sebastiÃo uchoa leite - letras.ufmg.br · metáfora do limite e da morte. a imagem diante do...
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SEBASTIÃO UCHOA LEITE
OBRA EM DOBRAS (1960-1988)
desenho de Amilcar de Castro
1.
CORTES/TOQUES (1983-1988)
J
a célia e iurandir costa / guacira waldeck / marta helena e guilherme mendes
' '
UM OLHO QUE OLHA PARA DENTRO
Nessa história há um buraco em círculo por onde se vê a sala toda ·
e não há ninguém dentro
Por onde o herói espia e não vê NINGUÉM O artista (Roy Lichtenstein) enquadrou a metonímia: AND THERE'S NOBODY IN IT
o herói repete na tela Imaginem um círculo menor onde não se veria mais todos os ângulos: como saberia o herói detetive se havia ou não alguém?
1983
[9]
QUALQUER OBJETIVO
S em Dédalos e fcaros riscos metódicos leonárdicos . Nem homens-pássaros de Goya ou asas delta do acaso. O que interessa é o salto
antes do século XXV de Buck Rogers e Wilma sem esquecer a pistola de raios desintegrãdores para acertar de cima mira precisa a 500 m.
1982
[10]
JA VIMOS ESSE FILME
Um cadáver e um dossiê:
suspense italiano de eminentíssimos cadáveres. Eles afirmam que irão até o fim até chegar ao dedo que apertou o gatilho. Já se sabe o fim do filme: antes do cadáver já se conhecia o dedo. Só não se sabe como ocultá-lo. O único mistério é: Por que fazê-lo? Moral: Artistas perfeitos não precisam ocultar .pistas.
1982-1983
[11]
LENDO PUCHKIN
Ü s heróis não sabem ou
sabem apenas
o fim da própria história.
O leitor só sabe que há um fim
sem sofrimentos
hesitações
sonhos premonitórios
simpatias pelo diabo
entre um ponto e outro.
Ele sabe
que toda história tem tyesadelos
que está bem
o que termina bem
ou o contrário disso.
flá derrotados e vencedores
ou não há nenhum
e os pactos nem sempre se cumprem.
Fora
o que ficou convencionado
que é o fim da história.
O leitor está livre :
pode ler todas as ficções.
1983
[12]
NóS (PóS-ZAMIATIN)
Enquanto o club dos menos de 10
opera tecnologias de ponta
estamos no páreo:
fibras óticas
geradores-receptores de raios laser
transmissões simultâneas etc.
Quando menos você esperar
já se fez o anel perimetral de fibras óticas
interligando centrais
da zona sul à periferia
correio eletrônico
tevês interativas-bidirecionais
sinais de vídeo e áudio
intermetropolitanos
sem diafonias etc.
Enquanto isso operamos
nossos velhos sistemas psi
afônicos e diafônicos.
1983
[13]
VIENS, MON BEAU CHAT
1. transpirava ávido certo histérico
amador de mistérios também amante
de peles nácares
contrastando pelos
gatos pretos outra imagem: "pantera
que nos es dado divisar de lejos" símiles lunares -
de um animal igual :
espelhos segredos eletricidade (olhos)
vão do orgulho dos tigres
à pele femínea
[14)
2. quero igual: felina
pantera menina
bem ou mal nada valem apelos
mas só pêlos o furtivo das curvas
corpo elétrico: quero provar o choque
olhos metálicos : atravessem-me as idéias
sem os segredos
o ouro das metáforas
só a pele súmula cúmulo
1984
[15)
VIDA É ARTE PARANóICA
a vida futura
aquela que não se conhece não existe
o tempo
programado
digitado
viver apenas
nas galerias
entre amores vapores radares sensores
vida fuga
temporada de caça apenas correr
alma de replicante
até acertarem o plexo alvo perplexo
1984
[16)
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CORTES / TOQUES
Van Gogh cortou a orelha
O Pequeno Hans tinha pânico de cavalos
Landru qi:eimava mulheres
Manson & Família
Riscaram Pig com o sangue das vítimas
No subúrbio do Rio acharam
Mulher tapada numa cisterna
Papéis jornais recortes
Grandes entulhos e um canal
É difícil entender a desordem
Há um ano ela olhava o mar desta janela
Nefesh Nafs Atman
Que quer dizer alma?
