sistema de educaÇÃo: subsÍdios para a conferÊncia nacional de educaÇÃo

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5/27/2018 SISTEMADEEDUCAÃO:SUBSDIOSPARAACONFERNCIANACIONALDEEDUCAÃO-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/sistema-de-educacao-subsidios-para-a-conferencia-nacional  SISTEMA DE EDUCAÇÃO: SUBSÍDIOS PARA A CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO 1  Dermeval Saviani 2  O objetivo desse trabalho é apresentar subsídios para os eventos preparatórios que se desenrolarão ao longo deste ano de 2009 tendo em vista a realização da Conferência Nacional de Educação em 2010. Tendo presente esse objetivo este texto reúne elementos desenvolvidos pelo autor em trabalhos anteriores, especificamente no livro “Educação brasileira: estrutura e sistema” (SAVIANI, 2008a), no artigo “Estruturalismo e educação brasileira” (SAVIANI, 2007) e no trabalho “Sistema nacional de educação: conceito, papel histórico e obstáculos para a sua construção no Brasil”, apresentado em 2008 na 31ª Reunião Anual da ANPEd que, por sua vez, incorporou, ampliando-o, o artigo “Desafios da construção de um sistema nacional articulado de educação” (SAVIANI, 2008b). Considerando que a tarefa principal da Conferência Nacional de Educação diz respeito à construção de um sistema nacional de educação no Brasil e tendo em vista as imprecisões e confusões que têm marcado o uso do termo “sistema” no campo educacional, considero conveniente começar pela discussão da própria noção de “sistema” seguida da noção de “estrutura” que lhe é correlata. Feita essa incursão preliminar abordarei o significado da expressão “sistema educacional” a partir de sua configuração histórica. Na seqüência, após destacar o relevante papel que a organização dos sistemas nacionais de ensino desempenhou na história da educação nos últimos dois séculos, tratarei dos obstáculos para a construção do sistema nacional de educação no Brasil, desdobrando-os em quatro espécies: os obstáculos econômicos, traduzidos na tradicional e persistente resistência à manutenção do ensino público; os obstáculos políticos, expressos na descontinuidade das iniciativas de reforma da educação; os obstáculos filosófico-ideológicos representados pelas idéias e interesses contrários ao sistema nacional de educação; e os obstáculos legais, correspondentes à resistência à aprovação de uma legislação que permita a organização do ensino na forma de um sistema nacional em nosso país. Por fim abordarei alguns aspectos relativos aos problemas e perspectivas suscitados pela retomada do tema da construção do sistema nacional de educação no contexto brasileiro atual. 1  Texto organizado a pedido da Assessoria do MEC para servir de subsídio às discussões preparatórias da Conferência  Nacional de Educação. 2  Professor Emérito da UNICAP e Coordenador Geral do HISTEDBR. 1

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Autor: Dermeval Saviani - 31 páginasO objetivo desse trabalho é apresentar subsídios para os eventos preparatórios que se desenrolarão ao longo deste ano de 2009 tendo em vista a realização da Conferência Nacional de Educação em 2010. Tendo presente esse objetivo este texto reúne elementos desenvolvidos pelo autor em trabalhos anteriores, especificamente no livro “Educação brasileira: estrutura e sistema” (SAVIANI, 2008a), no artigo “Estruturalismo e educação brasileira” (SAVIANI, 2007) e no trabalho “Sistema nacional de educação: conceito, papel histórico e obstáculos para a sua construção no Brasil”.

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  • SISTEMA DE EDUCAO: SUBSDIOS PARA A CONFERNCIA NACIONAL DE

    EDUCAO1

    Dermeval Saviani2

    O objetivo desse trabalho apresentar subsdios para os eventos preparatrios que se

    desenrolaro ao longo deste ano de 2009 tendo em vista a realizao da Conferncia Nacional de

    Educao em 2010. Tendo presente esse objetivo este texto rene elementos desenvolvidos pelo autor

    em trabalhos anteriores, especificamente no livro Educao brasileira: estrutura e sistema

    (SAVIANI, 2008a), no artigo Estruturalismo e educao brasileira (SAVIANI, 2007) e no trabalho

    Sistema nacional de educao: conceito, papel histrico e obstculos para a sua construo no Brasil,

    apresentado em 2008 na 31 Reunio Anual da ANPEd que, por sua vez, incorporou, ampliando-o, o

    artigo Desafios da construo de um sistema nacional articulado de educao (SAVIANI, 2008b).

    Considerando que a tarefa principal da Conferncia Nacional de Educao diz respeito

    construo de um sistema nacional de educao no Brasil e tendo em vista as imprecises e confuses

    que tm marcado o uso do termo sistema no campo educacional, considero conveniente comear pela

    discusso da prpria noo de sistema seguida da noo de estrutura que lhe correlata. Feita essa

    incurso preliminar abordarei o significado da expresso sistema educacional a partir de sua

    configurao histrica. Na seqncia, aps destacar o relevante papel que a organizao dos sistemas

    nacionais de ensino desempenhou na histria da educao nos ltimos dois sculos, tratarei dos

    obstculos para a construo do sistema nacional de educao no Brasil, desdobrando-os em quatro

    espcies: os obstculos econmicos, traduzidos na tradicional e persistente resistncia manuteno do

    ensino pblico; os obstculos polticos, expressos na descontinuidade das iniciativas de reforma da

    educao; os obstculos filosfico-ideolgicos representados pelas idias e interesses contrrios ao

    sistema nacional de educao; e os obstculos legais, correspondentes resistncia aprovao de uma

    legislao que permita a organizao do ensino na forma de um sistema nacional em nosso pas. Por

    fim abordarei alguns aspectos relativos aos problemas e perspectivas suscitados pela retomada do tema

    da construo do sistema nacional de educao no contexto brasileiro atual.

    1 Texto organizado a pedido da Assessoria do MEC para servir de subsdio s discusses preparatrias da Conferncia Nacional de Educao. 2 Professor Emrito da UNICAP e Coordenador Geral do HISTEDBR.

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  • 1. Sobre a noo de sistema

    Embora o termo sistema seja de uso corrente em diferentes contextos dando a impresso de

    que se trata de algo previamente dado que ns podemos identificar externamente, preciso ter presente

    que o sistema no um dado natural, mas , sempre, um produto da ao humana. Se ns procedermos

    a uma anlise da estrutura do homem3, vamos concluir que a realidade humana se encontra demarcada

    pelo trinmio situao-liberdade-conscincia. A existncia humana , pois, um processo de

    transformao que o homem exerce sobre o meio, ou seja, o homem um ser-em-situao, dotado de

    conscincia e liberdade, agindo no mundo, com o mundo e sobre o mundo. Na maior parte do tempo as

    aes humanas se desenvolvem normalmente, espontaneamente, ao nvel, portanto, da conscincia

    irrefletida, at que algo interrompe seu curso e interfere no processo, alterando sua seqncia natural.

    A, ento, o homem obrigado a se deter e examinar, a procurar descobrir o que esse algo que,

    normalmente, ns nomeamos com a palavra problema. A partir desse momento ele comea a refletir,

    isto , ele tematiza a realidade, voltando-se intencionalmente para ela a fim de compreend-la tendo em

    vista resolver os problemas que interromperam o curso de sua ao vital. Em conseqncia, a atividade

    anterior, de carter espontneo, natural, assistemtico substituda por uma atividade intencional,

    refletida, sistematizada. Conseqentemente, possvel ao homem sistematizar porque ele capaz de

    assumir perante a realidade uma postura tematizadamente consciente. Portanto, a condio de

    possibilidade da atividade sistematizadora a conscincia refletida. ela que permite o agir

    sistematizado, cujas caractersticas bsicas podem ser assim enunciadas:

    a) Tomar conscincia da situao;

    b) Captar os seus problemas;

    c) Refletir sobre eles;

    d) Formul-los em termos de objetivos realizveis;

    e) Organizar meios para atingir os objetivos propostos;

    f) Intervir na situao, pondo em marcha os meios referidos;

    g) Manter ininterrupto o movimento dialtico ao-reflexo-ao, j que a ao sistematizada

    exatamente aquela que se caracteriza pela vigilncia da reflexo.

    Ora, percebe-se facilmente, pelas notas mencionadas, que a atividade sistematizadora envolve

    toda a estrutura do homem nos seus trs elementos (situao, liberdade e conscincia).

    O ato de sistematizar, uma vez que pressupe a conscincia refletida, um ato intencional. Isto

    significa que, ao realiz-lo, o homem mantm em sua conscincia um objetivo que lhe d sentido; em

    3 Empreendi essa anlise no livro Educao brasileira: estrutura e sistema (SAVIANI, 2008a, p. 35-69).

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  • outros termos, trata-se de um ato que concretiza um projeto prvio. Este carter intencional no basta,

    entretanto, para definir a sistematizao. Esta implica tambm uma multiplicidade de elementos que

    precisam ser ordenados, unificados, conforme se depreende da origem grega da palavra sistema:

    reunir, ordenar, coligir. Sistematizar , pois, dar, intencionalmente, unidade multiplicidade. E o

    resultado obtido, eis o que se chama sistema. Este , ento, produzido pelo homem a partir de

    elementos que no so produzidos por ele, mas que a ele se oferecem na sua situao existencial. E

    como esses elementos, ao serem reunidos, no perdem sua especificidade, o que garante a unidade a

    relao de coerncia que se estabelece entre os mesmos. Alm disso, o fato de serem reunidos num

    conjunto no implica que os elementos deixem de pertencer situao objetiva em que o prprio

    homem est envolvido; por isso, o conjunto, como um todo, deve manter tambm uma relao de

    coerncia com a situao objetiva referida.

    Da se conclui que as seguintes notas caracterizam a noo de sistema:

    a) Intencionalidade;

    b) Unidade;

    c) Variedade;

    d) Coerncia interna;

    e) Coerncia externa.

    Ora, v-se por a, a estrutura dialtica que caracteriza a noo de sistema: intencionalidade

    implica os pares antitticos sujeito-objeto (o objeto sempre algo lanado diante de um sujeito) e

    conscincia-situao (toda conscincia conscincia de alguma coisa); a unidade se contrape

    variedade, mas tambm se compe com ela para formar o conjunto; e a coerncia interna, por sua vez,

    s pode se sustentar desde que articulada com a coerncia externa, pois, em caso contrrio, ser mera

    abstrao. Por descuidar do aspecto da coerncia externa que os sistemas tendem a se desvincular do

    plano concreto esvaziando-se em construes tericas.

    Podemos, enfim, concluir as observaes sobre a noo de sistema enfeixando-as na seguinte

    conceituao: Sistema a unidade de vrios elementos intencionalmente reunidos de modo a formar

    um conjunto coerente e operante.

