sonata nº 2 para violino e piano · 2018-08-24 · mÚsica, histÓria e trabalho: o drama do...
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MÚSICA, HISTÓRIA E TRABALHO: o drama do compositor brasileiro no
século XX.
BRENO AMPÁRO1
O tema era a Sonata nº 2 para violino e piano composta no ano de 1933, por
Mozart Camargo-Guarnieri. Mário de Andrade debruçava-se, inquieto, na escritura da
epístola2 que, endereçada ao compositor, trazia reflexões estéticas sobre a música que
acabara de “ler”3. Dizia que a peça musical analisada suscitou “uma porção de
problemas gerias da arte e da música contemporânea” (ANDRADE, 1934). Aquela
altura, 11 de agosto de 1934, o autor da carta já acumulava experiências diversas
envolvendo debates referentes à estética musical. A partir dessa correspondência o
presente artigo busca investigar as possibilidades históricas, tensões e desafios do
trabalho artístico como forma de objetivação do ser social sob a particularidade do
compositor em questão.
Mário de Andrade (1893-1945) foi um sujeito histórico que atuou de forma
plural no campo das artes nacionais. Apesar de sua memória fulgurar pelos cânones
historiográficos por meio da expressão de sua obra literária, precisamente como escritor
de Macunaíma: o herói sem caráter, é da análise objetiva dos documentos que produziu
ao longo de sua vida (cartas, ensaios, críticas jornalísticas, crônicas) que emana a
possibilidade de problematização acerca das formas e condições concretas que o sujeito
tinha da exteriorização de sua subjetividade. É nesse sentido, da analítica aplicada a
partir de uma documentação histórica produzida por sujeitos históricos reais, que se
pode dizer que Mário de Andrade, antes da realização de sua obra enquanto literato,
tinha a música como forma mediativa de seu trabalho. Embora a cessão da carreira
enquanto instrumentista o tivesse acometido em função do falecimento do irmão mais
velho – Renato que também tinha planos para ser concertista de piano – o autor
condicionou-se ao professorado e aos estudos da estética musical, produzindo um vasto
e complexo acervo de documentos literário-musicais.
1 Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP. 2018. 2 Trata-se de carta de Mário de Andrade a Camargo Guarnieri, 11 ago. 1934. Cf: SILVA, Flávio ( Org.).
Camargo Guarnieri, o Tempo e a Música. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Imprensas Oficiais de São
Paulo, 2001. 3 Em música, “ler” significa tocar a obra musical em questão a partir da partitura.
Assim, pela análise do trabalho de Mário de Andrade, tomado na forma de
seus escritos musicais, investigam-se as condições de sua efetiva
particularidade no devir histórico-social, trazendo de maneira consciente
para o eixo investigativo o núcleo humano que compõe a urdidura das
problematizações no âmbito concreto da perspectiva histórica. O
pensamento do autor, expresso por suas palavras, determinaram os traços de
sua singularidade, vincada pela sociabilidade concreta no momento de sua
evocação, de forma que as condições históricas conformam e sugerem certa
condição de existência para o indivíduo. (AMPÁRO, 2018: 22).
Mozart Camargo-Guarnieri (1907-1993) foi um pianista e compositor
paulistano. Natural da cidade de Tietê, o artista era fruto da união entre um imigrante
italiano e de uma filha de fazendeiros paulistas. Miguel Guarnieri e Géssica de Arruda
Camargo, pai e mãe, residiam na cidade do interior paulista, quando nasceu Mozart, um
dos filhos do casal. Como imigrante, Miguel trazia a habilidade artística musical na
expressão de sua flauta. A mãe, por sua vez, criada nos costumes tradicionais das
famílias paulistanas, era versada em piano. Esse cenário musical familiar foi
possivelmente a potencialização das condições que Mozart vivenciou e aspirou para sua
formação. A ambiência artística somada às experiências, sobretudo do pai flautista,
condicionaram um aprendizado musical precoce aos moldes da época na região,
sobretudo para uma família que gozava sérias limitações financeiras. Dividindo as aulas
particulares de teoria musical e piano com o tempo para ajudar o pai na barbearia,
Guarnieiri foi aprimorando a arte pianística e composicional de forma a alçar patamares
profissionais.
