sistemas processuais penais, luiz gabriel batista neves
TRANSCRIPT
-
SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS.
Luiz Gabriel Batista Neves1
1. Introduo. 2. Sistema Inquisitivo. 3. Sistema Acusatrio. 4. Sistema Misto. 5.
Sistema Processual Brasileiro. 6. Concluso.
RESUMO: O presente trabalho cientfico tem por objetivo principal descortinar os
principais sistemas processuais penais existentes, os momentos histricos nos quais
estavam inseridos, suas peculiaridades e o procedimento de utilizado por cada um. O
processo penal somente comeou a ser estudado como dogmtica jurdica nos idos de
1968, antes no havia uma dissociao entre o direito penal e processual, tratava-se
apenas de uma nica vertente de controle social. Aps a diviso, o processo penal
evoluiu pouco em relao s cincias penais, no entanto houve a criao de alguns
sistemas processuais penais, os quais possuram diferentes formas, variando de acordo
com fatores determinantes da poca em que foram criados, como a Constituio Federal
de cada nao, a sua lei processual penal, at a sua forma de governo. Busca-se aqui
estudar estes sistemas processuais penais individualmente, perseguindo identificar qual
o princpio unificador de cada um deles para depois tentar-se concluir qual dos sistemas
mais harmnico com a Constituio atual, de 1988, e a viso moderna de um Estado
Democrtico de Direito.
1. INTRODUO.
En realidad, todo el sistema procesal em su conjunto gira
alrededor de la Idea, y la organizacin del juicio. Por outra
parte, solo ser posible comprender cabalmente um sistema
penal si se lo mira desde la perspectiva del juicio penal2.
Sistema pode ser conceituado como um conjunto de temas colocados
em relao por um princpio unificador, que forma um todo pretensamente orgnico,
1 Advogado Criminalista. Mestrando em Direito Pblico na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ps-
Graduando em Cincias Criminais no Juspodivm. Professor de Processo Penal da Escola Superior da
Advocacia da Bahia (ESA). Graduado em Direito pela Universidade Salvador. Presidente do Conselho
Consultivo dos Jovens Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil - Seo do Estado da Bahia.
Associado ao Instituto Brasileiro de Cincias Criminais (IBCcrim). Associado ao Instituto Baiano de
Direito Processual Penal (IBADPP).
2 BINDER, Alberto. Iniciacin al Proceso Penal Acusatorio. Ciudad de Buenos Aires: Campomanes
Libros, 2000, p. 60.
-
destinado a uma determinada finalidade3.
O sistema no est dissociado das premissas estabelecidas Roxin,
inspirado na literatura de Liszt, ao mencionar, que sentia uma necessidade da
conceituao de sistema, sob o argumento de que deve ser e permanecer uma cincia
definitivamente sistemtica: pois s a organizao dos conhecimentos num sistema
garante um domnio claro e sempre manusevel de todos os detalhes, domnio sem o
qual a aplicao jurdica nunca passar de diletantismo [...]4.
Embora se reconhea que os sistemas processuais penais s comeam
a ser estruturados dogmaticamente no processo penal a partir do sculo XX, mais
precisamente em 1968 atravs de Blow5. Antes, adverte Thums, inspirado em obra j
citada de Maier6, havia uma unidade poltico-jurdica7 do processo penal com o
direito penal, entendo que ambos fazem parte do sistema de controle social.
Infelizmente, a partir da dissociao de ambos, o processo penal no consegue
acompanhar a evoluo da cincia jurdica do direito penal.
Esse sistema, vai se orientar pela triangulao entre a Constituio, o
processo penal e a forma de governo de determinada nao. Agora, no entanto, um algo
a mais passa a ser percebido, que a funo do processo penal, tanto a funo que ele
exerce como a funo que as normas constitucionais lhe destinam. Como afirma Beling,
o direito penal no toca em um s fio de cabelo do acusado, sendo o processo penal o
responsvel por essa tarefa8.
Enquanto o direito penal tem que esperar toda uma investigao
preliminar, denncia, instruo e debates, alegaes finais, sentena condenatria,
recurso e demais instrumentos, para somente aps o trnsito em julgado da condenao
conseguir colocar o indivduo em uma jaula9; o processo penal, em cinco minutos, s
vezes em dois pargrafos, atravs de um desses instrumentos de priso cautelar resolve,
entre aspas, o problema10
.
3 COUTINHO, Jacinto. Introduo aos Princpios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro.
Separata da Revista Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais. Ano 2, n. 4, jan/fev/mar. Porto
Alegre: ITEC, 2000, p. 3. 4 ROXIN, Claus. Poltica Criminal e Sistema Jurdico-Penal. Trad. Lus Greco. Rio de Janeiro: Renovar,
2000, p. 3. 5 BLOW, Oskar. Die Lehre von den Prozesseinreden und die Prozess-Voraussetzungen. 1868.
Neuauflage, 2007. 6 MAIER, Julio. Op. cit., 1996, p.145.
7 THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 174.
8 BELING, Ernst. Derecho Procesal Penal. Trad. Miguel Fenech. Barcelona: Labor, 1943, p. 2.
9 Expresso utilizada por: BINDER, Alberto. Op. cit.,2003, p. xxi.
10 MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. Tomo II. 2. Ed. Bueno Aires: Del Puerto, 1996 p. 260.
-
Os sistemas processuais identificam-se com um princpio bsico,
unificador, que revela os preceitos constitucionais acerca de qual o modelo deve ser
seguido, sem perder de vista que no existem mais sistemas puros, afinal, conforme
adverte Lopes Junior:
A questo , a partir do reconhecimento de que no existem
mais sistemas puros, identificar o princpio informador de cada
sistema, para ento classific-lo como inquisitrio ou
acusatrio, pois essa classificao feita a partir do seu ncleo
de extrema relevncia11
.
Entretanto, como o rito processual deve ser representar uma garantia
ao acusado12, prezando pelas questes didticas de pesquisa, os sistemas processuais
devem ser estudados separadamente, como forma de identificar qual o princpio
unificador de cada um deles e, a partir disso, verificar qual deles possui maior
compatibilidade com a Constituio13
.
2. SISTEMA INQUISITIVO.
O sistema inquisitivo um modelo histrico14
e inicia,
paulatinamente, a partir do sculo XII, momento que at ento vigia o sistema
acusatrio Greco-romano, sob a justificativa de que esse modelo da democracia antiga
era totalmente ineficiente. A proteo excessiva do acusado, com punio a denncias
caluniosas, a responsabilidade de a acusao ser manejada por uma pessoa privada e a
dificuldade, por consequncia, de coletar as provas necessrias acusao, levaram, aos
poucos, a substituio da pessoa que iria ter o encargo da persecuo criminal. No
sistema inquisitivo o poder de acusao dos particulares e deslocam-se como uma
funo do Estado15
.
Este sistema aderido, primeiramente, pela Igreja Catlica que acaba
por influenciar as legislaes de diversos pases europeus. Conforme registra Prado:
A jurisdio eclesistica a princpio destinava-se ao julgamento
dos membros da igreja, porm, conforme acentuou-se o poder
11
LOPES JUNIOR., Aury. Op. cit., 2008, p. 56. 12
THUMS, Gilberto. Op. cit., 2006, p. 180. 13
MARQUES, Jos Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. V. I. 1. ed., So Paulo:
Bookseller, 1998. 14
Embora este sistema continue sendo aplicado no Direito Cannico, conforme a lio de: BOFF,
Leonardo. Prefcio. Inquisio: um esprito que continua a existir. In: Directorium Inquisiorum Manual dos Inquisidores. Nicolau Eymerich. Braslia: Rosa dos Tempos, 1993, p. 13., p. 24 e ss. 15
MARQUES, Frederico. Op. cit., 1980.
-
temporal desta ltima, resvalou para a sua competncia uma
enorme gama de infraes penais contrrias, mesmo que
distantemente, aos interesses da Igreja16
.
Entretanto, o fortalecimento dos reis absolutistas, no incio do sculo
XV, faz reduzir a jurisdio da Igreja, sob o palio que deveria prevalecer o frum delicti
commissi (o foro o lugar onde o ilcito aconteceu). Registre-se que esse poder julgador
pertencia ao monarca, que tinha a prerrogativa de delegar a algum subordinado de sua
confiana 17
.
A partir do sculo XV O sistema inquisitivo est espraiado por toda
Europa continental.
Na Alemanha, a inquisio ingressa atravs de dois instrumentos
jurdicos, a saber: o Constitutio Criminalis Bambergensis de 1507 e o Constitutio
Criminalis Carolina de 1532, com a ressalva que nas terras germnicas alguns institutos
de natureza acusatria persistem, como a vedao a prtica da tortura. Em verdade
ocorreu a juno do Imprio Romano-Germnico, mantendo-se hgido alguns poucos
institutos acusatrios, devido as suas realidades histricas18
.
