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  • RICARDO JOS BARBOSA DA SILVA

    HISTRIA INVISVEL: UMA ANLISE PSICOSSOCIAL DAS RAZES MGICO-

    RELIGIOSAS DO NACIONAL-SOCIALISMO

    Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, como parte integrante dos requisitos para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia.

    So Paulo 2009

  • RICARDO JOS BARBOSA DA SILVA

    HISTRIA INVISVEL: UMA ANLISE PSICOSSOCIAL DAS RAZES MGICO-RELIGIOSAS DO NACIONAL-SOCIALISMO

    Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, como parte integrante dos requisitos para obteno do ttulo de Doutor em Psicologia.

    rea da concentrao: Psicologia Social Orientador: Profa. Dra. Sueli Damergian

    So Paulo 2009

  • HISTRIA INVISVEL: UMA ANLISE PSICOSSOCIAL DAS RAZES MGICO-RELIGIOSAS DO NACIONAL-SOCIALISMO

    RICARDO JOS BARBOSA DA SILVA

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________

    (Nome e Assinatura)

    _____________________________________

    (Nome e Assinatura)

    _____________________________________

    (Nome e Assinatura)

    _____________________________________

    (Nome e Assinatura)

    _____________________________________

    (Nome e Assinatura)

    Tese defendida e aprovada em: __ / __ / __

  • A meus pais: Sofia, Ado e Conceio (in memorian)

  • AGRADECIMENTOS

    Professora Sueli Damergian, minha orientadora, pela inspirao, pela confiana e pela amizade.

    Aos professores Maria Ins Assumpo Fernandes e Eda Tassara, pelas sugestes apresentadas por ocasio do exame de qualificao.

    A Daniela Ona, pela companhia, pelas sugestes e tambm pelo auxlio inestimvel quanto a digitao deste trabalho.

    A CAPES pelo auxlio financeiro.

    E, finalmente, a todos os meus amigos, novos e velhos, por suportarem minha constante falta de tempo.

  • RESUMO

    Este trabalho consiste em uma anlise psicossocial (de inspirao psicanaltica) das relaes entre a ideologia nazista e o esoterismo alemo, sobretudo no que diz respeito ao mito racial ariano (sua mitologia cientfica). Ele pretende investigar, portanto, suas possveis influncias mgico-religiosas que remontam mitologia

    germnica e, mais modernamente, s correntes esotricas ocidentais e orientais. Convm esclarecer que no pretendemos com isso explicar o nazismo atravs de

    seus possveis vnculos com as sociedades secretas, reduzindo-o a um mero captulo da histria do esoterismo, mas apenas indicar uma nova direo de pesquisa em Psicologia Social para o tema e, conseqentemente, para a anlise dos movimentos neonazistas.

    Palavras-chave: nazismo, esoterismo, ocultismo, irracionalidade.

  • ABSTRACT

    This research consists in a psychosocial analysis (with a psyshoanalytical inspiration) of the relation between the nazi ideology and the german esoterism, specially its racial myth (its scientific mythology). It therefore aims to investigate its possible magical and religious influences that go back to german mythology and, more recently, to ocidental and oriental esoterical movements.

    It is important to elucidate that we do not intend to explain the nazism through its possible links with secret societies, reducing it to a mere chapter of the history of esoterism, but only to point a new direction of research in social psychology to this subject and, consequently, to the study of neonazi movements.

    Keywords: nazism, esoterism, occultism, irrationality.

  • SUMRIO

    INTRODUO 1

    OBJETIVOS 8

    METODOLOGIA 9

    I. DETERMINISMO E ACASO NAS FORAS QUE MOVEM A HISTRIA 13

    II. A MITOLOGIA GERMNICA 36

    1. A cosmogonia dos antigos mitos germnicos 37 2. Os deuses e os mitos 39

    III. RICHARD WAGNER E O MITO DA NOVA HUMANIDADE 41

    1. Consideraes biogrficas 41 2. A tetralogia do anel 46 3. A reconstituio do paganismo germnico e o mito vegetariano da nova humanidade 62

    IV. O NAZISMO ESOTRICO 72

    1. O sanatrio das coincidncias exageradas 72 2. O realismo fantstico das influncias nazistas 76

    V. AS VERDADEIRAS RAZES ESOTRICAS DO III REICH 90

    1. O evolucionismo mstico de H. P. Blavatsky 90 2. O armanismo: Guido von List e a Armanenschaft (Comunidade Armanista) 97 3. O surgimento da ariosofia: a teozoologia de Lanz von Liebenfels, a revista Ostara e a Ordo Novi Templi (ONT) 103 4. O armanismo e a ariosofia na Alemanha: de Rudolf von Sebottendorff e a Thule Gesellschaft Sociedade Edda 108 5. O misticismo de Heinrich Himmler e o mago Wiligut 128 6. O arianismo em Hitler e as influncias de Lanz von Liebenfels e da revista Ostara 134

  • VI. O MAPA DO LABIRINTO E A RUNA DA RAZO 145

    1. Do Romantismo ao Neopaganismo 145 2. Os mitos de origem 162 3. Os pressupostos psicossociais de uma filosofia de veterinrios 167 4. Cincia, misticismo e modernidade 200

    VII. UM DESAFIO PARA O SCULO XXI: O RESSURGIMENTO DAS IDIAS RACIAIS E O NEONAZISMO ESOTRICO 218

    REFERNCIAS 230

  • 1

    INTRODUO

    E vs aprendeis que necessrio ver e

    no olhar para o cu; necessrio agir e

    no falar. Esse monstro chegou quase a

    governar o mundo! Os povos o apagaram,

    mas no sejamos afoitos em cantar vitria: o ventre que o gerou ainda fecundo (Bertolt Brecht)

    Quando em setembro de 2004 o NPD (Nationaldemokratische Partei Deutschlands) conquistou 12 lugares no parlamento da Saxnia obtendo algo em torno de 9,2% dos votos , toda a Europa reviveu a consternao de 2002, quando a extrema-direita francesa triunfou no primeiro turno da eleio presidencial com o candidato Jean-Marie Le Pen. Mas nada parecido, porm, com o ndice ainda mais alto de simpatia para com a ideologia neonazista esboado pela Sua saxnica que ultrapassou os 15,1%.

    O argumento o mesmo de sempre: jovens radicais desencantados com a globalizao e os fluxos migratrios que aumentam ainda mais as taxas de desemprego, obrigando-os a migrarem pela Europa em busca de oportunidades profissionais. A xenofobia radicalizada vai buscar tambm no passado os clichs que permitem entender o martrio do povo alemo no presente, ao vincular a misria de hoje s duras penalidades impostas pelos vencedores no ps-guerra.

    O ressurgimento das polticas de identidade, ou melhor, sua reentrada em cena j que tais polticas jamais deixaram de existir seria o bastante para responder a objeo de por que ainda estudar o nazismo? (como se as condies que possibilitaram aquela recada em um estado de horror brbaro j tivessem sido h muito tempo superadas), bem como lhe serviria de justificativa.

    De qualquer forma, este trabalho no pretende discutir o j discutido retomando simplesmente as anlises clssicas sobre o tema, se bem que, mesmo se o fizesse, integrando a tais anlises os novos acontecimentos do cenrio internacional, como a recente visibilidade dos partidos de extrema direita na Alemanha e na Frana, tanto quanto a tentativa desses partidos de colorirem com tons mais suaves os horrores dos regimes totalitrios, como aponta bem a recente declarao do ex-candidato

  • 2

    presidncia da Frana, Jean-Marie Le Pen, que afirmara que o regime nazista no fra assim to desumano como constantemente se apregoa, tal empreendimento j seria justificvel1. Mas no este o caso.

    Ele pretende enveredar pela histria invisvel do nazismo, sob a perspectiva do esoterismo alemo a respeito do mito racial ariano, seu anti-semitismo, enfim, sobre a mitologia cientfica criada pela ideologia nazista. No se trata, obviamente, de um trabalho esotrico, mas de um trabalho que eventualmente utilizar-se- da esoterografia, que, como aponta o historiador do esoterismo Pierre Riffard2, teria como objetivo, entre outras coisas, o estabelecimento dos fatos, das influncias e dos contedos sobre um tema particular do esoterismo.

    O tema, que de certa forma reflete algumas preocupaes j presentes em minha dissertao de mestrado que trata dos Novos Movimentos Religiosos surgiu da leitura do livro de Louis Pawels e Jacques Bergier, O despertar dos mgicos, livro que uma interessante mistura de literatura esotrica com histria do esoterismo, exemplo claro da imbricao entre cincia e ocultismo. Nele, Pawels e Bergier alertam para as influncias do ocultismo sobre a cincia nrdica pregada pelo III Reich, uma mistura do teosofismo com a revivescncia de antigos mitos arianos, tudo isso enformado e catalizado pela influncia de sociedades secretas como a Golden Dawn, o grupo Thule, a sociedade do Vril e a Rosa-Cruz moderna.

    Os diversos trabalhos sobre o nazismo mgico tecem uma srie de elucubraes sobre as possveis razes mgicas do nazismo e a origem do mito ariano de pureza racial, algumas bastante fantasiosas, outras, nem tanto. Verifiquemos as hipteses mais comuns.

    O pensamento hitleriano teria sofrido a influncia da sociedade Thule, ramificada em pequenos grupos racistas e anti-semitas, criada pelo baro Rudolf von Sebottendorf, em 1912, e fortemente influenciada pelo esoterismo islmico. Na tradio helnica, Thule seria o reino da misteriosa terra dos hiperbreos, bero da raa original e fonte de grande poder, poder este que quem fosse capaz de domin-lo, poderia dominar o mundo. Pauwels e Bergier apontam que a Thule teria influenciado decisivamente o lder nazista Rudolf Hess, um de seus primeiros membros. O gegrafo e estrategista

    1 Lembremos tambm do recente incidente com um dos membros da famlia real britnica que foi

    flagrado por fotgrafos usando uma fantasia de nazista. 2 Riffard, P. O Esoterismo, p. 50-51.

  • 3

    Haushofer, segundo os autores, tambm teria sido um destacado membro de uma outra sociedade secreta, a sociedade do Vril, ligada Thule.

    A loja luminosa ou sociedade do Vril seria um grupo esotrico, vivo ainda hoje na ndia, seu pas de origem, para onde Haushofer teria feito uma srie de viagens estabelecendo contatos com os membros desta sociedade, adoradores do sol e cujos templos seriam adornados por cruzes gamadas. Essa idia de uma teocracia secreta no oriente, originada das narrativas de Ferdynand Ossendowiski e Ren Gunon sobre o reino subterrneo de Agarthi, onde habitava o Rei do Mundo, reino utpico cujos poderes sobrenaturais, quando liberados, poderiam transformar a superfcie do planeta inteiro foram suplementadas pelo poder misterioso do Vril, que seria uma formidvel reserva de energia da qual o homem s utilizaria uma nfima parte, e cujos poderes incluiriam a telepatia e a telecinese, como aponta Mme. Blavatsky no seu Isis revelada.

