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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ) GT15 - Pensamento Social no Brasil Funções políticas da intelligentsia – desenvolvimento, democracia e projetos nacionais CEPÊDA, Vera Alves (UFSCar) ANDRADE, Thales Novaes de (UFSCar) DEFFACCI, Fabrício Antonio (UNESP)

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Page 1: Sbs2009 GT15 Vera Alves Cepeda

XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ)

GT15 - Pensamento Social no Brasil

Funções políticas da intelligentsia – desenvolvimento, democracia e projetos nacionais

CEPÊDA, Vera Alves (UFSCar)

ANDRADE, Thales Novaes de (UFSCar)

DEFFACCI, Fabrício Antonio (UNESP)

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Resumo: O protagonismo intelectual e a ação da intelligentsia foram elementos centrais no processo de modernização da sociedade brasileira em várias fases: constituição da identidade nacional (independência/república), o nacional desenvolvimentismo, a luta democrática. A tese do atraso (depois subdesenvolvimento) ancorou e fortaleceu a noção de que a tarefa de formação da nação independente passava pela teorização, racionalização e intervenção orientada do planejamento. Aqui 2 dimensões se mesclam – a valorização da intelligentsia estava ligada ao problema da nação e como parte de sua consciência. Pretende-se aqui analisar este trajeto e avaliar o impacto que o esvaziamento da tarefa intelectual (fase atual da tecnociência) produzirá na desarticulação tanto de um ator relevante quanto da fragilização do projeto nacional (ainda problemático ou inconcluso) pelo esvaziamento do pensamento social. Palavras-Chave:

Pensamento político contemporâneo; intelectuais; desenvolvimento;

nacionalismo

Modernidade, modernidades

Nos estudos sobre o processo de modernização brasileira o problema da

intelligentsia1 aparece reiteradas vezes de forma intensa e diferenciada: num

primeiro momento de maneira positiva e pró-ativa (nas múltiplas fases e facetas

dos anos 20 aos anos 80 do século passado) e desde o final dos anos 80 sob o

signo da suspeição e paulatinamente esvaziada de funções normativas. Tal

fenômeno não ocorre por acaso, mas, ao contrário, obedece aos imperativos

das metamorfoses econômicas e culturais subjacentes ao devir da lógica do ser

moderno, especialmente aquelas que conjugam conhecimento com arranjos

produtivos ou políticos, e que afeta, de maneira distinta, países desenvolvidos e

países ainda em situação de vulnerabilidade econômica.

Para que esta afirmação faça sentido convém assinalar primeiro que o

termo Modernidade é utilizado aqui como expressão daquele movimento

1 Utilizamos aqui a noção clássica de intelligentsia, composta pelo conjunto dos atores sociais responsáveis pela produção intelectual e representação simbólica de uma sociedade. Neste caso, a definição aproxima-se da concepção de intelectualidade orgânica (Gramsci), intelectuais portadores de síntese da weltanschauung (Mannheim) e do intelectual crítico (Sartre). Este grupo, composto prioritariamente pelos membros das comunidades acadêmicas, alarga sua fronteira funcional ao incorporar outros atores capazes de produzir representação social diretiva – policy makers, empresários, elites partidárias, jornalistas e literatos, sindicalistas, etc...

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econômico, social e cultural original no qual o paradigma tradição/comunidade

foi substituído pelo de modernidade/sociedade, especialmente nos países

europeus que produziram a experiência do mercantilismo, da industrialização e

da construção do Estado Moderno. Este último paradigma corresponde

historicamente à emergência da sociedade urbano-industrial, da racionalidade

contábil, do culto do individualismo e do progresso, da liberdade e dos direitos

políticos pessoalizados. No entanto, a modernidade pode ter nascido única, mas

com certeza se multiplicou em efeitos e modelos desde então. A idéia de uma

economia de mercado e de acumulação, o esfacelamento da autoridade calcada

na Tradição e a crença na Razão Iluminista modelaram um seminal arranjo do

“ser moderno” que equivalia a uma força única do estágio civilizatório2.

Uma primeira cisão desta cosmovisão unitária ocorre quando das

evidências factuais e teóricas que brotam, no início o século XX com a

descoberta do fenômeno da pobreza e do subdesenvolvimento. Diante de

nações impossibilitadas de absorver as vantagens da civilização e do progresso,

o mote de uma modernidade que se espraiasse homogênea e harmonicamente

no grupo das sociedades que abraçassem a divisão internacional do trabalho,

cederia lugar a uma nova interpretação da lógica do “desigual e combinado”. As

relações de assimetria centro/periferia revelavam a existência de uma lógica

sistêmica que sob o discurso de uma “unidade” produzia e reproduzia a

diferença. Neste contexto, a idéia de um processo universal seria

paulatinamente substituída pela de movimentos de tensão e mesmo contradição

entre as nações desenvolvidas (centrais) e as subdesenvolvidas (periféricas).

Os tempos desiguais do desenvolvimento apareciam expressados no conceito

síntese de capitalismo tardio.

O impacto da pobreza e do atraso (característicos dos países do Terceiro

Mundo, da orla explorada do colonialismo) implicaria, no campo teórico, no

questionamento da visão universalista proposta por Adam Smith e David

Ricardo. A perspectiva de um capitalismo promotor e distribuidor de progresso

técnico (na teoria das vantagens competitivas e na tese dos vícios privados – 2 Exemplos pertinentes são a captura da ordem civilizatória na tese da Filosofia da História (em Kant e Hegel), na tese da Revolução Burguesa (em Marx), nas teorias da racionalidade legal e na da razão instrumental, respectivamente em Weber e escola de Frankfurt, na teoria da modernização funcionalista (em Parsons).