Na Frana todo incio do processo inquisitrio tem sustentao na
Ordenao de 1254, baseada no Direito Romano-Cannico. Outras Ordenaes
auxiliam na sistematizao da inquisio Francesa, a exemplo da Ordenao Prvia de
1535, bem como a Ordenao Criminal de 1670, destacando-se como caractersticas do
sistema Francs a disposio da apurao das infraes penais de ofcio e a imposio
da jurisdio real em todo territrio19.
A Espanha foi o pas em que a inquisio ganhou maior destaque, por
ter sido onde ocorreram as maiores crueldades20
. Foi no seu espao da Pennsula
Ibrica que surgiu, alm da inquisio aplicada na justia comum, o Tribunal da Santa
Inquisio21, tido indiscutivelmente como o mais cruel e violento da poca22. Os
16
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatrio. 2 Edio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 108. 17
GONZAGA, Joo Bernadino. A inquisio em seu mundo. 8 ed. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 60. 18
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 4 ed. Granada: Comares,
1993, p. 84. 19
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatrio. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 102. 20
CAVALLERO, Ricardo Juan. Justicia Inquisitorial. El sistema de justicia criminal de la Inquisicin
espaola. 1 ed. Bueno Aires: Ariel, 2003, p. 46, La inquisicin espaola constituye un tribunal de excepcin creado por la Monarqua, con legitimacin eclesistica, para entender en los casos de hereja,
un delito de lesa majestad, el ms grave de los que se podan cometer, ya que atentaba contra Dios,
fuente misma del poder, por lo que afectava tambin al Estado. 21
CORA, Enrique lvarez. El Derecho Penal Ilustrado Bajo La Censura del Santo Oficio. In:
Inquisicin y Censura El acoso a la Inteligencia en Espaa. Enrique Gacto Fernndez (org.). Madri:
Dykinson, 2006, p. 187-200, Los libros qe el Santo Oficio persigue, expurga y prohbe, contienen una
-
instrumentos jurdicos que tornam isso legtimo foram: (i) a Lei das Sete Partidas e (ii) o
Ordenamento de Alcal em 1348.
Portugal, por sua vez, teve bastante influncia da ocupao que sofreu
dos visigodos, suevos, vndalos e silingos, nascido da invaso dos rabes em 714 e
sendo dividido em 1139 no Reino de Lio. Por isso, o processo penal portugus da
poca medieval foi inspirado nos direitos romano, germnico e moura, tendo sido
designados vereadores (espcie de juzes, funcionrios da realeza) para exercer a
competncia criminal ratione loci. Tudo isso sendo possvel por meio das Ordenaes
Manoelinas e Filipinas, que instauraram uma inquisio devassadora, cuja aplicao no
se restringe somente ao territrio portugus, bem como acaba por se estender todas suas
colnias, sendo o Brasil uma delas23
.
A respeito da Santa Inquisio no Brasil, mais precisamente na Bahia,
encontram-se as palavras de Mott, ao mencionar que:
Apenas treze anos separam a fundao da Santa Inquisio em
Portugal (1536), da fundao da cidade de Salvador (1549).
Ambas tiveram sua infncia no sculo XVI, adolescncia
conturbada na metade inicial do Sculo XVII< idade adulta e
apogeu nas dcadas finais dos seiscentos e incios do Sculo
XVIII, decadncia a partir de 1750. A inquisio teve suas
portas fechadas em 1821, enquanto a Bahia confirmou,
definitivamente, a independncia do Brasil em 1823. Por
diversas vezes, a Inquisio imiscuiu-se arbitrariamente na vida
dos baianos, mantendo, a ferro e fogo, atravs da eficiente rede
de aproximadamente um milheiro de espies, os temveis
Comissrios e Familiares do Santo Ofcio, a hegemonia da Santa
Madre Igreja: um s rebanho e um s Pastor!24.
Foucault, ao analisar esse sistema processual, revela que:
Todo processo criminal, at a sentena permanecia secreto: ou
seja opaco no s para o pblico mas para o prprio acusado. O
processo se desenrola sem ele, ou pelo menos sem que ele
pudesse conhecer a acusao, as imputaes, os depoimentos, as
provas25
.
serie de ataques a los fundamentos del derecho penal y procesal de los tiempos altomodernos, que van
desde uma expresin de la repygnancia moral hasta un embate a las soluciones tcnicas de un sistema
jurdico caduco y en crisis. 22
Ibidem, Loc.cit. 23
Ibidem, Loc.cit, p. 102-104. 24
MOTT, Luiz. Bahia, Inquisio e Sociedade. Salvador: Edufba, 2010, p. 11.
25 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: histria da violncia nas prises. Trad. Raquel Ramalhete. 34.
Ed. Petrpolis: Vozes, 2007. p. 32.
-
Este desenrolar demonstra o ambiente hostil da Frana medieval,
baseada nas Ordenaes de 167026
, onde o acusado era mero objeto de verificao, que
se queria extrair dele a sobredita verdade real, sendo impossvel ao acusado ter acesso
s peas do processo, impossvel conhecer a identidade dos denunciadores, impossvel
fazer valer, at os ltimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossvel ter
um advogado27.
O sistema inquisitivo modifica todo o processo penal, desenvolvido na
democracia antiga, porque o que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado,
com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre
o juiz-inquisidor e o acusado28. Isto , o inquisidor, diante da informao do
cometimento de algum delito passa a agir de ofcio, sem a necessidade de provocao,
pode utilizar dos mecanismos mais sdicos que entender ser cabvel, tudo como forma
de apurao daquela suposta violao a legislao penal. Era, tambm, uma das formas
que o soberano possua de justificar-se perante a sociedade, de que estava punindo os
hereges, descumpridores das ordens de Deus29
.
A peculiaridade principal do processo penal inquisitivo, denuncia
Coutinho, a gesto da prova30, ganhando especial destaque a confisso, por ser um
ato sujeito criminoso e que falta, a pea complementar de uma informao escrita e
secreta31. Entretanto, existe uma ambiguidade em relao confisso, uma espcie de
clculo geral das provas, pois de um lado h uma preocupao com a confisso, devido
ao fato de alguns acusados confessarem crimes que sequer cometeram, exigindo, assim,
indcios complementares; de outro modo, mesmo diante dessa preocupao, havendo
divergncia da confisso com qualquer outra prova, prevalece primeira32
.
Sobre essa ambiguidade, pertinente, mais uma vez, a lio de
Foucault:
Essa dupla ambigidade da confisso (elemento de prova e
contrapartida da informao; efeito de coao e transao
26
MARQUES, Frederico. Op. cit., 1980, p. 83, revela que: o procedimento inquisitivo acabou encontrando na Ordenao Criminal de Lus XIV sua codificao completa e definitiva. 27
FOUCAULT, Michel. Op. cit., 2007, p. 32. 28
LOPES JUNIOR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I. 3.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 p. 61. 29
GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurdicos y Polticos del Proceso Penal. Barcelona: Bosch, 1935,
p. 67 e ss. 30
COUTINHO, Jacinto. Op. cit., 2001, p. 24. 31
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: histria da violncia nas prises. Trad. Raquel Ramalhete. 34.
Ed. Petrpolis: Vozes, 2007, p. 34-35. 32
Ibidem, Loc.cit.
-
semivoluntria) explica os dois grandes meios que o direito
criminal clssico utiliza para obt-la: o juramento que se pede ao
acusado antes do interrogatrio (ameaa por conseguinte de ser
perjuro diante da justia dos homens e diante de Deus; e ao
mesmo tempo, ritual de compromisso); tortura (violncia fsica
para arrancar uma verdade que, de qualquer maneira, para valer
como prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos juzes,
a ttulo de confisso espontnea)33
Outra caracterstica do sistema inquisitivo a existncia de duas fases,
denominadas, respectivamente, de: inquisio geral e inquisio especial. A primeira
fase tinha a funo de apurar a materialidade delitiva e a autoria do crime, como uma
fase antecedente para a fase especial, que era destinada a condenao e aplicao do
castigo34
.
Nesse sistema processual a priso regra35
, que significa dizer que o
acusado fica recluso de maneira provisria durante todo o curso processual, como forma
de evitar burlas para se chegar verdade real ou prevenir que o acusado, em
comunicao com o mundo exterior, possa desvirtuar os caminhos regulares do
processo. Alm disso, a tortura outro instrumento utilizado como forma de obter a
confisso do acusado, sendo-lhe submetido a uma atenta verificao, com
interrogatrios incansveis36
.