    O trabalho de Blavatsky (1831-1891), que uma espcie de ensinamento secreto sobre a evoluo do cosmos, ou seja, uma cosmogonia do novo sistema planetrio, muito influenciar as futuras cosmologias esotricas modernas (como aquela que ser desenvolvida por Horbiger e aceita por Hitler, na Alemanha nazista). Segundo ela, e de acordo com a sua obsesso com o nmero 7 (sete seriam os ciclos de vida na Terra, as raas humanas, os princpios vitais do ser humano, etc.), estaramos vivendo a quarta manifestao de vida na Terra, aps j termos evoludo atravs do reino mineral, vegetal e animal.

    O historiador Goodrick-Clarke, pioneiro no estudo histrico dos mistrios nazistas, mesmo no aceitando a ligao frgil que os esoteristas tecem entre Haushofer e as sociedades secretas, e critique a literatura sensacionalista sobre o tema, que proliferou na Alemanha inspirada nesses primeiros mitlogos, ele supe que estes teriam acertado ao concentrarem-se em Himmler, que realmente estivera absorvido em tradies esotricas, na Atlntida, e nas origens mitolgicas da raa ariana, o que motivara a expedio da SS para o Tibete, sob a superviso da Ahnenerbe (Herana Ancestral), instituio interior SS e que motivava pesquisas em biologia, hereditariedade e gentica3.

    O fato talvez explique o porqu de quando os russos tomaram Berlim, em 1945, terem encontrado os cadveres de muitos tibetanos trajando o uniforme alemo, sendo que no havia qualquer relao poltica ou comercial entre o Reich e o Tibete. E

    3 Goodrick-Clarke. Sol Negro: cultos arianos, nazismo esotrico e polticas de identidade, p. 159-160.

  • 4

    Himmler acreditava, diga-se de passagem, na teoria do gelo mundial (ou teoria do Gelo Csmico) de Horbiger, pseudocientista nazista cujas idias Hitler admirava, por motivos muito compreensveis: Horbiger acreditava que dilvios primordiais haviam submergido a Atlntida e que os ancestrais dos alemes (descidos dos cus e estabelecidos em Atlntida) haviam se fortalecido graas ao gelo e ao frio.

    Outro fato muitssimo curioso e que no passou despercebido aos historiadores era a obsesso de Hitler com relao invaso de Stalingrado. Sabemos que Halford J. Mackinder, o maior terico da geopoltica clssica (cujas idias seriam aplicadas por Haushofer, estrategista de Hitler) constri toda uma teoria que tem como pivot a geografia, mais especificamente a geopoltica. Sua principal contribuio foi a criao da idia da heartland, principal regio geoestratgica do planeta que corresponde aproximadamente Europa Oriental (o que inclui o oeste da Rssia).

    A importncia dessa regio derivaria da presena de extensas plancies que estender-se-iam da Alemanha at as estepes russas, e que favoreceria a mobilidade e o crescimento das populaes. Friedrich Ratzel, antecedendo Mackinder, desenvolve teorias sobre o crescimento dos Estados e antecipa um conceito de grande importncia para o futuro expansionismo alemo: a idia de espao vital (por mais que tal termo no surja a) definido como o espao necessrio para o bom crescimento e desenvolvimento de uma populao. Suas leis de expanso espacial dos Estados influenciaro profundamente o pensamento geopoltico alemo, atingindo seu clmax com a agressividade do III Reich de Hitler, perodo este em que, em torno do Instituto de Geopoltica de Munique, e sob a liderana de Haushofer, ser finalmente cunhada a expresso Lebensraum (Espao Vital), o territrio ideal de uma sociedade. O termo surgir exatamente com essa conotao no Mein Kampf de Hitler.

    Pois bem, o general-gegrafo alemo Haushofer opunha-se terminantemente a uma guerra com a Rssia, por ver nela uma aliada geopoltica natural, e tambm por perceber que a invaso de um pas de dimenses continentais como aquele seria impraticvel, coisa que a histria j havia mesmo se encarregado de comprovar quando da tentativa fracassada de Napoleo. Mesmo assim, por conta da obsesso de Hitler por Stalingrado, sua relao com Haushofer sofre um duro golpe com a invaso da Rssia, rompendo-se assim o pacto Ribbentrop-Molotov, de no agresso.

    Martin Kitchen tambm no deixa de apontar a irracionalidade de Hitler em no se deixar guiar por consideraes geopolticas razoveis. Os estrategistas de Hitler, em frente ao inevitvel, sugeriram a tomada de Moscou. Hitler, irredutvel, por motivos

  • 5

    racionalmente inexplicveis, insistia em tomar Stalingrado. O resultado j era de se esperar: Stalingrado no se entrega e a campanha nazista na Rssia se apresenta como o comeo do fim do expansionismo alemo. Os historiadores resolvem o mistrio com base na rivalidade secular entre eslavos e germnicos4.

    Um outro exemplo do interesse do nazismo pela simbologia ocultista foi a escolha da cruz gamada (considerada um smbolo mgico), por mais que Hitler justificasse tal escolha de uma forma um pouco menos mstica: para ele, ela representava a misso de luta pelo triunfo do homem ariano ao mesmo tempo que a idia do trabalho criador, j que ela sempre foi e ser anti-semtica.5 Quanto a isso, convm esclarecer que se trata de um erro freqente perguntarmo-nos como a sustica (do snscrito su, bem, e ast, ser), um signo de bom agouro na religiosidade indiana, de sucesso e fortuna, ter-se-ia convertido em seu oposto quando incorporada aos smbolos nazistas. Na verdade a cruz gamada est presente em diversas culturas (girando para a esquerda ou para a direita).

    Poliakov, em seu trabalho O mito ariano, afirma que

    primeira vista parece desconcertante atribuir aos mitos da Cidade Eterna ou queles da floresta germnica alguma ao eficaz sobre a ascenso de Mussolini ou

    sobre aquela do Fhrer. Uma tal proposio, que parece provocar um curto-circuito, por

    assim dizer, de quinze sculos de histria, contrria s concepes e aos mtodos histricos usuais. Contudo, a verdade que os fascistas se valiam dos primeiros e os

    nazistas dos segundos 6

    Entretanto, Poliakov se detm, sobretudo, nas razes pr-cientficas da antropologia racista alem e no surgimento do mito ariano, rastreando suas diversas origens, explorando as influncias provenientes do oriente, mas sem vincul-las diretamente ao surgimento de uma religio germnica de inspirao mstica. Mesmo assim ele no deixa de notar que no sculo XVIII os antepassados bblicos comearam a ser contestados pelos iluministas e pela razo, momento este em que a mitologia bblica e romana substituda, nos poemas de Friedrich G. Klopstock, pela mitologia germnica, bem mais sanguinria. Mas para Poliakov, as obras de Herder teriam deixado ainda mais marcas na literatura alem que as de Klopstock, escritor que,

    4 Kitchen, M. Um mundo em chamas: uma breve histria da Segunda Guerra Mundial na Europa e na sia,

    1939-1945. 5 Hitler, A. Minha Luta, p. 371.

    6 Poliakov, L. O mito Ariano, p. xix

  • 6

    interessado em todas as mitologias (bblicas, indianas, nrdicas) teria sido um dos principais precursores do mito ariano.

    E dentre tais precursores est Richard Wagner (1813-1883). Francamente anti-semita, Wagner representa na msica uma verdadeira fuso entre os elementos mitolgicos da cultura germnica e o nacionalismo alemo. A obsesso reformista de Wagner quanto pera tinha como foco a regenerao social, que apontava para uma

    Alemanha degenerada pela mistura racial com os judeus (o que inclua os msicos). Da Wagner buscar a inspirao para suas composies nos Eddas, coleo de antigos poemas mitolgicos compostos no sculo XI, bem como em outras fontes medievais (Vlsunga Saga e a Edda em prosa de Snorri Sturluson). da que surgem obras romnticas como Parsifal, Lohengrim, Tristo e Isolda (que Hitler afirmara ter assistido umas 30 ou 40 vezes) e a tetralogia denominada O Anel dos Nibelungos (O ouro do Reno, A Valkria, Siegfried, Crepsculo dos Deuses), onde surgem personagens como Wotan, Fricka, Freia e Erda (todas divindades mitolgicas), alm de ninfas, gigantes e anes.

    Tal como Poliakov, o germanista Norbert Elias tambm aponta para o surgimento na Alemanha de uma religio social capaz de justificar a ideologia do III Reich, mas sem qualquer referncia a uma verdadeira religiosidade mstica de carter pr-cristo (pago), genuinamente germnica:

    (...) aos outros instrumentos de domnio, adicionaram mais um que caracterstico das sociedades de massa: governar e disciplinar por meio de uma crena

    social. Eles no estavam ss a proceder desse modo. O uso de uma nova religio social como instrumento de construo imperial, como um meio para manter e estabilizar o

    domnio de uma minoria sobre uma maioria mantida em sujeio, era um desenvolvimento geral nesses tempos7

    Convm notar, tambm, que por mais que Goodrick-Clarke critique o sensacionalismo em torno dos mistrios nazistas, que v no holocausto a sombra de uma guerra dualstica no paraso entre o Bem e o Mal, sobretudo na literatura popular da dcada de 1960, ele reconhece plenamente que, no caso do neonazismo, a influncia dessa literatura e, portanto, dos cultos mgicos a que elas fazem aluso, clara e inequvoca. Muitas so as seitas neonazistas de inspirao esotrica e luciferinas que foram buscar nessa literatura o fundamento para suas crenas racistas. O que ele discute

    7 Elias, N. Os Alemes, p. 332.

  • 7

    se tais influncias foram decisivas nos assuntos internos do III Reich, criticando a reduo do nazismo s sociedades secretas, cuidado este que julgamos mesmo necessrio.

    T.W. Adorno8 por sua vez, mesmo acreditando que o anti-semitismo burgus teria um fundamento especificamente econmico, no deixa de analisar o tema em seu contedo religioso. O mesmo vemos em Wilhelm Reich9, outro herdeiro do marxismo e da psicanlise, que no esquece de estabelecer a relao entre a mitologia racial ariana, o suposto envenenamento do sangue e o misticismo implicado nessa relao. Ademais, impossvel no concordarmos com Ribeiro Jnior quando este afirma, mas sem se aprofundar no tema, que:

    A verdade que o nazismo muito mais que um simples movimento poltico.

