sobre a dificuldade de ler

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Sobre a dificuldade de ler Giorgio Agamben Gostaria de lhes falar não da leitura e dos riscos que ela comporta, mas de um ris- co ainda maior, ou seja, da dificuldade ou da impossibilidade de ler; gostaria de tentar lhes falar não da leitura, mas da ilegibilidade. Cada um de vocês terá feito a experiência daqueles momentos nos quais gostaría- mos de ler, mas não conseguimos, nos quais nos obstinamos a folhear as páginas de um livro, mas ele nos cai literalmente das mãos. Nos tratados sobre a vida dos monges, este era, aliás, o risco por excelência ao qual o monge sucumbia: a acédia, o demônio do meio-dia, a tentação mais terrível que amea- ça os homines religiosi se manifesta, antes de mais nada, com a impossibilidade de ler. Eis a descrição que S. Nilo lhe dá: Quando o monge acedioso tenta ler, interrompe-se inquieto e, um mi- nuto depois, cai no sono; esfrega o rosto com as mãos, estende os dedos e conti- nua a ler por algumas linhas, balbuciando o fim de cada palavra que lê; e, en- tretanto, se enche a cabeça com cálculos ociosos, conta o número das páginas que ainda restam a ler e as folhas dos cadernos e se lhe tornam odiosas as le- tras e as belas miniaturas que tem diante dos olhos até que, por último, torna a fechar o livro e o usa como um travesseiro para a sua cabeça, caindo em um sono breve e profundo…A saúde da alma coincide aqui com a legibilidade do livro (que é também, para o medievo, o livro do mundo), o pecado com a impossibilidade de ler, com o tornar-se ile- gível do mundo. Simone Weil falava, nesse sentido, de uma leitura do mundo e de uma não-leitura, de uma opacidade que resiste a toda interpretação e a toda hermenêutica. Gostaria de lhes sugerir que prestassem atenção aos seus momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo cai das suas mãos, porque a impossibilidade de ler lhes diz res- peito tanto quanto a leitura e é, talvez, tanto ou mais instrutiva do que esta. Há também uma outra e mais radical impossibilidade de ler, que até poucos anos atrás era, antes de tudo, comum. Refiro-me aos analfabetos, esses homens muito apressa- damente esquecidos, que, há apenas um século, eram, ao menos na Itália, a maioria. Um grande poeta espanhol do século 20 dedicou um livro de poesia seu ao analfabeto para/por quem eu escrevo. É importante compreender o sentido desse “para/por”: não tanto ou não somente “para que o analfabeto me leia”, visto que por definição não poderá fazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia testemunhar por/para aqueles que no jargão de Auschwitz se chamavam de muçulmanos, isto é, aqueles que não podiam nem poderiam ter testemunhado, porque, pouco depois do seu ingresso no campo, ti- nham perdido toda consciência e toda sensibilidade.

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Texto apresentado em uma intervenção na Feira da Pequena Editora, em Roma, em outubro de 2012.

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Page 1: Sobre a Dificuldade de Ler

Sobre a dificuldade de lerGiorgio Agamben

Gostaria de lhes falar não da leitura e dos riscos que ela comporta, mas de um ris-co ainda maior, ou seja, da dificuldade ou da impossibilidade de ler; gostaria de tentarlhes falar não da leitura, mas da ilegibilidade.

Cada um de vocês terá feito a experiência daqueles momentos nos quais gostaría-mos de ler, mas não conseguimos, nos quais nos obstinamos a folhear as páginas de umlivro, mas ele nos cai literalmente das mãos.

Nos tratados sobre a vida dos monges, este era, aliás, o risco por excelência ao qualo monge sucumbia: a acédia, o demônio do meio-dia, a tentação mais terrível que amea-ça os homines religiosi se manifesta, antes de mais nada, com a impossibilidade de ler. Eisa descrição que S. Nilo lhe dá:

“Quando o monge acedioso tenta ler, interrompe-se inquieto e, um mi-nuto depois, cai no sono; esfrega o rosto com as mãos, estende os dedos e conti-nua a ler por algumas linhas, balbuciando o fim de cada palavra que lê; e, en-tretanto, se enche a cabeça com cálculos ociosos, conta o número das páginasque ainda restam a ler e as folhas dos cadernos e se lhe tornam odiosas as le-tras e as belas miniaturas que tem diante dos olhos até que, por último, torna afechar o livro e o usa como um travesseiro para a sua cabeça, caindo em umsono breve e profundo…”

A saúde da alma coincide aqui com a legibilidade do livro (que é também, para omedievo, o livro do mundo), o pecado com a impossibilidade de ler, com o tornar-se ile-gível do mundo.

Simone Weil falava, nesse sentido, de uma leitura do mundo e de uma não-leitura,de uma opacidade que resiste a toda interpretação e a toda hermenêutica. Gostaria delhes sugerir que prestassem atenção aos seus momentos de não leitura e de opacidade,quando o livro do mundo cai das suas mãos, porque a impossibilidade de ler lhes diz res-peito tanto quanto a leitura e é, talvez, tanto ou mais instrutiva do que esta.

