sobre a elaboração de conceitos jurídicos em ockham
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A FILOSOFIA POLÍTICA E JURÍDICA A PARTIR DE OCKHAM
(Sobre a elaboração dos conceitos de “direito”, “direito subjetivo” e “direito de
propriedade” em Guilherme de Ockham)
Willis Santiago Guerra Filho
SUMÁRIO
Introdução
1. Sobre Guilherme de Ockham (com um aceno à modernidade de
concepções filosóficas e jurídicas por ele desenvolvidas)
2. Considerações metodológicas
3. Sobre a proposta de análise estrutural
1ª. Parte
I. Doutrinas medievais das distinções
1.A. O ser considerado como tertium quid
1.B. A distinção formal ex natura rei
2. Ato e potência
2.A. Posição unitarista
2.B. Posição essencialista
3.A. A causalidade por ordem recíproca de diversas causas
3.B. A causalidade concorrente não recíproca das causas parciais.
II. Princípios fundamentais do pensamento teológico-filosófico de Ockham
III. Noções básicas da “lógica semiológica” desenvolvida por Ockham
IV. A epistemologia em Ockham
1
2ª. Parte
V. A querela sobre a pobreza franciscana
VI. A concepção de direito natural
VII. Desenvolvimento das noções de direito subjetivo e objetivo
3ª. Parte
VIII. Considerações conclusivas sobre a noção de direito de propriedade em
Ockham e sua repercussão
Bibliografia
Introdução
1. Há poucas datas fixadas com precisão na vida de Ockham.
Data e local de nascimento são apontados, vagamente, como situando-se na
década de 1280, provavelmente no Condado de Surrey, distante um dia de
viagem a sudeste de Londres. Sobre o ingresso na ordem franciscana e os
estudos de teologia em Oxford pouco se sabe. Uma data que se dá como certa
é a da ordenação com subdiácono em Southwark, por Robert Winchelsey,
arcebispo de Canterbury, em fevereiro de 1306, sendo a idade normal para
esta investidura os dezoito anos de idade. Da mesma forma, pode-se supor
que até 1310 ele cumpriu sua formação básica em filosofia, ainda em Londres,
passando ao estudo da teologia, provavelmente já em Oxford, e iniciando a
leitura ou interpretação (Reportatio) das “Sentenças” de Pedro Lombardo,
provavelmente entre 1317 e 1319, concluindo, assim, o bacharelado em
teologia, habilitando-se para a obtenção do grau de mestre.1
1 Cf. William J. Courtenay, “The Academic and Intellectual Worlds of Ockham”, in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 19 ss.
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Em torno de 1321, Ockham foi nomeado professor de filosofia em
uma das escolas franciscanas de Londres, quando então se inicia o período em
que produz suas principais obras de lógica, filosofia natural e teologia. É
quando suas idéias já começam a ganhar notoriedade e também se tornar
objeto de controvérsias, que terminarão ensejando a convocação, em 1324,
para comparecer perante o Papa João XXII, refugiado em Avignon – após a
ocupação de Roma por Luís da Baviera, escolhido imperador pela maioria dos
reis-eleitores do Sacro Império Romano-Germânico, tendo o Papa coroado o
candidatos derrotado, o francês Felipe, o Belo -, sob a acusação de praticar
ensinamentos falsos e heréticos.
A comissão nomeada para examinar a doutrina de Ockham era
integrada por doutores em teologia parisienses, em geral dominicanos, e
apenas um proveniente de Oxford, John Lutterell, sendo quase todos eles de
orientação tomista – o Papa João XXII vinha de canonizar Tomás de Aquino -,
a exceção apenas do dominicano Durand de Saint Pourçain, um simpatizante
da teologia de Duns Scot.2
Na noite de 26 de maio de 1328, com o recrudecimento das
disputas teológicas sobre a pobreza franciscana, juntamente com o superior da
ordem, Miguel de Cesena e outros frades, Ockham foge de Avignon para
refugiar-se junto a Luís da Baviera, inicialmente na Itália, depois em Munique,
onde nosso A. terminaria os seus dias - ao que tudo indica vítima da peste
negra -, em 1347, dedicando-se à elaboração de escritos políticos e libelos
contra o Papa João XXI e seu sucessor, Benedito XII, a quem acusava de
heréticos.
2 Cf. id. ib., p. 25.3
Guilherme de Ockham foi considerado um dos introdutores da
chamada via moderna,3 que conduz o pensamento filosófico para além da
Escolástica medieval,4 diretamente na ambiência moderna,5 isto é, ensejando,
dentre outros desenvolvimentos, a emergência do “paradigma da
subjetividade”. Sua preocupação com a análise lógica da linguagem, por outro
lado, o torna precursor, igualmente, do que se pode considerar a temática
fundamental de nosso tempo, em filosofia.6
Apesar disso, trata-se de um pensador ainda relativamente pouco
estudado, vítima de um “preconceito elevado à segunda potência”, pois tanto é
preterido por ser um autor medieval, como também por não ser um daqueles
3 Já no século XV o epíteto venerabilis inceptor, atribuído a Ockham por não ter atingido o grau de mestre, por razões políticas, aparece ampliado para venerabilis inceptor viae modernae, cometendo-se uma dupla imprecisão: uma terminológica, por confundir “iniciante” com “iniciador”, outra histórica, pois se a via moderna pode ser associada à adoção do nominalismo ou, como em Thomas Bradwardine (+ 1349), à doutrina da predestinação divina, em nenhuma dessas hipótese o pensamento ockhamiano, por mais importante que seja, pode ser considerado pioneiro. Cf. Heiko A. Oberman, “Via antiqua and via moderna: late medieval prolegomena to early reformation thought”, in: “From Ockham to Wyclif”, Anne Hudson & Michael Wilks (eds.) Oxford/New York: Basil Blackwell, 1987, p. 445 ss.4 Segundo Gordon Leff, por seu intermédio, operou-se em verdade uma “transformação do discurso escolático”. Cf. “William of Ockham. The Metamorphosis of Scholastic Discourse”, Manchester: Manchester University Press, 1975.5 Cf., nesse sentido, Hans Blumenberg, “Säkularisation und Selbstbehauptung”, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, pp. 173 ss.6 Para uma aproximação - de resto, no mínimo, temerária -, entre o pensamento de Ockham e a filosofia contemporânea da linguagem cf., v.g., F. Bottin, “La scienza degli occamisti. La scienza tardo-medievale dalle origini del paradigma nominalista alla rivoluzione scientifica”, Rimini: Maggioli, 1982; id. “La scienza secondo Guglielmo di Ockham”, in: “A Ciência e a Organização dos Saberes na Idade Média”, De Boni, Luiz Alberto (org.), Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, pp. 315 ss.; Th. De Andrés, “El nominalismo de Ockham como filosofía del lenguaje”, Madrid, 1969; M. Kaufmann, “Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham”, Leiden: Brill, 1994; C. Panaccio, “Le mots, le concepts et les choses. La sémantique de Guillaume d’Occam et le nominalisme d’aujourd’hui”, Montréal/Paris: Bellarmin/Vrin, 1991; R. Pasnau, “Theories of cognition in the later middle Ages”, Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1997; P. V. Spade, “Thoughts, Words and Things: An introduction to Late Medieval Logic and Semantics, Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1996. É certo, contudo, que provavelmente por influência de Bertrand Russell – o qual em uma obra como “The Problems of Philosophy”, de 1928, se ocupou de questões pertencentes ao campo de investigações ockhamianas -, é comum encontrar entre filósofos analíticos como Wittgenstein, na proposição 5.47321 do “Tractatus Logico-Philosophicus”, ou W. O. Quine, em “Quiddities. An Intermittenly Philosophical Dictionary”, Cambridge: Harvard University Press, 1987, p. 12, referência à “navalha de Ockham”, numa rara concessão a um filósofo medieval.
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que se costuma considerar característicos do período histórico em que viveu –
o que de fato não foi. É assim, por exemplo, que suas obras só na última
década do século XX foram completamente editadas.
Não resta dúvida, contudo, quanto à intensificação dos estudos a
respeito de nosso autor, como se pode constatar a partir da bibliografia abaixo
indicada, que de longe se pretende seja exaustiva, ou então com uma rápida
consulta aos sites de pesquisa da internet.
O estudo da contribuição do pensamento ockhamista à filosofia do
direito, por seu turno, é ainda menos desenvolvido do que aqueles referentes a
outros aspectos deste pensamento, como por exemplo aqueles atinentes à
epistemologia e à teoria dos signos, a semiologia – para a tradição que se
origina em de Sausure - ou semiótica – para a vertente peirceana. Para
verificar essa afirmação, basta consultar as obras mais abrangentes sobre
nosso A., como a de Marilyn McCord Adams,7 observando a ausência de um
capítulo dedicado especificamente ao seu pensamento jurídico.
Mesmo com essa escassez de estudos sobre o aspecto jurídico
da filosofia ockhamiana, a hipótese que se suscita e pretende verificar, no
trabalho aqui proposto, é a de que em decorrência de seus pressupostos
teóricos, seguidos com máxima firmeza e coerência, bem como de fatores
históricos, que levaram Ockham a se engajar prática e teoricamente na política,
foi nesse pensamento que se forjou a pedra de toque da construção moderna
do Direito - e, também, da ideologia predominante em nosso tempo, no que lhe
é mais característico: o individualismo.8
É certo que dificilmente se detectará uma influência direta de
Ockham no desenvolvimento moderno do Direito, pois seus escritos de caráter
7 “William Ockham”, 2 Vols., Notre Dame (Ind.): University of Notre Dame Press, 1987. 8 Cf. L. Dumont, “O Individualismo”, São Paulo: Rocco, 1993, esp. p. 76 ss.
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jurídico se produziram em um contexto teológico-político. A filosofia do direito,
por seu turno, enquanto ramo diferenciado da filosofia, é também uma
aquisição recente, tipicamente moderna. O principal desses escritos
ockhamianos, de relevância jurídica – ou, pelo menos, o que se nos afigura o
mais importante, nesse contexto – é a Opus nonaginta dierum, onde já nas
páginas iniciais, como destaca M. Villey,9 se percebe a passagem do discurso
jurídico romano para aquele moderno. “C’est ici”, comenta o jurista e filósofo
francês (ib.), “que Guillaume d’Occam a eu l’occasion de définir explicitement le
droit subjectif et, problablement le premier, d’en édifier la théorie”.
Por outro lado, se os juristas de então, como os de hoje e de
ontem, desenvolvem sua semântica, tanto jurídica como jusfilosófica, sem
maiores contatos com a produção filosófica em geral, é possível detectar
concordâncias e influências mútuas entre o pensamento escolástico e aquele
jurídico, como demonstra em obra de extraordinário valor Ernst H.
Kantorowicz.10 É assim que o glosador Baldus, a partir de exposições
anteriores de Bartolo e Acúrsio, considerava uma cidade, assim como o gênero
humano “algo universal” (quoddam universale), o que nos evoca associações
imediatas com os Universais dos filósofos e a universitas fidelium, a Igreja
universal dos teólogos e canonistas, uma “pessoa fictícia”, assim como as
universitates, enquanto os Universais, para os nominalistas – inclusive
Ockham, antes de endossar a crítica que lhe dirigiu Walter Chatton -, eram
fictiones intelectuales.
A concepção de universitas, enquanto corpo social fictício que
forma um todo, no qual os indivíduos concretos nada mais são do que partes, é
a representação fidedigna de uma visão que preponderou durante todo o 9 “Seize Essais de Philosophie du Droit”, Paris: Dalloz, 1969, p. 158.10 “Os Dois Corpos do Rei. Um Estudo sobre Teologia Política Medieval”, S. Paulo: Cia. Das Letras, 1998, pp. 185 ss., passim.
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período histórico que antecede a modernidade. Para que esta se instaure, vai
se fazer necessária a erosão daquela concepção, para que emirja a sua
substituta moderna, a societas, reunião de socius. E isso tanto se dará no
plano institucional, como naquele ideológico, onde desempenha um papel de
grande importância a crítica nominalista da noção de universais, que resulta na
defesa da existência apenas de entidades individuais – e, logo, também na
promoção do individualismo, ainda que contra a disposição de seus
defensores, como Ockham.
É com o individualismo e a correspondente noção jurídica de
direitos subjetivos, dentre os quais avulta o direito de propriedade, que se vai
consolidar a idéia de autoria intelectual, favorecida, ainda, pelo aparecimento
de novos meios de reprodução das obras intelectuais, com a invenção da
imprensa. Embora Guilherme de Ockham tenha sido um dos autores mais
beneficiados pela difusão em larga escala de obras impressas, logo que ela
passou a ocorrer, naquele momento ainda não se tinha consolidado o hábito
científico da indicação de fontes, por meio de citações, em autores já do
período que, posteriormente, será tido como “moderno”.11 Daí que, apesar de
podermos rastrear influências de autores medievais em autores já modernos,
assim como de autores medievais mais antigos naqueles mais recentes, fica-se
constrangido, nesse campo, a fazer especulações, caso se pretenda avançar.
Nos debruçaremos, portanto, sobre a gênese de um dos
conceitos jurídicos fundamentais da modernidade, o de direito subjetivo, em
uma dimensão pouco explorada, almejando contribuir para repensá-lo, no
momento em que dele resultou um conceito mais abrangente, o de “situações
11 Curiosamente, na atualidade, em razão do desenvolvimento dos meios de comunicação telemática, por internet etc., presenciamos um comprometimento da noção de autoria.
7
jurídicas subjetivas”, e também se passa a afirmar seu caráter secundário e
subordinado ao direito objetivo.