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benefícios públicos) cairiam em descrédito. Ao se aceitar as assimetrias (tanto

faz se de maneira intencional ou não), a História deixa de ter naturalidade,

emergindo em seu lugar as abordagens históricas locais: o subdesenvolvimento

sendo um produto historicamente constituído faz parte da maneira singular com

que cada nação incorpora-se (ou é incorporada) ao desenho da modernidade

ocidental.

Este é o momento em que os esforços da intelligentsia dessas nações se

afastam da das explicações liberais hegemônicas (no aspecto econômico e

político), aventurando-se com empenho na elaboração da interpretação nacional

e no tema da formação histórica. Faz parte dessa rotação também, uma

mudança de finalidade do conhecimento – agora local no objeto e no método, e,

ao mesmo tempo, orientado para a superação do atraso. No caso brasileiro as

obras pioneiras de Capistrano de Abreu, Pandiá Calógeras, Azevedo Amaral,

Oliveira Vianna, Roberto Simonsen, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.

e Celso Furtado são manifestações desse espírito. Embora com formatos e

temas diversos, o eixo que une autores tão distantes cronologicamente é o

enfoque da história enquanto sistema, enquanto conjugação de fatores

abrangendo as dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais num todo

complexo que seria a trajetória da formação nacional.

A percepção de vias de desenvolvimento distintas para a modernidade

econômica inicia sua trajetória teórica na obra do economista alemão Friedrich

List (Sistema de Economia nacional, publicada em de 1848), e encontraria ecos

nas obras posteriores de Ragnar Nurske, Rostow, Myrdall e Barrington-Moore.

Para a América Latina, aprofunda-se nos esforços teóricos levados a cabo pelos

intelectuais do ISEB, da Cepal e da teoria da dependência. O importante a

assinalar aqui é que estas interpretações originam-se na crise da explicação

naturalista do progresso, calcada na internalização das práticas econômicas

capitalistas (determinadas pelas demandas externas da divisão do comércio

mundial) como origem de toda dinâmica de superação de situações de atraso

(não necessariamente, e somente, pré-capitalistas). Sem a evidência

irretorquível da pobreza, a crítica e a produção de novas visões da modernidade

não teriam força suficiente para a formulação de novos paradigmas.

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Pós-modernidade, hermenêutica, multiculturalismo - – uma ciência sem

política?

Outro elemento central para entendermos como a modernidade se

metamorfoseou em modernidades tem a ver com sua própria lógica interna –

que migra da noção de evolucionismo ou progressão restrita até a multiplicidade

infinita das concepções pós-modernas. O efeito intrínseco e contínuo das

transformações tecnológicas, materiais e simbólicas acelerou-se de maneira

vertiginosa no século XX, em especial na sua segunda metade. Basta, para

entendermos esta questão, observar a mudança nas formas produtivas entre a

Segunda Revolução Industrial (último quartel do século XIX) e a Revolução

Tecnológica dos anos 60/70. O surgimento de novos produtos, novas formas de

produzir, nova divisão do trabalho, aliadas à mudança da concepção mesma de

natureza (efeito da nanotecnologia, da biotecnologia, da astrofísica e da

invenção do espaço virtual) implicou na percepção radical da autonomia do

trabalho. O quase irrestrito poder da ação enquanto o vórtice de uma lógica

exponencial ad infinitun foi assimilada nas teorias da ação (Arendt, 1989; 1972),

reflexividade (Giddens, 1997, 1991), risco (Beck, 1991), democracia fugidia

(Wolin, 1996). As bases materiais, a identidade e as relações de sociabilidade, a

dimensão simbólica e política tornaram-se fluídas em si mesmas, reafirmando

(em novas e menos otimistas bases) a visão seminal de Marx de que tudo que é

sólido desmancha no ar. Desta forma, a modernidade não pode ser apreendida

antes de se tornar algo; e quando se torna, no mesmo instante migra para outra

manifestação fugidia. A idéia de uma antropologia fundamental da ação3 é a

matriz da nova agenda de temas e de dilemas apresentado ás Ciências Sociais

na fase recente da modernidade radical ou da pós-modernidade4.

O raciocínio até aqui exposto serve como demonstração de que se a

concepção ontológica do moderno muda, a sua apreensão cognitiva, seu

3 Analisar a diferença deste conceito em Hannah Arendt e na sociologia reflexiva – do campo político para a trajetória exponencial e parcialmente contingente da teoria reflexiva. 4 Lembrar que não são sinônimos, mas interpretações distintas que nascem do reconhecimento do estágio diferenciado da vida social hoje (isso une), divergindo sobre se essa etapa caracteriza uma nova lógica societal ou se apenas é expressão última do desenho já definido pelo individualismo racional instrumental e as regras do capital anteriormente postulados por grande parte da literatura das ciências humanas.

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approach epistêmico também. N desenvolvimento desse processo é possível

apontar para três momentos fundamentais, mas distintos de combinação desses

pontos (concepção ontológica → papel do conhecimento):

• fase do universalismo (I) naturalismo e História Única utopia

do progresso / evolução como movimento natural

• fase das assimetrias (II) (descoberta do problema da

desigualdade) utopias nacionalistas / evolução como movimento artificial e

planejado

• fase da mundialização e da globalização (III) Global (universal)

x Local (cultural) fim das utopias versus multiculturalismo, reflexividade e

tecnociência.