    A simples leitura revela que nessa definio esto contidos todos os caracteres bsicos que

    compem a noo de sistema. Foi necessrio acrescentar o termo operante para se evitar que a

    coerncia fosse reduzida apenas coerncia interna. Na verdade, um sistema se insere sempre num

    conjunto mais amplo do que ele prprio; e a sua coerncia em relao situao de que faz parte

    (coerncia externa) se exprime precisamente pelo fato de operar intencionalmente transformaes sobre

    ela. Com efeito, se o sistema nasce da tomada de conscincia da problematicidade de uma situao

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  • dada, ele surge como forma de superao dos problemas que o engendraram. E se ele no contribuir

    para essa superao ele ter sido ineficaz, inoperante, ou seja, incoerente do ponto de vista externo. E

    tendo faltado um dos requisitos necessrios (a coerncia externa) isso significa que, rigorosamente

    falando, ele no ter sido um sistema.

    2. Sobre a noo de estrutura

    O termo estrutura, da mesma forma que sistema, tambm se refere a conjunto de elementos;

    por isso, muitas vezes, ambos so usados como sinnimos. Para evitar ambigidades cumpre, no

    entanto, distingui-los.

    O termo estrutura originou-se do verbo latino struere. A esse verbo atribudo

    correntemente o significado de construir. Esse sentido aceito sem objees tanto entre os leigos

    como nos crculos especializados. Tal fato dispensa os estudiosos de um exame mais detido do

    significado etimolgico do termo, o que pode ser ilustrado pela frase com a qual Bastide (1971, p.2)

    introduz o exame dos diferentes itinerrios percorridos pela palavra estrutura no vocabulrio

    cientfico: Sabemos que a palavra estrutura vem do latim structura, derivada do verbo struere,

    construir.

    V-se, por a, que estrutura significaria construo, o que j abre margem para uma

    duplicidade de sentido tambm mencionada pelo prprio Bastide: a de modelo e concreto, de relaes

    latentes e relaes reais, e esta oposio encontra-se em todas as disciplinas [...] (idem, ibidem, p.11).

    De fato, construo pode indicar tanto o modo como algo construdo (o que sugere a idia de

    paradigma ou modelo) como a prpria coisa construda (e a estrutura se confunde, ento, com a

    realidade mesma). Um exame mais detido da origem etimolgica revela, contudo, que a interpretao

    anterior suscetvel de certos reparos, uma vez que, alm de struo encontram-se em latim os verbos

    construo, destruo, instruo. Isso indica que struo a raiz a partir da qual se podem compor

    outros vocbulos de significados diferentes e at antinmicos, na medida em que se acrescenta esse ou

    aquele prefixo. Indica, ainda, que construo deriva diretamente de construo e no de struo, o

    que lana dvidas em relao identificao entre estrutura e construo sugerindo a idia de que essa

    interpretao um tanto apressada e superficial, hiptese que talvez permita explicar boa parte das

    confuses relativas ao termo em questo.

    Sendo um termo-raiz, struo (assim como structura) no possui um sentido preciso e

    suscetvel de ser caracterizado de imediato e a priori. Seu uso na lngua latina, como se pode inferir

    do manuseio dos dicionrios e enciclopdias, sugere um significado cuja preciso se instaura em

    funo dos contextos em que utilizado. Variando os contextos, variar, conseqentemente, o sentido

    4

  • do termo. Assim, se possvel dizer de imediato e a priori que construo se ope a destruo, o

    mesmo no ocorre com struo (FORCELLINI, 1940, vol. IV, p. 509)4; este no se ope nem se

    identifica aos termos anteriores a no ser quando considerado em funo de determinado contexto. Isso

    permite compreender ao mesmo tempo a polissemia e a respectiva difuso do termo estrutura bem

    como suas imprecises e confuses.

    As observaes feitas permitem concluir que estrutura a matriz fundamental a partir da qual

    ou em funo da qual so construdos os modelos. Em outros termos: possvel construir modelos cuja

    funo permitir conhecer da maneira mais precisa possvel as estruturas, pondo em evidncia os

    respectivos elementos e o modo como estes se relacionam entre si; e possvel, tambm, a partir do

    conhecimento das estruturas, construir modelos que permitam tanto a modificao das estruturas

    existentes como a formao de novas estruturas. A noo de estrutura no coincide, pois, com a de

    modelo (no importando, no caso, se se trata de modelos de conhecimento ou de modelos de ao).

    Considerando-se que estrutura origina-se de struo, o substantivo correspondente derivado

    de construo seria construtura. Como tal palavra no utilizada, o contedo que lhe corresponde

    acaba, por extenso, sendo designado tambm pelo termo estrutura.

    interessante notar, porm, que a cincia acabou por cunhar o termo constructo, este sim

    diretamente derivado do supino do verbo construo. Ora, os constructos so modelos cuja funo

    permitir conhecer as estruturas o/ou agir sobre elas.

    Conclui-se, ento, que a palavra estrutura designa primria e originariamente totalidades

    concretas em interao com seus elementos que se contrapem e se compem entre si dinamicamente.

    Nesse sentido, estrutura ope-se a constructo ou modelo. Este decorre do modo de existir do

    homem, ser concreto, que, por necessidade de compreender a realidade da qual faz parte, constri

    esquemas explicativos dessa mesma realidade.

    3. As noes de estrutura e sistema na educao

    Os termos estrutura e sistema, como j se assinalou, so utilizados com significados

    intercambiveis entre si, do que decorre, na educao, o uso das expresses estrutura educacional e

    sistema educacional com significados mais ou menos equivalentes. Repete-se aqui o mesmo

    fenmeno que se constata em outros setores do conhecimento nos quais, por exemplo, estrutura

    social e sistema social, estrutura econmica e sistema econmico etc., assume sentidos

    intercambiveis. Isso se evidencia no prprio Lvi-Strauss, que denomina estruturas de parentesco ao

    4 Conferir, especialmente, os verbetes structura e struo. No Lexicon totius latinitatis Forcellini indica os seguintes sinnimos de struo: exstruo, construo, instruo, obstruo e moveo.

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  • mesmo fenmeno que recebera de Morgan a denominao sistemas de parentesco (BASTIDE, 1971,

    p. 4).

    Se existe uma certa sinonmia entre os vocbulos estrutura e sistema, interessante notar

    que, enquanto nos demais contextos predomina a palavra estrutura, no contexto educacional a

    preferncia conferida ao termo sistema. Mas preciso reconhecer a presena do termo estrutura

    em vrias expresses como ocorre, por exemplo, na denominao da disciplina estrutura e

    funcionamento do ensino. Nesse caso tambm no se explicita de modo claro o significado de

    estrutura. Todavia, a contraposio com funcionamento sugere a analogia com a biologia.

    Estrutura indicaria a anatomia do ensino (os rgos que o constituem, suas caractersticas bsicas);

    funcionamento, a fisiologia do ensino (o modo como funcionam os diversos rgos que constituem o

    ensino). Passa-se, ento, a falar tambm em estrutura do sistema educacional, o que acaba por

    aumentar as confuses. Com efeito, expresses como estrutura do ensino superior e sistema de

    ensino superior equivalem-se? Uma vez que se fala em estrutura do ensino superior e em estrutura

    do sistema de ensino superior, o que que a palavra sistema acrescenta que no est contido no

    significado da expresso anterior? Poder-se- multiplicar as questes propostas pondo em evidncia

    exaustivamente a confuso existente entre estrutura e sistema no emprego corrente dessas palavras

    no contexto educacional. Cumpre, pois, demarcar mais claramente a distino entre esses dois termos.

    A estrutura implica a prpria textura da realidade; indica a forma como as coisas se entrelaam

    entre si, independentemente do homem e, s vezes, envolvendo o homem (como no caso das estruturas

    sociais, polticas, econmicas, educacionais etc.). O sistema, em contrapartida, implica uma ordem que

    o homem impe realidade. Entenda-se, porm: no se trata de criar a realidade. O homem sofre a

    ao das estruturas, mas, na medida em que toma conscincia dessa ao, ele capaz de manipular a

    sua fora agindo sobre a estrutura de modo a lhe atribuir um sentido.

    Parafraseando um dito de Sartre (1968, p. 117) numa de suas famosas polmicas com o

    estruturalismo dir-se-ia: o que foi feito do homem so as estruturas; o que ele faz (daquilo que fizeram

    dele) o sistema.

    V-se, pois, que enquanto a estrutura implica inintencionalidade (no nvel da prxis coletiva),

    o sistema implica intencionalidade. No se deve, porm, inferir, da, que sistema se indentifica

    com modelo ou constructo situando-o num plano exclusivamente terico. Sistema uma

    organizao objetiva resultante da atividade sistematizadora que se dirige realizao de objetivos

    coletivos. , pois, um produto da prxis intencional coletiva. Prxis (SNCHEZ VZQUEZ, 1975,

    parte 2, caps. I, II e III) entendida aqui como uma atividade humana prtica fundamentada

    teoricamente. Tal conceito implica, ento, uma unidade dialtica entre teoria e prtica, o que significa

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  • que se trata de uma atividade cujos objetivos no se realizam apenas subjetivamente; ao contrrio,

    trata-se de resultados que se manifestam concretamente.

    O produto intencional e concreto de uma prxis intencional coletiva, eis o que est sendo

    denominado sistema. V-se, pois, que a teoria no faz o sistema; ela apenas uma condio

    necessria para que ele se faa. Quem faz o sistema so os homens quando assumem a teoria na sua

    prxis. E quem faz o sistema educacional so os educadores quando assumem a teoria na sua prxis

    educativa, isto , quando a sua prtica educativa orientada teoricamente de modo explcito.

    Feitos esses esclarecimentos preliminares podemos, agora, compreender o significado da

    expresso estrutura do sistema educacional. Uma vez que o sistema educacional se configura como

    uma organizao objetiva, concreta, ele possui uma estrutura. Lanando mo de um jogo de palavras,

    dir-se-ia, pois, que, enquanto a estrutura se apresenta como um sistema que o homem no fez (ou fez

    sem o saber), o sistema pode ser comparado a uma estrutura que o homem faz e sabe que o faz. Note-

    se que no segundo caso o verbo foi utilizado no presente e no foi por acaso; preciso atuar de modo

    sistematizado no sistema educacional; caso contrrio, ele tender a distanciar-se dos objetivos

    humanos, caracterizando-se, agora sim, especificamente como estrutura (resultado coletivo

    inintencional de prxis intencionais individuais). Este risco particularmente evidente no fenmeno

    que vem sendo chamado de burocratismo. Este consiste em que, a um novo processo, se apliquem

    mecanicamente formas extradas de um processo anterior.

    4. O sistema educacional como produto da educao sistematizada

    Levando-se em conta a estrutura do homem caracterizada pelo trinmio situao-liberdade-

    conscincia, constatamos que a educao, enquanto fenmeno, se apresenta como uma comunicao

    entre pessoas livres em graus diferentes de maturao humana, numa situao histrica determinada; e

    o sentido dessa comunicao, a sua finalidade o prprio homem, quer dizer, sua promoo.

    A educao, assim considerada, encontrada em todas as sociedades: de maneira simples e

    homognea, nas comunidades primitivas; de modo complexo e diversificado, nas sociedades atuais.

