPÍTULO

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

• SUMÁRIO •

1. Em torno da idéia de secularização. 2. Secularização e metafísica. 3. O racionalismo moderno e a teoria do Direi­to. 4. Alusão ao problema da legitimidade. 5. Digressão sobre o pensamento utópico

i. E M TORNO DA IDÉIA DE SECULARIZAÇÃO

O processo de secularização corresponde a uma gradual transformação ocorrida em determinadas sociedades, tran­sitando de um padrão predominantemente religioso para formas preferentemente "leigas" (ou racionais) de vida. Tal processo ocorreu exemplarmente na Grécia do século V a.C. e no Ocidente do século XVIII, com antecipações que radi­cam no Humanismo renascentista. A diferença entre uma "fase" teológica e outra racional (ou coisa que o valha) foi percebida ou entrevista entre outros por Viço, mencionada por Condorcet e Turgot, depois por Comte; mas a alusão de Max Weber à "desmagicização" (Ent^ãuberung) permaneceu como uma referência por assim dizer definitiva. Outras alu­sões, entretanto, encontram-se em diversos autores, inclusive os que discutem os problemas das dificuldades históricas da doutrina cristã depois da Reforma, do capitalismo e do ad­vento da idéia de progresso: é o caso de Christopher Dawson em seu livro Progresso e Religião, a cujo texto se poderiam agre­gar inúmeros itens bibliográficos1.

DAWSON, Progresso e Religião. Refiro-me especialmente ao capítulo VIII, "A secularização da cultura ocidental e o advento da religião do

Page 47: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 0 NELSON SALDANHA

De certo modo é válido entender os primórdios da secularrzação ou dessacralização, no caso grego, como algo ligado à urbanização da vida, no sentido da imposição de um planejamento racional às estruturas urbanas. Assim Giles Lapouge, tratando das origens da Utopia, sobretu­do com Hipódamo (séc. V a.C), menciona o uso do ân­gulo e da linha reta, dentro de uma sistematização de for­mas, como correlato de uma concepção em que a cidade se liberta da submissão aos lugares e aos deuses2.

O surgimento de uma metafísica, o que aqui vai sig­nificando um pensamento que se desprende das referên­cias empíricas diretas e se elabora como forma abstrata em torno de determinados conceitos, correspondeu cer­tamente a um gradual abandono (já que seria questionável dizer "superação") do pensar religioso: um abandono que sempre pode ter sido incompleto e relativo. A meta­física clássica, vale dizer a teoria filosófica geral cons­truída na Grécia desde Parmênides e Heráclito até Platão e Aristóteles, terá sido uma onto sem teologia, para aludir ao termo "ontoteologia", que aproveitamos de Castrucci (cf. cap. II); ou com menos teologia, porque esta existiu em Platão. Parece que por todo o processo histórico da onto­logia — sem discutirmos aqui o dito de Ortega de que esta foi algo exclusivamente grego! — ficaria contudo la­tente uma espécie de nostalgia do componente teoló­gico. Não tanto na filosofia medieval, onde tal compo-

progresso". O termo "religião do progresso" nos reporta ao livro de BECKER. Fa ciuiad de Dios delSiglo XVIII, op. cit. Para um cotejo com o caso "antigo"; D E T I E N N E . Les maítres de verité dam Ia Grèce archáique. A bibliografia sobre secularização é muito vasta, sobretudo tendo-se em conta a conexão com "racionalização", e aqui evidentemente ano­tamos só algumas referências. Há também, edição recente, o livro um tanto tendencioso de COOMARASWAMY. Ensaios sobre a destruição da tradição cristã.

"Désacralisé, il (Tangle) organise Ia ville en système". Cf. LAPOUGE. Utopie et civilisations, p. 12.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA 4;

nente nunca esteve ausente, mas na dos grandes sistemas racionalistas: em Leibniz; em Spinoza (neste uma nostal­gia revelada e resolvida no próprio conceito de substân­cia); em Malebranche com uma explicitação artificiosa3.

A metafísica moderna, de cujo conteúdo sairia o concei­to de princípio — um poderoso ponto de referência para o pensar matemático e também para o pensar social4 —, tem o que ver, como toda metafísica, com um sistema de dualismos.

Isto revela seu débito para com o velho lastro teoló­gico, mas reflete por outro lado uma tendência estrutu­ral própria. O maniqueísmo, que sempre se encontra nos dualismos teológicos (céu e inferno, bem e mal, inocên­cia e culpa), cede lugar e vez a um sentido de "distin­ção" ou "classificação": a coisa se percebe melhor se à metafísica do século XVII, no Ocidente, associarmos a imagem do "saber classificatório", cuja base veio das idéias claras e distintas de Descartes e alcançou a tábua de categorias elaborada por Kant5.

O logos, entretanto, não se acha apenas pairando sobre as coisas. Cabe entender o difícil processo de passagem ao racionalismo como uma alteração dos significados que se atribuem às idéias e às coisas. Um dos fundamentos gnosiológicos do racionalismo, expresso aliás em uma das proposições da Ética de Spinoza (proposição VII

Para o caso de Spinosa, cf. SOLARJ. Studi storici di Filosofia dei Diritto.

O R T E G A Y GASSET. Fa idea de principio en Feibni^y Ia evolución de Ia

teoria deductiva, op. cit., passim.

Sempre afirmamos a relação entre a metafísica e os dualismos. Para um aspecto do tema cf. HABERMAS. "A unidade da razão na multi­plicidade de suas vozes", em Revista Filosófica Brasileira (Depart. de Filosofia da UFRJ), v. IV, n. 4, out. 1989. O grande momento da problemática do método terá sido no Ocidente moderno o da opção entre dedução e indução, justamente no século XVII, com um debate que vai de Descartes e de Bacon até Stuart Mill. Não custa aliás lembrar a frase de Bacon, preconceituosa mas com visos de razão, segundo a qual a teologia se assemelha à virgo a deo consacrata, que nihilparit.

Page 48: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 2 NELSON SALDANHA

da Segunda Parte), foi a afirmação de que a ordem das idéias, e suas conexões, são iguais à ordem e às conexões existentes nas coisas. Deste modo os princípios racio-nalistas são outros, e os dualismos em que se expressam (inclusive com sentido ordenador) são outros. Neste ponto podemos indicar uma alteração historicamente significa­tiva: a passagem do dualismo concernente ao espaço sa­grado e ao profano, para o correspondente ao espaço público e ao privado. Como na Idade Média, ao que afirmam muitos autores, não vigorou com bastante nitidez a distinção entre o público e o privado, entende-se que com a modernidade (a modernidade racionalizante, dita "burguesa") tal distin­ção apareça com mais luz, configurando categorias opos­tas ou complementares6. Só que, em realidade, a distinção entre sagrado e profano permaneceu, dentro dos resíduos teológicos de que tratamos no capítulo anterior; e daí no­vas combinações e novas complicações.

2. SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

A metafísica nasce da secularização; ela a expressa; ela é a própria secularização.

E como, sob certo prisma, o pensamento platônico (que foi também um grande dualismo) ficou constituin­do a metafísica por excelência, o legado platônico fez permanecer na metafísica ocidental as ambigüidades que carregava: sua superação da teologia pré-socrática, e ao mesmo tempo seu conteúdo teológico, seu dualismo fundamental e seu desejo de unificação das coisas — alma, cidade, cosmos — através da paideia e da episteme. Não seria exatamente o caso de adotar a famosa frase de Whitehead: toda a filosofia ocidental vem a ser tão-so-

O assunto foi objeto de conhecido livro de HABERMAS: cf. E'espace public. Archéologie de Ia publicité comme dimension constitutive de Ia soríeté bourgeoise.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

mente uma/«/ -»r t em relação ao pensamento de Platão. Mas de fato o que aparece em Platão são os grandes problemas postos pelos pensadores que o antecedem7, redimensionados em uma vasta e conseqüente discussão; a referência fundamental ao mundo8 e à ordem humana, correlata da ordem do pensar, subsiste como modelo atra­vés das mais diversas formas. Em Platão, a herança teo­lógica subjacente na antiga metafísica anima a retórica e alimenta as abstrações, que se organizam como um mun­do específico de formas, destinadas a persistir no latim medieval através de desinências peculiares (quidditas, perseitas) e no latim da Europa pós-medieval através de outras tantas construções. No campo do pensamento so­cial o modelo platônico (diante do qual se esquecem com certa injustiça os utopistas anteriores) permanece não só como exemplo para todo o pensamento utopizante, mas também como referência para as diversas versões da op­ção entre governo-de-homens e governo-de-leis9.

Entretanto, ocorre a crise. Trata-se de uma série de dificuldades que afetam em diversos momentos a traje-

Veja-se SCHUHL. Essai sur Ia Formation de Ia Pensée Grecque. Introduction historique à une étude de Ia phihsophie platonicienne. Para o aspecto polí­tico, BARKER. Greek Política! Theorj. Plato and his predecessors. Cf. ainda GRISWOLD. "La naissance et Ia défense de Ia raison dialogique chez Platon", em AAW (J.F. MATTEI, org.), Ea naissance de Ia raison en Grèce, op. cit, p. 359 et seq.

MUGLER Deux thèmes de k cosmohgie grecque: Devenir cyclique et pluraüté des mondes, Ver também VLASTOS. 0 Universo de Platão. Sobre os aspectos científicos (de ciências naturais) na obra de Platão; WEIZSÀCKER. Ein Blick auf Platon. Ideenlehre, Eogik und Phjsik, Stuttgart: Reclam. A propó­sito de Platão cabe anotar, a despeito da forma literária que sua obra apresenta, que a metafísica é algo muito distinto de toda dramatização, esta talvez mais compatível com a teologia.

Apesar do autoritarismo e da excessiva severidade expressada nas Eeis, inclusive no livro X, com a punição contra delitos de opinião: cf. VLASTOS. O Universo de Platão, op. cit., cap. 2 (ver em especial a citação de Morrow à nota 33). Cf. também STRAUSS. The Argument and the action of Platos Eaivs.

Page 49: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 4 _ NELSON SALDANHA

tória da metafísica ocidental. Ela sofre um hiato durante o iluminismo, que não continua o padrão metafísico do pensamento cartesiano, e que em seu lance final, com Kant, confirma e desconfirma o penchant metafísico vindo do século XVII; durante o romantismo ela recebe o impac­to dos materialismos e do contraste entre seus próprios exageros e as respostas empíricas. O modelo platônico, dentro do qual se achava uma visão parateológica da "ver­dade" e um característico teoreticismo (com sua ontologia à qual Aristóteles acrescentara uma teleologia explícita), vai sendo substituído pelos pragmatismos emergentes: o de Marx e Engels, que entronizam a noção de práxis (embora ainda se trate, em parte, de uma noção teórica); o de Nietzsche, que repudia o conceito transcendental de Wahrheit e que busca "libertar" o pensamento: por trás disso, a no­ção clássica de verdade entendida como uma condenação ao abstrato, ao essencial e ao genérico10.

Uma crise: através dela, contudo, refratada e proble­mática, a herança metafísica persiste. Ela se acha inclusi­ve nas próprias filosofias mencionadas, a de Marx e a de Nietzsche. Sem ela não haverá filosofia.

3 . O RACIONALISMO MODERNO E A TEORIA DO

DIREITO

Retornemos entretanto ao advento da modernidade, com a secularização, com a sociedade "burguesa", com o racionalismo, com o proto-iluminismo. Um dos itens que vale a pena citar é o surgimento do livro, com seu impacto sobre a expansão do humanismo a partir de fins do quatrocentos e inícios do quinhentos. Segundo

Sobre o problema em Nietzsche, cf. VATTIMO. As aventuras da diferen­ça, p. 10 e 79-80. Ver também ARENDT. Ea vida dei espiritu. El pensar, Ia voluntadj eljuiào en Ia filosofiay Ia política, p. 21: Deus, segundo Nietzsche, como sinônimo de "mundo verdadeiro". Ver ainda MATTEL UOrdre du monde. Platon, Nietzsche, Heidegger (op. «'/.), p. 120.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, o crescimento numé­rico das bibliotecas revela, naqueles anos, uma perceptí­vel afirmação das gens de robe (principalmente advogados e notários), cujas bibliotecas ultrapassam as dos eclesiás­ticos em escala expressiva. Logo em seguida começam a surgir bibliotecas em mãos de profissionais diversos11. Trata-se de um aspecto nada negligenciável do processo geral de secularização.

Por outro lado, há que mencionar a ligação entre a política moderna, na fase do Estado dito absoluto, e o deísmo, que teve relações com a nova cosmologia e a nova física. O deísmo, uma espécie de versão racionalista da cosmovisão monoteísta despojada de sua "religiosi­dade", correspondeu grosso modo ao iluminismo (inclusi­ve o de Voltaire) e à racionalização de conceitos como os de natureza, homem, universo e outros12.

Enquanto o paradigma teológico fazia conceber o Direito (e também a Justiça) como reflexo da ordem das coisas, disposta por vontade divina, cabendo ao pen­samento jurídico amparar-se em citações religiosas ou

11 FEBVRE; MARTIN. L'Apparition du Livre, p. 369-370. 12 Veja-se o capítulo VI, "The parallel of deism and classicism", em

LOVEJOY. Essays in the history of ideas (Oxford Univ. Press — John Hopkins Press) 1960. Ver também ZEITLER Klassi^ismus und Uto­pia. Para uma alusão à diferença entre a natureza como globalidade, na visão antiga (teológica), e a natureza como conjunto de processos seccionados, na visão (racionalista) moderna, cf. LACLAU. "El influjo de Ias ideas filosóficas en Ia revolución francesa", em A-nuário de Filosofia Jurídica j Social, p. 312. Para uma rápida mas certeira alusão às cone­xões entre a Filosofia, a Teologia, a Medicina e o Direito, no Ocidente de Bacon a Saint-Simon, cf. LOSANO. IIfondamento tecnológico delia democracia, p. 1 do cap. II). Para uma discussão teórica das noções de secularização e de racionalismo; HABERMAS. O Discurso Filosófico da Modernidade, p. 13 et seq. A correlação entre o moderno Estado de Direito e o deísmo havia sido destacada desde 1922 por Carl Schmtt na "Teologia Política", "com uma teologia e uma metafísica que ba­nem do mundo o milagre" (Politische Theologie, p. 49; cf. ed. esp., Teologia Política, p. 96).

Page 50: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 6 NELSON SALDANHA

exprimir-se em linguagem eclesiasticamente estabelecida, o racionalismo busca novos prismas e novas ênfases. Permanecem — durante algum tempo ao menos — as for­mas gerais da linguagem, e também os termos genéri­cos (o termo jus e seus correlates, os termos básicos do Direito Civil e tantos outros), mas há uma nova liber­dade para a crítica dos textos, e há um novo modo de pensar que se consolidará com o jusnaturalismo pelas mãos de Grotius. O jusnaturalismo, a partir de Grotius e de outros, será o modo por excelência de se pensar o direi­to; entretanto, antes de chegarem as Revoluções (princi­palmente a Francesa, de 1791), para cujo preparo em parte contribuiu, o jusnaturalismo se desdobrará, fazendo alu­são a um "Direito Natural" e aos "direitos naturais"13.

Reestruturam-se então, mas com implicações metafí­sicas menos ostensivas, os velhos dualismos da teoria do Direito, inclusive e obviamente o dualismo "Direito Natural-Direito Positivo", que aos poucos saltaria fora do mero quadro classificatório e assumiria sentido de reivindicação doutrinária ou de alegado crítico. E espe­cificamente o dualismo "Direito Público-Direito Priva­do", restabelecido em sua plenitude pela legislação re­volucionária, na França sobretudo.

Aqui tropeçamos com um incitante subtema. Tra­dicionalmente, isto é, desde os juristas romanos, o "Di-

Sobre a época ver a obra de TODESCAN. Le radiei teologiche delgiusnatura-lismo laico, I: 11 problema delia setolark^a^tone nelpensiero giuridico di Ugo Gro^io — col. "Per Ia storia dei pensiero giuridico moderno". Cf. tam­bém o v. II, II problema delia secolari^a^ione nel pensiero di ]ean Domat, ibidem. Ver ainda COSTA. IIprogetto giuridico. BJcerche sulla giurispruden^a dei liberalismo clássico, e também Wolfgang RO D, Geometrischer Geíst und Naturrecht, Munique (Bayerischen Akademie der Wissenschaften). Assim a tendência liberal, com sentido secularizante e na direção dos "direitos", contrastou com a tendência conservadora que enfatizava os "deveres". Seriam os deveres (inclusive no conservadorismo de Comte) um correlato da marca teológica?

SECULARIZAÇAO E METAFÍSICA 4 7

reito" vinha sendo — como objeto de um saber referido a textos e a conceitos - o Direito Civil. Salvo, certamen­te, as referências a noções políticas como imperium, aueto-ritas e outras, que não chegavam a configurar um "direi­to público" inteiramente elaborado14. Esta identificação entre "Direito" e Direito Civil veio persistindo (mesmo com o binômio "civilistas-canonistas" vigente durante a Idade Média) através do Anàen Regime, com a ciência jurí­dica italiana, alemã e francesa. Com Rousseau, porém, e com sua concepção da lei, assumida pela Revolução; com o Constitucionalismo revolucionário, a um tempo libe­ral e estatizante15; com a pressão doutrinária afetando as relações entre política e Direito, sobreveio a tendência a uma supremacia do Direito público. A própria noção de constituição incluía como um dado a sua supremacia, diretamente ligada à vontade geral.

Esta idéia de um Direito preferentemente público foi absorvida por Hegel, que inclusive criticou em Rous­seau um penebant pnvíLÚsta, ligado à teoria do contrato16. Hegel, que se interessou pelo Direito romano e pelo Direito Natural, entenderia o "Direito" sobretudo como constitucional e internacional: filosoficamente, um correlato do Estado17. Com isto se compreende a ambigüidade da influência de Hegel sobre os juristas alemães que se

14 Sobre o imperium (próprio da lex) e a auetoritas (própria dos "prudentes" e embasadora do ius), ver PIETRO. "La prudente tarea de interpretacción en ei derecho romano", em Anuário de Filosofia Jurídica j Social, p. 226.

15 Vale consultar entre outras coisas o ensaio de MATEUCCI. "Posi­tivismo giuridico e costituzionalismo", em Rm Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, p. 985 et seq., com importantes digressões metodológicas. Cf. também nosso livro Formação da teoria constitucional.

16 Parágrafo 258 da Filosofia do Direito de Berlim (1821): cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts, Stuttgart: Reclam, 1976, p. 387 et seq., p. 270 et seq.

17 Sobre Hegel e o Direito Romano veja-se o lúcido ensaio de VILLEY, em Archives de Philosophie du Droit (Sirey), p. 275 et seq. Para uma refe­rência de Hegel ao Direito Natural, cf. La science de Ia logique, (op. cit.), p. 122; Rudolf Wiethõlter emprega a expressão "politização do direi-

Page 51: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 8 NELSON SALDANHA

lhe seguiram, justamente em uma Alemanha onde, a partir de meados do oitocentos, se definiu crescentemente a distinção entre privatistas e publicistas: aqueles traba­lhando dogmaticamente e sem aderências filosóficas — é o caso dos pandectistas —, estes divididos entre a tenta­ção historizante, onde o hegelianismo podia vigorar, e a disciplinação formalista e privatizante, na linha de Laband e Seydel18.

Entretanto, estes problemas correram paralelos ao des­dobramento de um traço vindo da seculari^ação e do üuminismo, ou seja, o movimento pela publicização do sa­ber e dos atos, algo a que Kant se havia referido. Esta tendência alcançou inclusive o Direito processual, onde a diferença entre jurisdição e competência ficaria represen­tando uma explicitação da distinção entre política e Di­reito19, e onde surgiu (no começo do século XIX) uma novidade apta a alterar os procedimentos: a fundamenta­ção das sentenças, com a publicação dos considerandos por parte das autoridades judiciais20.

_ *

to civil" para mencionar a passagem (anotada por Wieacker) de uma ética formal do dever a uma ética material da responsabilidade: cf. Le formule magiche delia sciemça giuridica, p. 98. Entendemos que o proces­so é mais complexo, com uma privatização do Direito público, ao tempo de Seydel, e uma administrativização do Direito Constitucio­nal (com a purificação normativa) e xskrzT,, também, do Direito Civil.

18 Cf. nossa Formação da Teoria Constitucional, op. àt, cap. IX. 19 Ver nosso artigo "Jurisdição e competência: nota sobre o sentido

histórico-político da distinção", em Revista de Informação Legislativa (Senado Federal, Brasília).

2" HATTENHAUER. Los fundamentos histórico-ideológicos dei derecho alemân. Entre Ia jerarquíaj Ia democracia, p. 61. Importaria questionar as relações entre este passo e o advento da noção de "verdade processual", e tam­bém a elaboração da teoria das espécies de sentenças, que podem inclu­sive ser constitutivas, isto é, instauradoras de uma substantividade.

SECULARIZAÇAO E METAFÍSICA

Parece contudo que, historicamente, a maturidade do pensamento jurídico europeu coincide com a própria crise do radonalismo moderno. Referimo-nos ao pensa­mento jurídico posterior à Revolução Francesa, a Kant e a Hegel: aquele que se expressou através das escolas do século XIX, a da Exegese, a de Savigny, a dos pan­dectistas. O radonalismo, que teve presença perceptível no processo cultural iniciado com o humanismo renas­centista, terminou enredado em contradições, que se dão em termos filosóficos e também no plano das ciências sociais. O Estado Moderno, cujo início implicou tam­bém a presença do componente "radonalismo", transi­tou da monarquia absoluta para o constitucionalismo, e o crescimento da dimensão "democrática" e do teor de liberdades correu paripassu com o das complicações insti­tucionais. Inclusive, das estruturas burocráticas: Max Weber perceberia, já no começo de nosso século, as relações entre a ação do radonalismo governamental e o advento do ethos burocrático. Todas estas coisas configuram repetições e re­tomadas, em relação a contextos anteriores. Significam exa­geros e ambigüidades: pode-se interpretá-las como crise, senão declínio, do logos ocidental21.

São realmente dois processos complementares, que se estendem a partir do radonalismo pós-medieval. Por um lado a passagem do dedutivismo, com sua imagem matematizante da ciência, ao positivismo cientificista e à tecnocracia. Por outro, a transição do lado ético do dedutivismo (o de Wolf e Pufendorf por exemplo) aos normativismos mais recentes, aos quais se conjugam o logicismo e o analitismo22.

21 Empregamos estas palavras sabendo que elas recordam Spengler. Entretanto a expressão "decadência do logos ocidental" aparece, se bem com toque algo específico, no interessantíssimo livro de LE-FEBVRE. Niet^sche, p. 50.

22 Ver o capítulo I, "El radonalismo metódico" do livro de MASSINI. LM desintegración dei pensar jurídico en Ia edad moderna. Cf. também os

Page 52: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

4. ALUSÃO AO PROBLEMA DA LEGITIMIDADE

Voltemos à dualidade resultante do processo de se-cularização e da permanência do teológico. O padrão racionalista se torna dominante, no mundo moderno, mas persistem traços teológicos nas idéias e nas crenças.

Essa dualidade pode constatar-se também no qua­dro da antiga cultura grega, onde o emergir do raciona-lismo conviveu com a permanência de componentes religiosos. Assim, o conceito de liberdade ainda pos­suía, nos textos de Heródoto, um sentido religioso: ao relatar as guerras com os persas, às quais dava um senti­do de pugna entre liberdade e escravidão (ou entre helenidade e barbárie), Heródoto atribuía à própria pa­lavra Eleutheria (liberdade) um sentido divino23.

No Ocidente podemos apontar uma secularização cultural que abrange o pensamento político e o jurídico -com os respectivos valores —, e que alcança processos paralelos como o jusnaturalismo de Grotius e pós-Gro-tius, o liberalismo de Locke em diante e o contratua-lismo que ocupa o século XVIII mas vem da época de Hobbes e de Locke, senão de antes. Com o liberalismo

capítulos seguintes, inclusive o III, sobre o normativismo. O tema é aflorado, com brevidade e clareza por BOBBIO no verbete "Método" no Novíssimo Digesto Italiano, v. X (UTET), p. 602 et seq. Paul Amselek registrou, atiladamente, que o positivismo, oposto ao jusnaturalismo, aparece entretanto como seu "herdeiro", inclusive pela permanência do problema de "fundar" o direito, ou seja, de encontrar a razão pela qual ele é aceito e obedecido ("Uhéritage jusnaturaliste du positivisme juridique", em Memória dei X Congresso Mundial Ordinário de Filosofia dei Derechoy Filosofia Social, p. 55 et seq).

23 Aludimos a este tópico no capítulo II. Os textos de Heródoto se acham citados e analisados no cap. 4 do livro Eleutheria, de Dieter NESTLE (op. cit). Também em Esquilo se encontraria um uso reli­gioso do termo "liberdade", cf. p. 35 et seq. Para a experiência romana, comparar com o livro de Ch. Wirszubski. Ubertas as a political idea at Rome during the late republic and early principate.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA bi

e com o contratualismo, ambos tendo conotações jusnatu-ralistas, deu-se a secularização do conceito de legitimidade. A legitimidade, que Ortega observou ter sido algo próprio dos contextos monárquicos, sempre representou um pro­blema axiológico: um problema com implicações de psi­cologia social e ligado ao tema da presença da fé, ou de crenças ocorrentes na existência das instituições.

A busca de fundamentos para o poder (e para a obe­diência) dentro do próprio âmbito da razão, evitando concepções como a do medo — timorfeát regnus — ou a da tradição, renovou com Rousseau a idéia do contrato, le-gitimador da convivência e da soberania (em Hobbes, ao contrário, contrato e medo entravam no mesmo es­quema). Com o liberalismo, fundado sobre as referências ao contrato e às individualidades, o Estado se legitima­va por conta de sua própria limitação, racionalmente exigida. Deste modo a legitimidade, perdendo seu anti­go toque divino e seu fascínio histórico, era encontrada na própria forma de elaboração do poder: convergência de vontades, aquiescência de obediências, delimitação-negação do poder como tal.

Depois entretanto o Estado cresceu, aumentou em poder e em serviços, e o problema da legitimidade foi afetado24. Ao fim do século XIX a ciência social possuía uma imagem controvertida mas inteligível da realidade do Estado e de seu poder. Nos começos do século XX Carl Schmitt mencionou em linguagem marcante a ori­gem teológica de certas categorias essenciais do pensa­mento político e da moderna teoria do Estado25. Suas observações, apesar do tom polêmico ou por causa dele, ficaram como uma referência necessária acerca do tema.

AARNIO. "La crisis de legitimidad en Ia sociedad post-industrial", em Anuário de Filosofia Jurídicay Social, p. 203 et seq.

Politische Theologie, op. cit., princ. cap. III.

Page 53: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Na verdade o problema pode ser encontrado na ge­ração anterior à de Schmitt, na famosa alusão de Max Weber ao "monopólio do uso legítimo da violência", por parte do Estado. Ao admitir a violência do Estado como única legítima, Weber implicitamente aceitou que o Estado reserva para si a condição de fonte de toda legitimidade - o que só se pode entender como "ofi­cialização" formal (e normativa) do poder. Parece ha­ver nisto um resquício teológico, vindo do tempo em que o poder por si mesmo era algo sagrado (pmnispotestas a Deo), vindo de Deus aos seus mandatários através da unção, e em que as instituições se entendiam como or­dens participantes da hierarquia universal26.

O problema da legitimidade, no esquema do pró­prio Weber, teria correspondido a uma concepção tra­dicionalista e depois a uma outra "racional" (o tipo caris­mático aparece como forma excepcional): a tipologia weberiana tem como correlato — nem poderia deixar de tê-lo - uma perspectiva histórica.

Entretanto, as alterações ocorridas durante a etapa dita racional significam mudança de plano: a legitimi­dade metafísica, ainda presente nos séculos XVII e XVIII, cede passo a uma legitimidade ideológica. De certo mo­do as revoluções liberais, mormente a Francesa, terão sido o ponto de passagem de uma legitimidade para outra. A sacralidade do poder, ainda componente da legitimidade metafísica (e marca da permanência teoló-

26 Sobre Weber, ver inclusive José Guilherme MERQUIOR, Rousseau e Weber, dois estudos sobre a teoria da legitimidade. É possível, parece-nos, que também na teoria do ato jurídico perfeito e da irretroaüvidade da lei se encontre algum resíduo teológico. O respeito ao ato plenamente cumprido ou às situações anteriores a lei parece remontar ao antigo caráter sagrado de certos atos ou situações. O intuito liberal de pôr um limite ao poder das normas estatais, impedindo-lhes o acesso a determinados direitos, ou atos, ou situações, trouxe uma formulação jurídica para o problema; mas as raízes deste podem estar mais longe.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

gica)27, já não se menciona a partir do oitocentos, a não ser pelos românticos; em compensação buscam-se fór­mulas "científicas" para fundamentar a ordem social, alu-dindo-se à humanidade, ao trabalho, ao saber.

Seria então de questionar-se se o componente teoló­gico, que em alguma medida permanecera dentro das metafísicas pós-renascentistas, permanece ainda no bojo das formulações ideológicas. Poder-se-ia considerar que aquelas metafísicas eram já (ou também) ideologias, mas o verdadeiro pensar ideológico emerge com o flores­cimento do liberalismo e com as influências do capita­lismo sobre as relações entre cultura e sociedade: multi­plicação de formas, provisoriedade de soluções.

5. DIGRESSÃO SOBRE O PENSAMENTO UTÓPICO

Façamos agora uma digressão sobre o pensamento utópico desenvolvido a partir do Renascimento. Do mes­mo modo que, na Grécia antiga, o surgimento de proje­tos utópicos veio depois do período inicial - dir-se-ia, da época "heróica" - , no limiar da modernidade oci­dental os modelos utópicos vieram após um período predominantemente religioso. Mas é como se o adven­to das utopias fosse um traço ainda religioso, permane­cendo dentro do quadro dominantemente racional (e urbano), tanto no caso grego como no ocidental. As motivações para o nascimento do gênero "utopia", no caso do Ocidente, são conhecidas: o reencontro dos textos de Platão, as sugestões das grandes viagens com suas narrativas fantásticas, o sentido de crítica social com desejo de melhores estruturas28.

7 A respeito CASTRUCCI. "La forma e Ia deásione, op. rit, p. 107 et seq. Vale mencionar a propósito, sobre o lado ideológico do problema; D E GIORGI . Sàen^a dei Diritto e l^egitima^ione, cit.

ff IMAZ. Topíaj utopia.

Page 54: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

Pois aí está: somente com o racionalismo poderia surgir a variante utópica. Ela pressupôs a continuidade da crítica social medieval, fragmentária e alegórica, e ao mesmo tempo seu oposto, ou pretenso oposto, o exem­plo platônico, com os diálogos, com a figuração de uma cidade ideal. O Estado Moderno, que negou a dispersão medieval, concentrou poderes e "racionalizou" funções, oficializando o poder: com isto resultaram utópicas (ex­tra-oficiais) as imagens de um outro Estado, imaginário, a um tempo racional e ideal. Cabe lembrar que na Grécia antiga a utopia urbano-planej adora de Hipódamo teve de certo modo um sentido herético; e que também To­más Morus, na Europa do século XVI, teria separado da imagem de Deus o trabalho de reordenação da cida­de dos homens29.

De qualquer sorte vale reter a idéia de uma correla­ção entre o racionalismo e a utopia (sem embargo de que a literatura utópica seguiria florescendo durante o essor romântico): o racionalismo como linearidade e or­denação, como explicitação e clareza — idées claires et distinctes —, sendo uma outra questão a viabilidade daqui­lo que se delineia, que pode ser utópico ou não. Em seu livro Classiàsmo e Utopia, Rudolf Zeitler retomou aquela correlação, estudando a busca da harmonia que os clássi­cos empreenderam, nos antigos e no exotismo30. O ra-

Assim o interpreta Giles L A P O U G E , em Utopie et Civilisations (pp. at), cap. 1, p. 13. Esta idéia, de certo modo, nos remete à concepção de Viço segundo a qual o factum dos homens, ou seja, a história, se distingue do domínio próprio de Deus, que é o mundo, a "reali­dade". Sobre revoluções e utopias, ver nosso artigo "História, revolu­ção e utopia", item 6 (cf. Revista brasileira de Filosofia, v. XXXIX, fase. 157, p. 46 et. seq). Para os contornos do assunto, ver Giorgio MURA-TORE. LM áudad renacentista, trad. esp. P. van Breda, passim. ZEITLER, Klassi^ismus und utopia (pp. cit): parte I, p. 13 et seq.; parte III, p. 185 et seq. Cf. também LOVEJOY, citado supra (nota 12). Seria o caso de estender aos racionalismos do século XX a implicação utópica: cf. SAN MARTIN. LM fenomenohgía de Husserl como utopia de Ia ra^ón.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

cionalismo como utopia e a utopia como racionalismo: em ambos os enfoques um toque de paradoxo e um com­ponente estranho. No anverso, o irracionalismo da uto­pia e o "realismo" do racionalismo.

Parece aliás que o problema do Estado se acha mais ao alcance do pensamento utópico do que o do Direito. Ou por outra, o gênero utopia se encontra mais na teo­ria política do que na jurídica, já que sempre se confun­de a política com o Estado. Dir-se-ia que o Direito vem sendo mais o campo da objetividade e da razão, recta ratio; o Estado, isto é, a política, vem sendo um campo mais acessível à criatividade e à fantasia. Talvez, porém, as coisas não sejam exatamente assim. Certos autores en­xergam nos utopistas o apego a valores jurídicos, inclu­sive a símbolos como a balança e os códigos31. O utópi­co, porém, não estaria no apego a tais valores, sim na crença na perfeição que eles ajudam a criar, a inspirar ou a manter; e neste caso estaria também, quanto ao campo da política, no amor à cidade perfeita e à geometria — a geo­metria social de Sieyès engendrada durante a Revolução Francesa, como um prosseguimento do racionalismo do tempo de Descartes.

Se considerarmos dentro das utopias o conceito de "paraíso perdido", implícito em tantas delas, veremos neste componente um traço teológico que permanece e que acende na própria figura da utopia um rastro de fascínio. As utopias têm um logos próprio e um ethos próprio, mas ambos são tributários da milenar ima­gem da perfeição, pretendidamente perdida e desajei­tadamente procurada.

1 L A P O U G E (op. cit., p. 26) associa o utopismo a um "fanatismo da estrutura". Entretanto o pragmatismo prosaico do racionalismo jurí­dico não corresponde inteiramente ao espírito da utopia.

Page 55: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

CAPÍTULO

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA

• SUMÁRIO •

1. Razão, ciência, teoria. 2. Razão, ciência e ideologia. 3. Positivismo, direito e política. 4. Positivismo e for-malismo. 5. Novamente sobre ideologia.

1. RAZÃO, CIÊNCIA, TEORIA

Quando se fala na ra^ão fala-se com freqüência em seus "progressos". E sempre se fala a partir de uma posição racional; ou, ao menos, de uma posição que acei­ta a validade do racionalismo. A reflexão histórica não pode realmente deixar de aceitar aquela validade, em­bora possa (ou deva) também admitir os limites da razão e da racionalidade, admitindo igualmente, com isto, a validade de posições menos racionais senão mesmo "ir­racionais" — termo que aqui vai empregado sob reser­vas. Deste modo e com este sentido é que a reflexão (ou revisão) histórica pode falar em "progressos" da razão. Pode fazê-lo registrando como ressalva que não se trata de proclamar "vitórias" inexoráveis e irreversíveis da ra­zão, como se pensava no setecentos; e entendendo como progressos os passos no sentido de uma autoconsciencia do logos através da história: progressos históricos da cons­ciência e progressos da consciência histórica1.

Cf. BRUNSCHVICG. Les progrès de Ia conscience dans Ia philosophie ocádentak.

Page 56: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

5 g _ _ _ _ _ _ ^E£2ü^!£ANHA

A ra^ão se desdobra como disciplinação do pensar e do saber: antes mesmo de tomar forma como autocons-ciência, o espírito tende a organizar-se como ciência2. A ciência tende a expandir-se em seus "resultados", con­firmando com isto sua validade; vale dizer, a dos méto­dos que utiliza. A ciência se desenvolve como um modo do conhecimento, e se "aplica", como extensão, sobre os campos em que se "divide" a realidade. Assim os antigos egípcios e caldeus cultivaram a aritmética e a geo­metria, os gregos incrementaram a astronomia, os indus produziram grandes matemáticos: o trato da terra, a vi­são dos céus e a construção de edifícios cobrou da ciên­cia concentrações e ramificações. Aliás Ortega escreveu certa vez que a ciência - diferentemente da filosofia - logo que surge tende a dividir-se em "ciências"3.

As vezes o racional, como linearidade, se encobre por trás dos empirismos que são ostensivos em certas ciências, mas permanece dentro delas como estrutura do pensar propriamente científico. Por isso estamos fa­lando em racionalidade e em cientificidade como coisas relacionadas embora distintas.

*

O repisado topos segundo o qual a Grécia cuidou de filosofia e Roma cuidou de direito retrata, sem embar­go de ser uma simplificação e uma distorção, uma parte da verdade. O espírito helênico, ocupado com proble­mas relativos ao pensar e ao ser, à beleza e à ação, não

Falamos de ciência em sentido amplo, e tomamos autoconsciência em termos mais específicos: algo análogo ao fenômeno da "consciên­cia de si" e do "pensar" em HEGEL (Phenomenologie de l'Esprit, trad. J. Hyppolite, p. 155 et seq., 168 et seq). La idea de principio en Leibni-^ op. cit, p. 32, nota 2: "Apenas Ias ciências nacen, se produce en ellas el fenômeno de Ia especialización".

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA üS

desdobrou de dentro da ética uma noção suficientemen­te clara da coisa que chamamos "direito", embora dis-pusessem, os gregos, de experiência jurídica intensa e exem­plar, com terminologia específica. Os romanos, que mais receberam e mantiveram do que criaram, no tocante ao "pensamento geral", tiveram talvez mais necessidades (ou mais pendores) no concernente à problemática da organi­zação e da ordem. Há inclusive um cunho ordenador dentro da própria estrutura da língua latina (e isto nos levaria a ver uma curiosa correlação entre ordem e hermenêutica den­tro do espírito romano): se é verdade que o texto ainda arcaico das Do%e Táboas dependeu constantemente de uma interpretação para cobrar sentido, por outro lado há quem ache que no modus cogtandi: latino se encontra uma visão pe­culiar das relações entre linguagem e realidade4.

Uma especial junção (que não foi meramente meto­dológica) entre o corpo de conhecimentos relativos ao Direito, herdado de Roma, e a filosofia grega reelabo-rada pelo aristotelismo da Igreja, legou ao Ocidente, sobretudo a partir do século XIII, um padrão de pensa­mento que pesaria de maneira inconfundível sobre a for­mação daquilo que se chamaria teoria. O Direito Romano em sua fase final atravessou um processo de didatização lento e complexo, no qual aparece a codificação de Justi-niano, que padronizou o objeto que viriam a ter diante de si os juristas medievais: não apenas temas e problemas, mas também fontes e conceitos5.

4 "O pensamento latino considera que a coisa foi fixada antes da interven­ção da linguagem, e a linguagem exprime a coisa, independentemente da ordem das palavras, através da lógica das flexões" - Umberto ECO, "A linha e o labirinto: as estruturas do pensamento latino", em G. DUBY (org.). A Civilização Latina, p. 35. Jean-Marc Trigeaud apresenta um esque­ma no qual a justiça, "categoria constitutiva da idéia de Europa", derivaria de três tradições: a greco-romana com o lus, a judeo-cristã com a Persona e a humanista moderna com a ratio (Philosophie Juridique Européenne, p. 25).

5 ORESTANO. Introdu^ione alio studio storico dei Diritto Romano (Torino: Giappichelli, 1963), princ. cap. III; SCHULZ. Hisfory of roman legal

Page 57: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

6 0 NELSON SALDANHA

2. RAZÃO, CIÊNCIA E IDEOLOGIA

As linearidades do pensamento dito racional não excluem — como foi mencionado — em sua trajetória histórica, inclusive ao abrir-se a "modernidade", algu­mas permanências do pensar teológico. Este persiste como contrapartida, como uma espécie de área não-conquistada, dentro do processo de secularização que gradualmente abrange a vida social, os valores, a cultu­ra. O capitalismo, o predomínio da vida urbana, a ra­cionalização (inclusive no sentido de recuo da traditió), tudo isto condicionou, no Ocidente de após o quatro­centos e sobretudo após o quinhentos, a secularização cultural. Diante dela, e das pretensões do racionalismo — com seu desdobramento o cientificismo —, a perma­nência histórica de elementos teológicos pode figurar como um contraste, descontínuo talvez mas sempre perceptível: e com o tempo, outros modos de pensar que surgem, e que não se encaixam no conceito de "ra­cional", podem ser assimilados ao pensar teológico. Diríamos, por exemplo, que o advento das ideologias (falo particularmente dos "ismos" que se vão forman­do a partir da Ilustração) pode ser comparado a um surto de implicações teológicas. Os socialismos do sé­culo XIX, tanto os "utópicos" como o soi-disant cientí­fico de Marx e Engels, tiveram no fundo um toque teo­lógico. Um toque ligado, por sua vez, à sua dimensão mesma de utopia: utopia, messianismo, crença. O conser­vadorismo romântico, por seu turno, apresentou inequí­vocos traços teológicos, como no caso de um Haller, de um Müller, de um Donoso Cortês.

science (Clarendon Press, Oxford, 1953), partes III e IV; AAW, II modello di Gaio nella formazçione dei giurista, passim. Sempre cabe distin­guir entre a idéia de "clássico" na história do Direito romano e os "clássicos" em sentido literário.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA

Entretanto a observação é reversível. Se tomarmos em sentido bastante amplo a noção de ideologia^, tere­mos as teologias como ideologias — sobretudo as teolo-gias modernas e contemporâneas, as do tempo de Pascoal inclusive, as do período romântico especificamente7.

Deste modo o esquema histórico que estamos infor­malmente usando (razão, ciência, ideologia) pressupõe como antecedente a presença do modo teológico de pen­sar, que no caso perdura através dos padrões racionais e também dentro das ideologias. Em sentido bastante amplo, o termo ideologia se derrama por sobre todas ou quase todas as atividades e expressões intelectuais; mas em um sentido mais restrito somente seriam "ideo­lógicas" as expressões culturais claramente comprome­tidas com o poder ou com a luta pelo poder. E como, na teoria social contemporânea, foram os autores mais preocupados com o poder econômico os que mais tra­balharam sobre o conceito de ideologia (falamos mais de Marx do que de Cabanis e de Destutt de Tracy, é cla­ro), este conceito permaneceu tingido de conotação eco­nômica. Coisa que aliás se corresponde com o fato de que o processo de secularização, historicamente, tem por protagonista principal o "burguês" (este, a nosso ver, o sentido central deste termo), e tem o capitalismo como um componente inegavelmente relevante: é com a secula­rização que o pensar, desvinculando-se de fundamentos "maiores", se vincula às informações referentes ao social e ao econômico, de onde a crescente alusão a "fatores" e a "elementos"; de onde igualmente seu ostensivo cunho

A própria bibliografia a respeito tende a ser ideológica. Vale mencio­nar a respeito o tema da "objetividade" em ciências sociais, tratado por Felix Kaufmann em sua Methodology of the soàal sciences (Oxford, 1944, cap. XIV). Ver a coletânea, org. por MAIHOFER. Ueologie und Recht; cf. também ZEITLIN. Ideologia j teoria sociológica; SMITH. Las ideologias y ei derecho. Sobre a época do autor das Pensées, LEFEBVRE. Pascal.

Page 58: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

^l________^ _ _ _ N E L S O N SALDANHA

ideológico. Daí o traço ideológico parecer mais claro como atributo das obras "modernas" e "contemporâneas", do que das antigas, tornadas clássicas.

*

Falamos, acima, do condicionamento histórico que afeta a ra^ão; de seu desdobramento como ciência; de sua precariedade como ideologia. Agora, uma anotação sobre dois pontos que são atingidos pelo processo histó­rico que tomamos como referência, a saber, a passagem das teologias à secularização. Um deles é o conceito de ser, que, quando do aparecimento da filosofia — justamen­te a ontologia de Parmênides — adquiriu um sentido espe­cial (aludimos ao assunto no capítulo II), pressupondo a idéia de Deus e ao mesmo tempo distinguindo-se dela8. O ser permanece como tema central durante as escolásticas ocidentais, e dentro das metafísicas mo­dernas. Não é tematizado nas filosofias de índole positivista, declaradamente antimetafísicas. Nem é tema­tizado nos neopositivismos do século XX, com os quais a preocupação metodológica se entroniza. O outro ponto é a noção de verdade. Ela perde o sentido sagrado ao surgir a filosofia — inclusive com a sofistica — retoma algo daquele sentido em Platão, combina-se com a ontologia no tomismo, que relacionava o intellectus com a res, e vai entrando em crise com o criticismo e com os pragmatismos (o de Marx e o de Nietzsche sobretudo). E também se reduz, com os neopositivismos, a um problema metodológico9.

Cf. ORTEGA. La idea deprinápio, op. cit.,passim e princ. p. 241 e 266. Para um cotejo; HEIDEGGER. Introdução à metafísica. Para o caminho de Bacon a Nietzsche, Hans Barth, Verdad e ideologia. Ver também LÓWITH. De Hegel à Nietzsche.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA É3

3. POSITIVISMO, DIREITO E POLÍTICA

Metafísicas e antimetafísicas se contrapõem, na evolu­ção do pensamento moderno, como heresias e escolásticas se contraditaram no medievo, ou como orfismos e escolas pós-socráticas se opuseram na antigüidade. A vasta cons­trução de Hegel, herdeira e resgatadora da sucessão de "sistemas" vindos de Descartes e de Leibniz, provocou refutações e variantes por todo o século XIX. O retorno ao empirismo, aliado à "crise da razão", trouxe para o cen­tro do pensar ocidental a tendência positivista, que veio a ocupá-lo junto a outros figurantes de talhe menor: o utilitarismo, o anarquismo, os ecletismos. O fascínio ainda irradiado pela figura de Hegel não impediu que dentro mesmo de sua esfera de influência se contestassem certos trechos centrais de sua obra. Deste modo a teoria da alie­nação, a partir de Feuerbach, não somente acentuaria o ca­ráter ilusório das representações religiosas, como também denunciaria todo poder como fundado sobre falsificações — contra a exaltação do Estado legada por Hegel10.

A mentalidade positivista veio do racionalismo e do iluminismo, este já com uma vertente pragmatizante, voltada para o saber empírico, como em Diderot e na Encyclopédie (que visava aos métiers). Veio também da aversão de certos intelectuais à "metafísica revolucioná­ria". Veio, portanto, do conservadorismo que recusava a teoria dos direitos, trocando-o pelos deveres (como no Catecismo de Comte); trocando-o também pela teo­ria da sociedade11. Um dos ramos ou afluentes do am-

1 ° Cf. FEUERBACH. Aportes para Ia critica de Hegel. Ver também MOYA. De Ia àudady de su ra^ón, op. cit., cap. V.

1) Sobre o positivismo, G. SOLARI, Studí Storici {op. cit.) cap. XIII. Ain­da, SPAEMANN. Der Ursprung der So^iologie ans dem Geist der Restauration, Munique: Kõsel Verlag, 1959. Complementarmente DE SANCTIS. Crisi e Scien^a, Ljtren^ von Stein — alie origini delia scien^a soáale.