Para cada uma dessas fases, tanto a função quanto a finalidade do

conhecimento muda, incluindo a função destinada ao grupo social encarregado

da produção de conhecimento. Esse fenômeno é mais visível quando tratamos

das mudanças ocorridas no campo das Ciências Humanas, até porque é este

campo de saber que é encarregado (dada a divisão do trabalho intelectual que

caracteriza a produção do conhecimento no mundo moderno) de sondar a

ontologia de configuração da própria modernidade e também de problematizar o

destino capaz de ser alcançado pela razão e ação humanas em movimento5.

Pensamos que para cada uma das fases acima apontadas correspondem os

seguintes modelos de conhecimento, esboçados no quadro abaixo:

Quadro 1. Bases e paradigmas cognitivos – caracterização do papel da CPC

Fase Pressuposto Problemas epistemológicos Validação I História Única - Objetividade -Descoberta dos fatos

5 Queremos aqui assinalar que é no campo das Ciências Humanas - e mais especialmente no trabalho das Ciências Sociais - que podemos encontrar a apreensão global do conjunto de fatores que orientam, modulam e determinam os usos que se faz da ciência. Apenas esta área pode propor uma sociologia do conhecimento - cenário mais plural que a Teoria do Conhecimento (adstrita a processos cognitivos e menos determinações sociais) e menos reduzido que a Sociologia da Ciência (– focada na ação da comunidade produtora de conhecimento). Somente essa visão global, somada à capacidade de objetivação e crítica, permite a formação de um entendimento sobre os processos reais que transcendam a mera descrição (o reino do ex post), iluminando as possibilidades de transformação orientada. Na última parte deste artigo este tema voltará a ser tratado quando da discussão do caráter pretensamente político das novas gestões de P&D e da democratização da comunidade científica pela nova agenda de concertação na área de Comunidade Produtora de Conhecimento (CPC).

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Universalismo Leis naturais - método no conhecimento dos fenômenos sociais

sociais (ou sua lógica) - Positivismo

II

Assimetrias

Descoberta da desigualdade

nos ritmos históricos

-Multiplicação de paradigmas teóricos -Emergência de conceitos como ideologia, utopia, racionalização, planejamento -Utopias nacionalistas - movimentos socialistas -Desenvolvimento artificial e promovido

-Função social do conhecimento -racionalização mannheineana; -desenvolvimentismo - marxismo -historicismo hermenêutico

III

Mundialização

Multiculturalismo Relatismo

Reflexividade

-Arranjos trans-epistêmicos -comunidade científica -concertação entre empresários, Estado e cientistas

- Finalidade prática - socialmente constituída -Tecnociência

Tomando-se esse quadro como plausível, é preciso investigar como nesse

movimento se deram mudanças significativas na definição das funções das

ciências sociais e do papel do intelectual; em segundo lugar, analisar como este

percurso se deu no caso do Brasil (tomado como tipo de sociedade

subdesenvolvida ou periférica), uma vez que aqui o modelo de intelligentsia é de

grau forte, valorizando o protagonismo social e político dos intelectuais na tarefa

do desenvolvimento nacional; por último, analisar a combinação recente entre o

paradigma internacional (do absenteísmo intelectual e sua conversão em

produtor técnico ou de tecnologia) e o caso brasileiro, procurando num esforço

de aproximação, avaliar o impacto que a ausência de projeto de futuro orientado

pode causar a uma modernidade ainda inconclusa e dilemática.

O protagonismo dos intelectuais na vida política brasileira

Conforme anteriormente destacado, tomamos como ponto de partida neste

trabalho que a modernidade enquanto processo foi alterando sua própria

representação através, em grande medida, das formulações teóricas

encarregadas de absorver sua essência em termos cognitivos. As mudanças de

paradigmas nas Ciências Sociais são fundamentais para entender a percepção

social que se faz do mundo em que vivemos e suas alterações semânticas. Isso

não implica, obviamente, em afirmar a autonomia por parte das Ciências Sociais

diante das demais esferas e estruturas societais. Ao contrário, o que se quer

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afirmar é que as teorias da sociedade (antropológicas, sociológicas, políticas,

históricas e filosóficas) são antes expressão dos processos sociais, que sem o

caráter estático de um simples espelhamento, operam como meio de construção

da noção de identidade, dos valores lógicos e operacionais do sistema. Mesmo

obedecendo a imperativos oriundos das necessidades do mercado, grupos

sociais ou Estado, esse movimento não é de pura representação, mas de

orientação na medida em que seleciona valores e/ou modelos que legitimam

certos aspectos das ações sociais em detrimento de outros, empurrando o

processo para diante configurando novas posições6.

Em termos do debate mundial este pêndulo temático oscilou entre dois

extremos: absenteísmo/neutralidade versus compromisso/intervenção

(Benda/Weber versus Mannheim/marxismo). Nos termos de um debate sobre a

intelligentsia brasileira esse fenômeno ocorre com outro ritmo de

desenvolvimento. Coetâneo ao amadurecimento institucional das Ciências

Sociais no país (passagem do ensaísmo para a adoção do modelo acadêmico-

científico e deslocamento das produções do pensamento social para o locus das

universidades e institutos de pesquisa), firmava-se o paradigma da

responsabilidade social entronizado pela via do nacional desenvolvimentismo

(fortemente apoiado nos pressupostos da racionalização e no planejamento)7. A

maneira como no caso nacional a noção de um protagonismo intelectual se

forjou, é tributária do processo anteriormente apontado sobre a cisão ocorrida

no início do século XX sobre uma História e um progresso universais. Produziu-

se um deslocamento por parte da intelligentsia dos países periféricos na busca

de uma história singular, mais ajustada aos problemas específicos a serem

enfrentados pela condição de subdesenvolvimento.

