santos, rodrigo de almeida dos. baraperspectivismo

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    RODRIGO DE ALMEIDA DOS SANTOS

    Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o Trgico no Preldio de uma

    Filosofia da Dispora Africana

    RIO DE JANEIRO

    2014

  • Rodrigo de Almeida dos Santos

    Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o Trgico no Preldio de uma

    Filosofia da Dispora Africana

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Filosofia da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de

    Mestre em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo PPGF-UFRJ

    Co-orientador: Prof. Dr. Renato Nogueira dos Santos Junior UFRRJ

    Rio de Janeiro

    2014

  • CIP - Catalogao na Publicao

    Elaborado pelo Sistema de Gerao Automtica da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

    Santos, Rodrigo de Almeida dos

    S237b Baraperspectivismo contra logocentrismo ou o

    trgico no preldio de uma filosofia da dispora africana / Rodrigo

    de Almeida dos Santos. -- Rio de Janeiro, 2014.

    147 f.

    Orientador: Rafael Haddock-Lobo.

    Coorientador: Renato Nogueira dos Santos

    Junior.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal do

    Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias

    Sociais, Programa de Ps-Graduao em Filosofia, 2014.

    1. Filosofia da cultura. 2. Filosofia

    africana. 3. Filosofia do trgico. 4. s. 5.

    Racionalidade. I. Haddock-Lobo, Rafael, orient.

    II. Santos Junior, Renato Nogueira dos, coorient. III. Ttulo.

  • Rodrigo de Almeida dos Santos

    Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o Trgico no Preldio de uma

    Filosofia da Dispora Africana

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Filosofia da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de

    Mestre em Filosofia.

    Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo - PPGF-UFRJ (Orientador)

    Prof. Dr. Renato Nogueira dos Santos Junior - UFRRJ

    (Co-orientador)

    Profa. Dra. Adriany Ferreira de Mendona - PPGF-UFRJ

    Jos

  • Com muita alegria por todo o corpo, atravs

    do baraperspectivismo, do teatro e da poesia,

    do sacerdcio no culto aos rs e do cultivo

    da capoeira angola, procurarei restituir,

    mantendo-o vivo, todo o se que me foi

    outorgado por Oya, sun e ssi.

  • Agradecimentos.

    Sou profundamente grato ao meu orientador e colega, Prof. Dr. Rafael Haddock

    Lobo, pela generosidade em me acolher e acolher meu projeto no Programa de Ps-

    Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; pelo estmulo

    minha pesquisa e pela valorizao de minha questo, indicando que o caminho de minha

    abordagem e a forma de sua apresentao deveriam se manifestar como algo diferente,

    como algo que sugerisse um trao de novidade em relao ao modelo de produo

    textual empregado usualmente na academia. Minha gratido a Rafael tambm se deve

    ao curso ministrado sobre a Gramatologia, de Derrida, ocasio em que tive a

    oportunidade de entrar em contato com a analogia entre logocentrismo e etnocentrismo,

    apresentada como um fator fundamentalmente determinante da metafsica no ocidente.

    Sem o menor laivo de exagero, tambm regozijo de gratido pela amizade e pela

    orientao do Prof. Dr. Renato Noguera. Fui apresentado ao Renato pelo Rafael.

    Durante o ano de 2011, integrei o GEFA, Grupo de Estudos de Filosofia Africana, da

    Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Nova Iguau, Baixada Fluminense.

    L, j sob a orientao de Renato, tive a oportunidade de ser apresentado ao pensamento

    de dois filsofos africanos muito importantes para a ecloso dessa pesquisa: Paulin

    Hountondji, da Costa do Marfim, e Dimas Masolo, do Qunia.

    Meu muito obrigado tambm Prof. Dra. Adriany Mendona, pela presena em

    minha banca, pelo acompanhamento de minha pesquisa, pelo incentivo e pelo auxlio

    em minha retomada dos estudos de Nietzsche, contribuindo para a ampliao de minha

    compreenso dos textos mais significativos, a meu ver, para a constituio de sua

    filosofia do trgico.

    No poderia deixar de agradecer tambm ao Prof. Dr. Jos Maria Arruda, pela

    disponibilidade, pelo apoio e pelo interesse em participar de minha banca, tendo me

    sugerido uma indicao crucial para a organizao dessa dissertao, cujo teor

    contribuiu para alm da mera organizao formal do texto, resvalando na prpria

    formao de minha postura crtica diante do racismo epistmico que, parafraseando o

    filsofo Frantz Fanon, da Martinica, determina o nosso conhecimento a operar do ponto

    de vista dos seres humanos de pele clara.

  • Tambm sou grato ao CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento

    Cientfico e Tecnolgico, pela bolsa concedida nesses vinte e quatro meses de pesquisa,

    sem a qual seria impossvel me dedicar aquisio de material bibliogrfico, leitura,

    reflexo e escrita desse trabalho.

    Impossvel deixar de mencionar tambm nesses agradecimentos o nome do Prof.

    Dr. Roberto Machado, a quem sou muito grato pela amizade, pelo exemplo da

    disciplina, da didtica e da lucidez na exposio do pensamento. Roberto foi o primeiro

    na academia a me incentivar, me orientando na busca dos caminhos para a elucidao

    de minhas questes estticas e existenciais.

    Vibro de gratido pelo Il Omiojr! A acolhedora casa das guas dos olhos

    de ssi, situada na Baixada Fluminense, que, nos ltimos meses dessa pesquisa, me

    recebeu de braos abertos, nos abraos generosos de Me Beata de Yemnj, atravs

    das mos zelosas de Adailton Moreira Costa e do corpo, um s corpo, formado pela

    unio de cada um dos membros da famlia, de cada um dos galhos do Iroko.

    Sem palavras para dimensionar o tamanho da gratido pelo meu mestre de

    capoeira angola, Mestre Marrom Capoeira, que, h quinze anos, no cansa de me apoiar

    e de me estimular em minha busca pelo fundamento da jogada perfeita e pelas razes

    desse corpo negro que compreende a mente como algo anlogo pele: o maior rgo do

    corpo humano.

    Agradeo s provocaes, ao carinho, alegria e confiana dos inestimveis

    amigos da minha vida: Hilton Cobra, Gustavo Mello, Valria Mon, Sarito Rodrigues e,

    mais recentemente, Wellington Borges. Gratido efusiva aos irmos, Sergei, Bafifi,

    Flor, Dudu, Cris, Lcio, Julia, Cazu, Tio, Nobru, Ernesto e ao meu querido Uli.

    E, finalmente, sem a cooperao de minha amada e admirvel amante, guerreira,

    aliada e companheira, me e co-formadora da grande Sofia, essa prola de pessoa que

    tambm me traz como herana, sem a parceria da irresistvel Tula Axiotelis, seria

    impossvel realizar esse trabalho. Gratido total, Tu!

  • Resumo.

    SANTOS, Rodrigo de Almeida dos. Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o

    Trgico no Preldio de uma Filosofia da Dispora Africana. Rio de Janeiro, 2014.

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais,

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

    A proposta desse texto fazer uma introduo ao conceito de baraperspectivismo,

    mostrando como sua criao est necessariamente vinculada aos dispositivos do

    pensamento trgico que se engendram, por um lado, com a filosofia de Nietzsche e que,

    por outro lado, brotam a partir da experincia metafsica proporcionada pelo ritual

    trgico yorb, segundo a concepo de Wole Soyinka. De acordo com seu carter

    antagnico em relao ao conhecimento centrado na crena incondicional na

    razoabilidade e no poder epistmico da razo, que fomentou, inclusive, na modernidade,

    a intensificao dos discursos racistas da filosofia e da cincia, que eliminaram do corpo

    do preto suas capacidades de produo epistmica e sua prpria condio humana, o

    baraperspectivismo prope uma denncia do logocentrismo, a partir da constituio de

    um pensamento trgico que leva em conta a experincia sociocultural dos pretos,

    consolidada no contexto da dispora africana. Contra o pressuposto cientfico da

    inferioridade racial dos pretos, o baraperspectivismo impe o pressuposto da arte e do

    instinto de criao que se encontra na base do pensamento metafsico yorb como

    elemento afirmativo e emblemtico da potncia civilizatria africana. Assim, o

    conceito de situao colonial, inventado por Frantz Fanon, que contribuir para

    elucidar o sentido do antagonismo entre colonizador e colonizado, em que o

    baraperspectivismo se insere. Alm disso, e de um modo fundamental, o simbolismo

    do rs s, ou Bara, o rei do corpo, que se encontra preservado no arcabouo dos

    mitos yorb, que fornecer os elementos necessrios constituio dessa filosofia do

    trgico que dever, daqui por diante, contribuir tambm com a crtica do modelo

    civilizatrio racista empregado na formao da sociedade brasileira.

  • Abstract.

    SANTOS, Rodrigo de Almeida dos. Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o

    Trgico no Preldio de uma Filosofia da Dispora Africana. Rio de Janeiro, 2014.

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais,

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

    The purpose of this text is to introduce the concept of baraperspectivism, showing how

    its creation is necessarily linked to the devices of the tragic thought that were

    engendered, on the one hand, with the philosophy of Nietzsche and wich, on the other

    hand, spring from the "metaphysical experience" provided by the "Yoruba tragic ritual,

    according to Wole Soyinka. According to its antagonistic character in relation to

    knowledge centered on unconditional belief in the reasonableness and epistemic power

    of reason, which even fostered, in modernity, the intensification of racist discourses of

    philosophy and science, which eliminated from the black body its capabilities for

    epistemic production and its own human condition, baraperspectivism proposes a

    complaint of logocentrism, from the establishment of a tragic thought that takes into

    account the cultural experience of blacks, consolidated in the context of the African

    diaspora. Against the scientific assumption of racial inferiority of blacks,

    baraperspectivism imposes the assumption of art and of creative instinct, that lies at the

    base of the Yoruba metaphysical thought as the afirmative and emblematic element of

    the African civilizing power. So, is the concept of "colonial situation", invented by

    Frantz Fanon, that will contribute to elucidate the sense of antagonism between

    colonizer and colonized, where baraperspectivism falls . Moreover, in a fundamental

    way, is the symbolism of the rs s, or Bara, the "king of the body", which is

    preserved in the framework of the Yoruba myths, that will provide the necessary

    elements for the establishment of such a tragic philosophy that should henceforth also

    contribute to the critique of the racist civilizing model used in the formation of Brazilian

    society.

  • Sumrio

    Abertura ____________ pg. 8

    Parte I

    Etnofilosofia, moral e conhecimento ____________ pg. 21

    Parte II

    Arte e cultura; corpo e filosofia ____________ pg. 67

    ANEXO

    Manifesto Rei do Corpo ____________ pg. 137

    Referncias bibliogrficas ____________ pg. 142

    Bibliografia complementar ____________ pg. 144

  • 8

    Abertura.