Page 59: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

6 4 NELSON SALDANHA

pio movimento positivista, o evolucionismo, tomaria conta dos estudos antropológicos e históricos.

O positivismo consumou a tendência a tratar de "fe­nômenos" (não de nômenos, não de essências); no referen­te aos temas sociais e políticos, a tendência a falar em fa­tores e em elementos (dissemos isto algo acima). Com isto se criou o saber sociológico, dotado de linguagem peculiar e de problemas próprios. Criou-se também o saber econômico, que nasceu como análise de regulari-dades e de leis, e que no século XX ganharia relevos técni­cos muito especiais. E também o saber psicológico, por um lado obviamente empírico, por outro cheio de po­tenciais pretensões em relação à própria filosofia. As ciên­cias especiais se sucederiam assim por todo o século XX (psiquiatria, psicanálise, administração, demografia, tan­tas mais) vinculando interpretações parciais da realidade, cuja convergente e diversificada influência foi metendo a consciência do homem em um labirinto de auto-imagens.

Em tudo isto, o traço longo e pesado do àentifiásmo, trazendo sempre para o saber social o modelo das ciên­cias naturais. Talvez um eco, ainda, da presença quase imperceptível de Kant, cujas intrincadas análises se re­feriam Aofactum da ciência positiva. Talvez a pressão do empirismo e do pragmatismo, plantados sobre o "paradigma" do saber científico-natural.

*

O Direito e a política, dois conceitos chegados à modernidade a partir de antigas e veneráveis fontes gre-co-romanas, enfrentaram no século XIX uma contradi­ção fundamental. Por um lado mantinha-se em torno deles o essencial daquelas fontes, com os conceitos clás­sicos sobre justiça, governo, leis, obediência; por outro, a experiência ocidental se revelava como coisa diversa e exigia uma nova terminologia. Toda a teoria política mo-

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA _M

derna apresenta no fundo esta ambigüidade: ela é e não é uma continuação da antiga. O próprio Machiavelli, tão apai­xonado pelos protótipos clássicos, engendrou nova lingua­gem e expressou motivações novas.

Por algum clinamen histórico, ligado à forma como foi herdada, a teoria política concentrou, em sua traje­tória e em seu desenvolvimento, uma série de temas "substanciais" cuja discussão veio envolvendo valores, estruturas, atos e fins em sentido concreto. A teoria jurí­dica, por sua vez, concentrou-se em torno de preocupa­ções conceituais, distinguidoras e classificatórias: ou seja, em torno de problemas metodológicos. Este pendor ocor­reu, conforme foi visto anteriormente, sobretudo na es­fera do direito privado, sempre mais formal, e sob certo prisma mais "jurídico" do que o chamado direito públi­co. Mario Losano chega a dizer que no fundo a história do conceito de sistema coincide (no sentido contempo­râneo) com a história do direito privado, e em particu­lar com a do direito privado alemão12. Este é um aspec­to mais ou menos assente, mas em torno disto giram sempre algumas indagações13.

*

O advento do positivismo trouxe, para a teoria do Di­reito, uma espécie de "consciência infeliz", atormentada por antíteses internas. Sua dívida histórica em relação à metafísica

'- LOSANO. Sistema e Struttura nel Diritto, v. I, Dalle origini alia scuola storica, p. 227.

VIOLA, por exemplo, considera, partindo de uma identificação (questionável) entre dogmática e interpretação, que o século XIX pro­piciou um afastamento entre dogmática e "ciência do direito", e com isso a interpretação teria ficado excluída do âmbito epistemológico ("Ermeneutica e Diritto. Mutamenti nei paradigmi tradizionali delia scienza giuridica", em Rivista Internationale di Filosofia dei Diritto, série IV, LXVI, abr./jun. 1989).

Page 60: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

í>6

persistiu, dentro mesmo da estrutura de seus temas, de sua linguagem, de seu método; entretanto a atitude positiva repudiava a metafísica e atava os movimentos do pensa­mento jurídico a dados intransponíveis, como os textos le­gais. Quando não a ampliações predeterminadas, como na alusão a fatores sociais em sentido naturalístico14.

Positivismos distintos vêm atingindo o saber jurídi­co desde meados do oitocentos15. Implícita ou explici­tamente, toda posição positivista reinvindica em sua base uma reforma quanto ao método: abandono dos dedutivismos e das referências ontológicas, adoção do empirismo de tipo científico-natural ou do modelo matematizante (neopo-siüvista), preocupação com a "análise da linguagem". A pretensão matematizante e a análise da linguagem são, como se sabe, frutos do século XX; no século XIX a in­sistência sobre apositividaâe do Direito, como ocorreu com Bergbohm, tomada em consideração a ordem jurídica como um todo e como realidade socialmente concreta.

Dentro destas coordenadas, ou deste "clima" (o da antimetafísica do século XIX), surgiria a Sociologia Jurídi­ca, oriunda, em parte, do material histórico levantado e cadastrado pelos evolucionistas, e também da preocu­pação típica do oitocentos com o problema dos "fato­res" e das "causas" dos fatos sociais16. Surgiria também,

14 O assunto é tratado de passagem em alguns pontos do artigo de FERRA­RA. "Teoria dei Diritto e Metafísica dei Diritto" [Scritti Giuridid, Milão: Giuffrè, 1954, v. III) redigido como crítica a Carnelutti e com excessivo ímpeto polêmico. Sobre Ferrara e Carnelutti veja-se o breve estudo de Na­talino IRTI, "Problemi di método nel pensiero di Francesco Ferrara" em 'Revista áDireito Civil, Imobiliário etc, São Paulo: RT, ano 1, n. 1, jul./set 1977.

15 Sobre as diferentes acepções do termo "positivismo". WIEACKER. Historia dei Derecho Privado de Ia Edad Moderna, p. 378-379. Cf. também O T T O N E L L O . " D u scientisme au technologisme"; TRIGEAUD. Humanisme de Ia Liberte et Philosophie de Ia Justice (pp. cit., p. 121 et seq.)

16 Cf. nossa Sociologia do Direto. Registre-se o fato de que, com o equivocado questionamento dos "fatores", propiciou-se algo oportuno: a visão do fenômeno jurídico em correlação com as estruturas sociais e com o poder.

vindo do mesmo material mas implicando esquemas con­ceituais distintos, o "Direito Comparado", que ainda em sua fase de formação seria entendido como sendo um método — o que é relevante17.

Todavia, dentro mesmo do positivismo do século XIX, ainda ligado ao empirismo e ao trato com o concreto, lavrava a sutil tendência ao formalismo. Já mencionamos sua presença nos publicistas alemães da linha de Laband, de Gerber e Seydel, que buscavam evitar não apenas (e basicamente) toda metafísica, mas também toda conotação social e "política"; mais ainda, talvez, nos privatistas da chamada pandectística. O acento com que se recusava de plano todo jusnaturalismo, em nome de um direito evidentemente positivo, abria um claro no lugar do antigo e fandanteykr naturak, e este claro era como que uma forma, que tinha de preencher-se. Se nos tempos da teologia o Direito possuía um fundamento, um alto chão religioso onde inclusive crescia a idéia de uma lei natu­ral, e se com o racionalismo metafísico o fundamento jusnaturalista se explicitou como sistema, com o positivismo contemporâneo cancela-se todo fundamento desta espécie: em seu lugar, o que passa a importar é a ptópúa forma, antes função de um fundamento e agora coisa autônoma, ponto de referência para a própria possibilidade de um tratamento "científico" de determinado objeto18.

Este prestigiamento da forma, latente no juspositi-vismo do século XIX, se robustece e se consagra duran­te a primeira metade do XX, a partir da influência do

Para a origem do "Direi to Comparado" , ver nosso estudo " O s relativismos do século XX e os movimentos comparatistas em Direi­to e em economia", em Temas de História e Política.

1 Sobre a origem de uma "sistemática geral do Direito" na tratadística do Direito Natural, cf. Norberto Bobbio em N. BOBBIO e M. B O V E R O Sociedade e listado na Filosofia Política Moderna, trad. C. N. Coutinho, p. 35. Para Francesco d'Agostino, o jusnaturalismo do tipo do de Grócio se incluiu entre as "tensões unificadoras" na teoria do direito (Diritto e Secolari^a^ione, pagine di Filosofia giuridica e política, p. 41 et seq).

Page 61: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

:;; NELSON SALDANHA

neokantismo e da fenomenologia, com a conversão das cautelas didáticas de um Jellinek no radical formalismo de um Kelsen, com a tentativa de extrair do neopositi-vismo e dos novos racionalismos as bases para uma su­posta "reconstrução" da teoria jurídica. Daí o "aprio-rismo" de Schapp e de Schreier; daí o formalismo de Bobbio (e da "escola de Turim"); daí alguns ingleses, como Hart, largando o velho empirismo britânico por uma seca e insulsa "jurisprudência analítica"19.

Da mens classificatoria (Foucault falou de "saber classifi-catório" a propósito dos autores do tempo de Buffon) à dogmática pandectística — e ao céu dos conceitos, para utilizar o termo de Iherig em sua fase crítica — o pensa­mento jurídico consolidou o seu racionalismo como formalismo, quer na linha alemã com a influência da "escolástica" wolfiana, quer na linha francesa com o racionalismo do código e o legalismo da Exegese20.

4. POSITIVISMO E FORMALISMO

Os formalismos surgem sempre, como os positi-vismos, reagindo contra a "imprecisão" do conhecimen­to, ou contra a "inverificabilidade" das afirmações pró­prias da metafísica. Em ambos os casos se encontra uma confusão entre filosofia e ciência, senão uma redução da­quela a esta. A filosofia é admitida apenas como um pro­nunciamento metodológico sobre o trabalho científico, ou então como um complemento eventual.

Deste modo os formalismos vieram, no Direito, a ser um modo especial de positivismo, desligado do que

19 HART. El concepto de Derecho, trad. G. Carrió. Cf. O C A N D O . "La 'analitical jusrisprudencê' de H.L.A. Hart", em Revista da Fac. de Direi­to da Univ. dei Zulía, Maracaibo, n. 20, 1967.

20 Ver os artigos de FERRAJOLI. "La formazione e 1'uso dei concetti nella scienza giuridica e nella applicazione delia legge"; VILLA. "La formazione dei concetti e delle teorie nella scienza giuridica", em Material/ per uma storia delia cultura giuridica. Cf. também MASSINI. Ltf desintegraáón dei pensar jurídico en Ia edad moderna, passim.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA

poderiam ser resíduos da envelhecida "filosofia positi­va" do oitocentos e centrado sobre o "rigor conceituai" recomendado pela fenomenologia e pela filosofia ana­lítica21. A "objetividade" se erigiu como valor maior para o conhecimento. As filosofias de índole analítica, os pen­sadores de pendor lógico-formal (inclusive Kant) foram tomados como ponto de partida; o neokantismo jurídi­co, que viera a uma evidência maior com Stammler e ou­tros na Alemanha, com Petrone e Del Vecchio na Itália, preparou o terreno. Assim se têm as bases do formalismo mais influente do século, o de Kelsen, plantado sobre o neokantismo, o neopositivismo e a fenomenologia22.

Já nos anos 30 se falava em Methodenstreit (disputa metodológica) na teoria do Direito23. Mas após a Segunda Grande Guerra (1939-1945) o pensamento jurídico ociden­tal se enfrentou com um dilema específico. O nazismo ti­nha valorizado as filosofias "da vida", as doutrinas que fa­lavam da comunidade e da existência, repudiando os formalismos como doutrinas "abstratas"; com isto a que­da do nazismo possibilitou e propiciou um certo respeito pelo formalismo. Entretanto a mesma queda do nazismo pôs em questão o positivismo jurídico, reabriu o debate sobre o Direito Natural e veio a prestigiar as filosofias liga­das à história, à política e aos valores24.

21 CARRINO. 1^'ordine delle norme. Política e Diritto in Hans Kelsen. ("Formalismo e crise da razão").

22 Cf. nosso artigo "Situação histórica da teoria pura do direito", ora em Teoria do Direito e crítica histórica.

23 Menciono o livro de S C H W I N G E . Methodenstreit in der heutigen Rechtswissenschafi, onde o autor afirmava que o formalismo do tipo de Laband, e sobretudo de Kelsen, se achava superado no próprio plano da formação de conceitos (cf. CARRINO, loc. cit., p. 24). O texto de Schwinge foi publicado em tradução italiana em 1989, dentro da cole­tânea organizada por Carrino Metodologia delia scienza giuridica.

24 Sobre a "reafirmação jusnaturalista" nos países de língua alemã após a Segunda Guerra Mundial, RECASÉNS SICHES. Vanorama dei pen-samiento jurídico en ei siglo XX, p. 759 et. seq.

Page 62: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

?'C NELSON SALDANHA

A divergência entre jusnaturalismo e juspositivismo transformou-se então em uma opção decisiva dentro da filosofia do Direito. A revalorização do Direito Natural abriu caminho para revisões referentes à oposição históri­ca entre jus strictum ejus aequum, como problema geral e como alternativa dentro da própria prática do Direito25. O credo jusnaturalista, contudo, não se renovou suficiente­mente nem nas bases nem nas formas, repetindo quase sempre argumentos vindos da ontologia clássica, senão mesmo tradicionais alegações teológicas26. Com isto a re­construção da teoria do Direito tem sido feita de manei­ras distintas conforme a área de predomínio desta ou da­quela "posição", permanecendo um tanto exageradamente a diferença entre jusnaturalismos e juspositivismos.

Todos estes problemas se situam dentro do âmbito da crise histórica da razão (crise do logos ocidental), que já mencionamos e que é também crise dos fundamentos da civilização, com o desprestígio da transcendência e dos conteúdos maiores. Daí, conforme dissemos acima, a entronização da forma: só que a crise, de fato, alcança também a forma. No capítulo II citamos Castrucci, se­gundo o qual a forma, no período "ontoteológico", precede a decisão. No século XX, a forma se entroniza, mas ao mesmo tempo há um crise geral nas próprias for­mas; e a decisão, que alguns tentam sobrepor existencial-mente à forma, também faz parte das expressões da cri­se, isto é, faz parte da crise.

25 Ver BOEHMER. El derecho a través de Ia jurisprudência. Su aplicación j creaàón, trad. J. Puig Brutau, p. 168 et seq. Um tema conexo seria o da transformação do velho princípio rebus sic stantibus na teoria da "imprevisão" ou na da "onerosidade excessiva", em função de aspec­tos novos de um mesmo problema.

26 Cf. RECASÉNS SICHES, Jusnaturalismos actuahs comparados, ed. Univ de Madrid, 1970. Para um panorama geral, o clássico WOLF. Dasprobkm der Naturrechtskhre. Igualmente clássico CHARMONT. La renaissance du droit naturel. Ver ainda DELHAYE, Permanence du Droit Naturel, Iüle-Louvain.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA 71

5. NOVAMENTE SOBRE IDEOLOGIA

Vimos que o tema das ideologias surgiu mais ou me­nos quando se entendeu que a própria "verdade" é algo relativo, e mais: algo condicionado. Vimos que em sen­tido amplo o atributo "ideológico" se aplica a todas as expressões do espírito, mas que seu uso se tornou viável ao tempo dos positivismos gerados após a época de Hegel. A ideologização do pensamento social contemporâneo aparece, diante do papel da razão e das pretensões da ciência, como uma espécie de vitória da doxa como pre­sença constante e pesante do opinativo, do condicionado, do não totalmente objetivo27.

A linguagem das ciências sociais vem permitindo que se pense em ideologia todas as vezes que um com­portamento, um valor ou uma estrutura se relacio­nam com algum "condicionamento" social. Deste modo a política e o Direito, tal como a vida econô­mica e cultural, se remetem (a depender do esquema explicativo utilizado) a "compromissos" sociais, e en­tão adquirem cunho "ideológico". O poder, as for­mas de governo, as doutrinas políticas, bem como os códigos, a ordem jurídica e seus conceitos, tudo se torna ideológico. E sempre será possível aludir a isto, sobretudo se se distingue entre o lado técnico e o lado ideológico28: um lado implicitamente, outro explici­tamente ideológico.

Sempre será possível, então, dizer-se que o Direito como ia/tem sentido ideológico: sua linguagem — ou como alguns preferem, seu "discurso" —, seus princípios, seus

Muito equilibradas e muito lúcidas as linhas sobre o assunto em LEBRUN. O avesso da dialética, p. 163 et seq. Enrique P. Haba alude, a propósito do problema das fontes do Direi­to, a dois lados, o lógico-lingüístico e o pragmático-ideológico ("Lo-gique et idéologie dans Ia théorie des sources", em Archives de Phihsophie du droit, p. 235).

Page 63: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

72 NELSON SALDANHA

valores, sua conexão com todo o lado institucional da sociedade; sua terminologia e suas definições29. O tra­balho dos juristas, condicionado por vinculações estru­turais e políticas, quando não diretamente comprometi­do com o poder e a seu serviço: por exemplo, o austero Hugo Grócio a serviço do governo holandês e de seus interesses, ao escrever sobre a liberdade dos mares30.

Mas também será sempre possível, em contrapartida, dizer-se que o Direito como tal constitui um plano próprio dentro do conjunto das instituições, possuindo uma reali­dade que não se reduz a algo como um simples epifenômeno de tais e tais causalidades. O esforço de tratar o Direito como "resultante" de estruturas sociais ou fatores econô­micos termina por ser tão ideológico quanto a ideologia à qual se tenta reduzir a imagem do Direito. Em outro plano, todavia, se acha o esforço de evitar a ideologia evitando todo contacto com o real: o esforço de concentrar a idéia do Direito em um "objeto" restrito, assepticamente recor­tado por uma metodologia que busca afastar da teoria do Direito todo vínculo com as outras teorias sociais. E aí te­mos a própria metodologia como ideologia.

Admitir a realidade do Direito, como a realidade da política, como a da economia, como a da religião, não significa necessariamente discutir "precedências" nem "causalidades". São dimensões institucionais que se dão historicamente. Em todas elas interferem expressões ideológicas e conexões-de-sentido que obviamente po­dem traduzir algum condicionamento recíproco. A teo­ria do Direito, como a da política, reconhece os fatos, situa-os e interpreta-os, como partes da realidade. Dife­rente disto é refugiar-se na ascese formalística, conver­tendo todos os questionamentos em obsessão conceituai e em cautela metodológica.

29 BELVEDERE, Mario JORI e Lelio LANTELLA, Definiram guridiche e ideologie, Milão: Giuffrè, 1979.

30 Veja-se o estudo preliminar de ÁRIAS; GROCIO. De Ia libertad de los mares.

CAPÍTULO

METODOLOGIA E METODOLOGISMO

• SUMÁRIO •

1. Sobre método e metodologia. 2. Formalismo e metodologismo. 3. O metodologismo, uma nova teolo­gia. 4. Metodologismo, reducionismo, teologia. 5. O cha­mado rigor conceituai. 6. Outros itens

1. SOBRE MÉTODO E METODOLOGIA

As complicações crescentes dentro da vida intelec­tual moderna aumentam a impressão de contraste com as épocas anteriores e confirmam a imagem de um "pro­gresso", que entretanto continua questionável. Na anti­güidade grega os problemas "metodológicos", saídos da reflexão sobre o pensar e sobre o saber, foram de certo modo aflorados por Sócrates, colocados pelos sofistas1 e sistematizados por Aristóteles em torno do que se chamaria de lógica, com os analíticos e a teoria do raciocínio2. Os bizantinos recolheram este legado, a que cabe acrescentar entre outras coisas o contributo dos estóicos, e na Idade Média a escolástica tomou o aris-totelismo como base para um modo específico de pen-

Ver, por exemplo, G B. KERFERD. The Sophistic Movement, op cit., princ. caps. 6 e 7. Para estes temas, cf. o volume, dirigido por MATTEL La Naissance de Ia raison en Grèce (op. cit'.), passim. Cf. também, org. por DETIENNE. Les Savoirs de 1'Ecriture. En Grèce anàenne.

Page 64: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

7 4 NELSON SALDANHA

sar: um aristotelismo reduzido aos problemas compatí­veis com a fé cristã, evitando-se as direções que lhe haviam imprimido os árabes3.

A filosofia ocidental moderna, por seu turno, nasceu expressamente sob o signo do método, anunciado no título da obra mais influente de Descartes. Deste signo provieram as grandes linhas do racionalismo dos sécu­los seguintes, e com tal relevância que mesmo autores não inteiramente cartesianos, como Pascal, foram carte-sianos ao aceitar o tema do pensar nos termos do autor das Meditações Metafísicas: mesmo na ressalva pascaliana referente àjinesse e kgéometrie, achava-se o perfil cartesiano do pensar como função racionalizante.

Certamente que a vigência de determinadas tendên­cias metodológicas revela sempre, e já o dissemos, a marca de uma "concepção do mundo". Neste sentido cada grande contexto histórico mostra um correlato metodológico. E em certos períodos a própria evolu­ção do pensamento filosófico tem como uma de suas motivações maiores o desenvolvimento dos problemas metodológicos.

Um dos pontos mais representativos do percurso que veio da teologia (já residual) à metodologia, no pensa­mento moderno — então tornando-se "contemporâ­neo" —, terá sido o momento em que Kant escreveu so­bre a "Religião contida nos limites da pura razão"4. Deu-se ali a árdua e meticulosa imposição da teoria do conheci­mento sobre o saber religioso. A razão metodológica se impôs, a epistemologia passou em grande medida a co­mandar a filosofia (sem embargo das resistências, algu-

Para o referente aos árabes, QUADRI. LM Philosophie Árabe dans 1'Europe mediévale. Com Kant teria ocorrido o momento mais radical da condenação ao catolicismo, vinda de Lutero: cf. LOPARIC, apua DRAWIN. Síntese Nova Fase, p. 259.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

mas muito importantes, que se lhe opuseram). E contu­do, mesmo dentro do trabalho racional permanecem li­nhas que são permanências de um pensar teológico.

Neste sentido vale lembrar que Paul Feyerabend, em seu importante e sugestivo livro sobre o método, apon­tou a persistência de um certo sentido de mito, nas con­cepções metodológicas modernas5.

No concernente à teoria do Direito, a influência do racionalismo moderno facilmente se converteu em orien­tação metodológica. Os séculos medievais haviam sido para os juristas um severo disciplinamento conceituai, desenvol­vido com poucos contactos com outras áreas do saber, estranhas ao Direito. O humanismo renascentista havia ins­taurado um valioso movimento de críticas de textos, com discussões sobre cópias e sobre terminologia, apesar de os recursos filológicos da época serem ainda insuficientes. Na França, na Itália e em outros países os eruditos reviram obras clássicas, fizeram a crítica dos intérpretes medievais e das interpolações (emblematà), colocaram um começo de entendimento histórico dos institutos6.

2 . FORMALISMO E METODOLOGISMO

O desenvolvimento do formalismo prepara, no pen­samento filosófico-jurídico contemporâneo, a tendên­cia metodologista. Referimo-nos aqui ao formalismo em sentido genérico, à crise da ontologia e das transcen-dências fundantes. Com isto, vimo-lo acima, o espírito passou a buscar fundamento na própria forma. Refe­rimo-nos igualmente ao formalismo em sentido especí-

5 FEYERABEND. Contra o Método, op át., princ. cap. XVIII, p. 447 et seq. Para mim o mais interessante neste livro são suas críticas a Karl Popper, ao qual desmistifica impiedosamente (cf. inclusive o cap. XV, p. 267 et seq).

6 Cf. MAFFEI. Gli ini^i deWumanesimo giuridico.

Page 65: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

7 6 NELSON SALDANHA

fico, o formalismo latente na gnosiologia de Descartes e na de Kant, com a formalização do sujeito e sua redução a uma abstrata entidade pensante. É como se o subjeti-vismo cartesiano (a dúvida e o cogito como pontos de par­tida) tivesse de ser compensado com a ênfase sobre a obje­tividade da "coisa pensante", ou com a abstração do eu em Kant, antecipadora da raspagem antipsicológica pos­teriormente feita por Husserl.

Como foi dito antes, operou-se com Kant a entro-nização da Erkentnisstheorie sobre todas as outras aplica­ções do pensar. O que em filósofos anteriores tinha sido dedução de conceitos a partir de alguns dados básicos, passou a ser insistente e impenitente esmiuçamento analí­tico. Durante o século XIX, as cautelas kantianas influí­ram relativamente pouco, atropeladas inclusive pelo lar­go estender-se do idealismo romântico, pelo naturalismo evolucionista e pelos ecletismos. Na segunda metade, porém, com o neokantismo, recomeçou a vasta fiscaliza­ção gnósio-epistemológica. Grandes debates, obras no­táveis, intenso trabalho especulativo; por outro aldo, con­tudo, a tendência a omitir temas filosóficos essenciais7.

No trecho final do oitocentos, Rudolf Stammler começaria a elaboração de uma filosofia jurídica neokan-tiana, usando categorias centradas sobre a distinção en­tre "conceito" e "idéia" do Direito, em particular a ca­tegoria do querei.

_ * _

ORTEGA, aliás egresso pessoalmente dos cursos dos neokantistas, escreveu que Kant sofria de ontofobia, e que os neokantistas preferiam ficar observando as roupas, a estudar os corpos. STAMMLER. Tratado de Filosofia dei Derecho ~ A tirania do método começa, por vezes, com a preocupação a priori com conceitos que "devem" nortear a análise do tema.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

Poderíamos mencionar por outra parte a correlação entre formalismo e liberalismo, em termos histórico-culturais. O advento do credo liberal, correlato do racionalismo (e também de certa fase do jusnaturalismo), coincidiu mais ou menos com a ascensão do deísmo e mesmo do agnos-ticismo, ou seja, com a queda dos fundamentos teológicos da política (aludimos a isto no capítulo IV). O formalismo racionalista, desdobrado no ideal de uma "ciência neutra" — sem ideologia —, correspondeu ao que alguns veriam, no liberalismo, como esvaziamento e despoliti^açãâ'.

No plano especificamente jurídico, o que principalmente contou como legado "científico", após a Revolução Fran­cesa e o Código Napoleão (1804), foram problemas me­todológicos e conceituais. O saber jurídico consagrou-se como um saber formado de textos e conceitos, e o juspo-sitivismo legalista da "Escola de Exegese" permaneceu (em­bora a Escola fosse tida depois por "superada") como padrão para as relações entre o Direito positivo e as obras da doutrina10. A "Escola Histórica" acabou por revelar-se menos preocupada com a história (apesar de sua impor­tante e programática Revista) do que com o Sistema: este o sentido maior da obra de Savigny, continuado a seu modo por Ihering e essencial no amplo trabalho dos pandectistas, que levaram ao extremo o rigorismo conceituai e a visão articulada dos institutos11.

Desde logo, SCHMITT. A respeito VANOSSI. Teoria Constitucional. I. Teoria Constituyente, Poder Constituyente, p. 45, nota 15. Cf. no mes­mo sentido AYALA. TI problema deiTiberalismo, p. 46. B O N N E C A S E . T'Ecole de Exegese en Droit Civil, D o mesmo autor, Ta pensée juridique française - de 1804 à 1'heure prêsent. Cf. LOSANO, Struttura e Sistema nel Diritto, op. dt., passim. — Para uma crítica ao formalismo metodológico de Laband, com seus erros e sua carência de "visão de conjunto" — apesar do apuro conceituai senão mesmo por causa dele —, veja-se Rudolf SMEND, Constitución j Derecho Constitucional, p. 191 et seq. O texto de Smend é de 1928 e mostra as marcas da linha antiformalista alemã que em certos casos adernou para o autoritarismo, mas permanece válido como crítica.

Page 66: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

7 8 NELSON SALDANHA

Estas linhas convergiram para o predomínio de um padrão formalístico, que passou a ser o modelo mais característico dentro do positivismo jurídico, que, ao aproximar-se o século XX, abandonou cada vez mais o enfoque empírico. Aquele padrão influiu decisiva­mente para a demarcação das temáticas centrais. Mes­mo os antiformalistas terminaram por aceitar os pro­blemas postos pelos formalistas: o conceito do direito, o debate epistemológico, a gradual aproximação dian­te do conceito de "norma"12.

Racionaüsmo e racionalidade se transformam deste modo, com os primeiros decênios do século XX, em correlatos da preocupação metodológica13.

3 . O M E T O D O L O G I S M O , U M A N O V A T E O L O G I A

Evidentemente um método não é o próprio pensa­mento, mas um modo de o ordenar e de o "encaminhar". Ordenar e "encaminhar" o pensamento é algo necessário, e sobre isto se fundam os métodos, mas é daí que nas­cem os exageros metodologistas. Perde-se de vista a acepção clássica da palavra, e então o método deixa de ser ape­nas "caminho", amplia-se e se torna uma coisa avassa-lante. Todo grande modo de pensar projeta de si prefe­rências metodológicas, e isto ocorreu com filosofias como

Cf. nosso livro ~Legalismo e Ciência do Direito, passim. Ver P. HABA. "Rationalité et méthode dans le droit", em Archives de Philosophie du Droit, p. 265 et seq. D o mesmo autor, Racionalidad y método para ei derecho: es eso posible?. — Cf. também o capítulo I de CATANIA. Deásione e Norma, (reimpressão) e também o cap. inicial de A. CARRINO, UOrdine delle Norme. Política e diritto in Hans Kelsen (op, cit.). Sem maior interesse, o artigo de C. VARGA, "Quelques questions méthodologiques de Ia formation des concepts en sciences juridiques", Archives de Philosophie du Droit, p. 215 et seq. — Vale citar ainda MORAES FILHO. " O Método na Ciência do Direito", em Rev. de Ciências Sociais da Univ. do Brasil. Ver também toda a primeira parte do livro de MOZOS. Metodologia y Ciência en ei derecho privado moderno.

METODOLOGIA E METODOUGISMO

a de Aristóteles ou a de Hegel (este especificamente com a dialética); ocorreu também com Marx e Comte, nos quais a implantação do método aparece com coloração ideológica mais visível. Em certos casos o método surge como simples conjunto de indicações ou de correlações, algo como as re­gras de um jogo, que se adotam se se deseja jogar, isto é: se se pretende assumir determinada maneira de trabalhar.

O excessivo pendor pelo método, em certas linhas do pensamento contemporâneo, constituiu certamente um aumento da exigência de "rigor" conceituai, dentro do movimento crítico e do predomínio do "conhecimen-tismo" que lhe correspondeu. Entretanto, o preço foi o cunho artificial e até redundante de certos trabalhos e de certas formulações, desligadas de toda relação com a ex­periência do real e do humano.

A dogmatização da conhecida referência de Kant a uma distinção entre noumenon e phainomenon, com a con­seqüente distinção entre dever ser e ser (a dogmatização extraía estas expressões de dentro dos termos em que Kant pensou), deu àquelas distinções, sobretudo a segunda, um caráter absoluto14.

14 O Archiv fuer Rechts-tmd Sozjalphilosophie (ARSP) dedicou um número especial ao assunto: Sein und Sollen im Ehrfarungsbereich des Rechtes, com as atas do Congresso de Gardone-Riviera em setembro de 1967. O número contém alguns textos altamente críticos com relação ao dualismo. — O ensaio de KELSEN. Die Rechtsmssenschaft ais Norm-oder ais Kul-turwissenschaft. Eine methodenkritische Untersuchung (publicado no Schmollers Jahrbuch em 1916) foi incluído na coletânea italiana organiza da por CARRINO Metodologia delia Scien^a Giuridica (op. cit., p. 103 et seq). O que se nota, no tom desse trabalho, é o mesmo entono simpli-ficador e dogmático que reaparece em 1934 na Reine Rechtslchre: um tom que não é sobriamente crítico mas autoritariamente taxativo, como o dos textos teológicos! Com este entono Kelsen afirma, de partida, que o contraste entre ser e dever ser é infranqueável, servindo de base à constituição de um tipo peculiar de ciência, referente à norma. - Sobre a tentativa de Kelsen, de superar o dualismo ser-dever ser, ver Mario LOSANO em sua Introdução ("La dottrina pura dei diritto, dal logi-cismo all'irracionalismo") à Teoria Generale delle norme, p. XLIX.

Page 67: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

20

Algo semelhante se passara, nos séculos XVII e XVIII, com a idéia de uma passagem do "Estado de Natureza" ao "Estado social", que não colocava apenas o problema da origem das instituições, mas o da diferen­ça entre dois modos de ser do homem: um problema que ficou sem "solução". No século XX, a distinção entre ser e dever ser ficaria preocupando vários autores: uns retomando as análises de David Hume sobre a impossi­bilidade de passar do ser ao dever ser, outros aceitando simplesmente e sem mais a infraquebilidade do "fosso" entre ambos. Outros ainda contestando o caráter real do problema, na verdade um pseudoproblema15.

A profissão de fé monista, presente no pensamento geral de Kelsen (inclusive em sua teoria das formas de governo), se coadunou com o princípio neopositivista vienense da "ciência unificada"; mas não se compagina com a dualidade infranqueável ser-dever ser (Sein-Sollen), correspondente a dois tipos de objetos e também a dois tipos de ciência. Por outro lado, a conhecida identifica­ção entre Direito e Estado, obtida por via metodológica, corresponde a um prisma visual diferente daquele que (dentro da obra do próprio Kelsen) separa o conceito jurídico e o conceito sociológico de Estado.

*

Em princípio a preocupação metodológica, vincu­lada ao cientificismo e às tendências formalistas, deve-

15 Veja-se o monumental estudo de CARCATERRA. 11 problema delia fallaáa naturalistica: Ta derivatnone dei dover essere daWessere, onde analisa os argumentos de Hume e de outros sustentadores do caráter infran­queável do binômio. - Cf. também as observações de CATANIA. Deásione e norma, op. cit., cap. I, princ. nota 11. - Ver ainda o artigo de KALINOWSKI. "Sur Ia distinction entre le descriptif et le normatif" (comentário ao livro de J. L. Gardiès, T'Erreur de Hume) em Archives de Philosophie du droit, tomo 33, 1988, p. 387 et seq. e ademais o de Do-menico CAMPANALE, "II fondamento dei diritto tra essere e valore", em Riv. Internationale di Filosofia dei Diritto.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

ria achar-se afastada do lastro de ideologias que se veio estendendo desde o século XIX. Vimos como, de fato, o formalismo correspondeu a um certo "esvaziamen­to", uma certa despolitização do pensar, que inclusive chegou à pretensão de neutralidade científica. Esta pre­tensão se encontrava nos círculos neopositivistas, em Kelsen, em vários outros. Terá sido o legado de Kant que, atravessando os empirismos do oitocentos, retornava em um de seus aspectos, o formalizante.

Todavia o componente ideológico permanece, já como elemento próprio da cultura seculari^ada (sobretudo após a "superação" das grandes metafísicas racionalistas), já como sintoma da crise das relações entre pensamento e sociedade. São ideológicas as doutrinas reducionistas, inclusive o marxismo (ele mesmo denunciador de ideo­logias) principalmente na parte concernente à visão do econômico como fator determinante16.

Tanto em face do desejo de "evitar a ideologia" quan­to no afã de superar as versões empíricas do próprio positivismo, os positivistas formalizantes do século XX passam a empreender uma sôfrega busca da objetividade. Carl Schmitt aliás falaria, ironicamente, na "beatice da objetividade"17.

16 'A crítica da economia política era, segundo Marx, teoria da socieda­de burguesa só como crítica das ideologias", diz HABERMAS. Téc­nica e Ciência como Ideologia, p. 69. - Mas o marxismo, além de ter sido crítica do ideológico e concomitantemente ideologia, firmou-se pe­rante os seguidores como método.

17 O tradutor espanhol verte por "beatería" (Teologia Política, op. cit., p. 105), o que no original se acha como "das Pathos der Objektivitât" (Politische Theologie, op. cit., p. 54). - Escreveu recentemente Jean-Marc T R I G E A U D que o reducionismo da teoria pura, com seu cunho "anti-humanista", tornou o direito algo inteiramente abstrato: "Iden-tifié dês lors à un cercle sans origine, en jouant sur Ia double signification de 1'auto-engendrement de toute ligne circulaire, le droit est ainsi borné à une purê objectivité, par réduction de Ia subjectivité qu'il implique" ("Le cercle sans origine ou 1'eternel anti-humanisme du droit abstrait", em Archives de Phil. du Droit, p. 208).

Page 68: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

KÀ NELSON SALDANHA

A fenomenologia, criada nos inícios do século, era ela mesma a consagração do método: um método transforma­do em sistema. Com ela veio a supervalorização dos concei­tos e do conceituar — Schmitt também aludiria a isto —, correlato do castrativo penchant anti-histórico. Nesta linha se evitaram os aspectos concretos dos problemas, em aras de uma logicização impenitente. A teoria do método tomaria o lugar da própria reflexão filosófica, em um reducionismo os­tensivo, e no fundo ideológico18. Estas orientações se refor­çariam com o concurso da chamada filosofia analítica, e depois, também, com o do "racionalismo crítico"19.

Do fetichismo da lei, consolidado no século XIX, chegava-se assim ao fetichismo do método. E como na própria noção de método existe um componente nor­mativo, preceitual, é fácil entender que metodologismo e normativismo se tenham juntado desde logo. Ambas as coisas, aliás, fundadas na visão formalística que redu% o Direito a forma, retirando-lhe todos os pedaços de vida, realidade e concreteza. Daí falarem, certos autores, dos postulados da epistemologia jus-positivística, desenvolvi­dos sobretudo a partir da Reine Rechtskhre20, com o seu cortejo de seguidores e acompanhantes.

18 Um exemplo disto encontramo-lo em um texto anódino, convencio­nal e puramente formalístico como o de Uberto SCARPELLI, "II método giuridico", em BJv. diDiritto Processuak, Cedam (Pádua), 1971, ano XXVI, n. 4, p. 553 et seq. - P FEYERABEND quaüfica de ideo­logia a toda ciência que se apresenta com pretensão ao exclusivismo metodológico, isto é, que se pretende detentora do único método correto (Contra o método, op. cit., p. 464).

19 Algumas análises interessantes em D E GIORGI. Scienza dei Diritto e Ijegittima^ione, Parte II, cap. III, apesar da constante preocupação com as diretrizes marxistas.

20 Muito importante as observações críticas de Karl Larenz em sua já clássica Metodologia de Ia Ciência delDerecho (trad. E. Gimbernat Ordeig, Barcelona: Ariel, 1966), cap. III, n. 6, esp. à p. 87, onde assinala que todo o rigor exibido por Kelsen depende, para ser entendido, da c o n c e p ç ã o posi t iv is ta de ciência. Sobre o a s sun to ver ainda S C H W I N G E . "La controvérsia sui metodi nella scienza giuridica

METODOLOGIA E METODOLIGISMO 83.

4. METODOLOGISMO, REDUCIONISMO, TEOLOGIA

A crescente importância atribuída ao método e os amplos debates a respeito terminaram por fazer da "metodologia jurídica" uma disciplina autônoma: é o que pensam alguns autores21. As Methodenstreiten, dispu­tas metodológicas envolvendo especialmente formalistas e não-formalistas, ou normativistas e não-normati-vistas22, ocuparam realmente largo trecho de nosso sé­culo, ao modo dos antigos debates teológicos que se tra­varam na Idade Média. Mais recentemente, as discussões sobre método foram renovadas e redimencionadas com a influência do movimento filosófico chamado hermenêutico sobre o pensamento jurídico23.

O metodologismo dos formalistas, impelidos por um antifinalismo bastante característico, tem-se mostra­do como um incorrigível reducionismo2^. Devemos aliás

odierna", em CARRINO. org., Metodologia delia scienza giuridica, op. cit. - Sobre os mencionados "postulados" do juspositivismo ver a aná­lise de VILLA no artigo "La Formazione dei concetti e delle teorie nella scienza giuridica" (Materiali per Ia storia delia cultura giuridica, dir. por G. Tarello, v. XV, n. 2, dez. 1985, Bolonha, princ. p. 415 et seq.). -Entrementes o caráter empírico da metodologia era afirmado no sem­pre ci tado livro de B A U M G A R T E N . Grund^üge der juristischen Methodenlehre, Berna: Hans Huber, 1939.

21 Semelhante autonomia é afirmada logo de saída no estudo de G. ZACCARIA, "Deutsche und italienische Tendenzen in der neueren Rechtsmethodologie" (Archiv fuer Kechts-und So^ialphilosophie, F. Steiner, Wiesbaden, v. 1986, LXXII, 3, p. 291 et seq.).

22 Algumas referências em BOBBIO, verbete "Método" em Novíssimo Digesto Italiano (dir. Azara e Eula, Turim: UTET) , v. X. Para um panorama genérico, CARAMELLA, verbete "Método" em Enáclopedia Filosófica (Istituto per Ia Colab. Culturale, Veneza-Roma).

23 Cf. ZACCARIA. "Deutsche und italienische Tendenzen" (op. cit),passim. 24 Sobre o antifinalismo, cf. SCHWINGE em Carrino. Metodologia, op.

cit., p. 205. Paul AMSELEK, aludindo ao logicismo de Kelsen, escre­ve: "Ce réductionisme mutilateur aboutit même, en definitive, à priver les règles juridiques de toute objectivité" ("A propôs de Ia théorie Kelsenienne de 1'absense de lacunes dans le droit", em Archives de

Page 69: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

fazer uma ressalva a respeito da tendência reducionista presente nos metodologismos. Nestes não se incluem obviamente disciplinas metodológicas como o "Direi­to comparado", que sempre se apresenta como mé­todo: não há no Direito comparado nenhum forma-lismo, pois proveio dos relativismos do século XIX. O reducionismo a que nos referimos é aquele que acen­tua no conhecimento jurídico seu caráter logicizante, ligado à discussão dos conceitos como conceitos.

A semelhança entre o metodologismo e a teologia há de ser afirmada com óbvias ressalvas. Os metodolo­gismos são necessariamente reducionismos, mas as teo-logias não o são, até por não serem um saber analítico. São-no talvez no sentido apontado por Feyerabend, ou seja, no de ensejarem a entronização da infalível ventas una15. Escolásticas e teologias são correlatas, mas as esco-lásticas são analíticas, enquanto as teologias são sintéti­cas: os metodologismos seriam talvez escolásticas na forma e teologias no fundo.

A medida que o conhecimento jurídico gira em torno de questões de método, ele tende a se afastar das funções do jm\o e a prender-se ao entendimento, acercando-se muito mais do detalhismo e das distinções do que da compreen-

Philosophie du Droit, p. 285). Cabe talvez recordar que Max Weber, referindo-se ao economicismo e à sua necessidade "dogmática" de afirmação de causas "verdadeiras", escreveu que a "constante utiliza­ção do mesmo aparelho metodológico-conceitual" possui a vanta­gem da divisão do trabalho, mas tende ao irreal e ao parcial quando se trata de interpretar os fenômenos {Sobre a Teoria das Ciências So­ciais, p. 42 et seqi).

25 Preconizando a variedade de métodos, correlata da variedade de opiniões ("necessária para o conhecimento científico"), diz Feyerabend que a restri­ção à variedade em nome da coerência sempre "encerra um elemento teológico" {Contra o Método, op. át., p. 57). Por sua vez GARCIA BACCA: "El defecto radical de toda teologia dogmática (...) consiste en que (...) no tiene estructura dialectica" (Introducáón General a Ias Enéadas, p. 57).

as.

são totalizante. Por sinal o entendimento, para Hegel, ti­nha o sentido de Epitomator, aquele que separa26.

*

De certo modo valeria dizer que no metodologismo reaparecem, sob traços novos, a teologia, a metafísica e a ideologia, todas contudo expressamente repudiadas pelos purismos, pelas "filosofias analíticas" e pelos redu­cionismos formalizantes. O modelo teológico de pensar, presente no saber jurídico desde os "comentadores", retorna através de certos traços dentro das destrezas conceituais dos formalistas; a metafísica, que no jusna-turalismo clássico tinha sido aberta e expressamente a base de todo conhecimento jurídico, reaparece na idealização de certos "objetos", tais como ordenamento e norma (ou talvez conduta e liberdade, em Cossio). Claro que os lineamentos metafísicos são necessários em uma filoso­fia do Direito, mas são muito estranhos em teorias que se propõem a descartar toda alusão "metacientífica". Quanto à ideologia, ela se encontra em todas as ciências sociais contemporâneas, embora não se deva aceitar o exagero com que certos críticos reduzem ao seu condicio­namento social e ideológico todo o conteúdo daquelas ciências. Ciências, aliás, que podem apresentar também um aspecto teológico27.

Em verdade o cientifiásmo, como supervalorização da ciência (ou antes, de um determinado modelo ou tipo

26 Cf. Bernard BOURGEOIS, Elpensamiento político de Hegel, trad. Aníbal Leal, p. 28. — V. também H E G E L . Vhénomenologie de UEsprit, op. át., T, p. 14.

27 "En pleno auge de Ia burocratizada urbanización de tal sociedad (in­dustrial), Ia crisis actual de Ia ciência social quizás no sea otra cosa que Ia quiebra definitiva de su mística ilusión epistemológica como imposible Teologia Política dei Estado Industrial" — MOYA. De Ia Ciudady de su Ra^pn (op. át.), p. 19.

Page 70: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

86 NELSON SALDANHA

de ciência), é que levou à supervalorização do método, baseando-se sobre o aspecto formal da ciência, isto é, de um determinado conceito de ciência28. Com isto se abriu o caminho para novas ortodoxias, rigorismos para-teológicos que despontam dentro da própria armação conceituai das teorias formalizantes, mais preocupadas com démarches e com coerências metodológicas do que o conteúdo vivo das realidades. Aí temos o método como um novo logos ordenador. Ou por outra, passa-se do logos teológico e racional, ao metodologismo que se substitui ao logos.

Nem deixa de existir, no trabalho dos puristas e dos logicistas, uma hierática consagração de espaços, seme­lhante ao que ocorria nas religiões antigas. O objeto Di­reito (sempre há muita ênfase nas alusões ao objeto) se delimita como um espaço peculiar, com uma cuidadosa separação de áreas epistemológicas, distribuídas e do­minadas pelas diferentes "disciplinas". O método serve para coonestar e comprovar as diferenças de área: so­mente um tipo de conhecimento tem condições de pe­netrar no espaço sagrado (quase como um sanctus sanc-torum) reservado ao objeto. Com isto se criou inclusive a categoria do "puramente jurídico", algo que os juris­tas de outros séculos por certo tiveram em conta, mas tacitamente e sem explicitações. Com a noção do "estri­tamente jurídico" se tem algo sem correspondência na teoria social geral, algo que busca prender a idéia do

jurídico a um dado intransmissível, inapropriável por outro departamento do saber, e este dado segundo o

28 Assim Karl POPPER, em seu empertigado cientificismo, afirma que escreveu seu livro sobre o historicismo (na verdade uma equivocada e pretensiosa diatribe contra o que ele chama de historicismo) movido por preocupações epistemológicas: Autobiografia Intelectual, p. 176-177. — Hans ALBERT, um "racionalista crítico" mais flexível do que Popper, alude à relação entre o "falibilismo" e o "estilo metodológico da ciência moderna", em Freiheit und Ordnung, p. 32 et seq.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

formalismo é a norma. Há aí uma petição de princípio, já que a norma é jurídica por algum motivo, e o sistema (jurí­dico) é normativo porque na norma está o jurídico. Daí certa tendência ao descritivismo, tendência onde o modo fenomenológico de tratar o objeto se reduz — sobretudo com certos professores — ao truísmo e à circularidade29.