6 As teorias explicativas (embora nem sempre sejam normativas) possuem um grau acentuado de poder, ao produzir, em cada etapa da vida social, a representação simbólica chave do sistema, ao mesmo tempo em que influencia dinamicamente a atuação futura. Mesmo as concepções intelectuais mais absenteistas não escapam da produção de um efeito social – sem projeto que nasça no raciocínio intelectual as escolhas sociais passam a procurar diretrizes em outras esferas, como na política, a economia, o direito, a intimidade, etc. O resultado é deixar os processos sociais sem projeto – o que já é uma orientação que invoca, em geral, o espontaneismo, a naturalidade das relações ou mesmo a recusa da capacidade epistemológica das ciências sociais 7 A influência do keynesianismo na economia e da sociologia de Karl Mannheim nas Ciências Sociais é parte dessa conjuntura histórica – a recusa da neutralidade do mercado e o primado do destino prático como corolário da ação dos intelectuais.

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O impacto da singularidade histórica brota da emergência da noção de

diferença temporal e de assimetria na expansão do capitalismo mundial desde a

fase mercantilista. Com o fim do colonialismo, a modernidade aparece dividida

em sua base material e na geopolítica mundial (nações são produtos históricos

diferentes), e desta cisão os países periféricos como o Brasil se aventuraram na

tarefa de se pensar de maneira autônoma e de produzir uma mudança orientada

de seu futuro. Na historiografia brasileira detectar a se na ruptura com os laços

metropolitanos a herança que nos ficava era um fardo ou um legado é parte

constitutiva desse trabalho original de procurar o que era autóctone e o que era

exógeno na transição para a nação independente8. O raciocínio interno versus

externo era chave cognitiva desta preocupação: separar o nosso, incluindo

deficiências, ancorava-se na idéia de construção, de impulso para frente, onde o

conhecimento sobre nossa natureza particular seria ponto nodal da produção da

nação brasileira. Tal movimento intelectual só seria possível quando a

multiplicidade dos processos históricos tornava-se não só visível, mas origem

das condições assimétricas de cada país no concerto internacional das nações.

No entanto, o movimento de elaboração de uma interpretação autêntica

revela-se como processo, marcado por movimentos que acompanham tanto as

mudanças materiais ocorridas no bojo da modernização econômica e social

ocorrida no período, quanto às mudanças de ajustes temáticos no campo das

formulações teóricas. Ao longo do século passado as teorias sobre a formação

nacional passariam por três momentos de reformulação: a) a fase das

interpretações institucionais e culturais (do inicio do século até a emergência do

planejamento econômico ao final dos anos 40); b) a fase das explicações de

matriz econômica - pobreza enquanto incapacidade estrutural para produzir

(teoria do subdesenvolvimento e nacional-desenvolvimentismo, anos 50 até final

dos 70); e c) exclusão como incapacidade social para distribuir

(redemocratização e Estado pós-ajuste; décadas de 80, 90 e virada do século

XXI).

8 Cf análise de Wilma Peres Costa em “A Independência na Historiografia Brasileira” in Independência do Brasil: História e Historiografia (István Jancsó, org).São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 2005.

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Na primeira fase, o debate sobre formação aparece aliado ao tema seminal

da identidade (base do povo e parte constitutiva da representação política

republicana). Mas mesmo nesse grande grupo, os temas centrais vão se

deslocando da questão do passado (legado) para as características do

presente, migrando sucessivamente das explicações mesológicas e étnicas para

o problema institucional, cultural e político. Somam-se assim formulações

originais como as de Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Paulo

Prado, Monteiro Lobato, Gilberto Freire, às de Varnhagen, Capistrano de Abreu,

Pandiá Calógeras, Roberto Simonsen, e as teses para as teses de Manoel

Bonfim, Alberto Torres, Gilberto Amado, Oliveira Vianna, entre outros... Nesse

conjunto podemos observar a mudança dos temas explicativos e dos recursos

de análise. Os temas mudam do determinismo biológico para as estruturas

sociais (cultura, mentalidade, instituições políticas). Também o método se refina,

incorporando cada vez a noção formação e a combinação sistêmica de todas

essas esferas. Faltava detectar qual delas seria a predominante e a ordenadora

das demais.

Antes de adentramos a fase seguinte, na qual o argumento econômico se

tornaria hegemônico cumpre fazer uma observação sobre a arquitetura desse

momento: para constituir-se a nação era preciso encontrar seu fundamento

(povo ou instituições), mas esta tarefa era expressão de um esforço da vontade

inteligente. Esta tarefa cabia, privilegiadamente, a camada dos intelectuais que

mesmo ainda presos, em maior ou menor grau, à tradição ensaísta, tinham

sobre os ombros a responsabilidade da compreensão da brasilianidade. Esta

ressalva ajuda a compreender a corrente das mudanças sociais que romperam

os cânones do bacharelismo, sedimentando uma finalidade prática e

responsável para a ação intelectiva. O chamamento aos novos ideais, a

descoberta da singularidade de nossa terra e de nossa gente, a recusa da

importação de idéias e a condenação das elites alijadas do amplo movimento de

mudança que lenta e silenciosamente (como queria Holanda) iam mudando a

face e as necessidades do país, é tema encontrado e reiterado em inúmeros

trabalhos dos autores citados. A responsabilidade pública e intelectual se

confunde tanto na “geração dos homens que nasceram com a República”

quanto na “geração dos homens de mil”, como ainda “uma elite harmoniosa que

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lhe ensine passos firmes e seguros”9. Ao contrário do diletantismo, do

bacharelismo e do conhecimento livresco, surgem no horizonte um novo tipo de

intelectual e uma nova forma de ver a ciência – aquela destinada a cumprir a

função de transformação e melhoramento da sociedade brasileira.

