seminário 2 (estágio pae) - o cérebro e o pensamento (bergson), pp. 163-5

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Page 1: Seminário 2 (Estágio PAE) - O Cérebro e o Pensamento (Bergson), pp. 163-5

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Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência III

Professor: Osvaldo Pessoa Frota Jr.

Estagiário: Lucas Machado

Seminário de Leitura II: Bergson, Cérebro e Pensamento, pp. 163-5

Neste seminário, começaremos a discussão sobre o texto de Bergson, O Cérebro e o

Pensamento: Uma Ilusão Filosófica. Antes de entrarmos no texto, gostaria, mais uma vez, de

enumerar quais são os pontos que julgo mais relevantes para a condução da discussão do

texto, tendo em vista o nosso curso:

1 – O paralelismo psicofísico

2 – As considerações gerais de Bergson sobre esse paralelismo

3 – A tese de Bergson sobre a contradição inerente a todo paralelismo

O ponto 1 servirá de introdução ao texto, e nos permitirá conectá-lo com as

discussões de nosso seminário anterior; o ponto 2 tratará do conteúdo do trecho do texto que

lemos especificamente para este seminário; o ponto 3, por fim, servirá de uma breve

antecipação do que discutiremos no próximo seminário, ao continuar a leitura do texto.

1. O Paralelismo Psicofísico

Para começar, parece-me ser de grande valia lembrarmo-nos das considerações com

que encerramos nosso seminário anterior. Ao falarmos das Paixões da Alma, explorando a

origem e os desdobramentos do dualismo cartesiano em sua forma de conceber a união da

mente com o corpo, apontamos que a concepção cartesiana do corpo e da alma como duas

substâncias distintas que, não obstante, interagiriam entre si, foi alvo de severas críticas.

Afinal, como duas substâncias que supostamente não deveriam ter nada em comum entre si

seriam capazes de se afetarem mutuamente, sendo de naturezas completamente distintas?

Descartes mesmo afirmava que não se podia explicar esse fato, que não poderia ser concebido

pela consciência de forma clara e distinta; apenas podemos constatar a união da alma com o

corpo. Descartes, antes de propor uma explicação insatisfatória, não propunha explicação

alguma; o que sem dúvida tornou seu dualismo de substância vulnerável a uma série de

críticas da posteridade. Não por outro motivo, afirmamos, cartesianos posteriores

abandonaram esse dualismo, adotando uma ou outra forma de monismo substancial e

estabelecendo uma relação de paralelismo entre mente e corpo. Um dos casos mais

paradigmáticos dessa mudança é, naturalmente, Espinosa, para o qual haveria apenas uma

substância1, Deus, da qual o pensamento e a extensão seriam dois atributos, duas expressões

diferentes e, por isso mesmo, paralelas, da mesma potência divina2. Nesse estado de coisas,

não há mais a necessidade de explicar uma interação, que só poderia ser concebida

1 Cf. Espinosa, 2008, Parte I, proposição 14.

2 Idem ibid., def. 6.

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obscuramente, entre corpo e alma; se há uma equivalência entre estados mentais e estados

físicos, isso não se deve ao fato de eles intervirem entre si, mas sim de serem expressões

distintas de uma mesma coisa, o que permite estabelecer uma correspondência de termo a

termo entre um estado físico e um estado mental, na medida em que esses estados, ainda que

diferentes, são manifestações de uma mesma substância.

Ora, para essa aula, tivemos a felicidade de lermos brevemente sobre outros autores

que adotam o paralelismo, a fim de escapar das dificuldades impostas por um dualismo

cartesiano3; mais especificamente, tivemos acesso a um breve trecho de Fechner, onde ele nos

fala um pouco sobre em que consistiria seu paralelismo4. O paralelismo de Fechner, segundo o

próprio, seria aquele entre a perspectiva externa e a perspectiva interna da mente, que nada

mais são do que duas perspectivas diferentes sobre uma mesma coisa, que “é uma unidade”5.