    Utilizo a noo de perspectivismo a partir de Nietzsche. Est relacionada ideia

    do conhecimento que no tem por pretenso enunciar a verdade ltima das coisas, pois

    no cr na verdade absoluta; que no se arvora no princpio da universalidade; que

    enxerga precisamente um fundamento moral nos discursos tradicionais da metafsica no

    ocidente; e que se constri eminentemente como apenas uma interpretao da realidade.

    Da, uma interpretao que parte de um lugar, de um ponto de vista, uma perspectiva.

    Um conceito que traz como sufixo, a meu ver, a noo de "perspectivismo"

    enuncia que a ideia de conhecimento que ele prope no se instaura como um centro ao

    redor do qual gira o mundo, mas, sim, como um olhar que est ao redor da coisa,

    admitindo a complementaridade do maior nmero possvel de ngulos de viso. Pois

    no se trata de desvelar o sentido oculto da realidade, mas de adorn-la com o maior

    nmero possvel de vus. Por isso, perspectivismo. O prefixo bara est relacionado ao

    simbolismo do rs s; um dos nomes pelo qual conhecido esse rs. Da, a

    cosmoviso da cultura yorb, principalmente a que apreendemos atravs de seus mitos,

    utilizada como uma das fontes principais para a elaborao do conceito.

    O baraperspectivismo tambm possui quatro alicerces fundamentais, que se

    dividem em dois grupos; o primeiro se caracteriza como o grupo da cientificidade; o

    segundo, como o grupo do pensamento trgico; pois os pressupostos que se constituem

    como seus alicerces fundamentais se encontram em meio comparao que estabeleo

    entre os discursos sobre a experincia religiosa do culto aos rs, produzidos por dois

    representantes da cientificidade, e os discursos de dois representantes do que chamo de

    interpretao trgica da existncia, que se efetua, eminentemente, a partir de uma

    reflexo sobre a relao entre arte e metafsica. No grupo da cientificidade, reuni o

    trabalho do etnlogo francs, Roger Bastide, e o da etnloga argentina, Juana Elbein

    dos Santos, cuja tese de doutorado, que, no entanto, foi defendida na Sorbonne, o

    texto que utilizo aqui. No grupo do pensamento trgico, reno a filosofia do trgico de

    Friedrich Nietzsche, de acordo, principalmente, com sua exposio no Nascimento da

    tragdia, em Alm do bem e do mal e no Crepsculo dos dolos, e a interpretao sobre

  • 9

    o ritual trgico yorb do pensador nigeriano, Wole Soyinka, que ele desenvolve num

    estudo intitulado, Mito, literatura e o mundo africano.

    Desenvolvo minha reflexo a partir do significado da palavra "bara", de acordo

    com a etimologia fornecida por Juana Elbein dos Santos: bara, em portugus, significa

    rei do corpo; bara = Oba (rei) + ara (corpo) (SANTOS, 2008, p.181). Assim, bara,

    como componente elementar de um conceito filosfico, me parece estar carregado de

    uma potncia absurda para a formulao de um antagonismo hegemonia do lgos, ou

    da razo, que, na histria da filosofia ocidental, implica no alijamento dos sentidos e do

    corpo dos processos de legitimao do conhecimento e da verdade; o que Nietzsche

    caracterizou muito bem em um de seus textos sobre a razo na filosofia, com a

    expresso, fora com o corpo, essa deplorvel ide fixe dos sentidos! acometido de

    todos os erros da lgica, refutado, at mesmo impossvel, embora insolente o bastante

    para portar-se como se fosse real (GD/CI, A razo na filosofia, 1). No pretendo

    analisar sistematicamente o culto aos rs, nem desenvolver nenhuma interpretao

    sobre a religio do candombl, mas utilizar o simbolismo de s, como o rei do corpo,

    na elaborao de uma filosofia do trgico no Brasil, no contexto da dispora africana,

    mais ou menos como o jovem Nietzsche fez com Apolo e Dioniso. Creio no estar

    enquadrando o pensamento africano, afirmando que o pensamento yorb quer dizer

    isso ou aquilo sobre a realidade. De fato, eu me aproprio, sim, eu me aproprio do

    simbolismo dos deuses, para desenvolver uma filosofia do trgico.

    Essa apropriao no significa enquadrar o conceito bara, nem, tampouco,

    desenvolver um sistema filosfico a partir dele, mas dizer que ele tambm pode falar

    dessa maneira, ou seja, como rei do corpo, e fundamentar uma tica, uma esttica, uma

    teoria do conhecimento e uma filosofia da cultura, alternativas s que j foram criadas

    no ocidente; e, ainda, contar, ou melhor, cantar uma histria da filosofia, do seu prprio

    ponto de vista. E precipuamente brasileira, talvez, posto que o bero do conceito a

    prpria experincia da dispora africana. Da, o dilogo, o jogo, a relao, a troca com

    pensadores ocidentais, como Nietzsche, que por si j fizeram a crtica do lgos. No se

    trata de submeter s a Dioniso, portanto, mas, de elaborar o discurso que eles

    poderiam enunciar juntos.

    Privilegio no trabalho de Soyinka sua abordagem esttica da metafsica yorb.

    Pela minha formao de ator e de pessoa do teatro, seria impossvel no estabelecer uma

  • 10

    correspondncia entre arte e filosofia, por isso utilizo com muito cuidado e rigor todos

    os registros sobre a religio dos yorb a que tive acesso. Pretendo desenvolver uma

    filosofia do trgico; da, tambm, a necessidade de partir da arte, considerando a

    interpretao de Wole Soyinka do ritual trgico yorb, que, para ele, no se distingue

    de uma performance teatral; e com Soyinka que examinaremos, ao longo dessa

    dissertao, os principais aspectos da caracterizao de uma perspectiva que afirma o

    corpo e, principalmente, o rei do corpo, como fonte para a produo de conhecimento.

    Assim, o mito aqui no visto apenas como a explicao do rito religioso, mas

    fundamentalmente como obra de arte, como produto dos instintos criativos dominantes

    numa cultura como a yorb. Uma cultura que, no plano do simblico, escreveu com

    sangue a histria dos seus deuses. A experincia cultural yorb, anterior s invases

    europeias, grafa. grafa? Se com essa palavra se quer entender a falta de uma

    tcnica de registro material atravs da escrita, na realidade, o yorb ganhou com

    isso. Com a falta da escrita, a experincia do registro do pensamento yorb se deu num

    plano mais honesto, mais corajoso, espontneo, tolerante e perigoso: o corpo.

    _____________________

    O baraperspectivismo uma dobra do conceito de afrocentricidade, criado pelo

    filsofo estadunidense, Molefi Kete Asante. Assim, o baraperspectivismo, considerado

    como uma ideia afrocntrica, tambm se refere proposta epistemolgica do lugar.

    Comeamos com a viso de que a afrocentricidade um tipo de pensamento, prtica e

    perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenmenos atuando

    sobre sua prpria imagem cultural e de acordo com seus prprios interesses humanos

    (ASANTE, 2009, p.93). Se uma ideia afrocntrica, de acordo com Asante,

    fundamentalmente perspectivista (ASANTE, 2009, p.96); em relao ao

    baraperspectivismo, isso significa que sua formulao possui uma relao fundamental,

    em primeiro lugar, com a experincia de formao da sociedade brasileira e, de um

    modo geral, com a experincia cultural que se produz com a dispora africana. Assim,

    minha prpria formao filosfica se deu em funo dessas experincias e, por isso,

    possui influncias de matrizes europeias, indgenas e africanas.

    Baseado no propsito caracterstico do trabalho de um pesquisador

    afrocentrista, de acordo com Asante, segundo o qual pretende-se encontrar uma pessoa,

    uma ideia ou um conceito africano como sujeito de um texto, de um evento ou de um

  • 11

    fenmeno, o baraperspectivismo procura descobrir no o sujeito de conhecimento

    africano, mas o criador de um conhecimento africano; explorando no simbolismo dos

    rs a dimenso criativa da personalidade africana (ASANTE, 2009, p.97). Porque

    necessrio se impor, no contexto das discusses sobre a experincia sociocultural

    brasileira, carregado com as potencialidades que uma viso trgica de mundo acarreta;

    de um modo semelhante com o qual os africanos devem ser vistos como atores no

    palco planetrio, ou seja, como criadores (ASANTE, 2009, p.103). A viso trgica de

    mundo que pretendo apresentar com o baraperspectivismo se constitui a partir das

    experincias que suscitaram a criao de valores indiscutivelmente africanos, tais como

    os que so buscados nos mitos e na discusso sobre os mitos dos rs.

    Se a afrocentricidade, para Asante, colocada como atitude crtica de toda

    tentativa de estabelecimento da Europa como padro, o baraperspectivismo uma

    atitude que se coloca contra o estabelecimento do lgos como padro (ASANTE, 2009,

    p108). O baraperspectivismo, como uma crtica da razo, , primordialmente, um modo

    de abordar conceitos e fenmenos, que tem no corpo e no instinto de conhecimento o

    ponto de partida de suas abordagens.

    No o medo, nem o dio, mas um amor como o de Fanon, tenso absoluta de

    abertura (FANON, 2011, p.175), que define o projeto moral do baraperspectivismo.

    Por isso, qualquer interlocutor aqui nos agracia com alguma contribuio para o

    fortalecimento terico do conceito, por mais que seja rechaado em suas opinies mais

    reacionrias, retrgradas, imperialistas e cristianistas sobre a vida, conforme a

    culturalidade trgica com a qual nos comportamos de modo semelhante para com

    amigos queridos.

    O baraperspectivismo promove a escrita de um texto espiralar. O pensamento

    arrodeia, ascende e descende, arrodeando, e, destarte, examina o problema em

    questo; ou seja, examina a si prprio. O baraperspectivismo um rebento da situao

    colonial. feliz e infeliz ao mesmo tempo dizer que foi um intelectual negro das

    Antilhas francesas quem forjou essa expresso, que ser examinada a seguir. Porque a

    necessidade de afirmar, e com cada vez mais veemncia, que a realidade gerou

    intelectuais negros arrebenta da disputa desleal que se consolida com a situao

    colonial, mas, ao mesmo tempo, isso marca a potncia da alteridade, da luta e da

    vontade de se impor diante dela. Carne e trabalho forado so os signos impostos,

  • 12

    fora persuasiva da razo, ou fora coercitiva do fuzil, pelo sistema colonial aos povos

    e territrios colonizados.