Bombons envenenados no Japão
Parece a corcunda de Kierkegaard
Um toque de dedos rápido
O prazer de alfinetes Aqui é o limite : atenção
Como o punctum de uma foto
A orelha cortada é uma sinédoque.
1984
[17)
ENROSCADO NO SERPENS
E is-me: o eu-em-si
monstro
enroscado em silepses
ensimesmudo
no sono eulemental
entre as vias venenosas
de pesadelos cogumelos
apocalípticos euclípticos.
Eis-me: todos-os-eus
eusca tológico
eucríptico
eu-fim.
1984
[18]
ESBOÇO
S e você pensa
que poesia é escamoteação:
acertou.
Metafísica é ' a meta dos mandriões .
Mas se pensa
que é um escaveirado corrupião:
acertou também.
Linguagem é a mira dos idiotas.
1984
[19]
OUTRO ESBOÇO
A serpente semântica disse :
não adianta querer
significar-me
neste silvo.
Meu único modo de ser é a in
sinuosidade e a in
sinuação.
Não é possível pensar
a verdade
exceto como veneno.
1984
[20]
DEPOIS DE BORGES FILOLóGICO
A marelo amarillo amariello
yellow
As flores amarelas
Os amores amarelos
Os sorrisos amarelos
As desculpas amarelas
Inveja
Ciúmes
Melancolia
Bllis O pó das coisas
Que amarelecem com o tempo:
Papéis
Folhas
Líquidos
Humores
O próprio pó do tempo.
1984
[21]
IN MEMORIAM KHLÉBNIKOV
(Imitação de Haroldo de Campos)
R izombam? Sorrisateiros?
Sorrisônicos sosriem
Nunca sonrisais Mas irónicos-crónicos
Borrifas à sorrelfa
Sorrilfando rizumbidos
De esgares e esrisos
Maliciosos sorriciosos
1985
[22]
ri
PASSEIO
Marcelo Gama - coitado -
caiu de um trem por distração.
Não beberia naquele dià
o tal licor marasquino
e nem leria Cesário Verde (Ó Mestre
do "Sentimento d'um ocidental").
Pois bem - fláneur - ele
(Marcelo Gama)
adoraria o calçadão da Vieira Souto
e o vaivém de ondas e de gente
de gringos cor-de-rosa
a jeunes-filles-en-fleur com hiperglândulas mamárias.
Chamaram-me para uma volta
e uma água de coco.
Ela vai mais depressa do que eu .
Esqueci as asinhas nos pés.
Eu e Aquiles não somos mais aqueles.
1986
[23]
SfMBOLOS?
E las são de alguma coisa.
Desorientadas
mas atentas porque nos parecemos com elas.
Todas são paranóicas mas nada as destrói.
Sobreviverão:
às bombas de cobalto ou de nêutrons às de radiação residual reduzida às armas anti-satélite - -
aos lasers de raios X e de raios gama às armas de microondas
às armas de raios de partículas às bombas EMP às bombas de antimatéria às bombas cerebrais e a todo o plano MAD. Freqüentaram a biblioteca da Babilónia. Estiveram nas pirâmides de Quéops
Quéfrens e Miquerinos. Grandes amigas da poesia
e do pó.
1986
[24]
POST CARDS
E zra Pound
(olhando
de viés) MoVe aMONg the LoVers
of perfection aLONe
Gertrude Stein (mãos
no bolso do casaco)
boxeur das letras com Alice B. Toklas em off
Rilke (dedos cruzados) olhando para baixo: "Rosa, ó pura
contradição etc."
Mallarmé (xale xadrez nos ombros) com a plume "sur le vierge papier"
Eles pensavam que dominavam
essa áspide
1986
[25]
EMOFF
P ost-mortem
Sem mensagem
Sem memória
Sem miragem
Sem ante
Sem pós
Só
Com o
Pó
Miro a
Metade
Vivo o
Ver-me
1986
[26]
A LINHA DESIGUAL
Algumas coisas têm linha desigual:
as barracas populares
do Nordeste com seleçõe~ cromáticas
desiguais: igual em Paul Klee.
