silêncio e (meta)linguagem em fale com ela - renata farias de felippe

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cadernos pagu (23), julho-dezembro de 2004, pp.399-411. Silêncio e (meta)linguagem em “Fale com ela” * Renata Farias de Felippe ** Michel Chion nos diz que o grito no cinema é principalmente feminino e que suas possibilidades expressivas são inúmeras. É sempre um grito de mulher, quem sabe porque haja um sabor sádico ou porque o gozo feminino seja interdito ao homem. O grito do homem é um grito de poder, um grito de Tarzan, demarcando seu território fálico. 1 Não há gritos em “Fale com ela”. Nem femininos, nem de nenhuma espécie. Aliás no filme, contrariando o clichê, as mulheres pouco falam, e o uso do tempo verbal no imperativo presente no título denuncia este silêncio. Em “Fale com ela” predomina, literalmente, a voz masculina, mas no filme, os homens também não gritam, ao contrário. Na película, o tom de voz dos personagens é o mesmo de Caetano Veloso na releitura de Cucurucucu paloma, o que contraria a idéia de que esse “diretor de mulheres seja responsável por deixar à beira de um ataque de nervos também os homens”. 2 * Crítica do filme “Fale com ela” dirigido por Pedro Almodóvar, 2002 ** Professora substituta da Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande-RS, Brasil. [email protected] 1 HAOULI, Janete El. A voz de Almodóvar. In: CAÑIZAL, Eduardo Peñuela (org). Urdidura de sigilos. São Paulo, Anablume, 1996. p.89 2 MELO, Andréa Bezerro de. A presença feminina no cinema de Almodóvar. Ibidem. p.235.

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Silêncio e (Meta)Linguagem Em Fale Com Ela - Renata Farias de Felippe

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  • cadernos pagu (23), julho-dezembro de 2004, pp.399-411.

    Silncio e (meta)linguagem em Fale com ela*

    Renata Farias de Felippe **

    Michel Chion nos diz que o grito no cinema principalmente feminino e que suas possibilidades expressivas so inmeras. sempre um grito de mulher, quem sabe porque haja um sabor sdico ou porque o gozo feminino seja interdito ao homem. O grito do homem um grito de poder, um grito de Tarzan, demarcando seu territrio flico. 1

    No h gritos em Fale com ela. Nem femininos, nem de

    nenhuma espcie. Alis no filme, contrariando o clich, as mulheres pouco falam, e o uso do tempo verbal no imperativo presente no ttulo denuncia este silncio.

    Em Fale com ela predomina, literalmente, a voz masculina, mas no filme, os homens tambm no gritam, ao contrrio. Na pelcula, o tom de voz dos personagens o mesmo de Caetano Veloso na releitura de Cucurucucu paloma, o que contraria a idia de que esse diretor de mulheres seja responsvel por deixar beira de um ataque de nervos tambm os homens.2

    * Crtica do filme Fale com ela dirigido por Pedro Almodvar, 2002 ** Professora substituta da Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande-RS, Brasil. [email protected] 1 HAOULI, Janete El. A voz de Almodvar. In: CAIZAL, Eduardo Peuela (org). Urdidura de sigilos. So Paulo, Anablume, 1996. p.89 2 MELO, Andra Bezerro de. A presena feminina no cinema de Almodvar. Ibidem. p.235.

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    Ao enfatizar, no filme, personagens femininas silenciadas, Pedro Almodvar subverte no s o esteretipo relativo verborragia feminina, como tambm rompe com os clichs do prprio estilo. Vrias de suas personagens podem ser consideradas mulheres, digamos, alteradas, como Pepi, Glria, Pepa, Kika, Andra Caracortada, Leocdia. No que diz respeito a sua reduzida produo literria, nesta, tambm encontramos figuras peculiares como todas as personagens de Fogo nas entranhas. Porm, na fase considerada madura da filmografia almodovariana posterior a Kika (1993) a presena de mulheres perturbadas parece menor, ainda que em Fale com ela Lydia seja uma personagem passional e conflituosa. Tal reduo, possivelmente, seja resultante da tentativa de renovao do diretor, uma tentativa de escapar repetio. Segundo Affonso Beato:

    Alguns anos depois de ter feito Kika, ele (Pedro Almodvar) entrou em conflito. Com Kika ele chegou ao fim de um movimento esttico que estava muito cenogrfico, muito alegrico, e que j estava muito longe da realidade. [...] As pessoas no gostavam de Kika, nem ele estava gostando mais.3 Sendo assim, a partir de A flor do meu segredo (1995), as

    mudanas estticas e temticas tornam-se evidentes. No que diz respeito s imagens, a fotografia de seus filmes passa a enfatizar o amarelo, o marrom, o vermelho e a esttica kitsch diluda. Quanto aos personagens, os conflitos destes tornam-se profundos. A caricatura, a pardia e o carter anrquico, tornam-se menos evidentes.

    O cinema de Pedro Almodvar renova-se no apenas devido a um processo natural ou por sua prpria necessidade de auto-superao, mas porque sua obra, reproduzindo os

    3 apud BARTUCCI, Giovana. Almodvar ou o desejo como universo. Revista de leitura, n. 7, So Paulo, Imprensa Oficial, julho de 2003, p.15.

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    mecanismos do prprio desejo, aniquila com a possibilidade de fixao de padres e modelos.4

    Se a temtica do desejo uma constante no diretor, e este despertado por uma infinidade de agentes e tem infinitos desdobramentos, apontando para a diversidade de situaes, por outro lado, inegvel que a produo do cineasta possui incidncias. Esta, atenta contra todo o tipo de ordem sexual estabelecida a partir da dicotomia masculino/feminino, possui uma profunda ligao com figuras marginais, bem como utiliza-se da funo metalingstica para explicitar as emoes e as caractersticas dos personagens. Esta ltima caracterstica, em especial, a temtica do presente trabalho e o fato que motivou a escolha de Fale com ela como foco de anlise, uma vez que, a meu ver, este o filme de Almodvar que mais se utiliza de recursos metalingsticos.

    Na obra do diretor manchego a sexualidade no est reduzida a uma diferena binria (masculino/feminino). Em Fale com ela certas caractersticas relativizam as supostas diferenas entre os sexos, pois identificamos nos personagens elementos que a conveno ditou como inerentes ao sexo oposto. Lydia uma toureira, portanto, mulher cuja escolha profissional a associa idia de virilidade. No entanto, esta se mostra uma figura passional e emotiva, atributos convencionalmente interditados aos homens. Marco, o namorado de Lydia, se emociona ao assistir Pina Bausch e ao ouvir Caetano Veloso, rompendo com o pressuposto de que a insensibilidade seria uma caracterstica masculina. Por outro lado, a razo o impede de se comunicar com a namorada em coma, o que remete dificuldade de expressar sentimentos atribuda aos homens. Benigno, o enfermeiro apaixonado por Alicia, esta tambm em coma, cuida de sua amada com um zelo quase maternal, do mesmo modo que

    4 SILVA. Wilson da. No limiar do desejo. In: CAIZAL, E. P. Urdidura de sigilos... Op. cit., p.63.

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    havia cuidado da prpria me. Porm, ao violar Alicia, Benigno assume o lado mais violento e sombrio da masculinidade.

    No que diz respeito metalinguagem, esta pode ser vista, de uma maneira generalizada, como uma linguagem que serve para descrever outra linguagem ou qualquer sistema de significao. Elemento que se faz presente na obra do diretor espanhol tanto em sua fase de formao quanto de confirmao, a metalinguagem, em Ata-me (1986), por exemplo, se faz atravs da insero de um filme de terror dentro da narrativa, pelcula que representaria o desejo de Mximo (o personagem-diretor) em submeter Marina. Em Tudo sobre minha me, a personagem Huma Rojo encena Um bonde chamado desejo, despertando as lembranas de Manuela que, no passado, teria vivido a mesma situao de Estela, personagem do texto de Tenessee Williams. Sendo assim, a funo metalingstica em Almodvar est em seus filmes explicitamente para se submeter grande funo almodovariana, a funo emotiva.5