    _____________________

    Mergulhar no universo dos mitos yorb implica em emergir com um flego

    renovado. No apenas a experincia no terreiro que tem a capacidade de sacudir

    nossas convices mais arraigadas na cultura ocidental, embora seja exatamente l que

    o corpo experimenta a plenitude desse sacudimento que desenraiza as opinies mais

    vetustas, permitindo a ecloso das foras verdadeiramente vivas e ascendentes da

    personalidade humana. E quando uma sacerdotisa do culto aos rs, como Me Beata

    de Yemnj, decide transmitir seu poder atravs da literatura, os filhos da academia,

    como ns, so contemplados com a oportunidade especial de terem acesso a uma

    parcela do modo de aprendizado dos valores ancestrais cultivados no interior da vida do

    terreiro. Me Beata de Yemnj uma referncia incontornvel da produo de saberes

    que tm como fonte e manancial as culturas de matrizes africanas. Sacerdotisa que

    ocupa o topo da hierarquia do culto aos rs no terreiro Il Omiojr, em Nova

    Iguau, Rio de Janeiro, Me Beata uma mulher negra octogenria, que sempre

    contribuiu com a luta pela valorizao das perspectivas negras no processo de formao

    da sociedade brasileira.

    Vocs sabem que s no gosta de ver ningum em paz, nem muito bem e

    feliz. Para a pessoa adquirir tudo isso, tem que fazer um acordo com ele,

    seno nada vai bem. E foi o que aconteceu com um homem que tinha um

    stio junto com seu irmo. Os dois eram muito unidos e muito religiosos. E

    s dizia:

    Agora, vejam! Esses dois negros, sendo das minhas razes, s vo rezar!

    Como pode? Ser que eles acham que os mitos dos nossos ancestrais no vo

    lhes ajudar e no tm fora? Eu vou fazer eles verem, eles vo ter que me

    procurar.

    Os dois irmos, todo dia dezenove de maro, plantavam feijo e milho, pois

    eles diziam que se plantassem nesse dia, que era de So Jos, no dia de So

    Joo eles colhiam. Eles arrumaram a terra, araram tudo e um plantou uma

    caixa de milho e o outro, uma de feijo. O que s fez? Chegou na roa e

    tirou as sementes e trocou tudo. Onde era feijo ele plantou milho e onde era

    milho ele plantou feijo. E ficou esperando nascer. Os irmos s diziam:

    Esse ano vamos ter boa safra. Eu de milho e voc de feijo.

    E s s esperando. L um dia deu uma chuva e os gros cresceram com uma

    fora danada. Onde era feijo saiu milho, onde era milho saiu feijo. Tal no

    foi a surpresa dos dois irmos! Eles a comearam a discutir:

    Olha, voc viu que o feijo ia dar melhor preo, foi l e roubou os meus

    gros que eu j tinha semeado.

  • 13

    O outro disse:

    Que nada, homem. Deixa de maluquice. Como eu poderia fazer isso?

    Arrancar o seu feijo e botar o meu milho?

    E comearam a discutir, saiu pancadaria e tudo. s se acabando de rir. Os

    dois irmos brigaram, dividiram o stio ao meio e no mais se falaram,

    ficando inimigos eternos. s, sem que os irmos desconfiassem da tramia

    dele, chegou de mansinho e disse:

    O que est havendo que vocs tanto brigam?

    Os irmos responderam:

    Para mim ele morreu.

    Para mim voc tambm morreu, ladro.

    s disse:

    Olha, eu vou fazer vocs se unirem e acabarem com esta contenda. Eu sou

    s. Eu quis mostrar para vocs dois que os mitos das suas razes, do pas de

    que vocs chegaram at aqui, tm os mesmos valores que os outros, e talvez

    at mais, pois so milenares. Como vocs acham que os outros, no os da sua

    cultura, podem ter mais fora? De hoje em diante, vocs vo voltar ao que

    eram e a ter tudo.

    Pois assim foi. Eles comearam a ter f nos rs e recomearam uma nova

    vida (BEATA DE YEMNJ, 2002, p.99).

    O que Me Beata relata em sua historia corresponde ao pressuposto de que na

    gnese da cultura brasileira, concorreram elementos discrepantes da matriz europeia,

    cuja potncia para pensar alternativas ao modelo empregado pelo projeto civilizatrio

    eurocentrista deve ser mais explorada. No caso do baraperspectivismo, em seu

    antagonismo ao lgos como postulado europeu de legitimao do conhecimento

    cientfico e filosfico, a oposio se d a partir da experincia da cultura negra que se

    desenvolveu no territrio brasileiro, com razes na matriz africana do povo yorb. No

    entanto, a singularidade que caracteriza a constituio deste conceito que ele emergiu

    de um processo desencadeado por uma reflexo esttica, que veio a se articular com a

    necessidade da elaborao de um sentido para o conceito de cultura brasileira.

    A partir de um questionamento sobre a constituio e o desenvolvimento da arte

    teatral, que me levou ao estudo da interpretao nietzschiana sobre o nascimento da

    tragdia grega, a questo da cultura brasileira, entretanto, em termos de origem,

    caractersticas e significados, foi progressivamente se colocando como um tema de

    fundamental importncia em meu processo de formao esttica. Compreender, por um

    lado, o que era o teatro e, por outro, a formao histrica da sociedade brasileira,

    significava construir uma relao efetiva, viva e dinmica, entre a prtica do ofcio

  • 14

    teatral e a reflexo terica indispensvel compreenso dos processos de criao; entre

    a elaborao esttica e conceitual do espetculo e a vida; entre fico e realidade; iluso

    e verdade; arte e filosofia. E o porqu da arte e o porqu da vida foram questionamentos

    que brotaram na aurora da reflexo que ora se apresenta, quando o que estava em jogo

    era a criao de um modo de fazer teatral, que formulasse uma crtica da viso de

    mundo preconizada, de um modo geral, pelas instituies sociais e polticas da

    sociedade brasileira; como, por exemplo, o caso das instituies de ensino, das igrejas

    e da mdia. Havia uma percepo de que os processos operados por essas instituies,

    no sentido de promover a formao cultural dos indivduos, eram incompletos. Dada a

    diversidade ilimitada da constituio intelectual e afetiva de cada indivduo, dadas as

    diferenas de classe social, orientao poltica, gnero, orientao sexual, raa e etnia,

    havia a sensao de que um modelo de civilizao nico, monocromtico, interpelava a

    coletividade atravs das instituies, ao mesmo tempo em que dificultava a satisfao

    plena das individualidades naquilo que concerne ao seu processo de formao e de

    existncia, naquilo que diz respeito diretamente vida da coletividade. Assim, o papel

    dos meios de comunicao de massa e, principalmente, do cinema e da televiso,

    deveria ser questionado. Por um lado, a ideia das telenovelas como obra de arte e de

    seus atores profissionais como artistas deveria ser contestada, assim como a

    naturalizao das representaes do cinema comercial estadunidense na sociedade

    brasileira. Tanto a telenovela como o cinema simplesmente pareciam reproduzir aquele

    padro civilizatrio nico e, enquanto tais, deveriam ser questionados em seus estatutos

    de obras de arte, por no promoverem alternativas ao modelo empregado nas demais

    instituies, ou seja, nas escolas, nas universidades, no trabalho, nos hospitais, nas

    igrejas e nos presdios. Pelo contrrio, a telenovela e o cinema contriburam para a

    naturalizao dessa viso de mundo junto coletividade.

    O teatro, por sua vez, poderia evocar uma experincia inversa, a da

    desconstruo do olhar e da ao do indivduo no processo de criao artstica. Ao invs

    de reproduzir o modelo de pensamento hegemnico da sociedade, ao invs de funcionar

    como um rgo do aparelho institucional dominante, o teatro poderia desenvolver novas

    formas de olhar e de atuar sobre o mundo, sobre a sociedade e sobre o ser humano. Na

    medida em que foi possvel perceber algo de incompatvel entre a oferta de bens,

    servios, valores, deveres e direitos, por parte das instituies sociais e polticas, de um

    lado, e as demandas sociais, polticas, culturais e afetivas da coletividade, de outro lado;

  • 15

    ento, o teatro deveria exercer a funo de investigar artisticamente o sentido dessa

    incompatibilidade, de formular hipteses, de radicalizar a amplitude dessa lacuna,

    propondo respostas alternativas ao padro das instituies, ao invs de procurar

    preench-la, no sentido de adequar as aspiraes e necessidades das individualidades ao

    modelo dominante na sociedade. Dessa maneira, o teatro, como obra de arte, deveria ser

    formulado como a crtica dos pressupostos polticos e filosficos das instituies

    historicamente constitudas na sociedade brasileira. Alm disso, o papel do teatro na

    criao de valores e perspectivas que pudessem satisfazer as demandas afetivas e

    intelectuais da coletividade deveria ser pensado como uma exigncia atrelada sua

    dimenso crtica, de modo a exercer, junto com essa, uma funo fundamental no

    processo de formao de um conceito de cultura e, particularmente, no processo de

    formao das individualidades. Diferentemente do modelo aplicado nas instituies de

    ensino em geral, que privilegia a formao tcnica e intelectual dos indivduos, o teatro,

    no propriamente como modelo, mas, como exemplo, ou seja, como um modo possvel

    de orientar a organizao de uma experincia de criao que almeja reflexos imediatos

    na formao da coletividade o teatro, desse modo, visa, ao mesmo tempo, formao

    intelectual e afetiva dos indivduos. Tanto a coletividade, no papel de pblico virtual do

    espetculo teatral, quanto o prprio artista se encontram sob a influncia da potncia de

    formao que caracteriza a arte teatral, que lida com afetos e ideias horizontalmente,

    sem estabelecer a mesma hierarquia que se observa na atividade cientfica, na moral

    eclesistica e na cultura de massa.

    A questo da hierarquia pode ser abordada de acordo com esses termos: por que

    determinados valores em uma sociedade so privilegiados em detrimento de outros? Em

    funo de quais princpios se organiza a vida das instituies de ensino, dos hospitais,

    dos presdios e dos meios de comunicao em uma sociedade como a nossa? Qual a

    origem dos pressupostos cientficos que se encontram na base da formulao de nossa

    gramtica, por exemplo? Quais os pressupostos histricos, morais, sociais, polticos e

    teolgicos que determinaram o papel das instncias eclesisticas em nossa sociedade,

    tais como igrejas, associaes, congregaes e conselhos? Por que os meios de

    comunicao recorrem constantemente imagem do homem branco, heterossexual e

    economicamente bem sucedido, como padro de comportamento referencial para uma

    coletividade cuja caracterstica mais expressiva a diversidade em termos de culturas,

    raas e etnias, onde a populao de mulheres excede em seis milhes de indivduos a

  • 16

    populao de homens e onde a populao negra corresponde a mais de 50% da

    totalidade demogrfica, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de

    Domiclio (Pnad), realizada em 2010 e publicada pelo IBGE em 21 de setembro de

    2012?