São Paulo, cotidiano e trabalho:
Em 1923, com a chegada em São Paulo, os artistas, nas figuras de Miguel e
Mozart, aplicaram ao já árduo cotidiano na barbearia, uma rotina de trabalhos musicais.
“Miguel, que era flautista, empregou-se no Cine Bijou para reger a orquestra, na qual
colocou o filho como pianista.” (ABREU, 2001 : 36). Esse evento foi o primeiro de
muitos na capital do Estado, que marcariam a contínua luta para superar os desafios de
manter-se vivo por meio da música.
Naquele momento, seu convívio com a música estava associado à luta pela
sobrevivência. Trabalhava dia e noite, em pontos distantes e ambientes
diferentes. Ele os percorria, quando não a pé, de bonde. E se tinha sorte de
encontrar lugar perto da janelinha, sentava-se e, algumas vezes, tirava uma
soneca. Isso ocorria logo depois do almoço, no trajeto para o centro da
cidade, onde se localizava a Casa Di Franco [loja de partituras]; nesta loja
permanecia das 13 horas às 17:30, tocando peças de dança que os fregueses
desejassem ouvir até encontrar a que mais lhes agradasse. Colocavam a
música na estante do piano e o rapaz ia lendo. ( ABREU, 2001 : 36).
A rotina de trabalho, porém não se encerrava às 17:30. Ao término do
expediente na loja de partituras, deslocava-se até o Cine Rio Branco, no qual dirigia
orquestra durante as sessões de exibições de filmes que normalmente se encerravam às
23h. Na madrugada, era frequente sua presença enquanto músico pianista nos bailes o
que promovia uma extensão de sua rotina até por volta das 6 horas da manhã. Ainda era
hábil para organizar em sua jornada a sua rotina de estudos com as lições de piano
passadas pelo professor Ernani Braga.
O quadro exposto anteriormente sinalizou a particularidade das condições
materiais de subjetivação pela via artística musical de Mozart Camargo Guarnieri,
dentro de um contexto geral, onde se podem encontrar inúmeras histórias parecidas.
Tensões, estratégias e formas de resistir coexistem junto das habilidades artísticas ao
alvoroço das transformações vividas na cidade de São Paulo nessa alvorada de século
XX para os músicos em geral.
A música enquanto linguagem é expressão comunicativa sensível,
organização e projeção de sons por meio da operação humana. Objeto que emana das
necessidades comunicativas sociais, fruto de uma consciência prática forjada pelo devir
de seres sociais na dinâmica histórica, a linguagem musical é resultado do trabalho
humano – sentido mediativo entre homem e natureza que modifica o meio ambiente e a
si próprio com o objetivo de superar as condições historicamente herdadas de
sobrevivência.
Assumindo formas distintas na esteira da história, as necessidades
comunicativas projetadas pela expressão musical podem evidenciar particularidades
históricas e culturais que pelo traçado de sua objetivação a tornam uma categoria de
análise. Fruto de uma consciência comunicativa que nasce e se desenvolve por meio da
superação das condições limítrofes de fruição e gozo da vida material impostas
sobretudo pelos mecanismos sociometabólicos de produção, problematiza-se aqui a
expressão de sua historicidade lastreada pelas possibilidades profissionais na capital
paulista nas décadas iniciais do século XX.
Assim, a investigação das possíveis categorias profissionais do mercado
musical deve centrar-se em dois polos analíticos. Por um lado, os espaços onde as
musicas eram apresentadas como forma de atendimento a uma demanda crescente do
mercado do entretenimento, por outro, das possibilidades profissionais acerca das
demandas do gênero musical.
