sete saber es

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1 Os sete saberes necessários à educação do futuro. Edgar Morin. Os sete saberes necessários à educação do futuro não têm nenhum programa educativo, escolar ou universitário. Aliás, não estão concentrados no primário, nem no secundário, nem no ensino universitário, mas abordam problemas específicos para cada um desses níveis. Eles dizem respeito aos setes buracos negros da educação, completamente ignorados, subestimados ou fragmentados nos programas educativos. Programas esses que, na minha opinião, devem ser colocados no centro das preocupações sobre a formação dos jovens, futuros cidadãos. O Conhecimento. O primeiro buraco negro diz respeito ao conhecimento. Naturalmente, o ensino fornece conhecimento, fornece saberes. Porém, apesar de sua fundamental importância, nunca se ensina o que é, de fato, o conhecimento. E sabemos que os maiores problemas neste caso são o erro e a ilusão. Ao examinarmos as crenças do passado, concluímos que a maioria contém erros e ilusões. Mesmo quando pensamos em vinte anos atrás, podemos constatar como erramos e nos iludimos sobre o mundo e a realidade. E por que isso é tão importante? Porque o conhecimento nunca é um reflexo ou espelho da realidade. O conhecimento é sempre uma tradução, seguida de uma reconstrução. Mesmo no fenômeno da percepção, através do qual os olhos recebem estímulos luminosos que são transformados, decodificados, transportados a um outro código, que transita pelo nervo ótico, atravessa várias partes do cérebro para, enfim, transformar aquela informação primeira em percepção. A partir deste exemplo, podemos concluir que a percepção é uma reconstrução. Tomemos um outro exemplo de percepção constante: a imagem do ponto de vista da retina. As pessoas que estão próximas parecem muito maiores do que aquelas que estão mais distantes, pois à distância, o cérebro não realiza o registro e termina por atribuir uma dimensão idêntica para todas as pessoas. Assim como os raios ultravioletas e

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EDGAR MORIN

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    Os sete saberes necessrios educao do futuro.

    Edgar Morin.

    Os sete saberes necessrios educao do futuro no tm nenhum programa

    educativo, escolar ou universitrio. Alis, no esto concentrados no primrio, nem no

    secundrio, nem no ensino universitrio, mas abordam problemas especficos para cada um

    desses nveis. Eles dizem respeito aos setes buracos negros da educao, completamente

    ignorados, subestimados ou fragmentados nos programas educativos. Programas esses que,

    na minha opinio, devem ser colocados no centro das preocupaes sobre a formao dos

    jovens, futuros cidados.

    O Conhecimento.

    O primeiro buraco negro diz respeito ao conhecimento. Naturalmente, o ensino

    fornece conhecimento, fornece saberes. Porm, apesar de sua fundamental importncia,

    nunca se ensina o que , de fato, o conhecimento. E sabemos que os maiores problemas

    neste caso so o erro e a iluso.

    Ao examinarmos as crenas do passado, conclumos que a maioria contm erros e

    iluses. Mesmo quando pensamos em vinte anos atrs, podemos constatar como erramos e

    nos iludimos sobre o mundo e a realidade. E por que isso to importante? Porque o

    conhecimento nunca um reflexo ou espelho da realidade. O conhecimento sempre uma

    traduo, seguida de uma reconstruo. Mesmo no fenmeno da percepo, atravs do qual

    os olhos recebem estmulos luminosos que so transformados, decodificados, transportados

    a um outro cdigo, que transita pelo nervo tico, atravessa vrias partes do crebro para,

    enfim, transformar aquela informao primeira em percepo. A partir deste exemplo,

    podemos concluir que a percepo uma reconstruo.

    Tomemos um outro exemplo de percepo constante: a imagem do ponto de vista

    da retina. As pessoas que esto prximas parecem muito maiores do que aquelas que esto

    mais distantes, pois distncia, o crebro no realiza o registro e termina por atribuir uma

    dimenso idntica para todas as pessoas. Assim como os raios ultravioletas e

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    infravermelhos que ns no vemos, mas sabemos que esto a e nos impem uma viso

    segundo as suas incidncias. Portanto, temos percepes, ou seja, reconstrues, tradues

    da realidade. E toda traduo comporta o risco de erro. Como dizem os italianos

    tradotore/traditore.