Todas essas atrocidades37
levam Coutinho concluir que trata-se, sem
dvida, do maior engenho jurdico que o mundo conheceu; e conhece. Sem embargo de
sua fonte, a Igreja, diablica na sua estrutura (o que demonstra estar ela, por vezes e
ironicamente, povoada, por agentes do inferno!)38. De modo mais radical, Aroca chega
a estabelecer que o denominado processo inquisitivo no foi e, obviamente, no pode
33
Ibidem, Loc. cit. 34
MANZINI, Vicenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo I. Trad. Santiago Sents Melendo e
Marino Ayerra Redn. Buenos Aires: Ediciones Jurdicas Europa-Amrica, 1951, p. 52. 35
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 99. 36
EYMERICO, Nicolau. Trad. A. C. Godoy. Manual da Inquisio. Curitiba: Juru, 2001, p. 15-16,
Com a heresia deve-se proceder diretamente, sem sutileza de advogado e nem solenidades no processo. Simpliciter et de plano, sine advocatorum estreputu et figura (N.T.: Simples e diretamente, sem o barulho
e o aparato dos advogados). Quero dizer que os trmites do processo tero de ser os mais curtos possveis,
no parando nem nos dias que folgam os de mais tribunais, negando toda a apelao que s sirva para
anualar a sentena, no admitindo uma ultidao intil de testemunhas. Posto que no sero omitidas as
precaues necessrias para averiguar a verdade, nem negar-se ao acusado a legtima defesa. 37
Oportuno a ressalta feita por: PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 97, ao dizer que: embora hoje a Inquisio seja vista com todas as reservas, cumpre demarcar que na sua poca representou a luz da
racionalidade, confrontada com a irracionalidade das ordlias ou juzos de Deus, que substitui, enquanto
sistema de perseguio da verdade, pela busca da reconstituio histrica, procurando, tanto quanto
possvel, reduzir os privilgios que frutificavam na justia feudal, fundada quase exclusivamente na fora
e no poder de opresso dos senhores feudais sobre os demais que a rigor se sujeitavam a medidas
punitivas discricionrias, impostas pelos mencionados senhores feudais. 38
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op.cit., 2001, p. 18.
-
ser um verdadeiro processo. Se este se identifica como actum trium personarum, em
que ante um terceiro imparcial comparecem duas partes parciais [...] 39.
Contudo, Rangel discorda desse posicionamento extremista do autor
espanhol, argumentando que processo existe, pois este deve ser visto como algo
utilizado pelo Estado como instrumento de soluo para o caso penal, que adota o
sistema de inquisio, onde garantias constitucionais no so asseguradas ao acusado
por confuso entre autor e julgador40.
O fim do sistema inquisitorial se inicia na Frana, aps a Assembleia
de 1791, onde so revogadas as Ordenaes Criminais de Lus XIV. Por bvio que o
declnio desse sistema no repentino, permanecendo detritos do processo inquisitrio
durante um bom perodo. Aos poucos vo desaparecendo os institutos da Inquisio,
contribuindo para isso a instituio do Ministrio Pblico francs em 1801, a edio do
Cdigo Criminal em 1808, que corporificam o sistema acusatrio41
.
Em verdade, somente no final do sculo XIX que o sistema
processual:
[...] rene todos os traos formais tpicos de um sistema
acusatrio: publicidade, presena do acusador, defensor do ru,
presena do ru a todos os atos de instruo, ampla defesa,
contraditrio, correlao entre denncia e sentena, adoo de
um sistema de provas idneas [...]42
.
O fato que o iluminismo, instalou um novo pensamento, rompendo
com os paradigmas da heresia, da Igreja, da monarquia absolutista, instalando, portanto,
a razo como fonte de coordenao dos procedimentos da vida moderna, refletindo,
inclusive, no processo penal.
Resumidamente, nota-se que esse sistema processual penal possui as
seguintes caractersticas: a concentrao da persecuo penal nas mos do monarca
absolutista, exercido subordinadamente, pelo juiz; ausncia de separao de funes
(investigar, acusar e julgar) ; a impossibilidade do contraditrio e ampla defesa, ou seja,
o acusado serve apenas como objeto a ser investigado; todo o curso processual secreto
e escrito nos livros de atas dos inquisidores; h uma enorme discricionariedade do
magistrado, atravs de um sistema de provas que valoriza a verdade real, pelo fato de
entenderem que a maior prova a ser coletada o interrogatrio do acusado, sendo
39
AROCA, Juan Montero. Princpios del Proceso Penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997, p. 28. 40
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 49. 41
MAIER, Julio. Op. cit. 1996, p. 348-357. 42
THUMS, Gilberto. Op. cit., 2006, p. 208.
-
obstacularizada a possibilidade de uma testemunha dispor em sentido contrrio, o que
consolida o princpio testis unus testis nullus .
3. SISTEMA ACUSATRIO.
O sistema acusatrio possui dois estgios na histria da humanidade.
Em um primeiro momento, quando vigorava a democracia antiga, o sistema acusatrio
desenvolve suas estruturas na Roma e Grcia antiga, como forma de conduo do
procedimento de condenao (ou absolvio). Por outro lado, aps a idade medieval,
nos idos do final do sculo XVIII, o sistema acusatrio (re)assume a regulao
procedimental do processo penal, com outras feies, novas adaptaes e conceitos
inovadores43
.
Ambos e Lima defendem a existncia de um modelo acusatrio
puro44 durante a democracia antiga. Isto porque, diferentemente do que conhecemos
hoje, no sistema acusatrio da antiguidade a acusao era formulada por uma pessoa do
povo, a denncia annima no era permitida, punia-se criminalmente a denunciao
caluniosa, no se admitia provas ilcitas, havia o contraditrio e a ampla defesa.
Seu procedimento iniciava-se com a acusao popular perante um
oficial ou autoridade com competncia para tanto, depois disso o arconte competente
fazia o controle da presena dos pressupostos de admissibilidade da acusao entre
outros requisitos aferia se ocorria ou no algum impedimento de procedibilidade (em
particular se havia anistia para a hiptese)45. Mais adiante, aps a admisso da queixa,
fixava uma data para a audincia e dava publicidade queixa46, isso porque interpor
uma queixa acarretava para o acusado privado assumir custos onerosos47, tanto que
deveria assegurar uma eventual indenizao ao acusado, para garantia, acaso,
posteriormente, restasse demonstrado que a queixa retratava uma acusao falsa48.
Infere-se, portanto, que se trata de uma verdadeira acusao privada,
ao ponto de haver a necessidade de o acusador obter, ao menos, um quinto dos votos do
tribunal, sob pena de pagar uma multa de 1000 dracmas (moeda da Grcia antiga
43
LOPES JUNIOR., Aury. Op. cit., 2008 44
AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O Processo Acusatrio e a Vedao Probatria perante as
realidades alem e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 9. 45
AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. Op. cit. 2009, p. 10. 46
Ibidem, Loc.cit, p. 10-11. 47
Ibidem, Loc.cit, p. 11. 48
Ibidem, Loc.cit, p. 11.
-
naquela poca). Aps a acusao ter se tornada pblica, qualquer outro cidado pode
sustent-la, como tambm qualquer pessoa poderia sair em defesa do acusado. O juiz
deveria se vincular as pretenses das partes, no poderia ir alm do que estava sendo
requerido por ambos, at mesmo fixao da pena no poder fugir dessa premissa
(princpio dispositivo).
-
Lopes Junior, inspirado nas ideias de Alonso, destaca que o sistema
acusatrio puro tem as seguintes caractersticas:
a) a atuao dos juzes era passiva, no sentido de que ele se
mantinha afastado da iniciativa e gesto da prova, atividade a
cargo das partes; b) as atividades de acusar e julgar esto
encarregadas a pessoas distintas; c) adoo do princpio ne
procedat iudex ex officio, no se admitindo a denncia annima
nem processo sem acusador legtimo e idneo; d) estava
apenado o delito de denunciao caluniosa, como forma de
punir acusaes falsas e no se podia proceder contra ru
ausente (at porque as penas so corporais); e) acusao era por
escrito e indicava as provas; f) havia contraditrio e direito de
defesa; g) o procedimento era oral; h) os julgamentos eram
pblicos, com os magistrados votando ao final sem deliberar49
.
Entretanto, conforme j abordado, esse sistema entra em declnio a
partir do sculo XII e o sistema inquisitrio passa a dominar o processo penal europeu.
Somente no final do sculo XVIII que (re)aparece o sistema acusatrio.