Os setores mais abastados da população divertiam-se desde os últimos anos
do XIX e principalmente nos primeiros deste século, em um variado quadro
de difusão cultural. Nos teatros assistia-se às apresentações de concertos,
óperas operetas e revistas musicais. (...) Para atender à demanda crescente
da elite paulista por uma música de gosto europeizado, uma respeitável,
grandiosa e funcional casa de espetáculos foi inaugurada em 1911: o Teatro
Municipal. (...) Também nas salas de entrada das grandes casa de
espetáculos e dos bons cinemas, sempre havia pequenas orquestras,
conjuntos ou bandas e solistas que apresentavam a “boa música” ao vivo.
Os tradicionais cafés-concerto paulistanos, frequentados apenas pela elite
da cidade, apresentavam ao cair da tarde ou durante a noite, de modo mais
descompromissado, concertos de pequenas orquestras, conjuntos e solistas.
As inúmeras casas de instrumentos musicais e partituras que se
multiplicavam pelo Centro, criavam o hábito salutar de oferecer, por
intermédio de seus bons profissionais, contratados especialmente para
experimentar e apresentar os instrumentos, pequenos solos em determinados
horários do dia, torando a audição e a programação musical mais ampla.
(MORAES, 2000 : 19 e 20).
Vê-se, portanto, que os núcleos de difusão musical de alguma forma
estavam atrelados as possibilidades de afirmação profissional pela música. Fossem nas
salas de cinema, salas de concerto, cafés e lojas de partituras, a presença do profissional
de música era marcada pela sua múltipla funcionalidade.
Outro elemento que pode ter introduzido elementos dinâmicos a
sociabilidade dos profissionais da música aquele tempo, é a indústria fonográfica.
Ainda que as estruturas de mercado musical sobrevivessem em função de
condições herdadas do século anterior, durante as primeiras décadas do
século XX, novas possibilidades de trabalho para musicistas profissionais
surgiam graças ao aparelhamento da indústria fonográfica. Inaugurados na
primeira metade do século XX, os primeiros estúdios das gravadoras de
discos na cidade de São Paulo eram uma alternativa de trabalho para
instrumentistas, compositores e arranjadores. As demandas para esse tipo de
trabalho apresentavam características diversas, às quais, no entanto, nem
sempre a educação musical formal atendia.( AMPÁRO, 2018 : 126).
Observa-se assim, que as condições práticas da profissionalização musical
eram dinâmicas e tencionavam-se em constante relação com as demandas do comércio
musical de seu tempo. Seguindo a particularidade histórica da investigação aqui
proposta, percebe-se que Mozart Camargo Guarnieri, como indivíduo singular e ativo,
foi agente movente e movido pelos complexos sociais e culturais que o envolviam.
Transitando pelas diversas esferas profissionais da música, potencializava na prática os
mecanismos de seu fazer musical.
A gênese de um pensamento musical:
Ainda que se possa verificar e problematizar o mosaico de potenciais
caminhos seguidos na esteira de sua formação, o trabalho do músico como compositor é
pedra angular nesse artigo. Em consonância, considerando todas as etapas de seu
processo histórico como elementos fundamentais de sua práxis artística, há de se
considerar sua relação com o esteta, músico e crítico musical, Mário de Andrade.
A dinâmica estabelecida entre os dois artistas pode oferecer dados concretos
para uma problematização geral do trabalho de composição, em particular os desafios e
limites históricos da criação musical sob a perspectiva cultural dos elementos artísticos
nacionais. Andrade, que por meio de seus escritos sobre música, problematizava o
cenário da música de concerto no Brasil à luz dos trabalhos de diversos compositores,
projetava nesses, a responsabilidade da elaboração de uma obra genuinamente de cunho
nacional.
