santos, rodrigo de almeida dos. baraperspectivismo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
RODRIGO DE ALMEIDA DOS SANTOS
Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o Trgico no Preldio de uma
Filosofia da Dispora Africana
RIO DE JANEIRO
2014
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Rodrigo de Almeida dos Santos
Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o Trgico no Preldio de uma
Filosofia da Dispora Africana
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em
Filosofia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessrios obteno do ttulo de
Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo PPGF-UFRJ
Co-orientador: Prof. Dr. Renato Nogueira dos Santos Junior UFRRJ
Rio de Janeiro
2014
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CIP - Catalogao na Publicao
Elaborado pelo Sistema de Gerao Automtica da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Santos, Rodrigo de Almeida dos
S237b Baraperspectivismo contra logocentrismo ou o
trgico no preldio de uma filosofia da dispora africana / Rodrigo
de Almeida dos Santos. -- Rio de Janeiro, 2014.
147 f.
Orientador: Rafael Haddock-Lobo.
Coorientador: Renato Nogueira dos Santos
Junior.
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias
Sociais, Programa de Ps-Graduao em Filosofia, 2014.
1. Filosofia da cultura. 2. Filosofia
africana. 3. Filosofia do trgico. 4. s. 5.
Racionalidade. I. Haddock-Lobo, Rafael, orient.
II. Santos Junior, Renato Nogueira dos, coorient. III. Ttulo.
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Rodrigo de Almeida dos Santos
Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o Trgico no Preldio de uma
Filosofia da Dispora Africana
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em
Filosofia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessrios obteno do ttulo de
Mestre em Filosofia.
Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo - PPGF-UFRJ (Orientador)
Prof. Dr. Renato Nogueira dos Santos Junior - UFRRJ
(Co-orientador)
Profa. Dra. Adriany Ferreira de Mendona - PPGF-UFRJ
Jos
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Com muita alegria por todo o corpo, atravs
do baraperspectivismo, do teatro e da poesia,
do sacerdcio no culto aos rs e do cultivo
da capoeira angola, procurarei restituir,
mantendo-o vivo, todo o se que me foi
outorgado por Oya, sun e ssi.
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Agradecimentos.
Sou profundamente grato ao meu orientador e colega, Prof. Dr. Rafael Haddock
Lobo, pela generosidade em me acolher e acolher meu projeto no Programa de Ps-
Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; pelo estmulo
minha pesquisa e pela valorizao de minha questo, indicando que o caminho de minha
abordagem e a forma de sua apresentao deveriam se manifestar como algo diferente,
como algo que sugerisse um trao de novidade em relao ao modelo de produo
textual empregado usualmente na academia. Minha gratido a Rafael tambm se deve
ao curso ministrado sobre a Gramatologia, de Derrida, ocasio em que tive a
oportunidade de entrar em contato com a analogia entre logocentrismo e etnocentrismo,
apresentada como um fator fundamentalmente determinante da metafsica no ocidente.
Sem o menor laivo de exagero, tambm regozijo de gratido pela amizade e pela
orientao do Prof. Dr. Renato Noguera. Fui apresentado ao Renato pelo Rafael.
Durante o ano de 2011, integrei o GEFA, Grupo de Estudos de Filosofia Africana, da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Nova Iguau, Baixada Fluminense.
L, j sob a orientao de Renato, tive a oportunidade de ser apresentado ao pensamento
de dois filsofos africanos muito importantes para a ecloso dessa pesquisa: Paulin
Hountondji, da Costa do Marfim, e Dimas Masolo, do Qunia.
Meu muito obrigado tambm Prof. Dra. Adriany Mendona, pela presena em
minha banca, pelo acompanhamento de minha pesquisa, pelo incentivo e pelo auxlio
em minha retomada dos estudos de Nietzsche, contribuindo para a ampliao de minha
compreenso dos textos mais significativos, a meu ver, para a constituio de sua
filosofia do trgico.
No poderia deixar de agradecer tambm ao Prof. Dr. Jos Maria Arruda, pela
disponibilidade, pelo apoio e pelo interesse em participar de minha banca, tendo me
sugerido uma indicao crucial para a organizao dessa dissertao, cujo teor
contribuiu para alm da mera organizao formal do texto, resvalando na prpria
formao de minha postura crtica diante do racismo epistmico que, parafraseando o
filsofo Frantz Fanon, da Martinica, determina o nosso conhecimento a operar do ponto
de vista dos seres humanos de pele clara.
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Tambm sou grato ao CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico, pela bolsa concedida nesses vinte e quatro meses de pesquisa,
sem a qual seria impossvel me dedicar aquisio de material bibliogrfico, leitura,
reflexo e escrita desse trabalho.
Impossvel deixar de mencionar tambm nesses agradecimentos o nome do Prof.
Dr. Roberto Machado, a quem sou muito grato pela amizade, pelo exemplo da
disciplina, da didtica e da lucidez na exposio do pensamento. Roberto foi o primeiro
na academia a me incentivar, me orientando na busca dos caminhos para a elucidao
de minhas questes estticas e existenciais.
Vibro de gratido pelo Il Omiojr! A acolhedora casa das guas dos olhos
de ssi, situada na Baixada Fluminense, que, nos ltimos meses dessa pesquisa, me
recebeu de braos abertos, nos abraos generosos de Me Beata de Yemnj, atravs
das mos zelosas de Adailton Moreira Costa e do corpo, um s corpo, formado pela
unio de cada um dos membros da famlia, de cada um dos galhos do Iroko.
Sem palavras para dimensionar o tamanho da gratido pelo meu mestre de
capoeira angola, Mestre Marrom Capoeira, que, h quinze anos, no cansa de me apoiar
e de me estimular em minha busca pelo fundamento da jogada perfeita e pelas razes
desse corpo negro que compreende a mente como algo anlogo pele: o maior rgo do
corpo humano.
Agradeo s provocaes, ao carinho, alegria e confiana dos inestimveis
amigos da minha vida: Hilton Cobra, Gustavo Mello, Valria Mon, Sarito Rodrigues e,
mais recentemente, Wellington Borges. Gratido efusiva aos irmos, Sergei, Bafifi,
Flor, Dudu, Cris, Lcio, Julia, Cazu, Tio, Nobru, Ernesto e ao meu querido Uli.
E, finalmente, sem a cooperao de minha amada e admirvel amante, guerreira,
aliada e companheira, me e co-formadora da grande Sofia, essa prola de pessoa que
tambm me traz como herana, sem a parceria da irresistvel Tula Axiotelis, seria
impossvel realizar esse trabalho. Gratido total, Tu!
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Resumo.
SANTOS, Rodrigo de Almeida dos. Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o
Trgico no Preldio de uma Filosofia da Dispora Africana. Rio de Janeiro, 2014.
Dissertao (Mestrado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
A proposta desse texto fazer uma introduo ao conceito de baraperspectivismo,
mostrando como sua criao est necessariamente vinculada aos dispositivos do
pensamento trgico que se engendram, por um lado, com a filosofia de Nietzsche e que,
por outro lado, brotam a partir da experincia metafsica proporcionada pelo ritual
trgico yorb, segundo a concepo de Wole Soyinka. De acordo com seu carter
antagnico em relao ao conhecimento centrado na crena incondicional na
razoabilidade e no poder epistmico da razo, que fomentou, inclusive, na modernidade,
a intensificao dos discursos racistas da filosofia e da cincia, que eliminaram do corpo
do preto suas capacidades de produo epistmica e sua prpria condio humana, o
baraperspectivismo prope uma denncia do logocentrismo, a partir da constituio de
um pensamento trgico que leva em conta a experincia sociocultural dos pretos,
consolidada no contexto da dispora africana. Contra o pressuposto cientfico da
inferioridade racial dos pretos, o baraperspectivismo impe o pressuposto da arte e do
instinto de criao que se encontra na base do pensamento metafsico yorb como
elemento afirmativo e emblemtico da potncia civilizatria africana. Assim, o
conceito de situao colonial, inventado por Frantz Fanon, que contribuir para
elucidar o sentido do antagonismo entre colonizador e colonizado, em que o
baraperspectivismo se insere. Alm disso, e de um modo fundamental, o simbolismo
do rs s, ou Bara, o rei do corpo, que se encontra preservado no arcabouo dos
mitos yorb, que fornecer os elementos necessrios constituio dessa filosofia do
trgico que dever, daqui por diante, contribuir tambm com a crtica do modelo
civilizatrio racista empregado na formao da sociedade brasileira.
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Abstract.
SANTOS, Rodrigo de Almeida dos. Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o
Trgico no Preldio de uma Filosofia da Dispora Africana. Rio de Janeiro, 2014.
Dissertao (Mestrado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
The purpose of this text is to introduce the concept of baraperspectivism, showing how
its creation is necessarily linked to the devices of the tragic thought that were
engendered, on the one hand, with the philosophy of Nietzsche and wich, on the other
hand, spring from the "metaphysical experience" provided by the "Yoruba tragic ritual,
according to Wole Soyinka. According to its antagonistic character in relation to
knowledge centered on unconditional belief in the reasonableness and epistemic power
of reason, which even fostered, in modernity, the intensification of racist discourses of
philosophy and science, which eliminated from the black body its capabilities for
epistemic production and its own human condition, baraperspectivism proposes a
complaint of logocentrism, from the establishment of a tragic thought that takes into
account the cultural experience of blacks, consolidated in the context of the African
diaspora. Against the scientific assumption of racial inferiority of blacks,
baraperspectivism imposes the assumption of art and of creative instinct, that lies at the
base of the Yoruba metaphysical thought as the afirmative and emblematic element of
the African civilizing power. So, is the concept of "colonial situation", invented by
Frantz Fanon, that will contribute to elucidate the sense of antagonism between
colonizer and colonized, where baraperspectivism falls . Moreover, in a fundamental
way, is the symbolism of the rs s, or Bara, the "king of the body", which is
preserved in the framework of the Yoruba myths, that will provide the necessary
elements for the establishment of such a tragic philosophy that should henceforth also
contribute to the critique of the racist civilizing model used in the formation of Brazilian
society.
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Sumrio
Abertura ____________ pg. 8
Parte I
Etnofilosofia, moral e conhecimento ____________ pg. 21
Parte II
Arte e cultura; corpo e filosofia ____________ pg. 67
ANEXO
Manifesto Rei do Corpo ____________ pg. 137
Referncias bibliogrficas ____________ pg. 142
Bibliografia complementar ____________ pg. 144
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Abertura.