Logo a seguir, vimos como Heidelberger fala dos diferentes paralelismos psicofísicos presentes

em Fechner e adotáveis de um ponto de vista geral: a forma primária de paralelismo

psicofísico, que serve apenas de postulado empírico, de regra metodológica para estudar as

correlações entre o mental e o físico; o paralelismo metafísico, que afirma a identidade entre o

mental e o físico – e, em função dessa identidade, sua equivalência -, mais do que

simplesmente pressupor a sua correlação a fim de conduzir suas investigações empíricas; e,

por fim, o paralelismo cosmológico, que afirma que para todo estado físico de todas as coisas

há um estado psíquico equivalente.

Ora, vemos, pela forma com que Heidelberger descreve os diferentes tipos de

paralelismo, o valor que lhe é atribuído como hipótese científica ou postulado empírico; de

fato, um dos motivos que leva Bergson a fazer sua crítica do paralelismo é justamente a

proeminência que esse adquiriu entre cientistas nas investigações empíricas da relação entre

mente e corpo. Como veremos em nosso texto, Bergson não cansará de apontar que a

hipótese do paralelismo, apesar de ser, de fato, útil para iniciar pesquisas nesse tema, por não

impor limites ao que a fisiologia pode alcançar, foi elevada ao estatuto de uma tese metafísica

absolutamente insustentável do ponto de vista científico e, mais do que isso, inconsistente e

incongruente de um ponto de vista metafísico.

2. Bergson sobre o paralelismo

Assim, Bergson começa o nosso texto afirmando que a equivalência entre o estado

psíquico e o estado cerebral permeia boa parte da filosofia moderna. Contudo, ter-se-ia

discutido mais sobre quais seriam as causas dessa equivalência do que sobre a própria

equivalência, supondo-a como dada e sem questioná-la enquanto um fato da relação mente-

corpo. Quer sob a forma de um epifenomenalismo, produto de uma duplicação fosforescente

do cérebro, quer por uma equivalência ponto a ponto entre duas séries que não implica, para

3 Como coloca claramente Heidelberger: “Uma difundida concepção errônea da literatura inglesa

confunde este tipo de paralelismo [de Fechner] com formas da doutrina cartesiana das duas substâncias não-interagentes, como o ocasionalismo ou a harmonia pré-estabelecida. O paralelismo psicofísico significa justamente o oposto: ele nega a divisão cartesiana de mundo entre uma substância extensa (a matéria) e uma substância inextensa (a mente).” (Heidelberger, 2007, p.169) 4 Fechner, 1966.

5 Fechner, 1966, p.6.

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tanto, que uma tenha sido criada pela outra, todas as formas de paralelismo, segundo

Bergson, apoiam-se em uma mesma tese comum: “Sendo dado um estado cerebral, segue-se

um estado psíquico determinado”. Ou ainda: “Uma inteligência sobre-humana, que assistisse

aos movimentos dos átomos de que é feito o cérebro humano e que tivesse a chave da

psicofisiologia, poderia ler, num cérebro trabalhando, tudo que se passa na consciência

correspondente”. Ou, enfim: “A consciência não diz nada mais do que se passa no cérebro; ela

apenas o exprime em uma outra língua’”(Bergson, p.163). Em poucas palavras, poderíamos

dizer: a tese fundamental do paralelismo, segundo Bergson, é que a cada estado mental

corresponde um estado cerebral específico, de tal forma que, uma vez conhecidas as leis que

estabelecem essa equivalência, podemos, a partir do estado cerebral, determinar qual é o

estado mental experienciado pela mente.

No parágrafo seguinte, Bergson ressalta as origens metafísicas cartesianas desse

paralelismo, apesar de reconhecer que, no próprio Descartes, esse paralelismo ainda estava

apenas implicitamente contido e com muitas restrições. Afinal, se esse paralelismo valia em

alguma medida em Descartes, isso não implicava (ao menos, não explicitamente) em uma

equivalência de termo a termo entre um estado cerebral e um estado mental, muito menos a

identidade entre o mental e o físico como duas expressões distintas de uma mesma coisa.