    Tambm sabemos que no h nenhuma diferena intrnseca entre uma percepo e

    uma alucinao. Por exemplo: se tenho uma alucinao e vejo Napoleo ou Jlio Csar,

    no h nada que me diga que estou enganado, exceto o fato de saber que eles esto mortos.

    So os outros que vo me dizer se o que vejo verdade ou no. Quero dizer com isso que

    estamos sempre ameaados pela alucinao. At nos processos de leitura isto acontece.

    Ns sabemos que no seguimos a linha do que est escrito, pois, s vezes, nossos olhos

    saltam de uma palavra para outra e reconstri o conjunto de uma maneira quase

    alucinatria. Neste momento, o nosso esprito que colabora com o que ns lemos. E no

    reconhecemos os erros porque deslizamos neles. O mesmo acontece, por exemplo, quando

    h um acidente de carro. As verses e as vises do acidente so completamente diferentes,

    principalmente pela emoo e pelo fato das pessoas estarem em ngulos diferentes.

    No plano histrico h erros, se me permitem o jogo de palavras, histricos.

    Tomemos um exemplo um pouco distante de ns: os debates sobre a Primeira Guerra

    Mundial. Uma poca em que a Frana e a Alemanha tinham partidos socialistas fortes,

    potentes e muito pacifistas, e que, evidentemente, eram contrrios guerra que se

    anunciava. Mas, a partir do momento em que se desencadeou a guerra, os dois partidos se

    lanaram, massivamente a uma campanha de propaganda, cada um imputando ao outro os

    atos mais ignbeis. Isto durou at o fim da guerra. Hoje, podemos constatar com os eventos

    trgicos do Oriente Mdio a mesma maneira de tratar a informao. Cada um prefere

    camuflar a parte que lhe desvantajosa para colocar em relevo a parte criminosa do outro.

    Este problema se apresenta de uma maneira perceptvel e muito evidente, porque as

    tradues e as reconstrues so tambm um risco de erro e muitas vezes o maior erro

    pensar que a idia a realidade. E tomar a idia como algo real confundir o mapa com o

    terreno.

    Outras causas de erro so as diferenas culturais, sociais e de origem. Cada um

    pensa que suas idias so as mais evidentes e esse pensamento leva a idias normativas.

    Aquelas que no esto dentro desta norma, que no so consideradas normais, so julgadas

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    como um desvio patolgico e so taxadas como ridculas. Isso no ocorre somente no

    domnio das grandes religies ou das ideologias polticas, mas tambm das cincias.

    Quando Watson e Crick decodificaram a estrutura do cdigo gentico, o DNA (cido

    desoxirribonuclico), surpreenderam e escandalizaram a maioria dos bilogos, que jamais

    imaginavam que isto poderia ser transcrito em molculas qumicas. Foi preciso muito

    tempo para que essas idias pudessem ser aceitas.

    Na realidade, as idias adquirem consistncia como os deuses nas religies. algo

    que nos envolve e nos domina a ponto de nos levar a matar ou morrer. Lenin dizia: Os

    fatos so teimosos, mas, na realidade, as idias so ainda mais teimosas do que os fatos e

    resistem aos fatos durante muito tempo. Portanto, o problema do conhecimento no deve

    ser um problema restrito aos filsofos. um problema de todos e cada um deve lev-lo em

    conta desde muito cedo e explorar as possibilidades de erro para ter condies de ver a

    realidade, porque no existe receita milagrosa.

    O Conhecimento Pertinente.

    O segundo buraco negro que no ensinamos as condies de um conhecimento

    pertinente, isto , de um conhecimento que no mutila o seu objeto. Ns seguimos, em

    primeiro lugar, um mundo formado pelo ensino disciplinar. evidente que as disciplinas

    de toda ordem ajudaram o avano do conhecimento e so insubstituveis. O que existe

    entre as disciplinas invisvel e as conexes entre elas tambm so invisveis. Mas isto no

    significa que seja necessrio conhecer somente uma parte da realidade. preciso ter uma

    viso capaz de situar o conjunto. necessrio dizer que no a quantidade de

    informaes, nem a sofisticao em Matemtica que podem dar sozinhas um conhecimento

    pertinente, mas sim a capacidade de colocar o conhecimento no contexto.