Utilizo a noo de perspectivismo a partir de Nietzsche. Est relacionada ideia
do conhecimento que no tem por pretenso enunciar a verdade ltima das coisas, pois
no cr na verdade absoluta; que no se arvora no princpio da universalidade; que
enxerga precisamente um fundamento moral nos discursos tradicionais da metafsica no
ocidente; e que se constri eminentemente como apenas uma interpretao da realidade.
Da, uma interpretao que parte de um lugar, de um ponto de vista, uma perspectiva.
Um conceito que traz como sufixo, a meu ver, a noo de "perspectivismo"
enuncia que a ideia de conhecimento que ele prope no se instaura como um centro ao
redor do qual gira o mundo, mas, sim, como um olhar que est ao redor da coisa,
admitindo a complementaridade do maior nmero possvel de ngulos de viso. Pois
no se trata de desvelar o sentido oculto da realidade, mas de adorn-la com o maior
nmero possvel de vus. Por isso, perspectivismo. O prefixo bara est relacionado ao
simbolismo do rs s; um dos nomes pelo qual conhecido esse rs. Da, a
cosmoviso da cultura yorb, principalmente a que apreendemos atravs de seus mitos,
utilizada como uma das fontes principais para a elaborao do conceito.
O baraperspectivismo tambm possui quatro alicerces fundamentais, que se
dividem em dois grupos; o primeiro se caracteriza como o grupo da cientificidade; o
segundo, como o grupo do pensamento trgico; pois os pressupostos que se constituem
como seus alicerces fundamentais se encontram em meio comparao que estabeleo
entre os discursos sobre a experincia religiosa do culto aos rs, produzidos por dois
representantes da cientificidade, e os discursos de dois representantes do que chamo de
interpretao trgica da existncia, que se efetua, eminentemente, a partir de uma
reflexo sobre a relao entre arte e metafsica. No grupo da cientificidade, reuni o
trabalho do etnlogo francs, Roger Bastide, e o da etnloga argentina, Juana Elbein
dos Santos, cuja tese de doutorado, que, no entanto, foi defendida na Sorbonne, o
texto que utilizo aqui. No grupo do pensamento trgico, reno a filosofia do trgico de
Friedrich Nietzsche, de acordo, principalmente, com sua exposio no Nascimento da
tragdia, em Alm do bem e do mal e no Crepsculo dos dolos, e a interpretao sobre
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o ritual trgico yorb do pensador nigeriano, Wole Soyinka, que ele desenvolve num
estudo intitulado, Mito, literatura e o mundo africano.
Desenvolvo minha reflexo a partir do significado da palavra "bara", de acordo
com a etimologia fornecida por Juana Elbein dos Santos: bara, em portugus, significa
rei do corpo; bara = Oba (rei) + ara (corpo) (SANTOS, 2008, p.181). Assim, bara,
como componente elementar de um conceito filosfico, me parece estar carregado de
uma potncia absurda para a formulao de um antagonismo hegemonia do lgos, ou
da razo, que, na histria da filosofia ocidental, implica no alijamento dos sentidos e do
corpo dos processos de legitimao do conhecimento e da verdade; o que Nietzsche
caracterizou muito bem em um de seus textos sobre a razo na filosofia, com a
expresso, fora com o corpo, essa deplorvel ide fixe dos sentidos! acometido de
todos os erros da lgica, refutado, at mesmo impossvel, embora insolente o bastante
para portar-se como se fosse real (GD/CI, A razo na filosofia, 1). No pretendo
analisar sistematicamente o culto aos rs, nem desenvolver nenhuma interpretao
sobre a religio do candombl, mas utilizar o simbolismo de s, como o rei do corpo,
na elaborao de uma filosofia do trgico no Brasil, no contexto da dispora africana,
mais ou menos como o jovem Nietzsche fez com Apolo e Dioniso. Creio no estar
enquadrando o pensamento africano, afirmando que o pensamento yorb quer dizer
isso ou aquilo sobre a realidade. De fato, eu me aproprio, sim, eu me aproprio do
simbolismo dos deuses, para desenvolver uma filosofia do trgico.
Essa apropriao no significa enquadrar o conceito bara, nem, tampouco,
desenvolver um sistema filosfico a partir dele, mas dizer que ele tambm pode falar
dessa maneira, ou seja, como rei do corpo, e fundamentar uma tica, uma esttica, uma
teoria do conhecimento e uma filosofia da cultura, alternativas s que j foram criadas
no ocidente; e, ainda, contar, ou melhor, cantar uma histria da filosofia, do seu prprio
ponto de vista. E precipuamente brasileira, talvez, posto que o bero do conceito a
prpria experincia da dispora africana. Da, o dilogo, o jogo, a relao, a troca com
pensadores ocidentais, como Nietzsche, que por si j fizeram a crtica do lgos. No se
trata de submeter s a Dioniso, portanto, mas, de elaborar o discurso que eles
poderiam enunciar juntos.
Privilegio no trabalho de Soyinka sua abordagem esttica da metafsica yorb.
Pela minha formao de ator e de pessoa do teatro, seria impossvel no estabelecer uma
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correspondncia entre arte e filosofia, por isso utilizo com muito cuidado e rigor todos
os registros sobre a religio dos yorb a que tive acesso. Pretendo desenvolver uma
filosofia do trgico; da, tambm, a necessidade de partir da arte, considerando a
interpretao de Wole Soyinka do ritual trgico yorb, que, para ele, no se distingue
de uma performance teatral; e com Soyinka que examinaremos, ao longo dessa
dissertao, os principais aspectos da caracterizao de uma perspectiva que afirma o
corpo e, principalmente, o rei do corpo, como fonte para a produo de conhecimento.
Assim, o mito aqui no visto apenas como a explicao do rito religioso, mas
fundamentalmente como obra de arte, como produto dos instintos criativos dominantes
numa cultura como a yorb. Uma cultura que, no plano do simblico, escreveu com
sangue a histria dos seus deuses. A experincia cultural yorb, anterior s invases
europeias, grafa. grafa? Se com essa palavra se quer entender a falta de uma
tcnica de registro material atravs da escrita, na realidade, o yorb ganhou com
isso. Com a falta da escrita, a experincia do registro do pensamento yorb se deu num
plano mais honesto, mais corajoso, espontneo, tolerante e perigoso: o corpo.
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O baraperspectivismo uma dobra do conceito de afrocentricidade, criado pelo
filsofo estadunidense, Molefi Kete Asante. Assim, o baraperspectivismo, considerado
como uma ideia afrocntrica, tambm se refere proposta epistemolgica do lugar.
Comeamos com a viso de que a afrocentricidade um tipo de pensamento, prtica e
perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenmenos atuando
sobre sua prpria imagem cultural e de acordo com seus prprios interesses humanos
(ASANTE, 2009, p.93). Se uma ideia afrocntrica, de acordo com Asante,
fundamentalmente perspectivista (ASANTE, 2009, p.96); em relao ao
baraperspectivismo, isso significa que sua formulao possui uma relao fundamental,
em primeiro lugar, com a experincia de formao da sociedade brasileira e, de um
modo geral, com a experincia cultural que se produz com a dispora africana. Assim,
minha prpria formao filosfica se deu em funo dessas experincias e, por isso,
possui influncias de matrizes europeias, indgenas e africanas.
Baseado no propsito caracterstico do trabalho de um pesquisador
afrocentrista, de acordo com Asante, segundo o qual pretende-se encontrar uma pessoa,
uma ideia ou um conceito africano como sujeito de um texto, de um evento ou de um
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fenmeno, o baraperspectivismo procura descobrir no o sujeito de conhecimento
africano, mas o criador de um conhecimento africano; explorando no simbolismo dos
rs a dimenso criativa da personalidade africana (ASANTE, 2009, p.97). Porque
necessrio se impor, no contexto das discusses sobre a experincia sociocultural
brasileira, carregado com as potencialidades que uma viso trgica de mundo acarreta;
de um modo semelhante com o qual os africanos devem ser vistos como atores no
palco planetrio, ou seja, como criadores (ASANTE, 2009, p.103). A viso trgica de
mundo que pretendo apresentar com o baraperspectivismo se constitui a partir das
experincias que suscitaram a criao de valores indiscutivelmente africanos, tais como
os que so buscados nos mitos e na discusso sobre os mitos dos rs.
Se a afrocentricidade, para Asante, colocada como atitude crtica de toda
tentativa de estabelecimento da Europa como padro, o baraperspectivismo uma
atitude que se coloca contra o estabelecimento do lgos como padro (ASANTE, 2009,
p108). O baraperspectivismo, como uma crtica da razo, , primordialmente, um modo
de abordar conceitos e fenmenos, que tem no corpo e no instinto de conhecimento o
ponto de partida de suas abordagens.
No o medo, nem o dio, mas um amor como o de Fanon, tenso absoluta de
abertura (FANON, 2011, p.175), que define o projeto moral do baraperspectivismo.
Por isso, qualquer interlocutor aqui nos agracia com alguma contribuio para o
fortalecimento terico do conceito, por mais que seja rechaado em suas opinies mais
reacionrias, retrgradas, imperialistas e cristianistas sobre a vida, conforme a
culturalidade trgica com a qual nos comportamos de modo semelhante para com
amigos queridos.
O baraperspectivismo promove a escrita de um texto espiralar. O pensamento
arrodeia, ascende e descende, arrodeando, e, destarte, examina o problema em
questo; ou seja, examina a si prprio. O baraperspectivismo um rebento da situao
colonial. feliz e infeliz ao mesmo tempo dizer que foi um intelectual negro das
Antilhas francesas quem forjou essa expresso, que ser examinada a seguir. Porque a
necessidade de afirmar, e com cada vez mais veemncia, que a realidade gerou
intelectuais negros arrebenta da disputa desleal que se consolida com a situao
colonial, mas, ao mesmo tempo, isso marca a potncia da alteridade, da luta e da
vontade de se impor diante dela. Carne e trabalho forado so os signos impostos,
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fora persuasiva da razo, ou fora coercitiva do fuzil, pelo sistema colonial aos povos
e territrios colonizados.