Há também uma outra e mais radical impossibilidade de ler, que até poucos anosatrás era, antes de tudo, comum. Refiro-me aos analfabetos, esses homens muito apressa-damente esquecidos, que, há apenas um século, eram, ao menos na Itália, a maioria. Umgrande poeta espanhol do século 20 dedicou um livro de poesia seu ao analfabetopara/por quem eu escrevo. É importante compreender o sentido desse “para/por”: nãotanto ou não somente “para que o analfabeto me leia”, visto que por definição não poderáfazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia testemunhar por/para aqueles queno jargão de Auschwitz se chamavam de muçulmanos, isto é, aqueles que não podiamnem poderiam ter testemunhado, porque, pouco depois do seu ingresso no campo, ti-nham perdido toda consciência e toda sensibilidade.

Page 2: Sobre a Dificuldade de Ler

Gostaria que vocês refletissem sobre o estatuto especial desse livro que, na sua es-sência, é destinado a olhos que não podem lê-lo e foi escrito com uma mão que, em umcerto sentido, não sabe escrever. O poeta ou o escritor que escreve pelo/para o analfabetotenta escrever o que não pode ser lido, põe no papel o ilegível. Mas precisamente issotorna a sua escrita mais interessante do que a que foi escrita apenas por/para quem sabeler.

Há, finalmente, um outro caso de não leitura do qual gostaria de lhes falar. Refiro-me aos livros que não encontraram aquela que Benjamin chamava de a hora da sua inte-ligibilidade, que foram escritos e publicados, mas estão – talvez para sempre – à esperade serem lidos. Eu conheço – e cada um de vocês, eu acredito, poderia citar – livros quemereciam ser lidos e não foram lidos, ou foram lidos por pouquíssimos leitores. Qual é oestatuto desses livros? Eu penso que, se esses livros eram verdadeiramente bons, não sedeveria falar de uma espera, mas de uma exigência. Esses livros não esperam, mas exi-gem ser lidos, mesmo que não o tenham sido ou não o serão jamais. A exigência é umconceito muito interessante, que não se refere à esfera dos fatos, mas a uma esfera superi-or e mais decisiva, cuja natureza deixo a cada um de vocês precisar.

Mas agora gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que se ocupam de li-vros: parem de olhar para as infames, sim, infames classificações de livros mais vendidose – presume-se – mais lidos e tentem construir em vez disso na mente de vocês uma clas-sificação dos livros que exigem ser lidos.

Só uma editora fundada nessa classificação mental poderia fazer o livro sair da cri-se que – pelo que ouço ser dito e repetido – está atravessando.

Um poeta compendiou uma vez a sua poética com a fórmula: “ler o que não foi ja-mais escrito”. Trata-se, como vocês veem, de uma experiência de algum modo simétricaàquela do poeta que escrevia por/para o analfabeto que não pode lê-lo: à escrita sem lei-tura, corresponde aqui uma leitura sem escrita. Com a condição de precisar que tambémos tempos estão invertidos: lá uma escrita que não é seguida por nenhuma leitura, aquiuma leitura que não é precedida por nenhuma escrita.

Mas talvez em ambas essas formulações está em questão algo de similar, ou seja,uma experiência da escrita e da leitura que põe em questão a representação que nos faze-mos habitualmente dessas duas práticas tão estreitamente ligadas, que se opõem e aomesmo tempo remetem a algo de ilegível e de inescrevível que as precedeu e não cessa deacompanhá-las.

Vocês terão compreendido que me refiro à oralidade. A nossa literatura nasce emíntima relação com a oralidade. Porque o que faz Dante quando decide escrever na lín-gua vulgar, senão justamente “escrever o que não foi jamais lido e ler o que não foi jamaisescrito”, isto é, aquele “falar materno” analfabeto, que existia somente na dimensão oral?E tentar colocar por escrito o falar materno o obriga não simplesmente a transcrevê-lo,mas, como vocês sabem, a inventar aquela língua da poesia, aquela língua vulgar ilustre,que não existe em nenhuma parte, mas, como a pantera dos bestiários medievais, “espa-lha em toda parte o seu perfume, mas reside em lugar nenhum”.

Page 3: Sobre a Dificuldade de Ler

Eu creio que não se possa compreender corretamente o grande florescimento dapoesia italiana no século 20, se não se percebe nela algo como a reconvocação daquelailegível oralidade que, diz Dante, “uma e única é primeira na mente”. Isto é, se não se en-tende que ela é acompanhada pelo igualmente extraordinário florescimento da poesiaem dialeto.

Talvez a literatura italiana do século 20 seja toda ela atravessada por uma memóriainconsciente, quase por uma afanosa comemoração do analfabetismo. Quem teve entreas mãos um desses livros, nos quais a página escrita – ou, melhor, transcrita – em dialetoestá ao lado da tradução em vernáculo, não pode não se perguntar, enquanto os seusolhos atravessavam inquietos de uma página à outra, se o lugar verdadeiro da poesia nãoestaria, por acaso, nem em uma página nem na outra, mas no espaço vazio entre ambas.

E gostaria de concluir esta breve reflexão sobre a dificuldade da leitura, perguntan-do a vocês se o que nós chamamos de poesia não seria, na verdade, algo que incessante-mente habita, trabalha e sustém a língua escrita para restituí-la àquele ilegível do qualprovém e para o qual se mantém em viagem.

Texto apresentado em uma intervenção na Feira da Pequena Editora, em Roma, emoutubro de 2012.

Tradução de Cláudio Oliveira