    Em Fale com ela, trs linguagens distintas se inserem na narrativa cinematogrfica: a dana (espetculos Caffe Muller e Fogo), a msica (interpretao de Caetano Veloso) e a tauromaquia. Temos tambm como exemplo de metalinguagem o filme mudo Amante minguante, dentro do filme em questo. A intensa utilizao do mecanismo metalingstico na pelcula, alm de contribuir para a funo emotiva, constitui um recurso que permite uma caracterizao mais completa dos personagens, sendo que em certos momentos, a metalinguagen funciona como uma espcie de agente premonitrio, referente a fatos e aes que ainda esto por vir.

    1. Caffe Mueller

    Nas primeiras cenas de Fale com ela, Benigno e Marco esto assistindo ao espetculo de dana Caffe Mueller, com Pina

    5 http://www.geocities.com/contracampo/tudosobreminhamae.html

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    Bausch. Neste, duas bailarinas de camisola danam de olhos fechados, cercadas por cadeiras, sendo que um homem afasta os obstculos do caminho de uma delas, enquanto a outra choca-se contra a parede. Na platia, Marco se emociona com o espetculo, chamando a ateno de Benigno. Neste momento, temos dois receptores que reagem de forma distinta apresentao. Um deles, Benigno, mostra-se atento e concentrado; o outro,Marco,surge visivelmente emocionado, a ponto de no conter as lgrimas. Fatos futuros sero capazes de justificar tais reaes, bem como a presena do ballet no filme.

    Benigno (que enfermeiro) assiste atentamente apresentao para depois descrev-la a Alicia, uma jovem em coma, sob seus cuidados, e por quem o personagem apaixonado. Assim como o homem que, no espetculo, afasta as cadeiras do caminho de uma das danarinas privada da viso, Benigno tambm ser os olhos de Alicia e a figura que, at certo ponto, prezar por seu bem-estar. Caffe Mueller tambm remete ao microuniverso de Alicia, personagem que, antes do coma, era bailarina.

    Marco, ao comover-se com a apresentao, demonstra sua sensibilidade aguada e, sob certo aspecto, sua coragem. Vestgios de uma viso sexista, ainda presentes em nossa sociedade, vetam aos homens o direito de expor seus sentimentos, o que faz do personagem uma figura que contraria o esteretipo de masculinidade ainda vigente. Alm de propiciar a exposio de caractersticas do personagem, a apresentao de dana (recurso metalingstico), de certa forma, antecipa fatos futuros: Marco ir apaixonar-se por Lydia (representada pela segunda bailarina), mulher que tambm ficar em coma, e, nesta ocasio, conhecer Benigno e Alicia. Assim como uma das danarinas, Lydia estar sozinha em seu coma, j que Marco mostrar-se- incapaz de comunicar-se com ela. Desta incapacidade resultar o ttulo do filme e o uso do verbo no imperativo. Benigno quem aconselha Marco a falar com ela (Lydia).

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    No filme, o primeiro uso da metalinguagem, portanto, tem o objetivo de indicar situaes futuras, assumindo um sentido de antecipao aos fatos.

    2. Salom contra o touro

    A tauromaquia , possivelmente, a manifestao mais reconhecida como inerente cultura espanhola. O ato de tourear uma das atividades na qual h uma incipiente participao feminina, uma vez que dominar o touro e penetr-lo repetidas vezes com a lana so atos que remetem virilidade. No entanto, inevitvel associar tal atividade tambm feminilidade, pois a capacidade de seduzir, atrair o animal com o uso da capa vermelha (espcie de vu) so atos que remetem, convencionalmente, s estratgias femininas de conquista.