Idem as cores do xadrez-arlequim.
O xadrez é a lógica
As cores
são a antilógica.
Há uma linha que atrai
oculta na profusão cromática
como esse indecifrável nas mulheres
ou nos cascos das tartarugas
idem nas lajes antigas
nas rimas de Marianne Moore.
Nas cantorias de pés quebrados
ouço o fascínio símil da desigualdade.
1986
[27]
A LINHA DESIGUAL / 3.ª VERSÃO
dissimétricas Linhas
nas barracas policromáticas
do Nordeste : como em Klee.
Xadrez-arlequim: os ângulos
são a lógica. As cores
a antilógica. Uma
linha oculta na profusão delas
atrai. Como um perfume.
Tartarugas pedras etc. e tal
light rhymes de Míss-Moore
e pés quebrados de cantorias.
Ou o fascínio igual do desigual.
1987
[28]
LENDO PUCHKIN N.0 2
A s cartas não estavam
marcadas. Como os segredos
se transferem? Como
ganhar as apostas? (Cada
um de nós seria capaz
de pagar muito caro
para saber) . Joga-se
com tudo.
Joga-se com a espera e com o medo . Mas segredos
nem sempre se revelam.
Les ieux sont f aits: Ganha-se a aposta
mas o jogo se· perde.
A dama está morta
mas pisca um olho
e sorri éom mofa.
1987
[29]
Precisamos de inteligências radar
e sonar
para captação de formas. A poesia é um repto.
Não (necessariamente) um conceito.
Uma identificação de ecos por onde o ininteligível
se entende.
1987
[30]
DUAS VISITAS
Fui visitá-la com o meu black book
(mi!lha real Penélope era Drácula).
Mostrou-me o lay out do seu.
"Engraçado" eu disse "os seus
em cima e os meus em baixo: é a simetria pela inversão".
Telefonou: "Gostei muito do seu lúgubre livrinho preto".
Cinco anos depois foi a vez de ela me visitar.
Enquanto fiz um café
ficou de pé olhando o canal e o mar
em silêncio. Isso foi uni ano antes do salto.
1987
(31]
ELA, A PANTERA
Em Cat People a heroína, Simone Simon, está sempre voltando
para ver a pantera na jaula. Desde a primeira cena em que ela
desenha diante da jaula, sabemos que é ela a pantera. Ela é suave
e sinuosa. O herói se enamora, não por ela, mas pela sua felini
dade. É este princípio o que o envolve e o que envolve o filme
nas sombras. Quando a rival da heroína sente-se seguida, ela não
vê nada. É apenas a sombra que a persegue entre as folhas que
se mexem. Quando a rival mergulha numa piscina, o ambiente
está envolto em sombras. Não se vê a pantera, mas se ouvem
os rugidos em volta. A heroína se esgueira por entre as sombras
como na floresta, rapidamente- entrevista por entre as árvores.
Se a pantera é uma metáfora, ela é ambígua, pois tanto pode
ser da voracidade quanto da sedução. Ela é fascinadora justa
mente por se,r perigosa. Temos aqui uma ambivalência básica,
pois subterraneamente se identifica a ferocidade com o fascínio
da beleza felina. Mas ela não quer ser feroz. Se ataca os outros,
ela o faz porque isso é da sua natureza. E no fim de tudo real
mente nos seduz, pois todos nos identificamos com a solidão da
fera, que não ataca por maldade, mas porque deve.
1987
[32]
ESPELHO OBSCURO
Em Dark Mirrar, entre nós "Espelho d'alma", nas neves dos
anos 40, duas gêmeas, sendo ambas Olivia de Havilland, são
iguais em tudo, menos quanto às almas, que são opostas . A assas
sina e a inocente, a psicopata e a vítima, iguais e o reverso uma
da outra. O que é igual à idéia do espelho, insinuado como a
metáfora do limite e da morte. A imagem diante do espelho: o
seu igual e a sua negação. Desde o início sabe-se que uma en
cobre o que a outra fez, que uma matou e a outra oculta o crime,
só não se sabe quem é quem, o espelho sendo a morte da indivi
dualidade. Não se sabe qual está do lado de cá - o da inocência
- e o que está do lado de lá - o do reverso perverso. A trama
joga com a dúvida. Quem revela e quem engana? Quem é amada
e quem é temida? Quem estremece diante da palavra espelho?
