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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018
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Sobre crítica, autocrítica e legitimação: uma leitura do campo jornalístico a partir
do documentário O Mercado de Notícias1
Marcos Paulo da SILVA2
Leopoldo PEDRO NETO3
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS
RESUMO
O artigo tem por objetivo desenvolver uma reflexão sobre a constituição e os
tensionamentos intrínsecos e extrínsecos do campo jornalístico a partir de uma análise do
documentário O Mercado de Notícias (Jorge Furtado/2014/94 min). Volta-se, para tanto,
ao arcabouço teórico-conceitual oriundo do pensamento sociológico de Pierre Bourdieu.
São estudados cenas do documentário e alguns dos principais extratos dos depoimentos
dos agentes profissionais convidados pelo cineasta para explicar o campo jornalístico.
Aporta-se no entendimento de que as concepções bourdieusianas de campo social e de
habitus fornecem elementos para se compreender os valores simbólicos compartilhados
entre os jornalistas em processos que rementem à legitimação histórica da atividade
profissional, bem como à sedimentação de argumentos voltados à crítica e à autocrítica
às tensões internas e externas da profissão.
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Campo jornalístico; Habitus; Documentário.
1. Para situar o debate
O presente artigo tem por objetivo desenvolver uma reflexão sobre a constituição
e os tensionamentos intrínsecos e extrínsecos do campo jornalístico com base em algumas
das principais concepções do pensamento sociológico do teórico francês Pierre Bourdieu
a partir de uma análise do documentário brasileiro O Mercado de Notícias (Jorge
Furtado/2014/94 min). Dirigido e roteirizado pelo cineasta gaúcho Jorge Furtado, o
longa-metragem apresenta depoimentos de 13 profissionais sobre o jornalismo e suas
práticas ético-deontológicas, além de contemplar um debate sobre o futuro da atividade
profissional. O documentário possui como fio condutor a peça teatral homônima O
Mercado de Notícias (The Staple of News, no original), escrita em 1626 pelo dramaturgo
inglês Ben Jonson (1572- 1637). A peça aborda os princípios do jornalismo no século
XVII e dialoga com a fala dos atores sociais convidados a discutir o objeto central do
1 Trabalho apresentado no GP Teorias do Jornalismo, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação,
evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Professor do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMS. E-mail:
[email protected]. 3 Graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFMS. E-mail: [email protected];
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documentário – o próprio jornalismo. Do ponto de vista metodológico, o artigo estrutura-
se a partir de quatro categorias de análise com o intuito de estabelecer interfaces entre o
longa-metragem e os conceitos bourdieusianos de habitus e de campo social. São elas: 1)
o jornalismo e os tensionamentos intrínsecos do campo; 2) o jornalismo e a crença nos
fatos; 3) o jornalismo e as práticas antijornalísticas; e 4) o jornalismo e os tensionamentos
extrínsecos oriundos de outros campos.
Parte-se do princípio de que o pensamento de Pierre Bourdieu constitui uma
pertinente matriz teórico-conceitual capaz de abranger a complexidade da temática
abordada no filme. A obra do autor, falecido em 2002 aos 72 anos, tem proporcionado
interpretações criativas e inovadoras sobre a articulação entre a cultura e as relações
sociais. Nesse sentido, Martins (2004) defende que o legado de Bourdieu pode ser
compreendido como uma verdadeira escola de pensamento devido à sua influência no
campo das ciências sociais. Miceli (2003), por seu turno, argumenta que as ideias
bourdieusianas remetem a uma renovação de fôlego nos estudos da cultura
contemporânea. Um fator decisivo para o pensamento de Bourdieu ser tão discutido e
utilizado no meio acadêmico se deve ao fato de o autor propiciar críticas às teorias
deterministas de compreensão da realidade, a exemplo da abordagem marxista ortodoxa,
que segundo ele próprio “denuncia sem esclarecer nada” (BOURDIEU, 1997, p. 56). Para
o sociólogo francês, por outro lado, a noção de habitus serve como “recusa de a toda uma
série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito)
e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo” (BOURDIEU, 2009 p. 60).
Na vertente dos meios de comunicação de massa, o próprio Pierre Bourdieu
realizou uma análise sobre o funcionamento da mídia em seu ensaio Sobre a Televisão
(1997). No livro, o sociólogo discute o poder simbólico da televisão e as influências deste
no campo jornalístico, além de contribuir com apontamentos sobre algumas das principais
características da profissão a partir de sua atração ou repulsa com outros campos sociais
– como o intelectual, o econômico e o político. De outra parte, a relação peculiar entre a
relativa simplicidade estrutural da sociologia bourdieusiana e a profundidade analítica
passível de aplicação de seus conceitos em terrenos específicos tem levado diversos
autores a utilizar a obra do pensador francês para estudar, de modo particular, o campo
jornalístico e os vínculos estabelecidos entre os agentes internos do campo (os próprios
jornalistas) e os agentes externos que se localizam à margem da área profissional
(BARROS FILHO & MARTINO, 2003; RAMONET, 2004). Nesse contexto, a presente
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reflexão, no interior das limitações de um artigo, propõe-se a um semelhante percurso
para analisar o objeto empírico em questão.