Contudo, como vimos anteriormente, precisamente a dificuldade de se manter nesse dualismo

cartesiano teria levado seus sucessores e radicalizarem o paralelismo, eliminando toda

independência que os estados mentais poderiam ter em relação aos estados cerebrais, ao

fazer que todo estado mental pudesse ser correlacionado com um estado cerebral

correspondente. De fato, foi essa concepção metafísica da relação mente-cérebro que foi

passada para os psicofisiologistas, que, sem escolha, adotaram a única solução a esse

problema metafísico que teria sido oferecida pelos metafísicos de seu tempo. Além disso,

como notado anteriormente, a hipótese do paralelismo representava, de fato, um excelente

início para as pesquisas fisiológicas, por não estabelecer nenhum limite pré-determinado a

elas, já que afirma a possibilidade de relacionar todo estado mental e um estado físico

correspondente. Contudo, Bergson afirma que essa hipótese, útil como um ponto de partida

para uma pesquisa empírica, se torna algo inteiramente outro quando adquire os contornos de

uma afirmação dogmática sobre a verdadeira relação entre mente e cérebro. A partir daí, ela

não serve mais apenas de uma regra para orientar a prática da pesquisa científica, mas sim de

hipótese metafísica – hipótese que, Bergson pretende mostrar, é insustentável.

Com efeito, para Bergson, os fatos, examinados sem pressupostos, mostrariam que o

inverso é verdadeiro: dado um fato psicológico que podemos determinar o estado cerebral

correspondente, e não o contrário; os estados cerebrais, na verdade, somente exprimem as

ações que se encontram pré-formadas nos estados mentais e os têm como fonte6. Bergson

trabalha melhor a sua hipótese sobre a relação mente-cérebro em outros textos7; não é do

nosso interesse, assim como não era do de Bergson, discutir sua própria posição nesse

momento do texto, muito embora tenhamos a pretensão de retomá-la posteriormente. O que

interessa nesse momento, para Bergson e para nós, é apontar a contradição inerente a toda

forma de paralelismo; paralelismo que, de acordo com o nosso autor, só sustenta uma

6 Bergson, p. 164.

7 Bergson 2.

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aparência de plausibilidade por um sofisma não-intencional que fazemos quando aderimos a

ele: o sofisma de deslizar de um sistema de notação dos objetos para o sistema oposto8.

O que significa isso, exatamente? Para Bergson, os dois sistemas de notação opostos

em questão são o idealista e o realista. Para o idealista, os objetos são representações; para o

realista, eles são coisas. Em que consiste a diferença entre pensarmos nos objetos como

representações ou como coisas? Ao concebermos que os objetos não são nada mais do que

nossas representações, ao adotarmos a posição idealista, assumimos que as coisas são

exatamente tal como aparecem a nós em nossas representações. Mais do que isso: assumimos

que elas não são nada mais senão essas mesmas representações. Sendo assim, não é possível,

para o idealista, supor que o objeto possua alguma potência, alguma virtualidade

desconhecida para ele, algo que, permanecendo latente no objeto, não aparece a nós em

nossa representação dele e, contudo, tem o poder de produzir efeitos e representações em

nós; o objeto nada mais é e nada mais pode ser do que sua representação. “Tudo que existe é

atual ou poderá tornar-se atual” (Bergson, p. 164), quer dizer, não há nada nos objetos para

além daquilo que se encontra presente para nós.

O realismo, por outro, lado, sustenta a hipótese oposta, a saber: o objeto é mais do

que a nossa representação dele. A causa da representação, o objeto que a produz e aquilo que

ele é, não é a própria representação; o objeto é algo que permanece oculto para nós, um

poder que, sem se apresentar na representação, a produz. O objeto não é sua representação,

mas sim a causa inacessível desta, de modo que os poderes que produzem em nós a sua

representação não são acessíveis na própria.