E com isto se consagraram certos tópicos de cunho teológico, em sua maioria ligados à problemática da chamada "teoria pura do Direito", cujo período de in­fluência maior vai da década vinte à década 6030. Além da sagração do espaço, teve-se a ventas una, intransigen­temente defendida, com recomendações dos prosélitos contra desvios e sincretismos. Teve-se um saber com pretensão a fundamental, um saber do qual os demais dependem: este saber, a "teoria geral do direito" enten­dida em sentido normativista31. Além disso autoridades bibliográficas postas em diferentes níveis, portanto em hierarquia, vinculada a textos também específicos. Como o latim em outros séculos, o alemão como língua litúr-gica, língua dos textos de Kelsen, hieraticamente reve­renciados. E teve-se, como na teologia aristotélica, que falava em um "primeiro motor imóvel", uma entidade

29 Em termos epistemológicos a base do descritivismo estaria, ao lado do modo fenomenológico, na adoção da problemática da qualificação: a or­dem jurídica qualifica determinados atos, relacionando-os com a espé­cie contida na norma imputado». Sempre o formalismo reducionista. A respeito, CATANIA. II diritto trafor^a e consenso, ESI, p. 83 et seq.

30 Carl Schmitt, sempre perspicaz embora tendencioso, anotou a distin­ção entre a metodologia de Kelsen e sua concepção do mundo (Teolo­gia Política, op. cit, p. 68). Schmitt aliás reconhecia a parte metodológica como "a mais original" em Kelsen. Entretanto, ao sublinhar a cone­xão do credo democrático de Kelsen com uma posição científica de tipo "matemático" e "naturalista" {op. cit., p. 106), Schmitt tropeçava em seus próprios preconceitos ideológicos.

31 Cabe anotar entretanto, a propósito desta concepção de "teoria geral do Direito", a seriedade e a competência de muitos dos que a adotam, como por exemplo um Bobbio ou um Vernengo.

Page 71: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

que sustenta e movimenta as outras no mundo-das-nor-mas, colocada a um tempo dentro e fora de tal mundo: a chamada norma fundamental32.

5. O CHAMADO RIGOR CONCEITUAL

Com o formalismo e com o metodologismo se esta­beleceram, dentro do pensamento jurídico, alguns con­ceitos basilares, obtidos quase sempre como reformulação ou alteração de termos já existentes. Assim ocorreu com o conceito de norma, cuja voga substituiu o termo "re­gra" {regula) e que pressupõe a lei positiva33; ocorreu igual­mente com o conceito de ordenamento, que Santi Romano havia veiculado desde 1917 (mas em sentido não forma-lístico) e que derivava da sóbria e sólida noção de ordem. Na teoria jurídica de língua inglesa já se usava o termo legal machinery (usar-se-ia também legal engineering), mas com conotações peculiares.

A chegada ao termo ordenamento pressupôs histori­camente o mesmo processo que, dentro do amadureci­mento da secularização e do racionalismo, levou ao uso da idéia de sistema em Direito. Kant explicitara a neces­sidade de fazer da filosofia um sistema, necessidade que Hegel consolidou e maximizou; Savigny tornou defini­tiva na ciência do Direito a tendência ao sistema. A ciên-

2 Para uma crítica breve e intransponível da Grundnorm, cf. COTTA. Giustifica^ione e obbligatorietá delle norme, cap. II, p. 35-36: ou a norma fundamental é uma norma, e portanto não é "condição transcedental" da pensabilidade das normas, ou então vem a ser um fato. A redução do conceito de norma, na norma fundamental, a um dado epistemo-lógico, nos recorda aquilo que Ortega dizia do Deus de Aristóteles, isto é, que era um professor-de-filosofía.

,3 Cf. nosso livro Legalismo e Ciência do Direto, op. cit. Para outros aspec­tos Alfonso CATANIA, Decisíone e Norma (op. cit.), p. 77 et seq. Cf. também as excelentes observações de AMSELEK no artigo "Norme et loi" em Archives de Phil du Droit.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

cia do Direito, e com ela (como ela) seu objeto - não o inverso - , teriam de ser tidos como sistemas34.

O conceito de ordenamento representou, de certo modo, a confluência entre a noção contemporânea de "Direito" (vinda da Escola Histórica, com os complemen­tos do evolucionismo) e a permanência do dedutivismo, que alimentara o jusnaturalismo e o racionalismo formalista. Com efeito, alguns traços centrais do jusnaturalismo clás­sico permaneceram no racionalismo mais recente35. O conceito de ordenamento, deste modo, aparece no sé­culo XX com implicações distintas; e quando os formalistas adotam o conceito, já utilizado por Santi Romano36, enfatizam nele, obviamente, o lado formal. Ou antes, redu^em-no ao seu sentido de forma37. As respostas não-formalistas ao livro de Romano se dispersaram em fun­ção de motivações diversas: assim temos a noção de "Direito como instituição", divulgada por Hauriou e outros, e temos a de "ordem concreta" formulada por Carl Schmitt. Historicismo, axiologismo, catolicismo e politicismo deram à idéia vertentes diversas. Enquanto isto, o rigor metodológico do purismo e do formalismo man­teve mais ou menos unitária em seus arraiais a sua pró­pria idéia de ordenamento, sempre tratada em determi­nados termos38.

34 LOSANO. Struttura e Sistema, op. àt. - Natalino IRTI situa a consoli­dação da passagem da escola exegética à sistemática (?) como algo ocorrido em torno de 1881, com a "revolução do método" e a "des­coberta da lógica jurídica" ("Problemi di método nel pensiero di Francesco Ferrara", em Reíi de Direito Civil Imobiliário etc, p. 31.

35 MASSINI. 1M desintegración dei Pensar Jurídico en Ia Edad Moderna, op. cit., p. 17 et seq. Cf. AMSELEK em Memória dei X Congreso Mundial Ordinário de Fil. dei Derechoj Fil. Social, UNAM, p. 60.

36 SANTI ROMANO. El ordenamiento jurídico. 1963. 37 Ver CATANIA. II diritto tra for^a e consenso (op. cit), passim. 38 Ver CATANIA. 11 diritto trafor^a e consenso (op. cit) p. 55 et seq., colo­

cando o problema da norma e da organização (referência, à p. 58, ao reducionismo kelseniano).

Page 72: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Destarte a utilidade formal do rigor metodológico converteu a reflexão sobre os grandes temas da filosofia jurídica e da "teoria do Direito" em uma série de ques­tões basicamente metodológicas, às vezes implicitamente presentes na própria ordenação dos problemas. A exa­gerada atenção dada às idéias de Kelsen - que tiveram sem dúvida grande importância — deslocou certos te­mas para um plano onde o que estava em questão eram delimitações epistemológicas, amparadas por exigências analíticas e espartilhos conceituais: o velho distinguo esco-lástico reeditado nas Universidades do século XX39.

6. O U T R O S ITENS

Há todavia uma série de outros itens em que o meto-dologismo exerceu influência. Entre os que aderiram à teoria "pura", ou de qualquer sorte ao formalismo, o conceito de teoria geral do direito deixou de significar o que vinha significando desde, por exemplo, Korkunov - um sucedâneo da filosofia do Direito para tratar "não-meta-fisicamente" os grandes temas jurídicos - , passando a designar um conjunto de problemas lógico-formais concernentes às categorias mais gerais da ciência "dog­mática" do Direito.

A aliança entre o formalismo metodologista e o juspo-sitivismo, que desnecessariamente acirrou a diferença entre este e o jusnaturalismo, prestigiou centralmente aquilo que se vinha chamando de dogmática jurídica (à qual Francesco Calasso havia chamado infelice parold), isto é, o estudo incontornavelmente "técnico" do Direito positivo. A pró­pria Filosofia jurídica, nas mãos de certos autores, foi atin-

9 N o Brasil das décadas 60 e 70, certos cursos de pós-graduação em Direito passaram a valorizar mais as preocupações metodológicas -até em função de conveniências políticas - do que propriamente o saber, e mesmo o pensar como tal.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

gida pela "exigência de rigor", pelo cientificismo, pelo tecnicismo e pela linha de temas do formalismo.

Entretanto, nem sempre parece fácil saber-se o que é mesmo um "problema técnico". Desde logo parece tra­tar-se de uma coisa ligada ao ideal da Fachmssenschafi, ou seja, da especialização: algo cujo conhecimento é pró­prio do especialista e exclusividade sua. Trata-se, por outro lado, de um tipo de questões onde entram distin­ções (não confundir judicial com judiciário nem prescri­ção com decadência, tal como em sociologia não con­fundir papel com status). Além disso, e com isso, trata-se sempre de um problema que envolve o "rigor" conceituai — a velha idéia da ciência como linguagem bienfaite —, o rigor da régua e do estilete: definições e classificações. Estas parecem ser de grande peso na demonstração de uma "formação jurídica" em sentido técnico.

Nas mesmas coordenadas cabe registrar a redução formalística do conceito de fontes-do-Direito. Já ocorrera o desdobramento do conceito, com o discutível dualismo que alude a fontes "formais" e fontes "materiais", um arti­fício tendente a prestigir a idéia de lei dentro da noção de fontes formais, e a manter a conveniente distância a idéia de algo concreto (e social) com a alusão às fontes "mate­riais"40. Em verdade a idéia de fonte corresponde, mes­mo mantendo-se como um paralelo a noção de "origem" (fons et origo), à imagem de algo que alimenta: "provir de" significa em princípio alimentar-se, abeberar-se. Fon­tes do Direito são neste caso realidades e processos que alimentam a juridicidade. E com isto não devemos cair no declive privatizante, que encararia a juridicidade como qualificativo de ato ou de situação, nem devemos men-

Nosso livro Lega/ismo e Ciênáa do Direito, cit. — Ver também o breve registro crítico de HUSSON. Les transformations de Ia responsabilité. Etude sur Ia pensée juridique, p. 58 et seq.

Page 73: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

9 2 NELSON SALDANHA

cionar somente o "sistema" (sistema-de-fontes): aludi­mos à ordem como um todo e ao seu correlato herme­nêutico, vez que de ambas as coisas — ordem e herme­nêutica — se compõe o que se chama "Direito". A idéia formalista, segundo a qual o Direito estabelece o modo de sua própria produção (uma afirmação truística no sentido formal e questionável fora dele), teria o que ver com a noção de um realimentar-se, mas só no sentido positivo-normativista, não no sentido real, concernente ao Direito como ordem situada e condicionada.

Reducionismo análogo ocorreu ainda, dentro do pensamento formalístico, com o conceito de validade, que sempre teve um sentido axiológico, significando, na teo­ria jurídica, um atributo afim ao de "autenticidade", "legi­timidade" ou simplesmente "valor"41. A partir de Kelsen e de sua influência, validade (em alemão Geltung) passou a designar uma coisa puramente formal. Assim Kelsen, ao aludir à validade, que se apressa em distinguir da "eficá­cia"42, dá-lhe sentido meramente formal ao prender seu conceito ao de "dever ser" e ao vinculá-la a um "funda­mento" que afinal remonta à "norma fundamental": vali­dade resulta ser a presença de uma norma tomada em sua própria positividade, e com a possibilidade de ser remeti­da a um fundamento normativo. O que é de fato muito

Garcia Maynez, como se sabe, se deteve pacientemente sobre o pro­blema da validade, sugerindo inclusive a imagem dos "três círculos" secantes, correspondendo à distinção (e relação) entre validade for­mal, validade intrínseca e positividade: cf. La definiáón dei derecho, cap. IV (há uma edição revista, em Xalapa, México, 1960). Infelizmente Garcia Maynez não se liberta do esquematismo. Sobre o assunto, REALE. Filosofia do Direito, v. II, p. 525 et seq.

Na verdade Kelsen, ao refutar as duas posições, que menciona, sobre validade e eficácia (a que declara a independência da validade em relação à eficácia e a que identifica uma com a outra), parte de uma idéia específica do que seja "validade" e que lhe permite situá-la no plano puramente formal do "dever ser da norma": cf. KELSEN. Teoria Pura do Direito, p. 38 et seq.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

formalismo43. Nesta ordem de idéias, como se sabe, Kelsen aludiu à norma fundamental {Grundnorm) como ponto de referência para mencionar e sustentar a óbvia e interminável remissão de cada norma ao seu fundamento normativo — sempre preocupando-se muito, de resto, com que não se confundisse a norma fundamental, persona­gem muito específica de sua obra, com outras coisas, como o Direito Natural por exemplo44.

*

Cabe registrar, todavia, que a tendência a transformar a teoria (e a filosofia) do Direito através de podagens e amputações metodológicas, jamais deixou de receber crí­ticas, já no campo específico da própria filosofia jurídica, já dentro de expressões diversas do pensamento jurídico. Em geral se increpa ao formalismo e ao normativismo o resultado empobrecedor, no sentido da temática, em fun­ção do reducionismo que lhes corresponde. Assim, por exem­plo, Paul Amselek, em estudo sobre a teoria das lacunas do Direito no pensamento de Kelsen, ao aludir ao "logi-cismo" da chamada teoria pura do Direito, menciona o "reducionismo mutilador" que arbitrariamente cancela das regras jurídicas todo elemento não formal45.

43 Seja exemplo deste tipo de pensamento a série de tautologias que consta do artigo de COMTE. "Validità", no Novíssimo Digesto Italiano, onde se lê que "Ia validità non è altro che Ia validità, 1'existenza di una norma", ou seja, não corresponde nem à justiça nem à eficácia (p. 420); à p. 421 expres­sa sua completa adesão ao sentido formal da Geltung de Kelsen. Para uma crítica, COTTA. Giustijica^ione e obbligatorietà delle norme, op. cit., p. 33.

44 Teoria Pura do Direito, cit., v. II, p. 38 et seq., 56 et seq. Cedemos à tentação de mencionar aqui o título do capítulo 16 da Introducción General a Ias Enéadas, de GARCIA BACCA {op. àfy. "Vivência de Io absoluto y dialectica descendente!"

43 Cf. supra, nota 24. Larenz observou (Metodologia, cit, p. 88) que Kelsen não conseguiu manter a total separação entre ser e dever ser, que é seu ponto de partida. Isto, agrega, não seria uma objeção se Kelsen pensasse dialetica-mente; "pero no existe nada de Io que Kelsen pueda estar más alejado".

Page 74: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

após o humanismo renascentista, e contudo a perma­nência de certos traços da fase teológica. Permanência da marca escolástica sobre o modo de pensar do jurista, tão bem patenteada por Otto Brusiin.

Mas a transformação do saber jurídico em uma ou­tra teologia é algo distinto, e não abrange todo esse sa­ber: configura-se no formalismo normativista como um aspecto que há de ser considerado. Destacar este aspec­to envolveu uma série de sublinhados que podem pare­cer excessivos. Estamos, há cem anos, em um tempo de relativismos e tipologias, e nele os maniqueísmos (como o que existiu no normativismo) não devem florescer.

Escrevi para a presente edição um texto adicional, a título de Posfácio, retomando o problema desde as ba­ses, resumidamente, e sugerindo algumas tematizações novas, entre outras a concernente ao tema da legitimida­de, que com a secularização assumiu novo sentido. Seria longo e descabido refazer todo o trabalho, mas o leitor terá no Posfácio um breve guia para reconsiderá-lo.

O mesmo leitor concordará em que uma crítica ao formalismo se refere a um tipo de pensamento jurídico, e não ao direito como tal. O direito sempre poderá ser visto como forma (não "puramente" forma), que dá certeza e clareza ao convívio dos homens entre si e ao seu trato com as realidades da vida. Certeza e clareza relativas, sempre necessitadas de reinterpretação.

E de novo meus agradecimentos, que repetem os da primeira edição e que agora se acrescentam com o regis­tro do valioso estimulo de diversos alunos e ex-alunos, no Rio de Janeiro, no Ceará, na Bahia e em Pernambuco.

Recife, em fevereiro 2004.

XVI

1 CAPÍTULO

INTRODUÇÃO

• SUMÁRIO •

1. Alusões iniciais. 2. Secularização e visão da história. 3. Secularização, teologia e ideologia. 4. Visão histórica da teoria jurídica. 5. Para uma concepção histórico-crítica dos métodos.

1. ALUSÕES INICIAIS

O "Direito" como processo, como atividade de ór­gãos específicos, o "Direito" como realidade cultural com­plexa e como constante histórica; ao seu lado a "Ciência Jurídica", o saber concernente àquela realidade ou apli­cado naquela atividade: eis algo que tem assumido, em certos momentos ou para certos espíritos, um cunho de mistério. Inclusive em Kafka, com a tensa narrativa do drama do homem posto diante de poderes desconheci­dos e de conexões pouco inteligíveis. O mistério, na aná­lise célebre de Rudoph Otto, é tremendum e é fasánans, mas nos labirintos de Kafka parece dar-se predominan­temente o misterium tremendum.

A perplexidade do leigo diante da linguagem do Direito tem sido um dos fatores que criam a impressão de mistério em torno do fenômeno jurídico. Por outro lado o Direito, em sua aplicação, significa concretamen-te, em muitos casos, o perder ou o ganhar: significa o surgimento de resultados ansiados ou temidos. A lin-

Page 75: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

guagem jurídica (e não é sem propósito que está posta logo acima a palavra "leigo") foi em certas fases irmã da linguagem teológica. Foi ritualística e rigorosa, não apenas nos atos e na prática, como também nos textos, no conhecimento referente aos atos e ao seu fundamento: formulismo processual no Direito romano antigo, referên­cia a autores, a conceitos e a "autoridades" no próprio e no medieval. No Direito medieval, a ciência jurídica em mãos de clérigos, ou assimilada ao saber dos clérigos por seus caracteres formais. Sempre, e até hoje, o culti­vo de um vocabulário específico, cujos portadores se orgulham de dominar, como nota distintiva em face de outros saberes, e em face da linguagem comum. Tudo isto, aliás, sociológica e epistemologicamente compreen­sível. De qualquer modo, o certo é que, vez por outra, aparecem alusões ao sentido esotérico ou esoterizante da ciência jurídica, e até ao seu cunho de mistério.1

*

O presente estudo não constitui, evidentemente, uma pesquisa sobre a metodologia da ciência do Direito. O que ele visa é apreender um dos aspectos da evolução do saber jurídico, desde as implicações teológicas de suas formulações mais antigas, até os positivismos moder­nos com suas peculiares projeções metodológicas. Não pretendemos tampouco vasculhar o problema da "lin­guagem jurídica", hoje deleite de alguns especialistas. Não por desconhecer a importância da linguagem (cabe recordar o dito de Condillac, segundo o qual criar uma ciência não é senão estabelecer uma língua, sendo a ciên-

BOORSTTN. The mysterious sáence of the Faw, Harvard Univ. Press, 1941. Ao publicar em 1776 o seu Fragment on Government, aliás surgido sem o nome do autor, Bentham critica duramente o consagrado Blackstone, considerando ficções e fantasias muitas das noções assentes no pensa­mento europeu de então (Fragmento sobre ei Gobierno, trad. J. L. Ramos).

INTRODUÇÃO

cia uma "linguagem bem feita"), mas por dirigir o questionamento para problemas de outra índole.

Desde que se descobriu a importância do pensamen­to de Viço, o que como se sabe tardou a acontecer, com­preendeu-se que ele correspondeu a uma alternativa em face do pensamento de Descartes2. Ou antes, a uma ou­tra via, talvez oposta, talvez paralela e complementar, em relação ao racionalismo linear e conceituante do carte-sianismo. A linha cartesiana, cuja relevância no mundo moderno não há como diminuir, levou entretanto ao logicismo e ao cientificismo (isto é, ao cientificismo mate-matizante), enquanto a linha viquiana levaria ao histo-ricismo, à compreensão e à hermenêutica.

2. SECULARIZAÇÃO E VISÃO DA HISTÓRIA

O corpo do trabalho alude ao processo chamado de secularização da cultura. Este processo, ao qual temos aludido em vários outros estudos, constitui sem dúvida um fenômeno histórico fundamental, como lastro pro­fundo sobre o qual se situam e se entendem diversas ocor­rências. O conceito de secularização, no sentido em que o empregamos, aparece em uma de suas primeiras explicitações na obra de Max Weber3, correspondendo de certo modo às idéias de Comte sobre a passagem do espírito teológico ao metafísico e ao positivo, e talvez às referências de Viço ao advento do mundo "humano"

Cf. CROCE. Fa Filosofia di Giambattista Viço (ver principalmente o cap. I). Cf. também PERELMANN; OLBRECHTS-TYTECA. Traité de 1'Argumentation. Fa Noupelle BJthorique (Principalmente as linhas iniciais da Introdução).

Em Weber a idéia de secularização, ou dessacralização, vem coligada à de racionalização e à de burocratização, no meio de suas minudentes exemplificações, que com freqüência seccionam e fragmentam a conti­nuidade dos textos teóricos. Cf. Economia j Sociedad, trad. J. M. Echevarria, Roura Parella, E. Imaz, E. Garcia Maynez e J. Ferrater Mora. Passim.

Page 76: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

com seu correlato de prosaísmo4. Há também, contudo, um uso do termo secularização dentro da literatura cató­lica, uso presente inclusive em pensadores do Direito5.

Estas alusões indicam os esquemas históricos que utilizamos. Os estudos de Weber, que nem sempre se prendem ao conceito de secularização (ao menos ex­pressamente), podem ser, para o concernente aos mo­delos históricos, completados com os de Hannah Arendt, sempre sugestivos apesar de discutíveis. A validade de certas idéias de Augusto Comte (mencionado linha acima) é correlatada de algumas idéias de Marx, sobre as quais se vinha (ou vem) aplicando o fanatismo dos seguidores incondicionais, e também a intransigência dos contestadores radicais. A nosso ver a história se des­dobra em histórias que são as das diversas civilizações, e a trajetória de cada civilização apresenta quase sem­pre um sentido de complicação crescente, que é a um tempo urbanização, burocratização, racionalização, se­cularização, de sorte que ao olhar o todo somos tenta­dos a ver como percurso global uma série de linhas que preparam ou conjugam aqueles traços6. Há sem­pre labirintos, desde os das antigas mitologias aos do "organizacionismo" contemporâneo. Superpomos es­tes labirintos em função da exemplaridade assumida por certas imagens7.

Giambattista VIÇO. Cienàa Nueva, ttad. J. Camer. CROCE. ha Filoso­fia di Giambattista Vim, passim.

Cf. D 'AGOSTINO. Diritto e Secolari^a^ione, Pagine di filosofia giuridica e política, passim e esp., p. 205 et seq., 234 et. seq.

HABERMAS alude à presença dos esquemas interpretativos, geral­mente bipolares, no pensamento social moderno: do status ao contra­to, da comunidade a sociedade, domínio tradicional e domínio buro­crático, etc. (Técnica e Ciênda como "ideologia", trad. A. Morão, p. 56). Sobre a exemplaridade em história, cf. nosso ensaio incluído em Hu­manismo e história, Rio de Janeiro: Fundarpe/José 01ímpio,p. 34 et seq.

INTRODUÇÃO

3. SECULARIZAÇÃO, TEOLOGIA E IDEOLOGIA

Nas ciências sociais contemporâneas, o que tem ocor­rido, grosso modo, é uma crescente abertura para o debate crítico. A sociologia, que surgiu basicamente dentro da análise da "crise" proveniente da Revolução Francesa, mas que ao mesmo tempo recebeu a influência do racio-nalismo iluminista, não poderia ter-se furtado ao deba­te: daí ocorrer em seu âmbito um dualismo que enfeixa o formalismo a-histórico, de certo modo conservador, e o não-formalismo, inclusive com a questionante críti­ca da própria sociologia, como veio a ocorrer com Wright Mills8. Na ciência jurídica um certo fechamento, inclusive em relação as outras ciências sociais, sempre propiciou a persistência de uma auto-imagem onde o componente forma entra decisivamente. Não cabe aqui questionar com mais demora a distinção entre reconhe­cer no objeto "Direito" um sentido formal e aceitar para seu estudo métodos puramente formais (Bobbio inclusi­ve escreveu sobre isto), mas o formalismo como tal apare­ce como constante, no pensamento jurídico moderno, dentro de uma espécie de racionalismo que se mostra às vezes bastante anacrônico.

Este formalismo, que sob certa mira mostra-se pró­prio do jurista, ocorre em determinados casos como acomodação didática, assumindo inclusive a forma de supervalorização de certos nomes: quase uma volta do culto das "autoridades" tal como foi conhecido no Direi­to Justinianeo e no medieval. No Brasil, Tobias Barreto denunciava com carregada ironia o excessivo apego dos civilistas de seu tempo a Pothier ("o Pothierzinho"), e hoje não seria exagero afirmar que o nome de Kelsen ainda representa para certos professores - em número

Wright MILLS. A Imaginação Sociológica, trad. W Dutra.

Page 77: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

cada vez menor, felizmente — uma autoridade suprema e quase divinizada.

A nosso ver, um dos grandes problemas àoformalis-mo é a sua tendência reduáonista. O formalismo cancela de seu objeto (e o termo "objeto" é sempre muito caro aos formalistas) tudo o que não atenda a um determina­do (pré-determinado) molde epistêmico, estabelecendo que conhecer a forma é suficiente para conhecer a coisa. Evidentemente o conhecimento da forma é algo muito importante, pois o homem conhece basicamente formas; mas com elas busca conhecer sentidos, isto é, busca com­preender. Os formalismos não são, entretanto, a única espécie de reducionismo, pois este se encontra inclusive nos positivismos empiristas, cuja tendência tecnicista sem­pre se contrapôs ao humanismo abrangente9.

A alusão à história vale, no presente trabalho, como alusão à história das sociedades, em acepção geral, e tam­bém à história do poder e das estruturas, das crenças e dos valores, dos comportamentos e dos preceitos. A realidade histórica é em si mesma irredutível aos esquema-tismos, sobretudo os demasiado simétricos, mas é sem­pre necessário, para situar as coisas na história, adotar algum esquema. Daí a alusão a fases; daí a idéia de uma "fase teológica" vinculada à de uma secularização.

Retornando assim por um momento ao problema da secularização, temos que para entendê-la é preciso aludir a uma "fase teológica", ou em outros termos a um padrão cultural teológico. Este padrão será entendi­do evidentemente como produto histórico, o que aliás já foi afirmado — embora com equipagem conceituai algo

9 Mencionamos "humanismo" no sentido amplo, mas sempre com referência à matriz moderna situada no humanismo renascentista. Aquele sentido e essa matriz se encontram referidos no livro de GRAFTON e JARDINE. From Humanism to Humanities.

INTRODUÇÃO

tosca — por Thomas Huxley10. Contudo a historicidade do padrão teológico não corresponde apenas à sua tran-sitoriedade, eis que ele é "superado" pelos padrões ra­cionais, mas também à sua permanência, pois que ele persiste, sob formas mais ou menos discretas, dentro do racionalismo que o sucede. Talvez se realize nisto a ima­gem hegeliana da acumulação, que traduz a conservação do que foi eliminado, enriquecendo (complicando) a experiência cultural, permitindo a passagem às sínteses.

*

A referência a épocas e a linhas históricas envolve, dentro de temas como o deste trabalho, uma necessária visão seletiva: em parte se aceita a tradicional tripartição dos tempos (antigüidade, medievo, história moderna), em parte se adota a visão das culturas, remodelada em função de idéias como contextos e durações.

Parece aceitável que no período inicial de cada uma das grandes civilizações — há quem prefira dizer "socie­dades históricas" — ocorreu o predomínio de uma visão religiosa do mundo, que teve como correlato um modo teológico de pensar. Isto terá inclusive acontecido nas sociedades egípcia e babilônica, nas quais a burocrati-zação, enquanto "racionalização", veio com a crise da religiosidade inicial. No caso grego, convencionou-se

T. HUXLEY, Science and hebrew tradition, Essays (Londres: Macmillan, 1895): "From my present point of view, theology is regarded as a natural product of the operations of the human mind, under the conditions of its existence, just as any other branch of science, or the arts of archicheture, or music, or painting are such products. Like them, theology has a history." (p. 288). Junto com Huxley, vale citar seu contemporâneo de Oxford, MÜLLER. La Science de Ia Religion (trad. H. Dietz, Paris: G. Baillière, 1873). Vale igualmente reter que toda religião é uma ordem normativa, constante de recomendações e interdições, prescrições e regras: regras de culto, regras de conduta, regras individuais e coletivas.

Page 78: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

8 NELSON SALDANHA

considerar que após o período religioso sobreveio um padrão racional: Nestle expressou a coisa com a famosa fórmula "Vom Mytbos %um Logos". Na verdade o proces­so se relacionou com vários fatos histórico-sociais. O trânsito à racionalização, ou seja, a secularização, ocor­reu exemplarmente na cultura européia (ou seja, no "Ocidente"), com a queda dos modelos teológicos e com a gestação do iluminismo; depois é que os historiadores caracterizaram como análogo o ocorrido na Grécia. Como dissemos acima, Comte percebeu os caracteres do fenômeno, e Weber referiu-se a ele em termos que tiveram larga influência.

Entretanto a racionalização, que é um lado da secu­larização e que substitui o modo teológico de pensar por uma série de esquemas novos (ligados inclusive a uma realidade histórica nova), não elimina de todo os componentes teológicos anteriormente dominantes. Isto ficou afirmado linhas acima. Assim a metafísica, que se constrói na Grécia após a crise do pensar religioso, con­serva evidentes traços teológicos: no caso o poema de Parmênides, no caso a concepção platônica das idéias e da verdade11. No Ocidente moderno, marcas do pensar teológico continuam perceptíveis em Hobbes e em Locke, e mesmo ainda em Hegel. Secularização, ma non tanto11.

1 ' Sobre os pré-socráticos, entre outros, Olof G I G O N , Los orígenes de Ia filosofia griega, de Hesiodo a Parmênides, trad. M. C. Gútiez; CORNFORD. Prinápium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego, trad. M. Manuela R. Santos; Cf. também os fragmentos coligidos por M. Grünwald: Die Anfãnge der abendlãndischen Philosophie (Munique: Artemis Verlag, 1991). Para o caso da "verdade" platônica, voltare­mos ao assunto adiante. Para o de Parmênides, ver o estudo de COR-DERO, inserido em A A W (org. por J.-F. MATTEI), 1M naissance de Ia Raison en Grice, p. 207 et seq. — Cf. ainda Antônio A. Gorri, Estúdios sobre los presocraticos, passim.

12 Escreveu certa vez Mircea Eliade que o historicismo teria provindo da decomposição do cristianismo. Mas entre o cristianismo — o medieval, quero dizer — e o historicismo medeia o racionalismo "moderno", com

INTRODUÇÃO 5

Vêm depois os positivismos, que radicam no ilumi­nismo (em uma parte do Murninismo), mas que o negam na medida em que se apoiam sobre empirismos e sobre uma massa de conhecimentos que os homens do setecentos não possuíam. Os positivismos (evolucionismo, biologismo, etnologismo) não desmentem o racionalismo, evidentemen­te, mas de algum modo abrem um caminho à teologia, como nas bizarras concepções da fase final de Comte: dir-se-ia que de dentro das retortas e dos livros, no gabinete de Fausto, surgem demônios novos. Os positivismos, contu­do, dentro de sua linha central, são cientificismos, geral­mente comprometidos (como o próprio üuminismo) com programas de ação social: são portanto, sob certo prisma, ideologias. Por outro lado, o seu esforço de afirmação contra os não-positivismos, principalmente contra as concepções "ainda" metafísicas, das quais precisam distinguir-se, leva-os a uma constante e obsessiva preocupação metodológica. Este é um problema central.

As ideologias, voltadas a explicar as coisas em fun­ção de um motivo concreto que pode ser mais genérico ou mais específico, e que se articulam como "condena­ção" e "aprovação" de determinados valores, conservam portanto algo do padrão teológico. Desde logo o exclu-sivismo: cada ideologia considera as demais como ne-fandas e errôneas, estabelecendo sua explicação como única satisfatória, apta inclusive a explicar os erros das outras. Em seguida a tendência escatológica, designada­mente em certos casos: a descrição do processo histórico se transforma na anunciação de eventos em que se cum­pre o destino dos homens e das coisas. Mas conservam

seu derivado o criticismo; e ao lado do historicismo, ou em sua esteira, o metodologismo (vindo dos formalismos críticos e do neopositivismo) aparece como produto tardio que se distingue do historicismo por não se voltar à compreensão do fato de ser tardio Sobre a historicidade da pró­pria razão, e portanto da idéia de "Direito como razão", ver PERELMAN-TYTECA. Traité de lArgumentation, p. 1.

Page 79: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

•Kl ^ _ _ NELSON SAjJWHA

também um tanto do raáonalismo, inclusive em sua pecu­liar pretensão de objetividade, justamente uma preten­são que complementa e avaliza o exclusivismo.

Por sua vez a elaboração de grandes metodologias representa uma conseqüência do raáonalismo, ou antes, do componente de raáonalismo que se guarda na base dos positivismos. Isto se aplica às preocupações episte-mológicas de Comte e de Stuart Mill, bem como às in­tensivas reflexões dos neokantistas — ressalvado que a estes não se aplica propriamente o rótulo de positivistas. Este rótulo vem sempre de um mal-entendido de certos historiadores. Há entretanto, na permanência das for­mulações metodológicas — e sobretudo nos "debates metodológicos" —, um certo retorno à teologia: um questio­nar por questionar, um refletir sobre como fazer mais que sobre o que fazer, um pairar em logomaquias, em problemas esotéricos e em truísmos.

Temos assim que os reflexos da secularização da cul­tura sobre o pensamento jurídico, principalmente o mo­derno, levam a teoria do Direito (inclusive e malgrê tout a filosofia jurídica), desprendida já da antiga teologia, a en­trar em um corte formalista e a se transformar numa vasta e automotivada, autopropulsionada metodologia. Entretanto o pensamento jurídico parece conservar traços teológicos que ressurgem neste metodologismo, e aí está um processo que importa registrar. Passa-se aos poucos, no meio das crises e das complicações do pensar saturado, da fé no método ao método como fé.

A alusão a traços teológicos nas ideologias não tem que causar estranheza, até por ser próprio do prose­litismo ideológico o cultivo de uma mística interna. Nos séculos XIX e XX a proliferação dos ismos tem demons­trado esta mística13. Nos positivismos, porém, a ocor-

Cf. nosso estudo "Do maniqueísmo à tipologia", ora em Humanismo e História, cit., p. 57 et seq.

INTRODUÇÃO H

rência de traços teológicos se apresenta como contradi­ção; no caso dos positivismos do século XX, que são formalismos e metodologismos, esta contradição pare­ce mais aguda. Parece-o, na medida em que seu perfil doutrinário se caracteriza pelo repúdio à metafísica, e portanto, implicitamente e afortiori, a todo pensamento não "científico".

Entretanto cabe observar isto: uma coisa é a consciên­cia metodológica, que sempre deve ocorrer e que dá às diversas ciências fisionomias diversificadas. Outra coisa o que chamamos metodologismo, a mania ou pelo menos a preocupação excessiva que chega a fazer do método, ou dos problemas metodológicos, um fim em si, em vez de apenas meio. E não precisamos chegar ao ponto aonde chegou Eliot, que dizia que o único método consiste em ser inteligente. Podemos inclusive esperar que o exagera­do apego ao método como tema tenha sido somente um ponto de passagem, um fruto do entusiasmo formalista e do cientificismo excessivo.

4. VISÃO HISTÓRICA D A TEORIA JURÍDICA

Falamos, há pouco, na necessidade de conhecer as coisas na história, donde a importância de montar es­quemas (ainda que sejam flexíveis e mínimos) para or­ganizar a visão histórica das coisas. Obviamente o que mencionamos aqui é o interesse filosófico dessa visão — por incrível que pareça ainda há quem o ignore —, inclusive para a Filosofia do Direito: referir-se a pro­blemas históricos é aludir aos problemas mais reais do pensamento jurídico. E quando os problemas históri­cos são vistos como histórico-culturais, os esquemas correspondentes devem atender às chamadas conexões-de-sentido: nelas se acham (e isto constitui, como em Weber e em outros, o método da compreensão) os signi-

Page 80: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

I.'. NELSON SALDANHA

14 Permitimo-nos remeter ao nosso "Historicismo e Culturalismo", e também a "A obra de Dilfhey e o Mundo Histórico", incluídos em Historicismo e Culturalismo.

15 Sobre ius, com seus correlates lingüísticos inclusive védicos e iranianos, ver Georges DUMEZIL. Idées Romaines, p. 31 etseq. Ao enfoque lingüístico valerá completar com o antropológico, conforme o sugestivo estudo de O. BEHRENDS. "Anthropologie juridique de Ia jurisprudence classique romaine", Reme historique de Droit français et étranger.

INTRODUÇÃO 13

guir permanecerá como peculiar ao pensamento jurídico, e é desnecessário apontar para as analogias daquele defi­nir e daquele distinguir, em relação ao pensamento teoló­gico posterior. Não seria extrapolante indagar, aliás, se a moderna preocupação com métodos, dentro do saber jurídico, teria algo a ver com estas antigas e ilustres raízes, desde muito cedo misturadas ao pensar teológico: um atavismo.

Na verdade o que se chama "pensamento jurídico"16

consiste em uma longa elaboração-reelaboração de te­mas, que se formam em torno de alguns conceitos es­senciais (essenciais segundo cada época), conceitos que incluem alusão a problemas e a "sistemas". A alusão a sistemas é, às vezes, implícita, sendo a nosso ver um fal­so dilema a opção entre sistema e problema.

Esta visão do pensamento jurídico como produto histórico não exclui certamente a indagação epistemo-lógica: não exclui a aplicação, à "ciência jurídica", da tipologia neokantiana que classifica as ciências em posi­tivas (ou naturais) e culturais (ou do espírito, ou huma­nas, ou sociais). Mesmo por que esta tipologia, e com ela a teoria do conhecimento dos neokantianos, surgi­ram em uma dada época, na qual por sua vez a ciência jurídica — vindo das mãos da Escola Histórica e da Pan-dectística — aparecia como uma construção conceituai bastante definida.

Por sinal que os adeptos do positivismo formalístico não definem a ciência jurídica como ciência positiva no sentido dos neokantianos (isto é, como ciência distinta das ciências culturais), embora pretendendo fazer dela um conhecimento positivo e, se possível, matemático; mas também não a definem como ciência social. O pró­prio Kelsen, em ensaio famoso, onde discutiu a possibi-

16 Cf. BRUSIIN. Elpensamiento jurídico, trad. J. P. Brutau.

Page 81: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

II NELSON SALDANHA

lidade de encaixar a ciência jurídica no sistema de Rickert, tende a recusar o rótulo de ciência cultural, que inclusive envolve a idéia de valor. Neste ensaio, onde tentava refu­tar as idéias de Emil Lask, Kelsen adotava sem mais e de saída a noção de direito-como-norma, afirmando como um axioma a separação absoluta entre ser e dever ser. A ciência jurídica caberia então o título de ciência normativa17. Com este título, na verdade questionável (uma ciência não pode ser "normativa"), o criador da "teoria pura" consolidava a ambigüidade própria do formalismo, ao escapar à sistemática epistemológica neokantiana e ao ancorar sua positividade sobre um objeto abstrato, o "dever-ser". A posição normativista, sendo e ao mesmo tempo não sendo "filosofia do Di­reito", terminou crescendo como uma proposta meto­dológica ampliada em "teoria" autônoma. Somente a larga presença de preocupações metodológicas no pensa­mento jurídico contemporâneo (sobretudo desde Gerber e Laband) poderia na verdade explicar que tão larga parte do pensamento filosófico ocidental se ocupas­se com os temas da chamada "teoria pura", com o fim de assimilá-la ou de refutá-la.

5. PARA UMA CONCEPÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA

DOS MÉTODOS

Sempre acontece, com a elaboração de um trabalho como este, que as anotações em que se baseia não abran­gem todas as questões, de modo que certos aspectos fi­cam insuficientemente desenvolvidos. A coordenação das

17 KELSEN, "La giurisprudenza come scienza normativa o culturale. Studio di crítica metodológica", em A A W , org. por A. Carrino, Metodologia delia sàen^a giuridica (trad. A. Carrino e G. Stella. p. 103 et seq. O tom de Kelsen, tal como na maioria de suas obras, não é bem o da análise "crítica", assumindo em certas passagens o m o d o dogmático e autoritário do teólogo.

INTRODUÇÃO :iü

partes e a redação dos textos termina por cancelar idéias que estiveram presentes nos primeiros passos, algumas in­clusive sugeridas por leituras específicas. Parece-nos contu­do aceitável este tipo de trabalho, em que certos pontos se perdem, como seixos que rolam à subida de uma encosta, ou se sepultam no meio das notas preparatórias.

Aqui retomamos algumas tentativas de reflexão histó­rico-crítica, expressas em outros livros, onde a visão crítica não se confunde com certos modismos, como os consis­tentes em falar no Direito como "discurso do poder" e outras coisas: este tipo de crítica, mais ataque do que críti­ca, se toma por vezes mais ideológica do que a ideologia que visa a denunciar. A função do enfoque histórico consis­te precisamente em permitir que se compreendam em sua plenitude os dados da experiência, evitando os reducionis-mos e os unilateralismos. Por isso mesmo não nos preocu­pamos em "defender" a ciência jurídica de certas denúncias (uma das mais célebres, a de Kirschmann, já foi por várias vezes refutada), nem em "negar" isto ou aquilo: o propósito negativista, sempre presente nos appwaches diversionistas e naqueles que nascem do ressentimento, cai geralmente em reducionismos e em unilateralismos, equivalentes aos dos enfoques a-bistóricos.

*

Os métodos em princípio refletem concepções do mundo. Dilthey colocou o assunto em seu sempre recor-rível livro sobre a teoria das concepções do mundo. E em vários momentos da história das idéias se encontram op­ções metodológicas a refletirem posições ideológicas ou de qualquer sorte tendências doutrinárias fundamentais.

Em dados períodos, por outro lado, se encontra o fenô­meno da passagem do método ao sistema, ou à doutrina, no sentido teorético da palavra. Terá sido, de certo mo­do, o caso da passagem do socratismo, que não era bem

Page 82: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

uma "teoria", ao sistema platônico e ao aristotélico; terá sido um pouco o caso de Descartes, e de certa maneira o de Husserl18. A passagem do método ao sistema tam­bém se encontra sob certo aspecto na primeira fase do pensamento de Kelsen, dentro das discussões contidas nos Hauptprobkme e nos ensaios escritos até 1934.

Tal passagem significa de certo modo uma conversão do instrumento em obra: o que inicialmente se afina e se articula como meio, desdobra-se como estrutura que se pre­tende completa, reabsorvendo o próprio "momento" metodológico. E ao considerarmos que os positivismos contemporâneos carregam, em seu excessivo afã metodo­lógico, um traço teológico, teremos pela frente algumas indagações. Haverá neste metodologismo um sistema pres­suposto, ou o conceito de sistema se acha, nos formalismos lógicos, dependente de seus resultados metodológicos? Estaria o teológico na própria permanência do método, ampliado em metodologismo e em escolástica?

O que ocorre com os positivismos é que fazem con­fusão entre filosofia e ciência. Platão, como se sabe, exigia para o filósofo formação matemática e pretendia para a filosofia um rigor específico19, superior à doxa e enten-

18 Sendo que em Descartes a preocupação com o método teria convivi­do, segundo ORTEGA y GASSET, com a desestima da lógica: cf. La idea de principio en Eeibni^j Ia evolucción de Ia teoria deductiva, p. 281. — Para aspectos gerais, CONILL, El crepúsculo de Ia metafísica (Barcelona: ed. Anthropos, 1988), passim. No cap. 2, p. 46, esta observação: que o movimento filosófico "analítico" não se caracteriza por doutrinas, e sim por propostas em termos de método. — Para a relação entre método e sistema na teoria jurídica contemporânea (alemã sobretudo), CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direi­to, trad. A.M. Cordeiro, p. 66 et seq.

19 Ver BRUNSCHVICG. Les ages de 1'inteligence, PUF, 4. ed., Paris: 1953, p. 57 et seq. Ver também CASSIRER, El problema dei conocimiento, v. I (trad. W Roces, México: FCE, 1953), Introd., p. 45. FEYERABEND colocou o problema da formação histórico-filosófica do racionalismo em termos de opção pela unidade e pelo "pouco", contra o "muito"

INTRODUÇÃO ..

dido como epistème, mas seu pensamento, enquanto filo­sofia, não se confundiu jamais com aquelas exigências. Os positivismos modernos tendem a confundir as duas coisas, do que resulta uma redução do filosofar aos mode­los científicos: vale dizer, científico-positivos. Ao propor uma crítica dos positivismos - sobretudo de sua versão neopositivista e lógico-formal —, o que se visa é basica­mente o resgate do pensamento filosófico, tal como apare­ce nos momentos mais válidos da história da cultura.

Vale observar que o pensamento contemporâneo, vez por outra, apresenta momentos em que a tradição racio-nalista é contraditada: assim foi com Viço, de certo modo, e assim também com os trabalhos de Feierabend; igualmente, com os de Perelman. Por outro lado, a defesa do racionalismo ocidental, empreendida por Husserl, no livro tardio sobre a crise das ciências, é uma revisão do próprio metodologismo latente na fenomenologia, e foi justamente a tardia adoção da perspectiva histórica que permitiu a Husserl fazer tal revisão20.

Talvez se possa, entretanto, vislumbrar outros mo­dos de repontar do pensamento teológico dentro das filosofias de nosso século. Na filosofia pós-heideggeriana, isto é, nas últimas décadas, inclusive no "pós-modernis-mo" declarado ou implícito de certos autores (citaría­mos Deleuze, Derrida, Vattimo), ocorre um desneces­sário acúmulo de paradoxos e de sutilezas que às vezes encobre a nostalgia do ontos da metafísica. Deleuze, por exemplo, em sua teoria geral da gramática ("grama-tologia") se refere às estruturas do pensar que cercam o sujeito, problema pressentido por Nietzsche ao repu-

e as variedades que seduzem o vulgo: isto já no tempo e na obra de Parmênides [Adeus à Ra-^ão, trad. Maria G. Segurado, p. 140 et seq.). A coisa me parece questionável. HUSSERL, The Crisis of European Sciences and transcendental phenomenology, trad. D. Carr.

Page 83: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

18 NELSON SALDANHA

diar no idealismo de Platão a própria teoria clássica da verdade. Esta teoria, bem como o platonismo, teriam algo de teológico. E então poderia existir na "gramato-dologia" uma réplica pós-moderna da teologia, com o simultâneo desejo de destruí-la, "desconstruindo" as estruturas do dizer e do pensar. Wer verfolgt, folgt.

As coisas na história vão e voltam, passam e retor­nam, embora sempre diferentes.

2 CAPÍTULO

O LOGOS ORDENADOR

— • SUMÁRIO •

1. Teologia, cosmologia e alusão ao logos. 2. O logos antigo e o pensamento cristão. 3. Alusão ao problema do méto­do. 4. Permanência do componente teológico. 5. Mais so­bre a permanência do teológico.

1. TEOLOGIA, COSMOLOGIA E ALUSÃO AO LOGOS

Não se pode fazer afirmações muito seguras sobre épocas distantes, mesmo tratando-se de imagens prove­nientes do "mundo clássico". Há sempre uma margem onde incidem as dúvidas e onde o que se diz é conjectural, ainda que a erudição filológica e a devoção dos arqueó­logos tenham levantado e confirmado muitas coisas. En­tretanto, dentro de esquemas globais e em confronto com realidades "modernas", as imagens antigas são sempre passíveis de interpretação (e de reinterpretação), por conta da própria necessidade de "entender" a história.