Vale notar, por outro lado, a revalorização contemporânea da
noção de status, usada para definir, por exemplo, os direitos subjetivos par
excellence, que são os direitos fundamentais. E aquela noção, antes da
modernidade, ocupou a mesma posição destacada que veio a ocupar a de
“direito subjetivo” e outras a ele correlatas, na organização jurídica da
sociedade, antes de enveredar pelo desenvolvimento próprio da nossa, na
modernidade, donde ser pertinente suscitar a hipótese de que esta estaria
fenecendo, juntamente com a idéia que lhe é congenial, de “autonomia da
vontade”, ao tornar-se tardia essa modernidade. É de sua renovação que tanto
necessita o Direito e o Homem, em uma sociedade que já se diferenciou
bastante – e de forma sempre mais veloz continua se diferenciando – em
relação aos modelos concebidos na modernidade, modernidade essa que,
como também se pretende evidenciar no estudo ora proposto, já data de há
muito mais tempo do que se costuma pensar. Não é de se estranhar, portanto,
a circunstância de a sociedade instituída com a modernidade, a sociedade
capitalista ocidental, que por força de sua lógica interna torna-se mundial,
apresente sinais cada vez mais agudos de esgotamento: revigorá-la talvez
requeira um retorno às discussões que a geraram, abordando aspecto tão
fundamental, como é aquele pertinente à formação do conceito de
subjetividade jurídica, onde de forma pioneira se tem uma afirmação da
individualidade e suas prerrogativas.
Daí que é de se esperar, ao final do presente trabalho, de um
lado, contribuir para a ampliação do conhecimento a respeito da filosofia de
Guilherme de Ockham, ao abordar o seu aspecto jurídico, e de outro lado,
8
verificar a possibilidade de se empregar aquela filosofia, a um só tempo
singular e marcada pela preocupação com a singularidade, para refletir
filosoficamente sobre problemas contemporâneos do Direito, dentre os quais
avulta o de se buscar soluções a casos que precisamos considerar em sua
singularidade, por seu elevado grau de ineditismo e pelas elevadas exigências
contemporâneas para realização de pautas normativas as mais diversas.
A seguir, pretende-se, em uma primeira parte, (I) expor
sucintamente o “solo” (para dizer com Ortega y Gasset) em que se fundamenta
o pensamento filosófico ockhamiano, o que pressupõe referir a uma estrutura
que já é transcendental, como só se revelará mais explicitamente em
Descartes e, em toda plenitude, em Kant, mas que será cunhada
fundamentalmente pelo grande antecessor de Ockham na linha agostiniana de
pensamento da Ordem Franciscana, a saber, John Duns Scot. Em seguida, (II)
rememorar os princípios teológicos seguidos por Ockham, bem como (III) as
categorias básicas da “lógica semiológica” por ele desenvolvida e (IV) sua
epistemologia, na medida em que sua concepção política e jusfilosófica se
fundamenta nesses pressupostos filosófico-teológicos mais gerais. Este será o
tema da segunda parte do trabalho, quando se enfocará (V) a chamada
“Querela da Pobreza Franciscana”, para expor como nesse contexto, sobretudo
no enfrentamento de Ockham com o Papa João XXIII, surge por parte daquele
a elaboração singular do conceito de direito de propriedade, que antecipa
aquele moderno de direito subjetivo, (VI) para assim poder examinar o conceito
de direito, natural e objetivo, de nosso A., a fim de, em seguida, (VII) situar a
contribuição específica de Guilherme de Ockham, comparando-a com a de
autores imediatamente anteriores, contemporâneos seus e posteriores, para
então sugerir que se explore o potencial explicativo, na atualidade, do conceito
9
de “direito subjetivo” e outros a ele correlatos, tal como desenvolvidos
originalmente no âmbito do pensamento ockhamiano, ao incluir a noção de
“singularidade”, tanto na filosofia jurídica, como também em filosofia política e
moral, e então, por fim, (VIII) examinar mais detidamente o conceito de direito
de propriedade em nosso A. Antes de passarmos ao estudo propriamente de
nosso assunto, cabe expender, ainda em sede introdutória, algumas
considerações metodológicas.
2. Entendemos que toda exposição parte de pressupostos,
pressupostos estes que, dependendo do campo do saber, serão axiomas,
postulados, hipóteses ou mesmo dogmas, como ocorre mais freqüentemente
em teologia e em Direito, mas também em filosofia, considerando como
dogmata o conjunto de teses em que se sustenta uma doutrina ou sistema
filosófico.12 Em se tratando de uma exposição filosófica, tais pressupostos
assumem características peculiares, decorrentes da própria natureza deste tipo
de saber, a filosofia. A filosofia – e eis aí enunciado já um de nossos
pressupostos – é um saber incerto de si mesmo, se comparado com os
12 Nesse sentido, Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”, in: id., A Religião de Platão, trad.: Ieda e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: DIFEL, 1963, p. 139. Também, com apoio em E. Husserl, pode-se considerar a postura dogmática como a única alternativa que se apresenta a quem acredita na possibilidade de um acesso à verdade pelo conhecimento, repelindo o ceticismo - cf. Philippe van den Bosch, “A Filosofia e a Felicidade”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 14, texto e nota, e p. 256. Por fim, com apoio em Tercio Sampaio Ferraz Jr. – cf., v.g., "A filosofia como discurso aporético", in: A Filosofia e a Visão Comum do Mundo, em colaboração com Bento Prado Jr. e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo: Brasiliense, 1981 -, pode-se indicar o caráter dogmático da filosofia como equivalente à natureza aporética, paradoxal, das questões que ela tipicamente coloca, enquanto questões reflexivas, circulares, que remetem a si mesmas, tal ocorre com a questão sobre o que é a filosofia, a qual já pressupõe a própria filosofia, enquanto discurso sobre o que é o ser dos entes: a filosofia só pode ser praticada com base numa concepção do que seja fazer isso, filosofar, o que por sua vez é um fator determinante do conteúdo e resultado desse filosofar. Atribuir uma tal natureza à filosofia, dogmática, note-se bem, não é o mesmo que condená-la ao dogmatismo, o que só acontece quando há a recusa em discutir os dogmas, tornando-os imunes à crítica. Um passo importante para prevenirmo-nos do dogmatismo em filosofia seria justamente essa assunção do caráter dogmático da filosofia, ao invés de tentar mascará-lo, insinuando possuir uma resposta verdadeira e definitiva quando apenas se erigiu um dogma, uma tese.
10
demais, desde aquele do senso comum até o das ciências, passando por
aqueles de natureza mágica ou mítica, religiosa e artística. Mas nesta
fragilidade reside, ao mesmo tempo, a grandeza da filosofia, visto que advém
de seu compromisso radical com a criticidade, com a problematização total,
que leva a que ponha e reponha até a si mesma como problema a ser
enfrentado, dependendo dos resultados deste enfrentamento o modo como se
procederá em seu âmbito uma investigação. Desnecessário lembrar que os
pressupostos aqui apresentados o são para serem discutidos e, se for o caso,
retificados ou, mesmo, abandonados, sendo esta disposição para revisar seus
pressupostos uma das características de um saber que se pretenda
consentâneo à Civilização tecnocientífica em que vivemos. É para favorecer a
crítica, portanto, que se busca explicitar – e assumir – os pressupostos por nós
assumidos
É de uma perspectiva filosófica mais geral, situada no âmbito do
que em estudos anteriores propusemos se considerasse uma “filosofia da
filosofia”,13 que, em seguida, passamos a expender algumas considerações
preliminares sobre a própria natureza dos pressupostos de um conhecimento
filosófico, em contraste com aquele das ciências, sejam elas explicativas,
empíricas ou formais, sejam compreensivas, como costumam ser aquelas mais
voltadas para o fenômeno humano. Propomos que os pressupostos filosóficos
não são axiomáticos, hipotéticos nem muito menos dogmáticos, donde se
poder ainda diferenciar um campo específico de investigação para a filosofia.
Também não seria característico do pensamento filosófico uma natureza
conjetural, que o tornaria uma espécie de pensamento pré-científico, composto
por assertivas plausíveis, a espera de comprovação. Nossa proposta é de que 13 Cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho, Para uma Filosofia da Filosofia. Conceitos de Filosofia, 2a. ed., refundida, Fortaleza: Programa Editorial Alagadiço Novo da Casa de José de Alencar (Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará), 1999.
11
os pressupostos filosóficos, assim como uma investigação que a partir deles se
pretende desenvolver, configuram-se dentro de uma tradição que remonta aos
chamados “filósofos pré-socráticos” e se mantém perceptível até o presente,
caracterizada por seu caráter originário, quer dizer, forçando um pouco nossa
língua para ser mais fiel ao modo originário de expressão dessa idéia,
“principial”, do latim princeps, enquanto tradução do grego arché, donde se
poder denominar essa característica peculiar da investigação filosófica, tal
como certa feita propôs Martin Heidegger, de “arcôntica” (archontisch).14 Em
filosofia, portanto, em qualquer tema investigado, seja levando em conta o
passado, seja situando-se em uma perspectiva sincrônica, há de se buscar as
determinações fundamentais das questões que se coloca, as quais
permaneceram presentes nas respostas a serem dadas. Além disso, essas
respostas devem ocorrer nos moldes de um quadro explicativo que lhes dá um
sentido mais abrangente, enquanto parte de uma explicação que se pretende
integral, do modo como se articula o conjunto dessas partes em um todo
significativo. É assim que, para Manfredo Araújo de Oliveira, “a filosofia se
distingue das ciências particulares à medida que ela considera as coisas (os
particulares) em seu relacionamento com o todo, à medida que pretende
mostrar a presença do todo em todos os particulares. Sua tarefa é reconhecer
o todo no particular (para usar uma expressão de Schelling)” (grifos do A.). 15
14 Cf. M. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, Walter Bröcker e Käte Bröcker-Oltmanns (eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26.15 A Filosofia na Crise da Modernidade, São Paulo: Loyola, 1989, p. 157. Xavier Zubiri atribui a Aristóteles a primazia na identificação disto que se pode denominar a “catolicidade” da filosofia, ao se propor a estudar seu objeto em sua universalidade, e universal não apenas em seus conceitos, mas também no sentido de abarcar a totalidade das coisas, entendendo cada uma de acordo com seu lugar na totalidade dela. Cf., deste A., Cinco lecciones de filosofia, Madri: Alianza, 7a. reimpr., 1999, p. 30; id. Sobre el Problema de la Filosofía y otros Escritos (1932 – 1944), Madri: Alianza/Fundación Xavier Zubiri, 2002, pp. 38/39; v. tb., sobre os diversos sentidos da “catolicidade” em Aristóteles, Oswaldo Porchat Pereira, Ciência e Dialética em Aristóteles”, São Paulo: Ed. UNESP, 2001, pp. 152 ss.
12
Do que se trata, afinal, como preconizam autores da tradição
francesa - recepcionada diretamente no Brasil por seus discípulos em São
Paulo -, a exemplo Martial Guéroult, Victor Goldschmidt e Gilles-Gaston
Granger, é de buscar nos autores, escolas e suas doutrinas filosóficas sua
contribuição para que se delineie “um quadro de interpretação significativa para
a totalidade da experiência”.16
3. O que se empreende a seguir é resultado de uma análise
estrutural, tal como proposta pelo professor suíço, da Universidade de
Lausanne, André de Muralt.17
A abordagem muraltiana, por ele mesmo denominada analítica e
estrutural, é também - e, ao nosso ver, primeiramente - genética, ou, como
propomos acima, “arcôntica”, tal como a própria filosofia. Isso porque as
estruturas analisadas nas diversas doutrinas filosóficas se fariam presentes, de
maneira mais clara, desde a primeira grande síntese – e, logo, literalmente, a
primeira grande depuração - do pensamento filosófico, aquela aristotélica,
podendo se encontrar formas embrionárias dessas doutrinas nos pensadores
que o antecederam, bem como nos seus contemporâneos e pósteros. Após a
sua explicitação, em Aristóteles, as diversas doutrinas filosóficas que se
sucederam, assim como outras formas de pensamento que entraram em
16 Cf. Paulo Eduardo Arantes, Um Departamento Francês de Ultramar, São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 127. Note-se, com relação, pelo menos, a Guérolt e Granger, que se está a referir a posições que sustentavam no período em que Goldschmidt igualmente defendia sua postura metodológica de análise estrutural em filosofia.17 As fontes principais para se conhecer o método desenvolvido por este autor, bem como os resultados a que chegou, aplicando-o à filosofia teorética, com ênfase no período medieval, são as seguintes: L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já para a filosofia prática e política, a referência é a obra publicada originalmente em 2002, La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández Polanco, Madri: Istmo, 2002.
13
contato e se mesclaram com a filosofia, de natureza religiosa ou científica, vão
se constituir por sobre essas estruturas, que são fundamentalmente duas,
apoiando-se ora de maneira quase exclusiva sobre uma delas, ora sobre
ambas, em maior ou menor medida. Como elementos básicos dessas
estruturas tem-se a distinção aristotélica, proposta para a compreensão
racional ou intelecção da realidade substancial em si mesma indiferenciada,
entre o que nela é forma e o que é matéria. Os entes singulares, todos e
quaisquer, seriam transcendentalmente compostos de matéria e forma,
considerando-se como transcendental, pelo sentido etimológico mesmo, a
relação que as atravessa (de transcendere) e vincula, embricando-as.18 Para
de Muralt, a diversidade de posições adotadas pelas mais variadas doutrinas
do pensamento, filosófico ou não, de corte ocidental, está fundamentalmente
determinado pelo modo diferenciado como cada uma delas solucionará o
problema da articulação de forma e matéria, enquanto elementos básicos da
realidade, ou do modo de compreendê-la que é próprio da metafísica, seja
como ontologia, estudando as manifestações do ser em ação, em seu devir,
seja como teologia, estudando o ser como origem imutável de toda ação e
transformação. As duas estruturas fundamentais são as seguintes:
(A) A estrutura transcendente, que denominamos assim por ser
aquela que se constitui a partir da unidade transcendental de
forma e matéria no ente, considerando-se essa unidade nos
entes singulares como anterior à própria articulação desses
dois elementos que os compõem, os quais só se distinguem
por meio da análise teórica, racional e abstrata, feita sobre os
entes concretos. Essa estrutura é a que se vincula
18 Cf. A. de Muralt, Néoplatonisme et aristotélisme, cit., p. 55.14
tradicionalmente a Aristóteles, especialmente após os
desenvolvimentos tomistas de seu pensamento.