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Mergulhar no universo dos mitos yorb implica em emergir com um flego
renovado. No apenas a experincia no terreiro que tem a capacidade de sacudir
nossas convices mais arraigadas na cultura ocidental, embora seja exatamente l que
o corpo experimenta a plenitude desse sacudimento que desenraiza as opinies mais
vetustas, permitindo a ecloso das foras verdadeiramente vivas e ascendentes da
personalidade humana. E quando uma sacerdotisa do culto aos rs, como Me Beata
de Yemnj, decide transmitir seu poder atravs da literatura, os filhos da academia,
como ns, so contemplados com a oportunidade especial de terem acesso a uma
parcela do modo de aprendizado dos valores ancestrais cultivados no interior da vida do
terreiro. Me Beata de Yemnj uma referncia incontornvel da produo de saberes
que tm como fonte e manancial as culturas de matrizes africanas. Sacerdotisa que
ocupa o topo da hierarquia do culto aos rs no terreiro Il Omiojr, em Nova
Iguau, Rio de Janeiro, Me Beata uma mulher negra octogenria, que sempre
contribuiu com a luta pela valorizao das perspectivas negras no processo de formao
da sociedade brasileira.
Vocs sabem que s no gosta de ver ningum em paz, nem muito bem e
feliz. Para a pessoa adquirir tudo isso, tem que fazer um acordo com ele,
seno nada vai bem. E foi o que aconteceu com um homem que tinha um
stio junto com seu irmo. Os dois eram muito unidos e muito religiosos. E
s dizia:
Agora, vejam! Esses dois negros, sendo das minhas razes, s vo rezar!
Como pode? Ser que eles acham que os mitos dos nossos ancestrais no vo
lhes ajudar e no tm fora? Eu vou fazer eles verem, eles vo ter que me
procurar.
Os dois irmos, todo dia dezenove de maro, plantavam feijo e milho, pois
eles diziam que se plantassem nesse dia, que era de So Jos, no dia de So
Joo eles colhiam. Eles arrumaram a terra, araram tudo e um plantou uma
caixa de milho e o outro, uma de feijo. O que s fez? Chegou na roa e
tirou as sementes e trocou tudo. Onde era feijo ele plantou milho e onde era
milho ele plantou feijo. E ficou esperando nascer. Os irmos s diziam:
Esse ano vamos ter boa safra. Eu de milho e voc de feijo.
E s s esperando. L um dia deu uma chuva e os gros cresceram com uma
fora danada. Onde era feijo saiu milho, onde era milho saiu feijo. Tal no
foi a surpresa dos dois irmos! Eles a comearam a discutir:
Olha, voc viu que o feijo ia dar melhor preo, foi l e roubou os meus
gros que eu j tinha semeado.
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O outro disse:
Que nada, homem. Deixa de maluquice. Como eu poderia fazer isso?
Arrancar o seu feijo e botar o meu milho?
E comearam a discutir, saiu pancadaria e tudo. s se acabando de rir. Os
dois irmos brigaram, dividiram o stio ao meio e no mais se falaram,
ficando inimigos eternos. s, sem que os irmos desconfiassem da tramia
dele, chegou de mansinho e disse:
O que est havendo que vocs tanto brigam?
Os irmos responderam:
Para mim ele morreu.
Para mim voc tambm morreu, ladro.
s disse:
Olha, eu vou fazer vocs se unirem e acabarem com esta contenda. Eu sou
s. Eu quis mostrar para vocs dois que os mitos das suas razes, do pas de
que vocs chegaram at aqui, tm os mesmos valores que os outros, e talvez
at mais, pois so milenares. Como vocs acham que os outros, no os da sua
cultura, podem ter mais fora? De hoje em diante, vocs vo voltar ao que
eram e a ter tudo.
Pois assim foi. Eles comearam a ter f nos rs e recomearam uma nova
vida (BEATA DE YEMNJ, 2002, p.99).
O que Me Beata relata em sua historia corresponde ao pressuposto de que na
gnese da cultura brasileira, concorreram elementos discrepantes da matriz europeia,
cuja potncia para pensar alternativas ao modelo empregado pelo projeto civilizatrio
eurocentrista deve ser mais explorada. No caso do baraperspectivismo, em seu
antagonismo ao lgos como postulado europeu de legitimao do conhecimento
cientfico e filosfico, a oposio se d a partir da experincia da cultura negra que se
desenvolveu no territrio brasileiro, com razes na matriz africana do povo yorb. No
entanto, a singularidade que caracteriza a constituio deste conceito que ele emergiu
de um processo desencadeado por uma reflexo esttica, que veio a se articular com a
necessidade da elaborao de um sentido para o conceito de cultura brasileira.
A partir de um questionamento sobre a constituio e o desenvolvimento da arte
teatral, que me levou ao estudo da interpretao nietzschiana sobre o nascimento da
tragdia grega, a questo da cultura brasileira, entretanto, em termos de origem,
caractersticas e significados, foi progressivamente se colocando como um tema de
fundamental importncia em meu processo de formao esttica. Compreender, por um
lado, o que era o teatro e, por outro, a formao histrica da sociedade brasileira,
significava construir uma relao efetiva, viva e dinmica, entre a prtica do ofcio
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teatral e a reflexo terica indispensvel compreenso dos processos de criao; entre
a elaborao esttica e conceitual do espetculo e a vida; entre fico e realidade; iluso
e verdade; arte e filosofia. E o porqu da arte e o porqu da vida foram questionamentos
que brotaram na aurora da reflexo que ora se apresenta, quando o que estava em jogo
era a criao de um modo de fazer teatral, que formulasse uma crtica da viso de
mundo preconizada, de um modo geral, pelas instituies sociais e polticas da
sociedade brasileira; como, por exemplo, o caso das instituies de ensino, das igrejas
e da mdia. Havia uma percepo de que os processos operados por essas instituies,
no sentido de promover a formao cultural dos indivduos, eram incompletos. Dada a
diversidade ilimitada da constituio intelectual e afetiva de cada indivduo, dadas as
diferenas de classe social, orientao poltica, gnero, orientao sexual, raa e etnia,
havia a sensao de que um modelo de civilizao nico, monocromtico, interpelava a
coletividade atravs das instituies, ao mesmo tempo em que dificultava a satisfao
plena das individualidades naquilo que concerne ao seu processo de formao e de
existncia, naquilo que diz respeito diretamente vida da coletividade. Assim, o papel
dos meios de comunicao de massa e, principalmente, do cinema e da televiso,
deveria ser questionado. Por um lado, a ideia das telenovelas como obra de arte e de
seus atores profissionais como artistas deveria ser contestada, assim como a
naturalizao das representaes do cinema comercial estadunidense na sociedade
brasileira. Tanto a telenovela como o cinema simplesmente pareciam reproduzir aquele
padro civilizatrio nico e, enquanto tais, deveriam ser questionados em seus estatutos
de obras de arte, por no promoverem alternativas ao modelo empregado nas demais
instituies, ou seja, nas escolas, nas universidades, no trabalho, nos hospitais, nas
igrejas e nos presdios. Pelo contrrio, a telenovela e o cinema contriburam para a
naturalizao dessa viso de mundo junto coletividade.
O teatro, por sua vez, poderia evocar uma experincia inversa, a da
desconstruo do olhar e da ao do indivduo no processo de criao artstica. Ao invs
de reproduzir o modelo de pensamento hegemnico da sociedade, ao invs de funcionar
como um rgo do aparelho institucional dominante, o teatro poderia desenvolver novas
formas de olhar e de atuar sobre o mundo, sobre a sociedade e sobre o ser humano. Na
medida em que foi possvel perceber algo de incompatvel entre a oferta de bens,
servios, valores, deveres e direitos, por parte das instituies sociais e polticas, de um
lado, e as demandas sociais, polticas, culturais e afetivas da coletividade, de outro lado;
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ento, o teatro deveria exercer a funo de investigar artisticamente o sentido dessa
incompatibilidade, de formular hipteses, de radicalizar a amplitude dessa lacuna,
propondo respostas alternativas ao padro das instituies, ao invs de procurar
preench-la, no sentido de adequar as aspiraes e necessidades das individualidades ao
modelo dominante na sociedade. Dessa maneira, o teatro, como obra de arte, deveria ser
formulado como a crtica dos pressupostos polticos e filosficos das instituies
historicamente constitudas na sociedade brasileira. Alm disso, o papel do teatro na
criao de valores e perspectivas que pudessem satisfazer as demandas afetivas e
intelectuais da coletividade deveria ser pensado como uma exigncia atrelada sua
dimenso crtica, de modo a exercer, junto com essa, uma funo fundamental no
processo de formao de um conceito de cultura e, particularmente, no processo de
formao das individualidades. Diferentemente do modelo aplicado nas instituies de
ensino em geral, que privilegia a formao tcnica e intelectual dos indivduos, o teatro,
no propriamente como modelo, mas, como exemplo, ou seja, como um modo possvel
de orientar a organizao de uma experincia de criao que almeja reflexos imediatos
na formao da coletividade o teatro, desse modo, visa, ao mesmo tempo, formao
intelectual e afetiva dos indivduos. Tanto a coletividade, no papel de pblico virtual do
espetculo teatral, quanto o prprio artista se encontram sob a influncia da potncia de
formao que caracteriza a arte teatral, que lida com afetos e ideias horizontalmente,
sem estabelecer a mesma hierarquia que se observa na atividade cientfica, na moral
eclesistica e na cultura de massa.
A questo da hierarquia pode ser abordada de acordo com esses termos: por que
determinados valores em uma sociedade so privilegiados em detrimento de outros? Em
funo de quais princpios se organiza a vida das instituies de ensino, dos hospitais,
dos presdios e dos meios de comunicao em uma sociedade como a nossa? Qual a
origem dos pressupostos cientficos que se encontram na base da formulao de nossa
gramtica, por exemplo? Quais os pressupostos histricos, morais, sociais, polticos e
teolgicos que determinaram o papel das instncias eclesisticas em nossa sociedade,
tais como igrejas, associaes, congregaes e conselhos? Por que os meios de
comunicao recorrem constantemente imagem do homem branco, heterossexual e
economicamente bem sucedido, como padro de comportamento referencial para uma
coletividade cuja caracterstica mais expressiva a diversidade em termos de culturas,
raas e etnias, onde a populao de mulheres excede em seis milhes de indivduos a
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populao de homens e onde a populao negra corresponde a mais de 50% da
totalidade demogrfica, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domiclio (Pnad), realizada em 2010 e publicada pelo IBGE em 21 de setembro de
2012?