    Com efeito, as anlises publicadas em 2011 pelo Instituto de Pesquisa

    Econmica Aplicada (Ipea), sobre a diviso do trabalho, a distribuio de renda, nvel

    de escolaridade e habitao, na sociedade brasileira, tambm indicam que as posies

    privilegiadas continuam sendo ocupadas majoritariamente por homens, heterossexuais,

    brancos1. E se a imagem deles constantemente utilizada como modelo de um padro

    que no corresponde s reais condies de vida da maior parte da populao, que

    difundido pelos meios de comunicao de massa, sedutoramente, como objeto do

    desejo, ento a consequncia que se chega a naturalizao dessa viso de mundo que

    estabelece a superioridade do homem branco ao olhar da coletividade, atraindo a

    ateno e o desejo das individualidades na direo desse ideal, mesmo quando extrapola

    no uso das imagens do corpo feminino, frequentemente associado como objeto de posse

    e de desejo sexual, de modo a favorecer a preponderncia de uma ordem patriarcal

    etnocntrica sobre as outras; ao mesmo tempo em que essa tenso experimentada,

    vivenciada, efetivamente, sob a forma das relaes polticas de habitao e

    territorialidade, educao, trabalho e diviso de recursos, que se do no interior da

    coletividade.

    Na vida eclesistica, por exemplo, podemos observar que o fenmeno da

    expanso das igrejas neopentecostais tambm est relacionado a essa ordem que

    privilegia a mesma inclinao tnica que se manifesta hegemonicamente na gerncia

    dos meios de comunicao. E, com efeito, os prprios dirigentes das igrejas

    neopentecostais, alm de ocuparem direta ou indiretamente diversos cargos pblicos em

    todas as instncias do aparelho governamental, so os gestores de grandes empresas de

    telecomunicaes. O proprietrio da Rede Record de Televiso o Bispo Edir Macedo,

    fundador da Igreja Universal do Reino de Deus que, de acordo com o Censo de 2000,

    alcanou a marca de quarta maior corrente religiosa do pas. O missionrio R.R. Soares,

    fundador da Igreja Internacional da Graa de Deus, proprietrio de duas editoras, uma

    gravadora, uma produtora cinematogrfica, uma estao de rdio e de uma emissora de

    1 Cf. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada... [et al.]. Retrato das desigualdades de gnero e raa.

  • 17

    televiso por assinatura. A expanso dos neopentecostais no Brasil foi impulsionada por

    uma estratgia eficaz, cuja raiz se encontra na utilizao dos meios de telecomunicaes

    pelos pastores, bispos e missionrios estadunidenses, como forma de propaganda

    religiosa; o televangelismo a prtica da pregao religiosa, atravs de programas de

    televiso que alcanam um nmero enorme de espectadores. O alcance desses

    programas muitas vezes atinge propores continentais e, por causa do espectro de sua

    influncia sobre a sociedade brasileira, o fenmeno do cristianismo neopentecostal

    precisa ser abordado como exemplo de um dispositivo moral condicionante de uma

    pluralidade de valores em jogo na experincia de formao de nossa cultura. Alm de

    Edir Macedo, ele prprio um televangelista, o pastor Silas Malafaia, lder da

    Assembleia de Deus Vitria em Cristo, e o missionrio R.R. Soares utilizam a televiso

    como meio de pregao religiosa. Malafaia, que presidente de uma editora, apresenta

    o programa Vitria em Cristo, h trinta anos no ar e que atualmente transmitido no

    Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e na frica.

    A correspondncia entre o discurso neopentecostal e a inclinao tnica que se

    manifesta na ordem gerencial dos meios de comunicao de massa se evidencia, por

    exemplo, atravs da anlise dos usos que o sistema neopentecostal faz das religies de

    matrizes africanas. E, aqui, por mais que possamos prescindir de uma anlise acurada de

    todas as representaes que o sistema neopentecostal no Brasil produziu em relao ao

    candombl e umbanda, evidente que existe uma oposio de valores operada por

    esse sistema que desqualifica essa experincia do candombl e da umbanda como

    mentira, falsidade, engano, erro, loucura e derrota. O exemplo mais significativo dessa

    avaliao se encontra no livro de Edir Macedo, dedicado, com um tom evidente de

    ironia, aos pais-de-santo e mes-de-santo do Brasil, porque eles, mais que qualquer

    pessoa, merecem e precisam de um esclarecimento.

    So sacerdotes de cultos como umbanda, quimbanda e candombl, os quais

    esto, na maioria dos casos, bem-intencionados. Podero usar seus dons de

    liderana ou de sacerdcio corretamente, se forem instrudos. Muitos deles

    hoje so obreiros e pastores das nossas igrejas, mas no o seriam, se Deus

    no levantasse algum que lhes dissesse a verdade (MACEDO, 1997, p.5)2.

    As atitudes gerenciais dos meios de comunicao no Brasil, assim como a

    oposio de valores estabelecida pelo aparato neopentecostal, tais como foram indicadas

    acima, representam tendncias complementares do mesmo projeto civilizatrio em vigor

    2 Grifado por mim.

  • 18

    na sociedade brasileira. Enquanto os meios de comunicao e, principalmente, a

    televiso, investem na difuso global de imagens que reproduzem o protagonismo da

    etnia branca, a poltica do sistema eclesistico neopentecostal tende a menosprezar a

    contribuio das etnias africanas e indgenas. O conjunto dos valores, das relaes de

    poder, das configuraes sociais e das polticas de trabalho, educao, comunicao e

    cultura, manifesta estritamente uma filiao europeia, que insiste em se impor contra as

    perspectivas africanas e indgenas na constituio processual da sociedade brasileira.

    Quando essa filiao prevalece ao nvel institucional, ou seja, nas escolas e

    universidades, nas igrejas, nos hospitais, nos presdios, nos meios de comunicao, no

    trabalho e em todas as instncias da administrao da vida pblica, ela acaba

    estabelecendo e naturalizando a centralidade dos valores europeus e a marginalizao

    dos valores africanos e indgenas. o que constitui, alis, o problema da inautencidade

    da cultura brasileira, de acordo com uma afirmao de Oswaldo Giacoia Jnior, que

    procurou pens-lo a partir da interpretao de um texto de Darcy Ribeiro luz da teoria

    da cultura de Nietzsche. Aquilo que identifico como o modelo de um projeto

    civilizatrio vigente, apreendido pela observao do funcionamento da vida

    institucional da sociedade brasileira e pelo estudo das condies que proporcionaram a

    experincia da formao sociocultural do Brasil, foi produzido precisamente pelo

    interesse da classe branca dominante, que, tanto para Giacoia, como para Darcy Ribeiro,

    corresponde causa de nossa inautenticidade.

    No admira, portanto, que um certo carter de inautenticidade e

    estranhamento tenha que ser caracterstico da essncia da cultura brasileira,

    na medida em que teve origem a partir de um empreendimento colonial,

    essencialmente mercantil, baseado na explorao da mo-de-obra escrava,

    cuja principal funo consistia em servir de reservatrio de matrias-primas e

    produtos naturais para o mercado europeu. (...) Em meio a uma populao

    cuja maior parte composta por mestios, a preocupao e o cuidado

    principais da classe branca dominante (pelo menos autodenominada branca)

    consiste em defender e fazer valer esse seu privilgio, afirmando-se como

    etnia branca, no plano racial, e, ao mesmo tempo no registro cultural, como

    representante do eurocentrismo caracterstico da ideologia dominante na

    metrpole (GIACOIA, 2000, p.143).

    E eurocntrico, portanto, o modelo do projeto civilizatrio adotado pelas

    classes dirigentes na sociedade brasileira. Se esse eurocentrismo abordado por Giacoia

    como um dos traos da inautenticidade de nossa cultura, para mim, foi necessrio

    abord-lo tambm a partir de sua dimenso epistmica; como um conceito atrelado

    necessariamente razo, ao lgos, gerando, portanto, a hegemonia do logocentrismo,

  • 19

    que leva tambm ao problema da inautenticidade na produo de conhecimento no

    Brasil.

    Mas, qual o impacto efetivo dessa hegemonia sobre a produo de

    conhecimento em nossa cultura? O que permite caracterizar especificamente um

    conhecimento como eurocntrico e logocntrico? Ser que isso influencia a atividade

    cientfica da mesma forma que determina o etnocentrismo da produo de imagens

    veiculadas pelos meios de comunicao de massa e os valores morais disseminados pelo

    sistema cristo neopentecostal? Essas questes, no entanto, nos levam longe demais,

    muito adiante do momento em que estamos da leitura desse texto. Voltaro a ser

    abordadas mais adiante. que elas nascem do mesmo questionamento que me levou a

    buscar, na adolescncia, um fundamento para a constituio de uma experincia trgica

    no teatro. Se elas irromperam aqui, foi por causa da natureza espiralar do corpo do

    prprio texto.

    Assim, no sentido de elaborar as diretrizes para o desenvolvimento de uma

    potica teatral que forjasse uma denncia do eurocentrismo dominante na vida

    sociocultural brasileira, foi necessrio compreender as relaes entre o desenvolvimento

    histrico da arte teatral e os nossos processos de formao cultural, a partir do

    pressuposto de que na gnese de nossa cultura concorreram elementos discrepantes da

    matriz europeia, cuja potncia para pensar alternativas ao projeto civilizatrio aplicado

    ao caso brasileiro deveria ser explorada. O bero do baraperspectivismo, portanto, se

    encontra nos interstcios de uma reflexo sobre o teatro na cultura brasileira.

    No Brasil, a maneira de pensar o teatro, em geral, sempre esteve condicionada

    histria do mundo ocidental. Apesar das influncias africanas e indgenas no processo

    de formao de nossa cultura, apesar da pesquisa de Abdias do Nascimento sobre o

    desenvolvimento de uma esttica teatral negro-africana, por exemplo, que o levou

    criao do Teatro Experimental do Negro, em 1944, minha ignorncia me levou a

    buscar a experincia das origens do teatro na Grcia antiga. E, assim, entretanto, no

    limiar de uma reflexo esttica sobre a elaborao de um teatro crtico e alternativo, a

    descoberta da interpretao nietzschiana da tragdia grega, atravs da relao entre o

    impulso apolneo e o impulso dionisaco, foi fundamental para o florescimento da

    concepo filosfica do baraperspectivismo. H uma correspondncia entre o

    conhecimento trgico formulado por Nietzsche a partir da concepo do dionisaco e o

  • 20

    baraperspectivismo. Ambos instauram uma ruptura com os paradigmas epistmicos e

    culturais do eurocentrismo. Alm disso, importante salientar que a potncia da

    reflexo esttica do jovem Nietzsche de estimular a composio de uma interpretao da

    arte para alm dos padres eurocntricos j foi identificada pelo dramaturgo nigeriano

    Wole Soyinka, que elogia sua iluminao profunda sobre os impulsos bsicos

    universais (SOYINKA, 1990, p.142).