Antes, contudo, de abordar essa nova roupagem do sistema acusatrio,
cabe distinguir sistema acusatrio de princpio acusatrio. Prado, baseado na lio de
Leone, menciona que o sistema acusatrio compreendem-se normas e princpios
fundamentais, ordenadamente dispostas e orientados a partir do princpio, tal seja,
aquele qual herda o nome: acusatrio50. O princpio acusatrio, a seu turno, se
entidende el desdoblamiento de las funciones de perseguir y de juzgar en dos rganos
estatales diferentes51, incluindo, entre elas, a funo do rgo defensor, que tambm
deve ser exercido separadamente. Ou ainda, como consagrou Roxin, este slo puede
suceder si el Estado assume tanto a tarea del acusador com la del juez, separando esa
funcin en dos autoridades estatales distintas una autoridad de acusacin y
tribunal52.
O princpio do acusatrio caracteriza-se pela distino das funes dos
trs sujeitos processuais: acusao, defesa e julgador (ponto de vista esttico), sendo
necessrio para caracteriz-lo, satisfatoriamente, realizar observao do modo como se
relacionam juridicamente autor, ru, e seu defensor, e juiz, no exerccio das
mencionadas funes53 (ponto de vista dinmico).
49
LOPES JUNIOR., Aury. Op. cit., 2008, p. 57. 50
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 125. 51
BOVINO. Alberto. Principio polticos Del procedimiento penal. 1. ed. Buenos Aires: Del Puerto, 2005,
p. 37. 52
ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Bueno Aires: Ed. Del Puerto, 2001, p. 86. 53
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 126.
-
A existncia de autonomia entre o rgo acusador, o rgo de defesa e
o rgo julgador a pedra fundamental tanto do sistema como do princpio acusatrio.
Entretanto, devido s experincias histricas, o sistema acusatrio surgido aps o sculo
XVIII afasta-se das caractersticas do modelo Greco-romano, pois no h como
conceber o processo penal como sendo algo privado, inerente aos populares, como
ocorreu no passado, devido, principalmente, ineficcia probatria, a vingana privada
(que comeou a se difundir) e o interesse pessoal dos particulares na ao penal.
A funo de acusar deixa de ser privada, como ocorreu no sistema
acusatrio puro, e coloca-se com uma das funes do Estado, mesmo porque as
construes do perodo medieval, onde o Estado concentra todos os poderes em suas
mos, obsta um rompimento brusco capaz de fazer retornar ao modelo acusatrio
antigo.
Exatamente por isso, Thums, ao refletir o pensamento de Ferrajoli,
defende que a separao absoluta entre acusador e julgador o principal elemento
constitutivo do modelo terico acusatrio, devendo ser considerado o pressuposto
estrutural e lgico do sistema 54. O juiz deve ser uma pessoa neutra, imparcial, sem
nenhum poder investigatrio, deixando para a acusao e a defesa todo o esforo em
provar as teses de culpa ou inocncia.
Nesse compasso, percebe-se que o magistrado no pode estar
envolvido com um dos argumentos ali defendidos, no h como haver um resultado
processual minimamente justo se o rgo julgador acumula entre suas funes a de
acusar, j que uma acusao, como opo para solucionar o conflito penal, requer que o
rgo de julgamento no esteja psicologicamente envolvido com uma das verses em
jogo55. O sistema acusatrio:
[...] depende da imparcialidade do julgador [...], por admitir que
a sua tarefa mais importante, decidir a causa, fruto de uma
consciente e meditada opo entre duas alternativas, em relao
s quais manteve-se, durante todo o tempo, eqidistante56
.
O juiz necessita ser um espectador, de maneira que possa realizar uma
anlise objetiva sobre as provas processuais, no pode ter conceitos prvios da acusao
formulada, nem realizar um pr-julgamento sobre a lide penal, pelo menos no pode
fazer isso antes de possibilitar o contraditrio, a ampla defesa, o devido processo legal,
54
THUMS, Gilberto. Op. cit., 2006, p. 251. 55
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p.128. 56
Ibidem, Loc.cit.
-
entre outras garantias.
Para Ferrajoli, a prevalncia de um sistema acusatrio necessita da
imparcialidade absoluta do magistrado, da capacitao tcnico-normativa, da
independncia, vinculao lei, juiz natural, entre outros57
.
Todo conflito penal tem que chegar ao magistrado em paridade de
condies entre acusao e defesa, o magistrado deve ser regido pela inrcia, um
julgador que est aguardando provao sobre determinado caso, no o contrrio.
difcil imaginar imparcialidade em um magistrado que tem iniciativa, que requisita
investigao, que decide sobre priso cautelar, que serve como um longa manus do
rgo acusador, obstinado a descobrir a ilusria verdade real, porque a defesa, quando
convocada a prestar o seu depoimento, ter o rduo trabalho de provar ao juiz que ele
inicialmente no tinha razo. Em verdade, para o modelo acusatrio, a ausncia da
imparcialidade judicial promove uma brusca inverso do nus da prova, em que ao
invs da acusao ter que atestar, processualmente, a culpa do ru o inverso que ir se
estabelecer: o acusado que ter de provar sua inocncia58
.
Para evitar, ento, essa mitigao ao modelo acusatrio, surge um
rgo do Estado destinado somente acusao, possuindo autonomia e independncia
dos demais rgos estatais, denominado atualmente como Ministrio Pblico.
Grau revela que o Ministrio Pblico tem como origem remota os
procuradores do rei na Frana do sculo XIV, pessoas de confiana dos monarcas,
incumbidos de cuidar das acusaes contra os autores de delitos. Contudo, somente no
sculo XVII verifica a apario de um rgo com uma nomenclatura similar ao atual,
embora o seu desenvolvimento estrutural tenha ocorrido com o surgimento do
iluminismo59
.
Prado aponta a distino entre ao penal e acusao como algo
essencial para o desenvolvimento do rgo acusatrio. Para ele, acusao pode ser
definida como atribuio de uma infrao penal, em vista da possibilidade de
condenao e uma pessoa tida provavelmente como culpvel60, enquanto que ao
penal consiste em ato da parte autora concretado por sua deduo formal em juzo61.
57
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razo: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer. 6 ed. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002., p. 576. 58
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 131. 59
GRAU, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio. Barcelona: Bosch, 1994, p.
23. 60
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 132. 61
Ibidem, Loc.cit.
-
No Brasil, o MP, aps a Constituio de 1988, rgo essencial
administrao da Justia, promovendo privativamente a ao penal pblica62
. Essa
premissa constitucional revigora a existncia do sistema acusatrio no pas, pois
possibilita um distanciamento entre o rgo julgador e o rgo da acusao.
O rgo de acusao atua como rgo fiscal da lei, no se trata
simplesmente de um rgo acusatrio, mas, sim, de uma instituio destinada ao bom
cumprimento dos preceitos normativos constitucionais, o que muitas vezes revela a
necessidade de evitar acusaes temerrias. Ou seja, no pode o Ministrio Pblico ser
transformado em acusador sistemtico, desconhecendo todo complexo de direitos e
garantias que formam modelo garantista nos Estados Democrticos de Direito 63.
Isto traduz o axioma de que os membros do parquet devem se
preocupar, alm dos direitos constitucionais do acusado, com todos os aspectos formais
que circundam a pea acusatria. At porque, a verificao das condies e
pressupostos da ao penal evita que toda carga punitiva estatal seja mobilizada
inadequadamente, causando prejuzos tanto para o errio pblico como para as garantias
constitucionais do indivduo.
Fosse isso pouco, surge como necessidade do modelo acusatrio a
promoo a uma defesa robusta, exercida em igualdade de condies com a acusao e
respeitada a legalidade, o contraditrio, a ampla defesa, o devido processo legal, o juiz
natural, a proibio de utilizao de provas ilcitas, a presuno de inocncia, a durao
razovel do processo, a jurisdio e, especialmente, a dignidade da pessoa humana, que
se estendem a todos os cidados, inclusive aos acusados.
A Constituio, at mesmo, elevou o advogado e a defensoria pblica
condio de sujeitos indispensveis administrao da justia, nos exatos termos dos
arts. 133 e 134, respectivamente. Corroborando com esta ideia, o STF, por meio da
smula 523, disps que a ausncia de advogado gera nulidade absoluta no processo64
.
Essa defesa compreende o aspecto tcnico, exercida por um profissional do direito, e a
autodefesa se traduz na verso do acusado acerca dos fatos deduzidos em juzo.