    Afinal de contas, o toureiro controla o animal atravs do vu (a capa vermelha). O movimento da capa fascina a vtima, que, confusa, se torna um alvo fcil penetrao da espada e das lanas.6 Sob tal perspectiva, pode-se ver o ato de tourear como ao

    que articula elementos masculinos e femininos, o que atribui ao ato um carter hbrido, capaz de aproximar o mais viril toureiro da figura sedutora de Salom.7 Tal relao com a personagem bblica torna-se ainda mais estreita quando temos uma toureira. Lydia desafia a estrutura patriarcal ao colocar-se, a princpio, como agente do sacrifcio, e no como vtima. ela quem penetra o touro, causando incmodo aos seus colegas de profisso por executar um ato encarado como viril. Se considerarmos as estratgias de seduo como prprias feminilidade, o fato de uma mulher tourear no seria inusitado. 6 MELO, Andr da Mota Bezerra de. A presena feminina no cinema de Almodvar. In: CAIZAL, E. P. Urdidura de sigilos ... Op. cit., p.234 7 Curiosamente, Salom (1978) o ttulo de um dos curtas de Almodvar.

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    Assim como a figura do toureiro/a a personalidade de Lydia tambm articula elementos tradicionalmente associados aos dois sexos. Ao mesmo tempo em que corajosa e fria, atributos supostamente masculinos e essenciais profisso, mostra-se perturbada quando abandonada pelo ex-amante. O perfil hbrido da personagem fica explcito quando, na cena da tourada, Lydia enfrenta e vence o touro (ato associado virilidade) ao som de Elis Regina, cuja voz interpreta a devoo de uma mulher ao seu bem-amado, o que remete ao sentimentalismo atribudo ao sexo feminino. Talvez a fuso de caractersticas tradicionalmente vistas como masculinas e/ou femininas seja a responsvel pelo carter conflituoso e contraditrio da personagem. Ao vencer o touro diante do ex-amante, tambm toureiro, Lydia se vinga do abandono e tenta mostrar-se no controle de seus sentimentos. Por outro lado, a trilha sonora representa o seu mais recndito desejo: o de expressar o seu amor e o seu devotamento quele que a abandonou.

    Lydia enfrenta touros, mas teme cobras, e quando finalmente reata com o homem que ama, se oferece ao sacrifcio ao deixar-se vencer pelo touro (representao do patriarcado). O ato contraditrio aponta para vrias leituras, embora eu destaque duas. A personagem pode ter-se entregado morte por saber que sua relao com o Nio de Valnsia estaria fadada ao fracasso. A tentativa de suicdio da personagem tambm pode remeter a um trao relevante na obra do diretor: Almodvar leva ao extremo a imolao do corpo feminino para salientar a rgida tipificao sexual da cultura patriarcal. Trata-se, portanto, de uma atitude totalmente conceitual.8

    O sacrifcio voluntrio da personagem representa a renncia e a crtica sociedade patriarcal. O gesto de Lydia contraditrio como a sua prpria natureza: ao mesmo tempo em que desiste de lutar contra o patriarcalismo e se nega a passar por mgoas futuras, demonstrando sua fragilidade, jamais se coloca na

    8 MELO, A. M. B. A presena feminina... Op. cit., p.255.

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    condio de vtima. Lydia tem um final trgico porque assim o deseja.

    3. O canto sutil ou os doces latinos

    Durante aproximadamente trs minutos do filme, Caetano Veloso canta a tristeza de um homem abandonado em sua verso para Cucurucucu Paloma, tradicional msica mexicana. Ao assistir a performance, o personagem Marco emociona-se mais uma vez, e a metalinguagem funciona como um suporte para a funo emotiva, novamente.

    A emotividade de seu carter tambm relativiza as diferenas entre os gneros, uma vez que o choro e a exposio de sentimentos considerada uma fraqueza que vai de encontro ao conceito de virilidade. To importante quanto a anlise da utilizao da metalinguagem, um fato anterior performance de Caetano Veloso deve ser considerado.

    Logo aps conhecer Lydia, Marco a deixa em casa. neste momento que a personagem encontra uma cobra e fica em pnico, demonstrando uma de suas fraquezas. Marco, por sua vez, se v obrigado a liquidar o animal e, ao faz-lo, chora. Ao contrrio de Lydia, Marco no sente medo do animal, mas mat-lo o faz recordar uma situao semelhante e um antigo amor. No momento em que o personagem salva Lydia, esta passa a interessar-se por ele. Esta uma passagem importante, pois alm de expor a sensibilidade de Marco, uma alegoria ao relacionamento entre este e Lydia.

