sem sinal, com celular, em dolearina

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70_MAIO_2010 SEM SINAL NO TOPO: Silvio Antunes, frentista do posto Gameleira, sobe nos caminhões para alcançar o sinal

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Reportagem originalmente publicada na Galileu (maio, 2010), e depois reproduzida pela Reader's Digest, em que conto a história de Dolearina, no Triângulo Mineiro – onde todo mundo tem celular, mas falta sinal. E o jeito é subir no cupinzeiro, ir no descampado ou ligar do coreto."Se você está no restaurante Recanto Mineiro e o celular é Tim, pega na mesa do meio. Vivo tem de ficar em pé, junto à placa de trânsito em frente. Da rede Claro, para lá da serraria."

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SEM SINAL

NO TOPO:

Silvio Antunes,

frentista

do posto

Gameleira,

sobe nos

caminhões

para alcançar

o sinal

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No Brasil dos 160 milhões de celulares,há cidades em que a cobertura dasgrandes empresas ainda é um sonhodistante. Fomos a Dolearina, no interiorde Minas Gerais, onde o sinal de telefoneé até promessa de campanha política

Tf RAFAELURBAN, DEDOLEARINA,MG

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ÀS 22H19 DO DIA 29 DE MARÇO Aristides Keliom, 22anos, fez o que faz todo dia desde que namora Érica.Pegou o carro, se afastou 2,4 quilômetros do centrode Dolearina em direção à roça, e ligou, do celular,para a garota. No distrito, que pertence à cidade deEstrela do Sul, a 80 quilômetros de Uberlândia, noTriângulo Mineiro, não há cobertura para a telefoniamóvel. No descampado que Aristides utiliza, com belavista para uma planície, o movimento é intenso. Não àtoa. “Ali pega até briga de vizinho.” Ele é o gerente dosupermercado Alves, e vende aos conterrâneos entreR$ 600 e R$ 700 mensais de crédito para aparelhospré-pagos de três operadoras.

Dolearina fica às margens da rodovia estadual MG-223. Quando se passa muito rápido de carro, ela quasenão é notada. São duas farmácias, duas sorveterias,três restaurantes, duas padarias, duas lan-houses,quatro serrarias e cinco mercadinhos. São 2,5 milhabitantes na contagem do prefeito; 4 mil na do vice.Poucos são os que se dizem estrela-sulenses — aindaque o sejam de fato. Quando se referem ao centríssi-mo, que reúne os negócios, chamam de Gameleira —devido à alcunha como Dolearina foi conhecida, porsuas árvores —, nome que também batiza o posto decombustível, do outro lado da rodovia.

O sinal chega por todos os lados, mas é precisoestar atento a lugares pré-estabelecidos. Se você estáno restaurante Recanto Mineiro e o celular é Tim,pega na mesa do meio. Vivo tem de ficar em pé, juntoà placa de trânsito em frente. Da rede Claro, para láda serraria. Nomarly Aparecida, 27, garçonete e pro-prietária de chips das três operadoras, sabe a lista decor. É sobre o local conhecido como “a pedra”, a duasquadras dali, que o chip Oi funciona. “Esse ainda nãotenho, mas vou comprar”, diz. Importante ficar deolho, também, em qual é a origem do sinal: se vemdo município de Estrela do Sul (18 quilômetros dali),de Cascalho Rico (20 quilômetros) ou de Goiás, cujafronteira está a mais de 30 quilômetros e o usuárioterá de pagar deslocamento.

O risco ao buscar por locais inóspitos é iminente.“Eu estava no pasto, tranquila, falando com meu irmão,quando veio a vaca, bufando”, afirma Mirian Vaz deAlmeida, 34, vendedora de cosméticos, que nesse diateve de sair correndo com o aparelho na mão. Para assuas ligações, utiliza outro descampado. “Do meu irmãoé Vivo e pega na árvore seca. O meu é Oi e funcionana árvore baixinha. Já a Tim tem de subir no pequi. Equando eu tinha Claro, ia naquele morro vermelho.”

A

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Cupinzeiro A alternativa dos moradores de Do-learina para burlar a especificidade de cada sinal éusar celular com dois chips. Johnny da Silveira, 18,tem Claro e Oi. O seu Samsung filma, tira foto, tocamp3 e rádio, tem TV digital — ainda que essa nãopegue por ali. “Mas nunca recebi uma ligação. Celu-lar, em Dolearina, é só para fazer chamada”, afirma.Quando está perto de casa, na Manuel Ferreira Cam-pos, para lá da igreja (no coreto, por sinal, pega), dámais piques quando sobe no cupinzeiro — seu pai, quesubiu sobre a casa dos cupins com celular em mãos,descreve a experiência de estar ali como “confortável”.Piques e picos são os nomes que os dolearinos dão àsmarcas que aparecem nas telinhas, indicando a forçado sinal. Quando está trabalhando no posto Gameleirae precisa telefonar, Johnny espera. O caminhão podeser de toras ou carvão — como são altos, basta subire bancar a própria antena.

