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 1 Seção Thelemitas - Entrevista com Humberto Maggi Espaço Novo Æon www.thelema.com.br  ENTREVISTA COM HUMBERTO M AGGI i   Humberto Ma ggi em entre vista a Kay que Girão Apresentação Faze o que tu queres deverá ser o todo da Lei. Meu primeiro contato com  Huberto Maggi foi muito antes de conversar com o próprio, quando me envere- dei nas pesquisas sobre magia cerimonial de cunho tr adicional , conhecida também como magia grimórica ou tradição salomônica, em alusão ao mítico Salomão bíblico que, segundo a lenda corrente, prendeu 72 espíri- tos num vaso e o enterrou no esquecimento do tempo... E foi justamente esse mito e “mistério” dessa tradição mágica que me chamou atenção. Como todo iniciante a goécia causa atração e medo na mesma medida que achava sublime dedicar “cada ato e pensamento a  Adonai”na magia de Abramelin. A medida que minhas pesquisas avançavam fui encontrando em diversas fontes, como fóruns e amigos, indicações ao Humberto até que enfim travei contato com seus artigos em seu  blog pess oal e em antigas publi cações de cunh o Thelêmico. Humberto é um pesquisador sério dentro dessa senda e muito me arrisco a comparar seu senso engajado com o de  Lon Milo DuQuette e sua pesquisa teórica e de campo a semelhança de  Aaron Leitch em se doar ao empirismo e racionalidade nas práticas dessas vertentes e na produção de conteúdo atualizado aos magis tas e acadêmicos interessados. Vale a pena conferir.  Amor é a lei, amor sob vontade . Kayque Girão

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  • 1 Seo Thelemitas - Entrevista com Humberto Maggi

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    ENTREVISTA COM HUMBERTO MAGGIi

    Humberto Maggi em entrevista a Kayque Giro

    Apresentao

    Faze o que tu queres dever ser o todo da Lei.

    Meu primeiro contato com Huberto Maggi foi muito antes de conversar com o prprio, quando me envere-dei nas pesquisas sobre magia cerimonial de cunho tradicional, conhecida tambm como magia grimrica ou tradio salomnica, em aluso ao mtico Salomo bblico que, segundo a lenda corrente, prendeu 72 espri-tos num vaso e o enterrou no esquecimento do tempo...

    E foi justamente esse mito e mistrio dessa tradio mgica que me chamou ateno. Como todo iniciante a gocia causa atrao e medo na mesma medida que achava sublime dedicar cada ato e pensamento a Adonaina magia de Abramelin. A medida que minhas pesquisas avanavam fui encontrando em diversas fontes, como fruns e amigos, indicaes ao Humberto at que enfim travei contato com seus artigos em seu blog pessoal e em antigas publicaes de cunho Thelmico.

    Humberto um pesquisador srio dentro dessa senda e muito me arrisco a comparar seu senso engajado com o de Lon Milo DuQuette e sua pesquisa terica e de campo a semelhana de Aaron Leitch em se doar ao empirismo e racionalidade nas prticas dessas vertentes e na produo de contedo atualizado aos magistas e acadmicos interessados.

    Vale a pena conferir.

    Amor a lei, amor sob vontade.

    Kayque Giro

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    Entrevista com Humberto Maggi

    Kayque Giro: Humberto Maggi por ele mesmo. Fale um pouco sobre voc.

    Humberto Maggi: Uma das maneiras indiretas de se conhecer a Verdadeira Vontade realizar uma anam-nese, com o objetivo de se identificar os pontos caractersticos da pessoa e da sua vida enquanto no se adquire uma comunicao direta com um guia que transcende nossa conscincia comum. Tambm se diz que esse contato com o guia transcendente acontece de maneira sutil naquelas reas onde manifestamos ta-lento ou vocao. Para mim, hoje aos 44 anos, aparece de maneira muito clara que o que define a minha vida sempre foram os livros e a Magia. E o nico talento e vocao que sempre demonstrei, desde pequeno, foi escrever. Escrever sobre Magia , por isto, aquilo que me define, o exerccio pelo qual eu me torno cada vez mais em ato aquilo que sou em potencial.