Assim se tem a possibilidade de dizer que a vida "anti­ga" era mais simples, a tecnologia era então menos compli­cada, e que a relação entre a ação humana e as pautas éticas parece ter sido mais simétrica. A presença de uma dimensão teológica nessas pautas deve ter sido uma ca­racterística essencial: algo que se imagina como próprio das culturas "orientais" (Egito, Mesopotâmia, Pérsia) e que vinha das origens. No caso grego, posto que aqui men­cionamos o "mundo clássico", tais origens correspon-

Page 84: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

dem ao período creto-micênico, desdobrado na proto-história helênica representada pelo contexto homérico1. A dimensão teológica, no pensamento grego, permeou obviamente as primeiras manifestações filosóficas e se expressou de modo peculiar em Platão, com seu con­ceito absoluto de verdade e sua referência a um mundo de formas superiores, incorruptíveis e imperecíveis.

Esta vinculação a algo superior, tido como verdade, é que constituiria a marca do pensar teológico2. Neste sen­tido todo o pensamento "dogmático" (no sentido de Kant) teria ainda um traço teológico, e isto se aplica às grandes filosofias ontológicas da antigüidade e do medievo, além dos sistemas produzidos pelo raciona-lismo moderno. Não por acaso Nietzsehe dissera que "mundo verdadeiro" (ou por outra, verdade universal) é o outro nome de Deus; e todos recordam a passagem de Ortega que alude ao conceito de ser como algo em que se converteu o antigo e terrível Deus hebraico: um tanto como a domesticação do tigre da Hircânia ou do Leão da Líbia3. Destarte a teoria do ser, na filosofia gre­ga, teria sido uma das condições do advento da teoria de Deus no sentido cristão. Compreende-se então que, em lugar do aristotelismo (São Boaventura falava nas "trevas do aristotelismo"), os primeiros organizadores do pensamento cristão tenham-se prendido a Platão -evidentemente sem deslindar as dificuldades da teoria do ente dentro da doutrina das idéias4.

1 FINLEY, O Mundo de Ulisses, ttad. A. Cerqueira. 2 "La ventas costituisce il núcleo dei teológico, il punto dove si sviluppa

pienamente Ia Sinnfrage dei molteplici ordinamenti delia vita" -CASTRUCCI. La forma e Ia decisione, studi critici ("II problema delia teologia política"), p. 104.

3 A imagem é de ORTEGA. ~La idea de princípio en Leibni%, p. 241 e 314. Comparar com RAHNER. Escritos de Teologia (Schriften %ur Theologie), p. 93 et seq.: "Theos en ei Nuevo Testamento".

4 Para as alusões de São Boaventura a Aristóteles, VIDAL (org.), Textos de los Grandes Filósofos. Edad Media, p. 84 et seq.

21

Emmanuele Castrucci se vale do termo ontoteologia para designar esta especial junção do ontológico com o icológico no pensamento clássico, ligado a uma predo­minância da forma (que no caso "precedia à decisão") e a um mundo onde ao homem ainda era dado chegar a uma síntese satisfatória5.

*

O legado clássico trouxe consigo a imagem de uma bri­lhante mitologia, que se liga a uma cosmogonia, ou que a inclui. O mesmo ocorreu com o legado do Oriente - Egi­to, índia, etc. - , mas no caso greco-romano as figuras ad­quiriram para nós especial exemplaridade. Assim as imagens iniciais do justo e do bem, como outras imagens fundamen­tais, se encontram, no pensamento grego, presas a alusões a divindades: Temis e Dikè aparecem como entidades sim-bolizadoras daquilo que se impõe e daquilo que convém6. Assim se tem, nos chamados "pré-socráticos", um ingre­diente teológico dentro das cogitações mais genéricas7.

Sobre as dificuldades da teoria platônica das formas ideais, o genial e erudito diletantismo de BORGES. Historia de Ia Eternidad, p. 20 e 21 . CASTRUCCI, op. cit, p. 3. O termo, como se sabe, remonta à termi­nologia heideggeriana. Conduzindo sua esplêndida reflexão sobre Platão, Mattei escreveu, a propósito do neutro: "Le neutre apparait comme ce mouvement an-archique du refus de 1'origine qui annule rinitialité onto-theodogique (...) et efface (...) ses propres traces" ÇL'ordre du monde. Platon, Nietzsehe, Heidegger, p. 119.

Sobre Themis e Dikè, ver, entre outros, GUÉRIN. L'Idée de Justice dans Ia Conception de IXJnivers ches les premiers philosophes Grecs, de Th ales à Héraclite, p. 15 et seq. Ver também LENOBLE. História da Idéia de Natureza, p. 54 et seq. E ainda OLIVIERI. "La noción de justicia en los orígenes dei pensamiento griego", em Anuario de Filosofia Jurídica y Social. Cf. ROUSSEL. "Rationalité et vocabulaire mystique. A propôs de certains termes ayant une origine ou une connotation religieuse en usage chez les pressocraüques", em A A W org. por MATTEL La Naissance de Ia liaison en Grèce, op. cit, p. 153 et seq. Complementarmente, o estudo de Hans G. Gadamer sobre a religiosidade de Sócrates, que é o cap. I de seu livro L 'anima alie soglie dei pensiero nella filosofia greca.

Page 85: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2 2 NELSON SALDANHA

Ocorre deste modo uma cosmoteologia, que é sem­pre uma gênese mas é também uma ordenação, é algo que envolve um logos ordenador, que dá sentido à gênese e que se impõe sobre o mundo dos mortais, desdobrado em lei inexorável e entretanto justa. Isto reaparecerá, no fim da Grécia clássica, com os estóicos, que ofereceram aos romanos a base e o modelo para um pensamento jurídico fundado sobre uma cosmoteologia8.

O "logos ordenador", entendido como ordem cós­mica, esteve portanto presente nas grandes culturas an­tigas, e no caso grego assumiu um caráter especialmente expressivo. Antônio de Gennaro emprega o termo "pa­radigma cosmológico" para designar a presença, no pensamento grego, de uma ra^ão baseada sobre a estru­tura do mundo. Mircea Eliade, por sua vez, registrou a importância dos arquétipos nas sociedades antigas, em cuja mentalidade aparecem como imagens ideais9.

O conceito de logos, especificamente grego, passou à his­tória da cultura como uma imagem essencial, a um tempo forma e fundamento das coisas, configuração do pensa­mento e também da realidade10. A idéia de um logos ordenador, como um dado central do pensar, definido na Grécia, encontrou lugar na teologia cristã e no racionalismo

Sobre os estóicos, ZELLER. Outlines of the history of Greek Philosophy (trad. L. Palmer), terceiro período. Ainda MANCINI. Uetica stoica da Zenone a Crisipo.

GENNARO. íntrodu^ione alia Storia deipensiero giuridico. A página. 69, nota 8, há uma citação de VERNANT, que "pone in stretta connessione 1'awento di una astronomia sferica o geométrica - ai posto di quella aritmética dei babilonesi — nel pensiero cosmológico greco, con Ia nascita delia polis e con Ia struttura anche spaziale, incentrata cioè sulla piazza o agora, di quest ultima". Nossa alusão a ELIADE remete ao seu livro Ee mythe de lEtemel Retour (Idées, Gallimard, NRF). Sobre o termo logos, ver ROUSSEL, artigo citado, em La Naissance de Ia Raison en Grèce, p. 153 et seq. Ver também PETERS. Termos filosóficos gregos. Um léxico histórico, p. 135 et seq.

O LOGOS ORDENADOR

moderno; em Kant ela ressurgiria modificada, passada para dentro do sujeito, através da noção de "razão legislante"11.

Certos autores, inclusive Marrou, pretendem que a cultura grega teria legado dois modelos básicos para o ideal da educação: o de Platão e o de Isócrates, um ba­seado na filosofia (com rigoroso prendimento à verda­de) e outro na retórica, com um humanismo flexível12. O tratamento retórico dado ao problema da verdade não seria evidentemente o mesmo que o ontológico. Entretanto a permanência do legado clássico consagrou em larga medida o predomínio do modelo platônico, so­bretudo dentro do modo ontológico e teológico de pensar, desde o final do período helenístico13. Tanto mais que o sistema platônico constitui uma severa visão da ordem das coisas, com uma montagem que se desdobra e que alcança os diversos planos do real e do humano — o mundo, a cidade, a alma14 —, atendendo assim às neces­sidades de organização da teologia cristã inicial.

1 ' CONILL se refere à presença, desde os gregos, de um sentido normativo (além de "canônico" e "exemplar") no conceito de ser, expressado inclusive pela "reduplicação lingüística" ocorrente na alusão às idéias: ontos on {El crepúsculo de Ia metafísica, op. cit, p. 19). Sobre Kant consi­dero relevante citar este texto do notável livro MOYA. De Ia áudady de su ra^ón, p. 214: " E n ei íntimo de Ia fórmula kantiana - en ei impera­tivo categórico como posibilidad para una comunidad universal regida por Ia razón pura de sus miembros — se esconde, como significación latente, Ia mediación racional entre Ia vieja escatologia de Ia Ciudad Celestial como Reino de Dios sobre Ia Tierra, y Ia nueva utopia de Ia disolución dei Estado, desde Ia cual anarquismo y socialismo van a intentar llevar a sus ultimas consecuencias ese "Estado fundado so­bre Ia Razón" cuya carta constitucional es Ia Declaración de los Derechos de 1789". Cf. ainda GRONDIN. "La renaissance de Ia Raison Grecque Chez Kant", em Naissance de Ia Raison, op. cit., p. 11 et seq.

' MARROU. História da Educação na Antigüidade. Sobre o assunto cf. também FINLEY. Uso y abuso de Ia historia.

1 Cf. TAYLOR. El platonismo y su influenüa, trad. L. Farré. Cf. também o cap. III do fundamental livro III da Paideia de JAEGER.

1 ' Ver o livro um tanto inconvencional de CHANTEUR. Platon, le désir et Ia cite.

Page 86: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2 4 NELSON SALDANHA

O que se chama "paradigma teológico" inclui um problema de conceituação e de ontologia, aparecendo os valores e as referências (inclusive as da sociedade, isto é, o Direito e a Justiça) como reflexo ou emanação do ser divino; e um problema de linguagem, este direta­mente transmissível através de diferentes instâncias pe­dagógicas, pela terminologia e pela retórica.

Da visão positivista, que com suas enfáticas certezas fala­va do estágio "teologista" da humanidade, passou-se no começo do século XX à antropologia e ao relativismo, este complementado e perturbado, mais recentemente, por estu­dos sobre a relação entre origens, sacralidade e violência15.

2 . O LOGOS A N T I G O E O P E N S A M E N T O CRISTÃO

O logos, presente na ontologia grega e na respectiva teologia, bem como nas teologias pós-helênicas, apare­ce como elemento essencial dentro da idéia de uma orde­nação das coisas. Destarte ele surge na idéia de justiça — no fundo a justiça em sentido ontoteológico seria a própria ordem — e na de Direito, o Direito como ordem tam­bém. Os gregos não tiveram um termo para designar o que chamamos "Direito" (isto só viria com o ius roma­no), mas falaram de leis, de ordem política e de processo. Deste modo designaram as leis eternas, inclusive pela voz trágica de Antígona, que a seu modo prefigurou a idéia do "Direito Natural" tal como ocorreria nos estóicos e na Idade Média, bem como no racionalismo ocidental

15 Em 1875 P. Lafitte iniciava a publicação de sua vasta obra Les grands Tjpes de 1'Humanitê, com base em cursos apanhados por P. Dubuisson. O primeiro volume versava sobre as Théocraties; o segundo, editado em 1876, tratava da Evolution ocádentak. O tema da história antiga aparece mais "historiograficamente" em E. Littré em alguns dos estudos incluí­dos em La Science au point de vue phihsophique. Com a menção a estudos sobre origens e violência, estamos destacando os livros de GIRARD. D es choses cachées depuis Ia fondation du monde, e La vioknce et le sacré.

O ÍOGOÍORDENADOR 25

moderno. A passagem a este último representou, confor­me examinaremos adiante, uma peculiar passagem do contexto teológico para suportes metafísicos.

A alusão de Antígona às leis não-escritas, que aliás tem recebido diferentes interpretações, aparece em um cli­ma religioso, próprio aliás da tragédia ática como gêne­ro e como forma de arte. Aristóteles falou em "terror e piedade" como objetivos do poeta trágico16; de qual­quer sorte o fundamento religioso da tragédia — sempre dionisíaca, segundo certos autores17 — se vinculava a um largo sentido cósmico de justiça, no qual se integrava a própria violência da ação. Tudo isto pressupunha uma teologia, com seus dualismos, seu maniqueísmo latente e seu sistema de metáforas.

Será válido pensar que, historicamente, o padrão teo­lógico existente na base do teatro trágico foi o mesmo que, em proporção distinta, se encontra nos pré-socráticos: na cosmologia dos elementos, no simbolismo pitagórico, nas alusões de Anaxágoras à infinitude do espírito18.

Vernant menciona, ao estudar as origens do pensa­mento grego, o fato de que com a dessacralização cultu­ral, ocorrida desde os séculos VIII e VII antes de Cristo, vários objetos relativos à tradição sagrada saem do palá­cio, recinto fechado, para o templo, espaço aberto, passando o culto público a predominar sobre as confrarias secretas19.

. _ * _

16 O u "compaixão e t emor" , como out ros t raduzem (cf. (ARIS­TÓTELES. LM poética, p. 21).

17 Dionisíaca e popular, conforme ADRADOS. Ilustración j política en Ia Grécia clásica, p. 162. Enquanto isto anote-se a ressalva de H. D. KITTO, para o qual Esquilo teria sido um poeta religioso, mas não um teólogo LA Tragédia Grega — estudo literário, p. 22).

IB "Todo Io demás tiene una parte de cada cosa, pero ei espiritu es infinito y autócrata y no está mesclado con nada, sino que está solo él mismo por si mismo" - Anaxágoras, Fragmentos, p. 62.

1'' VERNANT. As origens do pensamento grego, p. 38 e 39.

Page 87: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2Jt________ NELSON SALDANHA

O advento do cristianismo, que após a inicial vivência mística se organizou institucionalmente como Igreja, trouxe a gradativa estruturação de uma teologia siste­mática, na qual o fundamento platônico cedeu vez, de­pois de algum tempo, aos esquemas aristotélicos. Nem sempre recordamos bem, hoje, quão intensas e prolon­gadas foram as polêmicas travadas nos primeiros sécu­los da era cristã, envolvendo o conceito de Deus e seus atributos, a noção de pecado, a de culpa e tantas outras.

Com o surgimento da "escolástica" e com o método das Sumas, o pensamento da Igreja dominou a cultura medieval, incluindo em seus escaninhos todos os temas que a cultura clássica havia legado e mais os que o tem­po impunha, inclusive problemas éticos e políticos. Ao se formarem as primeiras Universidades, a teologia e a Ciência Jurídica foram os grandes domínios do saber sistematizado: o método escolástico serviu de base para o estudo e a exposição dos problemas jurídicos. Um mé­todo com substrato teológico, ligado a uma cosmovisão estática e a uma imagem hierática das coisas, além da referência formal a determinados textos. Mesmo com o surgimento do nominalismo - a partir de Occam, no sé­culo XTV - , as estruturas expositivas seguem sendo basi­camente as mesmas. Os gêneros cultivados incluíam os compêndios ou abreviações, as "concordâncias" destina­das a resolver contradições aparentes, os comentários, os opúsculos, as questões disputadas e os Quodlibetct®.

* _

Cf. GRABMANN. Historia de Ia Teologia Católica, desde los fines de Ia patrística hasta nuestros dias, p. 115 et seq. Sobre o substrato cultural, o artigo de Michel Villey. "Bible et philosophie gréco-romaine de S. Thomas au droit moderne", em Archives de Philosophie du Droif n. 18, p. 27 .et seq., e também - mas este um tanto envelhecido - o de COMIN. "Influence du Christianisme sur Ia civilisation et sur le droit", p. 141 et seq. Cf. ainda o breve estudo de M O R E N O . "Lógica Medieval", em

O ÍOGOSORDENADOR 27

Quando falamos no mundo clássico (bem como em imagens conservadas das civilizações pré-helênicas e não-helênicas), aludimos a representações trazidas pela lite­ratura e pela arqueologia. Assim temos algumas idéias centrais e seus correlates. Se em nossa exposição as idéias que se tomam como centrais são a ética clássica e sua relação com as instituições — as religiosas inclusive —, seus correlates abrangem a cosmovisão grega (ou greco-romana), o "espírito" que alguns vêem na própria cultura, atribuindo-lhe dois ou três caracteres essenciais, e ainda, obviamente, o que se chamaria com mais concretude histórica o ethos antigo.

Ao que se depreende da exposição de certos auto­res, a fase inicial da cultura grega correspondeu a pa­drões dominados pela sacralidade. A passagem à secu-larização terá sido uma passagem da palavra sagrada à palavra leiga: de uma verdade teológica a uma verdade racional. Esta passagem implicou um trânsito "do pré-direito ao direito", segundo Detienne21. O Direito — cujas origens alguns procuram hoje dentro da inicial difusão da escrita22 — atingiu o modelo legal dentro do qual se desenvolveram alguns códigos históricos23, sem detri­mento da continuidade da experiência costumeira. Os antigos componentes do pensamento jurídico arcaico, um tanto alegóricos, cedem vez a questionamentos polí-

Sapientia. Para um estudo "de caso" sobre a metodologia jurídica medieval, especificamente a do século XII, A. GIULIANO. "Abelardo e il diritto. Alie origini delia interpretazione mecanicistica delia legge". Aliás Victor Cousin escreveu um extenso estudo sobre Abelardo: cf. Fragments Philosophiques. Philosophie Scholastique, p. 280 et seq.

•'•' D E T I E N N E . Les Maítres de verité dans Ia Grèce archaique, p. 100 et seq. ("Les serments qui tranchaient par Ia force religieuse cèdent Ia place à Ia discussion qui permet à Ia raison de donner ses raisons", p. 101).

'• GOODY. The domestication ofi the savage Mind, Cambridge Univ. Press, reimpressão 1988, passim. A lógica da escrita e a organização da sociedade.

•u Sobre a polis, o saber dessacralizado e a escrita, VERNANT. As origens, p. 36. Cf. também D E T I E N N E , loc. cit.

Page 88: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

2 8 NELSON SALDANHA

ticos relacionados com a democracia, e a modos de pen­sar e de falar relacionados com a sofistica, dentro de formas mais urbanas de vida24.

Aquilo que Castrucci, conforme vimos acima, de­nominou ontoteologia, vai-se fragmentando e diluindo diante das transformações institucionais e do crescente número de reflexões críticas que se delineiam a respeito do mundo e da polis. O amplo sistema platônico, que elaborou um modelo ainda ontológico e de certo modo teológico, se atravessa um tanto anacronicamente em meio ao processo crítico oriundo da sofistica25, mas após Aristóteles recomeça a crise do pensar ontoteológico, com as escolas "menores" e com a ruptura das relações entre polis e sofia.

3. ALUSÃO AO PROBLEMA D O M É T O D O

O questionamento trazido pelos sofistas, cujo modo de tematizar foi a um tempo compartido e combatido por Sócrates, levaria (sobretudo em Aristóteles) à preo­cupação com a técnica de pensar. Ou seja, ao problema do método. Tal problema não teria ocorrido aos redato­res do Zend-Avesta nem aos da Bíblia; não ocorreu aos pré-socráticos (salvo talvez e como que implicitamente a Heráclito e Parmênides). Aristóteles, assumindo a defe-

24 Sobre os sofistas, SAITTA. Uilluminismo delia sofistica greca. Mais perto de nosso tema o artigo de ROSSETTI . "La filosofia penale di Tppodamo e Ia cultura giuridica dei sofisti". Ver ainda KERFERD. The sophistk movement. Um exemplo romano da passagem do teológico ao metafísico, com influência sobre o pensamento jurídico, estaria no trân­sito da concepção cosmológica (estóica) à antropológica, ao tempo da Terceira Academia, com Carnéades, cuja teoria do homem teria servido de base ao Direito Romano clássico: é a interpretação de BEHRENDS em seu artigo na 'Reme historique de D. firançais et etranger, op. át.

25 Sobre as relações entre os mitos e a razão no pensamento grego, FEYERABEND. Adeus à Ra^ão (op. át), p. 111 et seq. Sobre o apare­cimento do racionalismo, p. 140 et seq.

O Z.OGOÍORDENADOR

sa da "tradição socrática", teorizou sobre os "sofismas" e enquadrou os sofistas como subversores do pensar. Exa­gerada e comprometida, a crítica aristotélica manteve entretanto por séculos a imagem negativa do movimen­to sofistico. De qualquer modo a questão do método estava colocada, e durante os séculos do medievo os escritores cristãos tiveram de assumi-la. Assumiram-na sobretudo quando, com a Escolástica, o legado aristoté-lico teve de ser reformulado e compaginado com os dogmas do Evangelho.

Destarte não surpreende que um dos passos decisi­vos da filosofia moderna, em seus inícios, tenha sido a exemplar reflexão de Descartes sobre o método — que de resto vinha na esteira da "dialética" de Nicolau de Cusa e de Mestre Eckhart26. Não seria demais comparar o papel de Descartes, fundando o racionalismo moderno (e com ele um idealismo subjetivista, diferente do idea­lismo antigo), com o papel de Sócrates, que iniciou e encarnou um padrão racional; mas a relação que Des­cartes terá guardado com o Cusano e com Eckhart, ou com Giordano Bruno, ao menos implicitamente, corres­pondeu à ligação de Sócrates com seus contemporâneos "sofistas", explicitada de um modo em Platão e de ou­tro modo em Aristófanes.

O que se chamaria de ética moderna não tem, entre­tanto, a figura definida que tem o que chamamos de éti­ca antiga. O processo de sua formação está obviamente mais próximo de nós no tempo, e há diversos "fatores" que entraram em sua produção. A sociedade moderna (no sentido de pós-medieval, a aceitar-se o esquema sediço

Sobre o contexto onde aparece Descartes, CASSIRER. El problema dei conocimiento en Ia filosofia y en Ia ciência modernas; H E G E L , nas "Adi­ções" acrescentadas ao texto da Lógica (da Enciclopédia), mencionou os momentos do termo "dialética" anteriores ao seu sistema: Encyclo-pédie des sciences philosophiques — I, La science de Ia logique, p. 513 e 514.

Page 89: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

3Q NELSON SALDANHA

mas inteligível) aparece desde o começo como estrutura mais "móvel" e mais mutável do que a feudal-estamental27; e depois de certas análises, inclusive a de Max Weber, tem-se a "racionalidade" como nota distintiva do mundo moder­no. O próprio esquema weberiano sobre os tipos de poder repousa sobre uma distinção entre o ethos feudal e o ethos moderno (ou seja, capitalista e urbano), sendo a moderna uma sociedade onde a tradição pesa menos, e onde o "racio­nal", entendido funcionalmente, define os padrões28.

A ética moderna (na medida em que cabe apertar os diversos contextos em um rótulo unificante) terá provin­do do humanismo renascentista, do dinamismo capita­lista, do individualismo e do protestantismo. Conside­ramos discutíveis certas alusões fáceis ao "individualismo", mas as referências ao protestantismo são sem dúvida rele­vantes, quer pela conexão com o livro famoso de Weber, que inclusive provocou vários outros, a seu modo tam­bém já clássicos, quer pela relação do movimento pro­testante com certas tendências intelectuais — algumas delas relacionadas precisamente com o problema do método. O assunto foi aliás mencionado por Feierabend29.

A propósito da ética moderna, e de seus correlates metodológicos, vale lembrar que a separação conceituai entre moral e direito, no pensamento contemporâneo, teve relação com a necessidade de livre crença dos huguenotes, desejosos de separar do Estado (e das leis) as coisas da religião, correspondentes ao "foro Íntimo"30.

27 Entre outras coisas, ver o estudo clássico de MARTIN. Sociologia dei Kenacimiento.

28 WEBER. Economiay Sociedad, loc. cit. Cf. também WEBER. Sociologie du Droit. Para um cotejo TILLICH. The protestant era.

29 Sobre as relações entre o protestantismo e as implicações metodológicas do empirismo moderno, FEYERABEND. Contra o Método, p. 62 e 63.

30 Puffendorf havia pouco antes retomado a distinção entre fórum externum e fórum internum; Tomasius fixou sobre a interioridade e a

O /.OG050RDENADOR

4. PERMANÊNCIA D O COMPONENTE TEOLÓGICO

Entretanto um dos aspectos que se podem observar, dentro da estruturação e dos desenvolvimentos do "mun­do moderno", é a permanência do teológico. Permanên­cia certamente parcial e relativa. Em parte a pervivência de problemas religiosos e mesmo místicos trazidos da Idade Média, em parte o prosseguimento dos grandes temas da ontoteologia, tais como Deus, a alma, o ser, a substância. Mas também, e sob influência de prementes realidades políticas, a ressurgência de antigos modelos monárquicos, acolitados por emblemas teocráticos e por velhas imagens, como a do direito divino dos reis, a da sacralidade da coroa, a do juramento na investidura31.

O Direito, durante o Renascimento, ainda se achava (assim como a ciência-do-Direito) preso a componen­tes teológicos. Não que o jurista dos tempos de Alciat ou de Bodin não fosse suficientemente "racional"; mas na verdade a vivência concreta do ensino jurídico, e da prática, continuava acompanhando figurinos tradicio­nais. Assim encontramos em Rabelais a denúncia da lin­guagem dos juristas, cheia de complicações e de obscu-ridades, de sottes et desraisonables raisons32.

exterioridade a distinção entre moral e direito. Cf. Gioele Solari, "Cristiano Tomasio", em Studi Storici di Filosofia dei Diritto, p. 157 et seq. Em geral se considera a posição de Tomasius como representante da idéia de uma religião não condicionada a autoridades externas, em um sentido já iluminista (Solari, p. 158 e 160).

11 "La idea de corona en Ia alta edad media se corresponde con una concepción teocrática de Ia sociedad y dei orden político", diz M. GARCIA-PELAYO, em seu ensaio "La Corona" (em Del Mito j de Ia Ra^ón en eipensamiento político, p. 28). Sobre o juramento-da-coroação, cf. LAPSLEY. Crown, Communiiy and Tarliament in the later middle ages, passim; mais recentemente, GROSS. Empire and sovereignity, p. 168 e 181-2.

12 Cf. LACLAU. "La historicidad dei derecho" (em Anuario de EU. jurídica j Social, p. 29).

Page 90: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

O problema da convivência do processo de secula-rização cultural, inclusive na etapa que abrange os sécu­los XVII e XVIII, com as sobrevivências teológicas, deve ser obviamente abordado com cautela. Há vários ângu­los a considerar. A persistência de termos e de temas, vin­dos da metafísica grega, se combina àquele tempo com a permanência de concepções políticas geradas ou redi-mensionadas durante a Idade Média. Concepções, inclusi­ve, referentes à hierarquia social e à estrutura das funções essenciais dentro da sociedade e da ordem política: assim a permanência das idéias de João de Salisbury, ou a discussão sobre as duas espadas, na raiz das concepções iluministas sobre o fundamento do poder e sobre a repartição dos poderes. Assim, em linha paralela, a retomada da velha teoria do contrato, nos séculos XVII e XVIII, para tornar persua-siva a idéia da legitimidade dos governos33.

Os huguenotes, anteriormente mencionados, desen­volveram através de famosos panfletos o tema da limita­ção do poder, sempre com alegações tiradas da Bíblia34. Com a problemática da teologia luterana na Inglaterra, e de suas opções políticas, surgiu a chamada ra^ão purita­na, com categorias peculiares e com uma especial ver­são do jusnaturalismo, que inclusive iria prosperar na América do Norte35.

Em Spinoza encontramos, igualmente, uma vigorosa meditação política, que ao mesmo tempo se desenvolveu como crítica da religião e preocupação teológica. A posi­ção de Spinoza, no Tratado Teológico-Político, se aproxi-

Sobre as concepções referentes à hierarquia, cf. HATTENHAUER. Los fundamentos histórico-ideológkos dei derecho alemân, p. 17 et seq.; sobre o tema das funções; SILVESTRI. Ta Separa^ione dei poteri. Sobre os panfletistas franceses, chamados mona rcômacos , cf. T O U C H A R D e outros. História des idées politiques, p. 278 et seq. Com referência a este ponto permitimo-nos remeter ao nosso livro Formação da Teoria Constitucional, cap. III.

O /.OGOJORDENADOR

ma já do üuminisrno, na medida em que denuncia o inte­resse das tiranias em manter o povo na superstição, e em que preconiza o desenvolvimento da "liberdade de julgar" sem detrimento da piedade nem da "paz do Estado"36.

Encontramos também conteúdos teológicos, na fi­losofia social do século XVII, dentro da teoria do cor­po social, cuja elaboração teve relação com a idéia do corpo místico, que vinha da teologia medieval e que in­fluiu sobre diversos conceitos do direito público duran­te o absolutismo monárquico37.

O que acontece é que o processo de laicização, ou secularização, não constituiu de modo algum uma mu­dança rápida, mas sim uma lenta e defasada alteração de padrões. Há quem considere que o ideal do progresso, pretendido no século XVIII como "lei" (e tratado por alguns críticos como "mito"), teria sido durante o ilumi-nismo um substituto da "Cidade de Deus", que Agos­tinho platonicamente havia descrito ao início dos sécu­los ditos medievais38.

16 Extratos do Tratado teolágieopolíúco em Ch. APPUHN. Spinoza. (Col. Civilisation et Christianisme, p. 175 et seq. Sobre Spinoza e o protestantismo francês, ver VERNIERE. Spinoza et Ia pensée française avant Ia rwoluúon, p. 38 et seq. Para o caso de Leibniz (racionalismo mais teologia em seu pensamento jurídico), ver o artigo de GARDIES nos Archives de Phil. du Droit, p. 115 et seq. Cf. também a alusão de SCHMITT. Politische Theologie, p. 50. Para as sobrevivências da teologia, um tema específico seria o das relações entre a teoria social do século XVII, com a alusão ao corpo social, e a teoria do corpus mysticum vigente na teologia medieval. Ver G. GURVITCH. T'idée du droit social, sobre os pensadores do século XVII. Mais especialmente Sérgio Mochi ONORY, Fonti canonistiche deli' idea moderna de lio Stato: toda a parte II, e o cap. I da parte IV, principalmente. Cf. também, o cap. I da Segunda Parte do livro de Otto von G I E R K E sobre Altusio (Johannes A.lthusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien, Aalen: Scientia Verlag, 1968; trad. italiana parcial, Turim: Einaudi, 1974). Cf. ainda Mario LOSANO, Struttura e Sistema, op. cit., p. 175 et seq.

Livro sempre mencionado sobre o ponto é o de Carl BECKER. Ta àudad de Dios en ei siglo Xl/III (op. cit). Uma visão típica do cientismo

Page 91: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Destarte, com a permanência de elementos teológi­cos dentro da fase já racional da política moderna (sobre­tudo após o iluminismo), tem-se a imagem de estrutu­ras constitucionais ou ideológicas contraditórias ou ao menos ecléticas, corroborando as observações de Carl Schmitt sobre a "teologia política" - no fundo, variante expressionista de um tema weberiano39.

*

No Direito inglês, a sobrevivência das estruturas medievais condicionou, durante a época de que falamos -o racionalismo pós-renascentista, proto-iluminista e ilu-minista - , alguns aspectos que merecem referência. No século XVI, conforme destacou William Holdsworth, as formas teológicas de pensar prosseguiram com todo o seu peso40. Os problemas da Reforma, entretanto, coin­cidiram com o da formação do Estado absoluto, culmi­nando com o movimento puritano e seus reflexos41.

Na mesma Inglaterra o rei Jaime I escreveu, no sécu­lo XVI, o mais característico tratado de seu tempo so­bre o chamado direito divino dos reis, estabelecendo a respectiva doutrina no livro The true Law offree Mo-

oitocentista se acha em WHITE. Histoire de Ia brite entre Ia sáence et Ia thêologie.

39 Politische Thêologie. Vier Kapitel %ur lehre von der Souverãnitãt {op. cit). Seja válido remeter ao nosso artigo "Templo e Palácio: pensamento reli­gioso e pensamento político na história do Ocidente".

40 HOLDSWORTH. "Renaissance, Reformation and Reception of Roman Law", em Some Makers of English Taw, p. 69 et seq.

41 The constitutional documents of the Puritan Kevolution, seleção e edição de S. R. GARDINER. No caso se encontra, como exemplo de fusão entre o racionalismo e os componentes teológicos, a obra de Blacks-tone: cf. BOORSTIN. The mysterious sáence of Taw, op. cit., p. 50 et seq. Cabe aludir também à presença do teológico na obra de HOOKER. teólogo inglês do século XVI que tratou de assuntos jurídicos: Of the laws of ecclesiastical polity, passim.

) Í0GO5ORDENADOR

narchies42. Na verdade o que possibilitou, no sentido temá­tico, a construção específica da teoria do direito divino dos monarcas, foi a vigência, desde a alta Idade Média, de alusões e imagens concernentes à ligação entre o po­der e a religião - embora algumas delas tendo sentido diverso daquele do divine right. Assim na clássica frase de Bracton: "Ipse autem rex non debet esse sub homine, sed sub Deo et sub lege, quia lexfacit regem,Hi, onde Deus e a lei são mencionados como instâncias superiores ao poder do rei. Deus e a lei, e portanto a religião e a política (dentro des­ta o Direito) como coisas vinculadas.

No famoso episódio que envolveu o imperador ale­mão Henrique V, no século XII, e o papa Gregório VII, a Cúria Romana entendeu que o "direito divino" não eximia o monarca de obedecer às leis de Deus, repre­sentadas pela Igreja: o imperador era entendido como um "oficial removível" em função daquelas leis44.

O substancialismo medieval, que conferia um espesso sentido de essência aos atos simbolizadores do poder reli­gioso e do político, iria permanecer até avançado o está­gio monárquico ("absoluto") do Estado Moderno, com imagens como a da incoronatio, e com temas polêmicos como o da translatio imperii, provindo da referência às duas espadas, a temporal e a espiritual45. Podemos aludir tam­bém à persistência do conceito de maiestas, objeto, ainda no século XVII, de definições onde o modelo teológico-escolástico de pensar se acha bastante visível46.

! Cf. HOLDSWORTH. Some Makers, p. 119. Para outros aspectos, SABINE. Historia de Ia teoria política (trad. V. Herrero, México: FCE, 1945) parte III, cap. XIX. Para textos, a antologia org. por D. WOOTON. Divine Right and Democracy — Political Writing in Stuart England.

1 Os textos se acham em STUBBS. Se/ect Charters and other illustrations of Eng/ish Constitutional History, p. 411 et seq. Ver BENDIX. Kings orpeople. Power and the mandáte to rule, p. 139. Cf. ONORY. Te origini canoniche, op. cit..

I GROSS. Empire and Sovereigni/y, op. cit, p.T52 et seq., 165 et seq.

Page 92: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Tudo isto revela a duplicidade de andamentos das duas vias, a do pensar teológico permanecendo e a do pensar secularizado se estabelecendo. A visão hierárquica do mundo e da sociedade, abalada pela nova astrologia e pela física, convivendo com a persistência das aristocracias e do Estado absoluto; ao mesmo tempo o crescimento dos questionamentos racionalistas, dos começos da bio­logia e do espírito iluminista47.

5. MAIS SOBRE A PERMANÊNCIA D O TEOLÓGICO

Entretanto, um dos momentos mais relevantes da visão teológica do Direito e do Estado, dentro da histó­ria contemporânea, corresponde à concepção de Hegel. Hegel o vasto e complexo, o despreocupado das caute­las kantianas, o grandiosamente sistematizante e concei-tualizante, mas também penetrado de temática religiosa desde a juventude. Hegel teológico na mesma medida em que não analítico (e eis uma contradição, seu racionalismo foi e não foi "burguês", o burguês tendo sido caracteristi-camente analítico), na medida em que não "gnosiológico", mas sempre sintetizante e de certo modo platonizante. Como Platão, houve em Hegel uma referência essen-cializante à verdade — a verdade sempre um tópico do pen­sar teológico, conforme já registramos —, e também ao absoluto, que terá tido no sistema hegeliano uma função comparável ao do "ser" na metafísica escolástica, ao ser­vir de Ersat% para a noção de Deus48.

47 Cf. HAZARD. A crise da consàênàa européia (1680-1715), passim. 48 "Ce à quoi en general j 'ai travaillé et travaille dans mes efforts

philosophiques, c'est à Ia connaissance scientifique de Ia verité. Elle est ele chemin le plus difficile, mais qui seul peut avoir de Finterét et de Ia valeur pour Fesprit" - isto dizia Hegel no Prefácio da edição de 1827 da Lógica (cf. Engclopédie des Sciences Philosophiques, I: La science de Ia Logique, op. cit., p. 122). O texto logo a seguir menciona o Estado; c encontramos na Filosofia do Direito, Parte III, 3a secção, item 270,

O ÍOGQÍORDENADOR

Há quem entenda, inclusive, que a teologia hegeliana se desdobrou em teodicéia49. De qualquer sorte sua asser­tiva referente à correlação entre o real e o racional pode ser equiparada a uma consagração do real, dentro aliás de um certo spinozismo não estranho ao espírito de Hegel (neste aspecto comparável ao de Goethe). O pen­samento hegeliano sobre o Estado e sobre o Direito - o Estado são os passos de Deus sobre a terra —, com suas conotações teológicas, não constitui apenas um modo teo­lógico e quase escolástico de linguagem jurídica, como o que ocorreu em épocas anteriores, mas constitui real­mente um pensamento teológico, ou teológico-metafísico (de novo a ontoteologia?) referido ao Direito e ao Esta­do, abrangendo-os, absorvendo-os50.

*

Ainda sobre a permanência de componentes teológi­cos dentro do pensamento jurídico já durante a fase cha­mada racionalista: à proporção que se fixou, dentro dos quadros ocupacionais da sociedade moderna, a auto-ima-gem ào jurista (durante muito tempo chamado na prática legista, advogado, etc), consolidou-se o fechamento de seus representantes em relação a outros grupos profissionais. Este aliás é um fenômeno que continuou ocorrendo, e que

uma referência à "verdade absoluta" como conteúdo da religião, de onde o alto nível que lhe corresponde. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechfs, com Introd. de B. Lakebrink, Stuttgart: ed. Reclam, 1976, p. 405; trad. francesa por A. Kaan, Príncipes de Philosophie du droit, NRF, Galümard, p. 285.

49 LEBRUN. O avesso da dialética. Hegel à lu\ de Niet^sche. 1 H E G E L . Philosophie du Droit, op. cit., p. 286. E como disse Nicolai

HARTMANN "é na Lógica, uma obra que ultrapassa toda a medida humana, que se pode ver mais claramente do que em qualquer outra parte que a Filosofia hegeliana no seu conjunto é basicamente Filoso­fia da Religião" (A Filosofia do Idealismo Alemão, p. 329). Sobre Hegel, v. ainda VAZ. Antropologia Filosófica, p. 117 et seq.

Page 93: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

continua a ocorrer em certa medida. Com aquele fecha­mento propiciou-se a continuação, dentro da mente do homo

juridicus, das formas escolásticas de pensar e de escrever — citar, distinguir, demonstrar, concluir - , mesmo depois do advento de idéias modernas e de debates renovadores: mesmo depois das "escolas" dos séculos XIX e XX.

Deste modo o que se chama de pensamento jurídico fi­cou incorporando traços de inquestionável origem me­dieval: vimos, linhas acima, como a forma escolástica de pensar dominou os estudos jurídicos desde o século XIII. Do mesmo modo que a filosofia funcionou e figurou no medievo como andlla theologiae, o saber jurídico se desen­volveu dentro dos marcos da cultura teológica: não seria impróprio lembrar o hábito das distinções e das hipóte­ses argumentativas, presente ainda hoje no jurista, como parte da permanência de um modo de pensar51.

E o possível conservadorismo do jurista, vinculado ao seu sentido da forma (bem como talvez ao pathos da letra e das literalidades), seria também, em sua realidade ainda hoje, herança do conservadorismo teológico, ou seja, de uma teologia do hierático e do estático, preser­vada estamentalmente através do próprio mundo mo­derno, dentro das Universidades, da Igreja e da Buro­cracia. Sempre a persistência do logos ordenador.

Nisto entraria a noção de "princípio", de fonte metafísica e ligada à de dogma com algo de teológico. Para as relações entre direito e teologia a partir da Idade Média, BRUSIIN. Elpensamiento jurídico, op. cit,, p. 238 et seq.

CAPÍTULO

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

• SUMÁRIO •

1. Em torno da idéia de secularização. 2. Secularização e metafísica. 3. O racionalismo moderno e a teoria do Direi­to. 4. Alusão ao problema da legitimidade. 5. Digressão sobre o pensamento utópico

i. E M TORNO DA IDÉIA DE SECULARIZAÇÃO

O processo de secularização corresponde a uma gradual transformação ocorrida em determinadas sociedades, tran­sitando de um padrão predominantemente religioso para formas preferentemente "leigas" (ou racionais) de vida. Tal processo ocorreu exemplarmente na Grécia do século V a.C. e no Ocidente do século XVIII, com antecipações que radi­cam no Humanismo renascentista. A diferença entre uma "fase" teológica e outra racional (ou coisa que o valha) foi percebida ou entrevista entre outros por Viço, mencionada por Condorcet e Turgot, depois por Comte; mas a alusão de Max Weber à "desmagicização" (Ent^ãuberung) permaneceu como uma referência por assim dizer definitiva. Outras alu­sões, entretanto, encontram-se em diversos autores, inclusive os que discutem os problemas das dificuldades históricas da doutrina cristã depois da Reforma, do capitalismo e do ad­vento da idéia de progresso: é o caso de Christopher Dawson em seu livro Progresso e Religião, a cujo texto se poderiam agre­gar inúmeros itens bibliográficos1.

DAWSON, Progresso e Religião. Refiro-me especialmente ao capítulo VIII, "A secularização da cultura ocidental e o advento da religião do

Page 94: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 0 NELSON SALDANHA

De certo modo é válido entender os primórdios da secularrzação ou dessacralização, no caso grego, como algo ligado à urbanização da vida, no sentido da imposição de um planejamento racional às estruturas urbanas. Assim Giles Lapouge, tratando das origens da Utopia, sobretu­do com Hipódamo (séc. V a.C), menciona o uso do ân­gulo e da linha reta, dentro de uma sistematização de for­mas, como correlato de uma concepção em que a cidade se liberta da submissão aos lugares e aos deuses2.

O surgimento de uma metafísica, o que aqui vai sig­nificando um pensamento que se desprende das referên­cias empíricas diretas e se elabora como forma abstrata em torno de determinados conceitos, correspondeu cer­tamente a um gradual abandono (já que seria questionável dizer "superação") do pensar religioso: um abandono que sempre pode ter sido incompleto e relativo. A meta­física clássica, vale dizer a teoria filosófica geral cons­truída na Grécia desde Parmênides e Heráclito até Platão e Aristóteles, terá sido uma onto sem teologia, para aludir ao termo "ontoteologia", que aproveitamos de Castrucci (cf. cap. II); ou com menos teologia, porque esta existiu em Platão. Parece que por todo o processo histórico da onto­logia — sem discutirmos aqui o dito de Ortega de que esta foi algo exclusivamente grego! — ficaria contudo la­tente uma espécie de nostalgia do componente teoló­gico. Não tanto na filosofia medieval, onde tal compo-

progresso". O termo "religião do progresso" nos reporta ao livro de BECKER. Fa ciuiad de Dios delSiglo XVIII, op. cit. Para um cotejo com o caso "antigo"; D E T I E N N E . Les maítres de verité dam Ia Grèce archáique. A bibliografia sobre secularização é muito vasta, sobretudo tendo-se em conta a conexão com "racionalização", e aqui evidentemente ano­tamos só algumas referências. Há também, edição recente, o livro um tanto tendencioso de COOMARASWAMY. Ensaios sobre a destruição da tradição cristã.

"Désacralisé, il (Tangle) organise Ia ville en système". Cf. LAPOUGE. Utopie et civilisations, p. 12.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA 4;

nente nunca esteve ausente, mas na dos grandes sistemas racionalistas: em Leibniz; em Spinoza (neste uma nostal­gia revelada e resolvida no próprio conceito de substân­cia); em Malebranche com uma explicitação artificiosa3.

A metafísica moderna, de cujo conteúdo sairia o concei­to de princípio — um poderoso ponto de referência para o pensar matemático e também para o pensar social4 —, tem o que ver, como toda metafísica, com um sistema de dualismos.

Isto revela seu débito para com o velho lastro teoló­gico, mas reflete por outro lado uma tendência estrutu­ral própria. O maniqueísmo, que sempre se encontra nos dualismos teológicos (céu e inferno, bem e mal, inocên­cia e culpa), cede lugar e vez a um sentido de "distin­ção" ou "classificação": a coisa se percebe melhor se à metafísica do século XVII, no Ocidente, associarmos a imagem do "saber classificatório", cuja base veio das idéias claras e distintas de Descartes e alcançou a tábua de categorias elaborada por Kant5.

O logos, entretanto, não se acha apenas pairando sobre as coisas. Cabe entender o difícil processo de passagem ao racionalismo como uma alteração dos significados que se atribuem às idéias e às coisas. Um dos fundamentos gnosiológicos do racionalismo, expresso aliás em uma das proposições da Ética de Spinoza (proposição VII

Para o caso de Spinosa, cf. SOLARJ. Studi storici di Filosofia dei Diritto.

O R T E G A Y GASSET. Fa idea de principio en Feibni^y Ia evolución de Ia

teoria deductiva, op. cit., passim.

Sempre afirmamos a relação entre a metafísica e os dualismos. Para um aspecto do tema cf. HABERMAS. "A unidade da razão na multi­plicidade de suas vozes", em Revista Filosófica Brasileira (Depart. de Filosofia da UFRJ), v. IV, n. 4, out. 1989. O grande momento da problemática do método terá sido no Ocidente moderno o da opção entre dedução e indução, justamente no século XVII, com um debate que vai de Descartes e de Bacon até Stuart Mill. Não custa aliás lembrar a frase de Bacon, preconceituosa mas com visos de razão, segundo a qual a teologia se assemelha à virgo a deo consacrata, que nihilparit.

Page 95: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 2 NELSON SALDANHA

da Segunda Parte), foi a afirmação de que a ordem das idéias, e suas conexões, são iguais à ordem e às conexões existentes nas coisas. Deste modo os princípios racio-nalistas são outros, e os dualismos em que se expressam (inclusive com sentido ordenador) são outros. Neste ponto podemos indicar uma alteração historicamente significa­tiva: a passagem do dualismo concernente ao espaço sa­grado e ao profano, para o correspondente ao espaço público e ao privado. Como na Idade Média, ao que afirmam muitos autores, não vigorou com bastante nitidez a distinção entre o público e o privado, entende-se que com a modernidade (a modernidade racionalizante, dita "burguesa") tal distin­ção apareça com mais luz, configurando categorias opos­tas ou complementares6. Só que, em realidade, a distinção entre sagrado e profano permaneceu, dentro dos resíduos teológicos de que tratamos no capítulo anterior; e daí no­vas combinações e novas complicações.

2. SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

A metafísica nasce da secularização; ela a expressa; ela é a própria secularização.