    H qualquer coisa nele que escapa viso racionalista, onde s se v a luta entre a concepo liberal-democrtica e a concepo autoritria nazi-fascista das sociedades. O

    mito da pureza da raa ariana (Deutsches Ahnenerbe, herana ancestral alem), cerimnias rituais inspiradas no paganismo germnico, e a recuperao do simbolismo

    das religies orientais, fazem parte de um fundo muito mais esotrico do que poltico10

    8 Adorno, T; Horkheimer, M. Dialtica do Esclarecimento.

    9 Reich, W. Psicologia da Massas do Fascismo.

    10 Ribeiro Jr. Que nazismo ? p. 77.

  • 8

    OBJETIVOS

    Este trabalho tem como objetivo examinar as possveis influncias de algumas idias de carter mstico sobre a ideologia nazista e suas idias raciais, investigando o impacto de algumas idias mgicas e esotricas como a batalha entre o fogo e o gelo eterno de Horbiger (pseudocientista nazista), Heinrich Himmler e a criao da SS, inspirada na Ordem dos Jesutas e na companhia de Jesus, os elos entre o nazismo e o meio ocultista com suas fantasias conspiratrias, seus mitos acerca de civilizaes perdidas, etc.

    Pretendemos com ele deslocar o foco da discusso sobre o nazismo como mero movimento poltico, fruto da reao dos estratos mais conservadores da Alemanha expanso do comunismo que culminou no embate entre a concepo liberal-democrtica e o autoritarismo fascista, tentando identificar nele algo que acabou escapando s anlises clssicas sobre o tema (porm, como j dissemos antes, sem reduzi-lo meramente a um captulo da histria do esoterismo), recuperando assim uma certa histria invisvel a partir da sobrevivncia na cultura alem de idias raciais inspiradas em elementos de sua prpria mitologia religiosa.

  • 9

    METODOLOGIA

    Concordamos com Max Weber em supor a racionalidade como uma equao dinmica entre meios e fins, que faz com que toda ao humana seja motivada por determinadas concepes afetivas do desejvel que se impem aos homens como metas a serem atingidas. Da as aes humanas variarem de acordo com determinados tipos de orientao para as aes baseadas em hbitos, nos afetos dos agentes, ou na crena em determinado valor tico ou religioso.

    O tipo puro ou tipo ideal uma construo conceitual central na discusso metodolgica em Weber, representando um tipo extremo. Essas construes ideais tpicas correspondem a certos elementos da realidade ordenados sob a forma de uma mxima racionalidade, como o feudalismo, o homem econmico ou as leis estabelecidas pela teoria pura da economia. Nas palavras do prprio Weber, essas construes ideais tpicas expem como se desenrolaria uma ao humana de determinado carter se estivesse orientada pelo fim de maneira estritamente racional sem perturbaes por erros e afetos1. Uma ao orientada pelo fim de maneira estritamente racional (e poderamos dizer tpica) serve sociologia como tipo ideal. A ao real raramente coincidir com o tipo ideal, mas permite compreender a ao real, influenciada por irracionalidades de toda espcie (afetos, erros) como desvio do desenrolar a ser esperado no caso de um comportamento puramente racional.

    Max Weber entende essa convenincia metodolgica como racionalista em certa medida, mas defende a sociologia compreensiva do preconceito racionalista argumentando tratar-se apenas de um recurso metodolgico: no entanto, claro que esse procedimento no deve ser interpretado como preconceito racionalista da sociologia, mas apenas como recurso metodolgico. No se pode, portanto, imputar-lhe a crena em uma predominncia afetiva do racional sobre a vida2.

    Por mais que toda cincia e toda interpretao pretendam alcanar certeza, lembra-nos, nenhuma interpretao, por mais evidente que seja quanto ao sentido, alerta-nos Weber, pode pretender como tal e em virtude desse carter de evidncia, ser tambm a interpretao causal vlida. Em si, nada mais do que uma hiptese causal de evidncia particular3. E aqui, dando seguimento explicao daquelas aes com

    1 Weber, M. Economia e sociedade, vol. I, p. 5

    2 Idem, ibidem, p. 5.

    3 Idem, ibidem, p. 7.

  • 10

    menor grau de evidncia (mas suficientes para as suas e para as nossas exigncias de explicao), ele fornece a sua melhor defesa contra as acusaes de preconceito racionalista sociologia compreensiva, e que nos interessa sobremaneira por conta de futuras reflexes psicanalticas que tero lugar em nossa tese:

    a) Em muitos casos, supostos motivos e represses (isto , desde logo, motivos no reconhecidos) ocultam ao prprio agente o nexo real da orientao de sua ao, de modo que tambm seus prprios testemunhos subjetivamente sinceros tm valor apenas relativo. Neste caso, cabe Sociologia a tarefa de averiguar essa conexo e

    fix-la pela interpretao, ainda que no tenha sido elevada conscincia, ou, o que se aplica maioria dos casos, no o tenha sido plenamente, como conexo visada concretamente: um caso-limite da interpretao do sentido. b) manifestaes externas da ao que consideramos iguais ou parecidas podem basear-se em conexes de

    sentido bem diversas para o respectivo agente ou agentes; e compreendemos tambm aes extremamente divergentes, ou at opostas quanto ao sentido, em face de situaes

    que consideramos idnticas entre si (exemplos na obra de Simmel, Die Probleme der Geschichtsphilosophie). c) Diante das situaes dadas, os agentes humanos ativos esto freqentemente expostos a impulsos contrrios que se antagonizam, todos eles compreensveis para ns.4.

    exatamente o afastamento entre o tipo ideal e aquilo que verificamos na realidade, o que mais nos interessa em Weber, porque esse afastamento aponta para uma srie de fatores intervenientes que surgem como perturbaes por erros ou afetos como o autor assinala.

    Acreditamos tambm, com Marx, no carter material da existncia humana, isto , em seu carter concreto e histrico, mas no pensamos que as condies materiais da existncia (sobredeterminaes econmicas, principalmente) sejam o nico motor das transformaes sociais e histricas. Nossa oscilao entre Marx e Weber no , porm, fortuita ou fruto de ecletismo terico. No existe, como se pensa, verdadeira oposio entre Marx e Weber, apesar de suas discordncias. Aquilo que Weber critica em Marx no sua teoria da sobredeterminao econmica da histria, e sim sua insistncia nessa monocausalidade que o faz cego para determinaes outras que Weber julga to importantes quanto aquelas provenientes da economia. A obra de Weber no tenta, portanto, rejeitar as concepes de Marx, mas complet-las, como atesta sua tica protestante e o esprito do capitalismo (e o resto de sua sociologia da religio), com

    4 Idem, ibidem, p. 7.

  • 11

    aquelas determinaes provenientes de concepes ticas e religiosas. Surgem na obra de Weber, portanto, a valorizao de outras esferas distintas da esfera econmica, bem como uma preocupao com a importncia do lder carismtico capaz, tambm, de fazer soprar os ventos da histria.

    Tais consideraes metodolgicas devem-se implicao, neste estudo, de uma determinada concepo de histria, problema acerca do qual no pretendemos nos esquivar. Ao tomarmos em considerao o misticismo do III Reich, bem como a personalidade mstica de Hitler, no pretendemos com isso, como bem salientou Tolstoi, deduzir os acontecimentos histricos exclusivamente da personalidade de Napolees, Alexandres ou outros. Mas, concordamos com Plekhanov quando diz que determinados indivduos (em virtude de traos particulares) podem influenciar no destino de uma sociedade, apesar de sua conclusao de que

    a possibilidade de exercer tal influncia, e a sua extenso, so determinadas

    pela forma de organizao da sociedade, pela correlao de foras dentro dela. O carter de um indivduo um fator no desenvolvimento social apenas onde, quando e

    na medida em que o permitam as relaes sociais5.

    O historiador Sidney Hook rejeita essa tentativa de sntese de Plekhanov, incapaz de escapar do determinismo social ao afirmar a importncia dos grandes lderes para ento retornar supervalorizao das condies objetivas em detrimento de qualquer outra influncia. Para ele, a dificuldade consiste em descobrir quando o heri seria um acidente histrico e quando ele seria um verdadeiro agente de mudana, nunca perdendo de vista o fato de que, na histria, tanto quanto na natureza, podemos notar que determinados eventos estariam mais significativamente ligados entre si do que outros. Ora, pretendemos aqui discutir o papel de outros determinantes histricos que podem ter auxiliado no sucesso do nacional-socialismo e, sobretudo, na formao de sua ideologia racista. Sendo assim, para ns interessa saber quando determinadas idias ou concepes religiosas poderiam ser consideradas acidentes histricos e quando, efetivamente, poderamos tom-las como agentes condicionantes de determinado movimento histrico.

    A psicanlise por sua vez, enquanto doutrina do funcionamento mental irracional, parece dispor das ferramentas necessrias para esclarecer parte dos motivos

    5 Plekhanov, O Papel do Indivduo na Histria. In: Gardner, P. Teorias da Histria, p. 191.

  • 12

    inconscientes a que Weber se refere, vindo assim em auxlio das anlises histricas e sociolgicas sobre o tema. Assim, de modalidade clnica, e como auxlio do freudomarxismo (que tem hoje como herdeira a Teoria Crtica daquilo que conhecemos como a Escola de Frankfurt), que tem como objetivo buscar no sujeito os ecos da patologia do social, pretendemos utilizar a psicanlise como Ideologiekritik, por conta de seu carter desmistificador. Afinal, aquilo que a Psicanlise faz, sua principal contribuio crtica da cultura, a de no compactuar com o senso comum, mantendo a distino entre essncia e aparncia. E sua afirmao do carter sexual de fenmenos como o sadismo, que culminaram no prazer derivado da violncia da poltica de extermnio dos totalitarismos (tanto de direita quanto de esquerda), muito mais verdadeira que a explicao superficial das psicologias da conscincia que apontam para uma vontade de poder associada ao medo ou vingana.

  • 13

    CAPTULO I: DETERMINISMO E ACASO NAS FORAS QUE MOVEM A HISTRIA.

    a histria universal, a histria que o homem

    realizou neste mundo, fundamentalmente a histria dos homens que atuaram superfcie da terra.

    (Thomas Carlyle)

    O modo de produo da vida material determina o carter geral dos processos de vida social, poltica e

    espiritual. No a conscincia dos homens que

    determina a sua existncia, mas, pelo contrrio, a

    sua existncia social que determina a sua conscincia.