Outro processo global que auxilia a compreensão de uma nova rotação de

sentido (agora a partir dos anos 30 e dirigida para a configuração do nacional-

desenvolvimentismo) ocorre no bojo na crise mundial dos paradigmas liberais

que sacodem o mundo e o Brasil no período entre guerras. Os desajustes do

capitalismo central - crises cíclicas de superprodução e subconsumo,

esgotamento do paradigma neoclássico e surgimento regulacionismo

keynesiano (no plano econômico); experiências desastrosas dos totalitarismos e

das guerras (no plano político); advento das massas, da indústria cultural, da

alienação e do hedonismo consumista (no plano social e cultural) - havia

produzido um acirrado debate sobre a finalidade do conhecimento social e do

papel dos intelectuais na vida pública, valorizando em muito o caráter da

racionalização e do planejamento. No entanto, embora visível enquanto um

fenômeno mundial, a crise do liberalismo nascia de crises estruturalmente

diferentes, mas que se fortaleciam mutuamente no ambiente geral da recusa a

este postulado.

No caso dos países desenvolvidos do período (Europa e EUA) o

enfraquecimento do modelo liberal clássico tinha como suporte os desarranjos

do sistema – muitas vezes por caracterizar uma etapa de evolução qualitativa,

um salto schumpeteriano sob as virtudes de um arranjo keynesiano. Na outra

ponta, no campo da teoria social, quando autores como Mannheim, Toynbee,

Huizinga, Benda, Jaspers, Splender, Luckács, entre outros, discutem o

diagnóstico do nosso tempo, o problema central é o de pensar quais

ferramentas do conhecimento e do esclarecimento poderiam ser utilizadas para

neutralizar os desvios ou os excessos. Em ambos os casos, a crise ocorreu por

excesso de modernidade, e não pela sua falta. O liberalismo é abandonado por 9 A primeira é expressão de Vicente Licínio Cardoso em Á margem da história da República (editada pela primeira vez em 1924), destacando a necessidade de ajuste entre novos tempos (aqueles que não viram nem o Imperador e nem os escravos) e as novas idéias; a segunda na última parte de Instituições Políticas Brasileiras de Oliveira Vianna; e a última no discurso proferido por Roberto Simonsen na inauguração da Escola de Sociologia e Política (1933), e depois editado em livro intitulado Rumo à Verdade.

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ser incapaz de acompanhar os movimentos de continuidade (econômica e

política) que se abrem no período (ver, por exemplo, a crítica radical de Keynes

em O fim do laissez faire, ou a de Isaiah Berlin nos seus estudos sobre a

liberdade).

No caso das nações subdesenvolvidas o motor foi outro, e acentuou ainda

mais o papel e a importância dos intelectuais uma vez que neste caso estava

em jogo a constituição da própria modernidade e não o seu ajuste. A

intelligentsia na condição periférica é protagonista e não assessora, é produtora

e não parte do resultado da modernidade em movimento.

A terceira fase do pensamento social no Brasil apresentaria, uma

desconcertante concentração de idéias no ferramental discursivo do

desenvolvimentismo e seu contraponto, a teoria do subdesenvolvimento.

Embora também com diferenças de diagnóstico e objetivos finais, a teoria do

desenvolvimento planejado foi capaz de aglutinar com enorme força a

esmagadora maioria dos autores e correntes que pensavam os problemas

nacionais no período. Um exemplo da importância deste tema aparece no

mapeamento sobre o pensamento econômico brasileiro nos anos 50/60 levado a

cabo por Ricardo Bielschowski10. Os grupos, identificadas pelo autor como

atuantes na formulação dos postulados do pensamento econômico da época,

são agrupados em quatro correntes: o neoliberalismo, os desenvolvimentistas

(subdivididos em setor público nacionalista, setor público não nacionalista e

setor privado), os socialistas e os autores independentes. E destas, apenas a

primeira pode ser afastada da influência do diagnóstico do atraso brasileiro ou

do corretivo do planejamento estatal (em maior ou menor grau).

Com certeza, alguma coisa ocorria no pensamento social brasileiro da

época para que autores tão díspares quanto Roberto Campos, Nelson Werneck

Sodré, Roberto Simonsen e Celso Furtado falassem uma linguagem

semelhante. Um primeiro ponto desta confluência a ser tomado como dado para

análise é a supremacia da argumentação e teorias econômicas sobre os fatos

10 Bielschowski, Pensamento econômico brasileiro – o ciclo ideológico do desenvolvimentismo, Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988.

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sociais. Com início passível de ser fixado na década de 4011, este predomínio da

economia no entendimento da realidade brasileira (e da resolução de seus

problemas) permaneceria incólume até o final dos anos 70.

E é exatamente esta percepção, o problema econômico como fundamento

de todos os demais problemas nacionais, que permite que as correntes teóricas

margeiem, sem muita possibilidade de afastamento, a tese central do atraso

brasileiro, da necessidade de algum tipo de intervenção do Estado e de

planejamento econômico. Diferentemente das fases anteriores, em que o acento

do problema de nossa formação era cultural ou político, a teoria do

subdesenvolvimento toma como origem das mazelas brasileiras a incapacidade

de implantar de forma plena a industrialização no país. A aceitação do

pressuposto econômico forçaria a proximidade das correntes teóricas,

constrangidas pelo rigor do raciocínio lógico a caminhar de uma assertiva à

outra. O assentimento sobre nosso atraso econômico impulsionava ao corolário

corretivo do planejamento – afinal, que outra maneira haveria de contornar um

limite natural da economia que não fosse o recurso a uma estratégia artificial?