2. O Mercado de Notícias: o jornalismo sob o vértice do documentário e da
dramaturgia
No desenvolvimento de seu argumento, o documentário O Mercado de Notícias
debate alguns dos principais parâmetros que definem os modos de ser e de pensar
oriundos do campo jornalístico, além de abordar a emergência histórica da imprensa e o
seu papel na construção da opinião pública. O fio condutor da produção é a peça
homônima escrita pelo dramaturgo inglês Ben Jonson, que tece uma crítica ácida e bem-
humorada sobre o início da atividade jornalística em Londres, no século XVII. A tradução
do texto para a língua portuguesa, trabalho que demandou cerca de três anos de trabalho,
foi realizada de forma inédita pelo próprio diretor do filme em parceria com a tradutora
Liziane Kugland. Em razão da complexidade da montagem, o processo de construção do
longa-metragem se estendeu por oito anos, período que envolveu a produção e a
dramatização da peça. Na composição do documentário, são intercaladas entrevistas com
13 jornalistas brasileiros – Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Geneton
Moraes Neto, Jânio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luis Nassif,
Maurício Dias, Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira e Renata Lo Prete –
e os atos da peça, composta por 14 atores gaúchos.
A peça de teatro possui uma função significativa na construção da narrativa
do documentário, pois possibilita, numa estética bastante particular, o debate de um fator
determinante ao argumento do longa-metragem: a transformação da informação em
mercadoria. Na trama, que se passa em Londres, em 1625, um homem chamado Pila Pai
simula sua própria morte e, disfarçado de mendigo, vigia seu filho, Pila Junior, que ao
completar a maioridade, começa a gastar a fortuna da família. Dentro desse contexto, uma
novidade emerge no território londrino: o surgimento de um Mercado de Notícias, que
cria um grande fluxo de informações prosaicas, o que leva Pila Júnior, no seio de rotina
de esbanjamentos, a conseguir um emprego para seu amigo, Tom. O pai desaprova a vida
de desperdícios que o filho leva e decide voltar, impondo ao prosélito a pena de viver na
mendicância. O texto coloca em discussão a curiosidade das personagens pelas notícias,
ou, ainda além, a ânsia popular por novidades, sobretudo por aquelas que não são calcadas
no interesse coletivo.
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A ideia de discutir o jornalismo e a importância social da atividade é evidenciada
por Jorge Furtado no roteiro do documentário, no qual o cineasta desenvolve uma defesa
inicial do campo jornalístico, denotando um paralelismo com a posição dos agentes
entrevistados:
(Cena: Furtado conversa com o elenco da peça, todos estão sentados em círculo)
Jorge Furtado: Eu não queria fazer um filme contra, queria fazer um filme a
favor. Então pensei assim, não vou falar mal dos maus jornalistas, vamos chamar
jornalistas que respeito, que leio, que admiro e ver o que eles acham o que é a
profissão de jornalista, estamos num momento de transformação total no
jornalismo.4
Pode-se afirmar, portanto, que o sufixo “ismo” não cabe à proposta de denúncia
apresentada pelo documentário, que – na interface que estabelece entre a estética
dramatúrgica, os depoimentos dos jornalistas e as intervenções do diretor – projeta com
sutileza, a um primeiro plano, nuances das contradições e da complexidade do campo
jornalístico, sem aportar em uma estratégia reducionista de esgotamento do assunto.
Nesse horizonte, o encontro entre o objeto empírico – o documentário O Mercado de
Notícias – com algumas das principais concepções da matriz teórico-conceitual da
sociologia bourdieusiana possibilita uma leitura verticalizada não apenas da própria obra
de Furtado, mas, sobretudo, a respeito das peculiaridades do espaço social demarcado
pelo microcosmo do jornalismo.
3. Campo jornalístico e habitus profissional: interfaces
De modo geral, o fio condutor da sociologia bourdieusiana se estrutura em torno
de uma tríplice de conceitos denominada Teoria da Prática, formada pelas concepções
de habitus, campo e capital. Segundo o sociólogo, esses conceitos, articulados, permitem
explicar as problemáticas intrínsecas do mundo social (o que inclui suas contradições e
disputas). Oriundo do pensamento crítico, Pierre Bourdieu procura escapar em suas
discussões à compreensão de que a sociedade é estruturada em um mero antagonismo de
classes. O teórico francês compreende a sociedade como um espaço abstrato de relações
humanas no qual se estruturam diferentes campos, compostos por agentes sociais que
exercem maior ou menor influência. Os campos sociais, nesse ínterim, estruturam-se em
relação às instâncias de poder e, mesmo sob influência destas, possuem autonomia
relativa em dinâmicas complexas de tensionamentos e disputas simbólicas.