(B) A estrutura transcendental, que assim denominamos por sua
origem na metafísica escotista, desenvolvida como
comentário a Aristóteles, mas tendo como objeto o que o
Doctor Subtilis denomina de “transcendentais”, enquanto tudo
aquilo que transcende o ser finito, no sentido de ir além dele,
participando do ser infinito, sendo comum a ambos, ou
exclusivo deste último.19 A origem mais remota desta estrutura
se encontra em Platão ou, antes, no pitagorismo, estando
também presente no neoplatonismo de Plotino ou de Santo
Agostinho. É em Scot, contudo, que se revelará em sua
plenitude esta estrutura, culminando um desenvolvimento que
tem sua origem mais próxima no perspectivismo oxfordiano
de Roger Bacon (1214/1220 – 1293?), recepcionando os
trabalhos de ótica de árabes como Alhazen (965 – 1039) e
dali extraindo conseqüências gnosiológicas que
amadurecerão em Scot, resultando em seu conceito original
19 Cf. Duns Scot, Quaestiones Subtilissimae in Metaphysican Aristotelis, prólogo, n. 5, in: id. Escritos Filosóficos, trad. e notas Carlos Arthur R. do Nascimento e Raimundo Vier, São Paulo: Abril, 1979, p. 339 e, ali, nota 1. Os transcendentais, tematizados já por Aristóteles, deve sua elaboração medieval mais bem acabada, segundo A. de Muralt, inicialmente, a Santo Tomás, no De veritate, q. 1, a. 1. As “metafísicas dos transcendentais”, no sentido em que a elas se refere Muralt, na ob. ult. cit., p. 18 ss. – v. esp. p. 22 -, têm em Scot uma elaboração paradigmática, e se caracterizam por atribuírem a algum dos transcendentais o papel de definir o ser, o que não aparece na estrutura aristotélico-tomista. É assim que, na continuação desta obra, o precitado A. postulará só haverem dois tipos de metafísicas fundamentais (ou estruturas), aquelas do ser, transcendentes, como a aristotélico-tomista, que então seriam sobretudo ontológicas, e as diversas “metafísicas do Um”, dos transcendentais, mais teológicas – no sentido aristotélico, bem entendido. Curiosamente, Muralt vinculará sua proposta de análise das estruturas de pensamento, à estrutura (mais propriamente) aristotélica, aquela que denominamos transcendente, visto ser ela “um instrumento de caráter autenticamente filosófico” – cf. id. ib., p. 54 -, uma vez que “permite a compreensão das obras do pensamento humano na sua unidade e sua ordem própria” – id. ib., p. 53, grifos do A. -, ou seja, naquela perspectiva de “catolicidade” antes mencionada. .
15
de intentio.20 No que tange o problema da forma e matéria,
pela distinção formal a parte rei ou ex natura rei (pela
natureza das coisas), em Scot ambas são separadas
entitativamente, por considerá-las como dois entes que são
em si e por si mesmos, independentemente um do outro, e
antes mesmo de se articularem para daí resultar algum outro
ente, em relação ao qual são como partes de um todo.
Examinemos agora, brevemente, o modo diverso como nas duas
estruturas, a partir de suas determinações fundamentais, se resolvem
problemas tipicamente gnosiológicos e ontológicos, isto é, filosóficos.
1ª. Parte
I
1. As disputas medievais sobre as distinções se dão “historialmente”21 na
Europa desde o século XII até pelo menos meados do século XVIII, enquanto
ainda houve quem se dedicasse explicitamente à construção de sistemas
metafísicos, pois não há como imaginá-los sem uma teoria ou, pelo menos,
uma tomada de posição sobre as distinções. Vejamos como a questão aparece
em cada uma das estruturas fundamentais acima apresentadas.22
20 Cf. Matthias Kaufmann, Begriffe, Sätze, Dinge. Referenz und Wahrheit bei Wilhelm von Ockham, Leiden et al.: Brill, 1994, pp. 200 ss.; Katherine Tachau, Vision and Certitude in the Age of Ockham, Leiden: Brill, 1988, pp. 58 ss.; sobre Alhazen, recentemente, entre nós, Roberto Hofmeister Pich, “Subordinação das ciências e conhecimento experimental. Um estudo sobre a recepção do método científico de Alhazen em Duns Scotus”, in: Luis A. De Boni e id., “Recepção do Pensamento Greco-Romano, Árabe e Judaico pelo Ocidente Medieval, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 573 ss.; já sobre Roger Bacon, cf. Carlos Arthur R. do Nascimento, De Tomás de Aquino a Galileu, Campinas (SP): IFCH/UNICAMP, 1995, p. 101, passim.21 Empregamos o neologismo para distinguir o que é da ordem meramente histórica, do acontecido, registrado e catalogado em épocas pela ciência da história, daquilo que se dá em um “tempo lógico”, para referir a expressão goldschmidtiana, no estudo citado anteriormente.22 Cf. A. de Muralt, L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., pp. 47 ss., bem como o resumo feito por Francisco León Florido e Valentin Fernández Polanco no Estudio introductorio, in: A. de Muralt, La estructura de la filosofia política moderna, cit., pp. 16
16
1.A. Na estrutura transcendente o ser é considerado o tertium quid
comum, ao qual se pode remeter qualquer assertiva, donde poder ser dito de
diversas maneira (pollakos), através das categorias (kategorein), enquanto os
diferentes modos de um ser que só se mostra (dêixis), desde si mesmo (apo), e
por si mesmo (kat´auton), neste dizer-se racionalmente ou “raciocinante”
(analogismos), unificador e “decodificador” (analego). Na concepção mais
propriamente aristotélica, o ser é simultaneamente uno e múltiplo, fundando
sua unidade na identificação com a existência, que não nem uma realidade em
si nem uma idéia a parte das substâncias concretas existentes, mas sim o
surgir de cada ser que é, o nascer de cada ente, a physis ou “nascividade”,23
como um todo sem partes, um composto indivisível de matéria e forma. A
unidade do ser consiste, assim, na continuidade dos processos da existência
aos quais se denominava “natureza” (physis), já entre os pré-socráticos ou,
como Aristóteles mesmo a eles se referia, os “fisiólogos”. A distinção entre
forma e matéria, assim como qualquer outra, em relação aos seres naturais,
será uma “distinção da razão”, para efeito de análise lógica, lingüística, do que
na realidade é uno e indissociável em sua atividade e existência. Do mesmo
modo, o conhecimento e a vontade, as duas potências da atividade do ser
humano, se encontram submetidas a estas exigências de unidade,
estabelecidas naturalmente no âmbito de sua atuação, em relação aos objetos
aos quais se dirigem. Estes, no campo do conhecimento, teorético, com o
predomínio das faculdades noéticas, tornam-se conceitos, e naquele prático ou
político, com o predomínio da vontade, tendem para o bem.
ss.23 É este o termo que Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski sugerem que se empregue para traduzir a noção fundamental, originariamente pré-socrática, de physis. Cf. Os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito, trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski, Petrópolis: Vozes, 1991.
17
1.B. Na estrutura transcendental, com a proposta de distinção formal ex
natura rei, em contraposição às distinções reais e de razão – ou “superando
dialeticamente” esta contraposição, enquanto verdadeiro tertium quid -24, a
consideração da forma passa a se impor sobre aquela da matéria, assim como
o intelecto sobre a natureza e a vontade sobre seu objeto. Isso porque aí o
intelecto não se dirige mais naturalmente ao conhecimento das coisas a serem
conhecidas, passando a criar seu próprio objeto de conhecimento, sem relação
necessária com a realidade em si daquilo a que representa, tal como é no
mundo, na natureza, visto que agora importa mais a consideração do efeito
modificador que sofre o intelecto com sua própria atividade. A melhor
expressão do novo modo de conhecer seria a doutrina do ser objetivo (esse
objectivum), contido no intelecto, o qual representa mais sua atividade subjetiva
do que o ser dos entes. Assim, cada elemento do todo que a análise lógica
detecta nas coisas termina adquirindo seu próprio ser, o qual, no entanto, já
não pode ser substancial, existindo como unidade de forma e matéria, mas tão-
somente formal, ser objetivo, recebendo seu ser da atividade intelectiva pela
forma, analítica e dedutivamente, more geometrico.25
24 Cf. A. de Muralt, L´enjeu de la philosophie médiévale, loc. ult. cit.25 De Muralt destaca ainda que, na esteira de sua inadvertida alteração da doutrina propriamente aristotélica das distinções, com a introdução da distinção ex natura rei, Duns Scot dá ensejo, igualmente, a uma concepção nova da definição, que se fará mais abstrata do que aquela feita por gênero próximo e diferença específica, própria do procedimento indutivo e empirista empregado normalmente na metafísica aristotélica. Como na concepção escotista o objeto de conhecimento é in esse rei tal como está constituído in esse objecti (ou in esse cogniti), não importando –o que ficará de todo evidente em Guilherme de Ockham -, para conhecê-lo, que haja vínculo com objetos reais, entende-se que esteja aí o ponto de partida para a metafísica especulativa dedutivista que será elaborada, exemplarmente, por Francisco Suárez, no século XVI, que tanto veio a influenciar o racionalismo cartesiano como também, via Leibniz e Wolff, a Kant ou até a concepção dialética hegeliana e os seus adeptos, materialistas ou não, sendo, portanto, a verdadeira matriz de todo o pensamento moderno, já não mais metafísico em sua intenção, mas construído segundo os mesmo princípios arquitetônicos concebidos por Scot, desenvolvidos, entre outros, por Ockham e praticados, exemplarmente, por Suárez. Cf. A. de Muralt, ob. ult. cit., pp. 85 ss. Essa mesma “dialética das formas e da matéria” será aplicada ao campo do direito, já em Scot, depois de maneira mais extensa em Ockham, culminando com o aporte de Suárez, como demonstra a obra fundamental de Michel Bastit, Naissance de la loi
18
Ao mesmo tempo, no campo da “razão prática”, do esse objectivum
prático, do bem a ser feito (bonum faciendum), o objeto desejado, esse
volitum,26 se concebe como já contido na vontade que o busca, de modo que
esta vontade se revela como querendo a si mesma, como “vontade de
vontade”. É assim que, uma vez operada a distinção formal, não se concebe
mais o intelecto como tendendo naturalmente à verdade, enquanto sua matéria
própria, passando a transformar o objeto em verdadeiro já pelo simples fato de
inteligí-lo, da mesma forma que a vontade não deseja o bem porque seu ser
nela repousa, mas antes é ela que converte em bem o que por ela é desejado
e imposto como lei.
2. A existência, na física e na metafísica aristotélicas, além da unidade
de matéria e forma, pressupõe também o movimento e a transformação do que
existe, sem que isso resulte, como entre os eleatas, nas aporias que indicariam
a impossibilidade do movimento e da mudança, por significarem uma
passagem do ser ao não-ser. É nesse contexto que um novo par de conceitos
metafísicos é introduzido, a saber, aquele de ato e potência, acarretando novas
possibilidades e divergências doutrinárias.
2.A. O ser concebido em atividade, no âmbito da estrutura
transcendente, pressupõe a unidade no ser dos entes singulares,
substancialmente indissolúvel, entre ato e potência, assim como entre forma e
matéria, conceitos que são irredutíveis entre si e discerníveis apenas para
efeito de análise lógica. Cada ente, além de ser um composto substancial de
forma e matéria, ao movimentar-se, demonstra também a unidade de ato e
potência, podendo ser conhecido, individualmente, em seu ser ou substância
una, e universalmente, sob o aspecto da unidade de tudo o que é, enquanto
moderne, Paris: PUF, 1990.26 Cf. Id. Ib., p. 43.
19
natureza, isto é, o que é comum: a existência. O instrumento privilegiado deste
modo de conhecer, na concepção mais propriamente aristotélica, não é a
lógica, cujas formas se imporiam à natureza, sendo antes, ao contrário, as
exigências desta, dos campos naturais de objetos suscetíveis de serem
conhecidos, que forjam, por analogia, as formas conceituais adequadas ao
conhecimento do que é comum, da natureza de tudo o que é.
2.B. Na estrutura transcendental, a essência do que é se define como
um atributo, uma qualidade que o diferencia do não-ser, de modo que os entes,
ao serem, possuem ipso facto a existência, a unidade, a verdade e o bem,
qualidade de tudo o que é pelo fato de ser. Nessa consideração essencialista,
torna-se viável a distinção dos atributos do ser, concebidos como existindo
independentemente enquanto idéias ou formas puras, o que patrocina a análise
formal e o método dedutivo. Estamos diante de uma herança platônica, que
será recuperada pela filosofia escolástica, quando Deus passa a ocupar o lugar
do ser supremo, enquanto as idéias contidas em seu intelecto seriam os
atributos transcendentais convertidos ao ser mesmo. Já o poder criador da
divindade é que abriria a possibilidade de uma participação dos entes nessas
qualidades, divinas, especialmente através daquele ente que foi criado à sua
imagem e semelhança. Então, assim como as idéias do intelecto divino tendem
a substancializar-se, “entificando-se”, no intelecto humano o ser objetivo das
idéias tornam-se independentes de seu ser formal, donde resulta que, da
consideração essencial do ser, se chega ao estabelecimento de um princípio
que define de antemão, a priori, o que é, como o que deve ser, em obediência
a um tal princípio – inicialmente, divino ou “sobrenatural”, e, na modernidade,
passa a ser o sujeito, seja o do cogito cartesiano, seja o sujeito transcendental
legislador kantiano, ou husserliano, que na contemporaneidade será ainda o
20
sistema da linguagem como lógica, no “primeiro Wittgenstein”, ou como forma
de vida, no “segundo Wittgenstein”, e, até, ainda a título exemplificativo, o
inconsciente do texto em Derrida.