Ficavam de fora dessa matriz os pensadores que não aceitavam a condição do

atraso como dado estrutural da realidade econômica e que, portanto, mantinham

intactas e íntegras suas convicções na naturalidade (ou espontaneidade) das

regras de mercado. Este é o caso do expoente mais conhecido do grupo liberal

(ou neoliberal, como na definição de Bielschowski), Eugênio Gudin. Desde as

primeiras formulações teóricas surgidas nos anos 30, Gudin modificara muito

pouco suas concepções. A única nuance que pode ser destacada é a aceitação

do crescente papel da indústria na arquitetura da economia brasileira, mas

mesmo aqui a fidelidade ao conceito de livre mercado é alta já que Gudin passa

a aceitar a importância da indústria porque ela existe de fato, da mesma forma

que a recusava antes por sua ‘artificialidade’. Mantendo intactos os princípios de

funcionamento da mão invisível, não há motivo para a aceitação do

planejamento.

11 Tomando como ponto de partida a criação do Plano Salte (1948), as resoluções dos congressos de economia, indústria e classes produtoras (1943, 1944 e 1945), a diatribe Simonsen x Gudin (1944), a criação da comissão provisória da Cepal (1948) e o lançamento do Manifesto dos Periféricos, por Prebisch em 1949.

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O panorama do pensamento econômico brasileiro, predominante entre

40/70, assimilou, no conjunto, duas convergências fundamentais: reconheceu a

questão econômica como centro da questão social - incorporada também como

a questão nacional - e identificou o problema econômico como o tema do atraso

na passagem para a industrialização. O grande grupo temático, assim

configurado, aparece nas análises e reflexões, posteriormente produzidas sobre

esta fase, denominada sob várias rubricas - pensamento cepalino,

desenvolvimentismo, centro-periferia, capitalismo periférico - que, malgrado

suas inúmeras diferenciações conceituais intrínsecas, aparecem associadas a

esse grande tema central – a percepção do tema subdesenvolvimento.

Como este conceito vigoroso surgiu no pensamento brasileiro e que

argumentos o transformaram no leitmotif intelectual da época? A hipótese

apresentada neste trabalho é que podemos detectar a emergência desta idéia

nas teses de Roberto Simonsen e, recebendo de Furtado o cinzelamento

conceitual final. São, sem sombra de dúvida, originários dos trabalhos de

Simonsen desenvolvidos nos anos 30, as primeiras afirmações sobre o atraso

como condição estrutural de nossa economia, decorrendo deste os demais

problemas sociais. Ao analisarmos os textos de Simonsen percebemos a

situação de vanguarda deste autor. Quando em 1949 ‘explode’ o Manifesto dos

Periféricos, a maioria dos argumentos ali encontrados, incluindo parte

significativa da concatenação, já se encontravam presentes em trabalhos

anteriormente publicados pelo autor12.

A análise simonseana trabalhava com várias denominações para um

fenômeno que ganharia crescente densidade analítica ao longo dos estudos do

autor e do debate nacional: inicialmente é tratada como pobreza, depois

pauperismo e, por último e de maneira mais refinada, no conceito de sub-

capitalismo. É também na produção teórica de Simonsen que encontramos a

passagem, feita ao nível da articulação conceitual e discursiva, da defesa do

protecionismo industrial pelo sucedâneo do planejamento econômico. Está em

seus textos a versão pioneira de planejamento, defendida avant garde em As

12 Um exemplo da anterioridade de Simonsen e sua influência sobre a formação do pensamento cepalino pode ser encontrada em Alguns aspectos da política econômica mais conveniente ao Brasil no período de após-guerra – geografia e política industrial, editado pela FIESP em 1943.

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crises no Brasil (1930), quando Simonsen avalia de forma comparativa as

diversas formas pelas quais as nações mais avançadas industrialmente teriam

realizado este processo. Destaca a eficiência racional do modelo alemão - onde

a ação coordenadora e planejadora do Estado fora fundamental para superação

dos obstáculos iniciais ao desenvolvimento da indústria, apresentando-a,

indiretamente, como modelo para o caso brasileiro. Em textos subseqüentes a

bateria de argumentos se aprimora até a versão mais lapidada dos anos 4013.

Na seqüência, a obra de Celso Furtado torna praticamente irretorquível o

deslocamento da questão nacional como epifenômeno do problema econômico.

Se podemos atribuir à Simonsen as primeiras formulações sobre o

subdesenvolvimento brasileiro, Furtado seria o responsável pela metamorfose

desta em teoria, escapando da preliminar constatação ad hoc e incorporando

uma leitura conceitual profunda tanto do fenômeno em sua historicidade quanto

em sua interpretação abstrata e conceitual.

A teoria do subdesenvolvimento é a parte inicial de um movimento

desdobrado em que os raciocínios se sucedem – sustenta o projeto do

desenvolvimento como projeto (superação, negação) e apresenta os

instrumentos para tal na forma do planejamento racionalmente orientado. Como

mudanças no campo da intelligentsia esta teoria exigia a geração de um

diagnóstico sofisticado sobre as condições do atraso, a elaboração de um plano

de superação e a existência de um corpo técnico capaz de sua execução.

Nessa primeira perspectiva a ciência produzida tem uma finalidade precisa – a

sustentação do progresso nacional – e esta tarefa, embora política em seu

sentido final, só pode ser alcançada e produzida pela competência técnica. É

desse “caldo de cultura” que emerge com força inédita a intelligentsia nacional,

o protagonismo dos intelectuais e sua interconexão com a vida pública. Também

desse desenho se destaca a aliança entre Estado e inteligência, entre função

pública e agenda científica.