4 Fala de Jorge Furtado. Decupagem: (04:03 - 04:19)
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O pensamento bourdieusiano parte do entendimento de que não é viável
compreender ou analisar o comportamento dos indivíduos de um campo a partir de uma
abordagem singular e individual. Ao invés de focalizar as mediações modeladoras
relacionadas ao comportamento, o sociólogo propõe a análise das condições estruturais
que são responsáveis por modelar valores simbólicos que se tornam compartilhados entre
os membros de certo campo: “o todo social não se opõe ao indivíduo. Ele está presente
em cada um de nós, sob a forma do habitus que se implanta e se impõe a cada um de nós
através da educação, da linguagem” (BOURDIEU, 2002, p. 33).
Pierre Bourdieu (2009) argumenta que os espaços abstratos de relações humanas
construídos socialmente configuram-se campos sociais arquitetados a partir de estruturas
estruturantes que remetem a um determinado habitus. Isto é, em tais campos, entendidos
como “uma forma de vida, ou seja, um espaço social acoplado a um sistema simbólico”
(MICELI, 2003, p.73), seus componentes passam a operacionalizar um conjunto
simbólico de sinais, práticas e modos de ver o mundo, internalizados inconscientemente
e manifestados a partir de um habitus – processo que resulta, nas palavras do próprio
Bourdieu (1989, p. 61), em um “conhecimento adquirido”.
No que tange o campo específico do jornalismo, Pierre Bourdieu chama atenção
para o conjunto de práticas, ações, perspectivas e representações simbólicas que são
incorporadas pelos jornalistas – de forma não necessariamente consciente – por meio de
estruturas objetivas (BOURDIEU, 1997). Nesse sentido, um importante aspecto apontado
pelo autor está relacionado às categorias de pensamento que os jornalistas possuem,
baseadas em um habitus incorporado – o que Bourdieu (1997) expressa na metáfora dos
“óculos” –, manifestadas em procedimentos de produção e de seleção noticiosa:
Não é menos verdade que o campo jornalístico, como os outros campos, baseia-
se em um conjunto de pressupostos e de crenças partilhadas (para além das
diferenças de posição e de opinião). Esses pressupostos estão inscritos em certo
sistema de categorias de pensamento ... Não há discurso (análise científica,
manifesto político etc.) nem ação (manifestação, greve etc.) que, para ter acesso
ao debate público, não deva submeter-se a essa prova da seleção jornalística, isto
é, a essa formidável censura que os jornalistas exercem, sem sequer saber disso,
ao reter apenas o que é capaz de lhes interessar, de “prender sua atenção”.
(BOURDIEU, 1997, p. 67).
Dessa forma, a visão conceitual de microcosmo elaborada pelo sociólogo fornece
subsídios pertinentes para um estudo sobre as práticas jornalísticas, uma vez que evita
reducionismos políticos ou econômicos na compreensão da lógica de funcionamento da
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atividade, compreendendo-a como um processo social complexo em que os próprios
jornalistas gozam de relativa autonomia ao mesmo passo em que tensionam-se com outros
campos sociais. Por conseguinte, o campo jornalístico arquiteta-se “... muito
heterônomo, muito fortemente sujeito às pressões comerciais existentes, exerce, ele
próprio, uma pressão sobre todos os outros campos, enquanto estrutura” (BOURDIEU,
1997, p. 77).
4. Uma leitura bourdieusiana do jornalismo no documentário O Mercado de
Notícias
Diante do quadro teórico-conceitual exposto, volta-se à proposta de uma reflexão
a respeito da constituição e dos tensionamentos intrínsecos e extrínsecos do campo
jornalístico a partir da interface entre o documentário O Mercado de Notícias e alguns
dos principais conceitos da matriz teórico-conceitual bourdieusiana, em especial as
concepções de habitus e de campo social. Procurar-se-á, com base na observação
empírica, evidenciar elementos do habitus profissional que são incorporados pelos
agentes do campo, além de outras peculiaridades da própria estrutura da atividade
jornalística que se desvelam na montagem do documentário. Num vértice metodológico,
são estabelecidas quatro categorias de análise tratadas a seguir.