E como, sob certo prisma, o pensamento platônico (que foi também um grande dualismo) ficou constituin­do a metafísica por excelência, o legado platônico fez permanecer na metafísica ocidental as ambigüidades que carregava: sua superação da teologia pré-socrática, e ao mesmo tempo seu conteúdo teológico, seu dualismo fundamental e seu desejo de unificação das coisas — alma, cidade, cosmos — através da paideia e da episteme. Não seria exatamente o caso de adotar a famosa frase de Whitehead: toda a filosofia ocidental vem a ser tão-so-

O assunto foi objeto de conhecido livro de HABERMAS: cf. E'espace public. Archéologie de Ia publicité comme dimension constitutive de Ia soríeté bourgeoise.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

mente uma/«/ -»r t em relação ao pensamento de Platão. Mas de fato o que aparece em Platão são os grandes problemas postos pelos pensadores que o antecedem7, redimensionados em uma vasta e conseqüente discussão; a referência fundamental ao mundo8 e à ordem humana, correlata da ordem do pensar, subsiste como modelo atra­vés das mais diversas formas. Em Platão, a herança teo­lógica subjacente na antiga metafísica anima a retórica e alimenta as abstrações, que se organizam como um mun­do específico de formas, destinadas a persistir no latim medieval através de desinências peculiares (quidditas, perseitas) e no latim da Europa pós-medieval através de outras tantas construções. No campo do pensamento so­cial o modelo platônico (diante do qual se esquecem com certa injustiça os utopistas anteriores) permanece não só como exemplo para todo o pensamento utopizante, mas também como referência para as diversas versões da op­ção entre governo-de-homens e governo-de-leis9.

Entretanto, ocorre a crise. Trata-se de uma série de dificuldades que afetam em diversos momentos a traje-

Veja-se SCHUHL. Essai sur Ia Formation de Ia Pensée Grecque. Introduction historique à une étude de Ia phihsophie platonicienne. Para o aspecto polí­tico, BARKER. Greek Política! Theorj. Plato and his predecessors. Cf. ainda GRISWOLD. "La naissance et Ia défense de Ia raison dialogique chez Platon", em AAW (J.F. MATTEI, org.), Ea naissance de Ia raison en Grèce, op. cit, p. 359 et seq.

MUGLER Deux thèmes de k cosmohgie grecque: Devenir cyclique et pluraüté des mondes, Ver também VLASTOS. 0 Universo de Platão. Sobre os aspectos científicos (de ciências naturais) na obra de Platão; WEIZSÀCKER. Ein Blick auf Platon. Ideenlehre, Eogik und Phjsik, Stuttgart: Reclam. A propó­sito de Platão cabe anotar, a despeito da forma literária que sua obra apresenta, que a metafísica é algo muito distinto de toda dramatização, esta talvez mais compatível com a teologia.

Apesar do autoritarismo e da excessiva severidade expressada nas Eeis, inclusive no livro X, com a punição contra delitos de opinião: cf. VLASTOS. O Universo de Platão, op. cit., cap. 2 (ver em especial a citação de Morrow à nota 33). Cf. também STRAUSS. The Argument and the action of Platos Eaivs.

Page 96: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 4 _ NELSON SALDANHA

tória da metafísica ocidental. Ela sofre um hiato durante o iluminismo, que não continua o padrão metafísico do pensamento cartesiano, e que em seu lance final, com Kant, confirma e desconfirma o penchant metafísico vindo do século XVII; durante o romantismo ela recebe o impac­to dos materialismos e do contraste entre seus próprios exageros e as respostas empíricas. O modelo platônico, dentro do qual se achava uma visão parateológica da "ver­dade" e um característico teoreticismo (com sua ontologia à qual Aristóteles acrescentara uma teleologia explícita), vai sendo substituído pelos pragmatismos emergentes: o de Marx e Engels, que entronizam a noção de práxis (embora ainda se trate, em parte, de uma noção teórica); o de Nietzsche, que repudia o conceito transcendental de Wahrheit e que busca "libertar" o pensamento: por trás disso, a no­ção clássica de verdade entendida como uma condenação ao abstrato, ao essencial e ao genérico10.

Uma crise: através dela, contudo, refratada e proble­mática, a herança metafísica persiste. Ela se acha inclusi­ve nas próprias filosofias mencionadas, a de Marx e a de Nietzsche. Sem ela não haverá filosofia.

3 . O RACIONALISMO MODERNO E A TEORIA DO

DIREITO

Retornemos entretanto ao advento da modernidade, com a secularização, com a sociedade "burguesa", com o racionalismo, com o proto-iluminismo. Um dos itens que vale a pena citar é o surgimento do livro, com seu impacto sobre a expansão do humanismo a partir de fins do quatrocentos e inícios do quinhentos. Segundo

Sobre o problema em Nietzsche, cf. VATTIMO. As aventuras da diferen­ça, p. 10 e 79-80. Ver também ARENDT. Ea vida dei espiritu. El pensar, Ia voluntadj eljuiào en Ia filosofiay Ia política, p. 21: Deus, segundo Nietzsche, como sinônimo de "mundo verdadeiro". Ver ainda MATTEL UOrdre du monde. Platon, Nietzsche, Heidegger (op. «'/.), p. 120.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, o crescimento numé­rico das bibliotecas revela, naqueles anos, uma perceptí­vel afirmação das gens de robe (principalmente advogados e notários), cujas bibliotecas ultrapassam as dos eclesiás­ticos em escala expressiva. Logo em seguida começam a surgir bibliotecas em mãos de profissionais diversos11. Trata-se de um aspecto nada negligenciável do processo geral de secularização.

Por outro lado, há que mencionar a ligação entre a política moderna, na fase do Estado dito absoluto, e o deísmo, que teve relações com a nova cosmologia e a nova física. O deísmo, uma espécie de versão racionalista da cosmovisão monoteísta despojada de sua "religiosi­dade", correspondeu grosso modo ao iluminismo (inclusi­ve o de Voltaire) e à racionalização de conceitos como os de natureza, homem, universo e outros12.

Enquanto o paradigma teológico fazia conceber o Direito (e também a Justiça) como reflexo da ordem das coisas, disposta por vontade divina, cabendo ao pen­samento jurídico amparar-se em citações religiosas ou

11 FEBVRE; MARTIN. L'Apparition du Livre, p. 369-370. 12 Veja-se o capítulo VI, "The parallel of deism and classicism", em

LOVEJOY. Essays in the history of ideas (Oxford Univ. Press — John Hopkins Press) 1960. Ver também ZEITLER Klassi^ismus und Uto­pia. Para uma alusão à diferença entre a natureza como globalidade, na visão antiga (teológica), e a natureza como conjunto de processos seccionados, na visão (racionalista) moderna, cf. LACLAU. "El influjo de Ias ideas filosóficas en Ia revolución francesa", em A-nuário de Filosofia Jurídica j Social, p. 312. Para uma rápida mas certeira alusão às cone­xões entre a Filosofia, a Teologia, a Medicina e o Direito, no Ocidente de Bacon a Saint-Simon, cf. LOSANO. IIfondamento tecnológico delia democracia, p. 1 do cap. II). Para uma discussão teórica das noções de secularização e de racionalismo; HABERMAS. O Discurso Filosófico da Modernidade, p. 13 et seq. A correlação entre o moderno Estado de Direito e o deísmo havia sido destacada desde 1922 por Carl Schmtt na "Teologia Política", "com uma teologia e uma metafísica que ba­nem do mundo o milagre" (Politische Theologie, p. 49; cf. ed. esp., Teologia Política, p. 96).

Page 97: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 6 NELSON SALDANHA

exprimir-se em linguagem eclesiasticamente estabelecida, o racionalismo busca novos prismas e novas ênfases. Permanecem — durante algum tempo ao menos — as for­mas gerais da linguagem, e também os termos genéri­cos (o termo jus e seus correlates, os termos básicos do Direito Civil e tantos outros), mas há uma nova liber­dade para a crítica dos textos, e há um novo modo de pensar que se consolidará com o jusnaturalismo pelas mãos de Grotius. O jusnaturalismo, a partir de Grotius e de outros, será o modo por excelência de se pensar o direi­to; entretanto, antes de chegarem as Revoluções (princi­palmente a Francesa, de 1791), para cujo preparo em parte contribuiu, o jusnaturalismo se desdobrará, fazendo alu­são a um "Direito Natural" e aos "direitos naturais"13.

Reestruturam-se então, mas com implicações metafí­sicas menos ostensivas, os velhos dualismos da teoria do Direito, inclusive e obviamente o dualismo "Direito Natural-Direito Positivo", que aos poucos saltaria fora do mero quadro classificatório e assumiria sentido de reivindicação doutrinária ou de alegado crítico. E espe­cificamente o dualismo "Direito Público-Direito Priva­do", restabelecido em sua plenitude pela legislação re­volucionária, na França sobretudo.

Aqui tropeçamos com um incitante subtema. Tra­dicionalmente, isto é, desde os juristas romanos, o "Di-

Sobre a época ver a obra de TODESCAN. Le radiei teologiche delgiusnatura-lismo laico, I: 11 problema delia setolark^a^tone nelpensiero giuridico di Ugo Gro^io — col. "Per Ia storia dei pensiero giuridico moderno". Cf. tam­bém o v. II, II problema delia secolari^a^ione nel pensiero di ]ean Domat, ibidem. Ver ainda COSTA. IIprogetto giuridico. BJcerche sulla giurispruden^a dei liberalismo clássico, e também Wolfgang RO D, Geometrischer Geíst und Naturrecht, Munique (Bayerischen Akademie der Wissenschaften). Assim a tendência liberal, com sentido secularizante e na direção dos "direitos", contrastou com a tendência conservadora que enfatizava os "deveres". Seriam os deveres (inclusive no conservadorismo de Comte) um correlato da marca teológica?

SECULARIZAÇAO E METAFÍSICA 4 7

reito" vinha sendo — como objeto de um saber referido a textos e a conceitos - o Direito Civil. Salvo, certamen­te, as referências a noções políticas como imperium, aueto-ritas e outras, que não chegavam a configurar um "direi­to público" inteiramente elaborado14. Esta identificação entre "Direito" e Direito Civil veio persistindo (mesmo com o binômio "civilistas-canonistas" vigente durante a Idade Média) através do Anàen Regime, com a ciência jurí­dica italiana, alemã e francesa. Com Rousseau, porém, e com sua concepção da lei, assumida pela Revolução; com o Constitucionalismo revolucionário, a um tempo libe­ral e estatizante15; com a pressão doutrinária afetando as relações entre política e Direito, sobreveio a tendência a uma supremacia do Direito público. A própria noção de constituição incluía como um dado a sua supremacia, diretamente ligada à vontade geral.

Esta idéia de um Direito preferentemente público foi absorvida por Hegel, que inclusive criticou em Rous­seau um penebant pnvíLÚsta, ligado à teoria do contrato16. Hegel, que se interessou pelo Direito romano e pelo Direito Natural, entenderia o "Direito" sobretudo como constitucional e internacional: filosoficamente, um correlato do Estado17. Com isto se compreende a ambigüidade da influência de Hegel sobre os juristas alemães que se

14 Sobre o imperium (próprio da lex) e a auetoritas (própria dos "prudentes" e embasadora do ius), ver PIETRO. "La prudente tarea de interpretacción en ei derecho romano", em Anuário de Filosofia Jurídica j Social, p. 226.

15 Vale consultar entre outras coisas o ensaio de MATEUCCI. "Posi­tivismo giuridico e costituzionalismo", em Rm Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, p. 985 et seq., com importantes digressões metodológicas. Cf. também nosso livro Formação da teoria constitucional.

16 Parágrafo 258 da Filosofia do Direito de Berlim (1821): cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts, Stuttgart: Reclam, 1976, p. 387 et seq., p. 270 et seq.

17 Sobre Hegel e o Direito Romano veja-se o lúcido ensaio de VILLEY, em Archives de Philosophie du Droit (Sirey), p. 275 et seq. Para uma refe­rência de Hegel ao Direito Natural, cf. La science de Ia logique, (op. cit.), p. 122; Rudolf Wiethõlter emprega a expressão "politização do direi-

Page 98: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

4 8 NELSON SALDANHA

lhe seguiram, justamente em uma Alemanha onde, a partir de meados do oitocentos, se definiu crescentemente a distinção entre privatistas e publicistas: aqueles traba­lhando dogmaticamente e sem aderências filosóficas — é o caso dos pandectistas —, estes divididos entre a tenta­ção historizante, onde o hegelianismo podia vigorar, e a disciplinação formalista e privatizante, na linha de Laband e Seydel18.

Entretanto, estes problemas correram paralelos ao des­dobramento de um traço vindo da seculari^ação e do üuminismo, ou seja, o movimento pela publicização do sa­ber e dos atos, algo a que Kant se havia referido. Esta tendência alcançou inclusive o Direito processual, onde a diferença entre jurisdição e competência ficaria represen­tando uma explicitação da distinção entre política e Di­reito19, e onde surgiu (no começo do século XIX) uma novidade apta a alterar os procedimentos: a fundamenta­ção das sentenças, com a publicação dos considerandos por parte das autoridades judiciais20.

_ *

to civil" para mencionar a passagem (anotada por Wieacker) de uma ética formal do dever a uma ética material da responsabilidade: cf. Le formule magiche delia sciemça giuridica, p. 98. Entendemos que o proces­so é mais complexo, com uma privatização do Direito público, ao tempo de Seydel, e uma administrativização do Direito Constitucio­nal (com a purificação normativa) e xskrzT,, também, do Direito Civil.

18 Cf. nossa Formação da Teoria Constitucional, op. àt, cap. IX. 19 Ver nosso artigo "Jurisdição e competência: nota sobre o sentido

histórico-político da distinção", em Revista de Informação Legislativa (Senado Federal, Brasília).

2" HATTENHAUER. Los fundamentos histórico-ideológicos dei derecho alemân. Entre Ia jerarquíaj Ia democracia, p. 61. Importaria questionar as relações entre este passo e o advento da noção de "verdade processual", e tam­bém a elaboração da teoria das espécies de sentenças, que podem inclu­sive ser constitutivas, isto é, instauradoras de uma substantividade.

SECULARIZAÇAO E METAFÍSICA

Parece contudo que, historicamente, a maturidade do pensamento jurídico europeu coincide com a própria crise do radonalismo moderno. Referimo-nos ao pensa­mento jurídico posterior à Revolução Francesa, a Kant e a Hegel: aquele que se expressou através das escolas do século XIX, a da Exegese, a de Savigny, a dos pan­dectistas. O radonalismo, que teve presença perceptível no processo cultural iniciado com o humanismo renas­centista, terminou enredado em contradições, que se dão em termos filosóficos e também no plano das ciências sociais. O Estado Moderno, cujo início implicou tam­bém a presença do componente "radonalismo", transi­tou da monarquia absoluta para o constitucionalismo, e o crescimento da dimensão "democrática" e do teor de liberdades correu paripassu com o das complicações insti­tucionais. Inclusive, das estruturas burocráticas: Max Weber perceberia, já no começo de nosso século, as relações entre a ação do radonalismo governamental e o advento do ethos burocrático. Todas estas coisas configuram repetições e re­tomadas, em relação a contextos anteriores. Significam exa­geros e ambigüidades: pode-se interpretá-las como crise, senão declínio, do logos ocidental21.

São realmente dois processos complementares, que se estendem a partir do radonalismo pós-medieval. Por um lado a passagem do dedutivismo, com sua imagem matematizante da ciência, ao positivismo cientificista e à tecnocracia. Por outro, a transição do lado ético do dedutivismo (o de Wolf e Pufendorf por exemplo) aos normativismos mais recentes, aos quais se conjugam o logicismo e o analitismo22.

21 Empregamos estas palavras sabendo que elas recordam Spengler. Entretanto a expressão "decadência do logos ocidental" aparece, se bem com toque algo específico, no interessantíssimo livro de LE-FEBVRE. Niet^sche, p. 50.

22 Ver o capítulo I, "El radonalismo metódico" do livro de MASSINI. LM desintegración dei pensar jurídico en Ia edad moderna. Cf. também os

Page 99: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

4. ALUSÃO AO PROBLEMA DA LEGITIMIDADE

Voltemos à dualidade resultante do processo de se-cularização e da permanência do teológico. O padrão racionalista se torna dominante, no mundo moderno, mas persistem traços teológicos nas idéias e nas crenças.

Essa dualidade pode constatar-se também no qua­dro da antiga cultura grega, onde o emergir do raciona-lismo conviveu com a permanência de componentes religiosos. Assim, o conceito de liberdade ainda pos­suía, nos textos de Heródoto, um sentido religioso: ao relatar as guerras com os persas, às quais dava um senti­do de pugna entre liberdade e escravidão (ou entre helenidade e barbárie), Heródoto atribuía à própria pa­lavra Eleutheria (liberdade) um sentido divino23.

No Ocidente podemos apontar uma secularização cultural que abrange o pensamento político e o jurídico -com os respectivos valores —, e que alcança processos paralelos como o jusnaturalismo de Grotius e pós-Gro-tius, o liberalismo de Locke em diante e o contratua-lismo que ocupa o século XVIII mas vem da época de Hobbes e de Locke, senão de antes. Com o liberalismo

capítulos seguintes, inclusive o III, sobre o normativismo. O tema é aflorado, com brevidade e clareza por BOBBIO no verbete "Método" no Novíssimo Digesto Italiano, v. X (UTET), p. 602 et seq. Paul Amselek registrou, atiladamente, que o positivismo, oposto ao jusnaturalismo, aparece entretanto como seu "herdeiro", inclusive pela permanência do problema de "fundar" o direito, ou seja, de encontrar a razão pela qual ele é aceito e obedecido ("Uhéritage jusnaturaliste du positivisme juridique", em Memória dei X Congresso Mundial Ordinário de Filosofia dei Derechoy Filosofia Social, p. 55 et seq).

23 Aludimos a este tópico no capítulo II. Os textos de Heródoto se acham citados e analisados no cap. 4 do livro Eleutheria, de Dieter NESTLE (op. cit). Também em Esquilo se encontraria um uso reli­gioso do termo "liberdade", cf. p. 35 et seq. Para a experiência romana, comparar com o livro de Ch. Wirszubski. Ubertas as a political idea at Rome during the late republic and early principate.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA bi

e com o contratualismo, ambos tendo conotações jusnatu-ralistas, deu-se a secularização do conceito de legitimidade. A legitimidade, que Ortega observou ter sido algo próprio dos contextos monárquicos, sempre representou um pro­blema axiológico: um problema com implicações de psi­cologia social e ligado ao tema da presença da fé, ou de crenças ocorrentes na existência das instituições.

A busca de fundamentos para o poder (e para a obe­diência) dentro do próprio âmbito da razão, evitando concepções como a do medo — timorfeát regnus — ou a da tradição, renovou com Rousseau a idéia do contrato, le-gitimador da convivência e da soberania (em Hobbes, ao contrário, contrato e medo entravam no mesmo es­quema). Com o liberalismo, fundado sobre as referências ao contrato e às individualidades, o Estado se legitima­va por conta de sua própria limitação, racionalmente exigida. Deste modo a legitimidade, perdendo seu anti­go toque divino e seu fascínio histórico, era encontrada na própria forma de elaboração do poder: convergência de vontades, aquiescência de obediências, delimitação-negação do poder como tal.

Depois entretanto o Estado cresceu, aumentou em poder e em serviços, e o problema da legitimidade foi afetado24. Ao fim do século XIX a ciência social possuía uma imagem controvertida mas inteligível da realidade do Estado e de seu poder. Nos começos do século XX Carl Schmitt mencionou em linguagem marcante a ori­gem teológica de certas categorias essenciais do pensa­mento político e da moderna teoria do Estado25. Suas observações, apesar do tom polêmico ou por causa dele, ficaram como uma referência necessária acerca do tema.

AARNIO. "La crisis de legitimidad en Ia sociedad post-industrial", em Anuário de Filosofia Jurídicay Social, p. 203 et seq.

Politische Theologie, op. cit., princ. cap. III.

Page 100: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Na verdade o problema pode ser encontrado na ge­ração anterior à de Schmitt, na famosa alusão de Max Weber ao "monopólio do uso legítimo da violência", por parte do Estado. Ao admitir a violência do Estado como única legítima, Weber implicitamente aceitou que o Estado reserva para si a condição de fonte de toda legitimidade - o que só se pode entender como "ofi­cialização" formal (e normativa) do poder. Parece ha­ver nisto um resquício teológico, vindo do tempo em que o poder por si mesmo era algo sagrado (pmnispotestas a Deo), vindo de Deus aos seus mandatários através da unção, e em que as instituições se entendiam como or­dens participantes da hierarquia universal26.

O problema da legitimidade, no esquema do pró­prio Weber, teria correspondido a uma concepção tra­dicionalista e depois a uma outra "racional" (o tipo caris­mático aparece como forma excepcional): a tipologia weberiana tem como correlato — nem poderia deixar de tê-lo - uma perspectiva histórica.

Entretanto, as alterações ocorridas durante a etapa dita racional significam mudança de plano: a legitimi­dade metafísica, ainda presente nos séculos XVII e XVIII, cede passo a uma legitimidade ideológica. De certo mo­do as revoluções liberais, mormente a Francesa, terão sido o ponto de passagem de uma legitimidade para outra. A sacralidade do poder, ainda componente da legitimidade metafísica (e marca da permanência teoló-

26 Sobre Weber, ver inclusive José Guilherme MERQUIOR, Rousseau e Weber, dois estudos sobre a teoria da legitimidade. É possível, parece-nos, que também na teoria do ato jurídico perfeito e da irretroaüvidade da lei se encontre algum resíduo teológico. O respeito ao ato plenamente cumprido ou às situações anteriores a lei parece remontar ao antigo caráter sagrado de certos atos ou situações. O intuito liberal de pôr um limite ao poder das normas estatais, impedindo-lhes o acesso a determinados direitos, ou atos, ou situações, trouxe uma formulação jurídica para o problema; mas as raízes deste podem estar mais longe.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

gica)27, já não se menciona a partir do oitocentos, a não ser pelos românticos; em compensação buscam-se fór­mulas "científicas" para fundamentar a ordem social, alu-dindo-se à humanidade, ao trabalho, ao saber.

Seria então de questionar-se se o componente teoló­gico, que em alguma medida permanecera dentro das metafísicas pós-renascentistas, permanece ainda no bojo das formulações ideológicas. Poder-se-ia considerar que aquelas metafísicas eram já (ou também) ideologias, mas o verdadeiro pensar ideológico emerge com o flores­cimento do liberalismo e com as influências do capita­lismo sobre as relações entre cultura e sociedade: multi­plicação de formas, provisoriedade de soluções.

5. DIGRESSÃO SOBRE O PENSAMENTO UTÓPICO

Façamos agora uma digressão sobre o pensamento utópico desenvolvido a partir do Renascimento. Do mes­mo modo que, na Grécia antiga, o surgimento de proje­tos utópicos veio depois do período inicial - dir-se-ia, da época "heróica" - , no limiar da modernidade oci­dental os modelos utópicos vieram após um período predominantemente religioso. Mas é como se o adven­to das utopias fosse um traço ainda religioso, permane­cendo dentro do quadro dominantemente racional (e urbano), tanto no caso grego como no ocidental. As motivações para o nascimento do gênero "utopia", no caso do Ocidente, são conhecidas: o reencontro dos textos de Platão, as sugestões das grandes viagens com suas narrativas fantásticas, o sentido de crítica social com desejo de melhores estruturas28.

7 A respeito CASTRUCCI. "La forma e Ia deásione, op. rit, p. 107 et seq. Vale mencionar a propósito, sobre o lado ideológico do problema; D E GIORGI . Sàen^a dei Diritto e l^egitima^ione, cit.

ff IMAZ. Topíaj utopia.

Page 101: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

Pois aí está: somente com o racionalismo poderia surgir a variante utópica. Ela pressupôs a continuidade da crítica social medieval, fragmentária e alegórica, e ao mesmo tempo seu oposto, ou pretenso oposto, o exem­plo platônico, com os diálogos, com a figuração de uma cidade ideal. O Estado Moderno, que negou a dispersão medieval, concentrou poderes e "racionalizou" funções, oficializando o poder: com isto resultaram utópicas (ex­tra-oficiais) as imagens de um outro Estado, imaginário, a um tempo racional e ideal. Cabe lembrar que na Grécia antiga a utopia urbano-planej adora de Hipódamo teve de certo modo um sentido herético; e que também To­más Morus, na Europa do século XVI, teria separado da imagem de Deus o trabalho de reordenação da cida­de dos homens29.

De qualquer sorte vale reter a idéia de uma correla­ção entre o racionalismo e a utopia (sem embargo de que a literatura utópica seguiria florescendo durante o essor romântico): o racionalismo como linearidade e or­denação, como explicitação e clareza — idées claires et distinctes —, sendo uma outra questão a viabilidade daqui­lo que se delineia, que pode ser utópico ou não. Em seu livro Classiàsmo e Utopia, Rudolf Zeitler retomou aquela correlação, estudando a busca da harmonia que os clássi­cos empreenderam, nos antigos e no exotismo30. O ra-

Assim o interpreta Giles L A P O U G E , em Utopie et Civilisations (pp. at), cap. 1, p. 13. Esta idéia, de certo modo, nos remete à concepção de Viço segundo a qual o factum dos homens, ou seja, a história, se distingue do domínio próprio de Deus, que é o mundo, a "reali­dade". Sobre revoluções e utopias, ver nosso artigo "História, revolu­ção e utopia", item 6 (cf. Revista brasileira de Filosofia, v. XXXIX, fase. 157, p. 46 et. seq). Para os contornos do assunto, ver Giorgio MURA-TORE. LM áudad renacentista, trad. esp. P. van Breda, passim. ZEITLER, Klassi^ismus und utopia (pp. cit): parte I, p. 13 et seq.; parte III, p. 185 et seq. Cf. também LOVEJOY, citado supra (nota 12). Seria o caso de estender aos racionalismos do século XX a implicação utópica: cf. SAN MARTIN. LM fenomenohgía de Husserl como utopia de Ia ra^ón.

SECULARIZAÇÃO E METAFÍSICA

cionalismo como utopia e a utopia como racionalismo: em ambos os enfoques um toque de paradoxo e um com­ponente estranho. No anverso, o irracionalismo da uto­pia e o "realismo" do racionalismo.

Parece aliás que o problema do Estado se acha mais ao alcance do pensamento utópico do que o do Direito. Ou por outra, o gênero utopia se encontra mais na teo­ria política do que na jurídica, já que sempre se confun­de a política com o Estado. Dir-se-ia que o Direito vem sendo mais o campo da objetividade e da razão, recta ratio; o Estado, isto é, a política, vem sendo um campo mais acessível à criatividade e à fantasia. Talvez, porém, as coisas não sejam exatamente assim. Certos autores en­xergam nos utopistas o apego a valores jurídicos, inclu­sive a símbolos como a balança e os códigos31. O utópi­co, porém, não estaria no apego a tais valores, sim na crença na perfeição que eles ajudam a criar, a inspirar ou a manter; e neste caso estaria também, quanto ao campo da política, no amor à cidade perfeita e à geometria — a geo­metria social de Sieyès engendrada durante a Revolução Francesa, como um prosseguimento do racionalismo do tempo de Descartes.

Se considerarmos dentro das utopias o conceito de "paraíso perdido", implícito em tantas delas, veremos neste componente um traço teológico que permanece e que acende na própria figura da utopia um rastro de fascínio. As utopias têm um logos próprio e um ethos próprio, mas ambos são tributários da milenar ima­gem da perfeição, pretendidamente perdida e desajei­tadamente procurada.

1 L A P O U G E (op. cit., p. 26) associa o utopismo a um "fanatismo da estrutura". Entretanto o pragmatismo prosaico do racionalismo jurí­dico não corresponde inteiramente ao espírito da utopia.

Page 102: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

CAPÍTULO

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA

• SUMÁRIO •

1. Razão, ciência, teoria. 2. Razão, ciência e ideologia. 3. Positivismo, direito e política. 4. Positivismo e for-malismo. 5. Novamente sobre ideologia.

1. RAZÃO, CIÊNCIA, TEORIA

Quando se fala na ra^ão fala-se com freqüência em seus "progressos". E sempre se fala a partir de uma posição racional; ou, ao menos, de uma posição que acei­ta a validade do racionalismo. A reflexão histórica não pode realmente deixar de aceitar aquela validade, em­bora possa (ou deva) também admitir os limites da razão e da racionalidade, admitindo igualmente, com isto, a validade de posições menos racionais senão mesmo "ir­racionais" — termo que aqui vai empregado sob reser­vas. Deste modo e com este sentido é que a reflexão (ou revisão) histórica pode falar em "progressos" da razão. Pode fazê-lo registrando como ressalva que não se trata de proclamar "vitórias" inexoráveis e irreversíveis da ra­zão, como se pensava no setecentos; e entendendo como progressos os passos no sentido de uma autoconsciencia do logos através da história: progressos históricos da cons­ciência e progressos da consciência histórica1.

Cf. BRUNSCHVICG. Les progrès de Ia conscience dans Ia philosophie ocádentak.

Page 103: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

5 g _ _ _ _ _ _ ^E£2ü^!£ANHA

A ra^ão se desdobra como disciplinação do pensar e do saber: antes mesmo de tomar forma como autocons-ciência, o espírito tende a organizar-se como ciência2. A ciência tende a expandir-se em seus "resultados", con­firmando com isto sua validade; vale dizer, a dos méto­dos que utiliza. A ciência se desenvolve como um modo do conhecimento, e se "aplica", como extensão, sobre os campos em que se "divide" a realidade. Assim os antigos egípcios e caldeus cultivaram a aritmética e a geo­metria, os gregos incrementaram a astronomia, os indus produziram grandes matemáticos: o trato da terra, a vi­são dos céus e a construção de edifícios cobrou da ciên­cia concentrações e ramificações. Aliás Ortega escreveu certa vez que a ciência - diferentemente da filosofia - logo que surge tende a dividir-se em "ciências"3.

As vezes o racional, como linearidade, se encobre por trás dos empirismos que são ostensivos em certas ciências, mas permanece dentro delas como estrutura do pensar propriamente científico. Por isso estamos fa­lando em racionalidade e em cientificidade como coisas relacionadas embora distintas.

*

O repisado topos segundo o qual a Grécia cuidou de filosofia e Roma cuidou de direito retrata, sem embar­go de ser uma simplificação e uma distorção, uma parte da verdade. O espírito helênico, ocupado com proble­mas relativos ao pensar e ao ser, à beleza e à ação, não

Falamos de ciência em sentido amplo, e tomamos autoconsciência em termos mais específicos: algo análogo ao fenômeno da "consciên­cia de si" e do "pensar" em HEGEL (Phenomenologie de l'Esprit, trad. J. Hyppolite, p. 155 et seq., 168 et seq). La idea de principio en Leibni-^ op. cit, p. 32, nota 2: "Apenas Ias ciências nacen, se produce en ellas el fenômeno de Ia especialización".

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA üS

desdobrou de dentro da ética uma noção suficientemen­te clara da coisa que chamamos "direito", embora dis-pusessem, os gregos, de experiência jurídica intensa e exem­plar, com terminologia específica. Os romanos, que mais receberam e mantiveram do que criaram, no tocante ao "pensamento geral", tiveram talvez mais necessidades (ou mais pendores) no concernente à problemática da organi­zação e da ordem. Há inclusive um cunho ordenador dentro da própria estrutura da língua latina (e isto nos levaria a ver uma curiosa correlação entre ordem e hermenêutica den­tro do espírito romano): se é verdade que o texto ainda arcaico das Do%e Táboas dependeu constantemente de uma interpretação para cobrar sentido, por outro lado há quem ache que no modus cogtandi: latino se encontra uma visão pe­culiar das relações entre linguagem e realidade4.

Uma especial junção (que não foi meramente meto­dológica) entre o corpo de conhecimentos relativos ao Direito, herdado de Roma, e a filosofia grega reelabo-rada pelo aristotelismo da Igreja, legou ao Ocidente, sobretudo a partir do século XIII, um padrão de pensa­mento que pesaria de maneira inconfundível sobre a for­mação daquilo que se chamaria teoria. O Direito Romano em sua fase final atravessou um processo de didatização lento e complexo, no qual aparece a codificação de Justi-niano, que padronizou o objeto que viriam a ter diante de si os juristas medievais: não apenas temas e problemas, mas também fontes e conceitos5.

4 "O pensamento latino considera que a coisa foi fixada antes da interven­ção da linguagem, e a linguagem exprime a coisa, independentemente da ordem das palavras, através da lógica das flexões" - Umberto ECO, "A linha e o labirinto: as estruturas do pensamento latino", em G. DUBY (org.). A Civilização Latina, p. 35. Jean-Marc Trigeaud apresenta um esque­ma no qual a justiça, "categoria constitutiva da idéia de Europa", derivaria de três tradições: a greco-romana com o lus, a judeo-cristã com a Persona e a humanista moderna com a ratio (Philosophie Juridique Européenne, p. 25).

5 ORESTANO. Introdu^ione alio studio storico dei Diritto Romano (Torino: Giappichelli, 1963), princ. cap. III; SCHULZ. Hisfory of roman legal

Page 104: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

6 0 NELSON SALDANHA

2. RAZÃO, CIÊNCIA E IDEOLOGIA

As linearidades do pensamento dito racional não excluem — como foi mencionado — em sua trajetória histórica, inclusive ao abrir-se a "modernidade", algu­mas permanências do pensar teológico. Este persiste como contrapartida, como uma espécie de área não-conquistada, dentro do processo de secularização que gradualmente abrange a vida social, os valores, a cultu­ra. O capitalismo, o predomínio da vida urbana, a ra­cionalização (inclusive no sentido de recuo da traditió), tudo isto condicionou, no Ocidente de após o quatro­centos e sobretudo após o quinhentos, a secularização cultural. Diante dela, e das pretensões do racionalismo — com seu desdobramento o cientificismo —, a perma­nência histórica de elementos teológicos pode figurar como um contraste, descontínuo talvez mas sempre perceptível: e com o tempo, outros modos de pensar que surgem, e que não se encaixam no conceito de "ra­cional", podem ser assimilados ao pensar teológico. Diríamos, por exemplo, que o advento das ideologias (falo particularmente dos "ismos" que se vão forman­do a partir da Ilustração) pode ser comparado a um surto de implicações teológicas. Os socialismos do sé­culo XIX, tanto os "utópicos" como o soi-disant cientí­fico de Marx e Engels, tiveram no fundo um toque teo­lógico. Um toque ligado, por sua vez, à sua dimensão mesma de utopia: utopia, messianismo, crença. O conser­vadorismo romântico, por seu turno, apresentou inequí­vocos traços teológicos, como no caso de um Haller, de um Müller, de um Donoso Cortês.

science (Clarendon Press, Oxford, 1953), partes III e IV; AAW, II modello di Gaio nella formazçione dei giurista, passim. Sempre cabe distin­guir entre a idéia de "clássico" na história do Direito romano e os "clássicos" em sentido literário.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA

Entretanto a observação é reversível. Se tomarmos em sentido bastante amplo a noção de ideologia^, tere­mos as teologias como ideologias — sobretudo as teolo-gias modernas e contemporâneas, as do tempo de Pascoal inclusive, as do período romântico especificamente7.

Deste modo o esquema histórico que estamos infor­malmente usando (razão, ciência, ideologia) pressupõe como antecedente a presença do modo teológico de pen­sar, que no caso perdura através dos padrões racionais e também dentro das ideologias. Em sentido bastante amplo, o termo ideologia se derrama por sobre todas ou quase todas as atividades e expressões intelectuais; mas em um sentido mais restrito somente seriam "ideo­lógicas" as expressões culturais claramente comprome­tidas com o poder ou com a luta pelo poder. E como, na teoria social contemporânea, foram os autores mais preocupados com o poder econômico os que mais tra­balharam sobre o conceito de ideologia (falamos mais de Marx do que de Cabanis e de Destutt de Tracy, é cla­ro), este conceito permaneceu tingido de conotação eco­nômica. Coisa que aliás se corresponde com o fato de que o processo de secularização, historicamente, tem por protagonista principal o "burguês" (este, a nosso ver, o sentido central deste termo), e tem o capitalismo como um componente inegavelmente relevante: é com a secula­rização que o pensar, desvinculando-se de fundamentos "maiores", se vincula às informações referentes ao social e ao econômico, de onde a crescente alusão a "fatores" e a "elementos"; de onde igualmente seu ostensivo cunho

A própria bibliografia a respeito tende a ser ideológica. Vale mencio­nar a respeito o tema da "objetividade" em ciências sociais, tratado por Felix Kaufmann em sua Methodology of the soàal sciences (Oxford, 1944, cap. XIV). Ver a coletânea, org. por MAIHOFER. Ueologie und Recht; cf. também ZEITLIN. Ideologia j teoria sociológica; SMITH. Las ideologias y ei derecho. Sobre a época do autor das Pensées, LEFEBVRE. Pascal.

Page 105: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

^l________^ _ _ _ N E L S O N SALDANHA

ideológico. Daí o traço ideológico parecer mais claro como atributo das obras "modernas" e "contemporâneas", do que das antigas, tornadas clássicas.

*

Falamos, acima, do condicionamento histórico que afeta a ra^ão; de seu desdobramento como ciência; de sua precariedade como ideologia. Agora, uma anotação sobre dois pontos que são atingidos pelo processo histó­rico que tomamos como referência, a saber, a passagem das teologias à secularização. Um deles é o conceito de ser, que, quando do aparecimento da filosofia — justamen­te a ontologia de Parmênides — adquiriu um sentido espe­cial (aludimos ao assunto no capítulo II), pressupondo a idéia de Deus e ao mesmo tempo distinguindo-se dela8. O ser permanece como tema central durante as escolásticas ocidentais, e dentro das metafísicas mo­dernas. Não é tematizado nas filosofias de índole positivista, declaradamente antimetafísicas. Nem é tema­tizado nos neopositivismos do século XX, com os quais a preocupação metodológica se entroniza. O outro ponto é a noção de verdade. Ela perde o sentido sagrado ao surgir a filosofia — inclusive com a sofistica — retoma algo daquele sentido em Platão, combina-se com a ontologia no tomismo, que relacionava o intellectus com a res, e vai entrando em crise com o criticismo e com os pragmatismos (o de Marx e o de Nietzsche sobretudo). E também se reduz, com os neopositivismos, a um problema metodológico9.

Cf. ORTEGA. La idea deprinápio, op. cit.,passim e princ. p. 241 e 266. Para um cotejo; HEIDEGGER. Introdução à metafísica. Para o caminho de Bacon a Nietzsche, Hans Barth, Verdad e ideologia. Ver também LÓWITH. De Hegel à Nietzsche.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA É3

3. POSITIVISMO, DIREITO E POLÍTICA

Metafísicas e antimetafísicas se contrapõem, na evolu­ção do pensamento moderno, como heresias e escolásticas se contraditaram no medievo, ou como orfismos e escolas pós-socráticas se opuseram na antigüidade. A vasta cons­trução de Hegel, herdeira e resgatadora da sucessão de "sistemas" vindos de Descartes e de Leibniz, provocou refutações e variantes por todo o século XIX. O retorno ao empirismo, aliado à "crise da razão", trouxe para o cen­tro do pensar ocidental a tendência positivista, que veio a ocupá-lo junto a outros figurantes de talhe menor: o utilitarismo, o anarquismo, os ecletismos. O fascínio ainda irradiado pela figura de Hegel não impediu que dentro mesmo de sua esfera de influência se contestassem certos trechos centrais de sua obra. Deste modo a teoria da alie­nação, a partir de Feuerbach, não somente acentuaria o ca­ráter ilusório das representações religiosas, como também denunciaria todo poder como fundado sobre falsificações — contra a exaltação do Estado legada por Hegel10.

A mentalidade positivista veio do racionalismo e do iluminismo, este já com uma vertente pragmatizante, voltada para o saber empírico, como em Diderot e na Encyclopédie (que visava aos métiers). Veio também da aversão de certos intelectuais à "metafísica revolucioná­ria". Veio, portanto, do conservadorismo que recusava a teoria dos direitos, trocando-o pelos deveres (como no Catecismo de Comte); trocando-o também pela teo­ria da sociedade11. Um dos ramos ou afluentes do am-

1 ° Cf. FEUERBACH. Aportes para Ia critica de Hegel. Ver também MOYA. De Ia àudady de su ra^ón, op. cit., cap. V.

1) Sobre o positivismo, G. SOLARI, Studí Storici {op. cit.) cap. XIII. Ain­da, SPAEMANN. Der Ursprung der So^iologie ans dem Geist der Restauration, Munique: Kõsel Verlag, 1959. Complementarmente DE SANCTIS. Crisi e Scien^a, Ljtren^ von Stein — alie origini delia scien^a soáale.

Page 106: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

6 4 NELSON SALDANHA

pio movimento positivista, o evolucionismo, tomaria conta dos estudos antropológicos e históricos.

O positivismo consumou a tendência a tratar de "fe­nômenos" (não de nômenos, não de essências); no referen­te aos temas sociais e políticos, a tendência a falar em fa­tores e em elementos (dissemos isto algo acima). Com isto se criou o saber sociológico, dotado de linguagem peculiar e de problemas próprios. Criou-se também o saber econômico, que nasceu como análise de regulari-dades e de leis, e que no século XX ganharia relevos técni­cos muito especiais. E também o saber psicológico, por um lado obviamente empírico, por outro cheio de po­tenciais pretensões em relação à própria filosofia. As ciên­cias especiais se sucederiam assim por todo o século XX (psiquiatria, psicanálise, administração, demografia, tan­tas mais) vinculando interpretações parciais da realidade, cuja convergente e diversificada influência foi metendo a consciência do homem em um labirinto de auto-imagens.

Em tudo isto, o traço longo e pesado do àentifiásmo, trazendo sempre para o saber social o modelo das ciên­cias naturais. Talvez um eco, ainda, da presença quase imperceptível de Kant, cujas intrincadas análises se re­feriam Aofactum da ciência positiva. Talvez a pressão do empirismo e do pragmatismo, plantados sobre o "paradigma" do saber científico-natural.

*

O Direito e a política, dois conceitos chegados à modernidade a partir de antigas e veneráveis fontes gre-co-romanas, enfrentaram no século XIX uma contradi­ção fundamental. Por um lado mantinha-se em torno deles o essencial daquelas fontes, com os conceitos clás­sicos sobre justiça, governo, leis, obediência; por outro, a experiência ocidental se revelava como coisa diversa e exigia uma nova terminologia. Toda a teoria política mo-

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA _M

derna apresenta no fundo esta ambigüidade: ela é e não é uma continuação da antiga. O próprio Machiavelli, tão apai­xonado pelos protótipos clássicos, engendrou nova lingua­gem e expressou motivações novas.

Por algum clinamen histórico, ligado à forma como foi herdada, a teoria política concentrou, em sua traje­tória e em seu desenvolvimento, uma série de temas "substanciais" cuja discussão veio envolvendo valores, estruturas, atos e fins em sentido concreto. A teoria jurí­dica, por sua vez, concentrou-se em torno de preocupa­ções conceituais, distinguidoras e classificatórias: ou seja, em torno de problemas metodológicos. Este pendor ocor­reu, conforme foi visto anteriormente, sobretudo na es­fera do direito privado, sempre mais formal, e sob certo prisma mais "jurídico" do que o chamado direito públi­co. Mario Losano chega a dizer que no fundo a história do conceito de sistema coincide (no sentido contempo­râneo) com a história do direito privado, e em particu­lar com a do direito privado alemão12. Este é um aspec­to mais ou menos assente, mas em torno disto giram sempre algumas indagações13.

*

O advento do positivismo trouxe, para a teoria do Di­reito, uma espécie de "consciência infeliz", atormentada por antíteses internas. Sua dívida histórica em relação à metafísica

'- LOSANO. Sistema e Struttura nel Diritto, v. I, Dalle origini alia scuola storica, p. 227.

VIOLA, por exemplo, considera, partindo de uma identificação (questionável) entre dogmática e interpretação, que o século XIX pro­piciou um afastamento entre dogmática e "ciência do direito", e com isso a interpretação teria ficado excluída do âmbito epistemológico ("Ermeneutica e Diritto. Mutamenti nei paradigmi tradizionali delia scienza giuridica", em Rivista Internationale di Filosofia dei Diritto, série IV, LXVI, abr./jun. 1989).

Page 107: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

í>6

persistiu, dentro mesmo da estrutura de seus temas, de sua linguagem, de seu método; entretanto a atitude positiva repudiava a metafísica e atava os movimentos do pensa­mento jurídico a dados intransponíveis, como os textos le­gais. Quando não a ampliações predeterminadas, como na alusão a fatores sociais em sentido naturalístico14.

Positivismos distintos vêm atingindo o saber jurídi­co desde meados do oitocentos15. Implícita ou explici­tamente, toda posição positivista reinvindica em sua base uma reforma quanto ao método: abandono dos dedutivismos e das referências ontológicas, adoção do empirismo de tipo científico-natural ou do modelo matematizante (neopo-siüvista), preocupação com a "análise da linguagem". A pretensão matematizante e a análise da linguagem são, como se sabe, frutos do século XX; no século XIX a in­sistência sobre apositividaâe do Direito, como ocorreu com Bergbohm, tomada em consideração a ordem jurídica como um todo e como realidade socialmente concreta.

Dentro destas coordenadas, ou deste "clima" (o da antimetafísica do século XIX), surgiria a Sociologia Jurídi­ca, oriunda, em parte, do material histórico levantado e cadastrado pelos evolucionistas, e também da preocu­pação típica do oitocentos com o problema dos "fato­res" e das "causas" dos fatos sociais16. Surgiria também,

14 O assunto é tratado de passagem em alguns pontos do artigo de FERRA­RA. "Teoria dei Diritto e Metafísica dei Diritto" [Scritti Giuridid, Milão: Giuffrè, 1954, v. III) redigido como crítica a Carnelutti e com excessivo ímpeto polêmico. Sobre Ferrara e Carnelutti veja-se o breve estudo de Na­talino IRTI, "Problemi di método nel pensiero di Francesco Ferrara" em 'Revista áDireito Civil, Imobiliário etc, São Paulo: RT, ano 1, n. 1, jul./set 1977.

15 Sobre as diferentes acepções do termo "positivismo". WIEACKER. Historia dei Derecho Privado de Ia Edad Moderna, p. 378-379. Cf. também O T T O N E L L O . " D u scientisme au technologisme"; TRIGEAUD. Humanisme de Ia Liberte et Philosophie de Ia Justice (pp. cit., p. 121 et seq.)

16 Cf. nossa Sociologia do Direto. Registre-se o fato de que, com o equivocado questionamento dos "fatores", propiciou-se algo oportuno: a visão do fenômeno jurídico em correlação com as estruturas sociais e com o poder.

vindo do mesmo material mas implicando esquemas con­ceituais distintos, o "Direito Comparado", que ainda em sua fase de formação seria entendido como sendo um método — o que é relevante17.

Todavia, dentro mesmo do positivismo do século XIX, ainda ligado ao empirismo e ao trato com o concreto, lavrava a sutil tendência ao formalismo. Já mencionamos sua presença nos publicistas alemães da linha de Laband, de Gerber e Seydel, que buscavam evitar não apenas (e basicamente) toda metafísica, mas também toda conotação social e "política"; mais ainda, talvez, nos privatistas da chamada pandectística. O acento com que se recusava de plano todo jusnaturalismo, em nome de um direito evidentemente positivo, abria um claro no lugar do antigo e fandanteykr naturak, e este claro era como que uma forma, que tinha de preencher-se. Se nos tempos da teologia o Direito possuía um fundamento, um alto chão religioso onde inclusive crescia a idéia de uma lei natu­ral, e se com o racionalismo metafísico o fundamento jusnaturalista se explicitou como sistema, com o positivismo contemporâneo cancela-se todo fundamento desta espécie: em seu lugar, o que passa a importar é a ptópúa forma, antes função de um fundamento e agora coisa autônoma, ponto de referência para a própria possibilidade de um tratamento "científico" de determinado objeto18.