3. Para fazer uma última consideração dos elementos anteriormente
referidos, os quais foram definidos em oposições e posições diversas em cada
uma das duas estruturas fundamentais do pensamento, não se pode deixar de
verificar o modo como esses elementos – o sujeito e a realidade por ele
conhecida, o objeto e a coisa por ele representado, a vontade e o fim por ele
almejado, o poder e a lei por ele estabelecido etc. – operam naquelas
estruturas, o que significa verificar suas conexões de causa e efeito, como são
concebidas em cada uma das duas estruturas.
3.A. Na estrutura transcendente, da ortodoxia aristotélica, concebe-se
uma causalidade por ordem recíproca de diversas causas, sem que haja
hierarquia entre elas, sendo a divisão entre as que se privilegiará feita em
função do tipo de investigação a ser levada a cabo. Daí que as causas
eficiente, final, material e formal intercambiarão seus papéis, a depender do
ângulo que se examine a fixação das mesmas, em relação ao seu substrato
comum, o hypokheimenon, que sempre se fará presente e atuará como
unidade homogênea inalterável pelos movimentos recíprocos das causas que
sobre ela incidem. Assim, a alma, para os antigos, ou Deus, para os medievais,
podem ser consideradas como causas eficientes, quando iniciam,
respectivamente, o movimento da abstração ou da criação, um então como
causas finais, já que as formas anímicas aperfeiçoam o ser das coisas, assim
como Deus é tido como o objeto a que aspira o intelecto e deseja a vontade.
Alma e Deus podem operar ainda, indistintamente, como causa formal e
material, e isso não porque possuam forma e matéria, mas sim por haver neles
21
as formas que serão adquiridas na mudança do ente considerado como
potência (causa formal), em sua passagem ao ato, movido materialmente por
uma alma ou por Deus (causa material).
3.B. Na estrutura transcendental, introduzida de maneira sub-reptícia por
Duns Scot, julgando-se um aristotélico da mais estrita observância, a rebater
com Aristóteles as posições tidas como exclusivamente aristotélicas do
tomismo, ocorre o que Muralt considera “uma revolução filosófica que se
ignora, quando se trata, certamente, da única revolução doutrinária digna deste
nome que se produziu na história do pensamento ocidental”.27 Esta revolução,
responsável maior, no plano das idéias, pelas transformações radicais que
resultaram no mundo tal como hoje o temos, com o que nele há de melhor e
pior também – e, assim, tanto em um caso como no outro, o que nele há de
grandioso -, mostra-se em toda evidência na doutrina da causalidade
concorrente não recíproca das causas parciais, a qual minará os fundamentos
da construção do saber antigo e medieval, de cunho propriamente aristotélico,
criando as condições subjetivas para o aparecimento da ciência e de tudo o
que é mais característico da modernidade, também em termos políticos, éticos
ou jurídicos.28 Isto porque, como destaca Hannah Arendt, em passagem já
clássica de sua obra maior, que restou incabada,29 em Duns Scot inverte-se a
relação entre o intelecto e a vontade, pois enquanto Tomás de Aquino afirmava
a subserviência desta última àquele, Scot, igualmente com apoio em
Aristóteles, mas partindo de sua pré-compreensão agostiniana e franciscana,
afirmará o primado da vontade frente ao intelecto, em um ser finito, capaz de,
apesar disso, por força de sua vontade, chegar a conceber o infinito, Deus,
27 L´enjeu de la philosophie médiévale, cit., p. 118.28 Cf. id. ib., pp. 39 s.29 Cf. A Vida do Espírito: o Pensar, o Querer, o Julgar, 2a. ed., trad.: Antônio Abranches et al., Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993, vol. 2, cap. 3, n. 12, pp. 280 ss.
22
alcançando uma liberdade, pela autonomia da vontade, que só encontra limite
na negação do ser como um todo, ou seja, no nada, o “querer-não-querer” ou
“vontade-de–nada”, concebível apenas nos quadros do nihilismo já mais que
moderno, “pós-moderno”.
A inovação na estrutura de pensamento “escotista”, como a este
segundo tipo de estrutura fundamental costuma aludir de Muralt, em termos de
concepção de causalidade,30 decorre da consideração do ser como diverso de
um tertium quid na composição de todo ente, assim como no transcurso de
todo movimento. Nesse contexto, Deus já não possui nenhuma função
material, tornando-se uma hipótese metodológica, não-necessitarista, por
inescrutável e (concorrentemente) contingente, para nós, a sua vontade
soberana. As causas, então, passam a ser ordenadas formalmente, quer em
uma hierarquia que se considera estabelecida de potentia absoluta Dei, quer
de acordo com uma ordem estabelecida arbitrariamente pela vontade de
conhecer – ou de poder. Se sujeito e mundo já não estão vinculados
naturalmente, só restam para serem conhecidos os objetos, a forma de ambos.
Se a vontade e o fim por ela almejado não estão mais unidos, pelo amor, só
resta um desejo arbitrário que pode se dirigir a objetos quaisquer, seja para
conhecê-los, seja para dominá-los, o que na modernidade, por exemplo, em
um Francis Bacon, logo será considerado como praticamente o mesmo. Se o
poder já não tem constrangimentos impostos pelo bem como fim que justifica o
seu exercício, só resta a lei que obriga sem limitações ou necessidade de
maiores justificativas, já que sua força arbitrária provém do simples fato de
estar na lei mesma a sua origem. Isso porque objeto do conhecimento, vontade
arbitrária de agir e lei imposta do agir são, afinal, considerados efeitos do
30 Cf. id. ib., pp. 32 ss.; 321 ss.; 331 ss.; passim.23
concurso simultâneo de causas indiferentes ao que causam, nas quais já não é
possível discernir o que é forma e matéria, eficiência e finalidade, estando
todas reduzidas a uma só causa, que é formal, mas não como aquela que
corresponde a uma matéria determinada, e é eficiente, mas não como aquela
que corresponde a uma certa finalidade, pois é a causalidade mecanicista, dos
impulsos, choques e trajetórias que, quando conhecidos enquanto causas,
explicam que e como (hoti, “quia”) se deu algo, mas não por que (dioti, “propter
quid”) se deu. Eis a origem do formalismo, tão característico do pensamento
moderno, cuja crítica, por assim dizer, imanente, será feita de maneira
estarrecedora, na última grande obra de Husserl,31 como denúncia de um
verdadeiro suicídio coletivo que estaria cometendo a “humanidade européia”, e
que hoje presenciamos como ameaça ao conjunto da humanidade.
É assim que o objeto do conhecimento passa a ser concebido
diversamente. Nesse contexto, merece destaque o papel desempenhado por
Guilherme de Ockham, cujo pensamento, como é sobejamente conhecido,
descende diretamente daquele de Scot, mas introduzindo variações que, no
entender de Muralt, darão suporte a posições também da tradição
(aristotélico-)tomista, indo reverberar, por influência de seus professores
parisienses, com Jean Gerson à frente, naqueles que integrarão a escolástica
espanhola do século XVI, com destaque para o Pe. Suárez (1548 – 1617), com
sua “tentativa sincrética de restauração aristotélica” (-tomista, WSGF), apesar
de vinculada à “tradição scotiana”.32 Para Ockham, o conhecimento resulta da
ação, simultânea ou não, do ente extramental ou da vontade divina, absolutos
que co-existem sem qualquer relação necessária, donde permitir sua
31 Cf. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, editado por W. Biemel, La Haya: Martinus Nijhoff , col. Husserliana, Vol. 6, 1962.32 Id. ib., p. 41.
24
epistemologia “a co-existência sistemática de uma lógica do nome conotativo,
efetivamente `nominalista´, de uma crítica `psicologista´ do conceito e de uma
filosofia `voluntarista´ da liberdade”.33 Vejamos a seguir o significado disso, em
maiores detalhes.
II
O pensamento teológico de Ockham – e tenhamos em mente que, com autor
(ainda)_ medieval, era essenclalmente um teólogo - orienta-se por três
princípios fundamentais:34 o princípio da onipotência divina, o princípio da não-
contradição e o princípio da economia. O primeiro desses princípios,
naturalmente, vale apenas para a divindade: Deus é absolutamente livre para
fazer o que bem entender – exceto o que for contraditório com o que já tenha
feito ou criado anteriormente. Então, o segundo princípio enunciado vincula a
própria divindade e, com mais razão ainda, haverá de vincular a humanidade.
Já o terceiro princípio, o qual se refere à chamada “navalha de Ockham”, deve
ser obedecido apenas por nós, a fim de evitarmos criar conceitos
desnecessários para conhecermos a realidade: a Divindade, que é livre para
criar tanto os conceitos como a própria realidade a que se referem, sempre
poderá multiplicá-los e reinventá-la a seu bel-prazer.
Pelo princípio da onipotência divina, tudo provém de Deus, até o que
para nós, por uma deficiência nossa, é mal e pecado, pois Ele, ao contrário de
nós, não é devedor de ninguém – nullius est debitor.35 Em sendo assim, Ele
33 Id. ib., p. 42. V. tb., ib., pp. 153 ss. e, esp., 167 ss.34 Para uma exposição da vida e obra de Ockham, v. a “Introdução” de C. R. de Souza e Luis A. De Boni em “Brevilóquio sobre o Principado Tirânico”, Ockham, Guilherme de, trad.: Luis A. De Boni, Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 11 ss.35 A não ser que Ele mesmo se comprometa com alguém, como anota Marylin MacCord Adams, em “Ockham on Will, Nature, and Morality” in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 264.
25
não peca, por não estar obrigado em relação a ninguém a fazer o que é bom e
não é pecado.36 A rigor, portanto, Deus nem é moralmente bom nem mal.37
36 Cf. Ockham, Opera theologica, G. Gál/St. Brown et al. (eds.), New York: St.
Bonaventure Institute, 1967 -, vol. VII, p. 45; Id., Quodlibeta, III, q. III, tb. in Coleção
“Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, São Paulo:
Abril Cultural, 2ª ed., 1979, p. 403 e in id. “Philosophical Writings. A Selection”,
Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), New York: St. Bonaventure
Inst., 1990, p. 131. V. ainda J. Beckmann, “Wilhelm von Ockham”, Munique: Beck,
1995, p. 36.
37 Cf. Marilyn MacCord Adams, ob. ult. cit., p. 272, nota 140.26
A este princípio vai, então, corresponder um outro, que podemos
denominar “(sub)princípio da contingência”, pelo qual só Deus é
necessário, sendo tudo o mais contingente, inclusive o mundo como um
todo, que seria apenas um dos infinitos mundos possíveis. Que este
mundo exista, depende absolutamente de Deus: a onipotência de Deus é
condição necessária (conditio sine qua non) da existência do mundo,
sendo, por outro lado, condição suficiente (conditio per quam) de que ele
seja e permaneça como é, que essa potentia absoluta atue segundo uma
determinada concepção, de forma ordenada – como potentia ordinata,
portanto.38
Um outro (sub)princípio, correlato tanto ao princípio da onipotência
divina, do poder infinito de Deus, como ao (sub)princípio da contingência, será,
então, o (sub)princípio da finitude da razão humana. As razões de Deus para
criar o mundo tal como o conhecemos, ou para alterá-lo, não nos são
acessíveis, pois nossa capacidade de compreensão das coisas, tal como elas
próprias, é criada e contingente: fora Deus, que é necessário, tudo o mais pode
se tornar diferente, ou ser diferente do que pensamos.39 Quão distante
38 A noção de potentia ordinata, assim como aquela de potentia absoluta, como é sabido, não são de maneira alguma originárias de Ockham, pois são mencionadas por diversos de seus predecessores, inclusive Tomás de Aquino, embora em poucos – e um desses seria Petrus Johannis Olivi -, tenha assumido a significação central que lhes consagra Ockham, com implicações teológicas que estão na base da própria querela sobre a pobreza franciscana. Cf. Volker Leppin, “Geglaubte Wahrheit. Das Theologieverständnis Wilhelm von Ockham”, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1995, p. 123 ss. A distinção entre as duas formas da potência divina é feita em termos jurídicos por Duns Scot, considerando aquela ordinata em um sentido literal, como de acordo com regras, estabelecidas pela própria divindade, e que só ela poderia descumprir, estabelecendo outras, de potentia absoluta. Cf. Marilyn McCord Adams, “William Ockham”, vol. II, Notre Dame (Ind.): University of Notre Dame Press, 1987, p. 1190 ss. Ockham fará extenso uso da concepção jurídica aí implicada, conforme veremos adiante.39 Já o conhecimento de Deus, ao contrário, é perfeito e completo, abrangendo mesmo
os fatos futuros contingentes, posto que cabe a Ele determiná-los, e Ele conhece as
coisas antes de criá-las – “Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...”. 27
deixamos, então, o necessitarismo parmenídeo-platônico-aristotélico, de
acordo com o qual o ser, por existir, necessariamente é, pelo princípio da não-
contradição. E este princípio, no entanto, também vale para Deus, no sentido
específico que lhe atribui Ockham.
O princípio da não-contradição, em Ockham, não tem apenas um
sentido lógico, como em Aristóteles, para quem, de acordo com a célebre
passagem da “Metafísica”,40 algo não pode ser e deixar de ser, ao mesmo
tempo, dadas as mesmas condições. Para Ockham, esse princípio remete a
um outro, que podemos denominar o “(sub)princípio da singularidade”, pelo
qual o princípio da não-contradição assume um sentido ontológico, na medida
em que se torna “o meio mais seguro de prova da diferença entre as coisas”,41
Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. IV, p. 504; Beckmann, cit., p. 41. Logo, sob
certo aspecto, só para nós é que os fatos futuros são contingentes, sendo essa
contingência um signo da limitação de nosso conhecimento, enquanto Deus habeat
scientiam determinatam et necessariam omnium futurorum contingentium. Cf.