Se no sistema inquisitivo a defesa era vista com bice ao
desenvolvimento regular do processo, no sistema acusatrio o oposto se estabelece e a
defesa imprescindvel para curso regular do procedimento de condenao. A paridade
62
Importante salientar que ainda existem os casos de ao penal pblica de iniciativa privada, manejadas
inicialmente por particulares, conforme leciona o art. 129, inc. I cumulado com o art. 5, inc. LIX. 63
THUMS, Gilberto. Op. cit., 2006, p. 254. 64
Ibidem, Loc.cit, p. 265.
-
de armas entre acusao e defesa que ir proporcionar uma deciso imparcial do caso.
A conscincia de que o acusado a relao mais frgil do processo impe a criao de
uma rede de garantias65
.
Por fim, mas no menos importante, percebe-se a oralidade e a
publicidade como caractersticas do sistema acusatrio moderno. Oralidade esta que
significa: (i) a predominncia da palavra falada; (ii) a imediatidade da relao do juiz
com as partes e com os meios de prova; (iii) a identidade fsica do rgo judicante em
todo decorrer do processo; (iv) a concentrao da causa no tempo66. A publicidade se
ope ao sigilo processual, como ocorreu na santa inquisio, j que o processo penal se
torna pblico, acessvel, servindo essa publicidade para as partes (aspectos interno)
como para a sociedade (aspectos externo), porque a apurao do delito no algo que
interessa somente ao acusado67
.
Segundo a lio do processualista Lopes Junior, o modelo acusatrio
moderno tem as seguintes caractersticas:
a) clara distino entre as atividades acusar e julgar; b) a
iniciativa probatria deve ser das partes; c) mantm-se o juiz
como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigao e
passivo no que se refere coleta de prova, tanto de impugnao
como de desencargo; d) tratamento igualitrio entre as partes
(igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento em
regra oral (ou predominante); f) plena publicidade de todo o
procedimento (ou em sua maior parte); g) contraditrio e
possibilidade de resistncia (defesa); h) ausncia de uma tarifa
probatria, sustentando-se a sentena pelo livre convencimento
motivado do rgo jurisdicional; i) instituio, atendendo a
critrios de segurana jurdica (e social) da coisa julgada; j)
possibilidade de impugnar as decises e o duplo grau de
jurisdio68
.
Entretanto, importante alertar que o sistema acusatrio (moderno)
apresentado sofre mitigaes ou mal compreendido (e mal utilizado) em diversos
pases, especialmente na realidade jurdica brasileira, detentor de um Cdigo de
Processo Penal formulado em 1941, eivado de diversos mecanismos nitidamente
inquisitorial.
65
CATENA, Victor Moreno. La Defensa en el Proceso Penal. Madri: Civitas, 1982, p. 112. 66
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 171. 67
GUARNIERI, Jose. Las Partes em el Proceso Penal. Trad. Constancio Bernaldo de Quirs. Mxico:
Jose M. Cajica, 1952, p. 116. 68
LOPES JUNIOR., Aury. Op. cit., 2008, p. 58.
-
4. SISTEMA MISTO.
O sistema misto fruto do fracasso da inquisio, uma substituio
moderada dos modelos inquisitivos atravs da implantao de mecanismos do modelo
acusatrio antigo, mas sem permitir a persecuo criminal atravs dos particulares.
A histria nos revela que o Cdigo de Napoleo de 1808 foi o
primeiro ordenamento jurdico que adotou o sistema bifsico (misto)69
, caracterizado,
como o prprio nome sugere, pela mescla dos dois sistemas anteriores70
: o acusatrio e
o inquisitivo. Seu modelo bifsico permite a criao de dois momentos distintos, tem-se
uma primeira fase pr-processual, investigatria, sigilosa, secreta, escrita, sem
contraditrio, nos moldes do sistema inquisitivo e uma segunda processual,
contraditria, com publicidade dos seus atos, como se fosse um sistema acusatrio
propriamente dito71
.
Susta-se em parte da doutrina que os sistemas puros (acusatrio e
inquisitivo) seriam modelos histricos que no correspondem realidade jurdica atual,
sendo que o sistema misto permitiria, segundo este pensamento, uma maior eficcia do
sistema punitivo estatal (do direito e processo penal), evitando, de um lado, impunidade
por insuficincia de provas e assegurando, por outro, suposta igualdade de condies ao
acusado72
.
No bem assim, contudo.
69
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 110-111, O novo sistema, que principiou sua atuao na Frana, em seguida Revoluo, para com as guerras napolenicas chegar a outros pases, disciplinava o
processo em duas fases. Na primeira delas, denominada de instruo, procedia-se secretamente, sob o
comando de um juiz, designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a perpetrao das infraes
penais, com todas as circunstncias que influem na sua qualificao jurdica, alm dos aspectos atinentes
culpabilidade dos autores, de maneira a preparar o caminho para o exerccio da ao penal; na segunda
fase, chamada de juzo, todas as atuaes realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado ou o
jri, com a controvrsia e o debate entre as partes, no maior nvel possvel de igualdade. Salientou Pietro
Fredas69
que esta estrutura foi consagrada no Cdigo de Instruo Criminal de 1808, difundindo-se
rapidamente pelos cdigos modernos, com a proclamao da necessidade de uma investigao secreta e
dirigida pelo Juiz, e com tmida atuao da defesa nesta etapa, razo por que consagra-se como sistema de
tipo misto. 70
CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal. Parte Geral. Vol II. Trad. de Ricardo
Rodrigues Gama. Campinas: LZN Editora, 2002, p. 318. O juzo penal misto se situa entre o processo acusatrio puro e o inquisitrio. 71
TORNAGHI, Hlio. Compndio de Processo Penal. Tomo II. Rio de Janeiro: Jos Konfino Editor,
1967. p. 577, Misto, porque nele o processo se desdobra em duas fases: a primeira tipicamente inquisitria, a outra acusatria. Naquela faz-se a instruo escrita e secreta, sem acusao, e, por isso
mesmo, sem contraditrio. Apura-se o fato em sua materialidade e a autoria, ou seja, a imputao fsica
do fato ao agente. Nesta o acusador apresenta a acusao, o ru se defende e o juiz julga. pblica e
oral. 72
Neste Sentido: POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlao entre acusao e sentena no processo
penal brasileiro. So Paulo: IBCCRIM, 2001.
-
Lopes Junior, citando Coutinho, cristaliza que o sistema misto um
monstro de duas cabeas; acabando por valer mais a prova secreta que a do
contraditrio, numa verdadeira fraude. Afinal, o que poderia restar de segurana o
livre convencimento, ou seja, a retrica e contra-ataques73. Este formato sistema misto
no pode nem ser considerado como um sistema, mas um amontanhado de regras de
dois sistemas distintos, pecando pela ausncia de um princpio informador74
, porque
basta imunizar a prova inquisitorial com um belo discurso que o problema est
resolvido, afinal, se serviu a Napoleo um tirano; serve a qualquer senhor; no serve
democracia75.
Ensina o processualista Gacho, a fraude reside no fato de que a
prova colhida na inquisio do inqurito, sendo trazida integralmente para dentro do
processo e, ao final, basta belo discurso do julgador para imunizar a deciso76.
Verdadeiramente, o que se percebe uma inquisio instaurada sem
nenhum permissivo Constitucional. Porque o que acontece o julgador se basear nos
elementos da investigao pr-processual, onde as garantias ao acusado no estavam
presentes e, quando da prolao da sentena, utiliza-se o disfarce de que o inqurito est
apenas corroborando, confirmando, aquilo que foi produzido em juzo.
No h como conviverem os sistemas acusatrio e inquisitivo ao
mesmo tempo. O processo penal s ir alcanar as finalidades constitucionais quando
estiverem presentes as garantias acusatrias do incio ao fim do processo ou se for
criado um juiz responsvel pelos atos da fase investigatria, no tendo nenhuma ligao
com o juiz que ir reger o procedimento aps o recebimento da denncia, alis, aps a
investigao poderia ser tocado fogo no inqurito77
.
O que precisa ficar claro, desde logo, que o ponto crucial para
identificao de um sistema a gesto da prova. No sistema acusatrio o que
predomina, no tocante gesto probatria, o princpio dispositivo, que impe a
necessidade de as partes produzirem o material probatrio. No sistema inquisitivo o que
prevalece o princpio inquisitivo, onde a gesto da prova fica a cargo do inquisidor.
73
LOPES JUNIOR., Aury. Op. cit., 2008, p. 68. 74
Ibidem, Loc.cit, p. 68, prefere denominar: ncleo fundante. 75
Ibidem, Loc.cit, p. 68. 76
Ibidem, Loc.cit, p. 68. 77
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., 2001, p. 69.
-
Dito em outras palavras, no h e nem pode haver um princpio misto, o que, por
evidente, desconfigura o dito sistema78, porque no h um elemento unificador nele.