4.1. Categoria de análise: o jornalismo e os tensionamentos instrínsecos do
campo
Ao construir a narrativa de O Mercado de Notícias, Jorge Furtado concede ao
próprio campo jornalístico – manifestado nas opiniões dos 13 jornalistas convidados –
uma autorização para se autorreferenciar e se definir. Do ponto de vista analítico, permite-
se, assim, uma recuperação da definição que Pierre Bourdieu (1997) atribui ao campo do
jornalismo com base na ideia de microcosmo. O sociólogo francês ressalta que o campo
do jornalismo, por mais que se mantenha em constante tensionamento com outros campos
sociais, possui suas próprias regras e disputas simbólicas; isto é, seus protagonistas
incorporam um habitus que, em certo sentido, define comportamentos que são partilhados
entre os próprios jornalistas. Trata-se, como observado, da metáfora bourdieusiana dos
óculos (BOURDIEU, 1997, p.67).
Tal observação de Pierre Bourdieu dialoga com os trechos do documentário nos
quais os agentes sociais entrevistados são questionados sobre a atividade profissional.
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Com exceção de Jânio de Freitas e de Mino Carta que, respectivamente, em um tom
irônico, que se auto-intitulam, “biscateiro”5 e “pau para muitas obras”6, todos os demais
profissionais questionados se apresentam como “jornalistas” e/ou “repórteres”. Inicia-se,
desse modo, um processo autorreferenciação do campo jornalístico, considerando que
seus agentes são apresentados de forma escalonada. Trata-se, ali, de uma primeira
manifestação do habitus profissional e dos valores socialmente incorporados que se
manifestam na denominação que os profissionais fazem da própria profissão. Na
sequência, as visões dos membros do campo jornalístico são colocadas em foco para
definir o que é o próprio jornalismo. São exemplos as falas de Leandro Fortes e de Mino
Carta:
Uma profissão muito antiga e também muito nobre, porque nós proporcionamos
às pessoas a compreensão da sociedade, né... e do mundo onde elas vivem.7
O jornalista, teoricamente, oferece aos leitores, no meu caso eu penso em leitores
sempre, a oportunidade de confrontar opiniões, de... ouvir versões, e de, também
conhecer aquilo que eu chamo de verdade factual, a fim de informar a sua
própria posição em relação aos fatos da vida e do mundo.8
O questionamento sobre as especificidades da profissão feito aos jornalistas –
oriundos de diferentes mídias, veículos e nuances político-profissionais – denota, como
alega Bourdieu (2013, p.38), “um sinal incorporado de uma trajetória social”,
sedimentando no interior da heterogeneidade das falas um conjunto de valores simbólicos
homogêneos e hegemônicos que se manifestam na defesa incessante do campo e na
autolegitimação das práticas (BARROS FILHO & MARTINO, 2003).
Nesse sentido, outro exemplo vem do jornalista Geneton Moraes Neto ao afirmar
que sua principal luta é “não perder a inocência que tinha quando começou a trabalhar
como jornalista”9. Moraes Neto ressalta que os jornalistas, de tanto lidar com o que é
extraordinário, passam a achar que os fatos cotidianos que destoam de uma ordem
estabelecida são simplesmente ordinários. A visão do profissional, sublinhada pelo roteiro
do documentário, corrobora a perspectiva bourdieusiana a respeito de outro
tensionamento intrínseco do campo: a procura constante dos jornalistas pela
exclusividade dos fatos. “Eles se interessam pelo extraordinário, pelo que rompe com o
5 Fala de Jânio de Freitas. Transcrição do trecho: (05:37-05:38) 6 Fala de Mino Carta. Transcrição do trecho: (05:40-05-43) 7 Fala de Leandro Fortes. Transcrição do trecho (06:07-06:14) 8 Mino Carta. Transcrição do trecho (06:32-07:04) 9 Geneton Moraes Neto. Transcrição do trecho: (13:04-13:16)
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ordinário, pelo que não é cotidiano – os jornais cotidianos devem oferecer cotidianamente
o extracotidiano” (BOURDIEU, 1997, p. 26).
4.2. Categoria de análise: o jornalismo e a crença nos fatos
No terreno dos “fatos”, Jorge Furtado utiliza casos pautados pela mídia brasileira
para questionar e tensionar o campo jornalístico e para problematizar outros valores
simbólicos incorporados pelos profissionais – a começar pela crença necessária no
argumento da factibilidade. Um dos casos retratados com comicidade é o da Bolinha de
Papel. Em 2010, os meios de comunicação passaram a pautar que o então governador do
Estado de São Paulo, José Serra, fora submetido a uma tomografia após por ter sido
agredido por um grupo de militantes de esquerda. No entanto, cinco diferentes câmeras
de televisão documentaram que o político fora atingido apenas por uma bolinha de papel
– possivelmente, vinda de um segurança de sua própria equipe.
(Cena: imagens de arquivo, em ângulos diferentes, das emissoras de televisão
que mostram uma bolinha sendo jogada em Serra)
Jorge Furtado: Quatro segundos depois que o homem de azul e o homem de vinho
são vistos lado a lado, a bolinha atinge Serra.