    Aparece de forma difusa e indiferenciada em todos os setores da sociedade: as pessoas se comunicam

    tendo em vista objetivos que no o de educar e, no entanto, educam e se educam. Trata-se, a, da

    educao assistemtica; ocorre uma atividade educacional, mas ao nvel da conscincia irrefletida, ou

    seja, concomitantemente a uma outra atividade, esta sim, desenvolvida de modo intencional. Quando

    educar passa a ser objeto explcito da ateno, desenvolvendo-se uma ao educativa intencional, ento

    tem-se a educao sistematizada. O que determina a passagem da primeira para a segunda forma o

    fato de a educao aparecer ao homem como problemtica; ou seja: quando educar se apresenta ao

    7

  • homem como algo que ele precisa fazer e ele no sabe como faz-lo. isto o que faz com que a

    educao ocupe o primeiro plano na sua conscincia, que ele se preocupe com ela e reflita sobre ela.

    Assim, a educao sistematizada, para ser tal, dever preencher os requisitos apontados em

    relao atividade sistematizadora em geral. Portanto, o homem capaz de educar de modo

    sistematizado quando:

    a) Toma conscincia da situao (estrutura) educacional;

    b) Capta os seus problemas;

    c) Reflete sobre eles;

    d) Formula-os em termos de objetivos realizveis;

    e) Organiza meios para alcanar os objetivos;

    f) Instaura um processo concreto que os realiza;

    g) Mantm ininterrupto o movimento dialtico ao-reflexo-ao.

    O ltimo requisito (g) resume todo o processo, sendo condio necessria para garantir sua

    coerncia, bem como sua articulao com processos ulteriores. Pois o modo de existncia do homem

    tal que uma prxis que se estrutura em funo de determinado(s) objetivo(s) no se encerra com a sua

    realizao, mas traz a exigncia da realizao de novos objetivos, projetando-se numa nova prxis (que

    s nova pelo que acrescenta anterior e porque a pressupe; na realidade prolonga-a num processo

    nico que se insere na totalidade do existir).

    Ora, assim como o sistema um produto da atividade sistematizadora, o sistema educacional

    resultado da educao sistematizada. Isso implica que no pode haver sistema educacional sem

    educao sistematizada, embora seja possvel esta sem aquele. Isso porque ns podemos ter educadores

    que, individualmente, desenvolvem educao sistematizada preenchendo todos os requisitos antes

    apontados. O sistema, porm, ultrapassa os indivduos. Estes podem agir de modo intencional visando,

    contudo, objetivos diferentes e at opostos. Estas aes diferentes ou divergentes levaro, verdade, a

    um resultado coletivo; este no ter, contudo, um carter de sistema, mas de estrutura,

    configurando-se como resultado comum inintencional de um conjunto de prxis individuais

    intencionais.

    Mas o sistema j que implica em intencionalidade dever ser um resultado intencional de

    uma prxis tambm intencional. E como as prxis intencionais individuais conduzem a um produto

    comum inintencional, o sistema educacional dever ser o resultado de uma atividade intencional

    comum, isto , coletiva. Mas como se poder passar da atividade intencional individual atividade

    intencional comum? aqui que entra o papel da teoria. Sem uma teoria educacional ser impossvel

    uma atividade educativa intencional coletiva. Com efeito, o homem comum, imerso no cotidiano,

    8

  • incapaz de ultrapassar o domnio do prtico-utilitrio para perceber as implicaes e conseqncias de

    sua prpria atividade prtica. A conscincia que tem da prxis , mesmo, um obstculo ao

    intencional comum, uma vez que o leva a desprezar a teoria. Para ele, a prtica se basta a si mesma; se

    surgem problemas, a prpria prtica j apresenta um repertrio satisfatrio de solues. A atividade

    terica o no-prtico, portanto, intil; mais ainda: o antiprtico, pois introduz complicaes, altera a

    seqncia natural dos acontecimentos, quebra a rotina, causa transtornos.

    Em suma, para se ter um sistema educacional que evidentemente dever preencher os trs

    requisitos mencionados, a saber: intencionalidade (sujeito-objeto), conjunto (unidade-variedade),

    coerncia (interna-externa) preciso acrescentar s condies impostas atividade sistematizadora

    (educao sistematizada), esta outra exigncia: a formulao de uma teoria educacional. Reduzindo-se

    os requisitos da educao sistematizada a dois pontos fundamentais pode-se, enfim, determinar as

    condies bsicas para a construo de um sistema educacional numa situao histrico-geogrfica

    determinada; so elas:

    a) Conscincia dos problemas da situao;

    b) Conhecimento da realidade (as estruturas);

    c) Formulao de uma pedagogia

    A conscincia dos problemas um ponto de partida necessrio para se passar da atividade

    assistemtica sistematizao; do contrrio, aquela satisfaz, no havendo razo para ultrapass-la.

    Contudo, captados os problemas, eles exigiro solues; e como os mesmos resultaram das estruturas

    que envolvem o homem, surge a necessidade de conhec-las do modo mais preciso possvel, a fim de

    mud-las; para esta anlise das estruturas, as cincias sero um instrumento indispensvel. A

    formulao de uma pedagogia (teoria educacional) integrar tanto os problemas como os

    conhecimentos (ultrapassando-os) na totalidade da prxis histrica na qual recebero o seu pleno

    significado humano. A teoria referida dever, pois, indicar os objetivos e meios que tornem possvel a

    atividade comum intencional.

    5. Significado histrico da expresso sistema educacional

    O desenvolvimento da sociedade moderna corresponde ao processo em que a educao passa do

    ensino individual ministrado no espao domstico por preceptores privados para o ensino coletivo

    ministrado em espaos pblicos denominados escolas. Assim, a educao sistematizada prpria das

    instituies escolares tende a se generalizar impondo, em conseqncia, a exigncia de se sistematizar

    tambm o funcionamento dessas instituies dando origem aos sistemas educacionais organizados pelo

    poder pblico. Nessas condies, a partir segunda metade do sculo XIX a emergncia ou consolidao

    9

  • dos Estados nacionais se fez acompanhar da implantao dos sistemas nacionais de ensino nos

    diferentes pases.

    O fenmeno dos sistemas nacionais de ensino generalizou, na educao, o uso do termo sistema

    que se configurou como uma espcie de termo primitivo no carecendo, pois, de definio. Da sua

    polissemia com as imprecises e confuses decorrentes, o que nos impe a exigncia de examinar,

    preliminarmente, o significado da expresso sistema educacional.

    Na base do uso difuso do conceito de sistema na educao est, como j se mostrou, a noo de

    que o termo sistema denota conjunto de elementos, isto , a reunio de vrias unidades formando um

    todo. Da a assimilao do conceito de sistema educacional a conjunto de unidades escolares ou de rede

    de instituies de ensino. Assim, normalmente quando se fala em sistema pblico de ensino, o que

    est em causa o conjunto das instituies pblicas de ensino; quando se fala em sistema particular de

    ensino, trata-se da rede de escolas particulares; ao se falar em sistema superior de ensino, sistema de

    ensino profissional, sistema de ensino primrio, igualmente a referncia so as redes de escolas

    superiores, profissionais ou primrias e assim por diante.

    De fato, os exemplos mencionados j indicam outra fonte de equvoco que diz respeito aos

    critrios de classificao dos diferentes aspectos ou partes constitutivas do sistema, o que pode ser

    evidenciado pelos seguintes exemplos:

    a) Do ponto de vista da entidade administrativa, o sistema educacional pode ser

    classificado em: federal, estadual, municipal, particular, etc.;

    b) Do ponto de vista do padro, em: oficial, oficializado ou livre;

    c) Do ponto de vista do grau de ensino, em: primrio, mdio, superior;

    d) Do ponto de vista da natureza do ensino, em: comum ou especial;

    e) Do ponto de vista do tipo de preparao, em: geral, semi-especializado, ou

    especializado;

    f) Do ponto de vista dos ramos de ensino, em: comercial, industrial, agrcola, etc.

    Da derivam expresses como: sistema geral de educao, sistema federal de ensino,

    sistema oficial, sistema pblico, sistema escolar, etc. Na verdade, porm, o uso dessas expresses

    imprprio; um exame mais detido revelar que, em todos esses casos, se trata propriamente do

    sistema educacional, considerado sob este ou aquele prisma, nesse ou naquele aspecto.

    Mas preciso considerar que, para l dessas acepes, o termo sistema denota um conjunto de

    atividades que se cumprem tendo em vista determinada finalidade. E isso implica que as referidas

    atividades so organizadas segundo normas decorrentes dos valores que esto na base da finalidade

    preconizada. Assim, sistema implica organizao sob normas prprias (o que lhe confere um elevado

    10

  • grau de autonomia) e comuns (isto , que obrigam a todos os seus integrantes). Ora, os cursos livres so

    tais exatamente porque no se subordinam s normas gerais e comuns. Dessa maneira, os cursos livres,

    por definio, esto fora do sistema educacional. Logo, no parece adequado classificar o sistema

    educacional como oficial, oficializado ou livre. V-se que falar em sistema livre de educao seria

    uma forma de se referir ao conjunto das escolas livres, isto , aquelas escolas que no se subordinam s

    normas definidas pelo sistema educacional e que, conseqentemente, regulam o funcionamento de

    todas as escolas que o integram. Fica evidente, a, a contradio, pois sistema livre de educao

    significa o conjunto das escolas que no integram o sistema educacional, o que pe em evidncia de

    forma cristalina o carter equvoco do uso corrente na noo de sistema.

    No podemos perder de vista, ainda, que nas sociedades modernas a instncia dotada de

    legitimidade para legislar, isto , para definir e estipular normas comuns que se impem a toda a

    coletividade, o Estado. Da que, a rigor, s se pode falar em sistema, em sentido prprio, na esfera

    pblica. Por isso as escolas particulares integram o sistema quando fazem parte do sistema pblico de

    ensino, subordinando-se, em conseqncia, s normas comuns que lhe so prprias. Assim, s por

    analogia que se pode falar em sistema particular de ensino. O abuso da analogia resulta responsvel

    por boa parte das confuses e imprecises que cercam a noo de sistema, dando origem a expresses

    como sistema pblico ou particular de ensino, sistema escolar etc. Ora, a expresso sistema pblico de

    educao pleonstica porque o sistema de ensino s pode ser pblico. J a expresso sistema

    particular de ensino contraditria porque as entidades privadas no tm o poder de instituir sistemas

    educacionais. Em verdade, a atitude que tem prevalecido entre os educadores em geral e especialmente

    entre os legisladores tem sido a de evitar a questo relativa ao esclarecimento preciso do conceito de

    sistema, considerando-o como algo constantemente referido, mas cujo sentido permanece sempre

    implcito, supostamente compreendido, mas jamais assumido explicitamente.