    Meu interesse se d no cruzamento entre o conhecimento acadmico e a prtica. Geralmente, meus textos misturam a experincia pessoal com pesquisa histrica, na busca de um entendimento mais completo, mais profundo. O mtodo da Cincia o meu mtodo, mas minha viso de Cincia hoje muito simples, significa simplesmente saber diferenciar entre fatos e hipteses. A incapacidade de se ver esta diferena o que leva ao que considero a grande falha epistemolgica do ser humano, a crena. A crena nasce no momento em que a inteligncia falha.

    Minha praxis, por isso, tem sido colocar todas as variadas explicaes tradicionais sobre os fenmenos m-gicos de lado, experimentar estes fenmenos e, a partir deles, rever hipteses e verificar fatos. Isto tudo eu tento por em prtica dentro das dificuldades impostas pela vida cotidiana, de quem precisa trabalhar para viver. Estas dificuldades so bem-vindas, pois permitem manter um contato com a realidade onde nosso ego pode se aprimorar e evitar desequilbrios e excessos, iluses e desenganos. Existem tambm os pontos em que prtica mgica e vida cotidiana se cruzam, tanto nas transformaes e efeitos que trazemos da prtica

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    para o dia a dia, quanto nas interferncias diretas da Magia no cotidiano, aquilo que alguns denominam Ma-gia Prtica. Assim, como se diz que Meditao e Magia so estradas paralelas, que se encontram no horizon-te de eventos de um abismo que transcende, tambm a vida cotidiana e a prtica da Magia seguem lado a lado em um processo crescente de fuso.

    Por isto tudo, que considero to importante o exerccio dos opostos, que Eliphas Levi ensinava a seus dis-cpulos e que Crowley adotou, por que ele permite flexibilizar nosso entendimento e mover nosso pensa-mento alm do isto ou aquilo; ajuda-nos a nos prepararmos para aquele salto de conscincia que nos leva alm do isto e do aquilo, e que no pode ser descrito.

    O cruzamento entre o academicismo e a prtica mgica que voc mesmo exps bem notvel entre os autores de livros sobre grimrios do perodo medieval, como Aaron Leitch e Joseph Lisiewski, ambos de notvel currculo superior. Aproveitando o ensejo, pode compartilhar conosco sobre sua formao acadmica?

    Eu tenho dois cursos incompletos, um de Comunicao Social pela UFF, e outro de Teologia pela Joo Pau-lo II.

    Como foi seu primeiro contato com ocultismo e magia e o que lhe atraiu em Thelema para ter optado por esta?

    bem difcil de definir. Se eu fao agora uma rpida anamnese, me lembro do incio do meu aprendizado escolar, onde meu interesse era a Paleontologia. Meu pai gelogo e tinha livros sobre fsseis, colecionava selos de dinossauros. Este interesse foi fundamental para fundamentar minha viso cientfica, ainda criana eu conclu que a Bblia estava errada por que estava em contradio com a Paleontologia; minha me sem-pre conta que eu perturbei uma professora de catecismo querendo saber em que era geolgica viveram Ado e Eva. Acho que por volta dos dez anos me interessavam as sociedades secretas, depois passei anos fascina-do com um livro da coleo Prisma chamado Magia Negra e Feitiaria. Comecei essa coleo por conta dos livros de Paleontologia que ela tinha. Colecionar tambm uma caracterstica forte em mim. Esse livro sobre Magia tem imagens maravilhosas, mas demorou alguns anos at eu consegui um exemplar, meu pai no via isso com muito gosto, possivelmente receava a influncia que pudesse ter. Foi onde li sobre Crowley e a Aurora Dourada pela primeira vez, e fiquei fascinado. Crowley era um aventureiro que jogava xadrez e praticava Magia, e eu achei aquilo o mximo.