    A economia, que das cincias humanas, a mais avanada, a mais sofisticada, tem

    um poder muito fraco e erra muitas vezes nas suas previses, porque est ensinando de

    modo a privilegiar o clculo. Com isso, acaba esquecendo os aspectos humanos, como o

    sentimento, a paixo, o desejo, o temor, o medo. Quando h um problema na bolsa, quando

    as aes despencam, aparece um fator totalmente irracional que o pnico, e que,

    freqentemente, faz com que o fator econmico tenha a ver com o humano, ligando-se,

    assim, sociedade, psicologia, mitologia. Essa realidade social multidimensional e o

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    econmico apenas uma dimenso dessa sociedade. Por isso, necessrio contextualizar

    todos os dados.

    Se no houver, por exemplo, a contextualizao dos conhecimentos histricos e

    geogrficos, cada vez que aparecer um acontecimento novo que nos fizer descobrir uma

    regio desconhecida, como o Kosovo, o Timor ou Serra Leoa, no entenderemos nada.

    Portanto, o ensino por disciplina, fragmentado e dividido, impede a capacidade natural que

    o esprito tem de contextualizar. E essa capacidade que deve ser estimulada e

    desenvolvida pelo ensino, a de ligar as partes ao todo e o todo s partes. Pascal dizia, j no

    sculo XVII: No se pode conhecer as partes sem conhecer o todo, nem conhecer o todo

    sem conhecer as partes.

    O contexto tem necessidade, ele mesmo, de seu prprio contexto. E o

    conhecimento, atualmente, deve se referir ao global. Os acidentes locais tm repercusso

    sobre o conjunto e as aes do conjunto sobre os acidentes locais. Isso foi comprovado

    depois da guerra do Iraque, da guerra da Iugoslvia e, atualmente, pode ser verificado com

    o conflito do Oriente Mdio.

    A Identidade Humana.

    O terceiro aspecto a identidade humana. curioso que nossa identidade seja

    completamente ignorada pelos programas de instruo. Podemos perceber alguns aspectos

    do homem biolgico em Biologia, alguns aspectos psicolgicos em Psicologia, mas a

    realidade humana indecifrvel. Somos indivduos de uma sociedade e fazemos parte de

    uma espcie. Mas, ao mesmo tempo em que fazemos parte de uma sociedade, temos a

    sociedade como parte de ns, pois desde o nosso nascimento a cultura se nos imprime. Ns

    somos de uma espcie, mas ao mesmo tempo a espcie em ns e depende de ns. Se nos

    recusamos a nos relacionar sexualmente com um parceiro de outro sexo, acabamos com a

    espcie. Portanto, o relacionamento entre indivduo-sociedade-espcie como a trindade

    divina, um dos termos gera o outro e um se encontra no outro. A realidade humana

    trinitria.

    Eu acredito possvel a convergncia entre todas as cincias e a identidade humana.

    Um certo nmero de agrupamentos disciplinares vai favorecer esta convergncia.

    necessrio reconhecer que na segunda metade do sculo XX, houve uma revoluo

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    cientfica, reagrupando as disciplinas em cincias pluridisciplinares. Assim, h a

    cosmologia, as cincias da terra, a ecologia e a pr-histria.

    Tome-se como exemplo a cosmologia, que, efetivamente, utiliza a microfsica, os

    aceleradores de partculas para imaginar os primeiros segundos do universo. Ela utiliza a

    observao e pratica uma reflexo filosfica sobre o mundo, assim como fizeram Hubert

    Reeves, Hawkins, Michel Cass e tantos outros. Eles refletem sobre o universo incrvel no

    qual vivemos. Mas o que importante para a identidade humana saber que estamos neste

    minsculo planeta perdidos no cosmos. Nossa misso no mais a de conquistar o mundo

    como acreditava Descartes, Bacon e Marx. Nossa misso se transformou em civilizar o

    pequeno planeta em que vivemos.

    Por outro lado, as cincias da terra nos inscrevem neste planeta formado por

    fragmentos csmicos, resultados de uma exploso de sis anteriores. Resta saber como

    estes fragmentos reunidos e aglomerados puderam criar uma tal organizao, uma auto-

    organizao, para nos dar este planeta. necessrio mostrar que ele gerou a vida, e a ns

    somos, filhos da vida.