(Cena: outra imagem de arquivo, com um ângulo diferente)
Jorge Furtado: Aqui também aparece a mão levantada, e a camisa cor de vinho.
E ao lado dela, a manga azul do braço que joga a bolinha. Podemos afirmar com
certeza que foi o segurança de Serra que jogou a bolinha de papel? E se nos
quatro segundos que a câmera não mostra, um outro homem, também negro,
também de camisa azul também de mangas compridas, chegou exatamente
naquele ponto, jogou a bolinha e desapareceu? Quanto de certeza o jornalista
precisa ter para acusar alguém?10
Analisada sob uma numa perspectiva bourdieusiana, a construção do roteiro do
documentário – o que envolve as perguntas do cineasta e as respostas dos jornalistas –,
denota que os membros do campo jornalístico instados a falar acabam por legitimar, a
partir de seus esquemas de percepção, uma manifestação de suas práticas (o habitus) com
base nas interpretações que concedem ao caso. Mais um valor simbólico compartilhado
pelos agentes do campo é evidenciado pelo ponto de vista dos profissionais: a definição
de que os jornalistas trabalham com a necessidade da factualidade. Tal valoração – ou
modus operandi de referenciação das práticas – torna-se aparente, por exemplo, nas
respostas de Leandro Fortes e de Renata Lo Prete:
10 Fala de Jorge Furtado. Decupagem do trecho (20:56-21:32)
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100% [de certeza o jornalista deve ter]. Se não, não é informação jornalística!
Esse é um... o trabalho jornalístico mexe com isso... 100%11
Em princípio 100% [de certeza o jornalista deve ter], na realidade é mais
complicado do que isso, e sempre envolve alguma dose de aposta, na qual, às
vezes você pode tropeçar mesmo agindo naquilo que você considera seu melhor
discernimento12
A ideia de factualidade volta a ser ressaltada pelos jornalistas em diferentes pontos
do documentário. Trata-se, em outros termos, do ponto de vista (ou do argumento) de que
um jornalista deve necessariamente atuar na busca por “verdades” que sejam verificáveis
em uma eventual realidade fenomênica. A peça teatral que serve de fio condutor para o
longa-metragem, por sua vez, também instiga essa discussão em cenas como aquela em
que o personagem Pila Jr. entra em foco com a sua noiva Pecúnia e clama por notícias.
(Cena: Pila Jr. entra com Pecúnia no local e se dirige a Trombone)
Pila Jr: Princesa, este é O Mercado de Notícias. E este é o patrão. Eu peço que
deixe a minha princesa ouvir as novidades, caro senhor Trombone
Trombone: Senhor, todas essas notícias são igualmente certas e verdadeiras.13
Furtado utiliza esse momento da peça para discutir com os jornalistas
entrevistados a questão da crença nos fatos. Leandro Fortes volta a sublinhar que o ponto
fulcral da atividade jornalista está na factualidade.
É o nosso instrumento de trabalho, é o fato, tudo mais, a linguagem, a edição, é
floreio. A nossa... o nosso elemento básico de trabalho é a verdade factual.14
Maurício Dias desenvolve o mesmo argumento, porém partindo do princípio de
que existem mediações modeladoras que são responsáveis pela interpretação dos fatos
pelo público:
Eu não acredito que haja um fato bruto na natureza. “Pega aquele fato ali,
recolha e tal. Plante!”. Ah, tudo é interpretação.15
O argumento da factualidade presente nas falas dos profissionais entrevistados
integra um discurso histórico de auto-legitimação do jornalismo materializado nos (ou
incorporado pelos) agentes do campo a partir da metáfora bourdieusiana dos “óculos”. A
11 Fala de Leandro Fortes. Transcrição de trecho: (21:33-21:39) 12 Fala de Renata Lo Prete. Transcrição de trecho: (21:43-21:59) 13 Fala de Pila Jr. e Trombone. Decupagem do trecho (1:05:59- 1:06:10) 14 Fala de Leandro Fortes. Trecho da transcrição (01:06:31- 01:06:42) 15 Fala de Mauricio Dias. Trecho da transcrição (01:06:42-01:06:52)
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metáfora mostra-se pertinente para uma reflexão sobre as categorias de interpretação do
mundo social construídas no habitus profissional, o que é verificado na fala dos
jornalistas. Assim, embora Jorge Furtado recorra a uma obra da dramaturgia europeia do
século XVII para conduzir o documentário, a visão “ocular” contemporânea dos agentes
do campo escolhidos como representação de “jornalistas de respeito” remete a alguns
paradigmas hegemônicos introduzidos no modelo ocidental de jornalismo especialmente
a partir do final do século XIX e início do século XX: a crença necessária nos fatos como
caução da credibilidade e da confiabilidade jornalística e a emergência da objetividade
como ideologia profissional (SCHUDSON, 1978).