  • 21

    I Etnofilosofia, moral e conhecimento.

    Defendemos, de uma vez por todas, o seguinte princpio: uma sociedade

    racista ou no . Enquanto no compreendermos essa evidncia, deixaremos

    de lado muitos problemas (Frantz Fanon, Pele negra, mscaras brancas,

    2008, p.85).

    1.

    O termo que, em yorb, significa aquele que precede, que toma a vanguarda,

    que vai frente dos outros (SANTOS, 2008, p.93) asiwaj. Assim, o

    baraperspectivismo pretende se impor tambm como um asiwaj. um conceito que

    procura abrir os caminhos do discurso filosfico da dispora africana, rompendo com os

    valores logocntricos da cientificidade. No um sistema de pensamento. uma obra

    que atravessa o discurso da cincia e o da filosofia ocidental, para revelar uma

    experincia que se constituir como um exemplo da possibilidade de criao de uma

    filosofia a partir das perspectivas do negro no contexto contemporneo da dispora.

    Nesse sentido, o conceito de situao colonial, apreendido com o filsofo e psiquiatra

    martinicano, Frantz Fanon (FANON, 2011, p.452), representa o significado do que

    entendo por contexto contemporneo da dispora, que se configura, em geral, pela

    experincia do colonialismo nos territrios da frica e das Amricas, segundo o qual,

    mister compreender que a sociedade dividida entre colonizados e colonizadores, entre

    dominados e dominadores, e que a dualidade, pretos e brancos, deve ser compreendida

    de acordo com aquelas dicotomias. Para o antroplogo africano, nascido no Congo,

    Kabengele Munanga (MUNANGA, 2009, p.24), o conceito de situao colonial

    expressa uma relao de foras entre vrios atores sociais dentro da colnia, sociedade

    globalizada, dividida em dois campos antagonistas e desiguais: a sociedade colonial e a

    sociedade colonizada. Ao me referir ao contexto contemporneo da dispora em sua

    relao com a modernidade, considero o sculo XIX como o perodo de intensificao

    dos discursos racistas que estabeleceram a hegemonia dos pases colonizadores sobre os

    povos colonizados, ou seja, como o perodo histrico mais significativo para a

    determinao da situao colonial, embora possamos nos reportar ao sculo XVIII para

    mostrar que a a cincia e o racismo j tinham feito sua aliana.

  • 22

    O sculo XIX produziu Lvy-Bruhl e sua concepo da mentalidade primitiva

    que, de acordo com o filsofo da Costa do Marfim, Paulin Hountondji, est na base da

    formao da filosofia africana contempornea. Quando evoco o conceito de

    mentalidade primitiva, criado pelo filsofo e socilogo francs, Lucien Lvy-Bruhl,

    nascido em 1857, para empreg-lo segundo a orientao de Hountondji, que o articula

    com sua concepo do papel da antropologia, que pode ser caracterizada nesses termos:

    diferentes antroplogos em vrias pocas sempre afirmaram (...) a supremacia do

    Ocidente, apresentando-o como o detentor da nica civilizao madura, enquanto as

    outras estariam, na melhor das hipteses, nas fases iniciais de um processo que o

    Ocidente j teria concludo (...) (HOUNTONDJI, 1996, p.163). Como diria o filsofo

    queniano, Dimas Masolo, em seu texto sobre a busca de identidade na filosofia africana,

    Lvy-Bruhl foi, depois de Hegel, talvez, o proponente mais popular da inferioridade da

    mentalidade africana (MASOLO, 1995, p.4). Assim, compreendo por mentalidade

    primitiva, a ideia que fora atribuda por representantes do discurso da cincia, como

    antroplogos, socilogos e etnlogos, e, posteriormente, por filsofos e telogos, ao

    aspecto da racionalidade caracterstico dos povos que habitam os territrios colonizados

    pela Europa, especialmente, o territrio africano. Com efeito, o que Hountondji

    desenvolve com sua crtica aos discursos baseados no modelo definido pela abordagem

    das representaes simblicas produzidas pela mentalidade primitiva uma denncia.

    Os discursos, em geral, que se produzem na frica na primeira metade do sculo XX,

    denominados por seus prprios autores como filosofia, de acordo com Hountondji, so,

    na realidade, discursos que manifestam propriamente uma pretenso filosfica.

    Devido ao fato de esses discursos se constiturem pela interpretao das experincias

    culturais de sociedades tradicionais africanas, Hountondji os classifica como

    etnofilosofia, um neologismo cunhado por ele prprio (HOUNTONDJI, 1996, p.34).

    So interpretaes de carter cientfico, ou filosfico, que buscaram estabelecer

    sistemas de pensamento a partir da anlise da estrutura e dos elementos simblicos

    produzidos pelas sociedades tradicionais africanas. Em relao a esse trabalho, acredito

    que o exame das linhas gerais que caracterizam o debate contemporneo em torno da

    questo da filosofia africana me auxiliar a situar meu prprio ponto de vista e a

    necessidade da criao do baraperspectivismo como preldio de uma filosofia do

    trgico na dispora africana. Alm disso, acredito, principalmente, que o estudo da

    produo de filosofia na frica contribuir como referncia de uma imensa pesquisa

    acerca da possibilidade do desenvolvimento de um pensamento filosfico no Brasil com

  • 23

    base nas matrizes africanas presentes em nossa prpria sociedade, com o objetivo de

    erigir novas perspectivas como alternativa ao logocentrismo, que tem se manifestado

    como padro dominante de se fazer filosofia no Brasil.

    Hountondji entende que o primeiro passo no sentido de se produzir

    conhecimento filosfico com autonomia, diante da verticalidade com que os acadmicos

    africanos tm estabelecido suas discusses com seus parceiros ocidentais, seria talvez

    formular problemticas originais (HOUNTONDJI, 2010, p.140). Da mesma forma,

    avaliar de que modo os valores e vises de mundo tradicionais oriundas da frica

    podem ser trabalhados filosoficamente no Brasil talvez seja um caminho pelo qual

    possamos formular com originalidade nossas prprias questes. Evidentemente, nesse

    sentido, teremos que absorver tambm as experincias dos povos indgenas e a

    contribuio europeia. Entretanto, optei pela perspectiva africana como temtica desse

    trabalho, porque sou negro, de candombl, e procuro elaborar o problema do racismo

    anti-negro na sociedade brasileira. O racismo afeta negativamente a imensa populao

    negra brasileira, estigmatiza as religies, as artes e os saberes, se manifestando, nesse

    caso, como racismo epistmico, conforme a colocao de Renato Noguera

    (NOGUERA, 2011, p.15). Alm disso, o racismo gera na pessoa negra um sentimento

    caracterizado por Frantz Fanon como complexo de inferioridade, produzido pelo

    sepultamento de sua originalidade cultural (FANON, 2008, p.34). Seria o caso de

    formular, ento, o problema do racismo no Brasil como uma questo filosfica original,

    com a qual devssemos nos ocupar? Acredito que sim. E, assim como o problema da

    cincia, para o jovem Nietzsche, no pode ser resolvido no prprio mbito da cincia

    (GT/NT, Tentativa de autocrtica, 2), se pretendo desenvolver uma reflexo

    filosfica a partir de uma perspectiva que contemple a experincia do negro brasileiro,

    para tratar do problema do racismo, porque essa uma questo que no pode ser

    radicalmente discutida sob a tica do europeu.

    2.

    Alm da cincia, o sculo XIX ainda se lanou sobre a frica, munido de outra

    arma poderosa: o cristianismo. Foram os missionrios europeus, ao se instalar em

    diversas partes do continente africano, os primeiros a estabelecer um contato

    supostamente no violento com os grupamentos humanos nativos, com o propsito de

  • 24

    aprender suas lnguas, seus costumes, suas instituies e, principalmente, suas religies,

    para viabilizar sua catequese.

    Um exemplo profundamente significativo da relao entre o projeto

    missionrio europeu para o continente africano e a produo de filosofia africana

    contempornea se encontra no trabalho do padre belga, Placide Tempels. Ele foi

    enviado como missionrio frica, na primeira metade do sculo XX. A partir de sua

    experincia junto aos baluba, grupo tnico-racial pertencente aos povos bantu, habitante

    das regies de Kasai e Katanga, na atual Repblica Democrtica do Congo, ele

    formulou um sistema de pensamento baseado no que ele compreendeu como trs noes

    fundamentais: fora vital, intensificao das foras e influncia vital. Tempels

    acreditava que, por trs de todos os costumes dos baluba, havia uma ontologia da

    interao das foras vitais que, no entanto, ainda permanecia oculta, desconhecida, para

    os prprios africanos. Ele assume, ento, a tarefa de expor sistematicamente esta

    ontologia, ciente das dificuldades que a traduo dos conceitos do pensamento dos

    baluba, numa terminologia ocidental, poderia acarretar.

    Com efeito, seu discurso orientado no sentido de esclarecer os europeus a

    respeito dos pressupostos que, do seu ponto de vista, se encontram na base da cultura

    bantu; um discurso que faz parte de um projeto colonial, reservado para os povos

    primitivos e para as raas primitivas. Neste sentido, seu discurso apresenta um trao

    etnocntrico evidente. Os africanos aparecem apenas como objeto de estudo, como

    portadores de uma filosofia primitiva, que, de acordo com a formulao de Tempels,

    tambm deve ser compreendida como uma viso de mundo coletiva, espontnea e

    informal; isto , como um sistema de saberes tcito, implcito, vigente na tradio oral,

    nos atos e gestos da comunidade, ou seja, margem da escrita e da instituio de

    escolas filosficas, tal como se d, segundo os moldes da tradio ocidental. Tal sistema

    de pensamento denominado por Tempels precisamente como filosofia bantu, em cuja

    formulao ele estabelece uma ontologia, uma psicologia e uma tica. Para que

    possamos compreender os conceitos de etnofilosofia e de filosofia africana, conforme a

    concepo de Hountondji, devemos examinar as anlises de Tempels sobre a sociedade

    tradicional dos baluba, que o levaram a formular seu sistema filosfico. Evidentemente,

    h uma generalizao quando Tempels atribui o resultado de seus estudos sobre o

    comportamento dos baluba totalidade dos povos bantu. Isso pode ser explicado como

    um trao caracterstico da etnofilosofia, que Hountondji definiu como mito da

  • 25

    unanimidade primitiva, que consiste na falsa impresso de que entre os povos

    primitivos, os indivduos sempre concordam uns com os outros (HOUNTONDJI,

    1996, p.60).