    At a atual LDB, aprovada em 20 de dezembro de 1996, havia no Brasil apenas duas

    modalidades de sistemas de ensino: o sistema federal, que abrangia os territrios federais e tinha carter

    supletivo em relao aos estados; e os sistemas estaduais e do distrito federal. Nesse contexto as

    escolas de educao bsica, pblicas e particulares, integravam os respectivos sistemas estaduais. J as

    escolas superiores, pblicas e particulares, integravam o sistema federal subordinando-se, pois, s

    normas fixadas pela Unio. Nesse ltimo caso a legislao admitia a possibilidade do sistema federal

    delegar aos sistemas estaduais a jurisdio sobre as escolas superiores, desde que se tratasse de Estado

    com tradio consolidada no mbito do ensino superior.

    Cabe observar que as dificuldades em relao a esse tema decorrem j do prprio texto

    constitucional. Tudo indica que os constituintes procederam nesse assunto segundo aquela atitude

    11

  • acima descrita, pressupondo tacitamente o significado de sistema, mas sem compreend-lo de forma

    rigorosa e clara. Com isso, inadvertidamente, introduziram no texto, por analogia, o conceito de

    sistema municipal de ensino.

    Ora, a prpria Constituio, ao prescrever no art. 22, inciso XXIV, que compete privativamente

    Unio legislar sobre diretrizes e bases da educao nacional; que compete Unio, aos Estados e ao

    Distrito Federal legislar concorrentemente sobre educao, cultura, ensino e desporto (art.24, inciso

    IX); e que competncia comum da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios

    proporcionar os meios de acesso cultura, educao e cincia (art. 23, inciso V), no estendeu aos

    Municpios a competncia para legislar em matria de educao. Portanto, no tendo autonomia para

    baixar normas prprias sobre educao ou ensino, os Municpios estariam constitucionalmente

    impedidos de instituir sistemas prprios, isto , municipais, de educao ou de ensino. No obstante, o

    texto constitucional deixa margem, no art. 211, para que se possa falar em sistemas de ensino dos

    Municpios quando estabelece que a Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios

    organizaro, em regime de colaborao, os seus sistemas de ensino.

    Como interpretar esse dispositivo? Estaria ele afirmando claramente a competncia dos

    Municpios para instituir os respectivos sistemas de ensino? Mas ento, por que no se estendeu aos

    Municpios, de forma explcita, a competncia para legislar em matria de educao?

    Observe-se que nessa passagem da Constituio Federal no aparece a expresso os

    respectivos sistemas de ensino, mas os seus sistemas de ensino. Ora, o adjetivo respectivos denota

    univocamente de cada um enquanto que a palavra seus pode significar tanto de cada um como

    deles, isto , os sistemas de ensino da Unio, Estados e Municpios.

    Ser que, no citado artigo 211, o acento deve ser posto na competncia individual de cada ente

    federativo ou no regime de colaborao entre eles? Ou seja: o plural sistemas de ensino deve ser lido

    como significando que cada um organiza o respectivo sistema de ensino ou estaria significando que a

    organizao dos sistemas de ensino pressupe sempre a colaborao entre os vrios entes federados?

    Assim, no Distrito Federal, que no constitudo por municpios, a organizao do sistema de ensino

    implicaria apenas a colaborao entre a Unio e o Distrito Federal. J nos Estados essa organizao

    envolveria a colaborao entre a Unio, o Estado e os seus municpios.

    Por outro lado, como j foi salientado, o termo sistema utilizado em educao de forma

    equvoca assumindo, pois, diferentes significados. Ao que tudo indica o artigo 211 da Constituio

    Federal de 1988 estaria tratando da organizao das redes escolares que, no caso dos municpios,

    apenas por analogia so chamadas a de sistemas de ensino. Com efeito, sabe-se que muito comum a

    utilizao do conceito de sistema de ensino como sinnimo de rede de escolas. Da falar-se em sistema

    12

  • estadual, sistema municipal, sistema particular, etc., isto , respectivamente, rede de escolas

    organizadas e mantidas pelos Estados, pelos Municpios ou pela iniciativa particular. Obviamente, cabe

    aos Municpios manter escolas, em especial de educao infantil e de ensino fundamental o que, alis,

    est prescrito expressamente no inciso VI do artigo 30 da Constituio Federal de 1988: compete aos

    Municpios: VI manter, com a cooperao tcnica e financeira da Unio e do Estado, programas de

    educao pr-escolar e de ensino fundamental. de se notar, por outro lado, que no consta desse

    artigo 30 que trata das competncias dos Municpios, a prerrogativa de legislar sobre educao,

    cultura, ensino e desporto como ocorre com a Unio, Estados e Distrito Federal. Portanto, numa

    interpretao estrita do que est expresso no texto da Constituio Federal em vigor, os Municpios no

    disporiam da faculdade de instituir sistemas prprios de ensino j que isto entraria em conflito com o

    disposto no Ttulo III da Constituio. Conseqentemente, no haveria lugar para a instituio de

    sistemas municipais de ensino. As escolas municipais integrariam, via de regra, os sistemas estaduais

    de ensino subordinando-se, pois, s normas estabelecidas pelos respectivos Estados.

    O texto da nova LDB, entretanto, procurou contornar a dificuldade, ultrapassando a

    ambigidade do texto constitucional e estabelecendo com clareza a existncia dos sistemas municipais

    de ensino. Para tanto, alm do artigo 211 (A Unio, os Estados e os Municpios organizaro em

    regime de colaborao os seus sistemas de ensino), a LDB ter buscado respaldo nos incisos I e II do

    artigo 30 da Constituio Federal que afirmam, respectivamente, a competncia dos Municpios para

    legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislao federal e a estadual no que

    couber. Assim, o inciso III do artigo 11 da LDB estipula que cabe aos Municpios baixar normas

    complementares para o seu sistema de ensino. Isto posto, ainda que do ponto de vista da hermenutica

    constitucional se possa argir contra a constitucionalidade do disposto na LDB j que, se os

    constituintes quisessem, de fato, estender essa competncia aos Municpios o teriam feito

    expressamente como o fizeram em relao aos Estados e ao Distrito Federal, j no pairam dvidas,

    luz do texto da LDB, quanto competncia dos Municpios para instituir os seus sistemas de ensino.

    Conclui-se, ento, que a definio clara da competncia dos municpios para instituir os

    prprios sistemas de ensino flui da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB) e no da

    Constituio Federal. Portanto, no parece procedente a posio daqueles que entendem que a LDB, ao

    tornar opcional a organizao dos sistemas municipais de ensino, teria enfraquecido a norma

    constitucional, pois, em sua interpretao, a Constituio no apenas permite, mas teria determinado

    aos municpios a tarefa de organizar os prprios sistemas, como afirma Jos Eustquio Romo (1997,

    p.21 e 22). Em verdade, a LDB, ainda que lhe d carter opcional, estabelece claramente a competncia

    13

  • dos municpios para organizar os prprios sistemas de ensino. Alis, o prprio fato de deixar a eles a

    opo indica o reconhecimento explcito de sua competncia nessa matria.

    Diferentemente da referida interpretao, entendo que, ao admitir a possibilidade da

    organizao de sistemas municipais de ensino, a LDB se viu diante da questo relativa s condies

    para a sua efetivao. E, como uma medida de cautela, prescreveu, no pargrafo nico do artigo 11, que

    os municpios podero optar, ainda, por se integrar ao sistema estadual de ensino ou compor com ele

    um sistema nico de educao bsica.

    Com certeza a LDB introduziu a possibilidade de opo luz de duas evidncias, uma no plano

    formal e outra no plano real. Do ponto de vista formal, levou em conta a ambigidade da Constituio,

    como j se mostrou. Do ponto de vista real, considerou as dificuldades tcnicas e financeiras que

    muitos municpios teriam para organizar a curto ou mesmo a mdio prazo os seus sistemas de ensino.

    de se notar que o reconhecimento dessa limitao est expresso tambm no texto constitucional

    quando, ao estabelecer no inciso VI do artigo 30 a competncia inequvoca dos municpios de manter

    programas de educao pr-escolar e de ensino fundamental, acrescenta que isso ser feito com a

    cooperao tcnica e financeira da Unio e do Estado.

    Assim, enquanto ns ainda nos perdemos nessas discusses que nos desviam da questo do

    sistema nacional, os principais pases foram, desde o final do sculo XIX, organizando os respectivos

    sistemas nacionais de ensino. Vejamos, ento, qual foi o papel que esses sistemas desempenharam.

    6. Papel histrico dos sistemas nacionais de ensino

    Como sabemos, a sociedade burguesa ou moderna surgiu a partir do desenvolvimento e das

    transformaes que marcaram a sociedade feudal. Nesta dominava a economia de subsistncia que se

    caracterizava por uma produo voltada para o atendimento das necessidades de consumo. O seu

    desenvolvimento, porm, acarretou a gerao sistemtica de excedentes, intensificando o comrcio, o

    que acabou por determinar a organizao do prprio processo de produo especificamente voltado

    para a troca surgindo, assim, a sociedade capitalista ou burguesa que, pela razo indicada, tambm

    chamada de sociedade de mercado. Nesta, inversamente ao que ocorria na sociedade feudal, a troca

    que determina o consumo. Portanto, o eixo do processo produtivo deslocou-se do campo para a cidade

    e da agricultura para a indstria convertendo-se o saber (a cincia), de potncia espiritual (intelectual)

    em potncia material. Nessas novas condies, a estrutura da sociedade deixou de se fundar em laos

    naturais, passando a basear-se em laos propriamente sociais, isto , produzidos pelos prprios homens.

    Em conseqncia, a organizao social passou a reger-se pelo direito positivo (sociedade contratual) e

    no mais pelo direito natural ou consuetudinrio.

    14

  • Est posta, a, a equao que desembocar na questo escolar: o direito positivo, assim como o

    saber sistemtico, cientfico, supe registros escritos. Assim, o domnio de uma cultura intelectual, cujo

    componente mais elementar o alfabeto, se impe como exigncia generalizada de participao ativa

    na sociedade. Ora, a cultura escrita no produzida de modo espontneo, natural, mas de forma

    sistemtica e deliberada. Portanto, requer, tambm, para a sua aquisio, formas deliberadas e

    sistemticas, isto , institucionalizadas, o que fez com que, na sociedade moderna, a escola veio a

    ocupar o posto de forma principal e dominante de educao.

    Em suma: o deslocamento do eixo do processo produtivo do campo para a cidade e da

    agricultura para a indstria provocou o deslocamento do eixo do processo cultural do saber espontneo,

    assistemtico para o saber metdico, sistemtico, cientfico. Em conseqncia, o eixo do processo

    educativo tambm se deslocou das formas difusas, identificadas com o prprio processo de produo

    da existncia, para formas especficas e institucionalizadas, identificadas com a escola.

    Nesse contexto, a necessidade de disseminar as luzes da razo, to bem teorizada pelo

    movimento iluminista, trouxe consigo a necessidade de difundir a instruo indistintamente a todos os

    membros da sociedade, o que foi traduzido na bandeira da escola pblica, gratuita, universal, leiga e

    obrigatria. Da, o dever indeclinvel do Estado de organizar, manter e mesmo de impor a educao a

    toda a populao.