O duplo sentido da alma e do seu contrário. A trama joga com
o sorriso da assassina e com o medo da cúmplice-vítima. O medo
transforma-se na verdade da norma, enquanto o sorriso pode ocul
tar o outro lado. É no equívoco entre os dois que se encontra o
enigma. Para a glória do enigma e da norma, o filme é dos bons
velhos tempos da dualidade do preto e do branco.
1987
[33]
AS RELAÇÕES PERIGOSAS
Em Black Widow duas feminilidades se encontram e se confrontam, a limpidez das águas e a insinuosidade da serpente . A agente,
símbolo da ordem, e a criminosa, metáfora da desordem. Confrontam-se almas e corpos. Mergulham no fundo das águas e usnm
máscaras. Os corpos oem torneados movem-se na fluida claridade.
A uma delas parece faltar o ar e parece estar sob a ameaça de morte iminente. Os corpos se tocam. Há uma luta? O momento
é simbólico do confronto. Nossa respiração está suspensa como o
ar. É o princípio do isomorfismo da narrativa. No final, quando,
sem máscaras, o jogo começa a ser desvelado, é que vem o segun
do momento simbólico, culmin;ntê. Debra Winger oferece a Teresa Russell, mergulhando nas águas cinza-verdes do olhar da outra, um presente de núpcias: um broche em forma de aranha venenosa, a Viúva Negra. Les jeux sont faits. Nenhuma dúvida no olhar de baixo para cima da assassina perseguida. Pois é a his- · tória de uma perseguição e de um fascínio. O homem entre as
duas é apenas o elo de uma identidade secreta. Quando a assas~ sina revela o jogo é a outra que está por trás das grades, ironicamente. E assim descobre-se também a duplicidade do jogo.
1987
[34]
>
MtNIMA CR1TICA
1. O infra-herói com sofrimentos
hiper-hepáticos
procura um fluido supercrítico
que lave tudo até o vago simpático.
2. Ele tem vários contrapoderes:
tosses elípticas e idéias anticríticas.
E anda em busca do pensamento perdido ·
no planeta Krypticon.
[35]
3. Está infectado com o vírus da antipercepção.
Com ele a physis nunca enlouqueceu pois jamais diz ser todo corazón.
4. Na verdade ele é todo coação:
é como um acuado joãocabral ou um valéry risível. Isto é: um joãocabral insólido que digerisse um pastel.
[36]
5. O não-herói busca o seu negativo: o seu dentro jack-the-ripper que não quisesse apenas matar. Mas muito mais: ver de fora as tripas .
6. As tripas sígnicas de um cozido especial com o caldo do sublime. Quer ver de fora a semântica da pança e tudo o que dela para fora se elimine.
[37]
7. Tudo o que se liquefaz em amargor e pura bílis.
Ele só pensa em tudo que é nada e que é tudo com lucidez amarela de pus e sífilis.
8. Menos do que pósqualquer-coisa ele está mais para o pó. Não de essências mas resíduo de varredura que se recolhe com uma pá.
[38]
9. Um pó neutro na sua composição química. Pó de ossos e de sangue e de outros
líquidos. Enfim são os pós da matéria de dentro: pós finos e grossos.
10. Os pós e o pus de uma antiidéia ou o verme crítico. A acidez que corrói todo o espírito das coisas e fecha tudo ao contrário da diarréia.