O sistema nunca ser misto, isso porque ou ele inquisitrio (como
mitigaes acusatria) ou ele acusatrio79
com elementos (secundrios) inquisitrios.
Pouco importa o que diz o CPP, o CP e as leis ordinrias esparsas, o
que deve prevalecer, independentemente de qualquer dispositivo, a Constituio. A
desobedincia aos preceitos constitucionais um dos atos mais autoritrios e violentos,
um dos desrespeitos mais graves na democracia moderna, pois ela (a Constituio)
uma das principais formas de garantir plena efetividade dos direitos fundamentais e da
prpria essncia do Estado80
.
Sem perder de vista a inconfundvel e imperiosa interpenetrao entre
aos aspectos referidos, a identificao qual sistema adotado no ordenamento jurdico
ptrio deve se pautar nos preceitos insculpidos na Carta Poltica do Estado, avaliando
que as disposies das normas infraconstitucionais em sentido contrrio, nada mais so
do que violaes a norma fundamental.
5. SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO.
Certamente, a tarefa de demonstrar qual o sistema processual penal
brasileiro no fcil81
, ainda mais diante da realidade jurdica brasileira, onde o
complexo de normas que incidem sobre o processo penal aponta para direes
diametralmente opostas. Isso significa dizer que h uma dificuldade em conciliar o
Cdigo de Processo de 1941, a Constituio de 1988 e outras tantas normas esparsas
que compe o sistema punitivo.
Apesar dessa dificuldade, o ponto decisivo neste processo, conforme
toda estrutura ideolgica adotada at ento, deve ser a Constituio. Em termos
didticos, alguns pontos sero analisados nessa perspectiva, a saber: a iniciativa da ao
penal, a gesto da prova, a diviso das funes das partes, a imparcialidade do juiz, a
78
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., 2000, p. 03. 79
Ibidem, Loc.cit.,p. 04, menciona que o fato de ser misto significa ser, na essncia, inquisitrio ou acusatrio, recebendo a referida adjetivao por conta dos elementos (todos secundrios), que de um
sistema so emprestados ao outro. 80
SARLET, Ingo. Op.cit., 2007, p. 268 81
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, p. 187, destaca que No Brasil, certamente no tarefa simples assinalar com preciso, acima dos interesses que movem os juristas, motivados pelo sentido e funo que
atribuam ao Processo Penal e pela maneira como vivem ou viveram a experincia poltica do seu tempo,
que sistema processual penal vigora ou em outras pocas que sistemas imperou.
-
ampla defesa, o contraditrio, a publicidade e a oralidade. Vale dizer, definido a
hermenutica constitucional sobre os seguintes temas, ficar mais evidente o sistema
processual penal adotado pelo ordenamento jurdico brasileiro, embora se reconhea
que o Cdigo de Processo Penal tenha relevncia no assunto, a compatibilizao de suas
normas com a Magna Carta indispensvel para validar qualquer dispositivo do Cdigo
de Ritos Penais82
.
Nessa organizao nota-se que a iniciativa da ao penal, na
sistemtica brasileira, fica a cargo do MP, conforme dispe o art. 129, inc. I da CF-88,
embora em alguns casos a iniciativa da ao penal seja do ofendido ou esteja
condicionada a representao, nos termos do art. 5, inc. LIX83
da CF-88. Com isso, as
bases do sistema acusatrio comeam a se desenhar, uma vez que o juiz dever se
comportar com espectador, deixando a cargo do rgo do parquet a iniciativa da ao
penal, no tendo a funo de acusar84
.
Entretanto, sobre iniciativa da ao penal, imperioso destacar o
inqurito policial, precedente e necessrio para propositura da ao penal, com intuito
de dar justa causa para ao penal, mtodo de investigao preliminar para evitar aes
penais desarrazoadas, sem o menor sentido. O inqurito tem a finalidade de reunir
indcios suficientes da autoria e atestar a materialidade delitiva, a fim de possibilitar ou
82
Nesse sentido recomenda-se a leitura de: OLIVEIRA, Eugnio Pacelli de. Processo e Hermenutica na
Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 11. 83
Embora: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Volume I. So Paulo: Saraiva,
2003, p. 88-93 defende que no Brasil existe uma ao penal popular definida na Lei 1.079/50 (Lei do
Impeachment). Essa lei define crimes de responsabilidade, seu art. 14 possibilita a qualquer cidado
oferecer a denncia, bem como seus arts. 41 e 75 apontam no mesmo sentido. Sendo assim, o mencionado
autor conclui que se a lei define crime, se a pea acusatria se chama denncia e qualquer cidado pode
assinar seria um caso de ao penal popular. Malgrado este posicionamento, no se pode considerar isto
como ao popular, primeiro porque a Lei 1.079/50 no define crime, mas, sim, ilcito administrativo,
parecidos com ilcitos penais, mas com sanes administrativos, ou seja, porque essa lei trata das
infraes polticas administrativas. E outra, a palavra denncia foi utilizada no no sentido processual
penal. Tanto assim que o art. 129, I da CF-88 diz que privativo do Ministrio Pblico oferecer a
denncia criminal. E mais, a nica lei que define crime de responsabilidade no pas o Decreto-Lei
201/67. Observa-se, por fim, que o Cdigo Criminal de 1932, no seu art. 72, previa expressamente a
possibilidade de qualquer pessoa do povo entrar com ao penal, mesmo que no tenha sido ofendido
pelo delito. Outra ao que tida no pas como ao penal popular o Habeas Corpus (devido o art. 654
do CPP), mas eis a outro equvoco, pois quando se fala em ao penal popular est se referindo a uma
ao de natureza condenatria. 84
Com maior profundidade sobre a imparcialidade do magistrado no processo recomenda-se:
GOLDSCHMIDT, Werner. La Imparcialidad como Principio bsico del Proceso. Monografias de
Derecho Espaol. Publicaciones del Instituto de Derecho Procesal, Serie 2. n. 1. Madrid: Grfica
Clemares, 1950.
-
no, aps o relatrio da autoridade policial, o incio da ao penal a cargo do rgo de
acusao (em regra, o Ministrio Pblico)85
.
Se o art. 5, inc. II, do CPP86
revela que o Inqurito Policial pode ser
requisitado pelo magistrado ou mesmo no caso do art. 40 do CPP87
, que permite ao
magistrado remeter ao Ministrio Pblico quando verificarem a existncia de crime de
ao penal pblica. Definitivamente, a nica coisa que se pode ter certeza que este
dispositivo no foi recepcionado pela Constituio de 88. Como pode o magistrado
requisitar a instaurao do inqurito policial, devendo, na maioria dos casos, tornar-se
prevento para ao penal, de acordo com o art. 83 do CPP88
?
como se o magistrado estivesse dizendo: investigue, aps isso envie
para o parquet para oferecer a denncia, que quando estes autos chegarem s minhas
mos, com absoluta certeza, eu vou condenar. E a imparcialidade, joga no lixo? Ou se
esqueceram que a Constituio muito mais do que uma simples folha de papel, que
norma fundamental do Estado, que suprema, hierrquica e se sobrepes diante das
demais normas?89
.
Do mesmo modo, encontra-se o art. 28 do CPP90
, que permite ao
magistrado, quando discorda do pedido de arquivamento do inqurito policial pelo
membro do parquet, remeter ao Procurador Geral da Repblica do Estado ao qual est
vinculado para decidir se prossegue ou no com tal arquivamento. Era melhor que fosse
dito: pelo amor de Deus, denuncie que eu quero condenar!91
85
Sobre investigao preliminar esclarecedora a lio de: LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de
Investigao Preliminar no Processo Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 86
Art. 5. Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade,
segurana e propriedade, nos termos seguintes: [...] II - ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa seno em virtude de lei. 87
Art. 40. Quando, em autos ou papis de que conhecerem, os juzes ou tribunais verificarem a
existncia de crime de ao pblica, remetero ao Ministrio Pblico as cpias e os documentos
necessrios ao oferecimento da denncia. 88
Art. 83. Verificar-se- a competncia por preveno toda vez que, concorrendo dois ou mais juzes
igualmente competentes ou com jurisdio cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prtica de
algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denncia ou da
queixa (arts. 70, 3o, 71, 72, 2
o, e 78, II, c).