    A biologia, com a teoria da evoluo, nos prova como trazemos dentro de ns,

    efetivamente, o processo de desenvolvimento da primeira clula vivente, que se

    multiplicou e se diversificou.

    Quando sonhamos com nossa identidade, devemos pensar que temos partculas que

    nasceram no despertar do universo. Temos tomos de carbono que se formaram em sis

    anteriores ao nosso, pelo encontro de trs ncleos de hlio que se constituram em

    molculas e neuromolculas na terra. Somos todos filhos do cosmos, mas nos

    transformamos em estranhos atravs de nosso conhecimento e de nossa cultura.

    Portanto, preciso ensinar a unidade dos trs destinos, porque somos indivduos,

    mas como indivduos somos, cada um, um fragmento da sociedade e da espcie Homo

    sapiens, qual pertencemos. E o importante que somos uma parte da sociedade, uma

    parte da espcie, seres desenvolvidos sem os quais a sociedade no existe. A sociedade s

    vive com essas interaes.

    importante, tambm, mostrar que, ao mesmo tempo em que o ser humano

    mltiplo, ele parte de uma unidade. Sua estrutura mental faz parte da complexidade

    humana. Portanto, ou vemos a unidade do gnero e esquecemos a diversidade das culturas

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    e dos indivduos, ou vemos a diversidade das culturas e no vemos a unidade do ser

    humano.

    Esse problema vem causando polmicas desde o sculo XVIII, quando Voltaire

    disse: Os chineses so iguais a ns, tm paixes, choram. E Herbart, o pensador alemo,

    afirmou: Entre uma cultura e outra no h comunicao, os seres so diferentes. Os dois

    tinham razo, mas na realidade essas duas verdades tm que ser articuladas. Ns temos os

    elementos genticos da nossa diversidade e, claro, os elementos culturais da nossa

    diversidade.

    preciso lembrar que rir, chorar, sorrir, no so atos aprendidos ao longo da

    educao, so inatos, mas modulados de acordo com a educao. Heigerfeld fez uma

    observao sobre uma jovem surda-muda de nascena que ria, chorava e sorria.

    Atualmente, estudos demonstram que o feto comea a sorrir no ventre da me. Talvez

    porque no saiba o que o espera depois... Mas isso nos permite entender a nossa realidade,

    nossa diversidade e singularidade.

    Chegamos, ento, ao ensino da literatura e da poesia. Elas no devem ser

    consideradas como secundrias e no essenciais. A literatura para os adolescentes uma

    escola de vida e um meio para se adquirir conhecimentos. As cincias sociais vem

    categorias e no indivduos sujeitos a emoes, paixes e desejos. A literatura, ao

    contrrio, como nos grandes romances de Tolstoi, aborda o meio social, o familiar, o

    histrico e o concreto das relaes humanas com uma fora extraordinria.

    Podemos dizer que as telenovelas tambm nos falam sobre problemas fundamentais

    do homem; o amor, a morte, a doena, o cime, a ambio, o dinheiro. Temos que entender

    que todos esses elementos so necessrios para entender que a vida no aprendida

    somente nas cincias formais. E a literatura tem a vantagem de refletir sobre a

    complexidade do ser humano e sobre a quantidade incrvel de seus sonhos. Como James

    Joyce, por exemplo, que, ao criar um personagem, mostrava que uma pessoa pode ter

    sentimentos totalmente diversos. Ou como o heri de Dostoievski, em O Idiota que no

    sabe se a jovem est apaixonada por ele e ao fim da trama, depois de ter sofrido muito,

    encontra um amigo que lhe diz: mas que imbecil voc , no entendeu que ela o ama.

    Isto pode acontecer com qualquer pessoa, a dificuldade de saber o que o outro pensa e

    sente.

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    Marcel Proust mostrou, em Um amor de Swan, o que ele chamava de intermitncias

    do corao, ou seja, que uma pessoa pode se apaixonar, esquecer-se da pessoa desejada e

    voltar a am-la. Neste romance o heri sofre durante anos de cimes por causa de uma

    mulher e quando ele j no est mais apaixonado, diz: mas eu sofri tanto por uma mulher

    que no me amava e que nem era meu tipo.