Ockham, Ordinatio, D. XXXVIII, Q. unica; tb. in Coleção “Os Pensadores”, cit., p. 404 e
in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown,
Stephen F. (rev.), cit., p. 133. V. ainda Beckmann, ob. cit., pp. 38 ss.
40 Cf. liv. IV, 3, 1005 b 24, e tb. ib., 19-23, 32/33.41 Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. I, p. 174; Beckmann, cit., pp. 40 ss. Para uma defesa consistente do caráter ontológico do “singularismo” de Ockham, i.e., do que no texto denominamos “(sub)princípio da singularidade”, v. B. Ryosuke Inagaki, “Res and Signum – On the Fundamental Ontological Presupposition of the Philosophi of William Ockham”, in G. Wieland et al., “Philosophie im Mittelalter. W. Kluxen zum 65. Geburtstag”, Hamburgo: F. Meiner, 1996, pp. 302 ss.
28
de sua radical singularidade:42 Tudo o que existe no mundo exterior, em si
mesmo, é singular.43
De acordo com Ockham, não apenas devemos evitar a contradição
quando formulamos juízos lógicos, mas sequer podemos conhecer objetos
contraditórios, que, em verdade, não podem existir, posto que todos são iguais
a si mesmos e apenas a si mesmo, não podendo ser, ao mesmo tempo, “si-
mesmos” e “não-si-mesmos”. Deus, então, em sua onipotência, cria livremente,
optando entre infinitas possibilidades, dentre as quais, porém, não há
contraditoriedade. É condição mesmo da vontade livre de Deus que ela não
seja arbitrária, mas sim, que sua potência absoluta se exerça dentro de
determinada ordem, como potentia ordinata, e ordenada racionalmente, posto
que Ele, antes de criar, (pré)conhece o que cria, operando racionalmente.44
42 Um outro (sub)princípio – ou (sub)subprincípio - relacionado a este da singularidade, que se pode referir, no contexto da ontologia ockhamiana e em conexão com o problema dos universais, enuncia-se como um “princípio de diversidade”. De acordo com ele, apenas entidades reais, as coisas mesmas, são diversas entre si – e sempre o são. Diversidade (diversitas), porém, não deve ser confundida com diferenciação (differentia), pois esta última é operada pelo intelecto em sua atividade cognitiva, donde se justificar que não se diferencie, sob certos aspectos, coisas que, no entanto, são, de fato, diversas. Cf. Ockham, Opera theologica, cit., vol. II, p.212; Beckmann, cit., pp. 108 ss. É interessante observar que semelhante colocação permite que se estabeleça relações entre o pensamento medieval aqui estudado e aquela epistemologia dita construtivista radical, defendida por autores contemporâneos, identificados pelos estudos feitos no Instituto de Palo Alto (EUA), como Bateson, Heinz von Foerster, Luhmann, Maturana, Varela, Watzlawick etc.43 “Quaelibet res extra animam seipsa est singularis”. Ordinatio, D. I, Q. II, 6. De passagem, vale notar como o mesmo “singularismo” será defendido por Locke – “Things themselves, which are all of them particular in their existence...”. “An Essay concerning human Understanding”, III, 3, 11. Cf. B. R. Inagaki, ob. cit., pp. 303 e seg.
44 “Deus ipsasmet res praecognoscit quas postea producit...; ideo dicitur rationabiliter operans”. Cf. Ockham, ib., vol. IV, p. 504; Beckmann, ib., p. 41. Em outras passagens, lê-se que Deus pode fazer tudo quanto não inclua contradição – “Deus potest facere quidquid non includit contradictionem” (id. ib., vol. IV, p. 36) – e não pode fazer nada desordenadamente – “Deus nil potest facere inordinate” (id. ib., vol. IX, pp. 585 e seg.). Isto não deve ser entendido como uma limitação à potência absoluta de Deus, pois o respeito ao princípio da não-contradição, donde decorre o caráter ordenado e racional de Sua atividade, é antes condição de possibilidade de Sua liberdade. Cf. Beckmann, ib., p. 149. Esta concepção da liberdade do próprio Ser criador do Universo como decorrente da obediência a uma regra, lógica, ontológica e, em primeiro lugar, deontológica, que veda em termos absolutos a não-contradição, reconhecendo-a como aparência, existência, mas não como essência, na qual se dissolvem todas as contradições, nos remete à retomada da perspectiva hegeliana, denominada por
29
Deus é livre, mas não é desarrazoado, guardando coerência com as premissas
que Ele mesmo estabelece – embora sempre possa optar por outras.
Já a compreensão humana é tão limitada, como é limitada sua
possibilidade de ação. Nota-se como para nosso A. conhecer é agir, sendo
essa ação tão mais eficaz, quanto menos esforço seja despendido para obter o
máximo em explicação como resultado. Daí que, pelo princípio da economia,
segundo Ockham, deve-se optar pela explicação mais simples e, ao mesmo
tempo, mais abrangente.
A célebre fórmula da “navalha de Ockham”, “entia non sunt multiplicanda
sine necessitate”, não foi enunciada por nosso A., pois para ele o princípio da
economia não se relaciona com os entes, não são eles que não devem ser
multiplicados inutilmente – o que só Deus poderia fazer: e, de fato, até onde
podemos perceber, o faz -, mas sim o conhecimento deles, donde não ser esse
um princípio ontológico, mas tão-somente epistemológico. As duas formulações
cunhadas por Ockham do princípio da economia seriam: (a) “frustra fit per plura
quod fieri potest per pauciora”45 (inutilmente se faz com muito o que se pode
fazer com pouco) e (b) “pluralitas non est ponenda sine necessitate”46 (uma
pluralidade não deve ser pressuposta sem necessidade).47 Pela utilização
Dilthey “idealista objetiva”, trabalhada em nossos dias por Vittorio Hösle, esp. em “Hegels System”, 2 vols., Hamburgo: Rowohlt, 1987, e entre nós, por Cirne-Lima, “Sobre a Contradição”, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993 e Manfredo Araújo de Oliveira, “Sobre a Fundamentação”, id: ib. Uma investigação da presença de princípios normativos na base mesma de toda estrutura conceitual, mesmo aquela lógico-matemática, encontra-se em Willis Santiago Guerra Filho, “Para uma Filosofia da Filosofia (Conceitos de Filosofia)”, ed. refundida, Fortaleza: Casa de José de Alencar/UFC, 1999, cap. 3, pp. 39 ss. Para uma concepção do caráter “dialógico” e “mundo-constitutivo” (weltbildend) do princípio da não-contradição cf. Wolff, Francis, “Dizer o Mundo”, São Paulo: Discurso Editorial, 1999.45 Cf. Ockham, ib., vol. III, pp. 430 e 475, id., vol. V, pp. 199, 268 e 436, id., vol. VI, pp. 136 e 399; Beckmann, ib., p. 43.46 Cf. Ockham, ib., vol. I, pp. 74 e 415, id., vol. IV, pp. 202, 317 e 322, id., vol. V, pp. 256, 404, 414 e 442, id., vol. VI, pp. 17, 59, 124 e 408, id., vol. VII, pp. 52 e 213; Beckmann, id. ib.47 Apesar do uso freqüente por parte de Ockham das duas fórmulas aqui mencionadas, Ph. Boehner entende ser aquela que melhor expressa o princípio da economia a enunciada no seguinte texto, extraído de Ordinatio, D. I, Q. XXX, 1 (Contra opinionem
30
desse princípio, afasta-se uma série de assertivas, por serem supérfluas e,
logo, desprovidas de sentido, ao implicarem a existência de entidades para
validá-las, quando bastaria estabelecer condições de validação. Nota-se, aí,
uma antecipação, em Ockham, da substituição operada na ciência
contemporânea dos conceitos substanciais em favor daqueles relacionais,
evitando o hipostasiamento metafísico. 48
Pelo princípio da economia, devemos evitar o quanto possível supor a
existência de entidades - o que, de todo modo, é sempre incerto, em razão do
(sub)princípio da contingência - para explicar os fenômenos, assim como
devemos evitar a contradição, para com isso nos aproximarmos ao máximo da
compreensão de uma realidade criada por um Deus, a partir de sua potência a
um só tempo absoluta e ordenada.
III
São três as espécies fundamentais de “suposições” (de sup + pono,
literalmente, “pôr embaixo”, e mais propriamente, “pôr no lugar”) dos termos
que podem compor uma proposição, constituindo-a na qualidade de sujeito ou
predicado: pessoal, simples e material.49
Na suposição pessoal ou universal o termo está no lugar do seu
significado, natural – v.g., na frase “o homem corre” - ou convencional – p. ex.,
Scoti): “nihil debet poni sine ratione assignata nisi sit per se notum vel per experientiam scitum vel per auctoritatem Scripturae Sacrae probatum”. Cf. Boehner, “Collected Articles on Ockham”, New York: St. Bonaventure Inst., 1958, p. 155. Cf. Ryosuke Inagaki, ob. cit., p. 311, nota.48 Não por acaso, certamente, a categoria aristotélica da relação vem recorrentemente tratada em quase todas as obras de Ockham, segundo Ghisalberti – cf. Ghisalberti, A., “Guilherme de Ockham”, trad.: A. De Boni, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 124 -, dentre as quais se incluiria, para a maioria dos estudiosos, um Tractatus de relatione, incluído na Opera philosophica, Ph. Boehner, G. Gál, St. Brown. (eds.), New York: St. Bonaventure Institute, 1974 -, vol. VII, pp. 348 ss.49 Cf. Ockham, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 376 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 63 ss.
31
na frase “a espécie é um universal”.50 Na suposição simples o termo
empregado designa um conceito, correspondente a uma intenção do
cognoscente (intentione animae) de referir-se diretamente a alguma coisa – em
“primeira imposição”, portanto, e não, em “segunda imposição”, quando a
referência é a um outro nome ou termo.51 Uma frase que exemplifica este tipo
de suposição é: “o homem é uma espécie”. Finalmente, na suposição material,
tem-se o caso da auto-referência, em que o termo não remete nem a uma
realidade física, nem a um conceito, mas apenas a si mesmo, estando no lugar
de si mesmo, na escrita ou na fala – é o que ocorre com o termo “homem”
quando proferimos ou escrevemos a frase “homem é um nome que se escreve
com cinco letras”.52
Dentre os diversos tipos de suposições ou modos dos termos suporem
por (substituírem) outros ou as coisas – realidades individuais significadas
pelos sujeitos -, merece destaque a suposição pessoal, que corresponde à
função significativa dos termos. Ockham opera uma série de divisões e
subdivisões desta suposição, onde se evidencia como toda a lógica,
especialmente enquanto aparato de inferências, implicações e predicações –
para nosso A., pertence ao domínio da lógica também o estudo dos
50 “Suppositio personalis, universaliter, est illa quando terminus supponit pro suo significato”. Ockham, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p. 195. V. tb. Ghisalberti, ob. cit., p. 46.51 A impositio é o ato pelo qual as pessoas atribuem significado aos signos convencionais, escritos ou falados, sendo esses signos, segundo Ockham, nomes, que podem ser de primeira ou segunda imposição, uma distinção que se pode perfeitamente relacionar com aquela feita pelos positivistas lógicos, entre uma linguagem-objeto e a metalinguagem. Cf. Ockham, Summa logicae I, 11; tb. id., in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 371 e seg., bem como in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 56 ss. V. ainda Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 13, 47 ss. e 223, nota 37. 52 Cf. Ockham, Summa logicae I, 64, in: Opera philosophica, cit., p. 196; Ghisalberti, ob. loc. ult. cit.
32
argumentos, mesmo quando fundamentados por autoridade –, constrói-se a
partir das suposições.53
Também a verdade, para nosso A., decorrerá da suposição, enquanto
garantia de que as proposições referem-se à realidade. Note-se que nesta
concepção da verdade se opera uma inversão daquela tradicional, aristotélico-
tomista, em que a verdade decorre de uma “adequatio intellectus et rei”.54
Verdade e falsidade, portanto, não são qualidades dos objetos conhecidos, que
se imprimem no sujeito cognoscente, mas são antes qualidades das
proposições, a elas inerentes, enquanto termos de segunda imposição,
abstratos, que se predicam de proposições, e não de realidades extra-
mentais.55 Em assim sendo, verdadeiro e falso são termos conotativos, que se
referem diretamente a proposições e só indiretamente ao real estado de coisas
a que tais proposições se referem.56 Uma proposição será verdadeira, segundo
Ockham,57 quando coincidirem sujeito e predicado na suposição pelo mesmo
objeto, i.e., refiram-se à mesma coisa. Mas como proposições são composta
por termos, signos, e não por objetos, coisas, tudo quanto for reunido
sinteticamente nas proposições constituirá uma unidade no plano mental, sem
garantia nenhuma de que ela se verifique efetivamente no plano real. Só do
passado, que nem Deus pode alterar, e de termos idênticos, em que coincidem
suppositio (“quod supponit”) e supponate (“pro quo supponit”) – v.g., “o homem
é o homem”-, pode-se fazer asserções afirmativas necessariamente
verdadeiras, pois sendo o presente e futuro contingentes, as assertivas sobre o
53 Cf. Ghisalberti, ob. cit., p. 48. 54 Cf. Tomás de Aquino, “Summa theologiae”, I, 16; id., “De veritate”, I, tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 19 ss., 125 ss.55 Cf. Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 95 ss., Ghisalberti, ib.56 Cf. Ockham, Summa logicae I, 10, tb. in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 369 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 52 ss.57 Cf. Summa logicae II, 2, tb. in Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 98 ss.
33
que não existe ou existirá necessariamente só poderão ser verdadeiras quando
negativas – p. ex., “o homem não é um asno” - ou condicionais – e.g. “se o
homem existe, ele é um animal racional”.