No ano em que se conheceram 1928, Mário de Andrade publicava a obra
Ensaio sobre a música brasileira que “fornecia um material que acreditava ser inédito,
pela particularidade de sua documentação” ( AMPÁRO, 2008 : 31). Em carta ao amigo
Manuel Bandeira, o musicólogo afirmou que “O livro vale é por isso, traz nada menos
de 126 músicas populares, melodia só, imagino que todas inéditas e muitas de fato
interessantíssimas como valor artístico, além do valor folclórico que todas tem”
(MORAES, 2001: 400) .
Naquele momento, Camargo Guarnieri com apenas 21 anos já
desempenhava seu trabalho como compositor. Durante algum tempo, o jovem
compositor frequentou a casa de Mário de Andrade. Lá, conversavam sobre música e
estética musical. A relação epistolar não tardaria para acontecer.
Os documentos pertencem a um período muito importante na vida dos
correspondentes: 1928-1943. Abrangem o final do primeiro tempo
modernista, o projeto cultural de Mário na direção do Departamento de
Cultura em São Paulo, entre 1935- 1938, quando ambos são colegas de
trabalho; a mudança do escritor para o Rio e o regresso dele a casa da rua
Lopes Chaves; os estudos de Guarnieri na França às vésperas da guerra e os
percalços dos bolsistas brasileiros; a viagem do compositor aos Estados
Unidos, dois anos antes da morte do amigo, em fevereiro de 1945. Nesse
diálogo, o fôlego epistolar de Mário encontra em Guarnieri um interlocutor
a altura, pontual e forte nas análises musicais.( TONI, 2001 : 189).
À luz das potencialidades analíticas que emanam do diálogo epistolar, duas
cartas assumem a centralidade do debate musical e estético. A rigor, as cartas datam
especificamente de 11 de agosto de 1934 e 22 de agosto de 1934. Entre as duas
correspondências, existe uma carta de resposta do compositor datada de 13 de agosto de
1934. Serão aqui trabalhadas as duas primeiras.
Particularidades do trabalho musical na expressão estética da
linguagem:
A centralidade do debate estético no discurso do esteta traz considerações
acerca do trabalho da composição. Em linhas gerais, problematiza a criação musical
vincada a uma sociabilidade característica das respectivas demandas históricas e
culturais, evidenciando o seu caráter dinâmico. Na particularidade da análise da obra
Sonata nº2 para violino e piano, o professor apontou problemas dos quais indicava
serem universais ao processamento artístico e a contemporaneidade, especificamente as
tendências composicionais de compositores brasileiros aquele período.
A altura da terceira década do século, o musicólogo parecia esperar que os
compositores brasileiros com os quais se correspondia expressassem a síntese de seu
pensamento musical, sendo esses versados na arte do manejo dos sons. Com Mozart
Camargo Guarnieri, salientou alguns pontos dos quais destacam-se por sua “indiferença
incomoda” com relação à obra que acabara de analisar.
Justificando a indiferença com a qual a Sonata o havia tocado, afirmava de
forma contundente que o compositor estaria “sendo inteiramente escravizado pela sua
invenção, ou, o que é pior, por aquilo que você pensa que é a invenção, e não é, é
apenas a falsificação intelectual da invenção.” (ANDRADE, 1934).
Explicando o itinerário de sua argumentação,
Uma pessoa aprende a compor, como aprende a fazer versos ou escultura.
Bem, adquiriu o ofício. Este ofício, este metiér, que é utilíssimo e valoriza,
vai valorizar a invenção (...) esse metiér é também perigosíssimo porque
muitas vezes ele não é apenas prático e ajuda a fazer a parte técnica da
obra, mas é também intelectual, e ajuda a fazer a parte espiritual, digamos
assim, da obra, isto é, aquela parte em que ela deriva essencialmente da
invenção. E com isso, o metiér vai se introduzindo sub-repticiamente no
nosso ser psicológico, e ameaça a substituir a invenção. A gente pensa que
está inventando um tema, uma polifonia, em fez, não está, é o metiér, é a
habilidade de fazer o que está fazendo. Não se trata pois dum apelo profundo
do ser, dum grito necessário, duma verdade lírica fruto de sofrimento de
gozo ou mesmo de reflexão: se trata assim da macaqueação de tudo isso,
feita pela habilidade técnica. (ANDRADE, 1934).