89 Essa viso crtica se assemelha a obra de: LOPES JNIOR, Aury. Op. cit. 2008, p. 14.
90 Art. 28. Se o rgo do Ministrio Pblico, ao invs de apresentar a denncia, requerer o arquivamento
do inqurito policial ou de quaisquer peas de informao, o juiz, no caso de considerar improcedentes as
razes invocadas, far remessa do inqurito ou peas de informao ao procurador-geral, e este oferecer
a denncia, designar outro rgo do Ministrio Pblico para oferec-la, ou insistir no pedido de
arquivamento, ao qual s ento estar o juiz obrigado a atender. 91
Nesse sentido recomenda-se a leitura de: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A natureza cautelar
da deciso de arquivamento do inqurito policial. Revista de Processo. So Paulo: Revista dos Tribunais,
a. 18, n. 70, p. 49-58, abril/junho 1993.
-
Outros casos, que ferem a imparcialidade, so a ememdatio libelli ou
mutatio libelli, previstas, respectivamente, nos arts. 383, 384 e 418, todos do CPP92
e a
hiptese de recorrer de ofcio nos casos: de concesso de habeas corpus, (art. 574, inc. I
do CPP)93
, concesso de reabilitao (art. 746 do CPP)94
e absolvio sumria (art. 574,
II e 411 do CPP)95
; possibilidade de decretar de ofcio a priso preventiva (nos termos
do art. 311 do CPP96
), entre outros tantos97
.
Obviamente, esses dispositivos legais no guardam nenhuma relao
com a Carta Magna, conforme esclarece Prado, qualquer que seja a modalidade de
interveno judicial, voltada comunicao oficial da existncia provvel de infrao
penal a apurar, o magistrado que vier a notici-la estar comprometido na sua
imparcialidade [...]98. O que no pode acontecer a definio do sistema processual
penal brasileiro a partir de dispositivos que, claramente, so inconstitucionais.
No se pode confundir o que foi dito com a necessidade,
constitucional, do juiz se manifestar (decidir) sobre os casos em que se pretende
restringir algum direito fundamental do indiciado na fase de investigao. A distino
insofismvel. Neste caso, h uma imposio constitucional estabelecida no art. 5,
incisos XXXV, LIII, LIV e LV99
, todos da CF-88. Contudo, preciso alertar que o fato
de o magistrado participar desta fase deveria ser critrio para afastar sua competncia,
em caso de futura ao penal e no o contrrio (conforme dispe o Cdigo de Ritos
Penais).
92
Art. 383. O juiz, sem modificar a descrio do fato contida na denncia ou queixa, poder atribuir-lhe
definio jurdica diversa, ainda que, em conseqncia, tenha de aplicar pena mais grave. Art.
384. Encerrada a instruo probatria, se entender cabvel nova definio jurdica do fato, em
conseqncia de prova existente nos autos de elemento ou circunstncia da infrao penal no contida na
acusao, o Ministrio Pblico dever aditar a denncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em
virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ao pblica, reduzindo-se a termo o
aditamento, quando feito oralmente. Art. 418. O juiz poder dar ao fato definio jurdica diversa da
constante da acusao, embora o acusado fique sujeito a pena mais grave. 93
Art. 574. Os recursos sero voluntrios, excetuando-se os seguintes casos, em que devero ser
interpostos, de ofcio, pelo juiz: I - da sentena que conceder habeas corpus; 94
Art. 746. Da deciso que conceder a reabilitao haver recurso de ofcio. 95
Art. 574, inc. II - da que absolver desde logo o ru com fundamento na existncia de circunstncia que
exclua o crime ou isente o ru de pena, nos termos do art. 411. 96
Art. 311. Em qualquer fase do inqurito policial ou da instruo criminal, caber a priso preventiva
decretada pelo juiz, de ofcio, a requerimento do Ministrio Pblico, ou do querelante, ou mediante
representao da autoridade policial. 97
PRADO, Geraldo. Op. cit., 2001, P. 209. 98
Ibidem, Loc.cit., p. 198. 99
Art. 5, incisos: XXXV - a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito;
LIII - ningum ser processado nem sentenciado seno pela autoridade competente; LIV - ningum ser
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral so assegurados o contraditrio e ampla defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes.
-
Se a Constituio prev o devido processo legal, a ampla defesa, a
vedao das provas ilcitas, a publicidade, a durao razovel do processo, o princpio
do juiz natural, a presuno de inocncia, no h como sustentar que o sistema adotado
inquisitivo, misto ou outro nome que se queira dar. Com tantas garantias
constitucionais, fica claro que a gesto da prova no poder ser regida pelo princpio
inquisitivo, decididamente no. O princpio que ir coordenar o procedimento de
acusao o princpio dispositivo, pois qualquer possibilidade de o magistrado
interferir no sistema de colheita de provas representa uma ferida em sua imparcialidade,
que definida pela norma hierrquica do Estado. Por isso qualquer dispositivo, seja do
ano que for, escrito pela forma que preferir o legislador, tem que estar em conformidade
com a imparcialidade constitucional do juiz.
No quer dizer que a realidade do dia-a-dia remonte a um sistema
acusatrio perfeito e acabado, nos exatos moldes da Constituio. O que se v por a
Tribunal decidindo com base nos elementos do inqurito, luz do inconstitucional art.
155 do CPP, mas maquiando sua deciso com os argumentos mais frgeis possveis. Ou
pior, como acontece com a presuno de inocncia, aplicada nos tribunais como
verdadeira presuno de culpabilidade, em uma completa inverso do nus da prova,
tendo o acusado, muitas vezes, que provar sua inocncia e no a acusao que provar
sua culpabilidade, uma verdadeira contramo na histria100
.
Porm, a realidade da prtica no pode ser decisiva para determinar o
sistema processual brasileiro. A inquisio aplicada no Brasil, e disso ningum pode
duvidar, porque s est faltando a fogueira nos corredores forenses para que a idade
mdia retorne com toda fora. Contudo, isso no implica dizer que o sistema brasileiro
inquisitivo, porque, conforme j apontado, ele claramente acusatrio. A m utilizao
da Constituio e, consequentemente, do sistema processual penal deve servir para
100
Nesse sentido consulte a seguinte jurisprudncia, em que se invertem noes bsicas sobre presuno
de inocncia: HABEAS CORPUS. PRISO PREVENTIVA ORIUNDA DE FLAGRANTE DELITO.
SENTENA CONDENATRIA. ALEGADO DIREITO DE AGUARDAR O JULGAMENTO DA
APELAO EM LIBERDADE. MANUTENO DA CUSTDIA DOS PACIENTES. PRINCPIO
DA PRESUNO DE INOCNCIA AFASTADA DIANTE DA CONDENAO DOS RUS, APS
A REGULAR INSTRUO PROCESSUAL. EFEITO SUSPENSIVO DO RECURSO APELATRIO
QUE CEDE DIANTE DA PRISO PROVISRIA, EM CASOS COMO O DOS AUTOS, EM QUE OS
PACIENTES RESPONDERAM PRESOS AO PENAL. ORDEM DENEGADA. 1. Observa-se, no
presente processo, que os pacientes responderam sob custdia processual, decorrente de flagrante delito, a
imputao que lhes foi feita da prtica do crime de extorso e, ao final, receberam sentena condenatria,
aps a devida instruo processual penal. 2. Assim, diante do contexto revelado nos presentes autos, no
se mostra razovel a assertiva de que milita em favor dos pacientes o decantado princpio da presuno de
inocncia, tampouco a colocao deles em liberdade, justamente aps a sentena condenatria. 3. Diante
de tais pressupostos, denega-se a ordem. (STJ. HC n. 109.192-SP (2008/0135962-5), Rel. Ministro
Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 16/12/2008, DJe 16/02/2009).
-
correies, para habeas corpus, reclamaes constitucionais, aes de
inconstitucionalidades, entre outros mecanismos de defesa e no para definir o sistema
processual penal como inquisitivo, at porque no 101
.
Em que pese este posicionamento, Tornaghi defende que o sistema
processual brasileiro se poderia denominar misto102, porque a apurao do fato e da
autoria feita no inqurito policial (somente nos crimes falimentares o inqurito
judicial)103. Para o autor, devido ao fato de o processo penal ser precedido por uma
investigao preliminar, permite concluir que existe o sistema misto e que este
aplicado no pas.
No sentido quase semelhante, Nucci entende que se o caminho da
Constituio for perfilhado chega-se a concluso de que o sistema processual penal o
acusatrio. Entretanto, partindo da premissa, menciona o autor, de que o CPP
inquisitivo quem regula o procedimento (as provas, recursos e demais procedimentos),
o sistema brasileiro, segundo esta doutrina, seria o misto104
.
Igualmente, mas baseando-se nos atos desenvolvidos na investigao
preliminar, Tucci105
entende que o sistema processual penal adotado pelo ordenamento
jurdico ptrio o sistema misto, j que, na viso do mencionado autor, o inqurito
policial contamina todo o procedimento que se pretende denominar de acusatrio.