    Para cumprir esse desiderato, na medida em que, ao longo do sculo XIX, os Estados nacionais

    foram se constituindo ou se consolidando, cada pas foi tomando a iniciativa de organizar os

    respectivos sistemas nacionais de ensino. E o papel desses sistemas era precisamente universalizar a

    instruo pblica, entendida como aquela que assegura, ao conjunto da populao, o domnio da leitura,

    escrita e clculo, ademais dos rudimentos das cincias naturais e sociais (histria e geografia). Portanto,

    a referncia fundamental da organizao dos sistemas nacionais de ensino estava dada pela escola

    elementar que, uma vez universalizada, permitiria erradicar o analfabetismo. esse o papel histrico

    dos sistemas nacionais de educao que os principais pases conseguiram cumprir satisfatoriamente,

    ainda que de formas distintas e em graus diferenciados de eficcia.

    Para se ter uma idia da importncia dessa questo consideremos o caso da Itlia. Quando esse

    pas se constituiu como Estado Nacional em conseqncia do processo de unificao que se completou

    em 1861 sob a liderana do Piemonte, foi estendida a toda a Itlia a Lei Casati, uma extensa lei

    composta de 380 artigos que regulava o funcionamento da educao nos seus mais diferentes aspectos

    e que fora aprovada no Piemonte em 1859. Essa lei regulava minuciosamente o ensino superior e

    continha um brevssimo captulo sobre o ensino primrio que era relegado ao encargo das comunas,

    isto , dos municpios. Com isso, a Itlia chegou ao final do sculo com metade de sua populao

    15

  • analfabeta, o que levou Ernesto Nathan a afirmar em 1906: Em relao nossa posio social somos

    muito cultos e muito ignorantes, de um lado atormentados pelo analfabetismo, de outro pelo

    universitarismo (BARBAGLI, 1974, p. 29). Portanto, sua situao, ento, no era muito diferente

    daquela do Brasil.

    No entanto, ao longo do final do sculo XIX desenvolveu-se uma intensa campanha pela

    avocao do ensino primrio ao Estado, ou seja, o governo central. A mobilizao contou, inclusive,

    com a fora do martrio da jovem professora cujo nome, emblematicamente, era Itlia Donati. Vtima

    de assdio sexual e da maledicncia, Itlia Donati encontrou no suicdio o meio de recuperar a paz e a

    honra. Sua morte desencadeou grande impacto na imprensa tendo frente o jornal Corriere della Sera

    que se viu encorajado a persistir na denncia da triste situao de muitas das colegas da professora

    toscana. Seu enterro provocou grande comoo e em sua tumba foi posta uma lpide com a seguinte

    inscrio: A Itlia Donati / professora municipal em Porciano / to bela quanto virtuosa / forada por

    ignbil perseguio / a pedir morte a paz / e o atestado da sua honra. / Nascida em Cintolese em 1 de

    janeiro de 1863 / Morta em Porciano em 1 de junho de 1886 (CATARSI, 1985, pp. 112-113). Por

    fim, a campanha resultou vitoriosa e em 1911, atravs da reforma Daneo-Credaro (idem, pp.55-71 e

    123-131), o ensino primrio foi colocado sob a responsabilidade do Estado Nacional, instalando-se o

    sistema nacional de ensino a partir do qual foi possvel erradicar o analfabetismo.

    Diferentemente, O Brasil foi retardando essa iniciativa e, com isso, foi acumulando um dficit

    histrico imenso no campo educacional, em contraste com os pases que implantaram os respectivos

    sistemas nacionais de ensino tanto na Europa e Amrica do Norte como na Amrica Latina como o

    ilustram os casos da Argentina, Chile e Uruguai. Estes equacionaram o problema na passagem do

    sculo XIX para o XX. O Brasil j ingressou no sculo XXI e continua postergando a dupla meta

    sempre proclamada de universalizar o ensino fundamental e erradicar o analfabetismo.

    Cabe, ento, perguntar: como se pe hoje, no Brasil, a questo do sistema nacional de

    educao? possvel, ainda, organiz-lo? Para responder a essa indagao devemos comear pelos

    desafios sua construo.

    7. Obstculos construo do sistema nacional de educao no Brasil

    7.1. Os obstculos econmicos: a histrica resistncia manuteno da educao pblica

    no Brasil

    Ao iniciar sua obra educativa no Brasil em 1549 os jesutas cumpriam mandato de D. Joo III,

    cabendo coroa manter o ensino por eles ministrado. Mas o rei enviava verbas para a manuteno e a

    vestimenta dos jesutas; no para construes. Ento, os recursos que chegavam eram aplicados no

    16

  • colgio da Bahia e, como relata o padre Manuel da Nbrega em carta de agosto de 1552, ns no

    vestido remediamo-nos com o que ainda do reino trouxemos, porque a mim ainda me serve a roupa

    com que embarquei... e no comer vivemos por esmolas (HUE, 2006, p. 68). Essa situao foi

    contornada a partir de 1564 com o plano da redzima que destinava dez por cento de todos os impostos

    arrecadados da colnia brasileira manuteno dos colgios jesuticos.

    No perodo seguinte (1759-1827) as reformas pombalinas da instruo pblica instituram as

    aulas rgias a serem mantidas pela Coroa por meio do subsdio literrio criado em 1772. Mas a

    dificuldade de cobrana desse tributo na colnia no permitiu a adequada manuteno do ensino.

    Com a independncia poltica foi instalado o Primeiro Imprio que fez aprovar, em 15 de

    outubro de 1827, a lei das escolas de primeiras letras, cujo artigo primeiro estabelecia: em todas as

    cidades, vilas e lugares mais populosos havero (sic) as escolas de primeiras letras que forem

    necessrias (TAMBARA e ARRIADA, 2005, p. 23). Mas essa lei permaneceu letra morta. E o Ato

    Adicional Constituio do Imprio, promulgado em 1834, colocou o ensino primrio sob a jurisdio

    das Provncias, desobrigando o Estado Nacional de cuidar desse nvel de ensino. Mas as provncias

    no estavam equipadas financeiramente e nem tecnicamente para promover a difuso do ensino.

    Durante os 49 anos correspondentes ao Segundo Imprio, entre 1840 e 1888, a mdia anual dos

    recursos financeiros investidos em educao foi de 1,80% do oramento do governo imperial,

    destinando-se, para a instruo primria e secundria, a mdia de 0,47% (CHAIA, 1965, pp.129-131).

    Era, pois, um investimento irrisrio como constatou Rui Barbosa em 1882: "O Estado, no Brasil,

    consagra a esse servio apenas 1,99% do oramento geral, enquanto as despesas militares nos devoram

    20,86%" (idem, p. 103). Dessa forma, o sistema nacional de ensino no se implantou e o pas foi

    acumulando um grande dficit histrico em matria de educao.

    Ao longo da Primeira Repblica o ensino permaneceu praticamente estagnado, o que pode ser

    ilustrado com o nmero de analfabetos em relao populao total, que se manteve no ndice de 65%

    entre 1900 e 1920, sendo que o seu nmero absoluto aumentou de 6.348.869 em 1900, para 11.401.715

    em 1920. A partir da dcada de 1930, com o incremento da industrializao e urbanizao, comea a

    haver, tambm, um incremento correspondente nos ndices de escolarizao sempre, porm, em ritmo

    aqum do necessrio vista dos escassos investimentos. Assim, os investimentos federais em ensino

    passam de 2,1%, em 1932, para 2,5% em 1936; os estaduais se reduzem de 15,0% para 13,4% e os

    municipais se ampliam de 8,1% para 8,3% no mesmo perodo (RIBEIRO, 2003, p. 117). Isso no

    obstante a Constituio de 1934 ter determinado que a Unio e os municpios deveriam aplicar nunca

    menos de 10% e os estados 20% da arrecadao de impostos na manuteno e desenvolvimento dos

    sistemas educacionais (art. 156). Essa vinculao oramentria foi retirada na Constituio de 1937,

    17

  • do Estado Novo, e foi retomada na Carta de 1946, que fixou em 20% a obrigao mnima dos estados e

    municpios e 10% da Unio. No entanto, em 1955 tnhamos os seguintes ndices: Unio, 5,7%; estados,

    13,7%; municpios, 11,4%.

    A Constituio do regime militar, de 1967 e a Emenda de 1969, voltaram a excluir a vinculao

    oramentria5. Constata-se, ento, que o oramento da Unio para educao e cultura caiu de 9, 6% em

    1965, para 4,31% em 1975.

    A atual Constituio, promulgada em 1988 restabeleceu a vinculao fixando 18% para a Unio

    e 25% para estados e municpios. E, como o texto constitucional estabelece esses percentuais mnimos

    em relao receita resultante de impostos, alm do desrespeito contumaz norma estabelecida na

    Carta Magna, encontrou-se, especialmente a partir do governo FHC, um outro mecanismo de burlar

    essa exigncia. Passou-se a criar novas fontes de receita nomeando-as, porm, no com a palavra

    imposto, mas utilizando o termo contribuio, como so os casos da COFINS (Contribuio para o

    Financiamento da Seguridade Social), CPMF (Contribuio Provisria sobre Movimentao

    Financeira), CIDE (Contribuio sobre Interveno no Domnio Econmico). A essas receitas, como

    no recebem o nome de impostos, no se aplica a vinculao oramentria constitucional dirigida

    educao. Alm disso, tambm a partir do governo FHC, instituiu-se a DRU (Desvinculao das

    Receitas da Unio) que permite subtrair 20% das vinculaes oramentrias.

    Tomemos, ento, para considerar a situao atual, um ndice de carter global e, ao menos por

    enquanto, ainda no atingido pelos truques e jeitinhos em que so mestres as nossas elites

    econmicas e polticas: o PIB (Produto Interno Bruto), isto , a soma de todas as riquezas produzidas

    pelo pas. Calculado pela nova metodologia do IBGE, o PIB brasileiro em 2006 foi de 2 trilhes e 322

    bilhes de reais. Isso significa que, levando-se em conta a informao do prprio MEC de que o Brasil

    gasta em educao 4,3% do PIB, os gastos para 2007 deveriam ser da ordem de 99 bilhes e 846

    milhes de reais. Assim, mesmo descontando-se os gastos com ensino superior, que no chegam a um

    por cento do PIB, o total de 43 bilhes e 100 milhes previstos para o FUNDEB em 2007 est muito

    aqum do que corresponderia a esse ano. Com efeito, mesmo que fossem destinados 23 bilhes (1% do

    PIB de 2006) ao ensino superior, o montante a ser destinado educao bsica seria de 76 bilhes e

    800 milhes, muito superior, portanto, ao valor de 43 bilhes e 100 milhes programados para 2007.

    Diante dessa reiterada resistncia da Unio em assumir as responsabilidades financeiras na

    manuteno do ensino no pas, como instituir o sistema nacional de educao?

    5 A Emenda Constitucional de 1969 indiretamente restabeleceu a vinculao oramentria apenas para os municpios ao determinar, na alnea f do 3, Inciso II do Art. 15, que o Estado poder intervir no municpio que no aplicar no ensino primrio, em cada ano, pelo menos 20% da receita tributria municipal.