Este prestigiamento da forma, latente no juspositi-vismo do século XIX, se robustece e se consagra duran­te a primeira metade do XX, a partir da influência do

Para a origem do "Direi to Comparado" , ver nosso estudo " O s relativismos do século XX e os movimentos comparatistas em Direi­to e em economia", em Temas de História e Política.

1 Sobre a origem de uma "sistemática geral do Direito" na tratadística do Direito Natural, cf. Norberto Bobbio em N. BOBBIO e M. B O V E R O Sociedade e listado na Filosofia Política Moderna, trad. C. N. Coutinho, p. 35. Para Francesco d'Agostino, o jusnaturalismo do tipo do de Grócio se incluiu entre as "tensões unificadoras" na teoria do direito (Diritto e Secolari^a^ione, pagine di Filosofia giuridica e política, p. 41 et seq).

Page 108: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

:;; NELSON SALDANHA

neokantismo e da fenomenologia, com a conversão das cautelas didáticas de um Jellinek no radical formalismo de um Kelsen, com a tentativa de extrair do neopositi-vismo e dos novos racionalismos as bases para uma su­posta "reconstrução" da teoria jurídica. Daí o "aprio-rismo" de Schapp e de Schreier; daí o formalismo de Bobbio (e da "escola de Turim"); daí alguns ingleses, como Hart, largando o velho empirismo britânico por uma seca e insulsa "jurisprudência analítica"19.

Da mens classificatoria (Foucault falou de "saber classifi-catório" a propósito dos autores do tempo de Buffon) à dogmática pandectística — e ao céu dos conceitos, para utilizar o termo de Iherig em sua fase crítica — o pensa­mento jurídico consolidou o seu racionalismo como formalismo, quer na linha alemã com a influência da "escolástica" wolfiana, quer na linha francesa com o racionalismo do código e o legalismo da Exegese20.

4. POSITIVISMO E FORMALISMO

Os formalismos surgem sempre, como os positi-vismos, reagindo contra a "imprecisão" do conhecimen­to, ou contra a "inverificabilidade" das afirmações pró­prias da metafísica. Em ambos os casos se encontra uma confusão entre filosofia e ciência, senão uma redução da­quela a esta. A filosofia é admitida apenas como um pro­nunciamento metodológico sobre o trabalho científico, ou então como um complemento eventual.

Deste modo os formalismos vieram, no Direito, a ser um modo especial de positivismo, desligado do que

19 HART. El concepto de Derecho, trad. G. Carrió. Cf. O C A N D O . "La 'analitical jusrisprudencê' de H.L.A. Hart", em Revista da Fac. de Direi­to da Univ. dei Zulía, Maracaibo, n. 20, 1967.

20 Ver os artigos de FERRAJOLI. "La formazione e 1'uso dei concetti nella scienza giuridica e nella applicazione delia legge"; VILLA. "La formazione dei concetti e delle teorie nella scienza giuridica", em Material/ per uma storia delia cultura giuridica. Cf. também MASSINI. Ltf desintegraáón dei pensar jurídico en Ia edad moderna, passim.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA

poderiam ser resíduos da envelhecida "filosofia positi­va" do oitocentos e centrado sobre o "rigor conceituai" recomendado pela fenomenologia e pela filosofia ana­lítica21. A "objetividade" se erigiu como valor maior para o conhecimento. As filosofias de índole analítica, os pen­sadores de pendor lógico-formal (inclusive Kant) foram tomados como ponto de partida; o neokantismo jurídi­co, que viera a uma evidência maior com Stammler e ou­tros na Alemanha, com Petrone e Del Vecchio na Itália, preparou o terreno. Assim se têm as bases do formalismo mais influente do século, o de Kelsen, plantado sobre o neokantismo, o neopositivismo e a fenomenologia22.

Já nos anos 30 se falava em Methodenstreit (disputa metodológica) na teoria do Direito23. Mas após a Segunda Grande Guerra (1939-1945) o pensamento jurídico ociden­tal se enfrentou com um dilema específico. O nazismo ti­nha valorizado as filosofias "da vida", as doutrinas que fa­lavam da comunidade e da existência, repudiando os formalismos como doutrinas "abstratas"; com isto a que­da do nazismo possibilitou e propiciou um certo respeito pelo formalismo. Entretanto a mesma queda do nazismo pôs em questão o positivismo jurídico, reabriu o debate sobre o Direito Natural e veio a prestigiar as filosofias liga­das à história, à política e aos valores24.

21 CARRINO. 1^'ordine delle norme. Política e Diritto in Hans Kelsen. ("Formalismo e crise da razão").

22 Cf. nosso artigo "Situação histórica da teoria pura do direito", ora em Teoria do Direito e crítica histórica.

23 Menciono o livro de S C H W I N G E . Methodenstreit in der heutigen Rechtswissenschafi, onde o autor afirmava que o formalismo do tipo de Laband, e sobretudo de Kelsen, se achava superado no próprio plano da formação de conceitos (cf. CARRINO, loc. cit., p. 24). O texto de Schwinge foi publicado em tradução italiana em 1989, dentro da cole­tânea organizada por Carrino Metodologia delia scienza giuridica.

24 Sobre a "reafirmação jusnaturalista" nos países de língua alemã após a Segunda Guerra Mundial, RECASÉNS SICHES. Vanorama dei pen-samiento jurídico en ei siglo XX, p. 759 et. seq.

Page 109: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

?'C NELSON SALDANHA

A divergência entre jusnaturalismo e juspositivismo transformou-se então em uma opção decisiva dentro da filosofia do Direito. A revalorização do Direito Natural abriu caminho para revisões referentes à oposição históri­ca entre jus strictum ejus aequum, como problema geral e como alternativa dentro da própria prática do Direito25. O credo jusnaturalista, contudo, não se renovou suficiente­mente nem nas bases nem nas formas, repetindo quase sempre argumentos vindos da ontologia clássica, senão mesmo tradicionais alegações teológicas26. Com isto a re­construção da teoria do Direito tem sido feita de manei­ras distintas conforme a área de predomínio desta ou da­quela "posição", permanecendo um tanto exageradamente a diferença entre jusnaturalismos e juspositivismos.

Todos estes problemas se situam dentro do âmbito da crise histórica da razão (crise do logos ocidental), que já mencionamos e que é também crise dos fundamentos da civilização, com o desprestígio da transcendência e dos conteúdos maiores. Daí, conforme dissemos acima, a entronização da forma: só que a crise, de fato, alcança também a forma. No capítulo II citamos Castrucci, se­gundo o qual a forma, no período "ontoteológico", precede a decisão. No século XX, a forma se entroniza, mas ao mesmo tempo há um crise geral nas próprias for­mas; e a decisão, que alguns tentam sobrepor existencial-mente à forma, também faz parte das expressões da cri­se, isto é, faz parte da crise.

25 Ver BOEHMER. El derecho a través de Ia jurisprudência. Su aplicación j creaàón, trad. J. Puig Brutau, p. 168 et seq. Um tema conexo seria o da transformação do velho princípio rebus sic stantibus na teoria da "imprevisão" ou na da "onerosidade excessiva", em função de aspec­tos novos de um mesmo problema.

26 Cf. RECASÉNS SICHES, Jusnaturalismos actuahs comparados, ed. Univ de Madrid, 1970. Para um panorama geral, o clássico WOLF. Dasprobkm der Naturrechtskhre. Igualmente clássico CHARMONT. La renaissance du droit naturel. Ver ainda DELHAYE, Permanence du Droit Naturel, Iüle-Louvain.

TEORIA DO DIREITO, POSITIVISMO E IDEOLOGIA 71

5. NOVAMENTE SOBRE IDEOLOGIA

Vimos que o tema das ideologias surgiu mais ou me­nos quando se entendeu que a própria "verdade" é algo relativo, e mais: algo condicionado. Vimos que em sen­tido amplo o atributo "ideológico" se aplica a todas as expressões do espírito, mas que seu uso se tornou viável ao tempo dos positivismos gerados após a época de Hegel. A ideologização do pensamento social contemporâneo aparece, diante do papel da razão e das pretensões da ciência, como uma espécie de vitória da doxa como pre­sença constante e pesante do opinativo, do condicionado, do não totalmente objetivo27.

A linguagem das ciências sociais vem permitindo que se pense em ideologia todas as vezes que um com­portamento, um valor ou uma estrutura se relacio­nam com algum "condicionamento" social. Deste modo a política e o Direito, tal como a vida econô­mica e cultural, se remetem (a depender do esquema explicativo utilizado) a "compromissos" sociais, e en­tão adquirem cunho "ideológico". O poder, as for­mas de governo, as doutrinas políticas, bem como os códigos, a ordem jurídica e seus conceitos, tudo se torna ideológico. E sempre será possível aludir a isto, sobretudo se se distingue entre o lado técnico e o lado ideológico28: um lado implicitamente, outro explici­tamente ideológico.

Sempre será possível, então, dizer-se que o Direito como ia/tem sentido ideológico: sua linguagem — ou como alguns preferem, seu "discurso" —, seus princípios, seus

Muito equilibradas e muito lúcidas as linhas sobre o assunto em LEBRUN. O avesso da dialética, p. 163 et seq. Enrique P. Haba alude, a propósito do problema das fontes do Direi­to, a dois lados, o lógico-lingüístico e o pragmático-ideológico ("Lo-gique et idéologie dans Ia théorie des sources", em Archives de Phihsophie du droit, p. 235).

Page 110: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

72 NELSON SALDANHA

valores, sua conexão com todo o lado institucional da sociedade; sua terminologia e suas definições29. O tra­balho dos juristas, condicionado por vinculações estru­turais e políticas, quando não diretamente comprometi­do com o poder e a seu serviço: por exemplo, o austero Hugo Grócio a serviço do governo holandês e de seus interesses, ao escrever sobre a liberdade dos mares30.

Mas também será sempre possível, em contrapartida, dizer-se que o Direito como tal constitui um plano próprio dentro do conjunto das instituições, possuindo uma reali­dade que não se reduz a algo como um simples epifenômeno de tais e tais causalidades. O esforço de tratar o Direito como "resultante" de estruturas sociais ou fatores econô­micos termina por ser tão ideológico quanto a ideologia à qual se tenta reduzir a imagem do Direito. Em outro plano, todavia, se acha o esforço de evitar a ideologia evitando todo contacto com o real: o esforço de concentrar a idéia do Direito em um "objeto" restrito, assepticamente recor­tado por uma metodologia que busca afastar da teoria do Direito todo vínculo com as outras teorias sociais. E aí te­mos a própria metodologia como ideologia.

Admitir a realidade do Direito, como a realidade da política, como a da economia, como a da religião, não significa necessariamente discutir "precedências" nem "causalidades". São dimensões institucionais que se dão historicamente. Em todas elas interferem expressões ideológicas e conexões-de-sentido que obviamente po­dem traduzir algum condicionamento recíproco. A teo­ria do Direito, como a da política, reconhece os fatos, situa-os e interpreta-os, como partes da realidade. Dife­rente disto é refugiar-se na ascese formalística, conver­tendo todos os questionamentos em obsessão conceituai e em cautela metodológica.

29 BELVEDERE, Mario JORI e Lelio LANTELLA, Definiram guridiche e ideologie, Milão: Giuffrè, 1979.

30 Veja-se o estudo preliminar de ÁRIAS; GROCIO. De Ia libertad de los mares.

CAPÍTULO

METODOLOGIA E METODOLOGISMO

• SUMÁRIO •

1. Sobre método e metodologia. 2. Formalismo e metodologismo. 3. O metodologismo, uma nova teolo­gia. 4. Metodologismo, reducionismo, teologia. 5. O cha­mado rigor conceituai. 6. Outros itens

1. SOBRE MÉTODO E METODOLOGIA

As complicações crescentes dentro da vida intelec­tual moderna aumentam a impressão de contraste com as épocas anteriores e confirmam a imagem de um "pro­gresso", que entretanto continua questionável. Na anti­güidade grega os problemas "metodológicos", saídos da reflexão sobre o pensar e sobre o saber, foram de certo modo aflorados por Sócrates, colocados pelos sofistas1 e sistematizados por Aristóteles em torno do que se chamaria de lógica, com os analíticos e a teoria do raciocínio2. Os bizantinos recolheram este legado, a que cabe acrescentar entre outras coisas o contributo dos estóicos, e na Idade Média a escolástica tomou o aris-totelismo como base para um modo específico de pen-

Ver, por exemplo, G B. KERFERD. The Sophistic Movement, op cit., princ. caps. 6 e 7. Para estes temas, cf. o volume, dirigido por MATTEL La Naissance de Ia raison en Grèce (op. cit'.), passim. Cf. também, org. por DETIENNE. Les Savoirs de 1'Ecriture. En Grèce anàenne.

Page 111: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

7 4 NELSON SALDANHA

sar: um aristotelismo reduzido aos problemas compatí­veis com a fé cristã, evitando-se as direções que lhe haviam imprimido os árabes3.

A filosofia ocidental moderna, por seu turno, nasceu expressamente sob o signo do método, anunciado no título da obra mais influente de Descartes. Deste signo provieram as grandes linhas do racionalismo dos sécu­los seguintes, e com tal relevância que mesmo autores não inteiramente cartesianos, como Pascal, foram carte-sianos ao aceitar o tema do pensar nos termos do autor das Meditações Metafísicas: mesmo na ressalva pascaliana referente àjinesse e kgéometrie, achava-se o perfil cartesiano do pensar como função racionalizante.

Certamente que a vigência de determinadas tendên­cias metodológicas revela sempre, e já o dissemos, a marca de uma "concepção do mundo". Neste sentido cada grande contexto histórico mostra um correlato metodológico. E em certos períodos a própria evolu­ção do pensamento filosófico tem como uma de suas motivações maiores o desenvolvimento dos problemas metodológicos.

Um dos pontos mais representativos do percurso que veio da teologia (já residual) à metodologia, no pensa­mento moderno — então tornando-se "contemporâ­neo" —, terá sido o momento em que Kant escreveu so­bre a "Religião contida nos limites da pura razão"4. Deu-se ali a árdua e meticulosa imposição da teoria do conheci­mento sobre o saber religioso. A razão metodológica se impôs, a epistemologia passou em grande medida a co­mandar a filosofia (sem embargo das resistências, algu-

Para o referente aos árabes, QUADRI. LM Philosophie Árabe dans 1'Europe mediévale. Com Kant teria ocorrido o momento mais radical da condenação ao catolicismo, vinda de Lutero: cf. LOPARIC, apua DRAWIN. Síntese Nova Fase, p. 259.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

mas muito importantes, que se lhe opuseram). E contu­do, mesmo dentro do trabalho racional permanecem li­nhas que são permanências de um pensar teológico.

Neste sentido vale lembrar que Paul Feyerabend, em seu importante e sugestivo livro sobre o método, apon­tou a persistência de um certo sentido de mito, nas con­cepções metodológicas modernas5.

No concernente à teoria do Direito, a influência do racionalismo moderno facilmente se converteu em orien­tação metodológica. Os séculos medievais haviam sido para os juristas um severo disciplinamento conceituai, desenvol­vido com poucos contactos com outras áreas do saber, estranhas ao Direito. O humanismo renascentista havia ins­taurado um valioso movimento de críticas de textos, com discussões sobre cópias e sobre terminologia, apesar de os recursos filológicos da época serem ainda insuficientes. Na França, na Itália e em outros países os eruditos reviram obras clássicas, fizeram a crítica dos intérpretes medievais e das interpolações (emblematà), colocaram um começo de entendimento histórico dos institutos6.

2 . FORMALISMO E METODOLOGISMO

O desenvolvimento do formalismo prepara, no pen­samento filosófico-jurídico contemporâneo, a tendên­cia metodologista. Referimo-nos aqui ao formalismo em sentido genérico, à crise da ontologia e das transcen-dências fundantes. Com isto, vimo-lo acima, o espírito passou a buscar fundamento na própria forma. Refe­rimo-nos igualmente ao formalismo em sentido especí-

5 FEYERABEND. Contra o Método, op át., princ. cap. XVIII, p. 447 et seq. Para mim o mais interessante neste livro são suas críticas a Karl Popper, ao qual desmistifica impiedosamente (cf. inclusive o cap. XV, p. 267 et seq).

6 Cf. MAFFEI. Gli ini^i deWumanesimo giuridico.

Page 112: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

7 6 NELSON SALDANHA

fico, o formalismo latente na gnosiologia de Descartes e na de Kant, com a formalização do sujeito e sua redução a uma abstrata entidade pensante. É como se o subjeti-vismo cartesiano (a dúvida e o cogito como pontos de par­tida) tivesse de ser compensado com a ênfase sobre a obje­tividade da "coisa pensante", ou com a abstração do eu em Kant, antecipadora da raspagem antipsicológica pos­teriormente feita por Husserl.

Como foi dito antes, operou-se com Kant a entro-nização da Erkentnisstheorie sobre todas as outras aplica­ções do pensar. O que em filósofos anteriores tinha sido dedução de conceitos a partir de alguns dados básicos, passou a ser insistente e impenitente esmiuçamento analí­tico. Durante o século XIX, as cautelas kantianas influí­ram relativamente pouco, atropeladas inclusive pelo lar­go estender-se do idealismo romântico, pelo naturalismo evolucionista e pelos ecletismos. Na segunda metade, porém, com o neokantismo, recomeçou a vasta fiscaliza­ção gnósio-epistemológica. Grandes debates, obras no­táveis, intenso trabalho especulativo; por outro aldo, con­tudo, a tendência a omitir temas filosóficos essenciais7.

No trecho final do oitocentos, Rudolf Stammler começaria a elaboração de uma filosofia jurídica neokan-tiana, usando categorias centradas sobre a distinção en­tre "conceito" e "idéia" do Direito, em particular a ca­tegoria do querei.

_ * _

ORTEGA, aliás egresso pessoalmente dos cursos dos neokantistas, escreveu que Kant sofria de ontofobia, e que os neokantistas preferiam ficar observando as roupas, a estudar os corpos. STAMMLER. Tratado de Filosofia dei Derecho ~ A tirania do método começa, por vezes, com a preocupação a priori com conceitos que "devem" nortear a análise do tema.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

Poderíamos mencionar por outra parte a correlação entre formalismo e liberalismo, em termos histórico-culturais. O advento do credo liberal, correlato do racionalismo (e também de certa fase do jusnaturalismo), coincidiu mais ou menos com a ascensão do deísmo e mesmo do agnos-ticismo, ou seja, com a queda dos fundamentos teológicos da política (aludimos a isto no capítulo IV). O formalismo racionalista, desdobrado no ideal de uma "ciência neutra" — sem ideologia —, correspondeu ao que alguns veriam, no liberalismo, como esvaziamento e despoliti^açãâ'.

No plano especificamente jurídico, o que principalmente contou como legado "científico", após a Revolução Fran­cesa e o Código Napoleão (1804), foram problemas me­todológicos e conceituais. O saber jurídico consagrou-se como um saber formado de textos e conceitos, e o juspo-sitivismo legalista da "Escola de Exegese" permaneceu (em­bora a Escola fosse tida depois por "superada") como padrão para as relações entre o Direito positivo e as obras da doutrina10. A "Escola Histórica" acabou por revelar-se menos preocupada com a história (apesar de sua impor­tante e programática Revista) do que com o Sistema: este o sentido maior da obra de Savigny, continuado a seu modo por Ihering e essencial no amplo trabalho dos pandectistas, que levaram ao extremo o rigorismo conceituai e a visão articulada dos institutos11.

Desde logo, SCHMITT. A respeito VANOSSI. Teoria Constitucional. I. Teoria Constituyente, Poder Constituyente, p. 45, nota 15. Cf. no mes­mo sentido AYALA. TI problema deiTiberalismo, p. 46. B O N N E C A S E . T'Ecole de Exegese en Droit Civil, D o mesmo autor, Ta pensée juridique française - de 1804 à 1'heure prêsent. Cf. LOSANO, Struttura e Sistema nel Diritto, op. dt., passim. — Para uma crítica ao formalismo metodológico de Laband, com seus erros e sua carência de "visão de conjunto" — apesar do apuro conceituai senão mesmo por causa dele —, veja-se Rudolf SMEND, Constitución j Derecho Constitucional, p. 191 et seq. O texto de Smend é de 1928 e mostra as marcas da linha antiformalista alemã que em certos casos adernou para o autoritarismo, mas permanece válido como crítica.

Page 113: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

7 8 NELSON SALDANHA

Estas linhas convergiram para o predomínio de um padrão formalístico, que passou a ser o modelo mais característico dentro do positivismo jurídico, que, ao aproximar-se o século XX, abandonou cada vez mais o enfoque empírico. Aquele padrão influiu decisiva­mente para a demarcação das temáticas centrais. Mes­mo os antiformalistas terminaram por aceitar os pro­blemas postos pelos formalistas: o conceito do direito, o debate epistemológico, a gradual aproximação dian­te do conceito de "norma"12.

Racionaüsmo e racionalidade se transformam deste modo, com os primeiros decênios do século XX, em correlatos da preocupação metodológica13.

3 . O M E T O D O L O G I S M O , U M A N O V A T E O L O G I A

Evidentemente um método não é o próprio pensa­mento, mas um modo de o ordenar e de o "encaminhar". Ordenar e "encaminhar" o pensamento é algo necessário, e sobre isto se fundam os métodos, mas é daí que nas­cem os exageros metodologistas. Perde-se de vista a acepção clássica da palavra, e então o método deixa de ser ape­nas "caminho", amplia-se e se torna uma coisa avassa-lante. Todo grande modo de pensar projeta de si prefe­rências metodológicas, e isto ocorreu com filosofias como

Cf. nosso livro ~Legalismo e Ciência do Direito, passim. Ver P. HABA. "Rationalité et méthode dans le droit", em Archives de Philosophie du Droit, p. 265 et seq. D o mesmo autor, Racionalidad y método para ei derecho: es eso posible?. — Cf. também o capítulo I de CATANIA. Deásione e Norma, (reimpressão) e também o cap. inicial de A. CARRINO, UOrdine delle Norme. Política e diritto in Hans Kelsen (op, cit.). Sem maior interesse, o artigo de C. VARGA, "Quelques questions méthodologiques de Ia formation des concepts en sciences juridiques", Archives de Philosophie du Droit, p. 215 et seq. — Vale citar ainda MORAES FILHO. " O Método na Ciência do Direito", em Rev. de Ciências Sociais da Univ. do Brasil. Ver também toda a primeira parte do livro de MOZOS. Metodologia y Ciência en ei derecho privado moderno.

METODOLOGIA E METODOUGISMO

a de Aristóteles ou a de Hegel (este especificamente com a dialética); ocorreu também com Marx e Comte, nos quais a implantação do método aparece com coloração ideológica mais visível. Em certos casos o método surge como simples conjunto de indicações ou de correlações, algo como as re­gras de um jogo, que se adotam se se deseja jogar, isto é: se se pretende assumir determinada maneira de trabalhar.

O excessivo pendor pelo método, em certas linhas do pensamento contemporâneo, constituiu certamente um aumento da exigência de "rigor" conceituai, dentro do movimento crítico e do predomínio do "conhecimen-tismo" que lhe correspondeu. Entretanto, o preço foi o cunho artificial e até redundante de certos trabalhos e de certas formulações, desligadas de toda relação com a ex­periência do real e do humano.

A dogmatização da conhecida referência de Kant a uma distinção entre noumenon e phainomenon, com a con­seqüente distinção entre dever ser e ser (a dogmatização extraía estas expressões de dentro dos termos em que Kant pensou), deu àquelas distinções, sobretudo a segunda, um caráter absoluto14.

14 O Archiv fuer Rechts-tmd Sozjalphilosophie (ARSP) dedicou um número especial ao assunto: Sein und Sollen im Ehrfarungsbereich des Rechtes, com as atas do Congresso de Gardone-Riviera em setembro de 1967. O número contém alguns textos altamente críticos com relação ao dualismo. — O ensaio de KELSEN. Die Rechtsmssenschaft ais Norm-oder ais Kul-turwissenschaft. Eine methodenkritische Untersuchung (publicado no Schmollers Jahrbuch em 1916) foi incluído na coletânea italiana organiza da por CARRINO Metodologia delia Scien^a Giuridica (op. cit., p. 103 et seq). O que se nota, no tom desse trabalho, é o mesmo entono simpli-ficador e dogmático que reaparece em 1934 na Reine Rechtslchre: um tom que não é sobriamente crítico mas autoritariamente taxativo, como o dos textos teológicos! Com este entono Kelsen afirma, de partida, que o contraste entre ser e dever ser é infranqueável, servindo de base à constituição de um tipo peculiar de ciência, referente à norma. - Sobre a tentativa de Kelsen, de superar o dualismo ser-dever ser, ver Mario LOSANO em sua Introdução ("La dottrina pura dei diritto, dal logi-cismo all'irracionalismo") à Teoria Generale delle norme, p. XLIX.

Page 114: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

20

Algo semelhante se passara, nos séculos XVII e XVIII, com a idéia de uma passagem do "Estado de Natureza" ao "Estado social", que não colocava apenas o problema da origem das instituições, mas o da diferen­ça entre dois modos de ser do homem: um problema que ficou sem "solução". No século XX, a distinção entre ser e dever ser ficaria preocupando vários autores: uns retomando as análises de David Hume sobre a impossi­bilidade de passar do ser ao dever ser, outros aceitando simplesmente e sem mais a infraquebilidade do "fosso" entre ambos. Outros ainda contestando o caráter real do problema, na verdade um pseudoproblema15.

A profissão de fé monista, presente no pensamento geral de Kelsen (inclusive em sua teoria das formas de governo), se coadunou com o princípio neopositivista vienense da "ciência unificada"; mas não se compagina com a dualidade infranqueável ser-dever ser (Sein-Sollen), correspondente a dois tipos de objetos e também a dois tipos de ciência. Por outro lado, a conhecida identifica­ção entre Direito e Estado, obtida por via metodológica, corresponde a um prisma visual diferente daquele que (dentro da obra do próprio Kelsen) separa o conceito jurídico e o conceito sociológico de Estado.

*

Em princípio a preocupação metodológica, vincu­lada ao cientificismo e às tendências formalistas, deve-

15 Veja-se o monumental estudo de CARCATERRA. 11 problema delia fallaáa naturalistica: Ta derivatnone dei dover essere daWessere, onde analisa os argumentos de Hume e de outros sustentadores do caráter infran­queável do binômio. - Cf. também as observações de CATANIA. Deásione e norma, op. cit., cap. I, princ. nota 11. - Ver ainda o artigo de KALINOWSKI. "Sur Ia distinction entre le descriptif et le normatif" (comentário ao livro de J. L. Gardiès, T'Erreur de Hume) em Archives de Philosophie du droit, tomo 33, 1988, p. 387 et seq. e ademais o de Do-menico CAMPANALE, "II fondamento dei diritto tra essere e valore", em Riv. Internationale di Filosofia dei Diritto.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

ria achar-se afastada do lastro de ideologias que se veio estendendo desde o século XIX. Vimos como, de fato, o formalismo correspondeu a um certo "esvaziamen­to", uma certa despolitização do pensar, que inclusive chegou à pretensão de neutralidade científica. Esta pre­tensão se encontrava nos círculos neopositivistas, em Kelsen, em vários outros. Terá sido o legado de Kant que, atravessando os empirismos do oitocentos, retornava em um de seus aspectos, o formalizante.

Todavia o componente ideológico permanece, já como elemento próprio da cultura seculari^ada (sobretudo após a "superação" das grandes metafísicas racionalistas), já como sintoma da crise das relações entre pensamento e sociedade. São ideológicas as doutrinas reducionistas, inclusive o marxismo (ele mesmo denunciador de ideo­logias) principalmente na parte concernente à visão do econômico como fator determinante16.

Tanto em face do desejo de "evitar a ideologia" quan­to no afã de superar as versões empíricas do próprio positivismo, os positivistas formalizantes do século XX passam a empreender uma sôfrega busca da objetividade. Carl Schmitt aliás falaria, ironicamente, na "beatice da objetividade"17.

16 'A crítica da economia política era, segundo Marx, teoria da socieda­de burguesa só como crítica das ideologias", diz HABERMAS. Téc­nica e Ciência como Ideologia, p. 69. - Mas o marxismo, além de ter sido crítica do ideológico e concomitantemente ideologia, firmou-se pe­rante os seguidores como método.

17 O tradutor espanhol verte por "beatería" (Teologia Política, op. cit., p. 105), o que no original se acha como "das Pathos der Objektivitât" (Politische Theologie, op. cit., p. 54). - Escreveu recentemente Jean-Marc T R I G E A U D que o reducionismo da teoria pura, com seu cunho "anti-humanista", tornou o direito algo inteiramente abstrato: "Iden-tifié dês lors à un cercle sans origine, en jouant sur Ia double signification de 1'auto-engendrement de toute ligne circulaire, le droit est ainsi borné à une purê objectivité, par réduction de Ia subjectivité qu'il implique" ("Le cercle sans origine ou 1'eternel anti-humanisme du droit abstrait", em Archives de Phil. du Droit, p. 208).

Page 115: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

KÀ NELSON SALDANHA

A fenomenologia, criada nos inícios do século, era ela mesma a consagração do método: um método transforma­do em sistema. Com ela veio a supervalorização dos concei­tos e do conceituar — Schmitt também aludiria a isto —, correlato do castrativo penchant anti-histórico. Nesta linha se evitaram os aspectos concretos dos problemas, em aras de uma logicização impenitente. A teoria do método tomaria o lugar da própria reflexão filosófica, em um reducionismo os­tensivo, e no fundo ideológico18. Estas orientações se refor­çariam com o concurso da chamada filosofia analítica, e depois, também, com o do "racionalismo crítico"19.

Do fetichismo da lei, consolidado no século XIX, chegava-se assim ao fetichismo do método. E como na própria noção de método existe um componente nor­mativo, preceitual, é fácil entender que metodologismo e normativismo se tenham juntado desde logo. Ambas as coisas, aliás, fundadas na visão formalística que redu% o Direito a forma, retirando-lhe todos os pedaços de vida, realidade e concreteza. Daí falarem, certos autores, dos postulados da epistemologia jus-positivística, desenvolvi­dos sobretudo a partir da Reine Rechtskhre20, com o seu cortejo de seguidores e acompanhantes.

18 Um exemplo disto encontramo-lo em um texto anódino, convencio­nal e puramente formalístico como o de Uberto SCARPELLI, "II método giuridico", em BJv. diDiritto Processuak, Cedam (Pádua), 1971, ano XXVI, n. 4, p. 553 et seq. - P FEYERABEND quaüfica de ideo­logia a toda ciência que se apresenta com pretensão ao exclusivismo metodológico, isto é, que se pretende detentora do único método correto (Contra o método, op. cit., p. 464).

19 Algumas análises interessantes em D E GIORGI. Scienza dei Diritto e Ijegittima^ione, Parte II, cap. III, apesar da constante preocupação com as diretrizes marxistas.

20 Muito importante as observações críticas de Karl Larenz em sua já clássica Metodologia de Ia Ciência delDerecho (trad. E. Gimbernat Ordeig, Barcelona: Ariel, 1966), cap. III, n. 6, esp. à p. 87, onde assinala que todo o rigor exibido por Kelsen depende, para ser entendido, da c o n c e p ç ã o posi t iv is ta de ciência. Sobre o a s sun to ver ainda S C H W I N G E . "La controvérsia sui metodi nella scienza giuridica

METODOLOGIA E METODOLIGISMO 83.

4. METODOLOGISMO, REDUCIONISMO, TEOLOGIA

A crescente importância atribuída ao método e os amplos debates a respeito terminaram por fazer da "metodologia jurídica" uma disciplina autônoma: é o que pensam alguns autores21. As Methodenstreiten, dispu­tas metodológicas envolvendo especialmente formalistas e não-formalistas, ou normativistas e não-normati-vistas22, ocuparam realmente largo trecho de nosso sé­culo, ao modo dos antigos debates teológicos que se tra­varam na Idade Média. Mais recentemente, as discussões sobre método foram renovadas e redimencionadas com a influência do movimento filosófico chamado hermenêutico sobre o pensamento jurídico23.

O metodologismo dos formalistas, impelidos por um antifinalismo bastante característico, tem-se mostra­do como um incorrigível reducionismo2^. Devemos aliás

odierna", em CARRINO. org., Metodologia delia scienza giuridica, op. cit. - Sobre os mencionados "postulados" do juspositivismo ver a aná­lise de VILLA no artigo "La Formazione dei concetti e delle teorie nella scienza giuridica" (Materiali per Ia storia delia cultura giuridica, dir. por G. Tarello, v. XV, n. 2, dez. 1985, Bolonha, princ. p. 415 et seq.). -Entrementes o caráter empírico da metodologia era afirmado no sem­pre ci tado livro de B A U M G A R T E N . Grund^üge der juristischen Methodenlehre, Berna: Hans Huber, 1939.

21 Semelhante autonomia é afirmada logo de saída no estudo de G. ZACCARIA, "Deutsche und italienische Tendenzen in der neueren Rechtsmethodologie" (Archiv fuer Kechts-und So^ialphilosophie, F. Steiner, Wiesbaden, v. 1986, LXXII, 3, p. 291 et seq.).

22 Algumas referências em BOBBIO, verbete "Método" em Novíssimo Digesto Italiano (dir. Azara e Eula, Turim: UTET) , v. X. Para um panorama genérico, CARAMELLA, verbete "Método" em Enáclopedia Filosófica (Istituto per Ia Colab. Culturale, Veneza-Roma).

23 Cf. ZACCARIA. "Deutsche und italienische Tendenzen" (op. cit),passim. 24 Sobre o antifinalismo, cf. SCHWINGE em Carrino. Metodologia, op.

cit., p. 205. Paul AMSELEK, aludindo ao logicismo de Kelsen, escre­ve: "Ce réductionisme mutilateur aboutit même, en definitive, à priver les règles juridiques de toute objectivité" ("A propôs de Ia théorie Kelsenienne de 1'absense de lacunes dans le droit", em Archives de

Page 116: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

fazer uma ressalva a respeito da tendência reducionista presente nos metodologismos. Nestes não se incluem obviamente disciplinas metodológicas como o "Direi­to comparado", que sempre se apresenta como mé­todo: não há no Direito comparado nenhum forma-lismo, pois proveio dos relativismos do século XIX. O reducionismo a que nos referimos é aquele que acen­tua no conhecimento jurídico seu caráter logicizante, ligado à discussão dos conceitos como conceitos.

A semelhança entre o metodologismo e a teologia há de ser afirmada com óbvias ressalvas. Os metodolo­gismos são necessariamente reducionismos, mas as teo-logias não o são, até por não serem um saber analítico. São-no talvez no sentido apontado por Feyerabend, ou seja, no de ensejarem a entronização da infalível ventas una15. Escolásticas e teologias são correlatas, mas as esco-lásticas são analíticas, enquanto as teologias são sintéti­cas: os metodologismos seriam talvez escolásticas na forma e teologias no fundo.

A medida que o conhecimento jurídico gira em torno de questões de método, ele tende a se afastar das funções do jm\o e a prender-se ao entendimento, acercando-se muito mais do detalhismo e das distinções do que da compreen-

Philosophie du Droit, p. 285). Cabe talvez recordar que Max Weber, referindo-se ao economicismo e à sua necessidade "dogmática" de afirmação de causas "verdadeiras", escreveu que a "constante utiliza­ção do mesmo aparelho metodológico-conceitual" possui a vanta­gem da divisão do trabalho, mas tende ao irreal e ao parcial quando se trata de interpretar os fenômenos {Sobre a Teoria das Ciências So­ciais, p. 42 et seqi).

25 Preconizando a variedade de métodos, correlata da variedade de opiniões ("necessária para o conhecimento científico"), diz Feyerabend que a restri­ção à variedade em nome da coerência sempre "encerra um elemento teológico" {Contra o Método, op. át., p. 57). Por sua vez GARCIA BACCA: "El defecto radical de toda teologia dogmática (...) consiste en que (...) no tiene estructura dialectica" (Introducáón General a Ias Enéadas, p. 57).

as.

são totalizante. Por sinal o entendimento, para Hegel, ti­nha o sentido de Epitomator, aquele que separa26.

*

De certo modo valeria dizer que no metodologismo reaparecem, sob traços novos, a teologia, a metafísica e a ideologia, todas contudo expressamente repudiadas pelos purismos, pelas "filosofias analíticas" e pelos redu­cionismos formalizantes. O modelo teológico de pensar, presente no saber jurídico desde os "comentadores", retorna através de certos traços dentro das destrezas conceituais dos formalistas; a metafísica, que no jusna-turalismo clássico tinha sido aberta e expressamente a base de todo conhecimento jurídico, reaparece na idealização de certos "objetos", tais como ordenamento e norma (ou talvez conduta e liberdade, em Cossio). Claro que os lineamentos metafísicos são necessários em uma filoso­fia do Direito, mas são muito estranhos em teorias que se propõem a descartar toda alusão "metacientífica". Quanto à ideologia, ela se encontra em todas as ciências sociais contemporâneas, embora não se deva aceitar o exagero com que certos críticos reduzem ao seu condicio­namento social e ideológico todo o conteúdo daquelas ciências. Ciências, aliás, que podem apresentar também um aspecto teológico27.

Em verdade o cientifiásmo, como supervalorização da ciência (ou antes, de um determinado modelo ou tipo

26 Cf. Bernard BOURGEOIS, Elpensamiento político de Hegel, trad. Aníbal Leal, p. 28. — V. também H E G E L . Vhénomenologie de UEsprit, op. át., T, p. 14.

27 "En pleno auge de Ia burocratizada urbanización de tal sociedad (in­dustrial), Ia crisis actual de Ia ciência social quizás no sea otra cosa que Ia quiebra definitiva de su mística ilusión epistemológica como imposible Teologia Política dei Estado Industrial" — MOYA. De Ia Ciudady de su Ra^pn (op. át.), p. 19.

Page 117: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

86 NELSON SALDANHA

de ciência), é que levou à supervalorização do método, baseando-se sobre o aspecto formal da ciência, isto é, de um determinado conceito de ciência28. Com isto se abriu o caminho para novas ortodoxias, rigorismos para-teológicos que despontam dentro da própria armação conceituai das teorias formalizantes, mais preocupadas com démarches e com coerências metodológicas do que o conteúdo vivo das realidades. Aí temos o método como um novo logos ordenador. Ou por outra, passa-se do logos teológico e racional, ao metodologismo que se substitui ao logos.

Nem deixa de existir, no trabalho dos puristas e dos logicistas, uma hierática consagração de espaços, seme­lhante ao que ocorria nas religiões antigas. O objeto Di­reito (sempre há muita ênfase nas alusões ao objeto) se delimita como um espaço peculiar, com uma cuidadosa separação de áreas epistemológicas, distribuídas e do­minadas pelas diferentes "disciplinas". O método serve para coonestar e comprovar as diferenças de área: so­mente um tipo de conhecimento tem condições de pe­netrar no espaço sagrado (quase como um sanctus sanc-torum) reservado ao objeto. Com isto se criou inclusive a categoria do "puramente jurídico", algo que os juris­tas de outros séculos por certo tiveram em conta, mas tacitamente e sem explicitações. Com a noção do "estri­tamente jurídico" se tem algo sem correspondência na teoria social geral, algo que busca prender a idéia do

jurídico a um dado intransmissível, inapropriável por outro departamento do saber, e este dado segundo o

28 Assim Karl POPPER, em seu empertigado cientificismo, afirma que escreveu seu livro sobre o historicismo (na verdade uma equivocada e pretensiosa diatribe contra o que ele chama de historicismo) movido por preocupações epistemológicas: Autobiografia Intelectual, p. 176-177. — Hans ALBERT, um "racionalista crítico" mais flexível do que Popper, alude à relação entre o "falibilismo" e o "estilo metodológico da ciência moderna", em Freiheit und Ordnung, p. 32 et seq.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

formalismo é a norma. Há aí uma petição de princípio, já que a norma é jurídica por algum motivo, e o sistema (jurí­dico) é normativo porque na norma está o jurídico. Daí certa tendência ao descritivismo, tendência onde o modo fenomenológico de tratar o objeto se reduz — sobretudo com certos professores — ao truísmo e à circularidade29.

E com isto se consagraram certos tópicos de cunho teológico, em sua maioria ligados à problemática da chamada "teoria pura do Direito", cujo período de in­fluência maior vai da década vinte à década 6030. Além da sagração do espaço, teve-se a ventas una, intransigen­temente defendida, com recomendações dos prosélitos contra desvios e sincretismos. Teve-se um saber com pretensão a fundamental, um saber do qual os demais dependem: este saber, a "teoria geral do direito" enten­dida em sentido normativista31. Além disso autoridades bibliográficas postas em diferentes níveis, portanto em hierarquia, vinculada a textos também específicos. Como o latim em outros séculos, o alemão como língua litúr-gica, língua dos textos de Kelsen, hieraticamente reve­renciados. E teve-se, como na teologia aristotélica, que falava em um "primeiro motor imóvel", uma entidade

29 Em termos epistemológicos a base do descritivismo estaria, ao lado do modo fenomenológico, na adoção da problemática da qualificação: a or­dem jurídica qualifica determinados atos, relacionando-os com a espé­cie contida na norma imputado». Sempre o formalismo reducionista. A respeito, CATANIA. II diritto trafor^a e consenso, ESI, p. 83 et seq.

30 Carl Schmitt, sempre perspicaz embora tendencioso, anotou a distin­ção entre a metodologia de Kelsen e sua concepção do mundo (Teolo­gia Política, op. cit, p. 68). Schmitt aliás reconhecia a parte metodológica como "a mais original" em Kelsen. Entretanto, ao sublinhar a cone­xão do credo democrático de Kelsen com uma posição científica de tipo "matemático" e "naturalista" {op. cit., p. 106), Schmitt tropeçava em seus próprios preconceitos ideológicos.

31 Cabe anotar entretanto, a propósito desta concepção de "teoria geral do Direito", a seriedade e a competência de muitos dos que a adotam, como por exemplo um Bobbio ou um Vernengo.

Page 118: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

que sustenta e movimenta as outras no mundo-das-nor-mas, colocada a um tempo dentro e fora de tal mundo: a chamada norma fundamental32.

5. O CHAMADO RIGOR CONCEITUAL

Com o formalismo e com o metodologismo se esta­beleceram, dentro do pensamento jurídico, alguns con­ceitos basilares, obtidos quase sempre como reformulação ou alteração de termos já existentes. Assim ocorreu com o conceito de norma, cuja voga substituiu o termo "re­gra" {regula) e que pressupõe a lei positiva33; ocorreu igual­mente com o conceito de ordenamento, que Santi Romano havia veiculado desde 1917 (mas em sentido não forma-lístico) e que derivava da sóbria e sólida noção de ordem. Na teoria jurídica de língua inglesa já se usava o termo legal machinery (usar-se-ia também legal engineering), mas com conotações peculiares.

A chegada ao termo ordenamento pressupôs histori­camente o mesmo processo que, dentro do amadureci­mento da secularização e do racionalismo, levou ao uso da idéia de sistema em Direito. Kant explicitara a neces­sidade de fazer da filosofia um sistema, necessidade que Hegel consolidou e maximizou; Savigny tornou defini­tiva na ciência do Direito a tendência ao sistema. A ciên-

2 Para uma crítica breve e intransponível da Grundnorm, cf. COTTA. Giustifica^ione e obbligatorietá delle norme, cap. II, p. 35-36: ou a norma fundamental é uma norma, e portanto não é "condição transcedental" da pensabilidade das normas, ou então vem a ser um fato. A redução do conceito de norma, na norma fundamental, a um dado epistemo-lógico, nos recorda aquilo que Ortega dizia do Deus de Aristóteles, isto é, que era um professor-de-filosofía.

,3 Cf. nosso livro Legalismo e Ciência do Direto, op. cit. Para outros aspec­tos Alfonso CATANIA, Decisíone e Norma (op. cit.), p. 77 et seq. Cf. também as excelentes observações de AMSELEK no artigo "Norme et loi" em Archives de Phil du Droit.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

cia do Direito, e com ela (como ela) seu objeto - não o inverso - , teriam de ser tidos como sistemas34.

O conceito de ordenamento representou, de certo modo, a confluência entre a noção contemporânea de "Direito" (vinda da Escola Histórica, com os complemen­tos do evolucionismo) e a permanência do dedutivismo, que alimentara o jusnaturalismo e o racionalismo formalista. Com efeito, alguns traços centrais do jusnaturalismo clás­sico permaneceram no racionalismo mais recente35. O conceito de ordenamento, deste modo, aparece no sé­culo XX com implicações distintas; e quando os formalistas adotam o conceito, já utilizado por Santi Romano36, enfatizam nele, obviamente, o lado formal. Ou antes, redu^em-no ao seu sentido de forma37. As respostas não-formalistas ao livro de Romano se dispersaram em fun­ção de motivações diversas: assim temos a noção de "Direito como instituição", divulgada por Hauriou e outros, e temos a de "ordem concreta" formulada por Carl Schmitt. Historicismo, axiologismo, catolicismo e politicismo deram à idéia vertentes diversas. Enquanto isto, o rigor metodológico do purismo e do formalismo man­teve mais ou menos unitária em seus arraiais a sua pró­pria idéia de ordenamento, sempre tratada em determi­nados termos38.

34 LOSANO. Struttura e Sistema, op. àt. - Natalino IRTI situa a consoli­dação da passagem da escola exegética à sistemática (?) como algo ocorrido em torno de 1881, com a "revolução do método" e a "des­coberta da lógica jurídica" ("Problemi di método nel pensiero di Francesco Ferrara", em Reíi de Direito Civil Imobiliário etc, p. 31.

35 MASSINI. 1M desintegración dei Pensar Jurídico en Ia Edad Moderna, op. cit., p. 17 et seq. Cf. AMSELEK em Memória dei X Congreso Mundial Ordinário de Fil. dei Derechoj Fil. Social, UNAM, p. 60.

36 SANTI ROMANO. El ordenamiento jurídico. 1963. 37 Ver CATANIA. II diritto tra for^a e consenso (op. cit), passim. 38 Ver CATANIA. 11 diritto trafor^a e consenso (op. cit) p. 55 et seq., colo­

cando o problema da norma e da organização (referência, à p. 58, ao reducionismo kelseniano).

Page 119: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Destarte a utilidade formal do rigor metodológico converteu a reflexão sobre os grandes temas da filosofia jurídica e da "teoria do Direito" em uma série de ques­tões basicamente metodológicas, às vezes implicitamente presentes na própria ordenação dos problemas. A exa­gerada atenção dada às idéias de Kelsen - que tiveram sem dúvida grande importância — deslocou certos te­mas para um plano onde o que estava em questão eram delimitações epistemológicas, amparadas por exigências analíticas e espartilhos conceituais: o velho distinguo esco-lástico reeditado nas Universidades do século XX39.

6. O U T R O S ITENS

Há todavia uma série de outros itens em que o meto-dologismo exerceu influência. Entre os que aderiram à teoria "pura", ou de qualquer sorte ao formalismo, o conceito de teoria geral do direito deixou de significar o que vinha significando desde, por exemplo, Korkunov - um sucedâneo da filosofia do Direito para tratar "não-meta-fisicamente" os grandes temas jurídicos - , passando a designar um conjunto de problemas lógico-formais concernentes às categorias mais gerais da ciência "dog­mática" do Direito.