    Foi s bem mais tarde, j com uns 25 anos, que descobri a Livraria do Francisco Laussue e pude ter contato direto com escritos de Crowley. Eu resolvi ler seus livros justamente por que pensei que, ele sendo to uni-versalmente criticado, devia ter alguma coisa boa. Isto foi na poca em que a Internet ainda no existia ou era incipiente, na poca comprar uma mquina de escrever eltrica ainda era um objetivo difcil de se conse-guir Eu me lembro de ter lido inicialmente o Diary of a Drug Fiend, que foi um comeo excelente, por que na figura de King Lamus eu pude ver aquilo que era o real objetivo de Crowley, na figura idealizada do que ele gostaria de ter sido, e tambm entender o que em termos prticos ele queria dizer com viver a Ver-dadeira Vontade.

    Hoje j no correto dizer que opto por Thelema, ou mesmo me definir como Thelemita. Eu conservo mui-tos elementos do pensamento e do mtodo de Crowley, algumas das minhas prticas principais ainda so a Greater Invocation, Israfel, Star Ruby, Star Sapphire mas no vejo Thelema como algo absoluto, no te-

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    nho uma viso religiosa do Livro da Lei como uma revelao divina, etc. Em termos de prtica, eu utilizo muito mais uma abordagem livre na linha da Magia do Chaos que me permite trabalhar com qualquer siste-ma de smbolos, e nesse contexto Thelema o sistema de smbolos com que geralmente trabalho.

    Ilustrao de Jan Parker para o livro Magia Negra e Feitiaria, publicado no Brasil na Srie Prisma.

    E o que voc entendeu por viver a Verdadeira Vontade quando absorveu e assimilou os ensinamentos da Besta?

    Eu no tenho uma resposta exatamente racional para isto; para mim uma experincia de abertura a algo transcendente, que no se comunica por palavras, mas que como uma luz sutil que se manifesta em voc e que me inspira e me guia. No como um ideal, mas uma presena, que se associa com encontros felizes pe-los quais voc recebe conhecimento.

    Como veio a conhecer, e fazer parte, da Ordo Templi Orientis? O que pode nos falar a respeito da or-dem na poca que o atraiu tanto?

    A Ordo Templi Orientis era algo mtico para mim, depois de passar tanto tempo imerso na leitura de Crowley. Por um perodo eu pensava que fosse algo que tivesse desaparecido, lembremos que comecei a estudar o assunto naquele perodo pr-Internet. Eu fiquei muito entusiasmado quando a Ordem de fato veio ao Brasil, e fiz minhas primeiras iniciaes em 1996. Todas as iniciaes que fiz, do Minerval ao Perfeito Iniciado e Cavaleiro do Oriente e do Ocidente, foram marcos superimportantes na minha vida, momentos definidores e de definio. Essas iniciaes me abriram para experincias mgicas importantes e foram sem-pre seguidas de mudanas radicais na minha vida.

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    Na maioria dos seus artigos, seja da antiga revista Safira Estrela ou de antigos artigos pela prpria O.T.O, assinaste como Frater Djjal. Em sua opinio, qual a real finalidade de um nome mgico no curso inicitico e at que ponto ele se manifesta na vida como um todo? Ainda nesse assunto, em espe-cial ao nome Djjal, pode compartilhar conosco o insight que o fez optar na poca por essa manifes-tao pessoal de sua vontade?

    Para ser sincero, eu me lembro na poca de assinar textos como Zarazaz, no me recordo de ter usa-do Dajjal, mas pode ser que tenha feito minha memria no to boa assim... Se o fiz, provavel-mente devo ter utilizado a grafia assim, Dajjal, ou al-Dajjal. Meu email se escreve assim. O uso do nome mgico creio que se origina principalmente da prtica da Aurora Dourada, que o Crowley con-tinuou e tornou mais popular. Tinha por objetivo definir magicamente a pessoa naquele momento, ou algo que ela almejava realizar. Hoje, se tornou uma prtica extremamente popular, que me parece ter por objetivo expressar melhor do que o nome dado pelos pais as aspiraes da pessoa, mas isto tem se dado atualmente em um nvel mais profano. Temos