IV
Do exposto, pode-se perceber que também a noção tradicional de
ciência será alterada por Ockham, pois quando se afirma, como então era de
costume, com base em Aristóteles, que não pode haver ciência das coisas
consideradas em sua singularidade, mas tão-somente do que for universal e
necessariamente verdadeiro, nesses termos, a ciência seria impossível para
nosso Autor. No “Prólogo” que escreveu à sua “Exposição dos oito livros da
Física”,58 Ockham apresenta sua concepção de ciência, procurando
compatibilizá-la, o quanto possível, com aquela aristotélica. É assim que a
ciência pode ser das coisas, isto é, “ciência real”, como as ciências naturais,
por resultarem de proposições compostas por termos que supõem por coisas,
numa suposição pessoal. Além disso, há ainda as ciências racionais, como a
lógica, em cujas proposições os termos estão em lugar de outros termos - em
suposição simples, portanto.
Já no princípio do texto apenas referido, Ockham conceituara o
conhecimento em termos que nos evoca o modo como muito posteriormente,
com Hume e, por último, Popper, se vai conceber um dos princípios basilares
da ciência, aquele da causalidade: como um hábito (habitus).59 Isso porque o
58 Cf. Ockham, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., pp. 347 ss. e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., pp. 2 ss.59 Ockham nega, expressamente, que uma relação causal seja demonstrável e, logo, existente, já que não há vínculo necessário entre as criaturas, pois sendo elas radicalmente diferentes, Deus sempre pode fazer com que exista uma sem precisar de outra, ou mesmo, de potentia absoluta, produzir direta e imediatamente uma que, em circunstâncias normais, necessitaria de outra para surgir. Cf. Ockham, Quæstiones in
34
conhecimento, dadas as categorias de Aristóteles, seria de se classificar como
uma qualidade, e uma qualidade da mente, não das coisas, que podem se
alterar sem que isso implique em alteração do conhecimento que temos delas.
O sujeito do conhecimento – “sujeito” aqui entendido no sentido medieval, de
subjectum, correspondente ao que hoje consideramos o objeto do
conhecimento – será a razão, pois ele será uma qualidade da alma, adquirida
com a repetição de atos intelectivos. Aqui pode-se ter como iniciado o processo
de transformação conceitual, que resultará na concepção moderna da
subjetividade como suporte do saber.
Também os conceitos e os universais serão tidos por Ockham como
qualidades da mente, ou melhor, de atos da intelecção abstrativa empregando
signos que, seguindo a tradição lógica árabe, denomina “nomes de segunda
intenção”, responsáveis por uma significação secundária (ou conotação).60 Eles
não se encontram “in rebus”, não se apresentam no modo do ser substancial,
nem tampouco naquele do não-ser, pois são signos de uma pluralidade de
coisas que, enquanto tais, não constituem um saber sobre o que elas são
substancialmente, mas tão-somente declaram algo a esse respeito.61
Da mesma forma, a unidade de uma ciência, para nosso A., não se
funda na unidade do que hoje chamamos seu objeto - e ele chamaria o seu
“sujeito”, em sentido lato, enquanto aquilo do qual se sabe algo. Na verdade,
librum secundum Sententiarum (Reportatio), q. III - IV, in id., Opera theologica, cit., vol. V, 1981, esp. pp. 72 e seg.; Biard, ob. cit., pp. 110 e seg.60 Cf. Ockham, Summa logicae I, 12, in: Opera philosophica, cit., p. 42; Ghisalberti, ob. cit, p. 78; Ruedi Imbach, ob. cit., pp. 52 ss.; Biard, ob. cit., pp. 42 e seg.61 “Universalia non sunt substantiae, nec de substantia alicuius rei, sed tantum
declarant substantias rerum sicut signa”. Ockham, Opera theologica, cit., vol. II, p. 254;
Beckmann, cit., pp. 114 ss. V. tb. Biard, ib., p. 41.35
para Ockham, como anota Ghisalberti,62 “nenhuma ciência possui uma unidade
intrínseca, sendo cada uma delas, antes, um conjunto de hábitos”. A unidade
das ciências, portanto, como a que é propiciada por toda universalidade, não é
uma unidade de simplicidade, mas de agregação ou composição. Tal
concepção impede que se trace uma linha de demarcação muito rígida entre os
diversos saberes, o que se nos afigura mais uma nota de grande atualidade do
pensamento ora apresentado.63
As ciências, portanto, sempre serão a respeito de proposições,
composta por signos – os complexa.64 O mesmo se diga com relação à
metafísica, ocupada com a validade da predicação do termo “ente” (ens). Esta
validade, como a de toda ciência, seguindo o padrão aristotélico, depende da
universalidade e necessariedade da predicação. Em Ockham, como vimos, a
universalidade é uma característica aferida pelo emprego dos signos nas
proposições – uma função semiótica, portanto. Já com a necessariedade, em
um mundo onde tudo, a exceção de Deus, é contingente, não-necessário,65 não
poderia ser diferente: não se busca, nas ciências, proposições sobre o que é
necessariamente verdadeiro (“propositiones de necessario”), mas sim
proposições verdadeiramente necessárias (“propositiones necessariae”). Uma
das conseqüências dessa concepção, que novamente a coloca em sintonia
com a epistemologia contemporânea, é a de que a necessariedade de uma
62 Cf. ob. cit., p. 55. 63 Mais uma vez vem-nos à lembrança Karl Popper, quando em texto clássico nega que haja critérios para uma demarcação rigorosa entre os domínios da ciência e da metafísica.64 “Semper scientia est respectu alicuius complexi”. Cf. Ockham, Opera theologica, cit.,
vol. I, p. 5; Beckmann, cit., p. 127.
65 De acordo com Ockham, “necessário” é tudo aquilo cujo contrário é impossível; “possível” é o que, sem ser contraditório, admite um contrário, que igualmente não o é; “contingente”, por fim, é o que é, mas sem contradição, pode também ser diferente. Cf. Opera philosophica, cit., vol. I, p. 334; Beckmann, ib., p. 129.
36
proposição não corresponde à pretensão de que ela seja sempre e em
qualquer circunstância verdadeira, mas sim que o seja, dadas certas
condições.66
Assim como a metafísica, também a teologia é considerada por Ockham
uma ciência do discurso – no caso, do discurso sobre Deus e a salvação.
Trata-se, porém, de uma ciência especial, já por ser uma ciência com duas
acepções diversas. Numa primeira acepção, é diversa das demais ciências por
ser mais que elas, por lhes ser superior, enquanto ciência que não é humana
(“scientia hominis”67), por ser ciência divina, discurso de Deus, “theologia in se”.
Além desta, existe a “theologia nostra”, a do peregrino (viator),68 que é uma
ciência inferior às demais, na medida em que a finitude da razão humana não
nos permite ter acesso, pelo saber natural, a juízos conclusivos sobre o
assuntos pertinentes à divindade – e se fosse diverso, caso pudéssemos
formular tais juízos como necessariamente verdadeiros, mesmo submetidos a
certas condições, restaria ameaçada a onipotência absoluta de Deus.
Com isso, não se postula, de modo algum, a irracionalidade de Deus –
como vimos anteriormente, Sua potência absoluta é “ordinata”, exerce-se
racionalmente, com respeito ao princípio da não-contradição. Apenas se
66 Cf. Beckmann, ib., p. 128.67 Cf. Ockham, “Prologus in Expositio super VIII libros physicorum”, in Coleção “Os Pensadores”, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, cit., p. 348 e in id., “Philosophical Writings. A Selection”, Boehner, Ph. (trad., int. e notas), Brown, Stephen F. (rev.), cit., p. 3.68 “Intellectus viatoris est ille, qui non habet notitiam intuitivam Deitatis sibi possibilem de potentia Dei ordinata. Per primum excluditur intellectus beati, qui notitiam intuitivam Deitatis habet; per secundum excluditur intellectus damnati, cui non est illa notitia possibilis de potentia Dei ordinata, quamvis sit sibi possibilis de potentia Dei absoluta”. Esta passagem da primeira questão do prólogo do comentário de Ockham às sentenças de Pedro Lombardo é traduzida do seguinte modo por A. R. dos Santos: “(...) intelecto do peregrino é aquele que não tem notícia intuitiva da divindade, que lhe é possível pelo poder ordenado de Deus. Pelo primeiro, exclui-se o intelecto do bem aventurado, que tem notícia intuitiva da divindade; pelo segundo, exclui-se o intelecto do condenado, a quem não é possível aquela notícia pelo poder ordenado de Deus, embora lhe seja possível pelo poder ordenado de Deus”. Ob. cit., p. 59. V. tb. Robert Guelluy, “Philosophie et Théologie chez Guillaume d’Ockham”, Louvain: É Nauwelaerts – Paris: J. Vrin, 1947, pp. 79 ss.
37
reconhece, do ponto de vista teológico, uma limitação da razão humana,
limitação essa que a filosofia e as demais ciências são desafiadas a superar,
mesmo sabendo que não atingirão o seu objetivo – essa consciência, no
entanto, é fundamental para nos prevenirmos contra o dogmatismo. A
incognoscibilidade de Deus e a conseqüente limitação da teologia enquanto
ciência humana decorre da própria circunstância de não possuirmos
conhecimento intuitivo e evidente do “sujeito” desta ciência - a saber, Deus -,
posto que este tipo de conhecimento, garantia última de todo conhecimento
científico, como já vimos, é um conhecimento de objetos existentes, o qual,
inclusive, atesta esta existência – e Deus não existe tal como tudo o mais por
nós conhecido. Deus é associado à criação da existência, como sua origem e
suporte – causa primeira e “causa efficiens per conservationem” -, donde não
poder com ela se identificar, sendo, assim como tudo o mais, porém, diverso -
e ainda diverso em sua diversidade. Tanto é assim, que não se prova
racionalmente a singularidade de Deus: tal como não há contradição entre a
existência de Deus e a de tudo o mais que conhecemos – e precisamente daí
decorreria a racionalidade da afirmação de Sua existência -, também não há
contradição entre a existência de vários Deuses, criadores de mundos
diversos, ou entre diversos mundos, criados pelo mesmo Deus que criou o
nosso.69
É assim que de Deus, apesar da prova de Sua existência, não se pode
predicar o ser tal como se faz de objetos no domínio da metafísica, o que
projeta o discurso a Seu respeito em outro domínio, contíguo, o da teologia,
onde não conta apenas a postura (habitus) intelectual da ciência, do saber,
69 “Selbst der Satz, daß es nur einen Gott gebe, kann nach Ockham durch die Vernunft nicht apodiktisch, sondern nur mit Plausibilitätsargumenten bewiesen werden (...); dies gelte ebenso für andere Prädikate Gottes wie Unendlichkeit, Allmacht, Vorsehung usw.”. V. Hösle, “Wahrheit und Geschichte”, Stuttgart/Bad Cannstatt: frommann-holboog, 1984, p. 687 (grifos do A.).
38
mas também – e, principalmente – uma outra: a da crença, da fé.70 No campo
da teologia, nos vemos às voltas com uma “lógica da fé”, que não é apofântica,
mas persuasiva, incluindo além dos valores modais aléticos, “verdadeiro” e
“falso”, aquele que melhor a caracteriza: o “possível”,71 já que suas conclusões
se sustentam quando não implicarem em contradição e “non est maior ratio”. É
sobre uma tal base, “falibilista”, que se assentará o pensamento de Ockham,
visto ser o princípio maior em que se baseia, como é próprio da época em que
foi elaborado, um princípio teológico, o da onipotência divina, e, enquanto tal,
igualmente indemonstrável.72 Não se justifica, portanto, que se lhe impute o
defeito do “teologismo”, pois teológicos são seus pressupostos e a destinação
última de seu pensamento, desenvolvido, porém, com extremo rigor lógico,
compromissado com o bem, a correção, intelectual e moral.
2ª. Parte
V
Chegados a esse ponto, estaríamos em condições mais
favoráveis à apresentação, no campo da filosofia jurídica e política, de
70 Cf. Beckmann, ob. cit., pp. 137 ss. Para maiores desenvolvimentos, v. Biard, ob. cit., pp. 86 ss.; Ghisalberti, id., pp. 131 ss., e, especialmente, a obra clássica a respeito, de Guelluy, “Philosophie et Théologie chez Guillaume d’Ockham”, cit., além do recente trabalho de Volker Leppin, ob. loc. ult. cit.71 Para uma exposição da lógica modal medieval, especialmente em Duns Scot, Ockham e Buridan, v. Simo Knuuttila, “Modal Logic”, in “The Cambridge History of Later Medieval Philosophy”, N. Kretzmann et al. (eds.), Irthlingborough: Cambridge University Press, 1996 (5ª reimp.), pp. 342 ss., esp. pp. 354 ss.72 Cf. Cf. Ockham, Quodlibeta, I, q. I, in Opera theologica, vol. IX, p. 11; J. Biard, ib., p. 96.
39
contribuições oriundas da obra de autores medievais, após – e na esteira de -
Duns Scot (o qual recebeu enorme influência do filósofo persa, de cultura
muçulmana, Ibn-Sina ou Avicena). Partiríamos de uma consideração feita por
de Muralt,73 que julgamos acertada, no sentido de se poder reenviar a
concepção, do que modernamente veio a se considerar como ciência jurídica,
assim como seu objeto, enquanto o sistema legal positivado, à estrutura aqui
denominada transcendental, tendo como representantes mais significativos,
dentre os medievais, com pioneirismo, Guilherme de Ockham, e dentre os
modernos, com importância paradigmática, Immanuel Kant.