Segundo o esteta, a composição é a forma finalística da criação e operação
dos sons artisticamente concernentes à musica. Dessa forma, pode-se entender que o ato
de compor é a forma particularizada do trabalho de natureza artístico-musical. O ofício
adquirido, entendido aqui como o domínio da prática composicional, pode favorecer a
um certo caráter perverso na criação artística, uma vez que esta habilidade se torne
rotineira. Em outras palavras, à medida que a prática ou o domínio das etapas
concernentes ao complexo criativo musical supera desafios na esteira do aprimoramento
das técnicas composicionais, o compositor tende anular sua subjetividade criativa em
função da prática que se repete, quase que impulsivamente favorecendo menor
aplicação crítica pelo crivo do artista. O ato de compor como dimensão particular do
trabalho, subordina-se à prévia ideação subjetivada no processo de seu criador. De
forma que,
No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava
presente na representação do trabalhador no início do processo, ou seja, um
resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma
alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo
tempo, a finalidade pretendida, que , como ele bem o sabe, determina o modo
de sua atividade com a força de uma lei, à qual ele de subordinar sua
vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos
órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um
fim, que se manifesta como atenção do trabalhador durante a realização de
sua tarefa, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo seu próprio
conteúdo e pelo modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto
menos este último usufrui dele como jogo de suas próprias forças físicas e
mentais. (MARX, 2017: 256)
Em linhas específicas, pode-se problematizar a questão a partir das
condições objetivas de vida do compositor. Assim, a subsunção ao cotidiano paulista,
voltado a supressão das necessidades materiais de sobrevivência, como visto
anteriormente, sugere a captura da subjetividade. Como resultado, tem-se um processo
de anulação da criação do sujeito do trabalho que se expressa pelas limitações
destacadas por Andrade. Como consequência, o sujeito passaria a exercer de maneira
quase que automática sua atividade, sem levar a sua subjetividade as últimas
consequências.
(...) um artista, da mesma forma como pode imitar outro alguém, pode
também imitar as ordens gerais da criação, fazer uma coisa que ele queira
que seja profunda, fazer outra que ele queira que seja graciosa, fazer outra
que ele queira que seja ardente. Aqui é que eu quero chegar. Este querer do
artista muitas vezes não é consciente a ele, ele não sabe que está querendo
isso, porque não se analisou devidamente. E então sucede que ele faz uma
Sonata para violino e piano, não porque lhe sucedeu fazer uma Sonata pra
violino e piano, mas porque ele estava querendo fazer uma isso. E começa.
Allegro. Então ele inventa um tema, que sua habilidade técnica sabe que
pode ser executado pelo piano e pelo violino. E desenvolve o tema. E depois
imagina um segundo tema contrastante e depois as repetições e esta feito um
alegro de sonata. E depois sai o andante e a sonata acaba saindo inteirinha
desse jeito. Ele pensa que inventou uma sonata, e na verdade, apenas
escreveu uma sonata. E esse me parece o caso de você frequentemente. Está
certo quanto à aquisição de técnica, treino de compor. Mas, e aqui é que está
a sua falta de faculdade de reação que indiquei atrás, o desastre é que você
acaba traído pela sua sonata (...). Você acaba acreditando nela. Você não se
controla suficientemente para verificar com dureza, que exige de fato muito
sacrifício e muita humidade, que aquilo não é essencial, não é você, mas é a
habilidade intelectual técnica, imitando você. ( ANDRADE, 1934).