Com efeito, as anlises publicadas em 2011 pelo Instituto de Pesquisa
Econmica Aplicada (Ipea), sobre a diviso do trabalho, a distribuio de renda, nvel
de escolaridade e habitao, na sociedade brasileira, tambm indicam que as posies
privilegiadas continuam sendo ocupadas majoritariamente por homens, heterossexuais,
brancos1. E se a imagem deles constantemente utilizada como modelo de um padro
que no corresponde s reais condies de vida da maior parte da populao, que
difundido pelos meios de comunicao de massa, sedutoramente, como objeto do
desejo, ento a consequncia que se chega a naturalizao dessa viso de mundo que
estabelece a superioridade do homem branco ao olhar da coletividade, atraindo a
ateno e o desejo das individualidades na direo desse ideal, mesmo quando extrapola
no uso das imagens do corpo feminino, frequentemente associado como objeto de posse
e de desejo sexual, de modo a favorecer a preponderncia de uma ordem patriarcal
etnocntrica sobre as outras; ao mesmo tempo em que essa tenso experimentada,
vivenciada, efetivamente, sob a forma das relaes polticas de habitao e
territorialidade, educao, trabalho e diviso de recursos, que se do no interior da
coletividade.
Na vida eclesistica, por exemplo, podemos observar que o fenmeno da
expanso das igrejas neopentecostais tambm est relacionado a essa ordem que
privilegia a mesma inclinao tnica que se manifesta hegemonicamente na gerncia
dos meios de comunicao. E, com efeito, os prprios dirigentes das igrejas
neopentecostais, alm de ocuparem direta ou indiretamente diversos cargos pblicos em
todas as instncias do aparelho governamental, so os gestores de grandes empresas de
telecomunicaes. O proprietrio da Rede Record de Televiso o Bispo Edir Macedo,
fundador da Igreja Universal do Reino de Deus que, de acordo com o Censo de 2000,
alcanou a marca de quarta maior corrente religiosa do pas. O missionrio R.R. Soares,
fundador da Igreja Internacional da Graa de Deus, proprietrio de duas editoras, uma
gravadora, uma produtora cinematogrfica, uma estao de rdio e de uma emissora de
1 Cf. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada... [et al.]. Retrato das desigualdades de gnero e raa.
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televiso por assinatura. A expanso dos neopentecostais no Brasil foi impulsionada por
uma estratgia eficaz, cuja raiz se encontra na utilizao dos meios de telecomunicaes
pelos pastores, bispos e missionrios estadunidenses, como forma de propaganda
religiosa; o televangelismo a prtica da pregao religiosa, atravs de programas de
televiso que alcanam um nmero enorme de espectadores. O alcance desses
programas muitas vezes atinge propores continentais e, por causa do espectro de sua
influncia sobre a sociedade brasileira, o fenmeno do cristianismo neopentecostal
precisa ser abordado como exemplo de um dispositivo moral condicionante de uma
pluralidade de valores em jogo na experincia de formao de nossa cultura. Alm de
Edir Macedo, ele prprio um televangelista, o pastor Silas Malafaia, lder da
Assembleia de Deus Vitria em Cristo, e o missionrio R.R. Soares utilizam a televiso
como meio de pregao religiosa. Malafaia, que presidente de uma editora, apresenta
o programa Vitria em Cristo, h trinta anos no ar e que atualmente transmitido no
Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e na frica.
A correspondncia entre o discurso neopentecostal e a inclinao tnica que se
manifesta na ordem gerencial dos meios de comunicao de massa se evidencia, por
exemplo, atravs da anlise dos usos que o sistema neopentecostal faz das religies de
matrizes africanas. E, aqui, por mais que possamos prescindir de uma anlise acurada de
todas as representaes que o sistema neopentecostal no Brasil produziu em relao ao
candombl e umbanda, evidente que existe uma oposio de valores operada por
esse sistema que desqualifica essa experincia do candombl e da umbanda como
mentira, falsidade, engano, erro, loucura e derrota. O exemplo mais significativo dessa
avaliao se encontra no livro de Edir Macedo, dedicado, com um tom evidente de
ironia, aos pais-de-santo e mes-de-santo do Brasil, porque eles, mais que qualquer
pessoa, merecem e precisam de um esclarecimento.
So sacerdotes de cultos como umbanda, quimbanda e candombl, os quais
esto, na maioria dos casos, bem-intencionados. Podero usar seus dons de
liderana ou de sacerdcio corretamente, se forem instrudos. Muitos deles
hoje so obreiros e pastores das nossas igrejas, mas no o seriam, se Deus
no levantasse algum que lhes dissesse a verdade (MACEDO, 1997, p.5)2.
As atitudes gerenciais dos meios de comunicao no Brasil, assim como a
oposio de valores estabelecida pelo aparato neopentecostal, tais como foram indicadas
acima, representam tendncias complementares do mesmo projeto civilizatrio em vigor
2 Grifado por mim.
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na sociedade brasileira. Enquanto os meios de comunicao e, principalmente, a
televiso, investem na difuso global de imagens que reproduzem o protagonismo da
etnia branca, a poltica do sistema eclesistico neopentecostal tende a menosprezar a
contribuio das etnias africanas e indgenas. O conjunto dos valores, das relaes de
poder, das configuraes sociais e das polticas de trabalho, educao, comunicao e
cultura, manifesta estritamente uma filiao europeia, que insiste em se impor contra as
perspectivas africanas e indgenas na constituio processual da sociedade brasileira.
Quando essa filiao prevalece ao nvel institucional, ou seja, nas escolas e
universidades, nas igrejas, nos hospitais, nos presdios, nos meios de comunicao, no
trabalho e em todas as instncias da administrao da vida pblica, ela acaba
estabelecendo e naturalizando a centralidade dos valores europeus e a marginalizao
dos valores africanos e indgenas. o que constitui, alis, o problema da inautencidade
da cultura brasileira, de acordo com uma afirmao de Oswaldo Giacoia Jnior, que
procurou pens-lo a partir da interpretao de um texto de Darcy Ribeiro luz da teoria
da cultura de Nietzsche. Aquilo que identifico como o modelo de um projeto
civilizatrio vigente, apreendido pela observao do funcionamento da vida
institucional da sociedade brasileira e pelo estudo das condies que proporcionaram a
experincia da formao sociocultural do Brasil, foi produzido precisamente pelo
interesse da classe branca dominante, que, tanto para Giacoia, como para Darcy Ribeiro,
corresponde causa de nossa inautenticidade.
No admira, portanto, que um certo carter de inautenticidade e
estranhamento tenha que ser caracterstico da essncia da cultura brasileira,
na medida em que teve origem a partir de um empreendimento colonial,
essencialmente mercantil, baseado na explorao da mo-de-obra escrava,
cuja principal funo consistia em servir de reservatrio de matrias-primas e
produtos naturais para o mercado europeu. (...) Em meio a uma populao
cuja maior parte composta por mestios, a preocupao e o cuidado
principais da classe branca dominante (pelo menos autodenominada branca)
consiste em defender e fazer valer esse seu privilgio, afirmando-se como
etnia branca, no plano racial, e, ao mesmo tempo no registro cultural, como
representante do eurocentrismo caracterstico da ideologia dominante na
metrpole (GIACOIA, 2000, p.143).
E eurocntrico, portanto, o modelo do projeto civilizatrio adotado pelas
classes dirigentes na sociedade brasileira. Se esse eurocentrismo abordado por Giacoia
como um dos traos da inautenticidade de nossa cultura, para mim, foi necessrio
abord-lo tambm a partir de sua dimenso epistmica; como um conceito atrelado
necessariamente razo, ao lgos, gerando, portanto, a hegemonia do logocentrismo,
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que leva tambm ao problema da inautenticidade na produo de conhecimento no
Brasil.
Mas, qual o impacto efetivo dessa hegemonia sobre a produo de
conhecimento em nossa cultura? O que permite caracterizar especificamente um
conhecimento como eurocntrico e logocntrico? Ser que isso influencia a atividade
cientfica da mesma forma que determina o etnocentrismo da produo de imagens
veiculadas pelos meios de comunicao de massa e os valores morais disseminados pelo
sistema cristo neopentecostal? Essas questes, no entanto, nos levam longe demais,
muito adiante do momento em que estamos da leitura desse texto. Voltaro a ser
abordadas mais adiante. que elas nascem do mesmo questionamento que me levou a
buscar, na adolescncia, um fundamento para a constituio de uma experincia trgica
no teatro. Se elas irromperam aqui, foi por causa da natureza espiralar do corpo do
prprio texto.
Assim, no sentido de elaborar as diretrizes para o desenvolvimento de uma
potica teatral que forjasse uma denncia do eurocentrismo dominante na vida
sociocultural brasileira, foi necessrio compreender as relaes entre o desenvolvimento
histrico da arte teatral e os nossos processos de formao cultural, a partir do
pressuposto de que na gnese de nossa cultura concorreram elementos discrepantes da
matriz europeia, cuja potncia para pensar alternativas ao projeto civilizatrio aplicado
ao caso brasileiro deveria ser explorada. O bero do baraperspectivismo, portanto, se
encontra nos interstcios de uma reflexo sobre o teatro na cultura brasileira.
No Brasil, a maneira de pensar o teatro, em geral, sempre esteve condicionada
histria do mundo ocidental. Apesar das influncias africanas e indgenas no processo
de formao de nossa cultura, apesar da pesquisa de Abdias do Nascimento sobre o
desenvolvimento de uma esttica teatral negro-africana, por exemplo, que o levou
criao do Teatro Experimental do Negro, em 1944, minha ignorncia me levou a
buscar a experincia das origens do teatro na Grcia antiga. E, assim, entretanto, no
limiar de uma reflexo esttica sobre a elaborao de um teatro crtico e alternativo, a
descoberta da interpretao nietzschiana da tragdia grega, atravs da relao entre o
impulso apolneo e o impulso dionisaco, foi fundamental para o florescimento da
concepo filosfica do baraperspectivismo. H uma correspondncia entre o
conhecimento trgico formulado por Nietzsche a partir da concepo do dionisaco e o
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20
baraperspectivismo. Ambos instauram uma ruptura com os paradigmas epistmicos e
culturais do eurocentrismo. Alm disso, importante salientar que a potncia da
reflexo esttica do jovem Nietzsche de estimular a composio de uma interpretao da
arte para alm dos padres eurocntricos j foi identificada pelo dramaturgo nigeriano
Wole Soyinka, que elogia sua iluminao profunda sobre os impulsos bsicos
universais (SOYINKA, 1990, p.142).