A uma tal concepção se oporia outra, mais tradicional e antiga,
que remete ao tempo em que o estudo filosófico do direito não o distinguia
como esse objetivum, como objeto formal de estudo diverso de seu conteúdo
ético, político e, mesmo, teológico, enquanto direito que só o seria enquanto
igualmente justo, seja na relação (comutativa) entre duas pessoas, seja na
relação (distributiva) da pessoa aos bens que lhe seriam devidos. Para de
Muralt, conforme o compreendemos, a filosofia do direito contemporânea
padeceria de um esvaziamento de interesse e, mesmo, de descrédito, tanto
entre filósofos, como entre cientistas, na medida em que desconhece a
diferença entre esta postura antiga, de estrutura aristotélico-tomista, e uma
outra, que ele denomina “escotista suareziana”,74 rejeitando a ambas como se
tratando de um mesmo jusnaturalismo caduco, donde resultam as mais
diversas posturas positivista – por definição, anti-filosóficas -, abdicando de
discussões que são as que mais importam no campo do Direito, como são
aquelas atinentes à sua validade material, e não apenas, formal.
73 Cf. id. ib., p. 12.74 Cf. id. ib., p. 13.
40
Daí se explica, pelo menos em parte, os esforços vindos das mais
diversas direções, mais recentemente, para “reabilitar” a razão prática, agora
“renascida”,75 e, nesse contexto, renovar os estudos filosóficos do direito de
uma perspectiva que evite a dicotomia entre o positivismo e o jusnaturalismo,
dentre os quais se pode mencionar aquelas do inglês John Rawls e sua Teoria
da Justiça, ou de Ronald Dworkin, norte-americano, ativo também na
Inglaterra, em Oxford, e, na Alemanha, Robert Alexy, com a Teoria dos Direitos
Fundamentais, teorias estas que encontram eco nas propostas sobre teoria do
direito e filosofia política em geral de Jürgen Habermas e sua escola, feitas sob
o pano de fundo da Teoria do Agir Comunicativa. Digna de nota, também, é a
proposta de Michel Bastit, assentada em trabalho monumental de
reconstituição das origens escolásticas e medievais (ou tardo-medievais) da
concepção moderna, positivista, da lei jurídica, a fim de com isso buscar
auxílio, aprendendo com os “erros do passado”, para formular uma noção de lei
“mais conforme à realidade jurídica e mais isenta de contradições”.76 Bastit
procede na esteira de seu mestre Michel Villey, que, em estudos clássicos,77 já
chamara atenção para a distinção radical entre conceitos jurídicos e
jusfilosóficos, herdados da antiguidade romana, como aquele de jus e sua
reformulação moderna – neste caso, como “direito subjetivo”-, sob a influência
decisiva de autores medievais, com destaque para Guilherme de Ockham.
Além disso, compartilha Bastit a convicção de Villey, no sentido de que a
solução para os impasses da filosofia jurídica e do próprio Direito, na
contemporaneidade, expressão da crise mais ampla da sociedade e, mesmo,
da civilização ocidentais – que são também aquelas que se pode considerar
75 Cf., v.g., Enrico Berti, Aristóteles no Século XX, trad. Dion Davi Macedo, São Paulo: Loyola, 1997, pp. 229 ss.76 Naissance de la loi moderne, cit., p. 361.77 Cf. Villey, Seize Essais de Philosophie du Droit, Paris: Dalloz, 1969, p. 158, passim; id., Filosofia do Direito, São Paulo: Atlas, 1977, p. 120, passim.
41
verdadeiramente mundiais, por instaladas em todo o planeta através dos atuais
meios técnicos de comunicação -, estaria em um retorno a um jusnaturalismo
de corte aristotélico (ou aristotélico-tomista).78
Ao nosso ver, contudo, não haveria possibilidade – ou, sequer,
conveniência – de um retorno ou re-conversão do pensamento, em qualquer
campo, à estrutura que aqui denominamos transcendente, descartando, por
espúrias, formas de pensamento derivadas, em maior ou menor grau, daquela
outra estrutura, que denominamos transcendental. Não há retrocesso possível
em uma história que tem características evolutivas, como são tanto aquela
natural, dos seres naturais, como esta, social, “historial”, das idéias produzidas
por uma espécie desses seres, a nossa. Além disso, não houveram apenas
prejuízos, com a erupção de uma nova estrutura de pensamento na Alta Idade
Média, que veio a ser a principal matriz da modernidade. Uma série de ganhos,
de “aquisições evolutivas”,79 também se verificaram, com esta mudança epocal,
e os graves problemas, que com ela advieram, pensamos que só poderão ser
enfrentados e, eventualmente, superados, empregando recursos forjados com
as possibilidades também nela contidas.
A análise estrutural, ao revelar os componentes fundamentais das
diversas formas de pensamento, assim no campo mais amplo da filosofia,
como naquele mais restrito, em relação ao primeiro, da filosofia jurídica,
permite não apenas que elas sejam melhor conhecidas, até por meio de uma
eventual quantificação das referências aos e dos diversos autores,80 como
78 Cf. Michel Bastit, “El método del derecho natural”, in: El Derecho Natural Hispánico. Actas de las II Jornadas Hispánicas de Derecho Natural, Córdoba, 14 a 19 de septiembre de 1998, Cajasur Obra Social y Cultural Publicaciones, 2001, pp. 177 ss., esp. pp. 189/196.79 Expressão cunhada por Bronislaw Malinowski e utilizada no sentido dado na teoria social sistêmica luhmanniana. Cf., v.g., Niklas Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, vol. I, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, pp. 505 ss.80 Cf., v.g., a título ilustrativo, o trabalho realizado por John Andraos, no âmbito da história das influências em matemática, em “Named things in Mathematics”, 2003-
42
também traz consigo a possibilidade de se propor rearranjos de maneira mais
consciente, tal como até o presente não teria ocorrido. É assim que o próprio
objeto do conhecimento, quer científico, quer filosófico passa a ser concebido
diversamente. E aqui, há de se privilegiar o pensamento de Guilherme de
Ockham, considerando a relevância que a ele se costuma atribuir, para o
desenvolvimento da concepção moderna de ciência, ainda hoje baseada no
princípio da parcimônia ou “da razão suficiente”, como o denominará no século
XVII Leibniz, para não falar no princípio da causalidade e no formalismo,
assumidos por Ockham sob a influência de Duns Scot. Também a filosofia
contemporânea teria essa ascendência ockhamiana - assim como a filosofia
moderna, de Descartes a Husserl, passando por Kant, com sua ênfase no
papel transcendental do sujeito, é de derivação scotista -, considerando a
importância por ele atribuída ao estudo da linguagem, enquanto possibilidade
de dar a melhor garantia possível a um discurso que se tornou incerto de si
mesmo – na época, pelo que se entende, devido ao impacto causado do
contato com uma teologia diversa daquela cristã, a dos muçulmanos, e melhor
fundamentada metafisicamente, abalando assim a concepção já sedimentada
sobre o fundamento de tudo, a saber, Deus. Não menos importante, como aqui
se pretende demonstrar, é a transposição do posicionamento teológico-
filosófico desta linhagem de pensamento para o campo político-jurídico,
gerando - pela assertiva da prioridade do poder da vontade, tal como postulam
da divindade por ser, acima de tudo (e todos) onipotente -, já por gerar uma
concepção de uma esfera privada ou social como diversa daquela pública ou
estatal, agora separadas pelo modo como desconectam a forma da matéria, de
maneira absolutamente inovadora na história do pensamento, da filosófica
2004, in: http://www.chem.yorku.ca/NAMED/.
43
cosmocêntrica antiga dos gregos, com Aristóteles à frente, ao teocentrismo
medieval, cujo expoente máximo é Thomás de Aquino. Surge assim o
formalismo que em matéria de ética tornará o comportamento bom por estar de
acordo com uma norma, na ausência de qualquer possibilidade de se saber o
que só Deus sabe, isto é, o bem, assim como a justiça, que no campo do
direito será também o que estiver determinado nas normas, normas estas
editadas, no campo político, por um poder que deverá se apoiar externamente,
inicialmente no próprio Deus, para se impor internamente, enquanto soberano.
É de fundamental importância, para uma apreciação do modo
como a ciência e a própria filosofia, e também o direito, público e privado,
objetivo e subjetivo, contemporaneamente, se posicionam em face de valores
assumidos de maneira ideológica, que se perceba como no período constitutivo
da modernidade, em que se destacam os autores ora enfocados, deu-se a
transposição de suas concepções teológicas e metafísicas, pautadas pela
mesma busca de certeza que caracterizará a modernidade, tanto para o campo
gnosiológico como para aquele da ação orientada por normas. É assim que se
mostrará de grandes e duradouras conseqüências uma discussão sobre
assunto aparentemente de somenos importância, se considerado pelos
padrões modernos, como é aquele atinente à legitimidade do voto de pobreza
da ordem franciscana, mas que mobilizará de uma maneira tão visceral autores
como Guilherme de Ockham, que operará uma verdadeira cisão em seu
pensamento, o qual assumirá uma nova inflexão, a partir de seu envolvimento
em tal querela, passando a aplicar na discussão de problemas jurídico-políticos
o aparato intelectual desenvolvido para enfrentar as incertezas epistemológicas
de sua era, aparecidas na matriz teológica que lhe era própria.
44
Dentre as obras produzidas por Guilherme de Ockham no contexto de
sua querela com o Papa João XXII a respeito da pobreza do monges
franciscanos, de onde emergirá seu conceito pioneiro de “direito subjetivo”, o
trabalho grandioso de G. de Lagarde destaca a “Opus nonaginta dierum” como
a mais significativa,81 sendo esta a principal fonte de Villey para fazer a
afirmação, antes referida, de que é nas páginas iniciais desse trabalho onde se
pode verificar “ao vivo” a passagem da noção de direito tal como era utilizada
na linguagem romanista, sempre em sentido objetivo, para aquela moderna,
em que se biparte em diversos sentidos, destacando-se aquele subjetivo, e
este, de forma paradigmático no conceito de direito de propriedade.82
Para melhor situar a querela apenas mencionada, vale recordar a
fórmula jurídica pela qual a ordem franciscana conciliava seus inúmeros bens
com a determinação básica de seu fundador, de que deveriam ser pobres
como Jesus o foi: à ordem cabia o uso, a posse, como diríamos em termos
modernos, restando a propriedade com a Igreja católica. É o que se exprime
com toda clareza já na Bula Ordinem Vestrum (1245), de Inocêncio IV, assim
como em diversas outras que a ela se seguiram: os bens que utilizavam os
franciscanos pertenciam in jus et proprietatem Beati Petri, sendo o seu
dominium, portanto, da Santa Sé. Assim, com uma fórmula ainda mais incisiva,
em 1279, a Bula Exiit qui seminat, de Nicolau III, adotando a fórmula proposta
por S. Boaventura, prescrevia aos franciscanos o simplex usus facti de seus
bens, o jus utendi, o ususfructus e a possessio, sendo da Igreja romana a
proprietas. É principalmente em torno dos termos ali empregados que se
desenrolará a querela entre Guilherme de Ockham e João XXII, onde a visão
teológico-filosófica do primeiro suplantará aquela estritamente jurídica do
81 Cf. “La naissance de l’esprit laïque”, vol. IV, Paris, 1962, pp. 159 ss.82 “Seize Essais de Philosophie du Droit”, cit., p. 158.
45
segundo, própria do advogado que era – como é sabido, o papado neste
período foi exercido mais freqüentemente por padres-advogados do que por
padres-teólogos, pelas vantagens óbvias que a formação daqueles lhes
conferia, no trato com o poder.
João XXII desenvolve sua argumentação jurídica nas bulas Ad
conditorem canonum (1322), Cum inter nonnullos (1323) e Quia quorundam
mentes (1324). Invocando a autoridade de Tomás de Aquino, que vinha de ser
canonizado por ele, afirma o poder do Papa de modificar os cânones antigos e
instituir direito canônico novo. E é ainda em Tomás que recolhe a noção de que
a propriedade se constitui em um direito natural, sendo o regime mais
apropriado ao desenvolvimento humano na vida terrena, donde ninguém poder
dela abdicar, para o seu próprio bem – nem mesmo as comunidades
franciscanas.
De se notar é que, apesar de João XXII ter dado um “giro positivista”, ao
afirmar seu poder de romper com o que já estava estabelecido por seus
antecessores, criando direito novo através de suas bulas, para ele, nesse
ponto, não havia propriamente inovação, mas tão-somente retificação do
emprego de termos jurídicos em seu sentido técnico, negligenciado por seus
antecessores. Para João XXII, o usus que se garantia aos franciscanos de
seus bens resultava em um jus utendi et fruendi, pelo qual se definia a
verdadeira propriedade, e o sentido diverso a ele atribuído era puramente
verbale, nudum et aenigmaticum. Isso porque não se justificaria um usufruto
desvinculado ad aeternum de um título jurídico que o amparasse, i. e., de um
direito de propriedade, sendo ele que se transfere, e não o simples uso. Mesmo
das coisas consumíveis, como a água e a comida, os franciscanos, como todas
as pessoas, tinham propriedade, pois também aí o uti não era de se distinguir
46
do abuti, nem o uso da propriedade, já que os atos de comer e beber não
seriam justos, se não estivessem amparados em um título jurídico, isto é, se
não se amparassem em seus respectivos jura. E para um arremate tipicamente
“advocatício”, valendo-se do pensamento nominalista de seus opositores,83
para assim liquidar-lhes com seus próprios argumentos, o Papa-advogado
destaca que, sendo o ato de comer e beber passíveis de serem praticados
apenas por indivíduos, mas não pela ordem franciscana, uma “universalidade”,
persona repraesenta ou imaginaria, assim como a Igreja era a universitas
fidelium, cabendo porém à primeira o jus, o justo título que legitimava aqueles
atos dos que a compunham. A conclusão, portanto, é que para João XXII não
se podia viver corretamente desprezando, como pretendiam os franciscanos, o
direito e o que lhe seria mais característico: o direito de propriedade.