    ai centenas de sorors Babalon e fraters Baphometh no Facebook. O nome mgico ao mesmo tempo vela e desvela: vela a identidade civil, o que antigamente era muito importante se voc fizesse parte de uma socie-dade por alguma razo secreta, e desvela suas aspiraes. Se eu cheguei a utilizar o nome Dajjal alm de no meu e-mail, certamente foi por ser a grafia que reproduz a palavra em rabe; al-Masihad-Dajjal seria uma figura Islmica aproximada ao Anti-Cristo, logo, uma homenagem ou referncia ao Crowley.

    De onde veio a ideia da srie de contos intitulada Apophraz - Congressus com Dmone, em uma das edies do Safira Estrela e posteriormente num dos artigos do site oficial da O.T.O. - representao brasileira?

    Era uma mistura de experincias pessoais, bastante romanceadas, com uma linha temtica em que cada cap-tulo comeava falando de um nmero. Creio que as principais inspiraes eram o relacionamento amoroso que eu tinha na poca e o contato com um dmon, que no texto se me lembro bem eu chamava de O Ve-lho. As experimentaes com o Santo Daime de ento tambm foram muito importantes na hora de escre-ver esses textos. Eu escrevi um pouco sobre o contato com esse dmon em um texto recente intitulado The Solomonic Spirit; foi publicado pela Anathema Press no primeiro volume de uma coleo chamada Pillars.

    de conhecimento pblico em diversos blogs e sites do seu trabalho editorial e como escritor em li-vros voltados a magia cerimonial de cunho mais tradicionalista, voltada aos grimrios. O que o atraiu tanto a essa vertente em particular?

    Alguns anos atrs eu descobri a editora Scarlet Imprint, atravs de uma amiga muito querida, foi um perodo em que prticas que popularmente so conhecidas como goticas voltaram a se fazer presentes no meu trabalho. Eu li o Howlings, uma coleo de ensaios sobre estes tipos de prticas, e o True Grimoire de Jake Stratton-Kent. O True Grimoire, primeiro volume da Encyclopedia Goetica de Jake, me abriu para o traba-

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    lho com Grimorium Verum, que se tornou a base de uma parte muito importante do meu trabalho corrente. Duas coisas me fascinam na literatura dos grimrios, a parte da ascese, da purificao e do contato com o divino, e a parte do conhecimento e conversao com as entidades espirituais. Meu entendimento dessa sis-temtica tambm foi bastante influenciado pelo livro seminal de Aaron Leitch, Secrets of the Magickal Gri-moires, que entre outras coisas trata com mais detalhes de algo que eu havia concludo muitos anos antes, lendo o livro de Mircea Eliade sobre Xamanismo: que praticamente no existe prtica, tcnica ou experin-cia mgicas que no tenha sido anteriormente conhecida pelos xams de sociedades primitivas. A diferena entre a prtica medieval e renascentista dos grimrios e as diversas tcnicas e resultados encontrados entre xams muito mais uma diferena de interpretao filosfica e teolgica, do que de prtica. O que me atrai nos grimrios justamente o mtodo, mesmo que este se encontre muitas vezes incompleto. Mas, o funda-mento o mesmo, universal.

    Sobre sua observao acerca da incompletude de alguns grimrios, a que se atribui geralmente a isso? Seria somente uma questo histrica de degenerao de material e consequente perca de contedo ao longo do tempo ou haveria mais motivos para que os grimrios sejam muitas vezes tidos como uma leitura de difcil apreenso?