    (Karl Marx)

    Apesar de Kant nunca ter dedicado filosofia da histria o mesmo tempo que dedicou filosofia da cincia ou tica, h um ensaio seu intitulado A idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita que ser de grande importncia para o desenvolvimento futuro de algumas teorias da histria. Mas aquilo que mais nos interessa neste ensaio que ele representa uma reao s correntes providencialistas acerca da interpretao da histria. Reao essa que, por no conseguir se livrar totalmente das implicaes religiosas das filosofias da histria em Santo Agostinho, Bossuet ou Maritain, ser agrupada (ao lado de Vico e Herder) sob a denominao de corrente semiprovidencialista. A distino entre esta e aquela jaz na importncia atribuda pelos seus integrantes ao papel da providncia (divina) na conduo do processo histrico. Ao longo de todo o ensaio, Kant precisa confrontar o problema que at hoje permanece central na filosofia da histria: a aparente irracionalidade do processo histrico. Problema esse que ele pretende solucionar apelando a um suposto princpio teleolgico capaz de justificar os males da histria. Ele afirma, j no incio de seu ensaio, que, a despeito da posio metafsica em questo, inequvoco que os atos humanos (como qualquer fenmeno da natureza) seriam regidos por leis naturais de carter universal, e que a Histria, por ocupar-se da narrao das manifestaes humanas, estaria apta a descobrir um curso regular nessas

  • 14

    manifestaes. Aquilo que pareceria, portanto, irracional e irregular em indivduos isolados, poderia ser entendido no conjunto da espcie como um desenvolvimento lento, porm contnuo (orientao progressista). Notemos que tal esperana surge do horror que a possibilidade de no existir um sentido na histria causava nos filsofos de inspirao iluminista, onde o ideal de razo no permitiria o caos (fruto do acaso) que parece reinar na histria da humanidade.

    No podemos deixar de sentir uma certa repugnncia, quando vemos os seus atos [dos homens] representados no palco do mundo; e embora apaream aqui e ali uns vislumbres de sensatez em casos isolados, tudo surge finalmente, na generalidade, como

    que entretecido de loucura, de vaidade pueril, muitas vezes de infantil maldade e sede

    de destruio, acabando ns por no saber que conceito fazer da nossa espcie, to

    orgulhosa da sua superioridade. Perante isso, o filsofo, na impossibilidade de pressupor um especfico propsito racional nos homens ou nos seus atos em geral, no tem outra

    soluo seno tentar descobrir um desgnio da natureza nesta mancha absurda das coisas humanas, a partir do qual seja possvel uma histria que obedea a um determinado plano da natureza, a propsito de criaturas que agem sem um plano

    prprio1.

    na tentativa de evitar a idia de uma natureza que agisse sem finalidade que Kant apela para uma teoria natural teleolgica, que prega que a espcie humana,

    dotada como de razo, estaria fadada a atingir o pleno desenvolvimento de suas disposies. E o meio atravs do qual a natureza conduziria a evoluo sociopoltica da humanidade seria o antagonismo social, essa propenso humana para se associar, sempre ligada a uma resistncia (da o antagonismo) que ameaa constantemente a sociedade da desagregao. Em outros termos, a conscincia social, ao oferecer resistncia aos desejos humanos, desperta neste a fora necessria capaz de neutralizar sua propenso preguia, conduzindo-o atravs da ambio e do instinto de domnio e cobia a conquistar um lugar entre os seus semelhantes, que ele no suporta, mas sem os quais ao mesmo tempo no pode passar2. assim que, para Kant, d-se a passagem do barbarismo cultura e, conseqentemente, moralidade: a partir da sociabilidade insocivel do homem. A partir disso, o homem conduzido necessidade de estabelecer uma sociedade civil,

    1 Kant, Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita, in: Gardner, P. Teorias da

    histria, p. 29. 2 Idem, ibidem, p. 32.

  • 15

    submetida a leis externas. Em resumo, a tendncia humana a tomar para si o melhor negando-o ao seu semelhante o motor que conduz o homem cultura: toda a cultura e a arte que adornam a humanidade, assim como a mais bela ordem social, so frutos da insociabilidade, que por si prpria obrigada a disciplinar-se e a desenvolver assim plenamente, por uma arte compulsiva, os germes da natureza3. Eis a o problema da concepo de natureza em Kant: trata-se de uma fora capaz de conduzir a espcie humana atravs de um curso regular da animalidade humanidade, ou seja, a natureza tal como este a concebe possui uma finalidade. A sugesto bastante explcita de Kant a de que existe um certo plano oculto da natureza dirigindo a histria humana rumo perfeita unio poltica da espcie humana. Uma tal justificao da natureza implica uma determinada idia de providncia, mesmo que no necessariamente (ou explicitamente) divina. Com isso ele consegue neutralizar o acaso.

    A crtica a essa concepo de uma providncia capaz de organizar as coisas veio de um aluno de Kant cujo nome est intimamente relacionado ao movimento romntico: Johann Gottfried Herder. No s aluno de Kant, mas tambm amigo de Goethe, Herder defende, contra seu antigo professor em Knigsberg, a seguinte lei fundamental da histria:

    que por toda a parte, na Terra, acontece tudo quanto nela pode acontecer, em parte de acordo com a situao e as necessidades do lugar, em parte de acordo com as

    circunstncias e as condies da poca, em parte de acordo com o carter nato ou

    adquirido dos povos4.

    Para Herder, a caracterstica mais marcante da histria seria a variedade, a individualidade das naes a partir das diferentes raas, das diferentes formas de educao, climas e modos de pensar de cada um dos povos. Sendo assim, seria um erro supor que a histria fosse a manifestao da natureza humana. Os fins da histria no estariam sendo tecidos atravs de desgnios ocultos e nem estariam sujeitos influncia mgica de demnios invisveis: o destino revela os seus desgnios atravs daquilo que acontece e de como acontece; por isso o observador da histria deduz esses

    3 Idem, ibidem, p. 33.

    4 Herder, Idias para a filosofia da histria da humanidade, in: Gardner, P. Teorias da histria, p. 43.

  • 16

    desgnios apenas a partir daquilo que e do que se lhe revela dentro de todo o seu mbito5. Tudo parece ir muito bem at aqui, mas as diferenas entre Herder e Kant no so assim to inequvocas. O pensamento daquele parece ser to finalista quanto o deste. Para Herder, o humanismo a finalidade da natureza humana. Nada muito diferente de Kant, sobretudo quando este diz que

    se existe um Deus na natureza, existe igualmente na histria. Porque tambm o homem

    faz parte da criao, nos seus mais violentos excessos e paixes, obedece necessariamente a leis que no so menos belas e excelentes do que aquelas por que se

    regem todos os corpos celestiais e terrestres6.

    A diferena parece estar na nfase. Kant apela para uma explicao calcada na natureza humana, enquanto Herder enfatiza o ambiente, as peculiaridades prprias a cada povo e suas organizaes polticas. Tal nfase recai, portanto, em uma espcie de natureza dos povos, em oposio natureza humana da concepo kantiana. De qualquer forma, tanto em Kant quanto em Herder fica escamoteado o problema do indivduo na histria. Em Kant temos a abstrao de uma natureza humana que funciona como uma fora oculta, fazendo girar a roda da histria rumo a um progresso na moralidade sem grandes consideraes acerca da liberdade no interior desse progresso inevitvel. J em Herder, o gnio dos povos sua capacidade intrnseca bem como o tempo e o lugar parecem obscurecer a liberdade individual. Seu providencialismo deve-se constatao de que a razo, conferida por Deus ao homem, o mvel do progresso humano. Mas mesmo assim podemos ver, tanto em Kant quanto em Herder, o tal progresso como um triunfo da vontade. Manter na interpretao do devir histrico um equilbrio perfeito entre o individual e o coletivo nunca foi tarefa das mais simples. A tentativa de solucionar o desequilbrio presente em Herder e Kant ser tentada por Hegel, primeiro filsofo a ocupar-se sistematicamente com a histria e, mais exatamente, a pretender fazer filosofia da histria. Aproximando-se de Herder, Hegel encontrar na Razo (tambm Idia ou Esprito) a realidade absoluta de todo o existente, realidade esta da qual emanar tanto a natureza quanto a histria. Em outros termos, Hegel entende que a essncia do esprito

    5 Idem, ibidem, p. 48.

    6 Idem, ibidem, p. 53.

  • 17

    a liberdade, e que esta, ao se desenvolver no mundo, utilizando para isso de meios fenomnicos, apareceria nossa viso atravs da Histria. Hegel percebe, como Kant, que as necessidades e paixes dos homens so mveis da ao, mas no conclui da um conluio de foras ocultas ditando os rumos da histria. Entretanto, afirma que a acumulao de vontades e interesses constituiria os instrumentos e os meios que o Esprito csmico utilizaria para atingir o seu objetivo. Ele entende o problema de se afirmar que os indivduos e os povos, ao procurarem satisfazer seus prprios fins, estariam inconscientemente satisfazendo um fim mais elevado, mas tenta solucionar essa questo com a convico de que a Razo, ao governar o mundo, governaria tambm a sua histria. Neste ponto, Hegel discute o papel de determinados tipos de indivduos que ele denomina indivduos histrico-csmicos, utilizando Csar como exemplo. O argumento de Hegel o de que Csar, ao conduzir a poltica de Roma a uma autocracia, mesmo movido por interesses pessoais, seguia a vontade do Esprito csmico:

    No foi, pois, apenas o seu [de Csar] lucro particular, mas um impulso inconsciente que motivou a realizao daquilo para que a poca estava pronta. Assim so todas as

    grandes individualidades histricas cujos fins particulares envolvem os vastos caminhos que constituem a vontade do Esprito csmico. Pode-se chamar-lhes Heris,

    na medida em que os seus fins e a sua vocao no os derivam do curso regular e calmo das coisas sancionadas pela ordem em vigor, mas sim de uma origem invisvel que

    no chegou a aflorar a existncia presente e fenomnica daquele Esprito interior

    sempre oculto sob a superfcie, que, embatendo no mundo exterior como numa concha,

    o desfaz em pedaos por no ser o contedo adequado a essa concha. So, pois, homens que parecem arrancar de si mesmos o impulso da vida, e cujos feitos produziram uma nova ordem de coisas e um complexo de relaes histricas que parecem ser apenas o

    seu prprio interesse e obra sua7.

    Temos aqui a origem daquela que viria a ser a concepo mais influente do determinismo social do sculo XIX. Hegel tinha como alvo os racionalistas do sculo XVIII que tendiam a explicar a histria a partir da fortuna ou da psicologia pessoal8. Convm notar que, enquanto isso, Carlyle desenvolvia sob a influncia de Goethe e do Romantismo alemo sua interpretao individualista (ou herica) da histria, que chegar a influenciar a concepo de Nietzsche acerca do Super-homem.