É uma dificuldade só, mas que tem as suas vanta-gens. Os professores do colégio onde estuda CíceroDiego Martins, 18, não têm que brigar por troca deSMS em sala de aula. “Muitos colegas nem levam,porque sabem que não vai pegar. Os que levam é paraescutar música”, diz. “Ligar, aqui, é raridade.” Cíceroexplica que os garotos locais estão invocando muitocom meninas das cidades vizinhas. Uma alternativapara paquerar via telefonia móvel é marcar dia e horada ligação. “Ou passa o MSN, que todo mundo usa”,diz. Se é para falar com uma garota dolearina, elemanda recado ou, mais fácil ainda, anda atrás.

Pormeio das suas assessorias de imprensa, as quatromaiores operadoras detelefoniamóvel do País responderamaoquestionamento daGALILEU se está emseusplanos a cobertura deDolearina. A resposta de todas foi negativa. A Claro informouque não há previsão de cobertura para o distrito. AOi analisa a expansão do seusserviços de acordo coma viabilidade técnica emercadológica. É a única a ofertar,emDolearina, serviços de telefonia fixa. A Timafirmou que seu plano de expansãoatende localidades commaior densidade populacional, chegando, futuramente, nosmenores centros. Já a Vivo diz que não há previsão de atendimento,mas que issoentrará emanálise no planejamento de expansão da cobertura.

NA SOMBRA:

Valdevino

Teixeira, 58,

motorista,

sob o jatobá

da Fazenda

Roseira

LONGE DEMAIS DAS

CAPITAIS: Dolearina, distrito

de Estrela do Sul, a 80 km

de Uberlândia (MG), ainda

não foi contemplada com a

cobertura das empresas de

telefonia celular

OQUEDIZEMASOPERADORAS

ONDEFICA?

te

UberlândiaUberlândiaUberlândia

Belo Horizonte

MINAS GERAISMINAS GERAIS

SÃO PAULOSÃO P

GOIÁSGOIÁS

GioâniaGioâniaGioânia

BrasíliaBrasíliaBrasíliaBrasília

DOLEARINA,MG

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Entre os alunos da sexta série, Gildásio Teixeira,14, amigo de Cícero, é o único que tem celular. Elecomprou por R$ 260, para usar quando for a outrascidades — até agora, porém, o aparelho não saiu dacaixa. É o celular de gaveta — o qual ele já está ven-dendo a um amigo, com um deságio de 10%.

O prefeito de Estrela do Sul, Lycurgo Rafael Fara-mi, 62, foi eleito sob a promessa deque traria a cobertura de telefoniamóvel a Dolearina. “Prometi queiríamos correr atrás, mas até agoranão obtivemos êxito”, diz. Diferen-te da telefonia fixa e tal como a TVpor assinatura, o mercado da redemóvel não prevê a universalizaçãoe está sujeito ao livre mercado.

A Anatel, em dezembro de 2007,na licitação para exploração 3G emmunicípios com menos de 30 milhabitantes, exigiu como contrapar-tida que os vencedores instalassemantenas nos últimos 1.836 municí-pios brasileiros que ainda não ti-nham acesso à cobertura da redemóvel, atendendo ao menos 80%da área urbana de cada um deles.O prazo final é 30 de abril. Caso asoperadoras tenham cumprido o prometido, agora emmaio todos os municípios brasileiros devem ter acessoà cobertura celular. Dolearina, por ser um distrito eestar a 18 quilômetros do centro da sede, ficou de fora.Caso que se repete em outras localidades pelo País.

Depois do sucesso do abaixo-assinado para a insta-lação de um caixa-eletrônico do Banco do Brasil emDolearina — o qual angariou 600 assinaturas —, foidecidido fazer o mesmo pelos sem sinal de celular. Otema virou pedido na Câmara Municipal, lado a ladona ata com a construção de um ginásio esportivo,reforma da creche e torneiras novas para a escola.

O abaixo-assinado alcançou número recorde (800!),ou um terço da população local, nas contas do prefei-to. Junto com ofício da municipalidade, o conteúdopassou pelas mãos de um deputado estadual, TenenteLúcio, que por sua vez encaminhou, no dia 7 de abril,ao assessor de José Artur Filardi, recém-empossadoMinistro das Comunicações.