    Existe o aspecto da degenerao do texto, que necessitava ser copiado manualmente muitas vezes, mas exis-te tambm o aspecto da censura, promovida violentamente pelas instituies crists. Um bom exemplo o desaparecimento de tcnicas propiciatrias. Em textos como a Hygromanteia voc ainda encontra passagens onde uma refeio oferecida a um esprito. Trata-se de uma tcnica recorrente em vrias culturas, mas den-tro do Cristianismo ela corria o risco de ser associada idolatria ou heresia. Os grimrios passam a se pa-recer muito com os manuais de exorcismo, onde o esprito comandado e ameaado, e um grimrio que seguisse esta linha podia fazer com que seu dono fosse tratado com maior lenincia, caso fosse a julgamen-to. Determinados segredos tambm podiam ser omitidos, uma vez que o possuidor de um grimrio muitas vezes era um prestador de servios para uma comunidade ou para indivduos, e tinha interesse em manter seus segredos profissionais.

    Em relao a magia grimrica ou salomnica notvel que ela tenha uma ambientao judaico-crist e prticas tpicas do pensamento do Velho on. Em AL II:05 dito queos rituais do tempo antigo so negros. Que os maus sejam atirados longe; que os bons sejam purgados pelo profeta! Ento este Conhe-cimento seguir corretamente. Sendo assim, de uma forma prtica, o que voc aconselharia ao thele-mita interessado nessas prticas quanto ao modo de pratic-las em conformidade com o on da Cri-ana Coroada e Conquistadora?

    Me parece que esses versos do Livro da Lei se referiam primariamente aos rituais de iniciao da Aurora Dourada, no sei se tinham por objetivo serem aplicados a todo e qualquer ritual. Estes rituais e iniciaes da Aurora Dourada supostamente se baseariam em princpios que deixaram de ser importantes e que deveri-am agora serem substitudos. o que o Crowley tentou realizar reformando o sistema da Aurora Dourada no da AA, e reescrevendo os rituais da O.T.O. Crowley criticou enfaticamente aquilo que chamava de fr-mula do deus moribundo, que o processo de morte-ressurreio. Agora, esse processo o processo chave de toda iniciao xamnica, que ocorre espontaneamente ou induzido. Ele acontece desde a pr-histria, e vem ocorrendo por um perodo muito mais amplo do que a definio de qualquer ons thelemico. A hist-ria de Cristo simplesmente repete o tema, que geralmente acompanhado pelo desmembramento do xam pelos espritos, que em seguida o recriam como um ser de poderes mgicos. um processo fundamental que

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    reflete caractersticas nossas essenciais, e no vai deixar de acontecer e nem de ser fundamental s por que o Crowley o considerou obsoleto.

    Essas injunes se baseiam no modelo thelmico dos ons, o qual estritamente eurocntrico e no-histrico. No faz nenhum sentido voc querer aplicar a diviso inicitica-histrica dos ons thelmicos, por exemplo, histria da China, da ndia, da frica... um conceito que se baseia na histria do Ocidente, mais ainda, do Ocidente cristianizado. Historicamente falando, por exemplo, muitas das ideias que no sculo XIX e comeo do sculo XX apoiavam a existncia de um on de sis, de culto natureza e com preponde-rncia do matriarcado, foram posteriormente descartadas.

    A influncia judaico-crist, que o Livro da Lei parece associar com os rituais do tempo antigo, na magia cerimonial salomnica qudrupla: (1) Define a cosmologia do praticante; (2) Define a teologia do pratican-te; (3) Define a viso que o mesmo tem sobre os espritos; e (4) Influencia a moral em que o praticante exer-ce suas prticas.

    Quando mencionei acima que parte da minha abordagem deixar de lado as definies tradicionais herdadas da Filosofia e da Religio, experimentar diretamente e, reunindo dados, com o tempo tentar diferenciar entre hipteses e fatos, eu me referia primariamente a deixar de lado essas quatro influncias principais.

    Isto nos deixa, em primeiro lugar, com uma fundao de prticas e tcnicas que, como disse, remontam aos primrdios da cultura humana, e que tambm, e isto muito importante, podem ser redescobertas a qualquer momento. As prticas e tcnicas no mudaram com o passar do tempo simplesmente por que nossa neurolo-gia e fisiologia permanecem as mesmas. Aquilo que pode nos levar ao transe, concentrao, conversao com espritos etc. basicamente o mesmo, no mudou com nenhuma suposta transio de ons.