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21
I Etnofilosofia, moral e conhecimento.
Defendemos, de uma vez por todas, o seguinte princpio: uma sociedade
racista ou no . Enquanto no compreendermos essa evidncia, deixaremos
de lado muitos problemas (Frantz Fanon, Pele negra, mscaras brancas,
2008, p.85).
1.
O termo que, em yorb, significa aquele que precede, que toma a vanguarda,
que vai frente dos outros (SANTOS, 2008, p.93) asiwaj. Assim, o
baraperspectivismo pretende se impor tambm como um asiwaj. um conceito que
procura abrir os caminhos do discurso filosfico da dispora africana, rompendo com os
valores logocntricos da cientificidade. No um sistema de pensamento. uma obra
que atravessa o discurso da cincia e o da filosofia ocidental, para revelar uma
experincia que se constituir como um exemplo da possibilidade de criao de uma
filosofia a partir das perspectivas do negro no contexto contemporneo da dispora.
Nesse sentido, o conceito de situao colonial, apreendido com o filsofo e psiquiatra
martinicano, Frantz Fanon (FANON, 2011, p.452), representa o significado do que
entendo por contexto contemporneo da dispora, que se configura, em geral, pela
experincia do colonialismo nos territrios da frica e das Amricas, segundo o qual,
mister compreender que a sociedade dividida entre colonizados e colonizadores, entre
dominados e dominadores, e que a dualidade, pretos e brancos, deve ser compreendida
de acordo com aquelas dicotomias. Para o antroplogo africano, nascido no Congo,
Kabengele Munanga (MUNANGA, 2009, p.24), o conceito de situao colonial
expressa uma relao de foras entre vrios atores sociais dentro da colnia, sociedade
globalizada, dividida em dois campos antagonistas e desiguais: a sociedade colonial e a
sociedade colonizada. Ao me referir ao contexto contemporneo da dispora em sua
relao com a modernidade, considero o sculo XIX como o perodo de intensificao
dos discursos racistas que estabeleceram a hegemonia dos pases colonizadores sobre os
povos colonizados, ou seja, como o perodo histrico mais significativo para a
determinao da situao colonial, embora possamos nos reportar ao sculo XVIII para
mostrar que a a cincia e o racismo j tinham feito sua aliana.
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O sculo XIX produziu Lvy-Bruhl e sua concepo da mentalidade primitiva
que, de acordo com o filsofo da Costa do Marfim, Paulin Hountondji, est na base da
formao da filosofia africana contempornea. Quando evoco o conceito de
mentalidade primitiva, criado pelo filsofo e socilogo francs, Lucien Lvy-Bruhl,
nascido em 1857, para empreg-lo segundo a orientao de Hountondji, que o articula
com sua concepo do papel da antropologia, que pode ser caracterizada nesses termos:
diferentes antroplogos em vrias pocas sempre afirmaram (...) a supremacia do
Ocidente, apresentando-o como o detentor da nica civilizao madura, enquanto as
outras estariam, na melhor das hipteses, nas fases iniciais de um processo que o
Ocidente j teria concludo (...) (HOUNTONDJI, 1996, p.163). Como diria o filsofo
queniano, Dimas Masolo, em seu texto sobre a busca de identidade na filosofia africana,
Lvy-Bruhl foi, depois de Hegel, talvez, o proponente mais popular da inferioridade da
mentalidade africana (MASOLO, 1995, p.4). Assim, compreendo por mentalidade
primitiva, a ideia que fora atribuda por representantes do discurso da cincia, como
antroplogos, socilogos e etnlogos, e, posteriormente, por filsofos e telogos, ao
aspecto da racionalidade caracterstico dos povos que habitam os territrios colonizados
pela Europa, especialmente, o territrio africano. Com efeito, o que Hountondji
desenvolve com sua crtica aos discursos baseados no modelo definido pela abordagem
das representaes simblicas produzidas pela mentalidade primitiva uma denncia.
Os discursos, em geral, que se produzem na frica na primeira metade do sculo XX,
denominados por seus prprios autores como filosofia, de acordo com Hountondji, so,
na realidade, discursos que manifestam propriamente uma pretenso filosfica.
Devido ao fato de esses discursos se constiturem pela interpretao das experincias
culturais de sociedades tradicionais africanas, Hountondji os classifica como
etnofilosofia, um neologismo cunhado por ele prprio (HOUNTONDJI, 1996, p.34).
So interpretaes de carter cientfico, ou filosfico, que buscaram estabelecer
sistemas de pensamento a partir da anlise da estrutura e dos elementos simblicos
produzidos pelas sociedades tradicionais africanas. Em relao a esse trabalho, acredito
que o exame das linhas gerais que caracterizam o debate contemporneo em torno da
questo da filosofia africana me auxiliar a situar meu prprio ponto de vista e a
necessidade da criao do baraperspectivismo como preldio de uma filosofia do
trgico na dispora africana. Alm disso, acredito, principalmente, que o estudo da
produo de filosofia na frica contribuir como referncia de uma imensa pesquisa
acerca da possibilidade do desenvolvimento de um pensamento filosfico no Brasil com
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23
base nas matrizes africanas presentes em nossa prpria sociedade, com o objetivo de
erigir novas perspectivas como alternativa ao logocentrismo, que tem se manifestado
como padro dominante de se fazer filosofia no Brasil.
Hountondji entende que o primeiro passo no sentido de se produzir
conhecimento filosfico com autonomia, diante da verticalidade com que os acadmicos
africanos tm estabelecido suas discusses com seus parceiros ocidentais, seria talvez
formular problemticas originais (HOUNTONDJI, 2010, p.140). Da mesma forma,
avaliar de que modo os valores e vises de mundo tradicionais oriundas da frica
podem ser trabalhados filosoficamente no Brasil talvez seja um caminho pelo qual
possamos formular com originalidade nossas prprias questes. Evidentemente, nesse
sentido, teremos que absorver tambm as experincias dos povos indgenas e a
contribuio europeia. Entretanto, optei pela perspectiva africana como temtica desse
trabalho, porque sou negro, de candombl, e procuro elaborar o problema do racismo
anti-negro na sociedade brasileira. O racismo afeta negativamente a imensa populao
negra brasileira, estigmatiza as religies, as artes e os saberes, se manifestando, nesse
caso, como racismo epistmico, conforme a colocao de Renato Noguera
(NOGUERA, 2011, p.15). Alm disso, o racismo gera na pessoa negra um sentimento
caracterizado por Frantz Fanon como complexo de inferioridade, produzido pelo
sepultamento de sua originalidade cultural (FANON, 2008, p.34). Seria o caso de
formular, ento, o problema do racismo no Brasil como uma questo filosfica original,
com a qual devssemos nos ocupar? Acredito que sim. E, assim como o problema da
cincia, para o jovem Nietzsche, no pode ser resolvido no prprio mbito da cincia
(GT/NT, Tentativa de autocrtica, 2), se pretendo desenvolver uma reflexo
filosfica a partir de uma perspectiva que contemple a experincia do negro brasileiro,
para tratar do problema do racismo, porque essa uma questo que no pode ser
radicalmente discutida sob a tica do europeu.
2.
Alm da cincia, o sculo XIX ainda se lanou sobre a frica, munido de outra
arma poderosa: o cristianismo. Foram os missionrios europeus, ao se instalar em
diversas partes do continente africano, os primeiros a estabelecer um contato
supostamente no violento com os grupamentos humanos nativos, com o propsito de
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aprender suas lnguas, seus costumes, suas instituies e, principalmente, suas religies,
para viabilizar sua catequese.
Um exemplo profundamente significativo da relao entre o projeto
missionrio europeu para o continente africano e a produo de filosofia africana
contempornea se encontra no trabalho do padre belga, Placide Tempels. Ele foi
enviado como missionrio frica, na primeira metade do sculo XX. A partir de sua
experincia junto aos baluba, grupo tnico-racial pertencente aos povos bantu, habitante
das regies de Kasai e Katanga, na atual Repblica Democrtica do Congo, ele
formulou um sistema de pensamento baseado no que ele compreendeu como trs noes
fundamentais: fora vital, intensificao das foras e influncia vital. Tempels
acreditava que, por trs de todos os costumes dos baluba, havia uma ontologia da
interao das foras vitais que, no entanto, ainda permanecia oculta, desconhecida, para
os prprios africanos. Ele assume, ento, a tarefa de expor sistematicamente esta
ontologia, ciente das dificuldades que a traduo dos conceitos do pensamento dos
baluba, numa terminologia ocidental, poderia acarretar.
Com efeito, seu discurso orientado no sentido de esclarecer os europeus a
respeito dos pressupostos que, do seu ponto de vista, se encontram na base da cultura
bantu; um discurso que faz parte de um projeto colonial, reservado para os povos
primitivos e para as raas primitivas. Neste sentido, seu discurso apresenta um trao
etnocntrico evidente. Os africanos aparecem apenas como objeto de estudo, como
portadores de uma filosofia primitiva, que, de acordo com a formulao de Tempels,
tambm deve ser compreendida como uma viso de mundo coletiva, espontnea e
informal; isto , como um sistema de saberes tcito, implcito, vigente na tradio oral,
nos atos e gestos da comunidade, ou seja, margem da escrita e da instituio de
escolas filosficas, tal como se d, segundo os moldes da tradio ocidental. Tal sistema
de pensamento denominado por Tempels precisamente como filosofia bantu, em cuja
formulao ele estabelece uma ontologia, uma psicologia e uma tica. Para que
possamos compreender os conceitos de etnofilosofia e de filosofia africana, conforme a
concepo de Hountondji, devemos examinar as anlises de Tempels sobre a sociedade
tradicional dos baluba, que o levaram a formular seu sistema filosfico. Evidentemente,
h uma generalizao quando Tempels atribui o resultado de seus estudos sobre o
comportamento dos baluba totalidade dos povos bantu. Isso pode ser explicado como
um trao caracterstico da etnofilosofia, que Hountondji definiu como mito da
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unanimidade primitiva, que consiste na falsa impresso de que entre os povos
primitivos, os indivduos sempre concordam uns com os outros (HOUNTONDJI,
1996, p.60).