4.3. Categoria de análise: o jornalismo e as práticas anti-jornalísticas
O debate apresentado na produção de Jorge Furtado sobre uma modalidade de
jornalismo não propensa ao interesse público – ou, como apontado no próprio filme, sobre
uma manifestação do chamado anti-jornalismo – dialoga com o conceito bourdieusiano
de fatos-ônibus. De acordo com Pierre Bourdieu (1997), os fatos-ônibus subsidiam
aquelas notícias que não possuem importância para o interesse coletivo, entretanto que
assim mesmo são utilizadas no campo jornalístico de forma frequente. Numa perspectiva
crítica, o sociólogo reitera que a futilidade desses fatos e a sua exibição constante no
jornalismo impedem que o campo deixe de abordar temas de “real relevância social”:
Os fatos-ônibus são fatos que, como se diz, não devem chocar ninguém, que não
envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo
mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante. As notícias
de variedades consistem nessa espécie elementar, rudimentar, da informação que
é muito importante porque interessa a todo mundo sem ter consequências e
porque ocupa tempo, tempo que poderia ser empregado para dizer outra coisa.
... é que essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que
ocultam coisas preciosas. (BOURDIEU, 1997, p. 23)
A conceituação de Pierre Bourdieu encontra ressonância no documentário em
declarações como as dos jornalistas Mino Carta e Geneton Moraes Neto. Em termos
operacionais, as falas dos jornalistas manifestam a consciência do campo a respeito de
seus valores de legitimação, incorporados no habitus, o que contribui para decalcar uma
espécie de auto-defesa deontológica da profissão:
Então essa aspiração que vai ao encontro de uma manchete bombástica leva o
jornalista a valorizar fatos que não merecem aquela manchete 16
16 Fala de Mino Carta. Transcrição: (52:37- 52:48)
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Aquele buraco que existe entre a força da realidade e a realidade transcrita
depois nos jornais ou na TV, frequentemente existe um abismo entre essas duas
coisas e isso aí depõe contra o jornalismo e eu diria até que é um risco à
sobrevivência do jornalismo.17
O núcleo da argumentação presente nos depoimentos colhidos por Furtado
direciona a existência daquelas notícias compreendidas na tipologia bourdieusiana como
fatos-ônibus à cobertura jornalística do campo político no Brasil; isto é, remetem ao
tratamento – implícito ou explícito – que os acontecimentos políticos recebem a partir de
abordagens jornalísticas não necessariamente calcadas no interesse público.
Pierre Bourdieu (1997) desenvolve uma crítica sofisticada ao habitus profissional
dos jornalistas e ao consequente processo de seleção das notícias ao apontar que o campo
jornalístico possui um tipo específico de preeminência em relação aos campos político e
intelectual, dentre outros, uma vez que a notoriedade pública, característica intrínseca do
jornalismo, contribui em grande escala para a difusão e para a distribuição da informação,
o que “para os políticos e para certos intelectuais, é um prêmio capital” (BOURDIEU,
1997, p.66). A parametrização instituída no interior do habitus profissional e validada
pelo campo jornalístico como “critérios noticiosos”, por conseguinte, contribui para que
os acontecimentos debatidos no espaço público midiático se atrelem, muitas vezes, mais
à própria visão de mundo dos jornalistas do que propriamente ao interesse coletivo
(SILVA, 2013) – o que, novamente no escopo de um argumento de auto-legitimação das
práticas, é tratado de modo suficientemente interessante no documentário sob a égide do
“anti-jornalismo”.
4.4. Categoria de análise: o jornalismo e os tensionamentos extrínsecos
Na perspectiva bourdieusiana, o campo jornalístico constitui-se um microcosmo
com autonomia relativa no bojo de uma dinâmica de tensionamentos intrínsecos (entre os
próprios agentes) e extrínsecos (com outros campos sociais, como o econômico, o político
e o intelectual). Nesse ínterim, uma discussão muito cara ao documentário O Mercado de
Notícias materializa-se na cena em que os jornalistas são questionados sobre a posição de
um determinado veículo18 em relação aos outros campos constituintes da sociedade. Os
“agentes do campo” passam, então, a “debater” a relação entre o microcosmo do
17 Fala de Geneton Moraes Neto. Transcrição: (52:49-53:07) 18 Quadro de transição: A posição do jornal (35:00)
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jornalismo e suas diversas interfaces. A visão bourdieusiana do campo jornalístico como
“relativamente autônomo”, propício a um espectro de ações e práticas por parte dos
profissionais, é explicitada na fala sequência de falas dos agentes entrevistados no
documentário, das quais pode-se denotar as noções de autonomia e de tensionamento.