1987
[39]
A LINGUAGEM DO SUSTO
Em Meu tio o Iauaretê Guimarães Rosa disse mais do que disse. Não falou apenas de onças, mas dos felinos. Não da individualidade, mas da espécie. Não apenas isso, porque não só dos felinos, mas da felinidade. Pois falando de onças estava falando
também, sem dizer, da pantera, do leopardo ou do tigre. Isto é, do brilho dos animais noturnos, mesmo à luz do dia. Apenas falando de onças parece como se fosse só dos sertões das gerais. Mas se fala também da África ou de qualquer Lugar, onde passeiam os felinos. Ou do Tigre de William Blake ou da Pantera do Jardim des P1antes de Rainer Maria Rilke, ou ainda, por que não, do Black Cat de Edgar P~e e dos gatos que passeiam no cérebro de Baudelaire, e mesmo do pequeno gato preto e imóvel do "Olympia" de Manet. Enfim, de uma certa dimensão à parte do universo, onde se confundem noções como elasticidade de corpos elétricos, toques rápidos na superfície, 1uz incandescente nos olhos, maciez, astúcia e crueldade. Ou melhor, a linguagem da felinidade, cheia de silêncios, de saltos e sobressaltos. A linguagem do susto e da atenção. Do que se abate sobre algo e do
que sahe ficar agachado, à espreita. É a linguagem da família felina, da qual o protagonista onceiro é parente. Canguçu jaguarapinima, jaguaretê-pinima, suçuarana são tipos, a espécie é una. Na acuação, a fera é uma só, no pulo e no despulo, a onça acuada vira demônio. "Elas sabem que eu sou do povo delas". Cat People. O protagonista pode dormir com uma. Noutra, pode ver o maldoso, olhos de luz. Elas têm nomes próprios: Mopoca, Maramonhangara, Tatacica, Uinhúa, Rapa-Rapa, Mpu, Nhã-ã, Ti-
[40)
titaba, Coema Piranga e Maria-Maria, bonita mais do que alguma mulher: as fêmeas. Papa-Gente, Puxuêra, Suu-Suu, Apiponga, Petecaçara, Uitauêra e Uatauêra, que são irmãos, mas não sabem: os machos. Jaguaretê, meu povo. O universo da onça é feito de linguagem. Depois vem a vontade da metamorfose, o desejo de transformar-se em fera, urrando calado dentro dele. E depois, a metamorfose dentro da própria linguagem, em que o desejo de felinidade se transfigura em urro e gemido de fera acuada e ferida. No fim, a onça parece saltar do próprio texto e vem nos
incomodar com o seu uivo de dor, Uhm ... Ui ... Ui. .. Uh. ·. uh. . . êeêê . . . êe . . . ê . . . ê ... ' que naturalmente rima com jaguaretê. Acabou-se o terror, acabou-se a metáfora? E acabou-se
também o próprio texto.
[41)
O OUTRO LADO
A o passar pela Real Grandeza na rota Túnel Velho
antes do S. João Batista há uma placa no alto: O OUTRO LADO.
Além túnel há umà mestra de Tarot que me disse um dia ser O Enforcado minha carta central.
Será por isso que olho sempre para cima de ponta-cabeça e tudo é ao revés qual se eu estivesse plantado diante do outro lado.
1987
[42]
SEM TfTULO
Espero uma ligação. Não ouço passos nem ecos (Pássaros não arrancam de súbito.
Nenhum rumor.)
Que não vêm do outro lado.
A vida toda por um fio . O ar oco. Os sinais invisíveis .
1987
[43]
UM ENCONTRO NO DIA 30
Ü enigma do que acontece e do que NÃO acontece. Um balanço filosófico da vida tête-à-tête
numa varanda para o mar. No calçadão da Atlântica vem o homem com o mico que parece dar dentadas. Mas o mico é falso . Isso NÃO é a realidade que bate como um boxeur cego e dá dentadas de raiva mas não falsas. Fingimos que NADA aqui é real. Conversa e civilização no meio do burburinho. Corta.
1987
[44] '
REFLEXOS
Ac9rdo de repente e reajo com mal-estar ao relógio virado para
0 lado em cima do móvel, porque traz a idéia da indiferença. Se, quase, virado de costas, traria a idéia da morte. Os relógios me olham e fiscalizam o meu tempo. Também os fiscalizo, porque
·encarnam a idéia da provisoriedade. óculos que caem trazem tam-bém a idéia mortal da cegueira. E quadros tortos na parede refletem a idéia de desequilíbrio, de todas a que mais perturba . A desordem não é o meu forte. Se as coisas se desequilibram,
isso equivale a negar a vida? Mas, o que ela é, senão a desordem?