De acordo com seu livro, Filosofia bantu, existe um princpio filosfico central,
que determina todo o comportamento dos povos bantu. Esse princpio o da fora vital,
ao qual Tempels atribui a realidade do prprio ser. Para o bantu, segundo Tempels, o ser
idntico noo de fora. Com efeito, a noo fundamental sob a qual o ser
concebido repousa na categoria das foras (TEMPELS, 1969, p.49). Assim, vida,
fora vital e ser so termos correlatos na concepo de Tempels da filosofia bantu;
isto , ele afirma que a vida o valor supremo para o bantu: esse valor supremo vida,
fora, viver forte, ou fora vital (TEMPELS, 1969, p.44). Se a fora vital constitui no
apenas toda a realidade, mas tambm equivale ao valor supremo para o bantu, porque
ele deve se esforar para aumentar sua prpria fora vital, intensific-la cada vez mais
como se ela correspondesse exatamente coisa em si, uma vez que ele, enquanto fora
vital, pode aumentar ou diminuir, dependendo do tipo de influncia externa que possa
interferir em sua vida. A doena, a tristeza e o cansao: tudo isso representa para o
bantu a diminuio de sua fora vital, sua diminuio ontolgica como coisa em si. Por
outro lado, a felicidade suprema para ele possuir o mximo de fora vital. Toda a
argumentao do padre franciscano se baseia no modelo fornecido pela filosofia
escolstica e reitera diversas vezes ao longo do texto a disparidade radical em relao
natureza mental do europeu e a do africano.
Ns podemos conceber a noo transcendental do ser distinguindo-o de seu
atributo, Fora, mas os bantu no podem. Fora, em seu pensamento,
um elemento necessrio do ser, e o conceito de fora inseparvel da
definio do ser. No h entre os bantu a ideia do ser divorciada da ideia
de fora. Sem o elemento fora, o ser no pode ser concebido. Ns
consideramos uma concepo esttica do ser, eles, uma dinmica
(TEMPELS, 1969, p.50).
interessante observar que da maneira que Tempels apresenta a noo de ser
como fora vital para o bantu, fcil ser induzido a afirmar sua semelhana com o se
dos yorb. Roger Bastide, reproduzindo a opinio de Maupoil, define o se como a
fora invisvel, a fora mgico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de
todas as coisas (BASTIDE, 2001, p.77). Para Juana Elbein dos Santos, a fora que
assegura a existncia dinmica, que permite o acontecer e o devir (SANTOS, 2008,
p.39). Muniz Sodr estabelece uma correspondncia explcita entre o se e a concepo
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26
elaborada por Tempels, afirmando que os bantu tambm o tm como princpio
essencial, designado pelo muntu (SODR, 2005, p.97); sendo este um conceito que
examinaremos em breve3.
Outro princpio que est na base da filosofia bantu, de acordo com Tempels, o
da interao das foras, ao qual se combina o da influncia vital. No sistema que ele
apresenta, todos os seres da existncia esto interligados, relacionando-se uns com os
outros, sendo que os mais fortes influenciam os menos fortes sob dois aspectos: um
sensvel, emprico, e corresponde interao das foras, tal como podemos perceb-la
nos fenmenos qumicos, fsicos e mecnicos, como Hountondji observou com preciso
(HOUNTONDJI, 1996, p.35); e outro suprassensvel, ontolgico, e corresponde
interao das foras, tal como se d em relao essncia das coisas, ou seja, s coisas
em si mesmas, concebidas essencialmente como fora: Na categoria das coisas
visveis, os bantu distinguem aquilo que percebido pelos sentidos e a coisa em si.
Por coisa em si, eles indicam essa natureza interior individual, ou, mais precisamente,
a fora da coisa. (TEMPELS, 1969, p.53). Neste sentido, deve-se compreender este
princpio de interao das foras a partir da interao entre Deus, o ser supremo, o
Criador, e suas criaturas.
O conceito de seres distintos, de substncias (para utilizar novamente o termo
Escolstico), que se encontram lado a lado, totalmente independentes uns dos
outros, estranho ao pensamento bantu. Os bantu sustentam que os seres
criados preservam um vnculo uns com os outros, uma ntima relao
ontolgica, comparvel com o lao causal que liga criatura e Criador. Para o
bantu, existe uma interao de ser para ser, isto , de fora para fora. Alm
da interao mecnica, qumica e psicolgica, eles enxergam uma relao de
foras, que deveramos chamar de ontolgica (TEMPELS, 1969, p.58).
Aqui, h uma indicao crucial que nos levar a compreender a relao do
sistema criado por Tempels com o cristianismo e sua contribuio para o projeto
civilizatrio europeu, que se refere ideia da ligao entre criaturas e Criador. Com
efeito, preciso abordar duas noes que se destacam na interpretao de Tempels
sobre a filosofia bantu, que so complementares, e cuja articulao far com que
possamos compreender o significado ulterior de seu projeto civilizatrio, que s se
depreende da anlise e da reviso de sua obra como um todo e, por conseguinte, esta
compreenso tambm nos auxiliar na abordagem da crtica de Hountondji ao livro de
Tempels.
3 Os grifos so meus.
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Em primeiro lugar, de acordo com a concepo da hierarquia das foras, o ser
humano investido de uma posio privilegiada no interior do sistema classificatrio de
interao das foras vitais. Ele ocupa o centro do sistema, como a fora vital soberana
sobre a terra, governando tudo o que nela vive: pessoas, animais ou plantas.
O bantu v no homem a fora vital; a fora ou o ser que possui a vida, que
verdadeiro, completo e grandioso. O homem a fora suprema, o mais
poderoso dentre os seres criados. Ele domina as plantas, os animais e os
minerais. Estes seres inferiores existem, por decreto divino, apenas para a
assistncia do ser criado superior, o homem (TEMPELS, 1969, p.97).
De um modo diferente ao de Muniz Sodr, que faz uma relao explcita entre o
se e o conceito de muntu, me parece que ele corresponde menos noo de fora do
que de ser humano. A palavra muntu, segundo Tempels, inclui inerentemente a ideia
de excelncia ou plenitude (TEMPELS, 1969, p.101). O termo existe na lngua kiluba,
idioma falado pelo povo luba, em que o termo baluba representa precisamente sua
designao plural. De acordo com Tempels, entretanto, seria incorreto traduzir muntu
como homem, apesar do fato de que o muntu possui a fora do conhecimento4.
Propriamente, muntu, tal como empregado pelos baluba, tem o significado de
pessoa. Tempels, por sua vez, o define como fora vital dotada de inteligncia e
vontade (TEMPELS, 1969, p.55). A meu ver, portanto, no contexto do livro de
Tempels, o muntu deve ser considerado como fora vital personificada, embora muitas
vezes ele empregue o termo homem para explicar as funes exercidas pelo muntu no
interior do sistema de interao das foras vitais.
Intensificar-se, fortalecer-se, potencializar-se: o vir-a-ser muntu, ou seja, a
dinmica das influncias vitais que levam algum a se tornar, ele mesmo, uma fora
ativa propagadora da vida, segundo a interpretao de Tempels, um processo que
ocorre de acordo com leis metafsicas, universais, imutveis e estveis, assim como o
processo contrrio, isto , o de enfraquecimento, declnio e aniquilao do muntu. So
essas leis que Tempels designa como Leis Gerais da Causalidade Vital (TEMPELS,
1969, p. 66). So essas leis que regulam, em geral, a interao entre os seres; e Tempels
estabelece trs definies:
I. Um homem pode fortalecer ou enfraquecer outro homem diretamente,
atuando sobre sua essncia;
4 Com efeito, Tempels afirma que os baluba consideram a sabedoria e o conhecimento como foras vitais
(TEMPELS, 1969, p.99).
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28
II. A fora vital humana pode influenciar em si mesmos outros seres-foras
inferiores;
III. Um ser racional pode agir indiretamente sobre outro ser racional pela
comunicao de sua influncia vital a uma fora inferior, atravs da qual
influencia o ser racional.
A meu ver, em contiguidade a essa teoria que descreve a supremacia do muntu,
cujo pressuposto fundamental a ideia da intensificao da fora vital, ou seja, do
crescimento ontolgico, a doutrina do cristianismo, tal como se d na abordagem do
livro de Tempels, que se destaca em sua interpretao. Com efeito, em Filosofia bantu,
Tempels s menciona o cristianismo nas ltimas pginas do livro; porm, lhe atribui
uma funo bem especfica no contexto de sua misso civilizatria em relao ao
conhecimento dos pressupostos da filosofia bantu.
O ttulo do ltimo captulo do livro Filosofia bantu e nossa misso
civilizatria. Este captulo condensa toda a energia do esforo do padre belga
empregada na anlise da experincia cultural da vida dos baluba. Constatamos, assim,
que o problema central que se coloca a Tempels o da evoluo da raa negra
(TEMPELS, 1969, p.182). Embora ele procure restituir a condio humana e a
racionalidade dos africanos, reproduzindo um sistema de pensamento supostamente
implcito nas concepes de mundo dos baluba, ele sustenta, durante toda a
argumentao, a hierarquia que estabelece uma distino bsica entre brancos e negros,
europeus e africanos, civilizados e primitivos. Ora, se vejo a necessidade de enfatizar o
aspecto da supremacia do muntu, de acordo com a perspectiva de Tempels, para que
possamos compreender o sentido de seu projeto civilizatrio, porque a concepo da
hierarquia das foras determina o tipo de relao que ele estabelece entre os europeus,
colonizadores, e os africanos, colonizados.
Ns carregamos o peso da responsabilidade de examinar, de avaliar e de
julgar esta filosofia primitiva, e de no fracassar na descoberta daquele
ncleo de verdade, que deve necessariamente ser encontrado em um sistema
to completo e to universal, que constitui o bem comum de uma massa
imponente de povos primitivos ou semi-primitivos (TEMPELS, 1969, p.174).