    Podemos, ento, compreender a complexidade humana atravs da literatura. A

    poesia nos ensina a qualidade potica da vida, essa qualidade que ns sentimos diante de

    fatos da realidade. Como, por exemplo, os espetculos da natureza: o cu de Braslia que

    to bonito. A vida no deve ser uma prosa que se faa por obrigao. A vida viver

    poeticamente na paixo, no entusiasmo.

    Para que isso acontea, devemos fazer convergir todas as disciplinas conhecidas

    para a identidade e para a condio humana, ressaltando a noo de homo sapiens; o

    homem racional e fazedor de ferramentas, que , ao mesmo tempo, louco e est entre o

    delrio e o equilbrio, nesse mundo de paixes em que o amor o cmulo da loucura e da

    sabedoria.

    O homem no se define somente pelo trabalho, mas tambm pelo jogo. No s as

    crianas, como tambm os adultos gostam de jogar. Por isso vemos partidas de futebol.

    Ns somos Homo ludens, alm de Homo economicus. No vivemos s em funo do

    interesse econmico. H, tambm, o homo mitologicus, isto , vivemos em funo de mitos

    e crenas.

    Enfim o homem prosaico e potico. Como dizia Hlderling: O homem habita

    poeticamente na terra, mas tambm prosaicamente e se a prosa no existisse, no

    poderamos desfrutar da poesia.

    A Compreenso Humana.

    O quarto aspecto sobre a compreenso humana. Nunca se ensina sobre como

    compreender uns aos outros, como compreender nossos vizinhos, nossos parentes, nossos

    pais. O que significa compreender?

    A palavra compreender vem do latim, compreendere, que quer dizer: colocar junto

    todos os elementos de explicao, ou seja, no ter somente um elemento de explicao,

    mas diversos. Mas a compreenso humana vai alm disso, porque, na realidade, ela

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    comporta uma parte de empatia e identificao. O que faz com que se compreenda algum

    que chora, por exemplo, no analisar as lgrimas no microscpio, mas saber o significado

    da dor, da emoo. Por isso, preciso compreender a compaixo, que significa sofrer

    junto. isto que permite a verdadeira comunicao humana.

    A grande inimiga da compreenso a falta de preocupao em ensin-la. Na

    realidade, isto est se agravando, j que o individualismo ganha um espao cada vez maior.

    Estamos vivendo numa sociedade individualista, que favorece o sentido de

    responsabilidade individual, que desenvolve o egocentrismo, o egosmo e que,

    consequentemente, alimenta a autojustificao e a rejeio ao prximo.

    A raiva leva vontade de eliminar o outro e tudo aquilo que possa aborrecer. De

    certa maneira, isto favorece ao que os ingleses chamam de self-deception, isto , mentir a si

    mesmo, pois o egocentrismo vai tramando sempre o negativo e esquecendo dos outros

    elementos.

    A reduo do outro, a viso unilateral e a falta de percepo sobre a complexidade

    humana so os grandes empecilhos da compreenso. Outro aspecto da incompreenso a

    indiferena. E, por este lado, interessante abordar o cinema, que os intelectuais tanto

    acusam de alienante. Na verdade, o cinema uma arte que nos ensina a superar a

    indiferena, pois transforma em heris os invisveis sociais, ensinando-nos a v-los por um

    outro prisma. Charlie Chaplin, por exemplo, sensibilizou platias inteiras com o

    personagem do vagabundo. Outro exemplo Coppola, que popularizou os chefes da Mfia

    com O Chefo. No teatro, temos a complexidade dos personagens de Shakspeare: reis,

    gangsters, assassinos e ditadores. No cinema, como na filosofia de Herclito:

    Despertados, eles dormem. Estamos adormecidos, apesar de despertos, pois diante da

    realidade to complexa, mal percebemos o que se passa ao nosso redor.

    Por isso, importante este quarto ponto: compreender no s os outros como a si

    mesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a autojustificao, pois o mundo

    est cada vez mais devastado pela incompreenso, que o cncer do relacionamento entre

    os seres humanos.

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    A Incerteza.