Há aqui uma definição particular de ciência: empenhada na transformação

do futuro como algo público, orientado e construído. Uma definição do papel do

13 Planificação da economia brasileira (1944) e O planejamento da economia brasileira – réplica ao Sr. Eugênio Gudin (1945), além das propostas finais dos congressos econômicos em que a proposição simonseana de planejamento aparece legitimada pelo setor industrial.

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intelectual: o pragmatismo histórico e a função social do seu saber. E um arranjo

do espaço de ação e da agenda de atores nessa interlocução: Estado,

universidades e centros de pesquisa, setores progressistas do modelo de

desenvolvimento.

No caso brasileiro, a força de aceitação normativa da intelligentsia nasce e

se sustenta do problema de criar pelo artificialismo da vontade e da consciência

a modernidade. Ao contrário do modelo europeu do reajuste, aqui a tarefa é a

promoção. Não é de se espantar que no momento em que este cenário se

desmancha a forte oposição a uma intelectualidade supervalorizada seja quase

um desdobramento natural. Cumpre salientar ainda, que se na primeira fase o

desenvolvimento pode aparecer atrelado a um projeto humanista e democrático

(como a perspectiva de Furtado em que desenvolvimento é holístico –

integrando dimensão econômica com arranjos institucionais e finalidade

política), a partir do Regime Militar este assume a sua mais radical faceta

tecnocrática.

No caso do projeto furtadiano (tomado como a melhor expressão do

nacional desenvolvimentismo com regime político aberto) a intelligentsia

proposta observava o modelo mannheineano: é controlado duplamente pela

síntese (a tarefa dos intelectuais é comporta-se como elemento de fusão das

idéias originadas nos grupos sociais – portanto não possui idéias a priori e nem

ex-ante o próprio processo de clivagem social em grupos) e pelo modelo de um

planejamento democrático. A pergunta subjacente a proposta de Furtado é a de

quem controla os controladores? Muito diferente é a arquitetura de relações que

em meio a um regime fechado e a mecanismos de legitimação política baseada

na lógica burocrático-autoritária, em que o diálogo com as demandas sócias é

interrompido pela ditadura, ao mesmo tempo em que a intransparência política e

a ausência de controles verticais e horizontais (via sociedade civil, accountability

e visibilidade pública) produzia a autonomização do Estado sobre a sociedade –

e por extensão o aumento do poder decisório dos técnicos. lyt

A crítica a este modelo é feita por autores como Fernando Henrique

Cardoso em sua teoria dos anéis burocráticos, Luiz Carlos Bresser Pereira, com

a formação da tecnocracia e por Guillermo O´Donnel no modelo burocrático-

autoritário. Em comum nestes autores temos a idéia de transformação dos

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recursos do desenvolvimento (planificado e sustentado financeiramente pelos

fundos públicos) em moeda política, em correia de constituição de uma rede de

trocas que legitimava ou amparava o regime diante da sociedade brasileira.

Grande parte da própria força do desenvolvimento planejado foi esgotada

em função desta perversão e desta estratégia de ancoragem política. A verdade

é que a excessiva centralização de toda energia desenvolvimentista na arena

excessivamente centralizada do Estado brasileiro (permeada por técnicos e por

lógicas de barganha corporativa), fortemente localizada no executivo e nos

policy makers afastou o consenso da valorização tanto do planejamento quanto

da racionalização das demandas nacionais. Por outro lado, com o Regime Militar

grande parte da intelectualidade brasileira independente, ou foi duramente

perseguida pelo novo governo ou desviou seu foco agora para a tarefa imediata

de desmanche da ditadura. Verdade é que também a intelligentsia nacional

desenvolvimentista, fortemente vinculada à idéia da função (responsabilidade)

social era mais próxima ao desenho republicano democrático e fora expurgada

do novo centro de poder. Sua tarefa agora passava a ser a da luta pela

redemocratização. Esta nova tarefa era também política, mas afastava-se do

esforço de propor uma solução de continuidade para o dilema do

subdesenvolvimento e do projeto do desenvolvimento. Somente em alguns

casos de intelectuais e centros de pesquisa alternativos ao engessamento

universitário promovido pelos militares (como o CEBRAP) associou-se á luta

pela redemocratização do país com a agenda de crítica do modelo teórico

nacional-desenvolvimentista, fonte da contribuição de duas análises originais: a

teoria da dependência de Cardoso e a crítica a tese dualista de Francisco de

Oliveira.

Mudanças na relação intelectuais e sociedade - possíveis efeitos

indesejáveis

A sociedade brasileira modifica significativamente suas instituições no bojo

da redemocratização, momento histórico em que as alterações políticas de um

novo contrato social (a Constituição de 1988) encontra-se, simultaneamente,

com o esgotamento da capacidade gestora do desenvolvimentismo sob moldes

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do Regime Militar e com o amadurecimento de várias das estruturas chave da

modernidade (parque industrial, racionalidade instrumental, urbanização).

Embora a modernização tenha se tornado um fato incontroverso, nossa

modernidade sofria dos efeitos deletérios da forte aceleração da mudança

através da queima de etapas. A excessiva centralização decisória por parte dos

gestores do desenvolvimentismo pela via estatal e a neutralização da

participação social permitiram a manutenção de mecanismos de distribuição que

premiaram (e fortaleceram) de atores portadores de interesses anacrônicos. A

exclusão social e a desigualdade econômica é parte desse resultado: da

premiação do capital em detrimento do trabalho, através da transferência direta

e indireta de recursos, pela capacidade de extração de ganhos via controle dos

salários e fechamento do mercado interno a competição internacional; na

manutenção do latifundismo e do regionalismo; pela perversa e desigual

distribuição de recursos e serviços estatais.