    18

  • 7.2. Os obstculos polticos: A descontinuidade nas polticas educativas

    A outra caracterstica estrutural da poltica educacional brasileira que opera como um desafio

    para a construo do sistema nacional de educao a descontinuidade. Esta se manifesta de vrias

    maneiras, mas se tipifica mais visivelmente na pletora de reformas de que est povoada a histria da

    educao brasileira. Essas reformas, vistas em retrospectiva de conjunto descrevem um movimento que

    pode ser reconhecido pelas metforas do ziguezague ou do pndulo. A metfora do ziguezague indica o

    sentido tortuoso, sinuoso das variaes e alteraes sucessivas observadas nas reformas; o movimento

    pendular mostra o vai-e-vem de dois temas que se alternam seqencialmente nas medidas reformadoras

    da estrutura educacional.

    Desde a primeira fase do Brasil independente as reformas se sucedem: Lei das escolas de

    primeiras letras, em 1827; Ato Adicional de 1834; reforma Couto Ferraz, de 1854; Lencio de

    Carvalho em 1879, sem contar os vrios projetos de reforma apresentados no Parlamento no final do

    imprio que no chegaram a vingar, como os de Paulino de Souza em 1869; de Joo Alfredo em 1871;

    de Rui Barbosa em 1882; de Almeida Oliveira, tambm em 1882; e o do Baro de Mamor em 1886.

    Observe-se que prevalece a tendncia em nomear as reformas pelos seus proponentes, em geral

    ministros da pasta de instruo pblica ou da educao, a indicar que quem chega ao poder procura

    imprimir sua marca, desfazendo o que estava em curso e projetando a idia de que com ele, finalmente,

    o problema ser resolvido.

    Esse movimento prossegue no perodo republicano patenteando-se melhor a o carter pendular,

    pois se uma reforma promove a centralizao, a seguinte descentraliza para que a prxima volte a

    centralizar a educao, e assim sucessivamente. Se uma reforma se centra na liberdade de ensino, logo

    ser seguida por outra que salientar a necessidade de regulamentar e controlar o ensino. Uma reforma

    colocar o foco do currculo nos estudos cientficos e ser seguida por outra que deslocar o eixo

    curricular para os estudos humansticos.

    No plano federal o regime republicano expressou a tenso na poltica educacional oscilando

    entre a centralizao (oficializao) e descentralizao (desoficializao). Aps a reforma Benjamin

    Constant, de 1890, que procurou introduzir os estudos cientficos e atenuar o excesso de liberdade que

    marcou a reforma Lencio de Carvalho, tivemos o Cdigo Epitcio Pessoa, em 1901. Esse cdigo

    ratificou o princpio de liberdade de ensino da Reforma Lencio de Carvalho, equiparou as escolas

    privadas s oficiais e acentuou a parte literria dos currculos. Mas a reforma Rivadvia Correa, em

    19

  • 1911, volta a reforar a liberdade de ensino e a desoficializao, alm de retomar a orientao

    positivista, tentando imprimir um carter prtico orientao dos estudos. Diante das conseqncias

    desastrosas, uma nova reforma, a de Carlos Maximiliano, instituda em 1915, reoficializou o ensino e

    introduziu o exame vestibular a ser realizado nas prprias faculdades podendo a ele se submeter apenas

    os candidatos que dispusessem de diploma de concluso do curso secundrio. O ciclo das reformas

    federais do ensino na Primeira Repblica se fecha, em 1925, com a Reforma Joo Lus Alves/Rocha

    Vaz. Considerando que ela se encontra em pleno centro da ltima dcada da Primeira Repblica

    quando, sobre a base das transformaes econmicas e sociais em curso, a estrutura de poder vigente

    passa a ser amplamente contestada, essa nova reforma ir reforar e ampliar os mecanismos de controle

    institudos pela reforma Carlos Maximiliano.

    descentralizao representada pelo protagonismo das reformas de ensino estaduais que

    marcaram a dcada de 1920 seguiu-se um processo de centralizao com as reformas de mbito

    nacional encabeadas por Francisco Campos, em 1931, com o ciclo das reformas Capanema entre 1942

    e 1946, com a LDB de 1961 e com a legislao do regime militar nos anos de 1968 e 1971. Mas nesse

    mesmo perodo os liberais adeptos da pedagogia nova defenderam a descentralizao do ensino

    impedindo que a legislao no mbito federal consagrasse o princpio organizacional do sistema

    nacional de educao.

    A era atual tem incio com a Constituio de 1988 e, aps algumas alteraes da legislao do

    perodo militar durante a Nova Repblica, tivemos as reformas dos anos de 1990 em cujo centro se

    encontra a nova LDB, de 1996, e o Plano Nacional de Educao aprovado em janeiro de 2001.

    A marca da descontinuidade na poltica de educao atual se faz presente na meta, sempre

    adiada, de eliminao do analfabetismo e universalizao do ensino fundamental. O Brasil chegou ao

    final do sculo XX sem resolver um problema que os principais pases resolveram na virada do sculo

    XIX para o XX: a universalizao do ensino fundamental, com a conseqente erradicao do

    analfabetismo. Para enfrentar esse problema a Constituio de 1988 previu, nas disposies

    transitrias, que o Poder Pblico nas suas trs instncias (a Unio, os estados e os municpios) deveria,

    pelos dez anos seguintes, destinar 50% do oramento educacional para essa dupla finalidade. Isso no

    foi feito. Quando esse prazo estava vencendo, o governo criou o FUNDEF com prazo de mais dez anos

    para essa mesma finalidade; e a LDB, por sua vez, instituiu a dcada da educao; seguiu-se a

    aprovao em 2001, do Plano Nacional de Educao, que tambm se estenderia por dez anos. No final

    de 2006, ao se esgotarem os dez anos do prazo do FUNDEF, foi institudo o FUNDEB, com prazo de

    14 anos, ou seja, at 2020. Em 2007, quando mais da metade do tempo do PNE j havia passado, veio

    um novo Plano, o Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE) que estabeleceu um novo prazo,

    20

  • desta vez de quinze anos, projetando a soluo do problema para 2.022. Nesse diapaso, j podemos

    conjecturar sobre um novo Plano que ser lanado em 2022 prevendo, quem sabe, mais 20 anos para

    resolver o mesmo problema.

    7.3 Os obstculos filosfico-ideolgicos: a resistncia no nvel das idias

    A idia de sistema nacional de ensino foi pensada no sculo XIX como forma de organizao

    prtica da educao, constituindo-se numa ampla rede de escolas abrangendo todo o territrio da nao

    e articuladas entre si segundo normas comuns e com objetivos tambm comuns. A sua implantao

    requeria, pois, preliminarmente, determinadas condies materiais dependentes de significativo

    investimento financeiro, o que se constitui no primeiro desafio, conforme j foi analisado. Alm disso,

    a implantao do sistema nacional de educao requeria tambm determinadas condies polticas, o

    que igualmente j foi analisado ao se abordar, no segundo desafio, a questo da descontinuidade nas

    reformas educacionais.

    Mas alm das limitaes materiais e polticas cumpre considerar, tambm, o problema relativo

    mentalidade pedaggica. Entendida como a unidade entre a forma e o contedo das idias

    educacionais, a mentalidade pedaggica articula a concepo geral do homem, do mundo, da vida e da

    sociedade com a questo educacional. Assim, numa sociedade determinada, dependendo das posies

    ocupadas pelas diferentes foras sociais, estruturam-se diferentes mentalidades pedaggicas. Na

    sociedade brasileira da segunda metade do sculo XIX trs mentalidades pedaggicas se delinearam

    com razovel nitidez: as mentalidades tradicionalista, liberal e cientificista. Destas, as duas ltimas

    correspondiam ao esprito moderno que se expressava no laicismo do Estado, da cultura e da educao

    (BARROS, 1959, pp.21-36). Nesse contexto, era de se esperar que os representantes dessas

    mentalidades de tipo moderno, empenhados na modernizao da sociedade brasileira, viessem a

    formular as condies e prover os meios para a realizao da idia de sistema nacional de educao. No

    entanto, a mentalidade cientificista de orientao positivista, declarando-se adepta da completa

    "desoficializao" do ensino, acabou por se converter em mais um obstculo realizao da idia de

    sistema nacional de ensino. Na mesma direo se comportou a mentalidade liberal que, em nome do

    princpio de que o Estado no tem doutrina, chegava a advogar o seu afastamento do mbito educativo.

    Nessas circunstncias, embora os debates do final do imprio apontassem na direo da

    construo de um sistema nacional de ensino colocando-se a instruo pblica, com destaque para as

    escolas primrias, sob a gide do governo central, o advento do regime republicano no corroborou

    essa expectativa. Seja pelo argumento de que, se no Imprio, que era um regime poltico centralizado, a

    instruo estava descentralizada, a fortiori na Repblica Federativa, um regime poltico

    21

  • descentralizado, a instruo popular deveria permanecer descentralizada; seja pela fora da mentalidade

    positivista no movimento republicano; seja pela influncia do modelo norte-americano; seja

    principalmente pelo peso econmico do setor cafeeiro que desejava a diminuio do poder central em

    favor do mando local, o certo que o novo regime no assumiu a instruo pblica como uma questo

    de responsabilidade do governo central, o que foi legitimado na primeira Constituio republicana. Ao

    estipular, no artigo 35, que incumbe ao Congresso Nacional, ainda que no privativamente, criar

    instituies de ensino superior e secundrio nos Estados (Inciso 3) e prover a instruo secundria

    no Distrito Federal (Inciso 4), a Constituio, embora omissa quanto responsabilidade sobre o

    ensino primrio, delegava aos Estados competncia para legislar e prover esse nvel de ensino.

    A partir da dcada de 1930, com o avano da industrializao e urbanizao do pas, a educao

    comea a ser tratada como questo nacional. No entanto, apesar do Manifesto dos Pioneiros da

    Educao Nova ter advogado a formulao de um plano de reconstruo educacional convergente

    com a idia de sistema nacional de educao, os renovadores, organizados no mbito da ABE, se

    posicionaram recorrentemente em favor da descentralizao. Isto os levou a preconizar, no projeto de

    LDB elaborado em 1947, a instituio de sistemas estaduais de ensino, elidindo a questo do sistema

    nacional. Levando mais longe essa posio Ansio Teixeira se manifestou como um fervoroso adepto

    da municipalizao chegando, mesmo, a preconizar a vinculao distrital. Essa posio fica clara

    quando ele considera que os sistemas educacionais no so algo abstrato referido populao de todo o

    pas, mas conjuntos de escolas vinculadas s unidades da populao e, em rigor, a cada comunidade

    local concluindo que sua vinculao ao municpio o mnimo que temos de admitir pois

    poderamos consider-lo vinculado ao distrito (TEIXEIRA, 1962, p.101). Com certeza essa posio

    decorre do comunitarismo americano presente no iderio pedaggico de Dewey. Com todo o respeito

    pela enorme folha de servios prestados educao brasileira, o que o torna, em minha opinio, o nico

    brasileiro a merecer o ttulo de estadista da educao, essa viso de Ansio Teixeira no deixou de ter

    efeitos negativos para o ensino em nosso pas. Essa resistncia dos liberais idia de sistema nacional

    de educao persistir nos anos subseqentes estendendo-se at os dias de hoje sendo, agora, de certo

    modo exacerbada no contexto do chamado neoliberalismo.