A aliança entre o formalismo metodologista e o juspo-sitivismo, que desnecessariamente acirrou a diferença entre este e o jusnaturalismo, prestigiou centralmente aquilo que se vinha chamando de dogmática jurídica (à qual Francesco Calasso havia chamado infelice parold), isto é, o estudo incontornavelmente "técnico" do Direito positivo. A pró­pria Filosofia jurídica, nas mãos de certos autores, foi atin-

9 N o Brasil das décadas 60 e 70, certos cursos de pós-graduação em Direito passaram a valorizar mais as preocupações metodológicas -até em função de conveniências políticas - do que propriamente o saber, e mesmo o pensar como tal.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

gida pela "exigência de rigor", pelo cientificismo, pelo tecnicismo e pela linha de temas do formalismo.

Entretanto, nem sempre parece fácil saber-se o que é mesmo um "problema técnico". Desde logo parece tra­tar-se de uma coisa ligada ao ideal da Fachmssenschafi, ou seja, da especialização: algo cujo conhecimento é pró­prio do especialista e exclusividade sua. Trata-se, por outro lado, de um tipo de questões onde entram distin­ções (não confundir judicial com judiciário nem prescri­ção com decadência, tal como em sociologia não con­fundir papel com status). Além disso, e com isso, trata-se sempre de um problema que envolve o "rigor" conceituai — a velha idéia da ciência como linguagem bienfaite —, o rigor da régua e do estilete: definições e classificações. Estas parecem ser de grande peso na demonstração de uma "formação jurídica" em sentido técnico.

Nas mesmas coordenadas cabe registrar a redução formalística do conceito de fontes-do-Direito. Já ocorrera o desdobramento do conceito, com o discutível dualismo que alude a fontes "formais" e fontes "materiais", um arti­fício tendente a prestigir a idéia de lei dentro da noção de fontes formais, e a manter a conveniente distância a idéia de algo concreto (e social) com a alusão às fontes "mate­riais"40. Em verdade a idéia de fonte corresponde, mes­mo mantendo-se como um paralelo a noção de "origem" (fons et origo), à imagem de algo que alimenta: "provir de" significa em princípio alimentar-se, abeberar-se. Fon­tes do Direito são neste caso realidades e processos que alimentam a juridicidade. E com isto não devemos cair no declive privatizante, que encararia a juridicidade como qualificativo de ato ou de situação, nem devemos men-

Nosso livro Lega/ismo e Ciênáa do Direito, cit. — Ver também o breve registro crítico de HUSSON. Les transformations de Ia responsabilité. Etude sur Ia pensée juridique, p. 58 et seq.

Page 120: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

9 2 NELSON SALDANHA

cionar somente o "sistema" (sistema-de-fontes): aludi­mos à ordem como um todo e ao seu correlato herme­nêutico, vez que de ambas as coisas — ordem e herme­nêutica — se compõe o que se chama "Direito". A idéia formalista, segundo a qual o Direito estabelece o modo de sua própria produção (uma afirmação truística no sentido formal e questionável fora dele), teria o que ver com a noção de um realimentar-se, mas só no sentido positivo-normativista, não no sentido real, concernente ao Direito como ordem situada e condicionada.

Reducionismo análogo ocorreu ainda, dentro do pensamento formalístico, com o conceito de validade, que sempre teve um sentido axiológico, significando, na teo­ria jurídica, um atributo afim ao de "autenticidade", "legi­timidade" ou simplesmente "valor"41. A partir de Kelsen e de sua influência, validade (em alemão Geltung) passou a designar uma coisa puramente formal. Assim Kelsen, ao aludir à validade, que se apressa em distinguir da "eficá­cia"42, dá-lhe sentido meramente formal ao prender seu conceito ao de "dever ser" e ao vinculá-la a um "funda­mento" que afinal remonta à "norma fundamental": vali­dade resulta ser a presença de uma norma tomada em sua própria positividade, e com a possibilidade de ser remeti­da a um fundamento normativo. O que é de fato muito

Garcia Maynez, como se sabe, se deteve pacientemente sobre o pro­blema da validade, sugerindo inclusive a imagem dos "três círculos" secantes, correspondendo à distinção (e relação) entre validade for­mal, validade intrínseca e positividade: cf. La definiáón dei derecho, cap. IV (há uma edição revista, em Xalapa, México, 1960). Infelizmente Garcia Maynez não se liberta do esquematismo. Sobre o assunto, REALE. Filosofia do Direito, v. II, p. 525 et seq.

Na verdade Kelsen, ao refutar as duas posições, que menciona, sobre validade e eficácia (a que declara a independência da validade em relação à eficácia e a que identifica uma com a outra), parte de uma idéia específica do que seja "validade" e que lhe permite situá-la no plano puramente formal do "dever ser da norma": cf. KELSEN. Teoria Pura do Direito, p. 38 et seq.

METODOLOGIA E METODOLIGISMO

formalismo43. Nesta ordem de idéias, como se sabe, Kelsen aludiu à norma fundamental {Grundnorm) como ponto de referência para mencionar e sustentar a óbvia e interminável remissão de cada norma ao seu fundamento normativo — sempre preocupando-se muito, de resto, com que não se confundisse a norma fundamental, persona­gem muito específica de sua obra, com outras coisas, como o Direito Natural por exemplo44.

*

Cabe registrar, todavia, que a tendência a transformar a teoria (e a filosofia) do Direito através de podagens e amputações metodológicas, jamais deixou de receber crí­ticas, já no campo específico da própria filosofia jurídica, já dentro de expressões diversas do pensamento jurídico. Em geral se increpa ao formalismo e ao normativismo o resultado empobrecedor, no sentido da temática, em fun­ção do reducionismo que lhes corresponde. Assim, por exem­plo, Paul Amselek, em estudo sobre a teoria das lacunas do Direito no pensamento de Kelsen, ao aludir ao "logi-cismo" da chamada teoria pura do Direito, menciona o "reducionismo mutilador" que arbitrariamente cancela das regras jurídicas todo elemento não formal45.

43 Seja exemplo deste tipo de pensamento a série de tautologias que consta do artigo de COMTE. "Validità", no Novíssimo Digesto Italiano, onde se lê que "Ia validità non è altro che Ia validità, 1'existenza di una norma", ou seja, não corresponde nem à justiça nem à eficácia (p. 420); à p. 421 expres­sa sua completa adesão ao sentido formal da Geltung de Kelsen. Para uma crítica, COTTA. Giustijica^ione e obbligatorietà delle norme, op. cit., p. 33.

44 Teoria Pura do Direito, cit., v. II, p. 38 et seq., 56 et seq. Cedemos à tentação de mencionar aqui o título do capítulo 16 da Introducción General a Ias Enéadas, de GARCIA BACCA {op. àfy. "Vivência de Io absoluto y dialectica descendente!"

43 Cf. supra, nota 24. Larenz observou (Metodologia, cit, p. 88) que Kelsen não conseguiu manter a total separação entre ser e dever ser, que é seu ponto de partida. Isto, agrega, não seria uma objeção se Kelsen pensasse dialetica-mente; "pero no existe nada de Io que Kelsen pueda estar más alejado".

Page 121: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

24 NELSON SALDANHA

As correntes não normativistas vêm representando, durante o século XX, posições que realizam a reflexão filosófica referida a problemas concretos: o Direito como experiência, a eticidade e a politicidade do Direito, os valores jurídicos, a relação entre o jurídico e o social, a historicidade dos sistemas e das formas. Estes, entre ou­tros, são os grandes temas do pensamento jurídico-filo-sófico, que evolui desdobrando-se como crítica de si mesmo, enriquecendo e não restringindo a sua proble­mática. O problema do método sempre existiu como ponto de referência para o reconhecimento de alternati­vas, não como uma caixa de ferro onde se encerra uma temática ou como substitutivo dos próprios problemas reais46. O que vale é que todas aquelas correntes vêm mantendo em debate os grandes temas — renovados re­centemente pela influência da teoria hermenêutica —, sem perder o contacto com a filosofia social e política em sua amplitude, um contacto sempre necessário e sem­pre fecundo para o pensamento jurídico.

Aqui cabem duas citações de Enrique P. Haba, que a propósito de métodos transcreve palavras de Constantino Láscaris sobre o pragma­tismo dogmático, "es decir, (de) un pragmatismo reducido a meto­dologia": "De Ia fantasia curricular y sobre algunas de sus precompren-siones tecnocráticas", em Rev. de Cienáas Jurídicas, Univ. de Costa Rica, Fac. de Derecho, n. 56, maio/ago. 1986, p. 24 (à p. 25, Haba se refere à falácia do quantitativismo e sua "teologia de numeritos"). Em outro trabalho (mesma Revista, a. 51, p. 33), o mesmo autor alude ao "caráter escapista" e à "superfluidade" da chamada lógica deôntica. Discorda­mos de Haba, contudo, no que concerne à sua preocupação excessiva com a cientificidade do pensamento jurídico.

6 CAPÍTULO

SECUIARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

• SUMÁRIO •

1. Referência ao historicismo e ao relativismo. 2. Concei­tos necessitados de revisão. 3. Secularização e visão da his­toricidade. 4. "Teoria Geral" e Filosofia do Direito.

1. REFERÊNCIA AO HISTORICISMO E AO

RELATIVISMO

A discrepância entre as correntes formalistas e as que implícita ou explicitamente se lhe opuseram estabeleceu um quadro polêmico, onde não faltaram (nem poderiam faltar) exageros e distorções. Um quadro no qual à alter­nativa "juspositivismo ou jusnaturalismo" se reuniam outras como "sociologismo ou normativismo", "cientifi-cismo ou humanismo" e outras1. Alguns destes exageros seriam historicamente compreensíveis, como o dos adep­tos da "Escola do Direito Livre", em face da tradição formalista do oitocentos e de suas implicações legalistas2.

Em 1914 Hermann Kantorowicz publicava um estudo sobre a per­manência do contrate, no pensamento jurídico, de uma tendência formalista e outra finalista, sempre repetido de época para época. Este estudo foi literalmente reproduzido no § 24 da Vorschule der Rechtsphihsophie de G. Radbruch (Jntroducción a Ia Filosofia dei Derecho, trad. W Roces, México: FCE, 1951).

O texto de H. Kantorowicz (com o pseudônimo de Gneus Flavius), DerKampfum die Rechtsmssenschaft, de 1906, se acha traduzido e incluí­do no volume La Ciência dei Derecbo, cjue inclui textos de Savigny, Kirchmann e Zitelmann, p. 323 et seq. A Scientia Verlag, em 1973,

Page 122: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

Em nosso século, a partir dos anos 20 e 30, sobretudo destes, o metodologistno girou principalmente em torno dos preceitos da "teoria pura do Direito", logo reforçados pelo austero formalismo de Bobbio e pelo analitismo de Hart, entre outros. Na Itália, Amedeo Conte, Scarpelli e mais alguns fortaleceram o formalismo, e com ele, ex­pressa ou implicitamente, o fundamental culto do método. Na Alemanha, na Áustria, na França e um pouco por toda a parte, o interesse pela lógica jurídica atuou no mes­mo sentido. Entretanto, a este pequeno exército continuou a contrapor-se outro, o dos axiologistas, dos jusnaturalistas, dos sociologistas, dos historicistas e de quantos se têm mostrado capazes de ver no Direito algo além da redu-cente "forma", ou da empertigada "norma".

A própria proliferação de ismos e de variações dou­trinárias criou em certos autores a idéia da necessidade de revisões metodológicas. Com efeito, foi útil que se fizessem confrontos e balanços tentando deslindar po­sições e soluções3. Seria talvez o caso, aliás, de se com­parar a bifurcação de caminhos entre ideologia e metodo­logia à dualidade estabelecida, na antigüidade, com a vigência do modelo isocrático fundado sobre a persua­são e sobre a concepção retórica da verdade, e o platô­nico, baseado sobre uma concepção ontológica e ma­temática da verdade4.

reuniu em um volume dois breves textos de E. Ehrlich, ligados ao "direito livre": Freie Rechtsfindung und frete Rechtswissenschaft, de 1903, e So^iokgie und Jurispruden^ de 1906.

Temos de registrar entretanto o excesso de ênfase de Karl Larenz sobre a importância do método ao dizer que a ciência jurídica é uma ciência "porque ha desarrollado métodos que apuntam a un conoci-miento racionalmente comprobable" {Metodologia, op. cit., p. 20). Também Hernández-Gil, que posteriormente escreveria coisas mais interessantes, concede demasiado à problemática metodológica no Prefácio de sua conhecida Metodologia dei Derecho, Cf. MARROU. História da Educação na Antigüidade.

SECULARIZAÇÂO E CRÍTICA HISTÓRICA

Ao aludir às posições filosóficas contemporâneas, inclusive as que nasceram nos fins do oitocentos, e que oferecem visões não meramente formalistas do saber e das realidades, podemos destacar o relativismo que se encontra na maioria delas: um relativismo histórico que serve de corretivo às próprias ideologias (na medida em que tendem a tornar-se dogmatismos), e que permite situar, em seu perfil e em seus limites, o formalismo metodologista. Entre outras coisas interessa assinalar que o formalismo, como tendência genérica, foi algo peculiar ao Ocidente dos anos 30 e 40: com a estilização da figu­ra humana no momento posterior à belle époque, com a sociologia formalista de Simmel e de Von Wiese, com o cubismo e o "funcionalismo" e mais outras expressões. Interessa também assinalar que a estes formalismos reagi­ram as teorias axiológicas e a sociologia de conteúdos. Entretanto o metodologismo prosseguiu atuante, mesmo com a saturação do normativismo e do "purismo", supe­rados em quase toda a parte ou transformados em resí­duo temático para exercícios de lógica5.

Na verdade o ponto de vista histórico, que permite evitar o esquematismo e os unilateralismos, tem muito o que ver com o relativismo, que, sobretudo em fins do século passado, trouxe para o pensamento social oci­dental as tipologias, superadoras dos maniqueísmos e dos dogmatismos6. Se considerarmos a conexão entre

A irreverência de Gerhard Leibholz chegaria ao ponto de dizer que com a teoria pura, de Kelsen, se teve na verdade uma "caricatura lógica" (ein logisch Zerrbild) dos ordenamentos jurídicos reais: cf. Struktur-probkme der modernen Demokratie, p. 263-264. N o mesmo sentido CA-NARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na áência do direito, p. 28 et seq. Dir-se-ia, diante dos textos normativistas, tão bem arma­dos, mas sem constituírem uma realidade, que fazem lembrar o títu­lo daquele quadro de Magritte: "Isto não é um cachimbo". Cf. nosso ensaio "Do maniqueísmo à tipologia" em Humanismo e História, p. 69. Na verdade cabe distinguir entre o relativismo crítico, que se compagina com uma axiologia historicamente fundada, e o

Page 123: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

maniqueísmo e teologia, isto é, a correlação entre a per­manência do pensar teológico e os traços maniqueístas dentro do próprio pensar moderno, ficará claro que o relativismo, que corresponde à secularização geral do es­pírito moderno, tem seu sentido ligado a dois movimen­tos específicos: o da crítica e o do historicismo, um nas­cido de Kant e outro dos neokantistas.

Não é o caso de aplicar-se a estas referências raciocí­nios geometrizantes. Entende-se o porquê histórico do historicismo, como parte ou produto da secularização cul­tural; ou não se o entende, a depender dos conceitos pré-adotados. É óbvio, porém, que a perspectiva histórica é um compreender, já que não cabe confundi-la com datas e enumerações cronológicas. Quando Max Weber melhor conseguiu seu propósito de verstehen, foi ao adotar ângu­los históricos, e sua obra está felizmente cheia deles.

E não é por acaso que o movimento filosófico da Hermenêutica, liderado por Gadamer desde seu Wahrheit und Methode (1960), inclui a afirmação de que o saber social é sempre hermenêutico, afirmação que incorpora traços centrais do historicismo vindo principalmente de Dilthey. A filosofia hermenêutica, incorporando dados contidos na "teoria do homem no mundo" de Heidegger, assume sua historicidade ao admitir suas próprias origens, e assume que o ato interpretativo, como processo de com­preensão, é próprio do reconhecer-se, peculiar ao homem. Assim a hermenêutica teológica, que no caso do medievo cristão serviu de base ao método do saber jurídico, foi substituída pela crítica de textos do Humanismo. O Ro­mantismo colocou as linhas daquilo que se reconheceria depois como correlação entre historicismo e hermenêu-

relativismo formalista, que apenas afasta como "não-racionais" os problemas axiológicos, deixando-os fora de sua teorização (é o que ocorre com o ensaio de Kelsen sobre a justiça).

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

tica. Nesta correlação se encontravam, como que incor­poradas, as diretrizes críticas, pois, qual dissemos acima, criticismo e historicismo passaram a completar-se.

No século XX o crescimento das posições e preocupa­ções metodológicas, transformadas em uma espécie de nova teologia, ocorreu em direção distinta daquela em que sur­giriam as reflexões sobre hermenêutica. Em certos autores contudo (como Emílio Betti, por exemplo), o interesse pela metodologia se compaginou com a reflexão sobre in­terpretação7. Superou-se a anterior tendência a tratar a interpretação como uma questão metodológica — refe­rência a "métodos" ou a "processos" de interpretar —, passando a ver-se nela, sobretudo, um problema filosófi­co, concernente ao compreender, ou seja, ao estabeleci­mento ou ao descobrimento de significações. Parece de fato haver, no espírito das posições "hermenêuticas", uma latente oposição ao pensamento metodologizante8.

2. CONCEITOS NECESSITADOS D E REVISÃO

Em faixas diferentes, outras direções distintas do forma-lismo metodologista permitiram o prosseguimento, durante nosso século, de reflexões mais substanciosas den­tro da problemática da teoria do Direito. Assim a renova­ção da hermenêutica, mencionada linha acima; assim o historicismo, sobretudo o ligado à axiologia; do mes-

BETTI. Teoria Generak delia Interpretarnone. Sobre a "metodologia" da interpretação segundo Betti, ver o estudo de HABA em Archives de Philosophie du Droit (Sirey), p. 371 et seq.

"... il programma antimetodologico deFermeneutica è forse 1'unico punto in comune di un modo di pensare che, sciolto daLTansia metódica, si concretizza in un approccio molto spesso originale senza particolari preocupazioni di costruire un ponte dialogico alTinterno stesso di quesfarea di pensiero" (CATANIA. "Ermeneutica e definizione dei diritto", em Rzv. di Diritto Chile, p. 121). Cf. ESSER. Precomprensione e scelta dei método nel processo di individua^rione dei diritto, passim.

Page 124: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

100

mo modo os trialismos e tridimensionismos, sobretudo os alimentados pela noção de experiência jurídica. Com freqüência a contraposição entre correntes ou posições é análoga à diferença entre a ordem de problemas assumida por umas e adotada por outras. Às vezes, porém, se tra­ta de diferentes modos de pensar, metodologicamente expressados, e distintas visões do objeto.

Enquanto os formalismos, mormente, os "puristas", continuaram aferrados aos seus temários vindos da teoria pura, com algumas variantes, o pensamento social mais recente tem trazido várias questões novas, com novos questionamentos, que importa à teoria jurídica conhecer e partilhar.

Por outro lado, as discussões têm alcançado certos conceitos fundamentais, cuja compreensão resulta enri­quecida com a variedade de ângulos sob os quais são tratados. A ênfase dos formalistas sobre a noção de "ordenamento", por exemplo, ensejou o reestudo da idéia de ordem jurídica, e com ela a de sistema — além do reexame do pensamento do próprio livro de Santi Ro­mano sobre o ordenamento9. Dentro do tema situa-se o reflexo das idéias de Schmitt sobre decisão: sente-se a diferença entre dar prioridade à decisão sobre a forma, e portanto sobre a ordem, ou dá-la à ordem, isto é, à forma, sobre a decisão10.

9 Veja-se o cap. IV {Online positivo, ra^ionalità, giusti^ia) em CARRINO. L'Ordine delk norme. Política e diritto in Hans Ke/sen. Com a redução do Direito à norma, esta entendida em sentido lógico-formal, se descar­tam as implicações políticas do Direito, justamente do Direito positivo, único a que obviamente se referem os "puristas".

10 Este foi o tema do ensaio inicial do livro de CASTRUCCI. La forma e Ia decisione, op. cit. Carl Schmitt havia explicitado, por conta de suas inclinações doutrinárias, que "toda ordem descansa sobre uma deci­são" (Teologia Política, op. cit., p. 43-44). Na verdade o problema é circular, pois a configuração do decidir implica um mínimo de relações e de expectativas que prefiguram uma ordem.

SECULARIZAÇÂO E CRITICA HI5TÓRICA

Em Santi Romano, as normas se entendem em fun­ção do ordenamento, não ao inverso. Na mesma dire­ção outros autores têm revisto o problema das relações entre Direito e norma, com enfoques diversos daquele que se encontra no normattvismo reducente. Do mes­mo modo que ao legalismo simplificador (do tipo do de Kirchmann) já se havia respondido com a advertên­cia de que o Direito não se reduz à lei11, assim se contra­põe àquele normattvismo a noção óbvia segundo a qual "Direito" expressa mais do que "sistema de normas"12.

*

Entre as posições que divergem dos formalismos e dos purismos, não podem deixar de constar os sociolo-gismos. Com este termo estamos aludindo às teorias ou correntes que enfatizam as condições sociais do Direito e que tendem a reduzir a temática da teoria jurídica à dis­cussão sobre elas. Entre tais posições se encontra a dos críticos marxistas, com sua maniática visão do fator eco­nômico como fator demiúrgico. Na crítica marxista não apenas se tem a remoção do debate para o plano do "so­cial" e das condições "materiais" do Direito, como mes­mo, em certos casos, a conversão da análise em acusa­ção contra a "classe burguesa", considerada autora de

11 Cf. H E R N Á N D E Z - G I L . Problemas epistemo lógicos de Ia ciência jurídica, p. 17 et seq. Cf. nosso Legalismo e Ciência do Direito, op. cit.

12 Expressa muito mais. O professor chileno A. Guzman Brito chega a dizer — a frase é realmente excessiva, mas se explica pela perspectiva romanística do autor — que o Direito, historicamente, se desenvolveu sem precisar das leis, vindo a ser algo "reacio a Ias normas" ("La función jurisdicional en Ias concepciones clásica, moderna y con­temporânea", em A. Guzman e outros, La función judicial, p. 220). Em sentido análogo, Francisco Madrazo distingue entre a ordem jurí­dica e o direito judicial, este entendido como de certa maneira supralegal {Ordem jurídicoy derecho judicial, p. 58 et seq). Para Madrazo a estrutura da ordem jurídica não tem nada a ver com a "pirâmide" divulgada por

Page 125: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

102

todo o Direito moderno13. Com isto se tem o jurídico propriamente dito fora da reflexão, que o reduz às suas pretendidas condições, estas entendidas em termos de classes — nos termos em que se expressava o marxismo stalinista da época de Vishinsky e de Stucka. Em dados casos a crítica das condições sociais e do Direito dito burguês leva (velho tema, já presente em Marx e Engels) à crítica do Estado, e portanto, do estatismo do direito. Vêm então escritos sobre a possibilidade de sociedades sem Estado, inclusive com o recurso da antropologia (cita-se sempre o livro de Clastres sobre as sociedades pré-esta-tais); omite-se a idéia do Estado como configuração global dos grupos que integram a sociedade, idéia que estava já em Aristóteles e em Bodin; acentua-se, por arrastamento ideológico, a noção do Estado como aparato de classe — sempre o sediço texto de Althusser — e alguns aludem in­conseqüentemente ao "mito" do Estado.

Tem-se deste modo uma equivocada alternativa en­tre o conceito formalista-normativista de ordenamento, e sua radicalizante negação por parte dos que preten­dem um direito "informal" e "não-dogmático"14.

Não é deste tipo a crítica do formalismo e de suas correlações metodológicas, que aqui propomos — evi­dentemente.

Kelsen; as "normas secundárias", por sua vez, são vistas como integran­tes do Direito Judicial, e constituem a base de sustentação das primárias, eis que constam dos princípios que embasam o próprio direito.

13 FREUND, comentando a "Crítica da Razão Dialética" de Sartre, men­ciona "une interpretation scolastiquement marxiste de Ia philosophie", ortodoxa e apriorística (Archives de Philosophie du Droit, p. 219 et seq). Seria longo arrolar e comentar aqui as obras que aplicam ao direito os esquematismos marxistas, inclusive a medíocre "Introdução" de Miaille.

14 Realmente não cabe contundir uma crítica histórica com uma diatribe, nem sequer com uma tosca "sociologia dos fatores"; ela é antes de tudo uma compreensão do sentido histórico dos problemas ("histórico" como algo que não se reduz a uma "função das estruturas materiais").

SECUUXRIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

3. SECULARIZAÇÃO E VISÃO DA HISTORICIDADE

O caminho para a revisão destes problemas se acha evidentemente na perspectiva histórica. A história como perspectiva não se confunde com as enfáticas doutrinas do século XIX, que delineavam esquemas onde se encai­xavam os fatos, de sorte a desembocar "logicamente" em determinado estágio — como ocorreu no comtismo, no spencerismo, no marxismo.

Ao falar de perspectiva histórica tem-se como impli­cação um relativismo, que não é ceticismo (nem nihilismo) nem pragmatismo e que torna flexível o entendimento do "curso" dos fatos, mesmo admitindo-se que eles têm um sentido dialético (que o têm em certa medida). Este en­tendimento compreende a significação de cada esfera (a cultural, a religiosa, a econômica) em função da história, isto é, em função de um todo e em função da "práxis": não ao contrário, o todo e a práxis como resultado mecâ­nico de tal ou qual "fator".

Tem-se então o plano institucionalào viver dos homens como algo cuja estrutura se impõe sobre os comporta­mentos, mas que também depende de comportamentos; algo cujo caráter, como ordem, adquire significação em face de um entendimento que é comunitário, mas que inclui trabalho pessoal e que envolve valores e linguagem. Daí que ocorra uma hermenêutica, latente ou expressa, em cada grande contexto, com referência ao significado das insti­tuições e da relação que têm com os comportamentos.

No caso do Direito, que sem dúvida faz parte daquele plano institucional, e que emerge da politicidade exis­tente na convivência institucional dos homens, a combi­nação entre ordem e hermenêutica se apresenta com toda a clareza: o plano das normas positivas, que expressam vigências definidas, necessita, para sua atuação e sua com­preensão plena, da dimensão hermenêutica, isto é, do

Page 126: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

1Q4 NELSON

conjunto de significações e de elementos interpretativos que esclarecem aquele plano.

A conjunção de ordem e hermenêutica é evidentemen­te uma variável, a depender de contextos culturais e de épocas históricas. Vários autores têm aludido à perma­nência do padrão analítico existente no trabalho dos ju­ristas como algo específico desde a Idade Média: um pa­drão formalmente distinto do que correspondeu, por exemplo, à ciência jurídica romana. Otto Brusün, afirman­do a validade daquela permanência, conclui enfaticamen­te pela necessidade de um "fundo histórico-cultural" para a compreensão do "método de pensamento da moderna ciência do direito"15. Temos deste modo o Direito como história, além de "na" história: assim o emergir de um pen­samento secularizado dentro da teoria do Direito não pode ocorrer como algo anti-histórico ou a-histórico16.

O verdadeiro historicismo — não o que aparece distorcido nas inconseqüentes diatribes de Karl Popper - representa em verdade a secularização reconhecendo-se, assumin­do-se como posição crítica: a crítica da secularização partindo de uma reflexão, de um pensamento saído dela, isto é, de um estágio histórico marcado por ela própria. O historicismo, ao situar as coisas e os homens dentro de termos históricos, situa-se, situando assim sua validade e seus limites — os limites que Troeltsch discutiu17-, ca­racterizando as formas e os graus das "crises" que o cer­cam. Porque o historicismo é uma expressão de crise, da malaise que atingiu o Ocidente a partir de certos pon­tos históricos: seja da Revolução Francesa, seja do ad­vento dos conflitos ensejados pelo capitalismo, seja das próprias questões que o pensamento descobre dentro da

15 Elpensamiento jurídico, p. 242. 16 Cf. nosso O Problema da História na ciênáa jurídica contemporânea, passim. 17 TROELTSCH. Der Historismus und seine Probleme.

SECULAKIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

revisão de suas trajetórias. O positivismo foi uma filosofia da crise, e com ele, como ele, o ecletismo e os naturalismos do século XLX o foram: filosofias na crise e em crise, como talvez o hegelianismo e certamente o marxismo, e também as cor­rentes que surgem com a transição ao século XX18. O historicismo tematiza seu contexto, permite a discussão de seus próprios fundamentos e abre ao pensamento secularizado o espaço para o debate de seus "prós" e de seus "contras".

É importante registrar que a crítica, no pensamento jurídico contemporâneo, tende — em suas formulações mais fecundas - a assumir este sentido histórico, fazen­do da revisão dos itinerários e dos contextos (como tra­ços historicamente exemplares) a base para a reflexão sobre a experiência jurídica e sobre o saber jurídico. Pode-se inclusive admitir a existência de um padrão, que é feito de constantes e que configura através de suas li­nhas dominantes uma "filosofia jurídica européia", como aquela a que se refere Trigeaud19.

4. "TEORIA GERAL" E FILOSOFIA D O DIREITO

A consciência da continuidade de determinadas linhas do pensamento jurídico e de sua temática, em correlação com o reconhecimento da permanência do objeto "Direi­to", sem embargo das variações e através da diversidade de contextos, leva à idéia de uma Teoria Geraldo Direito. En­tendemos a esta em um sentido realmente genérico, isto é, abrangente dos diferentes aspectos do fenômeno jurídico: o jurídico em sua abrangência e em seu sentido "geral".

18 Uma das explicitações se acha no título do livro antipositivista de SOLOVIEV, de 1874. Crise de Ia Philosophie Occidentale. O tema nos remeteria à doutrina de Spengler sobre a decadência do Ocidente, reformulada por Toynbee e outros.

19 TRIGEAUD. Philosophie juridique européenne. Cf. também nosso "Texto Introdutório" em Teoria do Direito e Crítica Histórica.

Page 127: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

T f l f i ^ NELSON SAIJXÃMHA

Aqui recordo um breve e lúcido ensaio do civilista ita­liano Natalino Irti, a propósito da posição de Ferrara quanto ao método jurídico. Lembrando que Ferrara sempre man­teve o sentido da positividade e da historicidade do Direi­to, Irti agrega que, para o mestre do Trattato, o jurista cons­trói com referência ao Direito vigente, considerado como totalidade e situado em dada época, superando-se assim a equivocada antítese entre historicidade e dogmática20.

Não nos alongaremos na discussão sobre o conceito de Teoria Geral do Direito. Cabe entretanto mencionar que ela se relaciona com a própria experiência real do Direito através de um dos momentos desta: o momento hermenêutico. A existência de um momento herme­nêutico, ou mesmo de uma dimensão hermenêutica, inte­grando o fenômeno jurídico, vincula ao "Direito", como realidade dinâmica (não apenas como estrutura) as raízes da "teoria" que a ele se refere. Evidentemente tal teoria se distingue da Filosofia do Direito, que tem mais am­plas dobras e implica em indagações mais profundas; a teoria pode inclusive entender-se como um passo entre a visão "dogmática" do Direito - vai o termo por falta de outro melhor — e sua visão filosófica, cujos contornos epistemológicos nunca cessarão de ser discutidos21.

*

Ao reter as linhas fundamentais do que vem sendo através das épocas o pensamento jurídico, a crítica his-

20 IRTI. "Problemi di método nel pensiero di Francesco Ferrara", em Kev. de Direito Civil, át. — Cf. também FERRARA. "Teoria dei diritto e metafísica dei diritto", uma dura critica à Teoria Geral do Direito de Carnelutti.

21 Para o conceito de Teoria do Direito (e suas relações com a Filosofia do Direito), ver o excelente capítulo I da Teoria dei Derecho de ZULETA PUCEIRO. Muito interessante o artigo de WROBLEWSKI, "Uattítude philosophique et 1'attitude aphilosophique dans Ia théorie contemporaine du droit", em Archives de Philosophie du droit, p. 273 et seq.

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA JQ7

tórica se defronta com certos problemas, inclusive o de selecionar as imagens. Toda visão histórica é seleti­va, e ao distinguir as linhas centrais, a teoria envolve um momento interpretativo que revela suas próprias bases. Por outro lado, a compreensão das relações en­tre o pensamento jurídico de uma época e o de outras leva à noção do que muda e do que permanece. Al­guns autores lançam mão do conceito de paradigma, termo veiculado por Thomas Kuhn em 1962: o para­digma como padrão dominante no saber jurídico em determinado tempo22. Evidentemente o uso do con­ceito de paradigma confere à teoria do Direito um senti­do histórico, uma perspectiva onde as categorias se situam e se tornam inteligíveis em função do quadro contextual em que se acham situadas.

Na medida em que se percebe a permanência de de­terminadas linhas ou figuras - inclusive institutos e prin­cípios — pensa-se na cumulatividade do saber, que não significa apenas a junção e sobreposição de textos e de idéias, mas o enriquecimento das idéias e a alteração do sentido dos textos. Aqui cabe aplicar, até certo ponto, a noção hegeliana de A-ufhebung. em determinadas épocas se substituem os padrões dominantes, mas o que foi can­celado permanece, de algum modo, abrangido e absor­vido pelo que sobreveio. Assim se tem a substituição dos padrões e dos modos através de sucessivos "mode­los" e, ao mesmo tempo, a continuidade de algo que se pode tomar como o "objeto" do saber. Esta continui-

KUHN. A Estrutura das Revoluções Científicas, passim. Cf. PUCEIRO. El paradigma dogmático, op. cit., principalmente o prólogo e o cap. I. Também A. GENNARO. Introdu^ione alia storia dei pensiero giuridico (op. cit), ao balizar os diversos capítulos, utiliza a noção de paradigma. Veja-se ainda CANGUILHEM. "El papel de Ia epistemologia en Ia historiografia científica contemporânea", em Eco, (Buchholz, Bogo­tá), n. 247, maio 1982, p. 1 et seq., princ. p. 13.

Page 128: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

1 0 8 NELSON SALDANHA

dade, que é "do" objeto, é que o faz ou o perfaz em suas características, permitindo que se fale dele e que se pen­se sobre ele.

*

Mas o que importa, sobretudo, é a necessidade de que permaneça uma filosofia do Direito que efetivamente seja uma filosofia: um pensamento sem reducionismos, a não ser os que provêm da própria configuração dos temas. Aqui convém recordar o passo do Prefácio da Fenome-nologia do Espírito, onde Hegel se refere à "maneira dogmática de pensar", que corresponde a questões que pedem respostas fixas: para Hegel, estas questões não atin­gem a "verdade filosófica", que tem algo de "delírio báquico" e que se faz pelo próprio percurso de seus momentos no sentido da totalidade — a totalidade como movimento23. Mesmo sem adotar por inteiro esta pers­pectiva podemos extrair de dentro dela um conceito não-formalístico de filosofia e de "verdade filosófica", que pode aproximar-se da noção de hermenêutica e de pen­samento hermenêutico formulada em nosso século.

Valerá, no caso, aludir ao esforço dos pensadores não-formalistas, especificamente não-logicistas e não-normativistas, que vêm desde as décadas centrais do sé­culo vinte mantendo — com freqüência colocando — a filosofia do Direito em seus enfoques próprios, dentro de sua temática própria. Erich Schwinge, em 1930, em valioso ensaio sobre a Methodenstreit que ocupou os juris­tas de seu tempo, já se rebelava contra a idéia de um único método (uma frase de Heller, que então citava, alu­dia ao "imperialismo do método único") propondo um sincretismo metodológico como algo mais frutífero24.

Fhénomenologie de /'Esprit (op. cif.), p. 35 e 40.

S C H W I N G E . "La controvérsia sui metodi nella scienza giuridica moderna", loc. cit., p. 223-224 ("Tutti i metodi hanno i loro limiti:

SECLJLARIZAÇÁO E CRÍTICA HISTÓRICA ^Qt)

Bem mais recentemente — e é claro que estamos a omitir numerosos autores —, o professor Trigeaud, de Bor-deaux, em estudo sobre a situação atual da filosofia do Direito, salientou a permanência histórica da reflexão sobre a justiça como referência inegligenciável para o pensamento jurídico, contra as orientações estritamente positivistas que omitem aquela reflexão25.

*

Uma espécie de saturação, senão de enfado, pode ser observada em importantes setores na rejeição do estrito positivismo. Inclusive, no caso da filosofia geral e da metodologia, contra o neopositivismo. Seja exem­plo o sugestivo livro de Paul Feyrabend, Adeus à Ra^ão (Farewell to Reason). No capítulo 6 desse livro temos uma arrasadora crítica a Karl Popper e às suas "excursões" na filosofia, que considera banais e ingênuas (além de pre­tensiosas, acrescentamos); a Popper e ao neopositivismo, que, com suas "charadas lógicas" se teria servido "do nome da ciência para propagar uma perspectiva rígida, tacanha e irrealista"26.

Uma saturação que devemos compreender como recusa dos reducionismos e empobrecimentos contidos nos positivismos em geral. A importância metodológica de obras como a de Kant, por exemplo, ou mesmo a de Husserl, pode ser admitida em termos de momentos his­tóricos, sem que se tenha de "depender" de seus esque­mas para o encaminhamento da reflexão filosófica.

dove un método falisce a causa di questi limiti, devono subentrare per 1'appunto metodi nuovi", p. 224). Sobre o assunto ver também L. RODRIGUEZ-ARIAS. Filosofia j Filosofia dei Derecho, p. 92 et seq. e nosso Formação da Teoria Constitucional (op. citi).

25 TRIGEAUD. Persona — ou, Ia justice au double visage, p. 11 et seq. 26 FEYERABEND. Adeus à RaZão, p. 223.

Page 129: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

110

Esta reflexão se desenvolve com a absorção de diver­sos outros momentos, que no pensamento contemporâneo incluem Hegel, o historicismo e a axiologia, ou seja, dire­ções menos formais. A presença de um grau menor de for-malismo não representa necessariamente carência de "ri­gor", mas sim abrangência, flexibilidade e possibilidade de abertura para temas fibsoficamente ligados ao humano.

A excessiva concentração do pensamento jusfílosó-fico nos temas metodológicos conduz, como temos re­petido, a um reducionismo. Conforme ficou visto, ela chega a parecer uma nova teologia, como se por um paradoxo o processo de depuração das formas de pen­sar desembocasse em algum ponto do trecho inicial: uma nova teologia com textos e autores sagrados, linguagem específica, correntes internas e proselitismo.

O chamado rigor formal é admissível e até necessá­rio no saber dito dogmático, isto é, no trato específico dos diversos ramos do direito positivo. Não cabe trazê-lo, mais ainda sob toques cientificistas, para dentro da teo­ria jurídica; menos ainda, da filosofia, onde o rigorismo e o cientificismo significam muitas vezes renúncia às re­flexões mais representativas.

Queremos entretanto acrescentar outras observações. Na medida em que o conceito de ordenamento foi toma­do pelos formalistas e puristas como uma noção pura­mente formal, constituída por um "sistema de normas", a exclusão dos aspectos não-formais do problema acar­retou e implicou a redução do objeto "Direito" à con­dição de um ente abstrato. Disto aliás vários críticos se têm ocupado. Ocorre porém que o Direito, em sua ob­jetividade e sua positividade, representa uma ordem entre outras, dentro da dimensão geral de politicidade que corresponde ao plano institucional da vida dos ho­mens. Representa igualmente uma ordem concreta e efe­tiva, composta de relações e decisões, além de normas e

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA

de princípios. A concentração sobre problemas metodo­lógicos desvia o pensamento jusfilosófico do sentido real de ordem, que possui o Direito.

Desvia-o, também, da dimensão hermenêutica que existe na experiência jurídica. O cientificismo subjacente ao metodologismo mantém a problemática da teoria jurídica na ante-sala das questões concretas, isto é, man-tém-na na temática que alguns chamam metateórica. As exigências lógicas que se acham dentro do metodo­logismo, e com elas o prazer lúdico que se lhes refere, prendem o questionamento em uma série de indagações formais que não afetam a realidade.

Considerando-se no que se chama "Direito" a exis­tência de um componente ordem e de outro hermenêutica, percebe-se que neste segundo ocorrem implicações teó­ricas fundamentais, e ao mesmo tempo se encontram componentes da própria atividade prática. A hermenêu­tica, para a filosofia do Direito, aparece como um tema bastante complexo, que inclui correlações históricas e teóricas de profundo interesse cultural, correlações que servem de base à chamada "teoria da interpretação": a interpretação como momento característico dentro do processo de aplicação e de "concreção" do Direito. O tema da hermenêutica jurídica, no fundo, se relaciona com a inteligibitidade de toda a dimensão institucional da sociedade, visto que toda instituição - enquanto ordem - possui um potencial de significações que demanda uma interpretação. Tocamos nisto linhas acima.

Uma visão puramente formal do Direito, e um tra­tamento predominantemente metodológico da teoria do Direito, tendem a esvaziar a temática da hermenêutica, quando não a elidem. Os elementos culturais e axioló-gicos presentes no trabalho interpretativo não são al­cançados pelo instrumental puramente lógico (lógico-

Page 130: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

formal) dos "puristas", que apenas permite a referência a esquemas e a elementos: a norma como esquema de in­terpretação, a interpretação como análise ou utilização de determinados "elementos" concernentes ao entendi­mento dos textos legais.

O esforço exemplar de Savigny, situando ao início de seu Sistema o problema da interpretação e de seus "elementos" constituiu um passo importante em rela­ção às rotinas anteriores. O século XIX, não acrescentou grande coisa aos "elementos", mas elaborou a noção de hermenêutica dentro da filosofia e da teoria das ciências "do espírito". A importante contribuição de François Gény, teve, ao que parece, menos repercussão do que merecia, dentro da teoria geral e mesmo da filosofia da interpretação27. As alusões de Kelsen à interpretação, no capítulo 8 do volume II da Teoria Pura, não vão muito além da referência ao "ato de aplicação" da norma e sua "relativa indeterminação"28.

Registre-se entretanto que nos anos 50 algumas obras valiosas para o tema apareceram na literatura jurídico-teórica: destaquemos a Teoria Geral de Betti, a Tópica de Viehweg e o Tratado da Argumentação de Perelman. Betti reviu em um vasto panorama toda a problemática da her­menêutica e da interpretação, em vários campos e não só no jurídico; Viehweg propôs uma retomada do sentido do "problema" tal como este se deu na retórica e no

27 Sobre Savigny, entre dezenas de indicações, mencionaremos os dois tomos de estudos comemorativos de seu bicentenário, em 1979, pela Revista de Ciências Sociales da Univ. do Chile [Savigny j Ia Ciência dei Derecho, Valparaiso, 1979). Sobre Gény aludiremos às referências que ocorrem em B O N N E C A S E . La pensée juridique française, de 1804 à 1'heure presente, passim.

28 Teoria Pura do Direito (versão de 1960), op. cit., v. II, cap. 8. A menção à norma como "esquema de interpretação", que se acha na Teoria Pura em sua formulação inicial, não é retomada neste passo.

SECULARIZAÇÃO E CRÍTICA HISTÓRICA 113

pensamento jurídico greco-romano; Perelman, tentan­do declaradamente um prisma não-cartesiano, repassou sistematicamente todo o elenco de recursos da retórica e da lógica, inclusive para o Direito29. Todos estes contri­butos têm de ser elevados em conta, hoje, na considera­ção do tema da hermenêutica, ainda quando em sentido efetivo não se aceitem certos aspectos: a demasiado fácil recusa do "sistema" na obra de Viehweg, por exemplo, ou a ausência de uma reflexão histórica mais densa, no Tratado de Perelman.

29 BETTI . Teoria Generale, op. cit.; V I E H W E G . Tópica e Jurisprudência; P E R E L M A N ; OLBRECHTS-TYTECA. Traité de FArgumentation, Ta Nouvel/e Rhetorique, op. cit.

Page 131: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

POSFÁCIO

O tema do método e a crítica histórica. Racionalismo e normativismo. Épocas da ciência jurídica. Digressão so­bre legitimidade. A-lusão à hermenêutica.

Falei de método e de metodologismo. O método como ne­cessária ordenação das etapas de uma ação ou de um processo (no sentido comum e no técnico, do termo); o metodologismo como exacerbação da crença no método ou nos métodos, e do apego a ele ou eles. Obviamente podemos aludir à metodologia como descrição do método, ou como desdobramento de sua configuração. O método é uma necessidade, relacionada às mais remotas expressões do trabalho racional dos homens: geometrias, arquiteturas, aquedutos, navegações. Códigos também.

Mencionei, sobretudo nos capítulos III, IV e V, a passagem do "alto racionalismo" ocidental ao racionalismo aplicado (dir-se-ia: de Descartes a Sieyès); e deste, ao qual se uniu o empirismo, a passagem ao positivismo e ao cientificismo. Esta seqüência cor­reu em paralelo ao processo de secularização social e cultural. E depois a concentração do cientificismo no cuidado metodológico, na crença de que a fidelidade a determinado método seria a causa do progresso das ciências. Secularização, racionalismo, cientificismo: o quarto mosqueteiro terá sido o metodologismo.

Mencionei, por outro lado, o fato de que certas filosofias contemporâneas apareceram como métodos. No caso a fenomeno-logia, urdida por Edmund Husserl como esforço de retificação ou objetivização das bases do conhecimento. Também a Teoria Pura do Direito, aliás parcialmente inspirada na fenomenologia, buscando impor ao pensamento jurídico um método adequado (justo o método jurídico) e evitando deixar que o invadissem, àquele pensamento, perspectivas metodológicas do outra índole. Tanto na fenomenologia, desenvolvida por seu criador com gran-

Page 132: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

de coerência, quanto na Teoria Pura (também designada como normativismo, ou como o exemplo principal de normativismo) tanto em uma como em outra encontramos uma espécie de ritualismo semelhante ao das teologias. Até porque lhes falta a ambas uma perspectiva histórica. Faltam-lhes condições para que em sua estrutura caiba uma crítica histórica.

A presença de uma crítica histórica, dentro do pensamento jurídico moderno (como do político), tem sido uma constante desde Altúsio, desde Viço, desde Montesquieu e mesmo (com discrepâncias internas) no caso de Savigny. Não se entenderia Ihering sem uma perspectiva histórica interior em seus estudos. A ausência de crítica histórica, em teorias como a fenomenologia ou o normativismo, veio aproximá-las do logicismo e do detalhis-mo analítico, este tão caro aos autores de língua inglesa que no século vinte reduziram a teoria do direito (e da ética) a uma escolástica sem profundidade1.

*

Não quero dizer, evidentemente, que toda teoria que tenha sido divergente em relação à teologia, no processo de seculariza-ção ocidental, seja em si mesma um método. Ou que o método (como a metodologia) exista apenas como forma de combater ou substituir o modo teológico de pensar. É que o processo secula-rizador foi (ou vem sendo) algo complexo; e o racionalismo, que não se reduz ao componente metodológico, trouxe também a entronização do conceito de sistema, além da valorização da pró­pria referência a conceitos e a processos.

O componente metodológico, no âmbito do racionalismo, representa um modo de encarar a realidade diferente do que ocor­ria no período teológico: assim, em um autor medieval, os méto­dos escolásticos eram importantes pela tradição consolidada mais

N o caso de Kelsen, certos debates o compeliram a entrar em temas históricos, inclusive no livro Teoria Geral das Normas. Ele se manteve, entretanto, fiel à separação entre visão jurídica e visão política, o que acentuou, no curso dos anos, sua diferença (não polêmica pessoal) com relação a Carl Schmitt, bem como a Heinrich Triepel, a Gerhard Leibholz e outros.