    De acordo com seu livro, Filosofia bantu, existe um princpio filosfico central,

    que determina todo o comportamento dos povos bantu. Esse princpio o da fora vital,

    ao qual Tempels atribui a realidade do prprio ser. Para o bantu, segundo Tempels, o ser

    idntico noo de fora. Com efeito, a noo fundamental sob a qual o ser

    concebido repousa na categoria das foras (TEMPELS, 1969, p.49). Assim, vida,

    fora vital e ser so termos correlatos na concepo de Tempels da filosofia bantu;

    isto , ele afirma que a vida o valor supremo para o bantu: esse valor supremo vida,

    fora, viver forte, ou fora vital (TEMPELS, 1969, p.44). Se a fora vital constitui no

    apenas toda a realidade, mas tambm equivale ao valor supremo para o bantu, porque

    ele deve se esforar para aumentar sua prpria fora vital, intensific-la cada vez mais

    como se ela correspondesse exatamente coisa em si, uma vez que ele, enquanto fora

    vital, pode aumentar ou diminuir, dependendo do tipo de influncia externa que possa

    interferir em sua vida. A doena, a tristeza e o cansao: tudo isso representa para o

    bantu a diminuio de sua fora vital, sua diminuio ontolgica como coisa em si. Por

    outro lado, a felicidade suprema para ele possuir o mximo de fora vital. Toda a

    argumentao do padre franciscano se baseia no modelo fornecido pela filosofia

    escolstica e reitera diversas vezes ao longo do texto a disparidade radical em relao

    natureza mental do europeu e a do africano.

    Ns podemos conceber a noo transcendental do ser distinguindo-o de seu

    atributo, Fora, mas os bantu no podem. Fora, em seu pensamento,

    um elemento necessrio do ser, e o conceito de fora inseparvel da

    definio do ser. No h entre os bantu a ideia do ser divorciada da ideia

    de fora. Sem o elemento fora, o ser no pode ser concebido. Ns

    consideramos uma concepo esttica do ser, eles, uma dinmica

    (TEMPELS, 1969, p.50).

    interessante observar que da maneira que Tempels apresenta a noo de ser

    como fora vital para o bantu, fcil ser induzido a afirmar sua semelhana com o se

    dos yorb. Roger Bastide, reproduzindo a opinio de Maupoil, define o se como a

    fora invisvel, a fora mgico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de

    todas as coisas (BASTIDE, 2001, p.77). Para Juana Elbein dos Santos, a fora que

    assegura a existncia dinmica, que permite o acontecer e o devir (SANTOS, 2008,

    p.39). Muniz Sodr estabelece uma correspondncia explcita entre o se e a concepo

  • 26

    elaborada por Tempels, afirmando que os bantu tambm o tm como princpio

    essencial, designado pelo muntu (SODR, 2005, p.97); sendo este um conceito que

    examinaremos em breve3.

    Outro princpio que est na base da filosofia bantu, de acordo com Tempels, o

    da interao das foras, ao qual se combina o da influncia vital. No sistema que ele

    apresenta, todos os seres da existncia esto interligados, relacionando-se uns com os

    outros, sendo que os mais fortes influenciam os menos fortes sob dois aspectos: um

    sensvel, emprico, e corresponde interao das foras, tal como podemos perceb-la

    nos fenmenos qumicos, fsicos e mecnicos, como Hountondji observou com preciso

    (HOUNTONDJI, 1996, p.35); e outro suprassensvel, ontolgico, e corresponde

    interao das foras, tal como se d em relao essncia das coisas, ou seja, s coisas

    em si mesmas, concebidas essencialmente como fora: Na categoria das coisas

    visveis, os bantu distinguem aquilo que percebido pelos sentidos e a coisa em si.

    Por coisa em si, eles indicam essa natureza interior individual, ou, mais precisamente,

    a fora da coisa. (TEMPELS, 1969, p.53). Neste sentido, deve-se compreender este

    princpio de interao das foras a partir da interao entre Deus, o ser supremo, o

    Criador, e suas criaturas.

    O conceito de seres distintos, de substncias (para utilizar novamente o termo

    Escolstico), que se encontram lado a lado, totalmente independentes uns dos

    outros, estranho ao pensamento bantu. Os bantu sustentam que os seres

    criados preservam um vnculo uns com os outros, uma ntima relao

    ontolgica, comparvel com o lao causal que liga criatura e Criador. Para o

    bantu, existe uma interao de ser para ser, isto , de fora para fora. Alm

    da interao mecnica, qumica e psicolgica, eles enxergam uma relao de

    foras, que deveramos chamar de ontolgica (TEMPELS, 1969, p.58).

    Aqui, h uma indicao crucial que nos levar a compreender a relao do

    sistema criado por Tempels com o cristianismo e sua contribuio para o projeto

    civilizatrio europeu, que se refere ideia da ligao entre criaturas e Criador. Com

    efeito, preciso abordar duas noes que se destacam na interpretao de Tempels

    sobre a filosofia bantu, que so complementares, e cuja articulao far com que

    possamos compreender o significado ulterior de seu projeto civilizatrio, que s se

    depreende da anlise e da reviso de sua obra como um todo e, por conseguinte, esta

    compreenso tambm nos auxiliar na abordagem da crtica de Hountondji ao livro de

    Tempels.

    3 Os grifos so meus.

  • 27

    Em primeiro lugar, de acordo com a concepo da hierarquia das foras, o ser

    humano investido de uma posio privilegiada no interior do sistema classificatrio de

    interao das foras vitais. Ele ocupa o centro do sistema, como a fora vital soberana

    sobre a terra, governando tudo o que nela vive: pessoas, animais ou plantas.

    O bantu v no homem a fora vital; a fora ou o ser que possui a vida, que

    verdadeiro, completo e grandioso. O homem a fora suprema, o mais

    poderoso dentre os seres criados. Ele domina as plantas, os animais e os

    minerais. Estes seres inferiores existem, por decreto divino, apenas para a

    assistncia do ser criado superior, o homem (TEMPELS, 1969, p.97).

    De um modo diferente ao de Muniz Sodr, que faz uma relao explcita entre o

    se e o conceito de muntu, me parece que ele corresponde menos noo de fora do

    que de ser humano. A palavra muntu, segundo Tempels, inclui inerentemente a ideia

    de excelncia ou plenitude (TEMPELS, 1969, p.101). O termo existe na lngua kiluba,

    idioma falado pelo povo luba, em que o termo baluba representa precisamente sua

    designao plural. De acordo com Tempels, entretanto, seria incorreto traduzir muntu

    como homem, apesar do fato de que o muntu possui a fora do conhecimento4.

    Propriamente, muntu, tal como empregado pelos baluba, tem o significado de

    pessoa. Tempels, por sua vez, o define como fora vital dotada de inteligncia e

    vontade (TEMPELS, 1969, p.55). A meu ver, portanto, no contexto do livro de

    Tempels, o muntu deve ser considerado como fora vital personificada, embora muitas

    vezes ele empregue o termo homem para explicar as funes exercidas pelo muntu no

    interior do sistema de interao das foras vitais.

    Intensificar-se, fortalecer-se, potencializar-se: o vir-a-ser muntu, ou seja, a

    dinmica das influncias vitais que levam algum a se tornar, ele mesmo, uma fora

    ativa propagadora da vida, segundo a interpretao de Tempels, um processo que

    ocorre de acordo com leis metafsicas, universais, imutveis e estveis, assim como o

    processo contrrio, isto , o de enfraquecimento, declnio e aniquilao do muntu. So

    essas leis que Tempels designa como Leis Gerais da Causalidade Vital (TEMPELS,

    1969, p. 66). So essas leis que regulam, em geral, a interao entre os seres; e Tempels

    estabelece trs definies:

    I. Um homem pode fortalecer ou enfraquecer outro homem diretamente,

    atuando sobre sua essncia;

    4 Com efeito, Tempels afirma que os baluba consideram a sabedoria e o conhecimento como foras vitais

    (TEMPELS, 1969, p.99).

  • 28

    II. A fora vital humana pode influenciar em si mesmos outros seres-foras

    inferiores;

    III. Um ser racional pode agir indiretamente sobre outro ser racional pela

    comunicao de sua influncia vital a uma fora inferior, atravs da qual

    influencia o ser racional.

    A meu ver, em contiguidade a essa teoria que descreve a supremacia do muntu,

    cujo pressuposto fundamental a ideia da intensificao da fora vital, ou seja, do

    crescimento ontolgico, a doutrina do cristianismo, tal como se d na abordagem do

    livro de Tempels, que se destaca em sua interpretao. Com efeito, em Filosofia bantu,

    Tempels s menciona o cristianismo nas ltimas pginas do livro; porm, lhe atribui

    uma funo bem especfica no contexto de sua misso civilizatria em relao ao

    conhecimento dos pressupostos da filosofia bantu.

    O ttulo do ltimo captulo do livro Filosofia bantu e nossa misso

    civilizatria. Este captulo condensa toda a energia do esforo do padre belga

    empregada na anlise da experincia cultural da vida dos baluba. Constatamos, assim,

    que o problema central que se coloca a Tempels o da evoluo da raa negra

    (TEMPELS, 1969, p.182). Embora ele procure restituir a condio humana e a

    racionalidade dos africanos, reproduzindo um sistema de pensamento supostamente

    implcito nas concepes de mundo dos baluba, ele sustenta, durante toda a

    argumentao, a hierarquia que estabelece uma distino bsica entre brancos e negros,

    europeus e africanos, civilizados e primitivos. Ora, se vejo a necessidade de enfatizar o

    aspecto da supremacia do muntu, de acordo com a perspectiva de Tempels, para que

    possamos compreender o sentido de seu projeto civilizatrio, porque a concepo da

    hierarquia das foras determina o tipo de relao que ele estabelece entre os europeus,

    colonizadores, e os africanos, colonizados.

    Ns carregamos o peso da responsabilidade de examinar, de avaliar e de

    julgar esta filosofia primitiva, e de no fracassar na descoberta daquele

    ncleo de verdade, que deve necessariamente ser encontrado em um sistema

    to completo e to universal, que constitui o bem comum de uma massa

    imponente de povos primitivos ou semi-primitivos (TEMPELS, 1969, p.174).