Ouso afirmar que, muito mais do que responsabilidade, h uma culpa instalada
no discurso de Tempels, paternalismo, arrependimento e compaixo, mesclados com
uma lgica perversa que busca garantir a estabilidade da situao colonial. S existe
filosofia bantu em funo de uma misso civilizatria. Sou obrigado a concordar com
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Fanon, quando ele diz que a filosofia nunca salvou ningum; fao de suas palavras as
minhas, pois, se em nome da inteligncia e da filosofia que se proclama a igualdade
dos homens, tambm em seu nome que muitas vezes se decide seu extermnio
(FANON, 2008, p.43). Por outro lado, Tempels acredita que a opinio do bantu sobre o
europeu s poderia ser enunciada, levando-se em considerao a estrutura psicolgica
que se assenta sobre as noes de fora vital, intensificao das foras vitais e interao
das foras. Isso significa que ele sustenta a crena de que, para o bantu, o europeu
tambm um muntu, uma fora vital personificada, integrada na dinmica da interao
das foras, e, por conseguinte, participando da hierarquia das foras vitais, como fora
causal de vida. ao que sou levado necessariamente a deduzir a partir dessa
observao:
Os bantu nos consideram ns, os brancos desde o nosso primeiro contato,
de acordo com o nico ponto de vista possvel para eles, o de sua filosofia
bantu. Eles nos incluram em sua hierarquia das foras, em um nvel elevado.
Eles acreditam que devemos ser foras poderosas. No parece que
controlamos foras naturais que jamais foram controladas? Para eles, esta
prova foi conclusiva. A aspirao natural da alma bantu, portanto, foi poder
se apropriar de alguma parte em nossa fora vital (TEMPELS, 1969, p.178).
Contra esse ideal da aspirao natural da alma bantu, estabeleo uma
comparao com a concepo da inveja do colonizado, formulada por Fanon como um
sonho de apropriao: uma apropriao que se efetue de todos os modos; sentando-se
mesa do colonizador, deitando-se em sua cama e com sua mulher, se possvel; pois,
no h um colonizado que no sonhe, pelo menos uma vez por dia, em se instalar no
lugar do colonizador (FANON, 2011, p.454)5. Com efeito, a psicologia de Fanon
contribui para uma reverso real da situao colonial, enquanto a artificialidade da
filosofia bantu de Tempels procura colaborar com a preservao real dessa situao. Sua
estratgia se passa justamente por apreender a estrutura dos mecanismos de pensamento
bantu; mas, no vai alm da tentativa de adaptar os contedos e a estrutura do
pensamento cristo realidade dos baluba. Na verdade, ele reformulou algumas noes
do pensamento baluba, que julgou fundamentais, a partir de seu prprio modo de
pensar, de tal maneira que ele pde reproduzir, com isso, a pertinncia de suas prprias
concluses.
5 Cf. Frantz Fanon, Os condenados da terra: Esse mundo compartimentado, esse mundo partido em dois
habitado por duas espcies diferentes. A originalidade do contexto colonial, que as realidades
econmicas, as desigualdades, a enorme diferena dos modos de vida no conseguem mascarar as
realidades humanas (FANON, 2011, p.454).
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O que a grande maioria dos bantu espera de ns, e que aceitaro com intensa
alegria, com profunda gratido, a nossa sabedoria, nossos meios de
aumentar a fora vital. Por outro lado, se desejamos levar alguma coisa aos
bantu e se desejamos que eles aceitem nossos benefcios, vamos oferecer-lhes
como formas assimilveis pelo pensamento bantu, vamos presentear-lhes
com modos de crescimento e de fortalecimento de seu ser, de sua fora vital,
e no com modos de aniquilao do esprito bantu (TEMPELS, 1969, p. 179).
Considerando essa dinmica de fortalecimento e de aniquilao do esprito
bantu, Tempels estabelece uma distino entre dois modelos de civilizao. O primeiro
objeto de uma crtica, pelo fato de se revelar impotente na educao dos bantu e,
portanto, como empecilho ao processo de desenvolvimento do que ele acredita ser uma
civilizao bantu. Esse modelo, de acordo com Tempels, baseado na filosofia da
riqueza e prescreve o advento de uma civilizao econmica. A implantao deste
modelo entre os bantu se reflete no comportamento dos indivduos mais jovens, os mais
avanados, denominados por Tempels como os evoludos. Com efeito, a crtica de
Tempels sobre os evoludos se arvora na opinio dos baluba mais antigos, segundo a
qual o dinheiro lupeto, em kiluba se tornou o valor supremo para os mais jovens.
Alm disso, nessa perspectiva, civilizao significa principalmente melhoria das
condies materiais de vida. Enquanto o progresso dessas condies no for
acompanhado pelo progresso do ser humano, de acordo com a anlise de Tempels,
jamais haver um pleno desenvolvimento de uma civilizao bantu.
O segundo modelo de civilizao, que merece o elogio do autor, est justamente
relacionado ao progresso da personalidade humana. Na opinio de Tempels, no
exatamente o avano econmico, nem a melhoria das condies materiais de existncia
que interessam ao bantu diante dessa relao que se estabelece com os europeus, no
contexto da situao colonial. Ele acredita que o desejo mais forte que anima os
africanos, e, principalmente, muitos dos evoludos, o desejo de serem reconhecidos
como seres humanos pelos brancos.
O que eles querem mais do que qualquer coisa, no a melhoria de suas
condies econmicas e materiais, mas o reconhecimento e o respeito pelo
seu pleno valor como homens pelos brancos. Sua maior e mais profunda
tristeza a de que eles so continuamente tratados como imbecis, como
macacos (TEMPELS, 1969, p.178).
Uma leitura ingnua do texto de Tempels certamente passar ao largo daquilo
que, de acordo com Fanon, uma evidncia cabal, expressa como epgrafe deste
captulo: o racismo da sociedade (FANON, 2008, p.85). Tanto a tristeza do evoludo,
que no passa de um indivduo assimilado pela cultura do colonizador, como o
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sentimento confuso de Tempels, mesclado de compaixo, culpa e perversidade, para
mim, so casos de miopia. No caso do assimilado, a dificuldade em enxergar o racismo
da sociedade no contexto da situao colonial o impede de superar sua condio de
infeliz. No caso de Tempels, se h realmente essa dificuldade, ela simplesmente o
impele a reproduzir sua estrutura racista; e a superioridade europeia sobre a
inferiorizao do africano. A inferiorizao o correlato nativo da superiorizao
europeia. Precisamos ter a coragem de dizer: o racista que cria o inferiorizado
(FANON, 2008, p.90).
Do ponto de vista de Tempels, se a ontologia das foras vitais a razo de ser de
todas as instituies, organizaes polticas e sociais da vida dos bantu, ento o xito da
misso civilizatria europeia vai depender de uma estratgia de investimento em seu
pensamento ontolgico. Assim, o cerne da questo civilizatria deve ser o
fortalecimento ontolgico do muntu. Sem o conhecimento dessa ontologia, isto , a
partir de uma perspectiva estritamente tcnica, industrial e mercadolgica, o processo
civilizatrio que se pretende aplicar sobre os bantu estaria arruinado; esse conhecimento
deve ser um complemento necessrio.
Os bantu podem ser educados, se tomarmos como ponto de partida sua
aspirao imperecvel ao fortalecimento da vida. Se no, eles no sero
civilizados. As massas afundaro, em nmeros cada vez maiores, em falsas
aplicaes de sua filosofia; ou seja, em prticas de magia degradantes; e,
enquanto isso, os outros, os evoludos, formaro uma classe de pseudo-
europeus, sem princpios, carter, propsito ou sentido (TEMPELS, 1969,
p.184).
Veremos a seguir com o baraperspectivismo, que ser precisamente uma
experincia semelhante a essas prticas de magia degradantes, expresso que, alis,
denota a mesma opinio de Kant sobre a experincia metafsica dos africanos, como
tambm examinaremos a seguir; ento, uma experincia semelhante a essa magia
degradante refletida, por sua vez, no simbolismo dos rs, que ser discutida pelo
baraperspectivismo, sob o impulso do interesse em delinear as caractersticas mais
significativas para a formulao de nossa filosofia do trgico. E um dado interessante
desse trabalho que ele faz uma abordagem direta da cultura tradicional yorb, pela
anlise de sua mitologia, e uma abordagem indireta da cultura tradicional bantu, sob a
tica do sistema de Tempels sobre a sociedade tradicional dos baluba. Ora, as grandes
influncias africanas na formao da sociedade e da cultura brasileiras so oriundas dos
povos bantu e yorb. Diante da influncia do cristianismo no Brasil, e agora que
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examinamos a importncia atribuda por Tempels doutrina crist em contraste com o
que ele chama de prticas degradantes, mas que, na realidade, esto vinculadas a um
saber que at agora a filosofia no Brasil no contemplou devidamente, a sugesto de um
modelo pedaggico e civilizatrio baseado nas ideias de Tempels seria perniciosa.
Para ele, a doutrina crist possui uma funo civilizatria precpua. O
cristianismo o modelo sugerido por Tempels para atender a vontade de intensificao
das foras da alma bantu. Ele acredita que o cristianismo um sistema de pensamento
ocidental alternativo em relao ao modelo baseado na tcnica, na indstria e no
mercado, que, paralelamente ao pensamento bantu, tambm valoriza o fortalecimento da
vida. O que a doutrina crist da graa ensina, baseada na certeza da revelao, o
crescimento interno e intrnseco do ser, o fortalecimento ontolgico. Por isso, seria o
nico modo de proporcionar o alvio e a satisfao do esprito bantu. E isso o que foi
afirmado de forma categrica:
No seno no cristianismo que os bantu encontraro alvio para sua
nostalgia secular e a plena satisfao de suas aspiraes mais profundas, que
sem o dom gratuito de Deus, deveriam ficar para sempre insatisfeitas. E isso
o que me foi repetido por tantos bantu pagos (TEMPELS, 1969, p.186).