A arquitetura do Estado brasileiro pós 1988, obedecendo ao molde

federalista, propõe descentralizar recursos e decisões, dando voz e poder de

controle da sociedade civil. O desmanche da tecnoburocracia foi peça basilar

dessa proposta, acompanhada do redesenho formal do aparelho de Estado via

reforma promovida pelo MARE. Nas universidades o modelo de gestão técnica é

internalizado por força da enorme energia e fúria de inovação desvendada pela

Revolução da Tecnologia. A crise de paradigmas foi outro elemento fundamental

para a ressignificação da função da ciência e do lugar do intelectual.

No campo político, o fim das Utopias (no plural porque são três: o

comunismo real, o compromisso social-democrata e o desenvolvimentismo)

esvaziou o poder normativo e a expectativa de longo prazo e da mudança

orientada no campo das humanidades. O intelectual clássico – comprometido

(com a função social ou a revolução) – cede terreno para o pesquisador, o que

se aproxima do curto prazo, que produz a compreensão ou a regulação do

ambiente que o circunda, mas somente neste registro limitado.

Nas ciências humanas a crise dos paradigmas foi muito pesada. E são

vários (agrupados sob uma alcunha pequena demais para dar conta das

inúmeras facetas e ingredientes que o compõem): a mutação das forças do

historicismo hermenêutico em relativismo, a crise do paradigma do trabalho, o

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fim das classes, a financeirização e o valor intangível, a crise do universalismo e

a emergência do multiculturalismo, o enfraquecimento dos Estados e o recuo da

proteção social, o esfacelamento da privacidade e (paradoxalmente) do espaço

público, a crise das identidades... Se há um certo consenso de que os

paradigmas nas ciências da natureza também se rompem, no entanto, a

velocidade e a voracidade com este processo ocorre é muito distinto daquele

que envolve (ou consome) as ciências do social. E se Kuhn, Merton e Latour

afirmavam a presença da convenção como papel importante na formação de

paradigmas de todas as ciências, em meio a constelação caótica das ciências

humanas o papel das consensos humanos (na figura do pesquisador e suas

instituições de financiamento) é fundamental na sua autodefinição.

No novo modelo, denominado de tecnociência, a legitimidade da produção

intelectual das ciências humanas vem da capacidade de responder as

demandas informadas pela sociedade. A validação é seu ajustamento, seu uso

diante das demandas externas. O mecanismo de engenharia institucional que

promove esse ajuste é aquele em que o financiamento das pesquisas é pautado

numa agenda, definida numa espécie de concertação de interesses entre esses

órgãos, a CPC, os empresários (demandantes de tecnologia), o Estado

(demandante de diagnósticos, propostas, serviços para políticas públicas).

Numa primeira mirada, o modelo parece ser eficiente e democrático, na medida

em que força a comunidade intelectual a sair de seu reduto e discutir o uso

social do conhecimento com os diretamente representantes e usuários

socialmente “reais”.

No entanto, fica uma dúvida: a diminuição do escopo dessa decisão, ao

baixar à dimensão do imanente, a concertação dos interesses diversos, não

perde sua capacidade de transcendê-los? Grande parte da crítica inicial da

utopia do esclarecimento pautava-se na dúvida sobre a capacidade dos

indivíduos chegaram ao interesse “auto-esclarecido”. Claro é que a idéia é que

não se tratam de indivíduos, mas de grupos sociais funcionais, dos quais as

múltiplas lógicas (ou epistemes) em conflito produziriam uma síntese. Problema,

qual desses atores opera fora do esquema racional instrumental? Se os

pesquisadores aprenderam a baixar o horizonte das utopias para o “reino do

necessário”´, se precisam mover-se na adequação feliz entre seus esforços e as

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expectativas já presentes (porquê são a origem das demandas a serem

respondidas), não são mais capazes – e nem deles se espera isso – que

critiquem e procurem superar os sistema em outra direção. O Estado procura

regular os conflitos entre CPC, empresas e cidadãos-consumidores. Também no

seu caso a redução da amplitude de suas ações produz impacto semelhante ao

rapidamente demonstrado na comunidade acadêmica. Dos empresários não se

pode esperar projetos de futuro – a não ser retrocedendo a tese dos vícios

privados, benefícios públicos. Como imaginar soluções de futuro, implicando

inclusive perdas para setores poderosos do conjunto social, que ultrapassem a

barreira do “aqui agora”?

Como afirmamos no início deste trabalho, esta alternativa pode ser positiva

para sociedade em que a isonomia entre os atores e o tamanho das demandas

sociais seja real. Para sociedades com fortes assimetrias sociais, econômica e

políticas, ao que se some um déficit de recursos para superação desse quadro,

talvez não. Nesta conjuntura, esvaziar a noção de um futuro procurado, de

estabelecer atores ou instituições cuja tarefa seja garantir a manutenção da

nação e entregar-se a inércia das várias e multiformes lógicas de mercado pode

ser perigoso e arriscado.

Por último, não se propõe aqui retomar esquemas que a história já

invalidou – como o desenvolvimentismo e a tecnocracia. Mas talvez fosse

importante verificar o que, nestes eventos, foi desastroso e o que ainda pode ser

aproveitado uma vez que, convenhamos, o quadro do atraso não se solucionou

satisfatoriamente.

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