    Entretanto, muito difcil voc se livrar dessas influncias, pois elas esto imersas em cada palavra dos gri-mrios. Eu estou lendo um livro chamado The Woman Magician: Revisioning Western Metaphysics from a Woman's Perspective and Experience, que trata sobre a dificuldade de mulheres magistas lidarem com toda essa carga simblica herdada pela Magia Ocidental, que fundamentalmente masculina, patriarcal e machis-ta, por exemplo. No existe caminho fcil para realmente se lidar com esta herana cultural, mas eu tenho algumas diretrizes, que derivam de exerccios cabalsticos e de conceitos da Magia do Chaos.

    Eu entendo que todo o simbolismo de um texto mgico reflete uma interpretao, culturalmente definida pela poca e lugar onde foi escrito, de uma experincia mgica. Aquele autor, naquele sculo, teve uma ex-perincia e a relatou e definiu da maneira que ele sabia, ou que ele podia. Obviamente, a interpretao neste caso era crist. Qualquer ser espiritual que um mago entrasse em contato seria catalogado como anjo ou de-mnio, por exemplo, as categorias conhecidas e aceitas. Determinadas vivncias s poderiam ser entendidas como sendo manifestaes da Virgem, do Esprito Santo, de Jesus, no que realmente o fossem, em um sen-tido objetivo e absoluto.

    Vamos relembrar que ningum nunca teve uma experincia mstica com Jesus Cristo sem antes o ter conhe-cido culturalmente, mas experincias que podem ser posteriormente interpretadas como sendo um contato-com Jesus Cristo sempre existiram. Um thelemita que queira fazer uso da literatura dos grimrios pode ter este entendimento interior, que os nomes judaicos, cristos ou de qualquer outra origem, se referem a uma experincia universal que recebeu uma descrio cultural em determinado momento, podendo utiliz-los com essa flexibilidade no uso dos smbolos que aprendemos na Magia do Chaos, e tambm no estudo de atributos da rvore da Vida.

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    Ou, pode simplesmente trocar os nomes e os textos.

    Interessante sua resposta sobre substituir os nomes para se harmonizar com o paradigma do prati-cante. Mas, de uma maneira prtica, esse raciocnio de substituio poderia ser estendido aos elemen-tos materiais da prtica grimrica, como substituir um material especfico e raro como cinto de leo, por exemplo, como descrito no Clavcula Salomonis? A corrente mais tradicionalista segue o grimrio dizendo ser prejudicial qualquer tipo de substituio que possa afetar a pureza da operao. Qual seu posicionamento acerca dessa questo?

    Vamos imaginar que os lees se extinguem, ou que (esperemos) o controle ecolgico evolua a ponto de que o couro deste animal no esteja mais disponvel. Os espritos deste grimrio no poderiam mais ser contata-dos? Se estivermos considerando os espritos como tendo uma existncia objetiva em relao ao praticante, ou como sendo figmentos de sua mente, no importa, o fato que no se pode considerar que o acesso a eles dependa de um ou outro detalhe de um nico texto. Se a censura crist tivesse tido xito a ponto de queimar todos os grimrios e assassinar todos os magos, isto no significaria o fim deste tipo de magia, ela renasceria gerao aps gerao simplesmente por que sempre vo existir pessoas que, de uma maneira ou de outra, vo partilhar do conhecimento e conversao com os espritos. mais importante estar atento aos princpios gerais da Magia Cerimonial, que voc consegue apreender estudando diferentes textos, os princpios ou eta-pas como a purificao (do mago e do ambiente), a consagrao, a proteo, a invocao, o despedimento, etc. E, acima de tudo, ter em mente que o contato com as entidades espirituais no s o fim desta prtica, mas tambm seu princpio: so os espritos que ensinam ao mago, e os grimrios so apenas mtodos parti-culares aprendidos dos prprios espritos, e que tem por objetivo dar incio ao processo. Depois que o conta-to se inicia, os espritos te orientam sobre como fazer para aprofundar seu trabalho mgico, e esta orientao pode ir muito alm e at mesmo contradizer as primeiras instrues de um texto.