    O quinto aspecto a incerteza. Apesar de, nas escolas, ensinar-se somente as

    certezas, como a gravitao de Newton e o eletromagnetismo, atualmente a cincia tem

    abandonado determinados elementos mecnicos para assimilar o jogo entre certeza e

    incerteza, da micro-fsica s cincias humanas. necessrio mostrar em todos os domnios,

    sobretudo na histria, o surgimento do inesperado. Eurpides dizia no fim de trs de suas

    tragdias que: os deuses nos causam grandes surpresas, no o esperado que chega e sim

    o inesperado que nos acontece. a velha idia de 2.500 anos, que ns esquecemos

    sempre.

    As cincias mantm dilogos entre dados hipotticos e outros dados que parecem

    mais provveis. Os processos fsicos, assim como outros tambm, pressupem variaes

    que nos levam desordem catica ou criao de uma nova organizao, como nas teorias

    sobre a incerteza de Prigogine, baseadas nos exemplos dos turbilhes de Born. Analisando

    retroativamente a histria da vida, constata-se que ela no foi linear, que no teve uma

    evoluo de baixo para cima. A evoluo segundo Darwin foi uma evoluo composta de

    ramificaes, a exemplo do mundo vegetal e o mundo animal.

    O homem vem de uma dessas ramificaes e conseguiu chegar conscincia e

    inteligncia, mas no somos a meta da evoluo, fazemos parte desse processo. A histria

    da vida foi, na verdade, marcada por catstrofes.

    No fim da era secundria, a queda do asteride que matou os dinossauros e

    ressecou a vegetao desses animais enormes, matando-os de fome deu oportunidade

    proliferao dos mamferos. Assim tambm ocorreu com as sociedades humanas. Todas

    sofreram o colapso por uma razo ou outra. Nem mesmo o imprio romano, que parecia

    eterno, conseguiu sobreviver. As sociedades andinas, que eram mais potentes que seus

    colonizadores espanhis e cujas capitais eram muita mais ricas que Paris, Madri ou Lisboa,

    foram destrudas por espanhis que chegaram com cavalos e armas desconhecidas.

    As duas guerras mundiais destruram muito na metade do sculo XX, depois da

    Primeira Guerra Mundial. Trs grandes imprios da poca, por exemplo, o romano-

    otomano, o austro-hngaro e o sovitico, desapareceram.

    Isto nos demonstra a necessidade de ensinar o que chamamos de ecologia da ao: a

    atitude que se toma quando uma ao desencadeada e escapa ao desejo e s intenes

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    daquele que a provocou, desencadeando influncias mltiplas que podem desvi-la at para

    o sentido oposto ao intencionado.

    A histria humana est repleta de exemplos dessa natureza. O mais evidente no

    final do sculo XX foi o projeto poltico de Gorbatchev, que pretendeu reformar o sistema

    poltico da Unio Sovitica, mas acabou provocando o comeo de sua prpria

    desagregao e imploso.

    Assim tem acontecido em todas as etapas da histria. O inesperado aconteceu e

    acontecer, porque no temos futuro e no temos certeza nenhuma do futuro. As previses

    no foram concretizadas, no existe determinismo do progresso. Os espritos, portanto, tm

    que ser fortes e armados para enfrentarem essa incerteza e no se desencorajarem.

    Essa incerteza uma incitao coragem. A aventura humana no previsvel, mas

    o imprevisto no totalmente desconhecido. Somente agora se admite que no se conhece

    o destino da aventura humana. necessrio tomar conscincia de que as futuras decises

    devem ser tomadas contando com o risco do erro e estabelecer estratgias que possam ser

    corrigidas no processo da ao, a partir dos imprevistos e das informaes que se tem.

    A Condio Planetria.

    O sexto aspecto a condio planetria, sobretudo na era da globalizao no

    sculo XX que comeou, na verdade no sculo XVI com a colonizao da Amrica e a

    interligao de toda a humanidade. Esse fenmeno que estamos vivendo hoje, em que tudo

    est conectado, um outro aspecto que o ensino ainda no tocou, assim como o planeta e

    seus problemas, a acelerao histrica, a quantidade de informao que no conseguimos

    processar e organizar.

    Este ponto importante porque existe, neste momento, um destino comum para

    todos os seres humanos. O crescimento da ameaa letal se expande em vez de diminuir: a

    ameaa nuclear, a ameaa ecolgica, a degradao da vida planetria. Ainda que haja uma

    tomada de conscincia de todos esses problemas, ela tmida e no conduziu ainda a

    nenhuma deciso efetiva. Por isso, faz-se urgente a construo de uma conscincia

    planetria.