    Conclui-se, pois, que as dificuldades para a realizao da idia de sistema nacional de ensino se

    manifestaram tanto no plano das condies materiais e polticas como no mbito da mentalidade

    pedaggica. Assim, o caminho da implantao dos respectivos sistemas nacionais de ensino, por meio

    do qual os principais pases do Ocidente lograram universalizar o ensino fundamental e erradicar o

    analfabetismo, no foi trilhado pelo Brasil. E as conseqncias desse fato se projetam ainda hoje

    22

  • deixando-nos um legado de agudas deficincias no que se refere ao atendimento das necessidades

    educacionais do conjunto da populao.

    7.4. Os obstculos legais: a resistncia no plano da atividade legislativa

    Do ponto de vista lgico resulta evidente a relao de implicao entre os conceitos de lei de

    diretrizes e bases da educao nacional e de sistema nacional de educao. Quando a Constituio

    determina que a Unio estabelea as diretrizes e bases da educao nacional, obviamente ela est

    pretendendo com isso que a educao, em todo o territrio do pas, seja organizada segundo diretrizes

    comuns e sobre bases tambm comuns. E a organizao educacional com essas caractersticas o que

    se chama sistema nacional de educao. Essa situao se encontra ainda mais tipificada no caso da

    Constituio atual que estabeleceu, no artigo 211, o regime de colaborao.

    O fato de que, por se tratar de uma Repblica Federativa, a Constituio reconhea tambm a

    competncia dos Estados para legislar em matria de educao, em nada afeta o enunciado anterior.

    Com efeito, sistema no unidade da identidade, uma unidade monoltica, indiferenciada, mas unidade

    da diversidade, um todo que articula uma variedade de elementos que, ao se integrarem ao todo, nem

    por isso perdem a prpria identidade. Ao contrrio, participam do todo, integram o sistema, na forma

    das respectivas especificidades. Em outros termos: uma unidade monoltica to avessa idia de

    sistema como uma multiplicidade desarticulada. Em verdade, sistematizar significa reunir, ordenar,

    articular elementos enquanto partes de um todo. E esse todo articulado o sistema.

    Considerar, pois, como inconstitucional a incluso do tema relativo ao sistema nacional de

    educao na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional uma contradictio in terminis, a

    prpria contradio lgica. E isto porque a LDB implica o sistema.

    Como demonstrei em outro trabalho (SAVIANI, 2008a), h uma estreita relao entre a LDB e

    a sistematizao da educao. A educao assistemtica no objeto de legislao especfica. Veja-se,

    por exemplo, as questes referentes ao ptrio poder, s diverses pblicas etc., que podem ser

    consideradas atividades educativas segundo o prprio conceito adotado no Ttulo I da nova LDB; no

    entanto, tais questes so reguladas pelo Cdigo Civil. Quando, no entanto, se pensa numa lei

    especfica para a educao, porque se est visando sua sistematizao e no apenas sua

    institucionalizao. Antes de haver leis de educao, havia instituies educativas. Isso no implica,

    entretanto, a vinculao necessria da sistematizao legislao, ou seja: no necessrio que haja lei

    especfica de educao para que haja educao sistematizada; esta poder existir mesmo no existindo

    aquela. O que fica claro a vinculao necessria da lei especfica de educao sistematizao. Tal

    23

  • lei visar consolidar o sistema ou reform-lo (caso exista), ou ento, institu-lo, ou pelo menos,

    determinar as condies para que ele seja criado (caso no exista).

    Ora, em se tratando de uma lei que se prope a fixar as Diretrizes e Bases da Educao

    Nacional, mais ainda se impe a concluso acima apresentada. Com efeito, se por diretrizes e bases se

    entendem fins e meios, ao serem estes definidos em termos nacionais pretende-se no apenas indicar os

    rumos para onde se quer caminhar, mas organizar a forma, isto , os meios atravs dos quais os fins

    sero atingidos. E a organizao intencional dos meios com vistas a se atingir os fins educacionais

    preconizados em mbito nacional, eis o que se chama sistema nacional de educao.

    No obstante essa evidncia, na trajetria da nova LDB houve aqueles protagonistas que

    incidiram nessa contradictio in terminis, opinando pela inconstitucionalidade do Ttulo relativo ao

    Sistema Nacional de Educao que integrava o Susbstitutivo Jorge Hage. Em conseqncia, a referida

    denominao foi substituda por esta outra: Organizao da Educao Nacional.

    Em verdade, essa resultou uma soluo de tipo nominalista j que os que a postularam se

    satisfizeram com a mudana do nome sem se preocupar com a manuteno do mesmo contedo. O vis

    nominalista talvez tenha tido mesmo algum peso, pois se argumentava que na Constituio no

    aparecia a expresso sistema nacional de educao, mas apenas sistemas de ensino. Aos que

    defendiam o sistema nacional, em contrapartida, preocupava exatamente o seu contedo,

    secundarizando a terminologia o que permitiu, nas negociaes, que se abrisse mo da denominao.

    Efetivamente, no projeto aprovado na Cmara o Captulo que tratava Da Organizao da

    Educao Nacional preservava os mecanismos bsicos do sistema entre os quais desempenhava papel

    central o Conselho Nacional de Educao secundado pelo Forum Nacional de Educao. Com a

    prevalncia do Substitutivo Darcy Ribeiro manteve-se a denominao (Organizao da Educao

    Nacional), mas o contedo foi fortemente alterado.

    O Ttulo IV - Da Organizao da Educao Nacional, da lei finalmente aprovada, est calcado

    no Substitutivo Darcy Ribeiro. Em conseqncia, desaparece o Forum Nacional de Educao, assim

    como a regulamentao criteriosa dos artigos 209 e 213 da Constituio. Recorde-se que esses artigos

    versam respectivamente sobre a liberdade de ensino conferida iniciativa privada e a destinao de

    recursos pblicos s instituies de ensino de carter comunitrio, confessional e filantrpico.

    O Conselho Nacional de Educao que estava inteiramente ausente do primeiro projeto D.

    Ribeiro, no texto da lei apenas mencionado no 1 do inciso IX do artigo 9. E isso era inevitvel,

    uma vez que j se encontrava em vigor, homologada pelo Congresso, a medida provisria originria do

    Presidente Itamar Franco e reeditada por Fernando Henrique. Foi excludo, assim, o detalhamento

    referente composio e atribuies do CNE que figurava no projeto aprovado pela Cmara.

    24

  • A razo invocada para a excluso do Conselho Nacional de Educao do texto da LDB foi a

    denominada inconstitucionalidade por vcio de iniciativa. Remete-se, ento, ao art. 6l, 1, alnea e

    (so de iniciativa privativa do Presidente da Repblica as leis de criao, estruturao e atribuies

    dos Ministrios e rgos da administrao pblica) e ao art. 84, VI (compete privativamente ao

    Presidente da Repblica: dispor sobre a organizao e o funcionamento da administrao federal, na

    forma da lei) e XXV (prover e extinguir os cargos pblicos federais, na forma da lei). Mas essa

    interpretao no tranqila. Ela parte do entendimento prvio do Conselho Nacional de Educao

    como sendo meramente um rgo administrativo federal. Na concepo de LDB que prevaleceu na

    Cmara o CNE tinha outro carter: era uma instncia com funes deliberativas no mbito da educao

    anlogas quelas exercidas pelo Legislativo e Judicirio no mbito da sociedade como um todo.

    Fica claro, no entanto, que no era esse, propriamente, o problema. Digamos que, de fato, estava

    configurado o vcio de iniciativa. Isso no impediu que o governo Itamar Franco referendasse o CNE

    tal como proposto no projeto da LDB sanando, assim, o vcio de iniciativa.

    A questo, a, era o carter deliberativo do CNE que, segundo a interpretao do governo Collor

    como do governo FHC, secundarizaria o MEC na tarefa de formular a poltica nacional de educao. O

    que se pretendia, no entanto, era instituir uma instncia com representao permanente da sociedade

    civil para compartilhar com o governo a formulao, acompanhamento e avaliao da poltica

    educacional. Tanto assim que na verso aprovada pela Cmara metade dos membros do CNE era

    escolhida pelo Presidente da Repblica.

    E deve-se destacar que com esse encaminhamento se pretendia evitar a descontinuidade que tem

    marcado a poltica educacional, o que conduz ao fracasso as tentativas de mudana, pois tudo volta

    estaca zero a cada troca de equipe de governo, como se mostrou na anlise dos obstculos polticos.

    O Conselho Nacional de Educao, pensado como um rgo revestido das caractersticas de

    autonomia, representatividade e legitimidade, enquanto uma instncia permanente e renovada por

    critrios e periodicidade distintos daqueles que vigoram no mbito da poltica partidria, estaria, seno

    imune, pelo menos no to vulnervel aos interesses da poltica mida.

    Infelizmente mais uma vez a vitria foi da poltica mida o que nos deixa merc do vai-e-vem

    da poltica educacional. E o obstculo legal construo do sistema nacional de educao no foi

    removido.

    8. A retomada do tema do sistema nacional de educao no contexto brasileiro atual

    Ao longo de minha exposio procurei esboar o quadro em que se situa o problema do sistema

    nacional de educao em nosso pas. Diante desse quadro qual o significado da retomada dessa questo

    25

  • no atual contexto? Se esse fato no deixa de ser auspicioso, foroso tambm reconhecer que as

    dificuldades ainda persistem.

    Assim, permanece a questo da impreciso. No prefcio 10 edio do livro Educao

    brasileira: estrutura e sistema, redigido em janeiro de 2008, observo que, na esteira do Plano de

    Desenvolvimento da Educao (PDE), lanado em 24 de abril de 2007, o prprio MEC induz

    retomada da discusso sobre o sistema nacional de educao. Pela Portaria n. 11, baixada pelo ministro

    no mesmo dia 24 de abril de 2007, foi constituda a Comisso Organizadora da Conferncia Nacional

    de Educao Bsica a ser realizada em abril de 2008, para a qual deveriam confluir as Conferncias

    Estaduais de Educao previstas, na mesma portaria, para serem realizadas no segundo semestre de

    2007. E o Regimento Interno da Conferncia Nacional da Educao Bsica estabeleceu como primeiro

    objetivo promover a construo de um Sistema Nacional Articulado de Educao. Por sua vez, o

    documento denominado O Plano de Desenvolvimento da Educao: razes, princpios e programas,

    lanado pelo MEC, contempla, no ponto 3, o plano de desenvolvimento da educao como horizonte

    do debate sobre o sistema nacional de educao, justificado com esta considerao: a viso sistmica

    da educao a nica compatvel com o horizonte de um sistema nacional de educao... (p. 39).