    Ouso afirmar que, muito mais do que responsabilidade, h uma culpa instalada

    no discurso de Tempels, paternalismo, arrependimento e compaixo, mesclados com

    uma lgica perversa que busca garantir a estabilidade da situao colonial. S existe

    filosofia bantu em funo de uma misso civilizatria. Sou obrigado a concordar com

  • 29

    Fanon, quando ele diz que a filosofia nunca salvou ningum; fao de suas palavras as

    minhas, pois, se em nome da inteligncia e da filosofia que se proclama a igualdade

    dos homens, tambm em seu nome que muitas vezes se decide seu extermnio

    (FANON, 2008, p.43). Por outro lado, Tempels acredita que a opinio do bantu sobre o

    europeu s poderia ser enunciada, levando-se em considerao a estrutura psicolgica

    que se assenta sobre as noes de fora vital, intensificao das foras vitais e interao

    das foras. Isso significa que ele sustenta a crena de que, para o bantu, o europeu

    tambm um muntu, uma fora vital personificada, integrada na dinmica da interao

    das foras, e, por conseguinte, participando da hierarquia das foras vitais, como fora

    causal de vida. ao que sou levado necessariamente a deduzir a partir dessa

    observao:

    Os bantu nos consideram ns, os brancos desde o nosso primeiro contato,

    de acordo com o nico ponto de vista possvel para eles, o de sua filosofia

    bantu. Eles nos incluram em sua hierarquia das foras, em um nvel elevado.

    Eles acreditam que devemos ser foras poderosas. No parece que

    controlamos foras naturais que jamais foram controladas? Para eles, esta

    prova foi conclusiva. A aspirao natural da alma bantu, portanto, foi poder

    se apropriar de alguma parte em nossa fora vital (TEMPELS, 1969, p.178).

    Contra esse ideal da aspirao natural da alma bantu, estabeleo uma

    comparao com a concepo da inveja do colonizado, formulada por Fanon como um

    sonho de apropriao: uma apropriao que se efetue de todos os modos; sentando-se

    mesa do colonizador, deitando-se em sua cama e com sua mulher, se possvel; pois,

    no h um colonizado que no sonhe, pelo menos uma vez por dia, em se instalar no

    lugar do colonizador (FANON, 2011, p.454)5. Com efeito, a psicologia de Fanon

    contribui para uma reverso real da situao colonial, enquanto a artificialidade da

    filosofia bantu de Tempels procura colaborar com a preservao real dessa situao. Sua

    estratgia se passa justamente por apreender a estrutura dos mecanismos de pensamento

    bantu; mas, no vai alm da tentativa de adaptar os contedos e a estrutura do

    pensamento cristo realidade dos baluba. Na verdade, ele reformulou algumas noes

    do pensamento baluba, que julgou fundamentais, a partir de seu prprio modo de

    pensar, de tal maneira que ele pde reproduzir, com isso, a pertinncia de suas prprias

    concluses.

    5 Cf. Frantz Fanon, Os condenados da terra: Esse mundo compartimentado, esse mundo partido em dois

    habitado por duas espcies diferentes. A originalidade do contexto colonial, que as realidades

    econmicas, as desigualdades, a enorme diferena dos modos de vida no conseguem mascarar as

    realidades humanas (FANON, 2011, p.454).

  • 30

    O que a grande maioria dos bantu espera de ns, e que aceitaro com intensa

    alegria, com profunda gratido, a nossa sabedoria, nossos meios de

    aumentar a fora vital. Por outro lado, se desejamos levar alguma coisa aos

    bantu e se desejamos que eles aceitem nossos benefcios, vamos oferecer-lhes

    como formas assimilveis pelo pensamento bantu, vamos presentear-lhes

    com modos de crescimento e de fortalecimento de seu ser, de sua fora vital,

    e no com modos de aniquilao do esprito bantu (TEMPELS, 1969, p. 179).

    Considerando essa dinmica de fortalecimento e de aniquilao do esprito

    bantu, Tempels estabelece uma distino entre dois modelos de civilizao. O primeiro

    objeto de uma crtica, pelo fato de se revelar impotente na educao dos bantu e,

    portanto, como empecilho ao processo de desenvolvimento do que ele acredita ser uma

    civilizao bantu. Esse modelo, de acordo com Tempels, baseado na filosofia da

    riqueza e prescreve o advento de uma civilizao econmica. A implantao deste

    modelo entre os bantu se reflete no comportamento dos indivduos mais jovens, os mais

    avanados, denominados por Tempels como os evoludos. Com efeito, a crtica de

    Tempels sobre os evoludos se arvora na opinio dos baluba mais antigos, segundo a

    qual o dinheiro lupeto, em kiluba se tornou o valor supremo para os mais jovens.

    Alm disso, nessa perspectiva, civilizao significa principalmente melhoria das

    condies materiais de vida. Enquanto o progresso dessas condies no for

    acompanhado pelo progresso do ser humano, de acordo com a anlise de Tempels,

    jamais haver um pleno desenvolvimento de uma civilizao bantu.

    O segundo modelo de civilizao, que merece o elogio do autor, est justamente

    relacionado ao progresso da personalidade humana. Na opinio de Tempels, no

    exatamente o avano econmico, nem a melhoria das condies materiais de existncia

    que interessam ao bantu diante dessa relao que se estabelece com os europeus, no

    contexto da situao colonial. Ele acredita que o desejo mais forte que anima os

    africanos, e, principalmente, muitos dos evoludos, o desejo de serem reconhecidos

    como seres humanos pelos brancos.

    O que eles querem mais do que qualquer coisa, no a melhoria de suas

    condies econmicas e materiais, mas o reconhecimento e o respeito pelo

    seu pleno valor como homens pelos brancos. Sua maior e mais profunda

    tristeza a de que eles so continuamente tratados como imbecis, como

    macacos (TEMPELS, 1969, p.178).

    Uma leitura ingnua do texto de Tempels certamente passar ao largo daquilo

    que, de acordo com Fanon, uma evidncia cabal, expressa como epgrafe deste

    captulo: o racismo da sociedade (FANON, 2008, p.85). Tanto a tristeza do evoludo,

    que no passa de um indivduo assimilado pela cultura do colonizador, como o

  • 31

    sentimento confuso de Tempels, mesclado de compaixo, culpa e perversidade, para

    mim, so casos de miopia. No caso do assimilado, a dificuldade em enxergar o racismo

    da sociedade no contexto da situao colonial o impede de superar sua condio de

    infeliz. No caso de Tempels, se h realmente essa dificuldade, ela simplesmente o

    impele a reproduzir sua estrutura racista; e a superioridade europeia sobre a

    inferiorizao do africano. A inferiorizao o correlato nativo da superiorizao

    europeia. Precisamos ter a coragem de dizer: o racista que cria o inferiorizado

    (FANON, 2008, p.90).

    Do ponto de vista de Tempels, se a ontologia das foras vitais a razo de ser de

    todas as instituies, organizaes polticas e sociais da vida dos bantu, ento o xito da

    misso civilizatria europeia vai depender de uma estratgia de investimento em seu

    pensamento ontolgico. Assim, o cerne da questo civilizatria deve ser o

    fortalecimento ontolgico do muntu. Sem o conhecimento dessa ontologia, isto , a

    partir de uma perspectiva estritamente tcnica, industrial e mercadolgica, o processo

    civilizatrio que se pretende aplicar sobre os bantu estaria arruinado; esse conhecimento

    deve ser um complemento necessrio.

    Os bantu podem ser educados, se tomarmos como ponto de partida sua

    aspirao imperecvel ao fortalecimento da vida. Se no, eles no sero

    civilizados. As massas afundaro, em nmeros cada vez maiores, em falsas

    aplicaes de sua filosofia; ou seja, em prticas de magia degradantes; e,

    enquanto isso, os outros, os evoludos, formaro uma classe de pseudo-

    europeus, sem princpios, carter, propsito ou sentido (TEMPELS, 1969,

    p.184).

    Veremos a seguir com o baraperspectivismo, que ser precisamente uma

    experincia semelhante a essas prticas de magia degradantes, expresso que, alis,

    denota a mesma opinio de Kant sobre a experincia metafsica dos africanos, como

    tambm examinaremos a seguir; ento, uma experincia semelhante a essa magia

    degradante refletida, por sua vez, no simbolismo dos rs, que ser discutida pelo

    baraperspectivismo, sob o impulso do interesse em delinear as caractersticas mais

    significativas para a formulao de nossa filosofia do trgico. E um dado interessante

    desse trabalho que ele faz uma abordagem direta da cultura tradicional yorb, pela

    anlise de sua mitologia, e uma abordagem indireta da cultura tradicional bantu, sob a

    tica do sistema de Tempels sobre a sociedade tradicional dos baluba. Ora, as grandes

    influncias africanas na formao da sociedade e da cultura brasileiras so oriundas dos

    povos bantu e yorb. Diante da influncia do cristianismo no Brasil, e agora que

  • 32

    examinamos a importncia atribuda por Tempels doutrina crist em contraste com o

    que ele chama de prticas degradantes, mas que, na realidade, esto vinculadas a um

    saber que at agora a filosofia no Brasil no contemplou devidamente, a sugesto de um

    modelo pedaggico e civilizatrio baseado nas ideias de Tempels seria perniciosa.

    Para ele, a doutrina crist possui uma funo civilizatria precpua. O

    cristianismo o modelo sugerido por Tempels para atender a vontade de intensificao

    das foras da alma bantu. Ele acredita que o cristianismo um sistema de pensamento

    ocidental alternativo em relao ao modelo baseado na tcnica, na indstria e no

    mercado, que, paralelamente ao pensamento bantu, tambm valoriza o fortalecimento da

    vida. O que a doutrina crist da graa ensina, baseada na certeza da revelao, o

    crescimento interno e intrnseco do ser, o fortalecimento ontolgico. Por isso, seria o

    nico modo de proporcionar o alvio e a satisfao do esprito bantu. E isso o que foi

    afirmado de forma categrica:

    No seno no cristianismo que os bantu encontraro alvio para sua

    nostalgia secular e a plena satisfao de suas aspiraes mais profundas, que

    sem o dom gratuito de Deus, deveriam ficar para sempre insatisfeitas. E isso

    o que me foi repetido por tantos bantu pagos (TEMPELS, 1969, p.186).