    7 Hegel, G. W. Histria filosfica, in: Gardner, P. Teorias da histria, p. 76.

    8 Hook, S. O heri na histria, p. 56.

  • 18

    Hegel supe que determinados indivduos conseguem apreender a realidade de uma poca com mais intensidade que outros e, mesmo agindo de forma inconsciente, realizam aquilo que j estava maduro, figurando assim como agentes do esprito csmico. Tais figuras histrico-mundiais raramente encontraram a felicidade neste mundo: morreram cedo (Alexandre), foram assassinados (Csar) ou exilados (Napoleo). Estes homens histricos so grandes homens porque souberam querer e realizaram algo de grande; no uma simples fantasia ou mera inteno, mas aquilo que era adequado e de acordo com as necessidades da poca9. vinculando a ao desses grandes homens s necessidades de determinada poca que Hegel supe ter conseguido excluir o ponto de vista psicolgico do devir histrico. Ele rejeita a idia de que a histria se mova somente a partir de alguma paixo (seja ela mesquinha ou grandiosa) dos homens. No teria sido, afirma ele, por conta de algum desejo mrbido de fama e conquista ou qualquer obsesso semelhante que Alexandre da Macednia teria subjugado parcialmente a Grcia e depois a sia. Mas a explicao que Hegel fornece para o fato de que as paixes que habitam o homem moverem-no no de forma casual para qualquer direo, mas apenas para a direo ditada pelo Esprito da poca muito prxima soluo kantiana. A fora oculta aqui implicada toma o nome de ardil da razo, e representa a forma pela qual a razo dispe as paixes em seu benefcio. Assim que o particular demasiado mesquinho rende-se fora do geral. Trabalho feito, realizado o sentido da histria atravs do grande homem (que grande, de certa forma, por ter conscincia disso), ele pode ser descartado pela histria. Os heris morrem cedo... Em resumo, para Hegel,

    O papel desempenhado em histria por pessoas particulares s parcialmente

    se explica mediante a considerao de seus interesses imediatos e coerentes, deve-se

    fazer referncia s poderosas foras histricas de que elas so tanto os instrumentos como (at certo ponto) os intrpretes. As aes dos indivduos devem assim ser julgadas dentro do contexto histrico que exige, ou torna necessria a sua realizao10.

    O que existe de mais terrvel na teoria da historia de Hegel e que reflete, obviamente, os pressupostos de sua filosofia idealista a idia de que as coisas so como so porque so exatamente aquilo que deveriam ser, e isso em nome da Razo, do

    9 Idem, ibidem, p. 77.

    10 Hegel, G.W. Histria filosfica, in: Gardner, P. Teorias da histria, p. 73.

  • 19

    Bem e da Verdade. O mundo real como deveria ser11, e o verdadeiro bem, encarnao da divina razo universal, um princpio vital capaz de se realizar. Este bem, que equivale Razo , na verdade, Deus. E Deus dirige o mundo, e seu plano concretizado apresenta-se para ns como a Histria do mundo. Diante dessa idia divina desaparece o acaso nos acontecimentos do mundo. A filosofia estaria a para justificar a to desprezada Realidade das coisas. De qualquer forma, e apesar dos excessos quase msticos do determinismo social hegeliano, ele foi muito til em reao ao misticismo individualista (herico), ainda mais pernicioso, que vinha se desenvolvendo a partir do trabalho de Carlyle (1795-1881) sobre o papel do grande homem na histria. Como j apontamos antes, sob a influncia das idias de Goethe e do romantismo alemo, Carlyle afirma, de forma taxativa, que

    a histria universal, a histria que o homem realizou neste mundo, fundamentalmente a histria dos homens que atuaram superfcie da terra. Foram condutores de homens,

    os homens superiores; modeladores, forjadores e, num sentido amplo, criadores, de quanto as multides se propuseram fazer ou atingir. Todas as coisas que vemos terem

    sido realizadas no mundo so propriamente o resultado material, a elevao prtica, a incorporao, dos pensamentos que surgiram nos homens superiores, enviados ao

    mundo; pode dizer-se com justia que a alma de toda a histria mundial a histria dessas almas.12

    Leitor da biografia de grandes lderes e entusiasta da mitologia germnica, Carlyle parece ter prestado mesmo um desservio para os defensores da importncia dos indivduos na histria, como o caso de Sidney Hook, que argumenta, com certo desprezo, que o livro de Carlyle

    no foi tomado pelo que um folheto para os tempos, cheios de fervor moral

    explosivo e sufocante, iluminado aqui e ali por um lampejo de clarividncia, mas contraditrio, exagerado e impressionista. Em vez disso foi considerado como uma

    defesa seriamente argumentada de que todos os fatores na Histria, exceto os grandes homens, eram inconseqentes. Literalmente analisadas, as noes de causalidade histrica de Carlyle so visivelmente falsas, e se no falsas, opacas e msticas13.

    11 Idem, ibidem, p. 80.

    12 Carlyle, T. Os heris, p. 19-20. Ttulo original em ingls: On heroes, hero-worship and the heroic in

    history. 13

    Hook, S. O heri na histria, p. 20.

  • 20

    E, de fato, no mesmo fcil defend-lo. O livro de Carlyle consegue cruzar com muita facilidade a linha do absurdo rumo a uma teoria da histria que vai da idealizao mstica dos heris mitolgicos crena sincera de que os grandes homens foram enviados Terra pela providncia divina. Influenciado pelo romantismo de Fichte, os valores, o passado e a histria surgem no livro de Carlyle com um sentido religioso. A exasperao de Sidney Hook perfeitamente compreensvel.

    Mas a reao final concepo herica da histria vir com o desenvolvimento do determinismo social j presente em Hegel, pelo materialismo histrico de Marx. Se para Hegel tudo o que real racional; tudo o que racional real, subscrevendo assim a verdade daquilo que , para Marx, verdadeiro aquilo que ainda vir a ser. No seu trabalho sobre a Sagrada Famlia, Marx j critica a concepo de histria em Hegel por esta pressupor um esprito abstrato ou absoluto transportado de forma consciente ou inconsciente pela massa da humanidade. Avesso metafsica, Marx acusa Hegel, portanto, de introduzir no interior da histria emprica (exotrica) uma histria especulativa (esotrica), convertendo assim a histria da humanidade em uma histria do esprito abstrato da humanidade, esprito este que estaria alm do homem real.

    O que Marx tenta fazer converter a filosofia da histria em uma cincia da histria, atravs do mtodo do materialismo histrico. Por isso ele afirma que

    As premissas de que ns partimos no so arbitrrias nem dogmas; so premissas reais,

    a partir das quais s na imaginao possvel formar abstraes. So os indivduos reais, a sua atuao e as suas condies materiais de vida: as que encontram quando

    nascem, como as que so produzidas pela sua prpria atuao. Essas premissas so,

    portanto, verificveis duma forma puramente emprica14.

    Contra Hegel, Marx argumenta que seu mtodo de abordar a histria no se ocupa de explicar a prtica material a partir da idia, mas o oposto disso. Sendo assim, os produtos da conscincia, as ideologias, no poderiam de forma alguma (como para o idealismo) serem dissolvidos pela crtica intelectual, mas apenas atravs da subverso (prtica) que deram origem iluso idealista. Conclui-se da que o importante no a crtica, mas a revoluo.

    14 Marx, K., Concepo materialista da histria, in: Gardner, P. Teorias da histria, p. 155.

  • 21

    Por mais que Marx no se ocupe com o papel desempenhado pelos grandes homens nos rumos da histria, no difcil deduzir que sua posio quanto a isso assemelha-se de Hegel: os indivduos representam na histria o papel que o esprito da poca (no caso, as condies objetivas) exigem que ele represente. A tarefa de discutir a importncia do indivduo na histria a partir do materialismo histrico, neste primeiro momento, ficaria a cargo de Engels. A veremos tambm ecos do determinismo social hegeliano, quando Engels aponta que o surgimento de um homem em particular em uma determinada poca e pas um evento fortuito, de pura casualidade. Necessrio mesmo a exigncia, em determinado contexto histrico-social, do surgimento de um homem capaz de conduzir as mudanas que j estavam a caminho a despeito do seu conhecimento consciente desse processo revolucionrio:

    Que Napoleo esse corso em especial tivesse sido o ditador militar tornado necessrio pelas guerras exaustivas da Repblica Francesa, foi uma questo de acaso.

    Mas na falta de um Napoleo, algum teria tomado seu lugar, o que comprovado pelo

    fato de que sempre que um homem foi necessrio, ele foi encontrado: Csar, Augusto,

    Cromwell15.

    Mas, apesar da insistncia de Marx na importncia das condies objetivas, no fato de que a vida que determina a conscincia e no o oposto, e mesmo contando com o auxlio de Engels, a questo do papel desempenhado pelos grandes homens na histria estava longe de ser solucionada em prol do materialismo histrico na conscincia das massas e de alguns socialistas. Muitos enfatizavam a importncia das decises pessoais em detrimento do determinismo social. Como aponta Sidney Hook:

    O programa poltico e a filosofia dos Narodnik populistas socialistas russos eram

    supostamente baseadas na concepo de que a Histria podia ser influenciada de modo

    significativo por grandes heris da palavra e, ainda mais, da ao. Este grupo e seu

    sucessor popular, o Partido Revolucionrio Social, rejeitaram as concepes marxistas do determinismo e evoluo social. Sem negar a influncia de fatores materiais, sociais

    e econmicos, eles puseram nfase ainda maior sobre as decises pessoais e ticas na

    Histria. Negaram-se a repudiar o uso do terror individual como poltica para combater

    15 Engels, F. Carta a Starnenberg, citado por Hook, S., O heri na histria, p. 71.

  • 22

    a opresso. Consideraram indivduos em posies-chaves, e no o sistema que os

    criou, responsveis por males sociais e excessos polticos16.

    Plekhanov bate-se em trs frentes: contra os narodniks que se recusam a aceitar o determinismo social proposto por Marx e Engels, contra os defensores da Escola Herica, e tambm contra os deterministas radicais que desconsideram totalmente a importncia do indivduo na histria. Pela primeira vez depois de Hegel empreende-se uma tentativa verdadeiramente sria de conciliar duas tendncias to antagnicas, e a partir do materialismo histrico. O argumento, que aqui chamaremos de a equao de Plekhanov resume-se da seguinte forma. Suponhamos que determinado evento histrico (A) tenha que ocorrer necessariamente a partir de determinada conjuno de eventos. Consideremos agora que parte desse nmero de circunstncias j existe e que uma outra parte existir em um dado tempo T. Pois bem, se eu, que estou familiarizado com o fenmeno A, reagir a essa situao cruzando os braos e esperando que o fenmeno A ocorra no tempo futuro T, essa minha inao diminuir a probabilidade da ocorrncia do evento A. Isso se d porque a soma (S) de circunstncias necessrias para a ocorrncia de A inclua a varivel a correspondente minha ao no tempo presente. Sendo assim, no tempo T o resultado da soma das circunstncias necessrias ocorrncia de A ser S a. Mas, digamos que um outro indivduo, que tambm estava em estado de inao, ao perceber a minha apatia, considere-a perniciosa. Essa percepo poder arranc-lo de sua prpria inao, motivando-o ao. E se a fora de sua ao chamarmos de b; sendo a=b o resultado da soma das circunstncias favorveis ocorrncia de A no tempo T, continuar sendo S, possibilitando assim a ocorrncia futura de A. Entretanto, surge aqui um inconveniente. Se a minha fora a for diferente de zero, se eu for um trabalhador hbil e capaz, ou se ningum houver me substitudo, ento no teremos mais a soma S e (1): o fenmeno A no ocorrer totalmente como supnhamos; (2) ocorrer mais tarde do que supnhamos; ou (3) simplesmente no chegar a ocorrer.