As respostas de José Roberto de Toledo e de Paulo Moreira Leite ao serem
questionados a respeito da frase de Millor Fernandes – “a imprensa é oposição, o resto é
armazém de secos e molhados” – explicitam a compreensão dos jornalistas em relação à
autonomia relativa da imprensa:
Imprensa é oposição o resto é secos e molhados Não no sentido de fazer
oposição partidária ao governo, ou a qualquer governo, mas no sentido de trazer
o ponto de vista oposto ao confronto... provoca um confronto com o que é
estabelecido, com o que é o que deveria ser o normal, ou o aceitável no senso
comum. Justamente pra provocar dúvida, porque se você não tiver dúvida, você
não sai do lugar. 19
Os jornalistas não gostam de falar disso, mas imprensa é poder. Ela é poder.
Não é que ela cobre o poder, “nós cobrimos os fatos, andando na rua, cai o fato
eu explico”, não! Você vai atrás de alguns fatos, não vai atrás de outros fatos.
Você publica alguns fatos, não publica outros. Você checa muito um fato, e você
não checa outro. Um editor que não quer publicar uma notícia e ele não quer
dizer que ele não quer publicar uma notícia, ele fala: “vamos checar mais uma
vez”.20
Mino Carta, por sua vez, propõe uma autocrítica ao campo ao problematizar a
crença existente no imaginário popular da imprensa como uma instituição imparcial. O
jornalista argumenta que a mídia no Brasil possui fortes condicionantes políticos – um
notório tensionamento entre os campos sociais.
Os jornais repercutem o que interessa a eles, quer dizer, a verdade factual, ele
não repercute se não serve ao raciocínio deles. Não é assim na Inglaterra, não é
assim na Itália, não é assim na França.21
No plano teórico, a influência do campo jornalístico (bem como os
tensionamentos com os campos político e econômico) é discutida por Bourdieu a partir
da própria ideia de constituição de um microcosmo: trata-se de um espaço heterônomo
que, sujeito às pressões extrínsecas, exerce, ele mesmo, uma pressão sobre todos os outros
19 Fala de José Roberto de Toledo. Transcrição do trecho: (38:12- 38:34) 20 Fala de Paulo Moreira Leite. Transcrição do trecho: (40:10-40:36) 21 Fala de Mino Carta. Transcrição do trecho: (36:12-36:26)
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campos, enquanto estrutura (BOURDIEU, 1997, p. 26). Nesse sentido, o argumento do
sociólogo francês encontra respaldo na posição de Paulo Moreira Leite:
Tem uma coisa que é poder. Que é maior que é maior que interesse. Eu acho que
o Brasil essa turma esses 1%, que no Brasil eu acho que é 0,1%... Eles têm um
sistema de poder que o pressuposto é uma concentração muito grande da
riqueza, muito grande. Quando essa riqueza se desconcentra, automaticamente,
vão surgindo sinais de perda de poder que podem se transbordar. Nesse governo
aí [2014] foram abertas algumas brechas, algumas coisas foram modificadas,
mas (indecrífravel) o sistema geral continua o mesmo. Eu acho que é um projeto
de país que não tá na cabeça das pessoas. A cabeça das pessoas é... sabe, é um
projeto de país exclusivo, um país hierarquizado, sabe, é aquele país onde você
tem assim, sabe, um monte de empregadas domésticas, sabe... (...) será que um
dia vai mudar um pouco. 22
O diálogo entre as ideias de Pierre Bourdieu sobre o jornalismo e a visão dos
jornalistas entrevistados no documentário O Mercado de Notícias mostra-se pertinente
para o entendimento da complexidade do campo, uma vez que, entre outros aspectos,
respalda a ideia de uma “autonomia relativa” presente nas relações existentes entre a
atividade jornalística, a política e a economia. Nesse sentido, agrega elementos que
permitem problematizar a dicotomia em torno da ideia de que a produção e a difusão das
notícias funcionam apenas como meros reflexos de forças econômicas e/ou políticas –
leitura que esvazia a complexidade e a multiplicidade de valores e forças simbólicas em
jogo. Volta-se, assim, à interpretação concedida pelo sociólogo francês ao jornalismo
como um campo constituído de agentes dotados de um habitus profissional, que
tensionam-se entre si e tensionam, também, agentes sociais oriundos de outros campos.
Tais agentes jornalísticos, ao ocuparem-se de ação e prática no interior do campo, por
mais que sejam lapidados por este, também o lapidam e tensionam suas fronteiras.
Reconhece-se, dessa forma, que o jornalismo, como atividade social, está em constante
disputa e transformação.