    Ao longo de todo seu tempo de prtica, com qual grimrio voc mais possui afinidade e gosta de tra-balhar? E qual foi o de consecuo mais complicada?

    Nos ltimos anos eu tenho trabalhado principalmente com o Grimorium Verum e os Sexto e Stimo Livros de Moiss. Nenhum deles teve uma consecuo complicada. Eu, com o passar do tempo, simplifiquei mui-to minha maneira de operar, basicamente eu utilizo os sigilos e as preces e invocaes. O importante voc poder despertar sua percepo, aquilo que lhe permite adquirir o conhecimento e conversao com os es-pritos, esta a chave que realmente abre as portas dos grimrios.

    De uma maneira geral, o que voc tambm aconselharia aos interessados no estudo e prtica dos gri-mrios? Que obras tambm voc tambm recomenda para quem est em comeo de jornada?

    A melhor obra de introduo o livro de Aaron Leitch, Secrets of the Magickal Grimoires. bom ter um currculo de leitura geral, estudando os textos diferentes para se adquirir uma compreenso geral das tcni-cas. A leitura de antologias de praticantes, onde eles escrevem sobre suas experincias, tambm um grande recurso disponvel hoje, e temos tambm excelentes grupos on-line, como os do prprio Aaron Leitch e do Jake Stratton-Kent. Eu defendo o uso de uma conduta respeitosa e amistosa, mas cuidadosa, com os espri-tos. Se eles tm uma existncia objetiva, nada justifica que o mago tente impor-se a eles por ameaas; isto uma conduta derivada das supersties crists e se baseia em contradies bem bestas, tentando justificar algo que, por definio, injustificvel: a busca de contato de um cristo com um ser espiritual, que sua prpria crena diz estar condenado pela eternidade por seu opor divindade. Dizer que esses espritos esto

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    obrigados a servir ao mago ou que se beneficiam do seu controle est na mesma linha das argumentaes teolgicas de que os povos colonizados das Amricas e da frica se beneficiavam espiritualmente da vio-lncia da escravido.

    Por outro lado, se o mago advoga que a experincia mgica meramente subjetiva, ele deveria se questionar sobre o tratamento agressivo e ameaador com que est lidando com sua prpria psique.

    Por fim, eu recomendo a prtica da meditao, pois ela permite preparar sua mente para estabelecer e manter o contato com os espritos. preciso desenvolver a quietude da mente e a concentrao, pois importante aprender a diferenciar os processos usuais da mente do conhecimento que voc recebe durante a conversa-o com os espritos; ou, se, mais uma vez, seguimos a interpretao subjetiva, saber diferenciar a origem interior das imagens e palavras que se recebe durante a prtica mgica.

    Tambm ficou publicamente conhecido a sua aventura na Abadia de Thelema, em Cefal. Pode nos contar mais a respeito (de onde veio a ideia, suas impresses do local, etc.)? Atualmente a Abadia ain-da se encontra abandonada ou j propriedade de algum ou alguma instituio? Na sua opinio, saberia nos dizer os motivos que a levaram ao abandono e porque, a exceo de projetos como Save the Abbey of Thelema, ela ainda no foi reformada e preservada como um local histrico especial (poderia dizer sagrado, mas corro o risco de passar uma impresso religiosa) aos thelemitas e simpati-zantes?

    A ida a Abadia foi um momento muito importante, preci-oso na minha vida mgica. O que eu ouvi dos irmos italianos da Ordem que o problema da Abadia o seu dono atual, o qual aparentemente no quer aceitar ne-nhum tipo de proposta de venda. A construo est muito precria, uma casa pequena e muito antiga. As descri-es de Crowley sobre o tamanho da mesma so muito exageradas.

    Eu penso que o foco devia deixar de ser salvar a estrutu-ra, que est correntemente ao lado do estacionamento de um estdio de futebol, e se concentrar em simplesmente

    remover e salvar as pinturas que permanecem; as pinturas so a nica coisa de valor que existe l.