POSFACIO

do que por seu caráter de criação ou descoberta2. No fundo a fé dispensa métodos (e daí a distinção entre crer e saber tematizada por Jaspers), métodos que são, para a razão, raiz e segurança.

Descartes confirmou, por meio do método, seu afastamen­to da escolástica. Ou, ao menos, pelo recurso à duvida, referin­do-se à qual reencontrou o pensar,e com ele o eu. Uma espécie de subsunção às avessas. No eu os filósofos medievais acredita­vam implicitamente; os românticos acreditariam enfaticamente3. No racionalismo cartesiano o eu foi deduzido do "penso", e este, do "duvido": um caminho cauteloso e linear, recuando para dentro da substancialidade do eu (Husserl, em paragens seme­lhantes, chegou ao termo "egologia", que Cossio aproveitou em outro sentido).

*

Como foi visto, a crise do legalismo não coincidiu historica­mente com o advento da secularização. Ela ocorreu dentro do amadurecimento do racionalismo jurídico e político, já na etapa posterior à criação dos códigos, quando a doutrina começou a es­gotar seus recursos conceituais4.

A crise do legalismo foi posterior à crise da legitimidade. Esta atravessou diversos momentos: o surgimento do Estado ab-solutista, com uma legitimidade ainda dinástica mas crescente­mente independente da unção eclesiástica; o advento da demo­cracia com a derrubada dos tronos e com o apelo à vontade

2 Obviamente o entendimento de determinado método dependerá da compreensão de seu contexto. Sílvia Rivera se refere à "idealização do método", que ocorre quando este se desvincula das concretas circunstân­cias em que se produz ("La epistemologia y sus formas cambiantes", em Filosofia, Política, Derecho. Homenaje a Enrique Marí, ed Prometeo, p. 65). Em 1710, Giambattista Viço aludia ao uso freqüentemente des­propositado do "método geométrico" [Sabiduría primitiva de tos italianos, p. 90 et seq.)

Para Hegel, menos ligado ao eu do que Fíchte, "o método não é senão a estrutura do todo, exposta em sua pura essencialidade" (Laphénomenologe de 1'esprit, p. 41).

4 SALDANHA. Ijegalismo e Ciência do Direito.

Page 133: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

U 8 NELSON SALDANHA

popular5; o debate sobre o aspecto sociológico do poder, esta­belecido sobretudo após Marx e Comte.

Obviamente essas crises se relacionaram com a seculariza-ção e com os resíduos teológicos que dentro dela permanece­ram. O Direito público posterior ao Renascimento, sobretudo o posterior às revoluções liberais, formou suas estruturas com base em dualismos característicos: o Estado moderno com seu sentido de poder específico — no medievo não tinha havido isto — e entretanto o início das reivindicações liberais; o executivo sem­pre forte, mesmo após o fim das monarquias, e entretanto a democracia como obra principalmente dos legislativos, integra­dos por representantes do povo.

Hegel havia colocado o Estado (não tanto a lei) como ex­pressão do ohjektives Geist. Do Estado dependeria a lei: o Estado como realidade maior. Com o normativismo, surgido no século XX dentro de uma ciência jurídica que já conhecia o formalismo no Direito privado (Gerber, em especial) e no público (Laband, Seydel, novamente Gerber), com o normativismo cresceu a ten­dência a associar o Estado ao Direito, tendência que com Kelsen se tornaria mais clara: mas não no sentido de serem ambos ex­pressões do Espírito Objetivo, sim no de terem de considerar-se, metodologicamente, expressões de um mesmo sistema de normas.

E aqui vêm ao proscênio Kelsen e sua teoria. Não surgem exnihilo, é claro, mas no bojo de um formalismo já testado, e de uma ilustre tematização da norma que aparecera com August Thon, Karl Binding e Adolf Merkel6. A teoria pura deveu algo ao neokantismo, ao neopositivismo e também à fenomenologia husserliana (quão curioso pensar que desta sairiam também, ao menos em parte, Heidegger e Scheler). A fenomenologia como filosofia tipicamente leiga (bem mais do que a de Hegel por exemplo), antimetafísica e anti-historicista: um método (não ape­nas um modo), um articulado sistema de análises lógicas.

A teoria pura, então, como um método: uma "teoria do direito positivo", como se anuncia ao início da Reine Rechtslehre

SALDANHA. Seculari^ação e democracia.

Cf Introdução de T H O N . Norma Giuridica e diritto soggetivo. V&fí a refe­rência a Binding e a Merkel, p. VII et seq.

POSFACIO

de 1934, que pressupõe a depuração conceituai do próprio ter­mo "direito positivo". A noção de direito positivo surge depura­da de todo outro elemento que não a norma; e contudo enrique­cida, porque sendo todo direito um direito positivo, e sendo o direito um equivalente do Estado, o próprio Estado está no direi­to positivo — só que conceituado segundo o "método jurídico".

Não poderia ter surgido o normativismo sem o legalismo: o conceito de norma, que não se confunde com o de lei, precisou deste para destacar-se, para figurar como entidade lógica, deôntica e (segundo alguns) axiológica.

*

Concedamos que a supervalorização do método não trouxe de pronto uma "repetição" da teologia. Digo que ao fim e ao cabo o racionalismo metodologista conduziu a algo como uma nova teologia, com um sentido polêmico, vez que aquilo que mais refinadamente expressou a tendência metodológica do racionalismo (isto é: a teoria Pura com sua entronização do "método jurídi­co") terminou por enrijecer-se como escola, adotando seus ri­tos conceituais, proclamando seus dogmas e anatematizando os adversários. Não que tenha faltado grandeza à obra de Kelsen, ao contrário. Sua construção doutrinária foi notável. O ismo que derivou de sua extensão temática (no início era só uma análise da ordem jurídica) e o marco doutrinário traçado por seus seguido­res, é que vieram a constituir um proselitismo implacável.

Não se trata, portanto, de pensar em um retorno à teologia por parte da ciência jurídica contemporânea como um todo. Este retorno, que menciono com certo exagero e certo toque polêmico, ocorreu fundamentalmente no formalismo, principal­mente no kelseniano. É nele que faltam o relativismo e a pers­pectiva história que uma teoria jurídica, no século vinte, deveria possuir. Aliás faltam também em teorias como a de Hart, nos analíticos pós-kelsenianos e na teoria egológica, esta, como se sabe, radicalmente ligada à fenomenologia. Ou seja, nem racio­nalismo nem historicísmo, sim redução do pensar a uma instru-mentalidade lógica. Porque o racionalismo, nas teorias desta ín­dole, não pode mais ser a especulação metafísica do tempo de Spinoza ou do de Hegel. O racionalismo nos puristas e nos analí-

Page 134: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

J20 NELSONSAmANHA

ticos já não crê na grande Razão nem no paralelo das idéias e das coisas; ele se reduz funcionalmente ao seu próprio esqueleto, ao seu sistema interior de indicações práticas.

*

Pois o método é um conjunto de indicações práticas. Na his­tória cultural, a relevância do método se revela especialmente nas épocas clássicas. No mundo grego com Sócrates (maiêutica etc) e com a alusão platônica à dialética; no Ocidente moderno, o méto­do no Discurso de Descartes, o geometrismo da Ética de Spinoza, os princípios-da-razão com Leibniz. Mas também com o esprit classique e com a pedagogia dos clássicos do século XVIII.

Tudo isso corresponde ao surgimento das constituições, da separação de poderes e das formulações democráticas: o Oci­dente passava a ser, nos séculos XVIII e XIX, uma civilização burocratizada e metodológica. Mas passava também a ser uma civilização hermenêutica: com o romantismo a atitude intelectual formalizante e metodológica começava a ceder passo às inda­gações hermenêuticas7.

N o direito, o método se revelou nas obras maiores de Grócio, Puffendorf, Tomásio e Altúsio: a convencional partição de capítulos, o caráter das fontes, a relação com os clássicos anteriores. Na França a Escola da Exegese, vindo após o Códi­go de 1804, consagrou a cautela (que alguns diriam burguesa) no trato com a letra da lei. O apogeu da Escola (apogeu e crise) preparou a importante obra de François Gény, ainda exegetista e já hermenêutico, legalista mas não tanto, nem tampouco jusnaturalista, tratando dos métodosde interpretação. E na Alema-

Com isso se preludiava o contraste entre o método e a verdade, no sentido delineado por Hans-Georg Gadamer desde 1960, ao propor um con­ceito abrangente e historicista de "verdade" (Vèrité et méthode. Les grandes lignes d'une hemeneutique philosophique. Com esta obra definiu-se a "filo­sofia hermenêutica", da qual partiriam elementos novos para a revisão da própria hermenêutica jurídica). — Em 1914, Hermann Kantorowicz havia publicado um artigo sobre as poças da ciência do direito, na qual apontava uma constante alternância entre formalismo e finalismo (apud RADBRUCH. Introducàón a Ia áenàa dei derecho, p. 96 et seql)

POSFACIO

nha um dos momentos relevantes do trabalho de Savigny foi, em seu livro sobre o "Direito Romano Atual", a parte sobre métodos8. O componente hermenêutico veio como uma espécie de contraponto, com relação à idéia de método: primeiro as alusões à interpretação, dentro de exposições sistemáticas, depois a idéia de uma hermenêutica restauradora de sentidos e integradora de mo­mentos normativos. De qualquer sorte, foi preciso que o positivismo do ordenamento escrito se desenvolvesse, para que o ponto de vista hermenêutico se fizesse necessário, e aparecessem obras como a de Betti e a de Gadamer renovando a problemática.

*

Passemos ao tema da legitimidade, de que tratei, e com bre­vidade, apenas em um dos itens do capítulo III.

Uma referência quase obrigatória vai para Max Weber, com sua teoria das formas de dominação, a que respondem três tipos básicos de legitimação. Cada forma de dominação, diz Weber, tem suas "pretensões típicas de legitimidade"9. Weber distinguiu "três tipos puros de dominação legítima": a dominação legal e burocrática, dentro da qual se obedece à regra e não à pessoa, e na qual aquele que ordena também obedece ele próprio a uma regra; a dominação tradicional, onde subsiste a crença em poderes se-nhoriais vigentes desde sempre (e também na santidade do ordenamento); a dominação carismática, que se funda sobre a devoção aos poderes sobrenaturais (ao carisma) do senhor, e às suas qualidades mágicas ou heróicas e seu desempenho pessoal10.

SAVIGNY. Sistema dei derecho romano actual. A doutrina e as alusões históricas falam de métodos e procedimentos, mas Savigny menciona­va "elementos": o elemento gramatical, o lógico, o histórico e o siste­mático, nos quais se decompõe a tarefa interpretativa. A propósito de Savigny os autores ficariam revendo e repondo o tema "História e Sistema", e alguns encontram em suas páginas a origem dos "méto­dos dogmáticos": cf. artigo de A. Hernández-Gil, em Savigny y Ia ciência dei derecho.

WEBER. Economiay sociedad, p. 171. WEBER. Economiay sociedad, cit, p. 706 et seq. Weber empregou, como se sabe, o termo Ent^auberung, "desmagicização", para aludir ao processo de perda da substância sagrada ou secularização. Certos

Page 135: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

122 NH^ONSAiJ|Wj^

Não é difícil entender que as formas tradicionais de domi­nação correspondem historicamente aos períodos teológicos. A dominação carismática pode ocorrer em tais períodos, cu­mulativamente, quando surge um líder provido de carisma; e também em períodos secularizados, se o líder aparece em con­textos "modernos". Assim aconteceu com chefes muito especiais como Alexandre o Grande, Átila, Napoleão, mas também com Hitler, ou, talvez se possa dizer, com De Gaulle (a "dose" de carisma atribuída a tal ou qual personagem inclui sempre uma dimensão de subjetividade). Já a dominação legal ou burocráti­ca é, por definição, própria dos contextos secularizados, onde as estruturas do poder se acham reordenadas em face de uma concepção leiga e racional.

Com a secularização, abandonam-se as formas tradicionais de legitimação, correspondentes à monarquia absoluta e/ou ao mundo feudal. Nelas valiam, como justificação do poder, ele­mentos concretos e axiológicos, no caso a linhagem, o sangue, senão mesmo o vínculo do monarca com a divindade , capaz de guiar seu mando e explicar seu desempenho.

Ortega chegou a escrever que o conceito de legitimidade é, no fundo, um conceito monárquico: ele tem relação com as primeiras realezas11.

A idéia de legitimidade, nascida em períodos monárquico-teo-lógicos, não corresponde realmente aos contextos democráti-co-racionaüzados. Nas democracias a "legitimidade" fica como que implícita, e o emprego do termo diz respeito aos graus de aceitação de determinadas decisões. Por um vestígio das épocas pré-secularizadas o termo é utilizado com referência a resulta­dos eleitorais e à persuasão ideológica: o conceito de legalidade veio a encampar a idéia de que determinadas exigências devem

autores franceses o acompanham, usando a palavra "désenchantément". - Vale anotar, neste ponto, que a teoria da dominação carismática sempre foi um tanto ambígua, mesmo nas páginas do próprio Weber. Ortega y Gasset. Una interpretaáón de Ia historia universal {em torno a Toynbee), p. 139 et seq. Para o tema, Paul Bastid, "I/idée de legitimité", em P. Bastid e outros, Uidée de legitimité, p. 4 e 5.

POSFACIO 123

condicionar a titularidade do poder12. O poder, nos contextos racionais, deve cumprir formalidades previstas em lei, e com isso valer suficientemente. Dentro do padrão teológico, a fonte da legitimidade estava nas relações e nas origens: não dependia do Estado nem do direito positivo. Com o padrão secularizado, o Estado (que surgiu, ou reformulou-se, a partir do fim do feuda-lismo) foi chamado a sustentar a legitimidade. A "oficialização" do poder pelo Estado, que só poderia dar-se através da ordem legal, correspondeu na maioria dos casos à sustentação do ordenamento burocrático.

Tende-se então, dentro do Estado Moderno, e principal­mente a partir do constitucionalismo e da democracia, a colocar a idéia de legalidade no lugar da antiga noção de legitimidade. O caráter basicamente formal da idéia de legalidade fez com que esta necessitasse de uma compensação axiológica, um "conteúdo" material, coisa que existia implícita e substancialmente nos con­textos teológicos.

Sob certo aspecto a democracia é um método, como o é a constituição: um método de governar. A democracia, como "sis­tema", se apresenta provida de fortes necessidades doutrinárias (ideológicas, axiológicas) e de instrumentalidades que são métodos e que se referem à distribuição dos poderes, às formas de con­tar e de prever, à pesagem do número de representantes e de representados13. Foi sobretudo em momentos seguintes ao de sua instauração, que as democracias se consolidaram em torno de técnicas de contar e de delimitar; em torno de procedimen­tos aptos a satisfazer necessidades imanentes. Pensar na consti­tuição como um método leva-nos entretanto ao tema do direito escrito (muitos menos importante antes do poder secularizado), bem como ao tema do caráter fundante que tem todo poder político, sobretudo o constituinte. A democratização-racionaliza-ção explicitou esse caráter (vejam-se os textos de Sieyès), fazendo-o incidir sobre as relações entre a nação e a constituição. Ao

Para alguns aspectos, POLIN. LM Republique entre démocratie soáale et démocratie aristocratique. Cf. também REYNIÉ. Le triomphe de 1'opinion publique, passim. SALDANHA. Secularização e democraáa, cit., p. 187 et seq.

Page 136: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

124 _ _ _ _ _ _ _ ^ - ^ - ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ , N H ^ Ç ^ j S A L J ^ j H A

povo passou a caber o poder de participar do poder, através de critérios definidos em lei. Nos períodos teológicos o cunho fundante do poder provinha das bases cosmológicas e religio­sas, o que repercutia sobre a substancialidade do vínculo legitimador: um vínculo ontológico. Com a secularização este vínculo se esvazia: voltarei ao assunto.

*

A secularização, como alteração profunda nos contextos culturais, reformula a visão do mundo e do homem. Reformula também o modo de se julgarem os comportamentos; portanto, os modos de se entender o que é a. justiça14. E a discussão sobre a justiça se complica, porque ela não é mais um dom da divinda­de, nem uma benesse do rei, mas uma qualidade impessoal que se exige do poder político e do ordenamento jurídico, bem como dos atos que aplicam e realizam o ordenamento.

A "justiça" perde as referências transcendentais, e perde sua dimensão ontológica. Como perdem algo dessa dimensão os conceitos da política (no sentido amplo e clássico desta palavra). Mas a dimensão ontológica se beneficia da problemática axiológica, que veio como uma alteridade em relação à teoria do ser: a justiça é um valor, e os valores radicam na própria condição humana. Beneficia-se também, e isto desde a crise que marcou o advento da laicização, com o crescimento da episte-mologia: menos alusão ao ser, mais alusão ao conhecimento, mais crescimento das construções conceituais. Mais terminolo­gia para as ciências sociais, mais alimento para o pensamento jurídico, que aliás sempre guarda (e já o vimos) um forte resíduo do passado teológico.

*

A permanência de elementos materiais (inclusive axiológicos) dentro de um saber jurídico crescentemente racional e formal trouxe certas reformulações. No trecho final da "Escola de

SALDANHA. Secularização e democracia, loc. cit, p. 187. Idem. Filosofia do Direito.

POSFÁCIO 125

Exegese", Gény colocou em bases bastante lúcidas o problema da interpretação, mantendo a referência à lei mas ao mesmo tempo recusando-se a tomar o direito positivo como algo sufi­ciente. Posições deste tipo, alusivas à necessidade de questionar o significado da lei sem entretanto dispensá-la, levaram à renova­ção da hermenêutica. Na verdade a hermenêutica, repita-se, veio dos românticos e dos relativismos histórico-axiológicos.

Uma perspectiva cultural mais ampla poderia fazer ver, nes­tas alterações, uma passagem da ordem à hermenêutica. O mundo moderno, no qual a ordem já não pesa como em outros tem­pos, é um mundo complexo e instável, onde o espírito, que busca compreender situações, tem de compreender processos. E a "compreensão", que é um processo hermenêutico, implica relativismos específicos. A hermenêutica tem de existir no mundo moderno, "ainda" algo teológico e "ainda" bastante racionaliza­do, ao lado da burocracia (que é uma metodologia), ou seja: ela pretende superar o método, mas lhe cabe atuar em um direito entregue ao método e ao positivismo.

Daí surgirem respostas mais ou menos radicais, como o movi­mento "alternativo"; ou como a preocupação com a retórica (onde se pode notar um certo desvio), ou mesmo a excessiva formulação de princípios. Os princípios, que no fundo são produções da hermenêutica, são procurados, na medida em que expressam valo­res, para servir de fundamento a determinados modos de entender certos institutos. Mas openchanttecnológ.co, dominante no mundo atual, passa pelo meio dos princípios. E então o direito, perdidos os velhos fundamentos teológicos e metafísicos, que subsistiram ou subsistem precariamente dentro da vigência dos princípios, vai ade­rindo à cibernética; temos daí a telemática e a jurimetria e outras expressões da sobrecarga de necessidades sociais sobre o legislativo e o judiciário. Não se sabe até que ponto essas pressões tecnológicas afetarão o próprio conceito do direito.

Page 137: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

BIBLIOGRAFIA

AARNIO, Aulis. Ea crisis de legitimidad en Ia soríedadpost-industrial, em Armário de Filosofia Jurídicay Social. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, n. 8, ano 1988. ALBERT, Hans. Freiheit und Ordnung. Tubingen: Mohr, 1986. AMSELEK, Paul. "L'héritage jusnaturaliste du positivisme juridique", em Memória delX Congresso Mundial Ordinário de Filosofia dei Derechoj Filosofia Social. UNAM, México, 1984. AMSELEK, Paul. "Norme et loi", em Archives de Fhil. du Droit, tome 25, Paris, Sirey, 1980. APPUHN, Charles, Spino^a Col. Civilisation et Christianisme. Paris: A. Delpeuch, 1927. ARISTOTELE. La poética. Tradução de Pistelli, comentários de G. Saitta, Bolonha, Zanichelli, 1947. AYALA, Francisco. Eiproblema delhiberalismo. México: FCE, 1941. BARKER, Ernst. Greek Political Theory. Plato and his predecessors. Londres: Methuen, 1977, reimpressão.

BARTH, Hans. Verdad e ideologia. Tradução dej. Bazant e E. Imaz, México: FCE, 1951. BASTID, Paul. "L'idée de legitimité". In: BASTID, P. etal. Uidée de legitimité. Paris: PUF, 1967. BAUMGARTEN, Arthur. Grund^üge der juristischen Methodenlehre. Berna: Hans Huber, 1939. BELVEDERE, Andréa, JORI, Mario e LANTELLA, Lélio. Defini^ionigiuridiche e ideologie. Milão: Giuffrè, 1979. BENDIX, Reinhard. Kings orpeople. Power and the mandate to rule. Univ. of Califórnia, 1978. BENTHAM. Fragmento sobre ei Gobierno. Tradução de J. L. Ra­mos, Madrid: Aguilar, 1973. BOBBIO, N. "Método" em Novíssimo Digesto Italiano. Dir. Azara e Eula, Turim: UTET, v. X.

Page 138: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

BOBBIO, Norberto. N. BOBBIO e M. BOVERO, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. Tradução de C. N. Coutinho, São Paulo: Brasiüense, 1986. BOEHMER, Gustav. Elderecho a través de lajurisprudenáa. Su aplicaáón j creación. Tradução de J. Puig Brutau, Barcelona: Bosch, 1959. BOORSTIN, Daniel. The mysterious sàence of Eaw. Harvard Univ., 1941. BORGES, Jorge Luis. Historia de Ia Eternidad. Buenos Aires: Emecé, 1971. BRUNSCHVICG, Léon. Les ages de 1'intelligence, PUF, 4. ed. Paris: 1953. BRUNSCHVICG, Leon. Lesprogrès de Ia consáence dans Iaphilosophie ocádentale. t. I, 2. ed. PUF, 1953. BRUSIIN, Otto. Elpensamiento jurídico. Tradução de J. P Brutau. Buenos Aires, ano XVI, n. 62, 1961. C. MILLS, Wright. A Imaginação Sociológica. Tradução de W Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. C. VARGA. "Quelques questions méthodologiques de Ia formation des concepts en sciences juridiques", Archives de Philosophie du Droit. Paris, n. 18,1973. CL. GRISWOLD "La naissance et Ia défense de Ia raison dialogique chez Platon", em A A W (J.F. MATTÉI, org). La naissance de Ia raison en Grèce. Paris, PUF, 1990. CL. VAZ, Henrique. Antropologia Filosófica, v. I, Ed. Loyola, São Paulo, 1991. CAMPANALE, Domenico. "II fondamento dei diritto tra essere e valore", em RJp. Internationale ãi Filosofia dei Diritto. Série IV, LXV, out./dez. 1988. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de siste­ma na ciência do Direito. Tradução de A.M. Cordeiro, Lisboa: Gulbenkian, 1989. CARCATERRA, Gaetano. IIproblema delia fallaáa naturalistica: Ea derivaffione dei dover essere dali'essere. Milão: Giuffrè, 1969. CARRINO, Agostino. E'ordine delle norme. Política e Diritto in Hans Kelsen, Nápoles: Ed. Scientifiche Italiane.1990. CARRINO, A .(org), Metodologia delia scien^a jurídica. Nápoles, Ed. Scientifiche Italiane, 1989.

BIBLIOGRAFIA

CASSIRER, Ernst. El problema dei conocimiento en Ia filosofia j en Ia áenáa modernas. Tradução de W Roces, México: FCE, 1953, 3 volumes. CASTRUCCI, Emanuele. Ea forma e Ia decisione. Studi critiá. Mi­lão: Giuffrè, 1985, cap. VIL

CATANIA, Alfonso. "Ermeneutica e definizione dei diritto", em Riv. di Diritto Civile, ano XXXVI, n. 2, mar./abr. 1990. CATANIA, Alfonso. Decisione e Norma. Nápoles: Jovene, 1987, reimpressão. CATANIA, Alfonso. II diritto tra fior^a e consenso. ESI, Nápoles-Roma, 1987. CHANTEUR, Janine. Platon, le désir et Ia áté. Paris: Sirey, 1980. COMIN, Bienvenido. "Influence du Christianisme sur Ia civilisation et sur le droit" em Revue Catholique des Institutions du et Droit. Ano 5, set. 1977. COMTE, Amedeo. "Validità", no Novíssimo Digesto Italiano. Dir. de A. Azara e E. Eula, Turim, v. XX. CONILL, Jesus. El crepúsculo de Ia metafísica. Barcelona: Anthropos, 1988.

COOMARASWAMY, Rama. Ensaios sobre a destruição da tradição cristã. Tradução de Mateus Azevedo, São Paulo, 1990. CORDERO, Nestor-Luís. Ea déesse de parménide, em Ea naissance de Ia Raison en Grèce. Paris: PUF, 1990. CORNFORD, F M. Principium Sapientiae: As origens do pensa­mento filosófico grego. Tradução de M. Manuela R. Santos. 2. ed. Lisboa: Gulbenkian, 1981. COTTA, Sérgio. Giustifica^ione e obbligatorietá delle norme. Milão: Giuffrè, 1981. COUSIN, Victor. Fragments Philosophiques. Philosophie Scholastique. 2. ed. Paris: Lagrange, 1840. CROCE, Benedetto. Ea Filosofia di Giambattista Viço. 5. ed. Bari: Laterza, 1953. D. WOOTON. Divine Right and Democracy — Political Writing in Stuart England. Middlesex: Penguim Books, 1986. D AGOSTINO, Francesco. Diritto e Secolarit^atfione: Pagine di filo­sofia giuridica epolítica. Milão: Giuffrè, 1982. DAWSON, Chistopher. Progresso e Religião. Tradução de A.G Rodrigues, Coimbra: Armênio Amado, 1943.

Page 139: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANHA

DE SANCTIS, Francesco. Crisi e Sàenya, Torenz von Stein. Alie origini delia scienza sociale. Nápoles: Eugênio Jovene, 1976. DELHAYE, Philippe. Permanence du Droit Naturei. Lille-Louvain,

Nauwelarts-Giard, 2. ed. 1967. DETIENNE, Mareei. Tes Maítres de verité dans Ia Grèce archaíque.

Paris: Maspero, 1967. DUMEZIL, Georges. Idées Romaines. 2. ed. Gallimard, 1980. E. IXITRE. La Science aupoint de vuephihsophique. Paris: E. Perrin, 1884. E. TAYLOR, Alfred. Elplatonismoj su influencia. Tradução de L. Farré, Buenos Aires: Editorial Nova, 1946. ESSER, Josef. Precomprensione e scelta dei método nelprocesso di individua^ione dei diritto. Tradução de S. Patti e G. Zaccaria, ESI, Univ. Camerino, 1983.

F. CANÁLS VTDAL (org), Textos de los Grandes Filósofos. Edad

Media. Barcelona: Herder, 1985. F. PETERS. Termos filosóficos gregos. Um léxico histórico. Tradução de Beatriz R. Barbosa, 2. ed. Lisboa: Gulbenkian, 1983. FERRARA, Francesco. 'Teoria dei diritto e metafísica dei diritto" em Scritti Giuridici. v. III, Milão: Giuffrè, 1954. FEUERBACH, Ludwig Aportes para Ia crítica de Hegel. Tradução de A.Llanos, Buenos Aires: Pléyade, 1974. FEYERABEND, Paul. Adeus à Razão. Tradução de Maria G. Segurado, Lisboa: Edições 70, 1991. FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Trad. O. Mota e L. Hegenberg, 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. FREUND, Julián, em Archives de Philosophie du Droit. Sirey, n. 6,

1961. G. B. KERFERD, The sophistic movement, Cambridge Univ. Press,

reimpressão, 1984. G. CANGUILHEM. "El papel de Ia epistemologia en Ia historiografia científica contemporânea", em Tico, (Buchholz,

Bogotá), n. 247, maio 1982. G DUBY (org.). A Civilização Tatina. Tradução de I. S. Aubyn,

Lisboa: Dom Quixote, 1989. G GADAMER, Hans. T'anima alie soglie deipensiero nella filosofia greca. Tradução de V. Verra, Nápoles: Bibliopolis, Istituto Ital.

per gli studi filosofia, 1988.

BIBLIOGRAFIA LU

G. KALINOWSKI. "Sur Ia distinetion entre le descriptif et le normatif" (comentário ao livro de J. L. Gardiès, L'Erreur de Hume) em Archives de Philosophie du droit. tomo 33, 1988. G LAPOUGE. Utopie et civilisations. Paris: Flammarion, 1978. G LOSANO, Mario. "La dottrina pura dei diritto, dal logicismo alTirracionalismo" em Teoria Generale delle Norme. Tradução de M. Torre com supervisão de M. Losano, Turim: Einaudi, 1985. G QUADRI. Ta Philosophie Árabe dans 1'Europe mediévale. Paris: Payot, 1947. G RADBRUCH. Introducción a Ia Filosofia dei Derecho. Tradução de W Roces, México: FCE, 1951. G. SABINE, Historia de Ia teoria política. Tradução de V. Herrero, México: FCE, 1945. G W F. HEGEL. Grunálinien der Philosophie des Rechts, com Introd. de B. Lakebrink, Stuttgart: ed. Reclam, 1976. Tradução francesa por A. Kaan, Príncipes de Philosophie du droit, NRF, Gallimard, 1940. G. ZACCARIA. "Deutsche und italienische Tendenzen in der neueren Rechtsmethodologie". Archiv fuer Rechts-und Sozialphilosophie. F. Steiner, Wiesbaden. v. 1986, LXXII. GADAMER, Hans-Georg. Verité et méthode, les grandes ligues d'une hemeneutiquephilosophique. Paris: Ed. du Seuil, 1996. GARCIA BACCA, Juan David. Introducción General a Ias Enéadas. Buenos Aires: Losada, 1948. GARCIA MAYNEZ. Ta definiáón dei derecho. México: Editorial Stylo, 1948. GARDIÈS, J. L. em Archives de Phil. du Droit. ed. Sirey, 1978, tomo 23. GENNARO, A. De. Introduzione alia Storia dei pensiero giuridico.

Turim: Giappichelli, 1979. GIERKE, Otto von. Johannes Althusius und die Tntwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Aalen: Scientia Verlag, 1968; tradu­ção italiana parcial, Turim: Einaudi, 1974. GIORGI, R. De. Scienza dei Diritto e Tegittimazione. Bari: De Donato, 1979. GIRARD, René. Des choses cachées depuis lafondation du monde, Paris: B. Grasset, 1978, e Ta violence et le sacré, Paris: B. Grasset, 1972. GIULIANO, A. "Abelardo e il diritto. Alie origini delia interpretazione mecanicistica delia legge", em Riv. Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Giuffrè, ano XVIII, n. 3, set. 1964.

Page 140: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

132 NELSON SALDANHA

GOODY, Jack. A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lis­boa, 1987. GOODY, Jack. The domestication of the savage mind. Cambridge Univ. Press, Reimpressão 1988. GORRI, Antônio A. Estúdios sobre los presocraticos. Barcelona: Anthopos, 1985. GRABMANN, Martin. Historia de Ia Teologia Católica, desde los fines de Ia patrística hasta nuestros dias. Tradução de David Gutiérrez, Espasa-Calpe, Madrid, 1940. GRAFTON, Anthony e JARDINE, Lisa. From Humanism to Humanities. Harvard Univ., 1986. GROCIO, Hugo. De Ia libertad de los mares. Tradução esp., Madrid: IEP, 1956. GROSS, Hans. Empire and sovereignity. Univ. de Chicago, reimpressão, 1975. GURVLTCH, Georges. Uidée du droit social. Paris, 1932. GUZMÁN, A. e outros. Ea función judicial. Buenos Aires: Depalma, 1981. H. D. KITTO, A Tragédia Grega — estudo literário, tradução de J. M. Coutinho e Castro, Coimbra: Ed. Aménio Amado [s/d]. HABERMAS, J. O Discurso Filosófico da Modernidade. Tradução port, Lisboa: Dom Quixote, 1990. HABERMAS, Jürgen. E'espacepublic. Archéologie de lapublicitê comme dimension constitutive de Ia societé bourgeoise. Tradução de M. de Launay, Paris: Payot, 1978. HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como "ideologia". Tradução de A. Morão, Lisboa: Edições 70, 1987. HARTMANN, Nicolai, A Filosofia do Idealismo Alemão. Tradução de J. G. Belo, 2. ed. Lisboa: Gulbenkian, 1983. HATTENHAUER, Hans. Eos fundamentos histórico-ideológicos dei derecho alemán. Tradução de M. I. Macias-Picavea, 2. ed. Madrid: Ed. Rev. de Derecho Privado, 1981. HEGEL. Encyclopédie des sciences philosophiques — I, Ea science de Ia logique Tradução de B. Bourgeois, Paris: Vrin, 1979. HEGEL. Eaphénomenologie de 1'esprit. Trad. Jean Hyppoüte. Paris: Aubier - Montaigne, 1939. HEGEL. Phénomenologie de 1'Esprit, trad. J. Hyppolite. Paris: Aubier-Montaigne, 1939.

BIBLIOGRAFIA

HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Tradução de 11 Carneiro LEÃO, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987 HERNÁNDEZ-Gil, A. 'Ea Escuela Histórica", em Savigny v / ciência dei derecho. Revista de Ciências Sociales, número esneH 1 Valparaíso: Univ. de Chile, 1979. HERNÁNDEZ-GIL, A. Problemas epistemológicos de Ia ciência jurid' Cuadernos Civitas, Madrid, 1976. HERNÁNDEZ-GIL, A. Metodologia dei Derecho. Madrid- Ed Revista de Derecho Privado, 1945. HUSSERL, Edmund. The Crisis ofEuropean Sciences and tram dentalphenomenology. Tradução de D. Carr, E. Vanston: Nortwest Univ. Press, 1970. HUSSON, Leon. Ees transformàtions de Ia responsabilité. Étude s Ia pensée juridique, PUF, Paris, 1947. IMAZ, Eugênio. Topía y utopia. México: Tezontie, 1946 J. CHARMONT. Ea renaissance du droit naturel. 2. ed p a r ; Duchemin, 1927. J. SAN MARTIN. Eafenomenología de Husserl como utopia de Ia ravón Barcelona: Anthropos, 1987. KAUFMANN, Felix. Methodology of the social sciences. Oxford 1944 KELSEN, Hans. "La giurisprudenza come scienza normativ culturale. Studio di crítica metodológica" em AAW, org. n 0r A Carrino, Metodologia delia scienza giuridica. Tradução de A. Carrin e G. Stella, Nápoles: Ed. Scientifkhe Italiane, 1989. KELSEN, Hans. Teoria Fura do Direito. Tradução de João B Machado, Coimbra: Armênio Amado, Sucessor, 1962. KUHN, Thomas. A Estrutura das devoluções Científicas. São Pn 1 Perspectiva, 1975. LACLAU, Martin. "El influjo de Ias ideas filosóficas en 1' revolución francesa'', em Anuário de Filosofia Jurídicaj Social. Buen Aires: ed. Abeledo-Perrot, n. 9, ano 1989. LACLAU, Martin. "La historicidad dei derecho" em Anuario d Fil. Jurídicaj Social. Buenos Aires, n. 8, 1988. LAPSLEY, Gaillard. Crown, Community and Farliament in the I /•• middle ages. Oxford, Basti Blackwell, 1951. LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Niet^sche. Tradução <.|L. M Armino, 6. ed. Siglo XXI, México, 1984.' LENOBLE, Robert. História da Idéia de Natureza. Tradução I Tereza Perez, Lisboa: Edições 70, 1990.

Page 141: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

134 NELSON SALDANHA

LOSANO, Mario. II fondamento tecnológico delia democracia. Ed. mimeo, Milão, 1990. LOVEJOY, Arthur. Essays in the history of Ideas, Oxford Univ. Press, 1960. LOSANO, Mario. Sistema e Stmttura nel Diritto. v. I, Dalle origini alia scuola storica. Turim: Giappichelli, 1968. LÕWITH, Karl, De Hegel à Niet^sde. Tradução de R. Laureillard, Paris, Gallimard, 1969. M. DETIENNE. Les maítres de verité dans Ia Grèce archaique. Paris: Maspero, 1967. M. VTLLEY em Archives de Philosophie du Droit (Sirey), tomo XVI, 1971. M. I. FINLEY, O Mundo de Ulisses. Trad. A. Cerqueira, Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1972. MADRAZO, Francisco. Ordem jurídico y derecho judicial. Buenos Aires: Depalma, 1985. MAFFEI, Domenico. GB ini^i ãeWumanesimo giuriáico. Milão: Giuffrè, 1956. MAIHOFER, Werner. Ideologie und Recht. Frankfurt: Vittorio Klosterman, 1969. MANCINI, Guido. Uetica stoica da Zenone a Crisipo. Pádua: Ce­dam, 1940. MARROU, Henri-Irenée. História da Educação na Antigüidade. Tra­dução de M. L. Casanova, São Paulo: Herder/EPU, 1973, 4a reimpressão. MARTIN, Alfred von. Sociologia dei Renacimiento. Tradução de M. Pedroso, FCE, 1962. MASSINI, Carlos, lua desintegraáón dei pensar jurídico en Ia edad mo­derna. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1980. MATEUCCI, Nicola. "Positivismo giuridico e costituzio-nalismo", em R/M Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Ano XVII, n. 3, set. 1963. MATTEI, Jean-François. L'ordre du monde. Platon, Niet^sche, Heidegger. Paris: PUF, 1989. MORENO, Alberto. "Lógica Medieval", em Sapientia. Univ. Católica Argentina, Buenos Aires, ano XVI, n. 62,1961. MOYA, Carlos. De Ia ciudadj de su ra^ón. Madrid: Cupsa, 1977. MOZOS, J. L. de los. Metodologiay Cienáa en ei derecho privado mo­derno. Madrid: Ed. Rev. de Derecho Privado, 1977.

BIBLIOGRAFIA \y.

MUGLER, Charles. Deux thèmes de Ia cosmologie grecque: I )évfíttt cyclique etpluralité des mondes. Paris: ed. Librairíe C. KÜncksiei I , 1953.

MÜLLER, Max. La Science de Ia Religion. Tradução de H. Dicix. Paris: G Baillière, 1873.

MURATORE, Giorgio. La ciudad renacentista. Tradução esp. I'. van Breda, Madrid, 1980.

O. BEHRENDS, "Anthropologie juridique de Ia jurisprudencc classique romaine", Revue historique de Droitfrançais et étranger, ain > 68, n. 3, jul./set. 1990. OLIVIERI, Francisco. "La noción de justicia en los orígenes dd pensamiento griego", emAnuario de Filosofia Jurídicay Social. Buciu >:, Aires: Abeledo-Perrot, n. 2, 1982.

ONORY, Sérgio Mochi. Fonti canonistiche deli' idea moderna deílo Stato. Milão: Vita e Pensiero, 1951.

ORESTANO, Riccardo. Introdusdone alio studio storico dei Diril/a Romano. Torino: Giappichelli, 1963. ORTEGA y GASSET, J.: Fa idea de principio en Feibni^j Ia evoluctOH da Ia teoria deductiva. Buenos Aires, ed. Emecé, 1958. ORTEGA y GASSET, Una interpretación de Ia historia universal (em torno a Toynbee). Rev. de Occidente em Alianza Editorial, Madrid, 1984. P. HABA, Enrique. "Rationalité et méthode dans le droit", em Archives de Philosophie du Droit, Paris: Sirey, tomo 23, 1978. P. HABA, Enrique. Archives de Philosophie du Droit. Sirey, n. IK, 1973.

P. HABA, Enrique. Racionalidady método para ei derecho: es esoposible:'. Ed. Univ. de Costa Rica, 1990. P. HABA, Enrique. Rev. de Ciências Jurídicas. Univ. de Costa Rica, Fac. de Derecho, n. 56, maio/ago. 1986. PIETRO, Alfredo di. "La prudente tarea de interpretacción en ei derecho romano", em Anuário de Filosofia Jurídicay Social. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, n. 9, 1989. POLIN, Raymond. Fá Republique entre âémocratie sociale et démocratis aristocratique. Paris: PUF, 1997.

R. STAMMLER. Fratado de Filosofia dei Derecho. Tradução de W. Roces, Madrid, 1930. R. VANOSSI, Jorge. Teoria Constitucional. I. Teoria Constituyenii , Poder Constituyente. Buenos Aires: Depalma, 1975.

Page 142: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

136 NELSON SALDANHA

RADBRUCH, Gustav. Introducáón a Ia ríencia dei derecho. México/

Buenos Aires: ed. FCE, 1951. RAHNER, Kurt. Escritos de Teologia. Schriften zur Theologie. Tra­dução esp., Madrid: Taurus, 1961. RECASÉNS SICHES, Luís. Jusnaturalismos actuales comparados. Ed. Univ. de Madrid, 1970. RECASÉNS SICHES, Luís. Panorama dei pensamiento jurídico en ei siglo XX. México: Porrua, 1963, 2 volumes. REYNIÉ, Dominique. Ee triomphe de 1'opinion publique. Paris: Ed.

Odilejacob, 1998. RIVERA, Sílvia (org). Filosofia. Política, Derecho. Homenaje a Enri­que Marí. Buenos Aires: Prometeo, 2003. ROSSETTI, Livio. "La filosofia penale di Ippodamo e Ia cultu­ra giuridica dei sofisti", em Riu Internationale di Fil. dei Diritto, ano LXVI, n. 2, abr./jun. 1989. ROUSSEL, Michel. "Rationalité et vocabulaire mystique. A propôs de certains termes ayant une origine ou une connotation reügieuse en usage chez les pressocratiques", emAAW. org. por J.E Mattéi, La Naissance de Ia Raison en Grèce, PUF, Paris 1990. S. CARAMELLA. "Método" em Enciclopédia Filosófica. Istituto per Ia Colab. Culturale, Veneza-Roma. S. R. GARDINER. The constitutional documents of thePuritan Revolution. 3. ed., Oxford, reimpressão 1962. SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Reno­var, 1998. SALDANHA, Nelson, l^egalismo e Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1977. SALDANHA, Nelson. Seculari^açao e democracia. Rio de Janeiro:

Renovar, 2003. SAVIGNY, EC. de. Sistema dei derecho romano actual, Madrid:

Góngora, 1878, 4 volumes. SCARPELLI, Uberto. "II método giuridico", em Riv. di Diritto Processuale. Cedam (Pádua), 1971, ano XXVI. SCHMITT, Carl. Politische Theologie. 2. ed. Munique-Leipzig: Duncker und Humblot, 1934. SCHUHL, Pierre-Maxime. Essai sur Ia Formation de Ia Pensée Grecque. Introduction historique à une étude de Ia philosophie platonicienne. 2. ed. Paris: PUF, 1949.

BIBLIOGRAFIA \\1

SCHULZ, Fritz. Historyofroman legal science. Clarentlon Pri 88, Oxford, 1953. SCHWINGE, Erich. Methodenstreit in der heutigen Rechtsmssenschaft, Tradução italiana em 1989, Metodologia delia scien^a giuridica, N;i poles: Ed. Scientifiche Italiane. SMEND, Rudolf. Constitucióny Derecho Constitucional. Tradução esp., Madrid: CEC, 1985. SMITH, Elisa Méndez de. Eas ideologiasj ei derecho. Buenos Aires: Astra, 1982. SPAEMANN, Robert. Der Ursprung der So^iologie aus dem Geist der Restauration. Munique: Kósel Verlag, 1959. STUBBS, William. Select Charters and other illustrations of English Constitutional History. 9. ed. Oxford, reimpressão, 1960. T. HUXLEY. Science and hebrew tradition, Essays. Londres: Macmillan, 1895. THON, Augusto. Norma Giuridica e diritto soggetivo. 2. ed. Cedam: Padua, 1951. TILLICH, Paul. The protestant era. Tradução de J. L. Adams, Londres: Nisbet, 1955. TODESCAN, Franco. Ee radiei teologiche deigiusnaturalismo laico, I: II problema delia secolarizzazione nel pensiero giuridico di Ugo Grozio — col. "Per Ia storia dei pensiero giuridico moderno", Milão: Giuffrè, 1983. TRIGEAUD, Jean-Marc. Archives de Phil du Droit. Paris: Sirey, tomo 33, 1988. TRIGEAUD, Jean-Marc. Persona — ou, Ia justice au double visage. Studio Editoriale di Cultura, Gênova, 1990. TRIGEAUD, Jean-Marc. Philosophiejuridique europêenne. Bordeaux: Editiones Bière, 1990. TROELTSCH, Ernst. Der Historismus und seine Probleme. Tubinga: J.C.B. Mohr, 1922. VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença. Tradução de J. E. Rodil, Lisboa: Edições 70, 1988. VERNIÈRE, Paul. Spino^a et Ia pensée française avant Ia revolution. Paris: PUF, 1954. VIÇO, Giambattista. Sabiduría primitiva de los italianos. Trad. J. Luccaro. Buenos Aires: Instituto de Filosofia, 1939.

Page 143: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

NELSON SALDANI IA

VILLA, Vittorio. "La Formazione dei concetti e delle teorie nelhi scienza giuridica". Materiali per Ia storia delia cultura giuridica. Dir. por G. Tarello, V. XV, n. 2, dez. 1985, Bolonha. VILLEY, Michel. "Bible et philosophie gréco-romaine de S. Thomas au droit moderne", em Archms de Philosophie du Droit. n. 18. Sirey, 1973. VIOLA, Francesco, "Ermeneutica e diritto. Mutantementi nei paradigmi tradizionale dela scienza giuridica", em BJv. Internationale di Filosofia dei diritto, Milão, abril-junho de 1989, vol. LXVL VLASTOS, Gregory. 0 Universo de Platão. Brasília: ed. da UNB, 1987. WEBER, Max. Economia j sociedad. Trad. José M. Echavarría e outros. México: FCE, 1984, reimpressão. WEBER, Max. Sobre a Teoria das Ciências Sociais. Tradução de C. Babo, Lisboa: Presença, 1974. WEBER. Sociologie du Droit. Tradução de J. Grosclaude, Paris: PUF, 1986. WEIZSÀCKER, Carl F von. Ein Blick auf Platon. Ideenlehre, Logik und Physik, Stuttgart: Reclam, 1981. WHITE, A-D.. Histoire de Ia lutte entre Ia science et Ia théologie. Paris: E Alcan, 1899. WIETHÕLTER, Rudolf. Le formule magiche delia scienza giuridica. Tradução de L. R. Amirante, Bari: Laterza, 1975. WROBLEWSKI, Jerzy. "Uattitude philosophique et 1'attitude aphilosophique dans Ia théorie contemporaine du droit", em Archives de Philosophie du droit. Sirey, 1966, tomo XI. ZEITLIN, Irving. Ideologia j teoria sociológica. Buenos Aires: Amorrortu, 1973.

Impresso em julho de 2005

Page 144: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

edeibra Impressão e Acabamento

E-mail: [email protected] Fone/Fax: (54) 520-5000

IMPRESSO EM SISTEMA CTP

:ÓES

www delreyonline.com.bi

Page 145: SALDANHA, Nelson. Da Teologia a Metodologia

DA TEOLOGIA A METODOLOGIA Secularização e crise

do pensamento jurídico

A obra discute o problema do formalismo jurídico, visualizado na perspectiva histórica, in­dicando as origens teológicas do saber jurídico e sua posterior conversão ao racionalismo laico. Aponta o autor para um dos paradoxos da cul­tura moderna: o crescimento do racionalismo e da secularização após Descartes, após o huma­nismo renascentista, e, contudo, a permanência de certos traços da fase teológica.