1987
[45]
RECEITA DE DRAMA NA SALA 16
(A woman of Paris, de Chaplin)
Eia joga pela janela
um colar de pérolas de verdade e depois corre para baixo para arrancá-lo de um clochard. No fim um papalvo enamorado se mata.
.t\ Madalena atrependida dedica-se aos orf ãozinhos. Um cupê de luxo dõ ex cruza por ela que vai - coitada -nos fundos de uma carroça. Direções opostas. Quando o amigo pergunta por ela ao cínico Adolphe Menjou ele dá de ombros. Ela vai feliz com o seu orfãozinho.
1987
[46]
CORAÇôES SENS!VEIS
B ate a porta da limusine
O vagabundo Apanha a flor do chão
E entrega à florista Brilham os olhos
Da ceguinha Bate a porta outra vez Os olhos brilham
1987
' [47]
CUORI INGRATI
E squeceram-se de nós?
Mas nós
continuamos de guarda:
não nos esquecemos de vocês.
Estamos sempre prontos para surveiller et punir.
1987
[48]
p
LUBLIN-MAJDANEK: DER PROZESS
Nem Brígida a Sangrenta
Nem o Anjo da Morte
A beleza assassina
Ou a face falsa
Nem o Zyklon ,B Mas uma ex-guardiã:
Luzie Moschko Saindo de Lublin-Majdanek Ia ao café-concerto com amigos Ao entrar
A orquestra tocava em sua homenagem
"Alten Kamaraden" Os bons velhos tempos
Sim todos levavam um chicote Para castigos eventuais Sob o braço esquerdo "Gostava de bater com ele
nas minhas botas para me distrair"
1988
[49]
NOTEN ZUR DICHTUNG 1
A melancolia do mal A solidão do sol
Temor como reverso de morte A palavra violência
Os sóis que giram nos girassóis As sombras ocultas nos escombros Asas do acaso
O que zoá no azar
A especulação dos espelhos O que se vê a si mesmo no verme A morte enqu;nt~ metáfora· Zumbidos que zombram A vida metade nada
1988
[50)
NOTEN ZUR DICHTUNG 2
A s idéias são como sombras
As palavras são como cobras
Nada ilumina nem descobre
Tudo morde: é veneno e sono
O poético é como a lesma
E a melódia é como o visgo Nada muda: é a mesma receita
Tudo é concreto e tudo é símbolo
Os conceitos são escorpiônicos Que se ferram porque letais Os poetas meros espiões Preocupados com as chaves
As idéias são morcegos cegos As palavras são caramujos Nada é claro nem se revela Pois tudo é nada e nada é tudo
1988
[51]
POST CARD 2
Uma sombra se alonga Sob os degraus
A sombra tem chapéu A escadaria está deserta Embaixo há luz
A sombra cresce do ângulo esquerdo A luz é quase mortiça A sombra hesita
O quadro todo é meia-luz Tudo parece horas_mortas Não há ninguém Exceto a sombra Um vulto coberto Uma atmosfera bruma Paris gris Parece film noir
Envolto em silêncio e sombra Onde se esfuma tudo
1988
[52]
OUVIVENOO STOCK.HAUSEN
Q uando Harlequin entra Para o solo de clarinete Iniciado com ecos do fauno
O olhouvido se petrifica
Suzanne Stephens Colante multicolor Contorce-se em curvas A música também se contorce A sombra se reflete no fundo
Uma sombra nua O solo se reflete no espaço
Música-espelho O clarinete é um símbolo
Arlequim É o mensageiro do diabo Ela dialoga com o símbolo
Dançando com o clarinete Até o sopro final Até o último suspiro
1988
[53]
NOTEN ZUR DICHTUNG 3
M as sombras não mordem
A lesma não é simbólica
De todos os males
l'Jem os escorpiões
São todos espiões
Os poetas não
São todos morcegos cegos
1988
[54]
ISSO NÃO É AQUILO (1979-1982)