    O ato de matar a cobra remete a duas leituras complementares e, estranhamente, contraditrias. Se ao matar o animal o personagem mostra-se corajoso e defensor da mocinha em perigo, por outro lado, este estaria sacrificando um smbolo que remete masculinidade, como se o mesmo tivesse de atenuar certas caractersticas associadas virilidade para conquistar Lydia. Marco conquista-a por mostrar-se duplamente corajoso: por salv-la, tomando a atitude que se espera de um homem, e

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    por mostrar-se fragilizado diante de uma mulher, ambigidade que remete ao perfil do prprio personagem que se sensibiliza ao ouvir uma cano, mas cuja racionalidade o impede de comunicar-se com a namorada em coma.

    A participao de Caetano Veloso no filme , portanto, o recurso metalingstico que evidencia a poro emotiva do personagem, e no a sua totalidade. A escolha do cantor brasileiro no casual: alm da amizade deste com o diretor, a sutileza de sua voz e de sua interpretao representam a sensibilidade de Marco. A prpria letra da cano tem uma funo quase que proftica: em um determinado momento, Lydia abandonar Marco, e este tambm sentir-se- frgil e sozinho como o homem de quem fala a msica. A escolha de um cantor brasileiro tambm pode ser uma espcie de homenagem. Assim como Marco, que argentino, Caetano Veloso tambm latino-americano e interpreta uma conhecida msica mexicana. A presena da argentina Ceclia Roth, que tambm assiste performance, parece reforar esta suposta apologia. Sendo assim, a utilizao da metalinguagem, neste caso, alm de ser um suporte funo emotiva e de, sutilmente, indicar uma situao posterior, tambm remete a uma outra cultura, referncia que projeta o filme para alm do contexto espanhol, este, sinteticamente representado por Lydia.

    4. Amante minguante

    Em Fale com ela, os atos contraditrios dos personagens podem ser derivados da fuso entre os atributos que, supostamente, delimitariam os gneros masculino e feminino. Esta tambm uma das justificativas possveis para a violncia de Benigno contra Alicia. Ao violar a personagem, Benigno, que at ento dedicara-se sua amada devotadamente, o que remete ao cuidado maternal, assume o lado obscuro e agressivo de sua masculinidade.

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    Assim como Lydia exerce uma profisso predominan-temente masculina, a profisso de enfermeiro exercida por Benigno , principalmente, executada pelas mulheres. Alm de enfermeiro, o personagem exerce tambm as funes de cabeleireiro e esteticista, pois, antes mesmo de conhecer Alicia, cuidava de sua prpria me, o que representa uma inverso das funes tradicionais. O personagem, cujos atributos o aproximam da idia de maternidade e, conseqentemente, de feminilidade, tem a sua masculinidade latente despertada atravs de um recurso metalingstico.

    No caso de Benigno, a metalinguagem funciona como um mecanismo de transgresso do personagem consigo, bem como com a prpria lei. Ao assistir o filme mudo Amante minguante, o personagem tem o seu desejo de possuir Alicia despertado, desejo este anteriormente compensado pelo simples prazer de cuid-la. Sylvia Loeb define a natureza de Benigno, antes da violao, como um estado paradisaco de indiferenciao sexual.

    Benigno dedica-se de corpo e alma adorao e aos cuidados daquela mulher viva/morta. Mais do que isso, Benigno realiza um dos sonhos mais secretos da mulher: o de ter um homem que se dedique inteiramente a ela.9 No entanto, aps o contato com o filme no qual o

    protagonista torna-se minsculo, realizando uma das fantasias sexuais primordiais do homem, que seria a de ser totalmente engolido pela mulher - Benigno tem definido o seu papel sexual. Segundo S. Loeb:

    Almodvar, grande artista que , ilustra magistralmente e com muito humor, a fantasia sexual fundante do homem: o de ser totalmente engolido, engolfado pela Grande Vagina da Mulher. Fascinao e medo desse imenso buraco, negro,

    9 LOEB, Silvia. O impossvel entre homens e mulheres www.gradiva.com.br/ impossivel.htm, 29-08-2004.

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    misterioso (...) que pode aterrorizar o homem para o resto de sua vida. Ao despertar a sua masculinidade, Benigno reivindica o

    direito de exerc-la e de ter a sua dedicao compensada. O personagem, inclusive, revela a sua inteno de casar-se com Alicia. No entanto, no filme, a obedincia lei do desejo tem um preo: Benigno preso, acusado de violar uma mulher sem defesas, contrariando o significado de seu prprio nome.