O equvoco de Tempels chega a ser monstruoso e ridculo. A proposta de
empregar o cristianismo como a base da formao de um povo colonizado no elimina o
sentimento de tristeza gerado nos indivduos. Se o sentimento de inferioridade nasce do
sepultamento da originalidade cultural, como vimos acima, de acordo com Fanon, ele se
intensifica com uma formao determinada pela doutrina crist. O cristianismo no se
contenta em sepultar, ele tem que ser a cruz na vida e na morte das pessoas. O projeto
da misso civilizatria apresentado por Tempels representa, num certo sentido, aquela
inverso de valores que Nietzsche formulou nos termos da oposio, Roma contra
Judeia; Judeia contra Roma (GM/GM, I, 16). Mesmo sem adentrar no problema da
originalidade e da autenticidade das culturas africanas, estou convicto de que em meio
s suas representaes, como entre os bantu e os yorb, tal como veremos em seguida,
encontram-se subsdios e valores incontestveis para a criao de saberes mais honestos
com a vida, mais corajosos e mais alegres, aptos a constiturem-se como alternativas
superao da tristeza e da alienao promovidas pela situao colonial. O que Tempels
no enxerga que o sculo XIX, ao redefinir os paradigmas da cincia, promovendo o
avano da tcnica, da indstria e do mercado, tambm promoveu o imperialismo
europeu na frica e nas Amricas, lanando-se contra seus povos com as garras do
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cristianismo. Uma coisa atrelada outra. Esse modelo civilizatrio nunca esteve em
condies de fortalecer realmente um indivduo ou uma cultura, basta examinar o que o
jovem Nietzsche formulou a alguns quilmetros de distncia e h cerca de setenta anos
antes da publicao de Filosofia bantu, quando publicou sua IV Considerao
extempornea, Wagner em Bayreuth, fazendo uma reflexo sobre a sociedade, o
trabalho e a arte na modernidade:
Assim como essa sociedade soube, atravs do uso mais cruel e mais hbil de
seu poder, tornar o mais despossudo, o povo, sempre mais dcil, humilde e
estranho a si prprio, e soube criar, a partir dele, o moderno trabalhador,
ela tambm soube subtrair do povo o mais grandioso e o mais puro, o que
este produz a partir de uma necessidade profunda e que comunica, como
verdadeiro e nico artista, generosamente de sua alma seu mito, seu canto,
sua dana, suas criaes de linguagem , para destilar de tudo isso um
remdio voluptuoso contra o esgotamento e o tdio de sua existncia: a arte
moderna (WB/WB, 8).
O que a crtica do jovem Nietzsche aborda como aquilo que foi subtrado pelo
trabalho na modernidade, ou seja, aquilo que tem o poder de exprimir a grandiosidade
de uma cultura atravs de seus mitos, dos corpos de seus indivduos e de suas criaes
de linguagem, corresponde a uma potncia anloga mesma fora subtrada aos corpos
de africanos e africanas na situao colonial; algo que, de certa forma, tambm equivale
fora propulsora da alma de um grande artista, como diria Burckhardt
(BURCKARDT, 1943, 275); e que semelhante ao elemento trgico de uma cultura; ao
seu aspecto afirmativo; esse, sim, ao contrrio do que defendeu Tempels como ideal da
alma bantu, um sentimento de plenitude de todas as foras, sua potncia de
transformao do caos em um ideal esttico; pois, de acordo com Nietzsche, idealizar
no consiste, como ordinariamente se cr, em subtrair ou descontar o pequeno, o
secundrio. Decisivo , isto sim, ressaltar enormemente os traos principais, de modo
que os outros desapaream (GD/CI, Incurses de um extemporneo, 8). Assim,
decisivo numa interpretao que procura ressaltar os principais traos da cultura
tradicional de um povo colonizado no contexto da situao colonial, ter a certeza de
que tipo de ideal se quer construir. Tempels acertou em ressaltar o fenmeno das foras
vitais, mas errou em subordin-las ao cristianismo. Principalmente porque, com isso,
no percebeu que as desligava de um fundamento irresistvel; contra o qual, no fundo,
no se pode lutar o corpo.
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3.
Com a elaborao de seu sistema filosfico sobre os baluba, Tempels tambm
est determinado a cumprir mais um objetivo. No se trata somente de fornecer as bases
de uma misso civilizatria, nem de adequar os valores baluba ao pensamento cristo.
Devemos considerar como um terceiro elemento na elaborao de Filosofia bantu, seu
esforo em elevar a alma do africano perante o leitor europeu, o colonizador de boa
vontade, a quem o livro foi endereado.
Trata-se de restituir a racionalidade negada ao negro que, depois de Kant e de
Hegel, passando por Carl Gustav Carus e Gobinaeu, at Lucien Lvy-Bruhl, havia se
tornado privilgio dos brancos da Europa6. Entretanto, parece que at o sculo XX a
racionalidade permaneceu enclausurada na escurido da alma primitiva do negro, j
que necessitou do auxlio de um Tempels para ganhar uma expresso digna de sua
soberania perante o mundo ocidental. Na verdade, toda a argumentao do missionrio
belga, ao se esforar para demonstrar a lgica que permeia a linguagem, a organizao
social e as instituies na vida dos baluba, pretende contribuir para a compreenso, por
parte dos colonizadores, das necessidades do homem primitivo, ou seja, dos mais
profundos anseios, desejos e aspiraes da alma bantu. Com isso, sua misso
civilizatria ficaria completa.
Com efeito, Filosofia bantu se enquadra no conjunto dos discursos com
pretenso filosfica, definidos por Hountondji como etnofilosofia. O trabalho de
Tempels exemplar e expe de um modo to completo as caractersticas que permitem
classific-lo como etnofilosofia que, antes mesmo de examinarmos o argumento do
prprio Hountondji, permito-me a afirmao de que o projeto da etnofilosofia para a
frica e para os povos pretos em geral messinico. Porque, na tentativa de reabilitar a
condio humana e a racionalidade desses povos, ele implica, em primeiro lugar, em sua
salvao; e, em segundo lugar, de um modo mais fundamental, implica na prpria
salvao do mundo ocidental.
Conforme examinamos, Tempels acredita que o cristianismo seria o nico
sistema de pensamento ocidental capaz de corresponder s necessidades mais bsicas da
alma bantu, devido a uma homologia de princpios, que ele identifica na doutrina
crist e na base da filosofia bantu. Tanto no cristianismo, quanto na filosofia bantu das
6 Veremos adiante as respectivas colocaes de Kant e de Hegel a respeito do negro.
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foras vitais, ele aponta para o princpio de intensificao das foras, atribuindo-lhe a
causalidade de uma peculiar operao civilizatria: a passagem de uma perspectiva pag
das foras vitais, para uma perspectiva propriamente sagrada porque espiritualizada,
eclesistica. Dito de outro modo, a compreenso desta noo de intensificao das
foras vitais, ou de fortalecimento da vida, tal como ela aparece na formulao de
Tempels sobre a filosofia bantu, permitiria ao colonizador efetuar a catequese e o
domnio daquela populao, suplementao necessria ao xito do projeto civilizatrio
europeu. Com efeito, existe uma continuidade entre dominao poltica e econmica
um dos aspectos de sua misso civilizatria, tal como devemos compreender, segundo o
livro de Tempels, e dominao moral outro aspecto que caracteriza essa misso; como
podemos deduzir da seguinte afirmao:
Uma das melhores coisas que os europeus trouxeram para os africanos foi seu
ensinamento e o exemplo em matria de produo. A industrializao,
entretanto, a introduo de uma economia europeia, o aumento permanente
da produo tudo isso no necessariamente medida de civilizao. Ao
contrrio, isso pode levar destruio da civilizao, se no houver uma
devida considerao do homem, da personalidade humana. (TEMPELS,
1969, p.172).
Evidentemente, o aspecto poltico e econmico e o aspecto moral so apenas
duas faces do mesmo problema. No contexto da situao colonial, na vida da
escravido, do trabalho, da guerra, da poltica e da cultura, na realidade, esses aspectos
se encontram em amlgama. Porm, constituem-se como dois polos bem definidos por
Tempels, devido sua necessidade de contrapor o modelo civilizatrio cristo, com o
qual ele privilegia a formao da personalidade humana, ao modelo baseado no
incremento dos meios de produo, que privilegia a tcnica e a indstria. Mas, do ponto
de vista dos prprios povos africanos e, por extenso, a partir do baraperspectivismo,
so dois modelos que se complementam. Por um lado, Tempels supe uma
descontinuidade entre ambos; por outro, so vistos como dois modelos que colaboram
com a manuteno da ordem na situao colonial, no eliminam a condio de
indigncia dos povos pretos e impedem e diluem intensivamente a possibilidade de
qualquer modo de expresso de um pensamento negro independente dos valores
projetados pelos modelos europeus de pensamento. Se que o fenmeno da
racionalidade consiste efetivamente numa ddiva de todos os seres humanos, ento,
depois que o negro foi embrutecido, animalizado e usurpado desse dom pelos discursos
cientficos e filosficos na modernidade, a razo algo que no precisa nos ser
restitudo. Pois, tal como j observamos com Fanon, foi em nome da razo que se
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decidiu, e que ainda se decide, o extermnio da humanidade. A contribuio de Kant
para o desenvolvimento da cincia e da filosofia algo que marcou para sempre a
histria do pensamento mundial, assim como seu juzo de valor sobre os povos
africanos:
Os negros da frica no possuem, por natureza, nenhum sentimento que se
eleve acima do ridculo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um
nico exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre
os milhes de pretos que foram deportados de seus pases, no obstante
muitos deles terem sido postos em liberdade, no se encontrou um nico
sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na cincia, ou em qualquer
outra aptido; j entre brancos, constantemente arrojam-se aqueles que,
sados da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestgio, por fora de
dons excelentes. To essencial a diferena entre essas duas raas humanas,
que parece ser to grande em relao s capacidades mentais quanto
diferena de cores. A religio do fetiche, to difundida entre eles, talvez seja
uma espcie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridculo quanto parece
possvel natureza humana. A pluma de um pssaro, o chifre de uma vaca,
uma concha, ou qualquer outra coisa ordinria, to logo seja consagrada por
algumas palavras, tornam-se objeto de adorao e invocao nos esconjuros.
Os negros so muito vaidosos, mas sua prpria maneira, e to
matraqueadores, que se deve dispers-los a pauladas (KANT, GSE: AA 02:
102).
Dignos de nada alm da irriso e da violncia que suspeita mais apropriada
no deveramos lanar sobre a universalidade do imperativo categrico? Com efeito, o
que se tornou universal foi o discurso da diferena antropolgica e epistmica entre
negros e brancos, ou, como diria Kabengele Munanga, essas diferenas se tornaram
definitivas, absolutas (MUNANGA, 2009, p.33). Num texto sobre o imperativo
categrico, Giacoia, reproduzindo Kant, informa que o nico fim que no meio para
nenhum outro o prprio ser r