    Interessante notar tambm que em uma das fotos registradas na Abadia voc apresenta um tipo dife-rente de estela diferente da tradicional Estela da Revelao. O que o motivou a elaborar esse novo modelo e qual o seu significado?

    uma estela que substitui a original com a imagem do Atu XX na frente. O Atu XX uma reelaborao da imagem da estela original, sobre um novo ponto de vista. Nas estela original ns olhamos de lado o sacerdo-te que conversa com a divindade; no Atu XX ns olhamos diretamente o deus, pois na concepo do Novo on cada um deve ser seu prprio sacerdote. Por isto, durante um bom tempo, eu quis fazer uma estela as-sim para mim, mas no sabia o que colocar na parte de trs. At uma madrugada em que veio subitamente minha mente a ideia de colocar o Atu XI no verso. Isto combinou bem por que XI + XX = 31, e Crowley tm vrias passagens onde ele elabora exatamente sobre a importncia desses dois Atus juntos. Ele diz que

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    os dois Atus representam a totalidade do panteo thelmico, pois na frente se tem Nuit, Hadit e Hrus, e no verso a Besta e a Mulher Escarlate. Eu escrevi na poca um liber com ideias que vieram minha mente so-bre o uso desta verso da estela, e um texto falando a respeito. Ainda se encontra on-line, em um dos meus blogs antigos.

    Atualmente, vem trabalhando em algum novo projeto (editorial ou no)? Poderia compartilhar co-nosco?

    Estou finalizando o segundo volume da coleo Thesaurus Magicus, focando nas tradies mgicas associa-das ao nome de So Cipriano em Portugal e Espanha, e ao mesmo tempo trabalhando na verso para o Ingls do mesmo que deve sair pela Nephilim Press. O terceiro volume do Thesaurus est iniciado, esperando al-gumas autorizaes para o uso de certos textos, e uma edio chamada Ars et Scientia, reunindo textos anti-gos e tradues em Portugus dos textos publicados pelas editoras estrangeiras tambm est prevista. En-quanto isto, a minha pesquisa e as minhas prticas mgicas na elaborao de um projeto intitulado Summa-Goetica prosseguem.

    Bom, estamos chegando ao fim da entrevista na qual a equipe do Espao Novo on sente-se honrada em realizar e, como de praxe, temos o costume de deixar as palavras finais ao entrevistado. Caso quei-ra dizer algo que ainda no tenha tido a oportunidade, sinta-se vontade.

    Eu agradeo bastante por esta oportunidade; como disse no comeo, minha vida gira em torno desse estudo e dessas prticas, algo que se recebe do Universo e que volta para o Universo quando escrevemos ou compar-tilhamos esse conhecimento. Quando fao isto, eu me sinto feliz, e ser feliz me parece ser o selo de que voc realizou nesse momento a sua Verdadeira Vontade.

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    Fontes de Referncia

    Blog Cavaleiro do Oriente e do Ocidente- http://enoque.blogger.com.br/. Clavis Magic - www.clavismagicae.com/enochiana/.

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    Entrevistado: Humberto Maggi

    Entrevistador: Kayque Giro

    Origem: Espao Novo on (www.thelema.com.br/espaco-novo-aeon)

    Reviso: Jonatas Lacerda

    Edio: Jonatas Lacerda

    Verso: 1.0 03/06/2013 e.v.

    iA presente entrevista pode ser encontrada no site Espao Novo on (www.thelema.com.br/espaco-novo-aeon). Este material no pode ser utilizado de forma alguma para fins comerciais e seu uso no comercial deve sempre manter os crditos e ressalvas. As opinies expressas tanto pelo entrevistado, quanto pelo entrevistador com relao Lei de Thelema e ao on de Hrus so pessoais e muito importante ter em mente que toda informao coletada a respeito da Era de Aqurio/Leo deve ser validada, cada um por si e que a nossa pedra fundamental O Livro da Lei (www.thelema.com.br/espaco-novo-aeon/livros/al-o-livro-da-lei/).