    H ainda um segundo inconveniente. Ora, a previso de que a soma S estaria completa no tempo T no levou em conta o fato de que eu iria me deitar a dormir aps saber da predio. Quem fez a referida predio estava convencido de que eu no me entregaria inao. Mas suponhamos que aquele que fez a predio pensou em tudo.

    16 Hook, S., O heri na histria, p. 74.

  • 23

    Retomemos ento o raciocnio a partir da premissa preditiva inicial: a soma S estar completa no tempo T. A soma de circunstncias S levar em conta a minha substituio como agente (por algum menos competente que eu), mas incluir tambm a ao estimulante em outros homens de que seus esforos e ideais seriam a expresso subjetiva de uma necessidade objetiva (conscincia da necessidade). Neste caso, aponta Plekhanov, a soma S estar efetivamente completa no tempo T e o fenmeno A ocorrer.

    Sendo assim to evidente esse raciocnio, por que que a predio me pareceu um convite (ou uma condenao) inao? Deixemos a resposta com o prprio Plekhanov:

    Provavelmente, porque, devido s circunstncias da minha educao, eu tinha j uma tendncia muito forte para a inao e a minha conversa consigo [com o previsor] foi a gota que fez transbordar a taa desta louvvel inclinao. tudo. S neste sentido como causa que denunciou a minha flacidez moral e a minha inutilidade que a conscincia da necessidade aqui figura. Ela [a conscincia da necessidade] no pode de modo algum ser encarada como a causa desta flacidez: as suas causas so as

    circunstncias da minha educao17.

    A ttulo de exemplo, Plekhanov aponta que a situao militar da Frana durante o reinado de Lus XV no era nada boa. Os oficiais franceses, quando destacados para sentinelas, abandonavam seus postos e s obedeciam aos seus superiores quando lhes era conveniente. Tal estado de coisas devia-se decadncia da aristocracia, que a despeito disso continuava a ocupar os postos mais elevados no exrcito. Isso j teria sido suficiente para um desenlace desfavorvel para a Frana na Guerra dos Sete Anos. Mas a incompetncia de alguns generais como Soubise aumentavam as chances de fracasso do exrcito francs. Como Soubise era protegido da poderosa Marquesa de Pompadour, que por sua vez submetia Lus XV aos seus caprichos, poderamos considerar a influncia da Marquesa como um dos fatores que acentuaram de forma desfavorvel as causas gerais (decadncia da aristocracia e conseqente crise no exrcito) da situao na Frana. Entretanto, Plekhanov nos recorda que a Marquesa de Pompadour s era poderosa porque o rei estava submetido s suas vontades, e no por conta de sua prpria fora. Tendo em conta o determinismo social, poderamos afirmar que o carter fraco de

    17 Plekhanov, G. O papel do indivduo na histria, in: Gardner, P. Teorias da histria, p. 178.

  • 24

    Lus XV era aquilo que deveria ser por conta mesmo do desenvolvimento das relaes sociais na Frana? A resposta de Plekhanov negativa. A fraqueza moral de Lus XV entendida como algo contingente: um rei com uma atitude diferente para com as mulheres poderia ter surgido no lugar dele. Aps a batalha de Rosbach, os franceses se indignaram com a proteo a Soubise e, apesar dos constantes insultos, a Marquesa de Pompadour continuava a proteg-lo. Por que ela no cedia opinio pblica? Plekhanov pergunta e ele mesmo responde: provavelmente porque a sociedade francesa daquele tempo no tinha meios para obrig-la a ceder. Impedia-a disso a sua forma de organizao que, por seu turno, era determinada pela correlao das foras sociais em Frana ao tempo18. E conclui ento que nem o fraco de Lus XV pelas mulheres e nem a vaidade da Marquesa de Pompadour teriam sido os fatores determinantes do destino deplorvel da Frana. Qualquer concluso que no fosse esta estaria flagrantemente em desacordo com o carter monista do materialismo histrico. E exatamente essa necessidade de manter a coerncia que faz com que os argumentos de Plekhanov sejam um tanto contraditrios. Ele afirma que , de fato, inegvel o efeito na histria das peculiaridades de determinados indivduos, mas aponta que tal efeito s exerceria o seu poder a partir da correlao de foras no interior de determinada sociedade, ou seja, o carter de um indivduo s seria um fator no desenvolvimento social se as relaes sociais assim o permitissem. Tal influncia tambm guardaria relao com o talento individual, mas um indivduo s poderia manifestar seu talento (de forma a influenciar o curso de determinados acontecimentos) se ocupasse alguma posio de destaque no interior da sociedade. O destino da Frana estava nas mos de um monarca fraco porque a forma de organizao da sociedade francesa permitia isso. A possibilidade de que os indivduos exeram influncia sobre os rumos da histria, como bem aponta Plekhanov, abre as portas desta ao acaso. A lascvia de Lus XV, argumenta ele, era algo casual no que dizia respeito ao curso geral do desenvolvimento da Frana (por ser fruto da constituio fsica do monarca), no entanto, isso influiu no destino da sociedade francesa. O mesmo poderamos afirmar quanto morte de Mirabeau, devida a causas patolgicas que seguiam regras naturais definidas. Em ambos os casos, tais vicissitudes no tiveram origem no curso geral do desenvolvimento da Frana, sendo assim casuais. Mas nem por isso deixaram de

    18 Idem, Ibidem, p. 190

  • 25

    exercer alguma influncia no rumo dos acontecimentos. Conclui-se da que, algumas vezes, o destino das naes depende dos acasos, o que no impede que tais processos sejam estudados pela cincia. Tendo tudo isso em conta, somos levados a concluir que Plekhanov conseguira solucionar parte do problema de forma satisfatria, sem grandes contradies, mas no o que ocorre. Ele reabilita o papel do indivduo na histria e reinstaura a a influncia sempre problemtica do acaso, para logo em seguida negar-lhes qualquer importncia, retornando ortodoxia marxista. Isso ao afirmar que, no final das contas, no importam as pequenas causas fisiolgicas ou psicolgicas em questo, os processos histricos

    sobre os quais elas exerceriam sua fora ocorreriam de qualquer forma:

    Sainte-Beuve pensava que se tivesse havido um mnimo suficiente de causas menores e obscuras do tipo das que ele mencionou, o desenlace da Revoluo Francesa teria sido o

    contrrio daquele que conhecemos. Isso um grande erro. Por mais inextricavelmente

    enredadas que tivessem sido as pequenas causas psicolgicas e fisiolgicas, em caso

    algum teriam eliminado as grandes necessidades sociais que deram origem Revoluo Francesa; enquanto estas necessidades estivessem por satisfazer, o movimento

    revolucionrio em Frana teria continuado. Para tornar o desenlace deste movimento

    contrrio ao que foi, as necessidades que lhe deram origem teriam de ter sido o contrrio

    do que foram; e isto, evidente, nenhuma combinao de causas menores teria conseguido19.

    Ou seja, indivduos talentosos podem at alterar algumas caractersticas dos eventos histricos ou algumas de suas conseqncias particulares, mas jamais a sua orientao geral que determinada pelas relaes sociais. Tal considerao faz com que a concluso a que Plekhanov chega seja a mesma de Engels e Hegel: no fosse Napoleo, algum outro aventureiro teria tomado o seu lugar. E mesmo tendo isso em mente que ele discute a impresso que temos de que sem os grandes homens a histria no teria sido como foi. Essa iluso de ptica ele atribui ao fato de que, no caso de Napoleo, este, ao desempenhar o seu papel de protetor da ordem pblica, impediu, barrou o acesso de outros que poderiam ter desempenhado essa mesma funo talvez to bem quanto ele. Sendo assim, a fora de Napoleo nos parece muito ampliada hoje porque as outras foras que poderiam ter ocupado o seu lugar no passaram da potncia ao real. Por isso, quando nos

    19 Idem, ibidem, p. 192-193.

  • 26

    perguntaram: Que teria acontecido se no tivesse existido Napoleo, a nossa imaginao atrapalha-se e parece-nos ento que sem ele no teria ocorrido o movimento social em que assentaram o seu poder e a sua influncia20. Mas, fato, no poderia ter sido qualquer um a tomar o lugar de Napoleo. Para que qualquer indivduo de talento consiga influenciar o curso dos eventos histricos, necessrio (1) que seu talento o adapte s necessidades sociais da poca e (2) seu caminho no pode ser obstrudo pela ordem social existente. O historiador Sidney Hook rejeita a tentativa de sntese de Plekhanov, que no consegue escapar do determinismo social ao afirmar a importncia dos grandes lderes para ento retornar ortodoxia marxista. Hook pretende discutir a importncia do heri na histria sem recair no misticismo de Carlyle e nem negar a importncia das foras sociais. Para Hook, a dificuldade consiste em descobrir quando o heri seria um acidente histrico e quando ele seria um verdadeiro agente de mudana. fato que na histria tanto quanto na natureza podemos notar que determinados eventos estariam mais significativamente ligados entre si do que outros. Citando o exemplo de Colombo e do descobrimento da Amrica, ele nota que, apesar da sua importncia como desbravador, nenhum historiador estaria disposto a admitir que sem Colombo a Amrica no teria sido descoberta e que a histria desse continente teria sido completamente diferente daquilo que hoje. A expanso do capitalismo e a busca de novos mercados consumidores a leste, bem como o interesse quanto a uma passagem mais curta para a ndia certamente motivariam outros desbravadores. Ou seja, graas s tendncias determinantes em ao na histria social da Europa resultariam no descobrimento do novo mundo mesmo se Colombo nunca tivesse existido. Seria apenas uma questo de tempo. Sendo assim, Colombo, Vespcio, Magalhes, etc., no poderiam ser considerados heris histricos. Para Hook, portanto, aquilo que define a importncia de uma ao herica significativa a existncia de possveis alternativas de desenvolvimento em determinada circunstncia histrica (bifurcaes). Nisso ele concorda com os deterministas sociais: quando a magnitude de determinada situao histrica suficientemente forte, no h nada que possa det-la. Entretanto, em determinadas circunstncias, quando duas ou mais alternativas so historicamente possveis,

    20 Idem, ibidem, p. 196.

  • 27

    determinados indivduos poderiam fazer a balana da histria pender para algum dos lados.

    Sempre que estamos em posio de asseverar (...) que um homem momentoso teve influncia decisiva num perodo histrico, no estamos abandonando a crena na conexo causal ou abraando a crena na causalidade absoluta. O que afirmamos que

    em tais situaes o grande homem uma influncia histrica relativamente

    independente independente das condies que determinam as alternativas e que nessas ocasies a influncia de todos os outros fatores relevantes tm peso secundrio no capacitar-nos para entender ou predizer qual das alternativas possveis ser efetivada.