A abordagem de Ockham do problema jurídico-teológico em questão
principia deslocando-o desse campo para aquele outro, por ele tão cultivado
em seus trabalhos de lógica – e que hoje denominaríamos melhor como
“semiótico” ou “semiológico”, por trabalhar antes a significação de um conceito
do que o modo como eles se articulam corretamente, distinguindo-se também
da abordagem mais comum em seu tempo, aquela que também em termos
modernos se denominaria “ontológica”, em que se buscava a definição do que
eram os entes representados pelos signos, ao invés de seu significado. É que
Ockham inicia coletando os diversos sentidos dos termos empregados na
disputa, não deixando de incluir, além daqueles por assim dizer “técnicos”,
como aparecem empregados por juristas e teólogos, também o sentido comum,
“vulgar”. E é precisamente do uso à época comum, gerado pelo contexto de
83 Este ponto é destacado por A. S. McGrade, “Ockham and the Birth of Individual Rights”, in: B. Tierney/P.Linehan (eds.), “Authority and Power. Studies on Medieval Law and Government. Presented to Walter Ullmann on his Seventieth Birthday”, Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 152.
47
emergência da economia de mercado capitalista, que ele vai tomar o sentido
de jus, o qual lhe possibilitará mostrar o grave erro cometido por João XXII. É
este sentido de “direito subjetivo”, enquanto direito de propriedade, que será o
sentido consagrado modernamente: o de poder, potestas.84
A obra de Ockham vai então sugerir que não se considere o jus apenas
como a quota de bens que nos cabe, por determinação do direito positivo ou
natural, a qual podemos reivindicar perante tribunais, já que temos para isso
uma potestas vindicandi, pois esse é o jus fori, nascido ex pactione,
convencionalmente, do direito positivo humano, havendo também o que já
Agostinho denominou jus poli (embora se referindo ao sentido objetivo do
Direito), o qual é a permissão ou faculdade que nos vem do céu (polus), da
natureza pela razão e do direito positivo verdadeiramente divino para usarmos
os bens com despojamento, sem ser por eles possuídos, abdicando mesmo de
sua defesa perante tribunais, como preconizou Jesus Cristo. É essa posse a
título precário, permitida pelo verdadeiro proprietário – no caso, Deus -, que os
franciscanos teriam, individual e coletivamente, enquanto ordem: um direito em
sentido moral, mas não naquele propriamente jurídico.85
Eis que em Ockham o ser humano, criado à imagem e semelhança de
Deus, que se caracteriza por sua onipotência e liberdade absoluta, será ele
também dotado de potestades (“dignidades”) e liberdade, que se traduzirão em
um complexo de direitos subjetivos, o novo fundamento do Direito (objetivo).
O enfoque de Ockham nos mostra com clareza o que comumente
se tende a negligenciar no âmbito da filosofia do direito, a saber, que a noção
de “direitos (subjetivos)” tem um significado que transcende aquele técnico-
84 Cf. Villey, “Seize Essais de Philosophie du Droit”, cit., p. 168.85 Cf. John Kilcullen, “The Political Writings”, in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 308.
48
jurídico, devendo ser considerado igualmente em sua projeção na filosofia
política e moral.86
O “pan-jurisdicismo” de João XXII encontra-se expresso com toda
clareza em uma passagem de uma outra bula, de 1329, Quia vir reprobus -
onde o “vir reprobus” é ninguém menos que o superior da ordem franciscana,
Miguel de Cesena – o qual, com o auxílio de Ockham, ousara contestar as
idéias expostas nas bulas anteriores -, na seguinte passagem: “quia quod iuste
fit, et fit iure (...) Si dicet autem quod ille, cui est licentia utendi concessa, nec
iuste utatur nec iniuste, hoc falsum est. Impossibile est enim actum humanum
individuale indifferentem esse, id est nec bonum, nec malum, nec iustum nec
iniustum...”.87 O Papa entendia que somos portadores de direitos de
propriedade desde a criação, ao contrário do que defendiam os minoritas, para
quem a divisão de bens é posterior à queda, ao pecado original, e uma
conseqüência disto. É a esta bula que se reportará diretamente Guilherme de
Ockham, para defender a si e aos sues irmão de ordem, em sua “obra escrita
em noventa dias” (“Opus nonaginta dierum”), fazendo uma série de distinções e
chegando a conclusões tão surpreendentes para o ambiente intelectual da
época, e mesmo de hoje, como aquela da heresia do Papa – ao negar até a
pobreza de Jesus e dos Apóstolos -, às quais só teriam sido possíveis graças à
dissolução de hierarquias categoriais por ele operada no plano lógico e, então,
transposta para o plano político, onde se destaca, literalmente, a singularidade
de um pensamento da singularidade.88
86 Assim, v. Páramo, “Derecho Subjetivo”, in: Ernesto Garzón Valdés/Francisco J. Laporta (eds.), “El Derecho y la Justicia”, Madri: Trotta, 1996, p. 367 ss.87 Apud Miethke, “Ockhams Weg zur Sozialphilosophie”, Berlin: Walter de Gruyter, 1969, p. 477, n. 168.88 Cf. P. Alféri, “Guillaume D’Occam. Le singulier”, Paris: Les Éditons de Minuit, 1989; Wim Staat, “Ockham, singularity and multiculturalismo. An Ockhamist analysis of singularity and its politico-legal implications”, in: International Journal for the Semiotics of Law, vol, IX, n. 26, Liverpool: Deborah Charles Publ., 1996, pp. 139/172.
49
Permanece ainda hoje um desafio desenvolvermos e
aprofundarmos essa idéia, central no pensamento ockhamiano, de que para
além da oposição entre a universalidade tanto dos conceitos como das leis,
naturais e jurídicas, e a particularidade se situações concretas redutíveis ou
subsumíveis a tais conceitos e leis, há de se considerar como diversa a
singularidade das mesmas, a fim de mantermos os sentidos em estado de
alerta, para com isso percebermos erros e/ou injustiças no tratamento igual
dado a situações que só aparentemente são iguais – ou se apresentam como
casos particulares excepcionando regras gerais -, quando na verdade são
singulares, dotadas de intensidades diversas. Há, perseguindo essas
indicações, muito que se fazer, no campo da filosofia jurídica e em geral, no
rastro também daqueles que, como Ockham, mais recentemente, não perdem
de vista a primazia do acontecimento, dos eventos e sua intensidade, frente ao
que já está estabelecido por regras e conhecimentos herdados: Kierkegaard,
Nietzsche, Carl Schmitt, Heidegger, Deleuze, Agamben...89
VI
Outro aspecto que, indubitavelmente, merece ser realçado, no
pensamento jusfilosófico de Ockham, é o seu conceito de direito natural. Este,
se em sua origem ainda é tido como divino, tal como era geralmente concebido
no período, especialmente em seus escritos teológicos, por outro lado, nos
escritos políticos do último período de seu pensamento, é-lhe atribuída validade
quando fundamentado racionalmente, pela recta ratio, no que mais uma vez
aquele pensamento se apresenta atual ou, pelo menos, moderno.90
89 Cf., para uma primeira aproximação, Francisco Ortega, “Intensidade. Para uma história herética da filosofia”, Coleção Quíron, Série Filosofia, n. 3, Goiânia: EDUFG, 1998.90 Cf. Ockham, “Texte zur politischen Theorie. Exzerpte aus dem Dialogus”, trad.: Jürgen Miethke, Stuttgart: Reclam, 1995, pp. 207 ss. – III Dialogus II i, c. 15 -;
50
VII
Como é sabido, só modernamente passa-se a enfatizar o aspecto
permissivo da normatividade, a esfera de liberdade que transcende os limites
objetivos impostos pelas proibições morais e religiosas, a licentia laica. Já
Hobbes, por exemplo, apontava o caráter insustentável de uma situação em
que todos dispunham livremente de uma faculdade de tudo fazer, de um jus
omnium in omnia, donde decorreria para ele a necessidade de se impor limites,
com o respaldo em um poder com supremacia e reconhecimento social – o
Estado civil -, a fim de garantir e efetivar direitos individuais, os poderes dos
indivíduos, que são seus direitos subjetivos.91 Antes do “positivismo contratual”
hobbesiano, contudo, foi o nominalismo medieval que tornou possível o
aparecimento da noção propriamente dita de um direito como atributo de um
sujeito, que o torna direito seu, propriedade exclusiva do indivíduo, a qual lhe é
inerente. Tal noção já se encontra entre nominalistas “parisienses” como
Gerson, no século XV, bem como em juristas-teólogos espanhóis da “segunda
escolástica”, a exemplo dos “regicidas” domenicanos Francisco de Vitória, seu
discípulo Domingo de Soto, juntamente com seu amigo, jurista, Fernando
Vázquez de Menchaca e de jesuítas como Luis de Molina, sem deixar de
Beckmann, ob. cit., p. 166, Miethke, ob. cit., pp. 124 e seg.; A. S. McGrade, “Natural Law and Moral Omnipotence”, in: “The Cambridge Companion to Ockham”, Spade, P. V. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, 1999. Sobre as semelhanças entre as doutrinas jusnaturalistas de observância ockhamiana e aquelas do século XVII cf. Richard Tuck, “Natural Rights Theories”, Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p. 24, e, em geral, mais recentemente, Brian Tierney, “The Idea of Natural Rights”, Cambridge: Grand Rapids, 1997.91 Um paralelo entre as concepções de Ockham e Hobbes encontra-se em Mathias Kaufmann, “Wilhelm von Ockham und Thomas Hobbes: Varianten des politischen Individualismus”, Erlangen, mimeo., 2000.
51
mencionar o grande Francisco Suárez.92 Sua origem mais remota, contudo,
está no pensamento de Guilherme de Ockham, desenvolvido na esteira
daquele de Duns Scot, como pretendemos aqui vir a demonstrar.
A definição (positivista) do Direito, dito objetivo, enquanto instituição,
como um corpo de normas emanadas de um poder, sem importar seu
conteúdo, para que as mesmas sejam consideradas válidas, normas estas a
serem estudadas de modo igualmente formalista e dedutivista, aparece
afirmada com independência por autores canônicos os mais diversos, a
exemplo de John Austin, no século XIX, no contexto da tradição anglo-
saxônica, que se pode remontar a Hobbes, bem como Hans Kelsen, na
tradição continental européia, que finca suas raízes ainda mais profundamente,
como se pretende demonstrar, em estratos onde se encontra, no séc. XIX, a
chamada “jurisprudência dos conceitos” (Begriffsjurisprudenz), associada a
nomes como G. Puchta, o direito natural racionalista, de tantos autores, dos
séculos XVIII e XVII, com Puffendorf, Thomasius e Althusius, até chegar ao
século XVI, na Escola de Salamanca, formada em torno a Francisco Vitória,
onde se destaca, como jurista-teólogo, a Fernando Vázquez de Menchaca e,
como filósofo-teólogo, Francisco Suárez, há pouco mencionados. Aventa-se
ainda, filosoficamente, a hipótese, de que a própria filosofia do direito,
enquanto disciplina e objeto de investigações, para surgir, pressupõe como
condição objetiva principal, o surgimento de um direito positivo produzido na
matriz estatal de corte moderno, assim como sua condição subjetiva maior, que
seria igualmente condição “estrutural” – no sentido em que aqui se emprega a
doutrina muraltiana das estruturas de pensamento – das manifestações típicas
92 Cf., v. g., Annabel S. Brett, “Liberty, Right and nature: Individual Rights in Later Scholastic Thought”, Quentin Skinner (ed.), Cambridge (Mass.): Cambridge University Press, 1997; tb. Frank Viana Carvalho, “As vindiciae contra tyrannos e os monarcômacos”, dissertação de mestrado, USP, São Paulo: 2002.
52
da modernidade, a exemplo tanto da forma política estatal, como daquela
cientifica, que hoje (ainda) predominam, estaria na estrutura, de origem mais
próxima na época medieval avançada, que Muralt denomina escotista, e nós
optamos por denominar transcendental. Daí permanecer ainda hoje a filosofia
do direito, por exemplo, atrelada – e, em geral, subserviente mesmo – aos
estudos (majoritariamente positivistas, no sentido normativista e formalista) do
direito enquanto direito positivo, posto por uma vontade, dotada de poder para
tanto.
Assim como fez Ockham diante do “pan-jurisdicismo” positivista e
autoritário de João XXII, também na atualidade toda uma plêiade de filósofos
do direito, da moral e da política (Dworkin, Hart, Nozick, Rawls, Raz) defendem
uma concepção dos direitos (subjetivos) como designando elementos a serem
empregados na argumentação prática enquanto parte de uma reserva
pertencente aos indivíduos, isolada ou comunitariamente considerados, que
não se deve deixar apropriar por nenhuma razão institucional, econômica,
social, coletiva ou política – mesmo que majoritária. Com isso, o que se
pretende é “reservar para el área y ámbito del ejercicio de los derechos un
perímetro protector frente a los possibles violaciones basadas en otros
intereses; es decir, los derechos vendrían a dibujar los límites de la
deliberación práctica”.93
Todo o discurso de grande atualidade sobre os “Direitos
Humanos” se situa mais propriamente nos planos da ética e da política do que
naquele estritamente jurídico, onde tais “direitos” se apresentam como “direitos
fundamentais”, que por sua vez não são apenas “direitos” dos cidadãos a um
respeito pelo Estado de sua esfera de liberdade e também que lhes provenha
93 Páramo, loc. cit., p. 386.53
de um mínimo de igualdade (ou eqüidade) entre si, pois tanto se afirmam
perante outros particulares, individual ou coletivamente considerados, como
também se apresentam como pautas objetivas de organização do Estado e
parâmetro para balizamento de suas políticas. Não é de estranhar, portanto,
que de último, tanto em sede de dogmática jurídica constitucional,94 como de
teoria social,95 se vem resgatando a figura do estado ou estatuto (status) para
definir juridicamente a posição fundamental dos que gozam daqueles direitos,
visto que os mesmos se lhes escapam a uma determinação de suas vontades.
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