    Como se v, o debate, j no seu lanamento, aparece eivado de problemas e imprecises. Com

    efeito, formula-se o objetivo de construo de um sistema nacional de educao no mbito de uma

    conferncia nacional de educao bsica. Por que no uma Conferncia Nacional de Educao que,

    portanto, abrangesse, tambm, a educao superior? Dada a restrio do mbito em que o problema

    formulado surgem, tambm, enunciados do tipo sistema nacional de educao bsica. Ora, o sistema

    se refere ao conjunto que articula, num todo coerente, as vrias partes que o integram. Como, ento,

    falar de um sistema de educao bsica se esta deveria ser, na verdade, uma das partes do sistema?

    Igualmente, resulta pleonstica a expresso sistema articulado de educao, que vem freqentando os

    documentos, uma vez que s se pode falar em sistema se, efetivamente, suas partes estiverem

    articuladas. Um passo importante foi dado em 2008 quando, aps a realizao da Conferncia Nacional

    de Educao Bsica, programou-se a realizao de uma Conferncia Nacional de Educao, em 2010,

    sendo precedida de um amplo processo de preparao consubstanciado nas Conferncias Municipais e

    nas Conferncias Estaduais a serem realizadas respectivamente no primeiro e no segundo semestre de

    2009. Eis a a oportunidade para, finalmente, encaminhar de forma adequada e abrangente a questo da

    construo do sistema nacional de educao no Brasil.

    No texto citado do MEC que apresenta as razes, princpios e programas do PDE estabelece-se

    uma aproximao da noo de sistema com o enfoque sistmico. No entanto, no podemos perder de

    vista que a organizao dos sistemas nacionais de ensino antecede historicamente em mais de um

    26

  • sculo ao advento do chamado enfoque sistmico. Portanto, trata-se de coisas distintas. O enfoque

    sistmico um conceito epistemolgico que est referido a uma determinada maneira de analisar os

    fenmenos, mais especificamente, ao mtodo estrutural-funcionalista. Portanto, quando aplicado

    educao, o referido enfoque diz respeito a um dos possveis modos de se analisar o fenmeno

    educativo. Em contrapartida, a noo de sistema educacional tem carter ontolgico, pois se refere ao

    modo como o prprio fenmeno educativo (ou deve ser) organizado. Alm do mais, o enfoque

    sistmico, inspirado na Ciberntica (WIENER, 1964), tende a considerar o sistema como algo

    mecnico, automtico, instaurando um processo em que os homens, em vez de sujeitos passam

    condio de meros objetos do sistema, cujos pontos de referncia bsicos so os imput e output.

    Um exemplo referido por Churchman particularmente ilustrativo ao referir-se a um sistema de

    sade que pretende eliminar o sarampo: o sucesso do sistema resultar na reduo da mortalidade

    infantil, e conseqentemente produzir um intolervel aumento da populao nas reas

    subdesenvolvidas (CHURCHMAN, 1971, p. 56). Para evitar esse efeito indesejvel o autor invoca a

    competncia do pensador de sistemas totais: talvez seja melhor deixar o sarampo fazer sua feia

    obra do que permitir a fome resultante da exploso populacional (idem, ibidem).

    Como aceitar um raciocnio como esse quando Josu de Castro j havia demonstrado, vinte

    anos antes da publicao do livro de Churchman, que o mundo j era capaz de produzir alimentos pelo

    menos para o dobro da populao (CASTRO, 1967, p. 13) que vivia naquela poca? Por que, ento, o

    hipottico pensador de sistemas totais permite o aumento da mortalidade infantil? Que sistemas

    totais so esses? Por que as referidas populaes se tornam objetos do processo que se inscreve no

    mbito do enfoque sistmico?

    Esses problemas se tornam particularmente agudos quando se trata do contexto educacional,

    uma vez que a idia segundo a qual a tarefa primordial da educao a promoo do homem aceita

    de modo geral.

    Para alm da questo conceitual, os obstculos tambm persistem. Como foi evidenciado ao

    longo da exposio, o desafio econmico ligado ao financiamento da educao continua presente.

    Considerando-se que a fonte principal e quase exclusiva do financiamento do PDE est constituda pelo

    FUNDEB, preciso reconhecer que o FUNDEB no representou aumento dos recursos financeiros. Ao

    contrrio. Conforme foi divulgado no dia 20 de junho de 2007, na ocasio da sano da lei que

    regulamentou o FUNDEB, o nmero de estudantes atendidos pelo fundo passa de 30 milhes para 47

    milhes, portanto, um aumento de 56,6%. Em contrapartida o montante do fundo passou de 35,2

    bilhes para 48 bilhes de reais, o que significa um acrscimo de apenas 36,3%. Esse fundo passa a

    abarcar toda a educao bsica sem que, em sua composio, entrem todos os recursos que estados e

    27

  • municpios devem destinar, por imperativo constitucional, educao. O que estados e municpios

    faro com os 5% que lhes restam dos recursos educacionais? Se, em razo da criao do FUNDEB,

    esses entes federativos se sentirem estimulados a investir em outros setores para alm de suas

    responsabilidades prioritrias (educao infantil e ensino fundamental para os municpios e ensino

    fundamental e ensino mdio para os estados) esses recursos, com certeza, faro falta para a manuteno

    da educao bsica. Tambm a complementao da Unio no implicou em acrscimo. Com efeito,

    antes a Unio deveria entrar com pelo menos 30% de seu oramento. Ora, o oramento do MEC para

    2007, aps o corte de 610 milhes imposto pela Fazenda, foi de 9 bilhes e 130 milhes de reais. Logo,

    30% corresponderiam a 2 bilhes e 739 milhes. No entanto, a importncia prevista como

    complementao da Unio para 2007 se limita a 2 bilhes. E, para 2008, esse desafio no s se

    manteve como tendeu a se agravar. Isso porque o governo anunciou a necessidade de cortes no

    oramento da educao para adequar as contas da Unio extino da CPMF. No bastasse isso, um

    dos itens da reforma tributria que se pretende aprovar a extino do salrio-educao, cujo montante

    superou, em 2007, a casa dos 7 bilhes de reais.

    Mantm-se igualmente o obstculo da descontinuidade, o que se patenteia no alto grau de

    fragmentao das aes que compem o PDE e nas disputas polticas que marcam os partidos nas

    instncias federal, estadual e municipal. Em conseqncia, persistem tambm os obstculos

    ideolgicos, pois a idia de sistema nacional de educao permanece sujeita a considervel

    controvrsia, o que interfere no ordenamento legal que continua sendo um grande desafio para se

    chegar a uma normatizao comum, vlida para todo o pas, condio indispensvel implantao do

    sistema nacional de educao.

    9. Concluso: algumas indicaes para a construo do sistema nacional de educao no

    Brasil

    Foi acertado o encaminhamento da organizao da Conferncia Nacional de Educao ao

    articular, no tema central, a questo da construo do Sistema Nacional de Educao com o Plano

    Nacional de Educao. H, efetivamente, uma ntima relao entre esses dois conceitos. Como se

    mostrou, o sistema resulta da atividade sistematizada; e a ao sistematizada aquela que busca

    intencionalmente realizar determinadas finalidades. , pois, uma ao planejada. Sistema de ensino

    significa, assim, uma ordenao articulada dos vrios elementos necessrios consecuo dos objetivos

    educacionais preconizados para a populao qual se destina. Supe, portanto, o planejamento. Ora, se

    sistema a unidade de vrios elementos intencionalmente reunidos, de modo a formar um conjunto

    coerente e operante(SAVIANI, 2008a, p.80), as exigncias de intencionalidade e coerncia implicam

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  • que o sistema se organize e opere segundo um plano. Conseqentemente, h uma estreita relao entre

    sistema de educao e plano de educao.

    Considerando que o prazo de vigncia do atual PNE se esgota em 9 de janeiro de 2011, ser

    necessrio, o quanto antes, elaborar uma nova proposta e encaminhar ao Congresso Nacional o projeto

    do novo Plano Nacional de Educao. preciso proceder a uma reviso detida e cuidadosa do atual

    PNE refazendo o diagnstico das necessidades educacionais a serem atendidas pelo Sistema

    Educacional. E esse trabalho dever, evidentemente, ser realizado j em perfeita sintonia com os

    encaminhamentos relativos construo do Sistema Nacional de Educao.

    No que se refere construo do Sistema Nacional de Educao propriamente dito, o ponto de

    referncia o regime de colaborao entre a Unio, os Estados/Distrito Federal e os Municpios,

    estabelecido pela Constituio Federal. A implementao do regime de colaborao implicar uma

    repartio das responsabilidades entre os entes federativos, todos voltados para o mesmo objetivo de

    prover uma educao com o mesmo padro de qualidade a toda a populao brasileira. Assim, deixam

    de ter sentido os argumentos contra o sistema nacional baseados no carter federativo que pressupe a

    autonomia de estados e municpios. O regime de colaborao um preceito constitucional que,

    obviamente no fere a autonomia dos entes federativos. Mesmo porque, como j afirmei, sistema no

    a unidade da identidade, mas unidade da variedade. Logo, a melhor maneira de preservar a diversidade

    e as peculiaridades locais no isol-las e consider-las em si mesmas, secundarizando suas inter-

    relaes. Ao contrrio, trata-se de articul-las num todo coerente, como elementos que so da mesma

    nao, a brasileira, no interior da qual se expressam toda a sua fora e significado.

    Na repartio das responsabilidades os entes federativos concorrero na medida de suas

    peculiaridades e de suas competncias especficas consolidadas pela tradio e confirmadas pelo

    arcabouo jurdico. Assim, as normas bsicas que regularo o funcionamento do sistema sero de

    responsabilidade da Unio, consubstanciadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional e no

    Plano Nacional de Educao. Os Estados/Distrito Federal podero expedir legislao complementar,

    adequando as normas gerais a eventuais particularidades locais.

    O financiamento do sistema ser compartilhado pelas trs instncias, conforme o regime dos

    fundos de desenvolvimento educacional. Assim, alm do FUNDEB, que dever ser aperfeioado, cabe

    criar tambm um Fundo de Manuteno da Educao Superior (FUNDES). Se no caso do FUNDEB a

    maioria dos recursos provm de estados e municpios cabendo Unio um papel complementar, em

    relao ao FUNDES a responsabilidade da Unio ser dominante, entrando os estados apenas em

    carter complementar, limitando-se aos casos de experincia j consolidada na manuteno de

    universidades.

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  • A responsabilidade principal dos municpios incidir sobre a construo e conservao dos

    prdios escolares, assim como sobre a inspeo de suas condies de funcionamento. Efetivamente so

    esses os aspectos em que os municpios tm experincia consolidada o que, obviamente, no impede

    que eles assumam, em carter complementar e nos limites de suas possibilidades, responsabilidades

    que cabem prioritariamente aos estados e Unio. Esto nesse caso, por exemplo, a formao,

    definio das condies de exerccio e a remunerao do magistrio de todos os nveis de ensino.

    Referncias bibliogrficas:

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