Nessa conjectura, as falas dos 13 jornalistas entrevistados no documentário, em
diálogo com a peça teatral que serve de base para o roteiro do filme, propicia a
identificação de uma modalidade de “estruturalismo construtivista” nos termos do
pensamento bourdieusiano (VALLE, 2007) materializado em agentes críticos com a
própria atividade profissional e cientes das tensões, fragilidades e mudanças no campo –
ou, ainda além, constitui-se a materialização de uma dinâmica dupla de auto-crítica
22 Fala de Paulo Moreira Leite. Transcrição do trecho: (1:23:22)
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constante, por um lado, e, por outro, de uma incessante autolegitimação do sentido
histórico da profissão em tempos de alterações estruturais (sobretudo tecnológicas,
estético-expressivas e deontológicas) no jornalismo (BARROS FILHO & MARTINO,
2003).
5. Considerações finais
Reconhecer com base em uma observação empírica os valores simbólicos
partilhados, as categorias de pensamento, os costumes e os modos de enxergar o mundo
social a partir do habitus profissional dos jornalistas – ou, como o próprio Bourdieu
(1997) metaforiza, a partir de seus “óculos” – permite uma compreensão mais ampla dos
mecanismos de funcionamento do campo. O pensamento sociológico de Pierre Bourdieu
tem servido como um rico arcabouço para subsidiar estudos nas áreas das Teorias do
Jornalismo e das Teorias da Comunicação, uma vez que fornece elementos teórico-
conceituais para pensar as especificidades do universo dos meios de comunicação de
massa, seu modus operandi e suas problemáticas intrínsecas. Nesse sentido, há uma gama
de trabalhos no Brasil direcionados ao assunto, a exemplo de Barros Filho & Martino
(2003) e Silva (2013), dentre outros.
Aplicar os conceitos de habitus e de campo social a partir de categorias de análise
no documentário O Mercado de Notícias traduz-se num desafio pelas próprias
particularidades narrativas da linguagem cinematográfica documental. A interface entre
a Teoria da Prática de Pierre Bourdieu e a produção de Jorge Furtado, porém, possibilita
algumas observações pertinentes a respeito da constituição do campo jornalístico. As
opções narrativas aplicadas ao documentário, que congrega depoimentos de jornalistas
cuidadosamente selecionados, a montagem contemporânea de uma peça dramatúrgica do
século XVII e as intervenções precisas do cineasta, são demasiadamente multifacetadas
para o esgotamento no âmbito de um artigo. Permitem, todavia, uma leitura complexa
que segue na contramão das interpretações que reduzem os agentes sociais a papeis
predeterminados no interior de uma macroestrutura.
O que se observa em jogo, para além do capital econômico, são valores simbólicos
que se tencionam em disputas intrínsecas e extrínsecas entre uma gama diferente de
agentes sociais. O conjunto de relações denotado das quatro categorias de análise
empregadas encontra respaldo na discussão promovida por Valle (2007) ao argumentar
que, na perspectiva de Pierre Bourdieu, por mais que os sistemas simbólicos estruturados
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como linguagens, mitos e pontos de vista constituam e, de certa forma, determinem os
habitus nos mais variados campos sociais, estes, de outra parte, possuem categorias de
pensamento e ação relativamente autônomas que também são passíveis de tensionar e
constituir as estruturas sociais. Desse modo, mesmo entre a heterogeneidade das visões
de jornalismo apresentadas pelos entrevistados e pelo documentarista (seja em suas
intervenções diretas ou nos recortes da peça teatral), identifica-se na análise uma
homogeneidade de valores que remetem a um discurso histórico de autolegitimação da
profissão, à auto-defesa dos tensionamentos extrínsecos oriundos de outros campos de
poder e, ainda assim, à auto-crítica constante entre os pares.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 12.ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2009.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
BARROS FILHO, Clóvis de, MARTINO, Luis Mauro Sá. O habitus na comunicação.
São Paulo: Paulus, 2003.
FURTADO, Jorge. O projeto. 2014. Disponível em:
<www.omercadodenoticias.com.br/o-projeto>. Acesso em: <01.nov.2017>.
MICELI, Sérgio. Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura.
In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. Universidade de São Paulo. Vol. 15. N.
1, abril, 2003.
MARTINS, Maurício Vieira. Bourdieu e o fenômeno estético: ganhos e limites de seu
conceito de campo literário. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 19. N. 56,
outubro, 2004.
RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. 3.ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2004.
SCHUDSON, Michael. Discovering the news: a social history of American newspapers.
New York: Basic Books, 1978.
SILVA, Marcos Paulo da. As dissonâncias cotidianas nas rotinas dos jornais: o habitus
jornalístico e a atribuição de um sentido hegemônico às notícias. Estudos em Jornalismo
e Mídia (UFSC), v. 10, p. 69-84, 2013.
VALLE, Ione Ribeiro. A obra do sociólogo Pierre Bourdieu: uma irradiação
incontestável. Educação e Pesquisa, v.33, n.1, p.117-134. São Paulo: jan/abr 2007.