    A metalinguagem, portanto, usada com a inteno de trazer tona fantasias do inconsciente mais profundo do personagem, sendo tambm a responsvel pelo desencadeamento de uma srie de fatos que tem seu desfecho com o triste fim do mesmo.

    5. Fogo, Alicia e o final feliz

    Dos personagens de Fale com ela, Alicia a nica que no apresenta qualquer contradio, exatamente por passar maior parte do filme atada ao silncio. Esta, tambm a personagem cuja mudez torna-a ainda mais misteriosa, uma vez que esta comunica-se com o espectador atravs de uma linguagem que exclui gestos e palavras.

    As aparies da personagem so cercadas por uma aura sedutora. A nudez e a beleza da atriz so exploradas, e esta colocada em uma posio propcia contemplao, no s quando dana graciosamente, atraindo o olhar de Benigno da janela de casa, mas tambm quando aparece pela primeira vez a Marco nua e envolvida em lenis. So exatamente a imobilidade, o silncio e a beleza de Alicia os elementos que colocam-na em uma posio ideal observao, atraindo os olhares masculinos do filme. De acordo com Silvia Loeb, essa linda mulher em coma, encanta por realizar um dos sonhos mais secretos do homem: o de ter uma mulher absolutamente sua merc.10 10 LOEB, S. O impossvel... Op. cit.

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    O espetculo de dana Fogo, que marca o reencontro de Marco e Alicia, em um determinado momento, sintetiza a presena deste filme. No palco, uma mulher sensual passa pelas mos de vrios homens e seu corpo est inteiramente entregue s mos dos bailarinos. A danarina tem um microfone nas mos, porm, no esboa qualquer movimento que simule o canto, o que remete a um desejo irrealizvel de expresso e, conseqentemente, ao anterior estado de coma do qual Alicia se libertou.

    A linguagem corporal expressa atravs da dana, mais uma vez, um recurso que explicita o papel da personagem no filme. Tal qual a bailarina do espetculo, cujo corpo manipulado por mos masculinas, Alicia a mulher utpica, a figura idealizada, muda, absoluta disposio do olhar e do desejo masculino heterossexual. Sua imobilidade e mudez so ideais no s satisfao sexual, mas tambm possibilidade de comunicao entre os sexos. Alicia o interlocutor perfeito, a figura que pode ouvir os mais recnditos segredos, sigilosamente, e reagir s revelaes conforme a tica daquele que se desnuda.

    Nos momentos finais de Fogo, vrios casais danam harmoniosamente em meio a um cenrio idlico. Um dos casais desloca-se para um recanto, insinuando um encontro mais ntimo, interditado aos espectadores. Neste momento, Marco e Alicia se olham e surge um letreiro com os seus nomes. a metalinguagem a servio de um desdobramento futuro, exterior narrativa e ao qual, ns, espectadores, no acompanharemos. Temos apenas a certeza de que um novo amor comea e fantasiamos para que este, enfim, seja feliz.

    sob o signo da esperana que Pedro Almodvar encerra esta histria de amor marcada pelo silncio. exatamente a falta de palavras e aes que faz da metalinguagem um recurso to necessrio, capaz de diminuir a hegemonia da palavra. Ao espectador, depois de acompanhar histrias de amor marcadas pela tragdia e pelo castigo, fica a certeza de que uma nova relao comea, o que faz do filme uma ode vida quando

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    recoloca frente a frente um homem e uma mulher recomeando uma vez mais e sempre, a recriao do mundo.11 Sem palavras.

    11 LOEB, Silvia. O impossvel... Op. cit.