No entanto, conforme j exposto, entende-se que o sistema processual
penal brasileiro acusatrio, devido eleio constitucional para tanto, embora se
reconhea que h uma dificuldade do legislador, do promotor e do magistrado em lidar
com um Cdigo de Processo Penal que est em descompasso com a Constituio.
6. CONCLUSO.
101
Mesmo porque: THUMS, Gilberto. Op. cit., 2006, p. xix, adverte que o legislador brasileiro no tem a menor noo de sistema processual. Diariamente so editadas leis penais de direito material e com normas processuais absolutamente impertinentes, porque destoam da matriz constitucional. 102
TORNAGHI, Hlio. Instituies de Processo Penal. V. II. So Paulo: Saraiva, 1977, p. 20. 103
Ibidem, Loc.cit. 104
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execuo Penal. 3. ed. So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, p. 104-105, O sistema adotado no Brasil, embora no oficialmente, o misto.
Registremos desde logo que h dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se
fssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituio Federal poderamos at dizer que nosso
sistema acusatrio (no texto constitucional encontramos os princpios que regem o sistema acusatrio).
Ocorre que nosso processo penal (procedimentos, recursos, provas, etc.) regido por Cdigo Especfico,
que data de 1941, elaborado em ntida tica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princpios regentes
do sistema inquisitivo, como veremos a seguir) 105
TUCCI, Rogrio Lauria. Persecuo Penal, Priso e Liberdade. Saraiva, 1980.
-
Conforme ficou positivado o sistema penal inquisitrio aquele onde
o rgo julgador, tribunal ou juiz est diretamente envolvido com a investigao do fato
criminoso, diferente do sistema acusatrio onde h uma separao dos rgos
acusatrios e o julgador, onde existem princpios constitucionais do contraditrio, da
ampla defesa, presuno de inocncia, entre outros. Em virtude destes fatores, poderia
se chegar a uma concluso preliminar de que o modelo brasileiro guarda semelhana
com o sistema penal acusatrio, at pelo fato da CF/88 o eleger como o modelo a ser
adotado no pas.
Ocorre que, no se pode deslembrar que o inqurito policial, primeiro
meio de prova, presidido por delegado de policia, possui diversas caractersticas do
sistema inquisitivo, tais como o sigilo, ausncia de contraditrio e da ampla defesa,
procedimento escrito, impossibilidade de recusa do condutor da investigao, etc.
Ademais, o rgo julgador pode determinar a produo de provas de ofcio, decretar a
produo do acusado, bem como se valer de elementos produzidos ao largo do
contraditrio, para formar sua convico106
.
Portanto, em eptome, o sistema processual penal brasileiro pode ser
considerado um sistema misto, no mnimo em fase embrionria, pois ele no
totalmente acusatrio, nem totalmente inquisitrio, possui traos marcantes dos dois
sistemas, no obstante nossa Constituio Federal de 1988 ter elegido o sistema
acusatrio, artigos do Cdigo de Processo Penal, que data de 1941, tm caractersticas
marcantes do sistema inquisitrio, consoante restou positivado, assim, no h como se
conjecturar a existncia de um sistema acusatrio puro, mas sim um sistema processual
penal misto, advindo de uma miscelnea entre o sistema inquisitrio e o acusatrio.
106
NUCCI, Guilherme de Souza, Ob. Cit. p.104-105
-
REFERNCIAS.
AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O Processo Acusatrio e a Vedao
Probatria perante as realidades alem e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009.
AROCA, Juan Montero. Princpios del Proceso Penal. Valencia: Tirant Lo Blanch,
1997.
BELING, Ernst. Derecho Procesal Penal. Trad. Miguel Fenech. Barcelona: Labor, 1943.
BINDER, Alberto. Introduo ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2003.
______. Iniciacin al Proceso Penal Acusatorio. Ciudad de Buenos Aires: Campomanes
Libros, 2000.
BOFF, Leonardo. Prefcio. Inquisio: um esprito que continua a existir. In:
Directorium Inquisiorum Manual dos Inquisidores. Nicolau Eymerich. Braslia: Rosa dos Tempos, 1993, p. 13.
BOVINO. Alberto. Principio polticos Del procedimiento penal. 1. ed. Buenos Aires:
Del Puerto, 2005.
BLOW, Oskar. Die Lehre von den Prozesseinreden und die Prozess-Voraussetzungen.
1868. Neuauflage, 2007.
CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal. Parte Geral. Vol II.
Trad. de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN Editora, 2002.
CATENA, Victor Moreno. La Defensa en el Proceso Penal. Madri: Civitas, 1982.
CAVALLERO, Ricardo Juan. Justicia Inquisitorial. El sistema de justicia criminal de la
Inquisicin espaola. 1 ed. Bueno Aires: Ariel, 2003.
CORA, Enrique lvarez. El Derecho Penal Ilustrado Bajo La Censura del Santo Oficio.
In: Inquisicin y Censura El acoso a la Inteligencia en Espaa. Enrique Gacto
Fernndez (org.). Madri: Dykinson, 2006, p. 187-200.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In:
Crtica Teoria Geral do Processo Penal. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (org.).
Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
______. Prefcio. Aury Lopes Junior. In: Introduo Crtica ao Processo Penal Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional.. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005.
______. Introduo aos Princpios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro.
Separata da Revista Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais. Ano 2, n. 4,
jan/fev/mar. Porto Alegre: ITEC, 2000, p. 3.
EYMERICO, Nicolau. Trad. A. C. Godoy. Manual da Inquisio. Curitiba: Juru, 2001.
-
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razo: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula
Zomer. 6 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: histria da violncia nas prises. Trad. Raquel
Ramalhete. 34. Ed. Petrpolis: Vozes, 2007.
GOLDSCHMIDT, Werner. La Imparcialidad como Principio bsico del Proceso. In
Monografias de Derecho Espaol. Publicaciones del Instituto de Derecho Procesal,
Serie 2. n. 1. Madrid: Grfica Clemares, 1950.
______. Princpios Gerais do Processo Penal. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo
Horizonte: Editora Lder, 2002.
______. Problemas Jurdicos y Polticos del Proceso Penal. Barcelona: Bosch, 1935.
GRAU, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio. Barcelona:
Bosch, 1994.
GUARNIERI, Jose. Las Partes em el Proceso Penal. Trad. Constancio Bernaldo de
Quirs. Mxico: Jose M. Cajica, 1952.
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Parte General. 4 ed. Granada:
Comares, 1993.
LOPES JUNIOR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional.
Volume I. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
______. Introduo Crtica ao Processo Penal Fundamentos da Instrumentalidade Garantista . 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
______. Sistemas de Investigao Preliminar no Processo Penal. 4. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.
MAIER, Julio. Antologia El proceso penal contemporneo. Per: Palestra Editores,
2008.
______. Derecho Procesal Penal.Tomo I: Fundamentos. 3. ed. Buenos Aires: Del
Puerto, 2004.
______. Derecho Procesal Penal. Tomo II. 2. Ed. Bueno Aires: Del Puerto, 1996.
MANZINI, Vicenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo I. Trad. Santiago Sents
Melendo e Marino Ayerra Redn. Buenos Aires: Ediciones Jurdicas Europa-Amrica,
1951.
______. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo III. Trad. Santiago Sents Melendo e
Marino Ayerra Redn. Buenos Aires: Ediciones Jurdicas Europa-Amrica, 1952.
MARQUES, Jos Frederico. Tratado de Direito Processual Penal. V. I. So Paulo:
Saraiva, 1980.
______. Elementos de Direito Processual Penal. V. I. 1. ed., So Paulo: Bookseller,
1998.
MOTT, Luiz. Bahia, Inquisio e Sociedade. Salvador: Edufba, 2010.
-
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execuo Penal. 3. ed. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
OLIVEIRA, Eugnio Pacelli de. Processo e Hermenutica na Tutela Penal dos Direitos
Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlao entre acusao e sentena no processo
penal brasileiro. So Paulo: IBCCRIM, 2001.
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatrio. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Bueno Aires: Ed. Del Puerto, 2001.
______. Poltica Criminal e Sistema Jurdico-Penal. Trad. Lus Greco. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficcia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007.
______. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal
de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
TORNAGHI, Hlio. Compndio de Processo Penal. Tomo II. Rio de Janeiro: Jos
Konfino Editor, 1967.
______. Compndio de Processo Penal. Tomo I. Rio de Janeiro: Jos Konfino Editor,
1967.
______. Instituies de Processo Penal. V. II. So Paulo: Saraiva, 1977.
TUCCI, Rogrio Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro.
Tese. Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, 1993.
______. Persecuo Penal, Priso e Liberdade. Saraiva, 1980.