    O equvoco de Tempels chega a ser monstruoso e ridculo. A proposta de

    empregar o cristianismo como a base da formao de um povo colonizado no elimina o

    sentimento de tristeza gerado nos indivduos. Se o sentimento de inferioridade nasce do

    sepultamento da originalidade cultural, como vimos acima, de acordo com Fanon, ele se

    intensifica com uma formao determinada pela doutrina crist. O cristianismo no se

    contenta em sepultar, ele tem que ser a cruz na vida e na morte das pessoas. O projeto

    da misso civilizatria apresentado por Tempels representa, num certo sentido, aquela

    inverso de valores que Nietzsche formulou nos termos da oposio, Roma contra

    Judeia; Judeia contra Roma (GM/GM, I, 16). Mesmo sem adentrar no problema da

    originalidade e da autenticidade das culturas africanas, estou convicto de que em meio

    s suas representaes, como entre os bantu e os yorb, tal como veremos em seguida,

    encontram-se subsdios e valores incontestveis para a criao de saberes mais honestos

    com a vida, mais corajosos e mais alegres, aptos a constiturem-se como alternativas

    superao da tristeza e da alienao promovidas pela situao colonial. O que Tempels

    no enxerga que o sculo XIX, ao redefinir os paradigmas da cincia, promovendo o

    avano da tcnica, da indstria e do mercado, tambm promoveu o imperialismo

    europeu na frica e nas Amricas, lanando-se contra seus povos com as garras do

  • 33

    cristianismo. Uma coisa atrelada outra. Esse modelo civilizatrio nunca esteve em

    condies de fortalecer realmente um indivduo ou uma cultura, basta examinar o que o

    jovem Nietzsche formulou a alguns quilmetros de distncia e h cerca de setenta anos

    antes da publicao de Filosofia bantu, quando publicou sua IV Considerao

    extempornea, Wagner em Bayreuth, fazendo uma reflexo sobre a sociedade, o

    trabalho e a arte na modernidade:

    Assim como essa sociedade soube, atravs do uso mais cruel e mais hbil de

    seu poder, tornar o mais despossudo, o povo, sempre mais dcil, humilde e

    estranho a si prprio, e soube criar, a partir dele, o moderno trabalhador,

    ela tambm soube subtrair do povo o mais grandioso e o mais puro, o que

    este produz a partir de uma necessidade profunda e que comunica, como

    verdadeiro e nico artista, generosamente de sua alma seu mito, seu canto,

    sua dana, suas criaes de linguagem , para destilar de tudo isso um

    remdio voluptuoso contra o esgotamento e o tdio de sua existncia: a arte

    moderna (WB/WB, 8).

    O que a crtica do jovem Nietzsche aborda como aquilo que foi subtrado pelo

    trabalho na modernidade, ou seja, aquilo que tem o poder de exprimir a grandiosidade

    de uma cultura atravs de seus mitos, dos corpos de seus indivduos e de suas criaes

    de linguagem, corresponde a uma potncia anloga mesma fora subtrada aos corpos

    de africanos e africanas na situao colonial; algo que, de certa forma, tambm equivale

    fora propulsora da alma de um grande artista, como diria Burckhardt

    (BURCKARDT, 1943, 275); e que semelhante ao elemento trgico de uma cultura; ao

    seu aspecto afirmativo; esse, sim, ao contrrio do que defendeu Tempels como ideal da

    alma bantu, um sentimento de plenitude de todas as foras, sua potncia de

    transformao do caos em um ideal esttico; pois, de acordo com Nietzsche, idealizar

    no consiste, como ordinariamente se cr, em subtrair ou descontar o pequeno, o

    secundrio. Decisivo , isto sim, ressaltar enormemente os traos principais, de modo

    que os outros desapaream (GD/CI, Incurses de um extemporneo, 8). Assim,

    decisivo numa interpretao que procura ressaltar os principais traos da cultura

    tradicional de um povo colonizado no contexto da situao colonial, ter a certeza de

    que tipo de ideal se quer construir. Tempels acertou em ressaltar o fenmeno das foras

    vitais, mas errou em subordin-las ao cristianismo. Principalmente porque, com isso,

    no percebeu que as desligava de um fundamento irresistvel; contra o qual, no fundo,

    no se pode lutar o corpo.

  • 34

    3.

    Com a elaborao de seu sistema filosfico sobre os baluba, Tempels tambm

    est determinado a cumprir mais um objetivo. No se trata somente de fornecer as bases

    de uma misso civilizatria, nem de adequar os valores baluba ao pensamento cristo.

    Devemos considerar como um terceiro elemento na elaborao de Filosofia bantu, seu

    esforo em elevar a alma do africano perante o leitor europeu, o colonizador de boa

    vontade, a quem o livro foi endereado.

    Trata-se de restituir a racionalidade negada ao negro que, depois de Kant e de

    Hegel, passando por Carl Gustav Carus e Gobinaeu, at Lucien Lvy-Bruhl, havia se

    tornado privilgio dos brancos da Europa6. Entretanto, parece que at o sculo XX a

    racionalidade permaneceu enclausurada na escurido da alma primitiva do negro, j

    que necessitou do auxlio de um Tempels para ganhar uma expresso digna de sua

    soberania perante o mundo ocidental. Na verdade, toda a argumentao do missionrio

    belga, ao se esforar para demonstrar a lgica que permeia a linguagem, a organizao

    social e as instituies na vida dos baluba, pretende contribuir para a compreenso, por

    parte dos colonizadores, das necessidades do homem primitivo, ou seja, dos mais

    profundos anseios, desejos e aspiraes da alma bantu. Com isso, sua misso

    civilizatria ficaria completa.

    Com efeito, Filosofia bantu se enquadra no conjunto dos discursos com

    pretenso filosfica, definidos por Hountondji como etnofilosofia. O trabalho de

    Tempels exemplar e expe de um modo to completo as caractersticas que permitem

    classific-lo como etnofilosofia que, antes mesmo de examinarmos o argumento do

    prprio Hountondji, permito-me a afirmao de que o projeto da etnofilosofia para a

    frica e para os povos pretos em geral messinico. Porque, na tentativa de reabilitar a

    condio humana e a racionalidade desses povos, ele implica, em primeiro lugar, em sua

    salvao; e, em segundo lugar, de um modo mais fundamental, implica na prpria

    salvao do mundo ocidental.

    Conforme examinamos, Tempels acredita que o cristianismo seria o nico

    sistema de pensamento ocidental capaz de corresponder s necessidades mais bsicas da

    alma bantu, devido a uma homologia de princpios, que ele identifica na doutrina

    crist e na base da filosofia bantu. Tanto no cristianismo, quanto na filosofia bantu das

    6 Veremos adiante as respectivas colocaes de Kant e de Hegel a respeito do negro.

  • 35

    foras vitais, ele aponta para o princpio de intensificao das foras, atribuindo-lhe a

    causalidade de uma peculiar operao civilizatria: a passagem de uma perspectiva pag

    das foras vitais, para uma perspectiva propriamente sagrada porque espiritualizada,

    eclesistica. Dito de outro modo, a compreenso desta noo de intensificao das

    foras vitais, ou de fortalecimento da vida, tal como ela aparece na formulao de

    Tempels sobre a filosofia bantu, permitiria ao colonizador efetuar a catequese e o

    domnio daquela populao, suplementao necessria ao xito do projeto civilizatrio

    europeu. Com efeito, existe uma continuidade entre dominao poltica e econmica

    um dos aspectos de sua misso civilizatria, tal como devemos compreender, segundo o

    livro de Tempels, e dominao moral outro aspecto que caracteriza essa misso; como

    podemos deduzir da seguinte afirmao:

    Uma das melhores coisas que os europeus trouxeram para os africanos foi seu

    ensinamento e o exemplo em matria de produo. A industrializao,

    entretanto, a introduo de uma economia europeia, o aumento permanente

    da produo tudo isso no necessariamente medida de civilizao. Ao

    contrrio, isso pode levar destruio da civilizao, se no houver uma

    devida considerao do homem, da personalidade humana. (TEMPELS,

    1969, p.172).

    Evidentemente, o aspecto poltico e econmico e o aspecto moral so apenas

    duas faces do mesmo problema. No contexto da situao colonial, na vida da

    escravido, do trabalho, da guerra, da poltica e da cultura, na realidade, esses aspectos

    se encontram em amlgama. Porm, constituem-se como dois polos bem definidos por

    Tempels, devido sua necessidade de contrapor o modelo civilizatrio cristo, com o

    qual ele privilegia a formao da personalidade humana, ao modelo baseado no

    incremento dos meios de produo, que privilegia a tcnica e a indstria. Mas, do ponto

    de vista dos prprios povos africanos e, por extenso, a partir do baraperspectivismo,

    so dois modelos que se complementam. Por um lado, Tempels supe uma

    descontinuidade entre ambos; por outro, so vistos como dois modelos que colaboram

    com a manuteno da ordem na situao colonial, no eliminam a condio de

    indigncia dos povos pretos e impedem e diluem intensivamente a possibilidade de

    qualquer modo de expresso de um pensamento negro independente dos valores

    projetados pelos modelos europeus de pensamento. Se que o fenmeno da

    racionalidade consiste efetivamente numa ddiva de todos os seres humanos, ento,

    depois que o negro foi embrutecido, animalizado e usurpado desse dom pelos discursos

    cientficos e filosficos na modernidade, a razo algo que no precisa nos ser

    restitudo. Pois, tal como j observamos com Fanon, foi em nome da razo que se

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    decidiu, e que ainda se decide, o extermnio da humanidade. A contribuio de Kant

    para o desenvolvimento da cincia e da filosofia algo que marcou para sempre a

    histria do pensamento mundial, assim como seu juzo de valor sobre os povos

    africanos:

    Os negros da frica no possuem, por natureza, nenhum sentimento que se

    eleve acima do ridculo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um

    nico exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre

    os milhes de pretos que foram deportados de seus pases, no obstante

    muitos deles terem sido postos em liberdade, no se encontrou um nico

    sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na cincia, ou em qualquer

    outra aptido; j entre brancos, constantemente arrojam-se aqueles que,

    sados da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestgio, por fora de

    dons excelentes. To essencial a diferena entre essas duas raas humanas,

    que parece ser to grande em relao s capacidades mentais quanto

    diferena de cores. A religio do fetiche, to difundida entre eles, talvez seja

    uma espcie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridculo quanto parece

    possvel natureza humana. A pluma de um pssaro, o chifre de uma vaca,

    uma concha, ou qualquer outra coisa ordinria, to logo seja consagrada por

    algumas palavras, tornam-se objeto de adorao e invocao nos esconjuros.

    Os negros so muito vaidosos, mas sua prpria maneira, e to

    matraqueadores, que se deve dispers-los a pauladas (KANT, GSE: AA 02:

    102).

    Dignos de nada alm da irriso e da violncia que suspeita mais apropriada

    no deveramos lanar sobre a universalidade do imperativo categrico? Com efeito, o

    que se tornou universal foi o discurso da diferena antropolgica e epistmica entre

    negros e brancos, ou, como diria Kabengele Munanga, essas diferenas se tornaram

    definitivas, absolutas (MUNANGA, 2009, p.33). Num texto sobre o imperativo

    categrico, Giacoia, reproduzindo Kant, informa que o nico fim que no meio para

    nenhum outro o prprio ser r