    Em tais situaes deveramos tambm ser capazes de dizer, e de apresentar as razes

    para diz-lo, que se o grande homem no tivesse existido o curso dos acontecimentos

    teria, com toda probabilidade, tomado uma direo diferente21.

    Na inteno de defender sua tese, Hook reabilita a importncia epistemolgica do se na pesquisa historiogrfica. A legitimidade de sua tese consiste na legitimidade de perguntas como: que ocorreria se esse fato no tivesse acontecido ou se aquele homem no tivesse vivido ou se esta alternativa no tivesse sido tomada22.

    Mas ele no tem em mente a reabilitao da condicional s expensas da realidade. Existem reconstrues histricas verossmeis e outras absolutamente fantasiosas. A discusso em pauta a de que nem todo se implica em mera fantasia intil de historiadores ociosos ou em fico ao invs de historiografia, porque nem todas as possibilidades histricas so igualmente plausveis. Para tanto, ele cita o exemplo da reforma e da contra-reforma. Se a primeira no tivesse acontecido seria possvel prever com segurana a no-ocorrncia da segunda. Entretanto, seria muito mais difcil tentarmos prever o que teria acontecido no desenvolvimento do cristianismo se no tivesse havido a reforma protestante, porque quando estendemos a linha da possvel eventualidade muito alm do perodo imediato, a mente vacila sob o peso cumulativo do imprevisto. Eis porque a profecia uma vocao to perigosa23.

    Esses poderiam ter sido da histria surgem ento como possibilidades perdidas, que no ocorreram, na maior parte das vezes, por falta de inteligncia (sobretudo quanto s possibilidades objetivas do bem) mas, algumas vezes, pela falta de um heri.

    21 Hook, S. O heri na histria, p. 100.

    22 Idem, ibidem, p. 101.

    23 Idem, ibidem, p. 115.

  • 28

    Ele distingue, assim, a existncia de dois tipos de heris: o homem-momento e o homem-poca. Tanto um tipo quanto o outro surgem em um momento de bifurcao na histria, onde a possibilidade de ao desses homens j foi preparada pela direo de acontecimentos pregressos. No caso do homem-momento, tal preparao estaria em um estado j muito avanado e exigiria apenas um pouco de talento e sorte, mas no uma grande ao por parte dele para que o curso da histria seguisse por determinado ramo da bifurcao. O homem-poca, por sua vez, uma espcie de homem-momento cujas aes so norteadas mais pela sua inteligncia e fora do carter que por circunstncias felizes do acaso.

    A diferena a seguinte: no caso do homem-momento, a preparao est num

    estado muito avanado. preciso um ato relativamente simples um decreto, um comando, uma deciso sensata para fazer a escolha decisiva (...). O homem-poca, por outro lado, encontra uma bifurcao na estrada da histria, mas ajuda tambm, por assim dizer, a cri-la. Aumenta as probabilidades de sucesso para a alternativa que

    escolhe em virtude das qualidades extraordinrias que possui para realiz-la24.

    Para Hook, uma outra caracterstica distintiva destes dois tipos de heris o fato de que o homem-poca tem certa conscincia da seqncia de acontecimentos a que sua deciso dar origem. Convm notar, porm, algumas coisas. No simples distinguir quando determinado personagem histrico enquadra-se na categoria de homem-poca ou de homem-momento; isso dependeria muito da anlise da situao. Outro ponto a ser considerado que tal categorizao representa (mesmo que Hook no utilize essa expresso) tipos ideais no sentido weberiano mesmo, ou seja, dificilmente ns os encontraramos em uma forma pura. E o mais importante: existem situaes que

    nenhum heri pode dominar. A anlise de Sidney Hook muito intrigante e a sua distino entre homem-

    momento e homem-poca nos parece adequada, sobretudo quando consideramos a ressalva de que a distino entre um tipo e outro dependeria da anlise da situao. No caso que aqui nos interessa o nazismo existe uma figura que naturalmente se

    sobressai: Adolf Hitler. A pergunta que se tem feito ao longo de dcadas a seguinte: No fosse Hitler, teria acontecido a Segunda Grande Guerra e conseqentemente o holocausto?. Notemos que assim formulada, a dvida oculta a presena de duas

    24 Idem, ibidem, p. 132-133.

  • 29

    questes distinas, apresentando-as como se fossem apenas uma. Melhor seria perguntarmos: (1) No fosse Hitler, o mundo teria sido conduzido a um conflito global? e (2) No fosse ele, teria sucedido o holocausto?

    A resposta primeira pergunta, se aceitarmos a concepo herica da histria de Carlyle seria no, pois a histria, ele argumentaria, forjada por esses homens superiores. Hegel consideraria Hitler um indivduo histrico-csmico, capaz de apreender a realidade e os desejos de sua poca (inconscientemente), realizando apenas aquilo que j estava maduro e agindo de acordo com o esprito da poca, ou seja, no fosse ele, o ardil da razo teria encontrado uma outra soluo para realizar seu projeto. Quanto a Kant, a questo seria um pouco mais complicada, mas no difcil imaginar que, de acordo com o plano oculto da natureza, a histria teria que seguir esse curso de qualquer forma, independente do indivduo. Difcil seria harmonizar o nazismo com a concepo kantiana de que a histria humana seguiria um curso regular da animalidade humanidade, problema tambm difcil de solucionar em Hegel, igualmente convicto de que a histria caminha rumo ao progresso. Em Herder a finalidade seria a mesma, mas sua identificao com o devir histrico que conduziria ao Estado nazista, graas sua crena no gnio dos povos seria mais imediata: Hitler agiria de acordo com o carter de seu povo, mas difcil dizer (como em Kant) se ele seria dispensvel. Quanto a Engels e Marx, no h muito o que discutir: sempre que as condies objetivas exigem, o grande homem encontrado, ou seja, na falta de Hitler seria algum outro ditador.

    Foi essa concepo (apesar da mstica em torno de Hitler) que prevaleceu na anlise do conflito que culminou com a Segunda Guerra Mundial. O argumento j conhecido de todos aquele da humilhao alem pelo Tratado de Versalhes, que ps fim Primeira Guerra Mundial mas ao mesmo tempo foi a causa do incio da Segunda Guerra Mundial. A Polnia independente foi partilhada, no final do sculo XVIII, pela Prssia, ustria e Rssia, sendo reconstituda aps a Primeira Guerra Mundial sobre parte do territrio alemo, que foi obrigado a ceder Polnia uma sada para o mar (Posnnia), quebrando assim a continuidade de seu territrio. O resultado do Tratado de Versalhes foi a criao do corredor polons, a perda da Alscia e Lorena, o fim do servio militar obrigatrio e a reduo do exrcito alemo para apenas 100.000 homens (alm da proibio da aviao, blindados e artilharia pesada) e a perda do rico territrio do Sarre, que passou para o comando da Liga das Naes por 15 anos. Responsabilizada pela guerra, a Alemanha foi obrigada a arcar com uma dvida de guerra impagvel e se

  • 30

    no honrasse seus compromissos poderia ter a regio do Ruhr confiscada pela Frana, o que acabou acontecendo.

    Se levarmos em conta a soluo encontrada por Plekhanov, devemos apontar que a orientao geral, ou seja, a guerra inevitvel seria fruto dessas relaes sociais. Em outros termos, dadas as condies objetivas necessrias (e supostamente suficientes), o conflito no poderia ser evitado. Mas Plekhanov deixa indicada a possibilidade de alteraes nas caractersticas de determinados eventos histricos, ou melhor, em suas conseqncias particulares.

    Somos capazes de aceitar o fato de que naquelas circunstncias a orientao geral do evento histrico no poderia ser alterada, mas a que chegamos nossa segunda pergunta: no fosse Hitler, o holocausto teria acontecido? Mais ainda: no fosse esse indivduo em especial, a evoluo dessa orientao geral no poderia ter sido abortada aps a reunio do Sarre ao Reich em 1935 ou o Anschluss (unio da ustria Alemanha) de 1938? Agora que reabilitamos o se na histria, autorizados por Sidney Hook, podemos prosseguir com o raciocnio.

    Pois bem, aquilo que mais nos intriga no caso do holocausto, alm do horror da coisa mesma, a radicalidade de uma soluo (o extermnio) absolutamente desnecessria em termos estratgicos e absurdamente complicada quanto sua logstica. A primeira soluo rumo a uma Alemanha judenfrei (livre de judeus) foi a idia de uma emigrao forada para uma reserva prxima a Nisko, na Polnia central ocupada. A idia era criar a um estado judaico autnomo na forma de um protetorado, projeto que fracassou totalmente. Depois disso, veio o projeto Madagascar25. Tambm idealizado por Eichmann, como fra a soluo Nisko, o projeto Madagascar pretendia evacuar 4 milhes de judeus da Europa para essa ilha francesa no sudeste da frica. A idia, aponta Hannah Arendt, j havia sido pensada pelo governo polons em 1937, que chegou concluso que seria absolutamente impossvel embarcar seus quase 3 milhes de judeus para a ilha. No se sabe ao certo se Eichmann acreditou mesmo ser possvel uma evacuao em massa dessa magnitude, atravs do bloqueio naval britnico que controlava o Atlntico, ou se o plano no passava de um embuste, uma cortina de fumaa para encobrir a soluo final.

    Considerado obsoleto, o projeto Madagascar foi abandonado pela soluo do extermnio fsico. O problema era como matar pessoas em larga escala e depois livrar-se

    25 Sobre isso, conferir Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalm: um relato sobre a banalidade do

    mal, p. 90-92.

  • 31

    dos corpos da maneira mais racional possvel com um gasto mnimo de recursos. A primeira soluo foram os fuzilamentos, mas carregar os corpos e depois enterr-los consumia tempo, por isso as valas passaram a ser cavadas e os judeus eram obrigados a se amontoar nessas valas e ento eram fuzilados. Um novo grupo chegava e, caminhando sobre os corpos que jaziam nas valas, encontravam um lugar para deitar e depois eram fuzilados, assim sucessivamente, camada aps camada. Mas logo o fuzilamento foi substitudo pelo envenenamento com gs, muito mais eficiente.

    O prprio Rudolf Hoess (no confundir, como se faz com freqncia, com Rudolf Hess, vice-lder do partido nazista), tenente general da SS a partir de 1942 e comandante do lendrio campo de concentrao de Auschwitz entre 1940 e 1943 esclareceu como funcionava esse novo mtodo de extermnio em massa, em entrevistas a Leon Goldensohn, psiquiatra da priso em Nuremberg26. Segundo o relato de Hoess, a ordem para a soluo final teria sido dada por Himmler no vero de 1941. Quando os primeiros transportes chegaram a Auschwitz, duas velhas casas de fazenda j haviam sido convertidas em cmaras de gs, onde 1800 a 2000 pessoas poderiam ser mortas de cada vez com gs Zyklon B. Como a construo dos crematrios no acompanhava o ritmo da matana, os corpos eram inicialmente cremados em fossos ao ar livre, onde se alternava uma camada de corpos e outra de lenha. Quando os fornos ficaram prontos eles funcionavam 24 horas por dia e mesmo assim no era suficiente. Os dados do extermnio so impressionantes: algo em torno de 20.000 mortos diariamente.