    Conhecer o nosso planeta difcil: os processos de todas as ordens econmicos,

    ideolgicos e sociais esto de tal maneira imbricados e so to complexos, que

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    compreend-los um verdadeiro desafio para o conhecimento. Ortega y Gasset dizia: no

    sabemos o que acontece, isto o que acontece.

    necessria uma certa distncia em relao ao imediato para podermos

    compreend-lo. E, atualmente, dada a acelerao e a complexidade do mundo, quase

    impossvel. Mas, faz-se necessrio ressaltar, esta a dificuldade. necessrio ensinar que

    no suficiente reduzir a um s a complexidade dos problemas importantes do planeta,

    como a demografia, ou a escassez de alimentos, ou a bomba atmica, ou a ecologia. Os

    problemas esto todos amarrados uns aos outros.

    Daqui para frente, existem, sobretudo, os perigos de vida e morte para a

    humanidade, como a ameaa da arma nuclear, como a ameaa ecolgica, como o

    desencadeamento dos nacionalismos acentuados pelas religies. preciso mostrar que a

    humanidade vive agora uma comunidade de destino comum.

    A Antropo-tica.

    O ltimo aspecto o que vou chamar de antropo-tico, porque os problemas da

    moral e da tica diferem a depender da cultura e da natureza humana. Existe um aspecto

    individual, outro social e outro gentico, diria de espcie. Algo como uma trindade em que

    as terminaes so ligadas: a antropo-tica. Cabe ao ser humano desenvolver, ao mesmo

    tempo, a tica e a autonomia pessoal (as nossas responsabilidades pessoais), alm de

    desenvolver a participao social (as responsabilidades sociais), ou seja, a nossa

    participao no gnero humano, pois compartilhamos um destino comum.

    A antropo-tica tem um lado social que no tem sentido se no for na democracia,

    porque a democracia permite uma relao indivduo-sociedade e nela o cidado deve se

    sentir solidrio e responsvel. A democracia permite aos cidados exercerem suas

    responsabilidades atravs do voto. Somente assim possvel fazer com que o poder

    circule, de forma que aquele que foi uma vez controlado, ter a chance de controlar.

    Porque a democracia , por princpio, um exerccio de controle.

    No existe, evidentemente, democracia absoluta. Ela sempre incompleta. Mas

    sabemos que vivemos em uma poca de regresso democrtica, pois o poder tecnolgico

    agrava cada vez mais os problemas econmicos. Na verdade, o importante orientar e

  • 12

    guiar essa tomada de conscincia social que leva cidadania, para que o indivduo possa

    exercer sua responsabilidade.

    Por outro lado, a tica do ser humano est se desenvolvendo atravs das associaes

    no-governamentais, como os Mdicos Sem Fronteiras, o Greenpeace, a Aliana pelo

    Mundo Solidrio e tantas outras que trabalham acima de entidades religiosas, polticas ou

    de Estados nacionais, assistindo aos pases ou s naes que esto sendo ameaadas ou em

    graves conflitos. Devemos conscientizar a todos sobre essas causas to importantes, pois

    estamos falando do destino da humanidade.

    Seremos capazes de civilizar a terra e fazer com que ela se torne uma verdadeira

    ptria? Estes so os sete saberes necessrios ao ensino. E no digo isso para modificar

    programas. Na minha opinio, no temos que destruir disciplinas, mas sim integr-las,

    reuni-las em uma cincia como, por exemplo, as cincias da terra (a sismologia, a

    vulcanologia, a meteorologia), todas elas articuladas em uma concepo sistmica da terra.

    Penso que tudo deva estar integrado para permitir uma mudana de pensamento;

    para que se transforme a concepo fragmentada e dividida do mundo, que impede a viso

    total da realidade. Essa viso fragmentada faz com que os problemas permaneam

    invisveis para muitos, principalmente para muitos governantes.

    E hoje que o planeta j est, ao mesmo tempo, unido e fragmentado, comea a se

    desenvolver uma tica do gnero humano, para que possamos superar esse estado de caos e

    comear, talvez, a civilizar a terra.