Das observações expressas pelo esteta, vale reter alguns pontos de sua
argumentação relativos à analítica técnica do trabalho composicional. Investigando a
problemática proposta, evidencia-se um drama circunstancial no processo de criação. O
que seria arbitrário para o compositor, no sentido das escolhas de sua prévia ideação,
expressa-se objetivamente como uma imposição dilacerante referente às condições
herdadas de cunho estético musical. Sob formas designativas e contrapostas, o autor da
carta aponta como consequência desse processo prático-intelectual que a “invenção”
aspirada no processo de criação, se limita a mera repetição ensimesmada da própria
subjetivada em sua “escrita”. Extraindo características segundo a exemplaridade de
Camargo Guanieri, o professor buscou a universalização das referências sob a
particularidade dos compositores brasileiros do período.
Seu posicionamento para com os artistas brasileiros (...) é claro: o artista
brasileiro deve estar consciente do estado das artes nacionais, e seu
processo criador precisa levar às últimas consequências as mediações que,
somadas ao aspecto do artesanato, buscam expressar os traços da
singularidade artística, em consonância com a utilidade estética da obra. A
composição musical sintetizaria os elementos musicais colhidos de músicas
populares “interessadas”, por atenderem uma necessidade imediata
humana, como os cantos de trabalho, e se transformaria em elemento
artístico de contemplação, portanto, “desinteressado”. ( AMPÁRO, 2018:
80).
Escrevendo como forma de expressar as inquietações artísticas da lida
cotidiana, Andrade mesclou em sua epístola crítica, elementos de fundamentação
filosófica com elementos musicais que correspondiam a problematização referente às
questões particulares ao período em que se encontrava a produção da música brasileira.
Ver-se-á nessa direção que o autor adentra ao universo técnico musical, esboçando
criticas contundentes forjadas à luz da apreciação da música de Camargo Guarnieri, mas
que pela gênese do construto argumentativo, toma as como referências gerais aos
compositores brasileiros.
(...) aí se introduz o problema mais terrível da música do nosso tempo: o
atonalismo. É a libertação da tonalidade e consequentemente do acorde que
criou essa epidemia da alteração, que acabou usando a alteração pela
alteração, isto é, sem nenhuma razão humana. A dissonância se tornou
inteiramente gratuita e se introduziu no corpo da própria melodia, com a
mesma gratuidade. Altera-se um som no corpo duma melodia só e
exclusivamente porque dar o som real, o som que a invenção ditada e a
normalidade exigia...é banal, já está feito. (ANDRADE, 1934).
Mais adiante, apontou, que em geral, apesar da obra em que se referenciava
as críticas, gozar de pontos positivos em relação a técnica, existia,
Uso da dissonância pela dissonância, gratuitamente. Abuso da alteração,
atingindo um atonalismo perigoso. Abuso da interpretação modulatória.
Abuso da sincopa, abuso da sétima abaixada, isto é, abuso de brasileirismo,
ou melhor, falsificação do brasileirismo. Abuso da apoiadura que você tirou
e sistematizou de certas passagens de Villa-Lobos. ( ANDRADE, 1934).
Na carta de 22 de agosto, seguiu na mesma direção afirmando que o
compositor
(...) dorme nas formas já feitas. (...) Sua desculpa de que faz sincopas e
sétimas abaixadas porque é brasileiro, não valem, porque o Brasil é muito
mais do que isso, e o papel do artista criador não é figurar uma
nacionalidade mas transfigura-la, de maneira a sintetizar na obra dele o que
na pátria está disperso. (ANDRADE, 1934).
A letra crítica mariodeandradiana apontava a discordância com relação ao
uso do atonalismo. Em linhas gerais a música atonal, expressão da superação da
tonalidade, - referentes às músicas e culturas ocidentais - expressava certo rigor técnico
distinto por meio de sua estrutura composicional. Segundo o musicólogo, o uso
insistente de dissonâncias confirmaria um atonalismo irracional, que por consequência
depreciaria o valor artístico da obra.