    Uma obra dessa magnitude era muito dispendiosa, mobilizando milhares de soldados alemes, dezenas de oficiais, ou seja, tempo e recursos humanos e financeiros justamente no momento em que o exrcito alemo enfrentava terrveis baixas na guerra contra a Rssia. O extermnio dos judeus, muitos deles profissionais liberais, comerciantes e banqueiros, s poderia agravar o colapso do sistema financeiro, alm de desestruturar a produo industrial. Mas nada disso importava porque os fins eram refratrios a esse tipo de consideraes racionais. No se tratava, como na maioria das guerras modernas, de dominar vastos territrios e explorar seus recursos naturais. No interessava nem mesmo reforar essa explorao com a utilizao de mo de obra escrava, porque os judeus no serviam sequer para serem utilizados como escravos. E nem mesmo o projeto de dominao global, tpico de qualquer nao expansionista, exigiria o extermnio de toda a populao dominada.

    26 Goldensohn, L. As entrevistas de Nuremberg, p. 352-358.

  • 32

    Nenhuma considerao calcada no modo de produo da vida material capaz de explicar esse tipo de projeto de dominao. As condies objetivas capazes de ditar o carter geral dos processos de vida social no tinham (pelo menos nesse caso) como conseqncia lgica a aniquilao total. O holocausto pode ser considerado irracional mesmo se considerarmos como nica forma de racionalidade a lgica do capital, porque de acordo com essa lgica so necessrios produtores e, sobretudo, consumidores, pouco importando se esses consumidores possuem sangue nobre ou plebeu. No h luta de classes entre burguesia e operariado que explique a obsesso de Hitler com a pureza racial. Ele no inventou o anti-semitismo, mas talvez sem ele o projeto (que por pouco no foi realizado) de uma nova raa de senhores jamais teria sido concebido com tanta clareza e executado com tanta eficincia. Eis a as conseqncias particulares a que se referira Plekhanov, como se isso fosse algo absolutamente irrelevante. Algumas peculiaridades individuais podem tornar mais (ou menos) desastrosa a orientao geral dos eventos histricos, afinal, neste caso, se substitussemos Hitler por Napoleo a diferena seria a inexistncia de campos de extermnio.

    Isso nos conduz diretamente Psicologia individual dos grandes lderes, mas no pretendemos subscrever a idealizao mstica dos grandes homens preconizada por Carlyle. Este trabalho pretende mostrar que um conjunto de idias, msticas (como o caso da ariosofia) ou cientficas (como o caso da eugenia) podem ter encontrado em determinados homens (Lanz, List, Hitler, Himmler) terreno frtil para germinar, convertendo assim aquilo que em Carlyle seria considerado mera peculiaridade de um indivduo excepcional em um problema de Psicologia Social.

    Sabemos que Freud, na ltima das conferncias introdutrias, e apesar das crticas ao comunismo esboadas em O mal-estar na civilizao, nota bem a fora do marxismo ao enfocar a influncia das circunstncias econmicas sobre a vida dos homens em sociedade:

    a fora do marxismo est, evidentemente, no em sua viso da histria, ou nas profecias do futuro baseadas nela, mas sim na arguta indicao da influncia decisiva

    que as circunstncias econmicas dos homens sobre as suas atitudes intelectuais, ticas

    e artsticas. Com isso foram descobertas numerosas correlaes e implicaes, que anteriormente haviam sido quase totalmente negligenciadas27.

    27 Freud, S. Novas conferncias introdutrias.

  • 33

    O embate entre Weber e Marx tambm vai por esse mesmo caminho. Em contraste com este, Weber se recusa a aceitar que as idias (como em Nietzsche e Marx) seriam apenas reflexos da dinmica social ou da psicologia individual, supondo que as diferentes esferas (econmicas, religiosas, intelectuais ou psquicas) seguiriam, pelo menos em parte, uma evoluo prpria. Ele tenta equilibrar, sempre que possvel, as influncias psicolgicas e as influncias histricas, operando, diferentemente de Marx e Nietzsche, com o conceito de afinidade eletiva em detrimento dos conceitos de reflexo ou expresso, ou seja,

    Para Marx, as idias expressam interesses, assim, o Deus oculto dos

    puritanos expressa a irracionalidade e anonimidade do mercado. Para Nietzsche, o cristianismo asctico reflete o ressentimento dos escravos, que assim expressam sua

    revolta na moral. Para Weber, no h ligao ntima entre os interesses ou a origem

    social do sujeito e seu sqito e o contedo da idia, em seu incio28.

    Em resumo, tanto Nietzsche quanto Marx tomam as idias no como capazes de portar um valor intrnseco, mas sempre como derivadas de interesses outros, psicolgicos ou materiais. Era essa divergncia com o materialismo histrico que Weber tinha em mente ao escrever A tica protestante e o esprito do capitalismo, ou seja, ele pretendia ressaltar a autonomia das idias (frente s condies materiais e a luta de classes) no surgimento do capitalismo moderno, que exigia um tipo especfico de personalidade conseguida a partir da crena em um conjunto de idias que mesmo de forma involuntria serviram para criar os traos de personalidade necessrios para o desenvolvimento do capitalismo. Esse conjunto de crenas estava reunido na tica protestante, sobretudo do calvinismo. De acordo com Weber a doutrina calvinista da predestinao dava origem ao problema de como o fiel poderia ter certeza de que era um dos eleitos, j que, segundo essa doutrina, Deus havia escolhido desde o incio aqueles que seriam brindados com a salvao e todos os que seriam punidos com a danao. Para a maioria dos homens era impossvel no pensar em uma forma segura de descobrir se ele fazia parte ou no do grupo de eleitos, e uma das formas recomendadas era que se mantivesse a autoconfiana (na eleio) e para isso uma intensa atividade profissional era recomendada, como o meio mais adequado29.Esse conselho baseava-se no argumento do prprio Calvino, que ao tornar lcitas as prticas do capitalismo, como

    28 Weber, M. Ensaios de sociologia, p. 81-82.

    29 Weber, M. A tica protestante e o esprito do capitalismo, p. 77.

  • 34

    o emprstimo a juros, apontava que mesmo o comerciante que buscava o lucro (atravs do trabalho, da sobriedade e da ordem) estaria tambm respondendo ao chamado de Deus. Ou seja, a prosperidade econmica, de forma implcita, surgia a como um indcio de eleio. E juntamente com o ideal asctico, que condenava a ganncia instintiva e o gasto desnecessrio com luxo, estimulando a poupana, decorreu da a acumulao capitalista. Weber conclui, portanto, que as restries impostas ao uso da riqueza adquirida s poderiam levar a seu uso produtivo como investimento de capital30. Eis a uma forma diametralmente oposta sugerida por Marx (que apostava na transformao das relaes de produo no campo) de explicao da acumulao primitiva que teria fornecido as condies necessrias para o surgimento do capitalismo.

    Weber entendia perfeitamente e at aceitava o argumento de que os interesses materiais e no as idias governavam a conduta humana, mas no deixava de notar, logo em seguida, que as imagens mundiais (construes simblicas associadas s condies sociais de camadas especficas da populao) criadas por idias muito freqentemente determinaram as linhas ao longo das quais a ao fra impulsionada pela dinmica dos interesses.

    O argumento de Freud, expressado mais ou menos na mesma poca das crticas de Weber, revelam essa mesma preocupao com a monocausalidade da anlise marxista, que supervaloriza os fatores econmicos: No se pode, contudo, supor que os motivos econmicos sejam os nicos que determinam o comportamento dos seres humanos em sociedade31. Freud acredita que as iluses da conscincia so produzidas por um pensamento que se julga livre quando na verdade seria prisioneiro de seus afetos (as pulses) e defendendo seu ponto de vista contra Marx, argumenta:

    completamente incompreensvel como os fatores psicolgicos podem ser

    desprezados, ali onde o que est em questo so as reaes dos seres humanos vivos;

    pois no s essas reaes concorrem para o estabelecimento das condies econmicas, mas at mesmo apenas sob o domnio dessas condies que os homens conseguem pr

    em execuo seus impulsos instintuais originais seu instinto de autopreservao, sua

    agressividade, sua necessidade de serem amados32.

    30 Weber, M. A tica protestante e o esprito do capitalismo, p. 124.

    31 Freud, S. Novas conferncias introdutrias.

    32 Idem. Ibidem.

  • 35

    A convico que moveu esse trabalho, apesar do nosso apreo por Marx, a mesma que moveu Freud e Weber: a de que idias e fantasias podem em determinadas circunstncias mover a roda da histria. Mas isso no significa que iremos negligenciar as condies objetivas, a fora material, apenas concordamos com Reich quando este afirma que se uma ideologia repercute sobre o processo econmico, isso um sinal de que ela mesma se converteu em uma fora material33.

    Acreditamos que alm das condies materiais, outras foras atuaram (e aqui fazemos uma concesso justa) sobre as caractersticas particulares da Segunda Guerra Mundial, pois como insiste Damergian com muita propriedade, a realidade psquica e a realidade social esto intimamente relacionadas e em permanente interao, tendo em vista que h um psquico no social e um social no psquico (cada um com suas especificidades), j que atravs dos mecanismos de introjeo e de projeo, de identificao introjetiva e projetiva, interno e externo, psicolgico e social interagem, impregnando a vida social de aspectos inconscientes, desmistificando assim a idia de um social vazio de pulses.34

    Uma dessas foras teria sido a personalidade do prprio Hitler, faceta que no pretendemos discutir neste trabalho por julgarmos sempre temerrio psicologizar personagens histricos j defuntos, e por julgarmos que isso j foi feito de forma exaustiva a partir dos anos 1950, e muitas vezes leviana. A segunda fora motriz das referidas caractersticas particulares pensamos ter sido as idias difundidas na Alemanha a partir dos grupos ocultistas, bem como aquelas da cincia eugnica. Pensamos que ao escolher essa faceta do problema ingressamos em um campo ainda pouco explorado e que por suas caractersticas serve muito bem como objeto de anlise da Psicologia Social, disciplina sempre empenhada em escapar (mas raramente conseguindo) tanto da tentao de psicologizar o social quanto da tentao de sociologizar o mundo psquico.

    33 Reich, W. Psicologia de massas do fascismo, p. 17.

    34 Damergian, Sueli. Para alm da barbrie civilizatria: o amor e a tica humanista, p.88.

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    CAPTULO II: A MITOLOGIA GERMNICA

    O mito conta uma histria sagrada; ele relata um

    acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do principio.

    (Mircea Eliade)

    ... o mito no uma v rapsdia, no um mero brotar de fantasias frvolas, mas uma fora cultural

    laboriosa e extremamente importan