Tendo assim definido o realismo e o idealismo, Bergson se propõe a estabelecer os

seguintes pontos: 1) se adotamos a posição idealista E aceitarmos o paralelismo psicofísico,

caímos em contradição; 2) se adotamos a posição materialista e o mesmo paralelismo, caímos

exatamente na mesa contradição, apenas transposta de um sistema de notações para outro;

3) Só podemos escapar da contradição flagrante se, no momento em que estamos prestes a

ser pegos nela, saímos do sistema de notação dos objetos em que nos encontrávamos

previamente e passamos ao oposto, empregando os dois sistemas opostos de uma vez só à

mesma proposição (o que, obviamente, é inadmissível).

3. A contradição do paralelismo

Esses são os pontos que Bergson tentará estabelecer no restante do texto, que

leremos nos próximos dois seminários. A esse respeito, contudo, gostaria de antecipar

algumas considerações gerais sobre a natureza dessa contradição em que Bergson afirma que

todo paralelismo, quer realista, quer idealista, recairá. Que contradição é essa, afinal, tal que,

mesmo quando mudamos de sistema de notação, continuamos a cair em, ao adotarmos o

paralelismo? Para Bergson, em poucas palavras, nada mais é do que a contradição de tomar a

parte como o todo9. Como veremos em nossos próximos seminários, quer no idealismo, quer

no realismo, supor um paralelismo tal que a cada estado mental corresponde um estado

cerebral significa assumir que apenas uma parte do sistema de notação adotado – quer seja o

8 Idem ibid., p.164.

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de representações, que seja o de coisas – equivale a todo – o que seria absurdo. E a parte que

é tomada como equivalente ao todo, quer se trate ela como representação, quer se trate ela

como coisa, é, precisamente, o cérebro. Por isso, Bergson não cansará de nos lembrar, nesse e

outros textos10 e por meio de diversas metáforas, que a solidariedade entre duas totalidades

não implica na equivalência entre elas, da mesma forma que a solidariedade entre um botão e

o vestido a que pertence não faz com que haja uma correspondência de cada parte do botão

com cada parte do vestido. Se tirarmos o botão do vestido, certamente isso produzirá alguma

modificação no vestido; se o puxarmos com força e assim rasgarmos o tecido do vestido,

certamente o vestido sofrerá alguma alteração. Disso não se segue, contudo, que para cada

alteração que fizermos no botão há uma alteração no vestido, como se cada parte do botão

correspondesse a uma parte do vestido e cada alteração em uma parte desse botão produzisse

uma alteração na parte correspondente do vestido. Da mesma forma, não se segue que, por

alterações no cérebro serem acompanhadas de alterações na mente, o primeiro seja

equivalente ao último; antes, Bergson defenderá que isso ocorre precisamente porque o

cérebro deve ser visto como apenas uma parte, com uma função bastante específica, do todo

de nossa vida psíquica.

Referências Bibliográficas:

Bergson, Henri – O Cérebro e o Pensamento: Uma Ilusão Filosófica. Tradução: Franklin

Leopoldo e Silva. Cópia utilizada no curso disponível em

http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Bergson-Cerebro-e-Pensamento.pdf

_____________ – A Alma e o Corpo. Cópia utilizada no curso disponível em

http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Bergson%20-%20A%20Alma%20e%20o%20Corpo.pdf

FECHNER, G.T. (1966) - Elements of psychophysics, vol. I, trad. H.E. Adler, Holt, Rinehart &

Winston, New York. Prefácio e Cap. I (orig. em alemão: 1860). Cópia utilizada no curso

disponível em http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Fechner-Paralelismo-1.pdf

HEIDELBERGER, M. (2004), Nature from within: Gustav Theodor Fechner and his psychophysical

worldview, trad. C. Klohr, U. Pittsburgh Press, cap. 5 (orig. em alemão: 1993). Este capítulo foi

publicado como artigo, disponível na internet: “The mind-body problem in the origin of logical

empiricism: Herbert Feigl and psychophysical parallelism”. Cópia utilizada no curso disponível

em http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Fechner-Paralelismo-1.pdf

Outras referências bibliográficas:

Bergson, Henri – Memória e Vida. Tradução: Claudia Berliner; revisão técnica e da tradução

Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

____________ - Matéria e Memória. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

10

Bergson 2, pp. 206-207.