Mais adiante, a crítica esboçada pelo esteta contemplou elementos
denominados como sincopa e abuso de sétima abaixada que seriam a expressão da
manifestação de uma falsificação de brasileirismo.
As justificativas para tais considerações podem ser encontradas ao longo da
própria obra do professor. Em 1928, ano em que publicou Pequena história da música,
afirmou que,
A música erudita no Brasil foi um fenômeno de transplantação. Por isso, até
na primeira década do séc. XX, ela mostrou sobre tudo um espírito
subserviente de colônia. Perseveramos musicalmente coloniais até que a
convulsão de 1914, firmando o estado de espírito novo, ao mesmo tempo que
dava a todos os países uma percepção por assim dizer objetiva da tonalidade
do universo e despertava no homem uma consciência, mais íntima de
universalismo, também evidenciava as diferenças existentes entre as raças e
legitimava em todos os agrupamentos humanos a consciência racial.
(ANDRADE, 1980: 163).
Na obra Ensaio sobre a música brasileira, datada do mesmo ano, escreveu,
O critério de música brasileira prá atualidade deve de existir em relação à
atualidade. A atualidade brasileira se aplica aferradamente a nacionalizar a
nossa manifestação. Coisa que pode ser feita e está sendo sem nenhuma
xenofobia nem imperialismo. O critério histórico atual da Música Brasileira
é o da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou indivíduo
nacionalizado, reflete as características musicais da raça. Onde que estas
estão ? Na música popular. ( ANDRADE, 1972: 20).
Forjada na crença de que as determinidades da música popular eram o estro
da nacionalidade musical, Mário de Andrade ao analisar a recente história da música
brasileira era categórico assinalando a parca plasticidade dos compositores em assumir
moldes composicionais à maneira popular. Em termos estritamente musicais, o autor
criticava a atitude dos compositores brasileiros em geral, em particular Camargo
Guarnieri pelo uso abundante dos recursos rítmicos de sincopa e melódicos de sétima
abaixada como forma única de expressão das potencialidades da música brasileira.
Afirmando que o fator decisivo do redirecionamento dos novos caminhos da
música nacional foi a convulsão da autodestruição humana em função da primeira
guerra mundial, dizia que, só então a tomada de consciência universal das
particularidades culturais esboçou a configuração de uma arte nacional. No caso
brasileiro, a conclusão dessa afirmação repousa basicamente na expressão de dois
compositores cariocas que sintetizavam o pensamento do autor, Luciano Gallet e Villa-
Lobos.
Sendo o primeiro pela pesquisa musicológica e o segundo pela obra criada
até então, tomava os dois artistas como expoentes de um processo seminal de
emancipação dos grilhões coloniais por meio das manifestações artísticas. Luciano
Gallet, com o qual Mário de Andrade estabeleceu intenso diálogo epistolar entre os anos
20 e 30, dedicou-se aos empreendimentos estéticos e estruturais das condições materiais
do fazer musical. “Diferentemente de Camargo Guarnieri, Gallet teve notável
participação “nos bastidores da música” combinando o trabalho de compositor com
iniciativas de cunho estrutural. ( AMPÁRO, 2018: 69)
Às vésperas da posse de Getúlio Vargas, Luciano Gallet se afirma como
intelectual que busca conjugar instâncias diversas do fazer musical,
reunindo o trabalho de ensino, criação, produção e pesquisa musical. Junto
à editora Carlos Wehrs, funda uma revista, Weco; ,move uma campanha
para estimular a distribuição das partituras impressas entre os
estabelecimentos musicais do país; organiza a Associação Brasileira de
Música e quer fazer um estabelecimento de ensino a partir de um plano
pessoal antigo. Neste momento, poucos meses antes de sua morte, em 1931,
prepara a reforma do Instituto Nacional de Música, ao lado de Mário de
Andrade (...) (TONI, 2017: 262 e 263).
Heitor Villa-Lobos, por sua vez, ocupava espaço destacado na crítica
mariodeandradiana pela sensibilidade e projeção de formas musicais que garantiam a
marca de sua singularidade na prática musical.