Além de ser motivo de chacota de seus vizinhos,o fato de Dolearina não ter cobertura para celularestá gerando folclore próprio. Alguém ouviu alguém

LIGUEPARA JONASEROSELENE“Hoje emminha currutela está ruimdemais,muito parado. Estou doida parameu celular tocar, vaiser só alegria”, assimescreveuRoseleneAndrade, 33, no seu twitter. AGALILEU entregou para ela epara omarido, JonasMelo, 26, umaparelho novinho. Se umdia o sinal chegar emDolearina, os doispoderão atender ao chamadodos leitores da revista e contar as novidades. Experimente. O númeroé (34) 9920-5410. Os dois são donos da lanchoneteBemBolado, que fica àsmargens da rodoviaMG-223. “Estávamos combinando de comprar dois quandoo sinal chegasse. Só vou acreditarquando tocar”, ela diz. Roselene nasceu na vizinhaAraguari, masmora desde pequena emDolearinaenunca tevecelular—ainda assimestáacostumadaa receber chamadas, pois pega recados para avizinhança, que liga no telefone público em frente à lanchonete. Jonas nasceu emGuaíra (PR), e teveumnaépoca emque viveu emNovaMonteVerde,MatoGrosso. Diz que funcionava bem lá. Se osinal não chegar emDolearina, umalento: omodelo presenteado ao casal toca rádio.

ME LIGA: Roselene

Rodrigues Andrade e

Jonas Dias de Melo —

donos da lanchonete

Bem Bolado—

ganharam um celular

para atender os

leitores da GALILEU

dizer ter visto, não se sabe onde, algo estranho quese parece com uma antena de celular. Outra versão dalenda trata de uma instalação muito alta que está nocentro de Dolearina e que seria, de acordo com algunsmoradores, uma repetidora da Oi. “Só não liberaramo sinal para a gente porque não querem”, me disseum dolearino. A Oi, por meio de sua assessoria deimprensa, negou ter relação com tal antena.

Telefone semfio O fazendeiro Paulo Man-tuan, 48, conta ter recebido visita da operadora Claro.“Eles vieram, eu cedi o terreno por R$ 400 mensais,definiram onde instalariam a antena. Já faz mais deano e nunca voltaram. Para ter sinal, ofereceria oterreno até mesmo de graça”, afirma.

Ademilda Maria Borges cansou de esperar. Comuma conta do telefone fixo em R$ 400, decidiu apelarpara uma antena rabo de peixe. Ligou nela um celularTim, que fica sobre a geladeira, como se fosse telefonefixo. Pagou pelo conjunto R$ 309. “Muita gente estávindo para conhecer”, diz Ademilda, entusiasmadacom a novidade. Os vizinhos, devido à imprecisão

(34)99205410

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de uma matéria de televisão, acreditam que o sinalchegaria na cidade até 30 de abril. “E, se não chegar,vão todos comprar antena.” Ela fala pelo celular como filho, que mora em Alvorada, no Tocantins, e comoutros quatro parentes que vivem em cidades vizinhase também possuem aparelhos da operadora.

A dona da sorveteria Dávila, Sirlei Dávila, 29, en-controu no telefone sem fio o companheiro ideal. Elefunciona tanto na residência como no comércio, aduas propriedades de distância. E, assim como oscelulares, tem a sua manha. “Funciona mais parao fundo da loja ou embaixo da árvore”, afirma. Oscelulares de Sirlei e do marido, Nevali de Araújo, 48,dono da serraria N e M, só saem de casa quando vãopara outra cidade.

O telefone público continua ativo e muito popular,apesar das críticas de funcionamento e comilança decartões. Afinal, não é todo mundo que tem condiçõesde arcar com os custos de um aparelho fixo. “Tive asorte de ter dois orelhões no portão da minha lan-house”, diz Douglas Cardoso, 26, dono da Cybernet.Para falar com Douglas a turma liga em um deles ou

manda e-mails. Ele já morou em Belo Horizonte, umacidade em que “é só enfiar a mão no bolso, [tirar ocelular de dentro] e fazer a ligação”.

Às 6h40 da manhã de 30 de março chovia em Do-learina e Antonio da Silva Ferreira perdeu o controlee capotou o caminhão que levava secos e molhadosde Brasília (a 400 quilômetros dali) a Patrocínio (110quilômetros). Nem a experiência com a rede móvel— que o faz levar telefones de dois estados diferentes— ajudou, pois nenhum dos dois celulares que levarafuncionou. Pegou carona até o centro. Tampouco lheserviram os três telefones públicos. Estaria danadonão fosse o empréstimo do fixo pelos funcionários doposto Gameleira para acionar o seguro.

O vaqueiro Frederico Rezende, 28, sabendo que pe-ga sinal aonde ele vai, leva sempre o celular a tiracolo.“O duro é quando o patrão pede: ‘Quando terminarde fechar o gado, me avisa’, o aparelho não funcionae você tem que se deslocar cinco ou dez quilômetros”,afirma. “Só para ver a hora não adianta muito, nãoé? Vou te falar uma coisa: os daqui tão servindo paraouvir música mesmo.”

g

LIGAÇÕES PERIGOSAS: Miriam Vaz de Almeida estava

falando tranquila com seu irmão quando foi perseguida

por uma vaca. Na foto à direita, Silas Marques da

Silva, que estava no trator quando descobriu que o sinal

pegava em cima da árvore

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