Villa-Lobos, tem essencialmente razão quando falou que os Choros, as
Cirandas, as Serestas eram “formas novas”(...). Há realmente no Choros
uma forma conceitual que é de Villa-Lobos, específica dele. Pouco importa
que a gente possa encontrar, com trabalho de erudição, formas similares,
processos de construir similares, de agora ou do sec. XV. Na realidade era
uma forma nova, de Villa-Lobos. Uma forma sem fôrma, sei, mas que não
deixa de ter sua objetividade, seus pontos de referência, suas bases temáticas
etc. etc. Muito mais visivelmente ainda, as Cirandas, têm sua forma própria,
que é delas. ( ANDRADE,1934).
Vê-se que na esteira de suas colocações contidas na epístola de 22 de agosto
de 1934, Andrade realçava a particularidade composicional de Villa-Lobos citando a
exemplaridade de algumas séries de composições do autor que datavam da década de
20. Dessa forma, é significativo reter que o itinerário do diálogo epistolar seguia uma
tendência investigativa atrelada as demandas artísticas em seu pleno devir histórico e
cultural.
A atividade musical desse momento está marcada portanto pela diversidade
das tendências, já que, uma vez alargado ou dissolvido o sistema tonal,
torna-se impossível, ou dramático, utilizar seus temas, seu arsenal tópico de
motivos melódicos, suas formas de desenvolvimento. Nesse impasse, as
vanguardas musicais do começo do século partem para uma verdadeira caça
de “materiais”, por um lado, quando não pensam a fundo o problema das
estruturas musicais, por outro. (WISNIK, 1977: 129).
Diversidade de tendências que encontra na particularidade do tecido
argumentativo de Mário de Andrade, a construção do nacional por meio da música. Na
sua visão, uma construção baseada na busca dos elementos centrais das manifestações
musicais populares em seu devir mais imediato.
Considerações finais:
O caminho percorrido na presente análise buscou problematizar a
centralidade dos complexos dinâmicos imanentes à inserção do músico no mundo do
trabalho. Expresso na experiência particular do compositor paulista Mozart Camargo
Guarnieri, o itinerário proposto esboçou, a partir do diálogo epistolar com Mário de
Andrade, as possibilidades de objetivação pela via artística musical num ambiente hostil
às demandas peculiares da profissão.
Visto na forma dos desafios a objetivação da subjetividade do compositor,
sua inserção na trama do capital oferecia limitações à plena fruição da vida material. A
rotina de trabalho, o exaurimento das condições físicas e mentais, a projeção
ininterrupta de sua corporeidade ao logro da sobrevivência na convulsionante São Paulo
dos anos 20 e 30, sugerem o drama cotidiano de sua autoafirmação enquanto
compositor.
Por outro lado, na esteira do debate estético, viu-se a urdidura dos
complexos musicais que emanam de intensas reflexões históricas e culturais das quais a
particularidade do ofício artístico oculta, na projeção finalística de suas potencialidades
dos processos composicionais.
Em síntese, esse artigo procurou evidenciar, na esteira dos debates
históricos e culturais, os potenciais desafios encontrados na forma da objetivação do
trabalho musical a partir da particularidade de Camargo Guarnieri. Longe de superar as
possíveis problematizações a partir das diversas experiências humanas, procurou-se
contribuir para a recuperação da memória e das formas mediativas do trabalho musical
na São Paulo da primeira metade do século XX.
Referências bibliográficas:
ABREU, Maria. Camargo Guarnieri – O homem e episódios que
caracterizam sua personalidade. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri, o Tempo
e a Música. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Imprensas Oficiais de São Paulo, 2001.
AMPÁRO, Breno. A construção da brasilidade: Apontamentos histórico-
musicais na trajetória e obra de Mário de Andrade. Dissertação de mestrado. PUC-SP.
2018.
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