sophia de mello breyner andersen poemas escolhidos
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Sophia de Mello Breyner Andersen Poemas EscolhidosTRANSCRIPT
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
"Poemas escolhidos"
DIA DO MAR(1947)
ESPERA
Dei-te a solidão do dia inteiro.Na praia deserta, brincando com a areia,No silêncio que apenas quebrava a maré cheiaA gritar o seu eterno insulto,Longamente esperei que o teu vultoRompesse o nevoeiro.
MAR SONORO
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,A tua beleza aumenta quando estamos sósE tão fundo intimamente a tua vozSegue o mais secreto bailar do meu sonho,Que momentos há em que eu suponhoSeres um milagre criado só para mim.
1
AS ROSAS
Quando à noite desfolho e trinco as rosasÉ como se prendesse entre os meus dentesTodo o luar das noites transparentes,Todo o fulgor das tardes luminosas,O vento bailador das Primaveras,A doçura amarga dos poentes,E a exaltação de todas as esperas.
PROMESSA
És tu a Primavera que eu esperava,A vida multiplicada e brilhante,Em que é pleno e perfeito cada instante.
ALEXANDRE DA MACEDÓNIA
A perfeição, a eternidade, a plenitudeEscorriam da sagrada juventudeDos teus membros.
A luz bailava em roda dos teus passosE a ardente palidez da tua divindadeErgueu-se na pureza dos espaços.
Estreitamente os teus dedosPara lá das vagas ânsias, incertezas e segredosPrendiam os dedos da sorte.
E o destino que em nós é caos e luto,Era em ti verdade e harmoniaCaminho puro e absoluto.
OS DEUSES
Nasceram, como um fruto, da paisagem.A brisa dos jardins, a luz do mar,O branco das espumas e o luarExtasiados estão na sua imagem.
ENDYMION
Por ti lutavam deuses desumanos.E eu vi-te numa praia abandonadoÀ luz, e pelos ventos destroçado,E os teus membros rolaram nos oceanos.
NAVIO NAUFRAGADO
Vinha dum mundoSonoro, nítido e denso.E agora o mar o guarda no seu fundoSilencioso e suspenso.
É um esqueleto branco o capitão,Branco como as areias,Tem duas conchas na mãoTem algas em vez de veiasE uma medusa em vez de coração.
E em seu redor as grutas de mil coresTomam formas incertas quase ausentesE a cor das águas toma a cor das floresE os animais são mudos, transparentes.
E os corpos espalhados nas areiasTremem à passagem das sereias,As sereias leves de cabelos roxosQue têm olhos vagos e ausentesE verdes como os olhos dos videntes.
KASSANDRA
Homens, barcos, batalhas e poentesNão sei quem, não sei onde delirava.E o futuro vermelho transbordavaAtravés das pupilas transparentes.
Ó dia de oiro sobre as coisas quentes,Os rostos tinham almas que mudavam,E as aves estrangeiras trespassavamAs minhas mãos abertas e presentes.
Houve instantes de força e de verdadeEra o cantar de um deus que me embalavaEnchendo o céu de sol e de saudade.
Mas não deteve a lei que me levava,Perdida sem saber se caminhava
3
Entre os deuses ou entre a humanidade.
DIONYSOS
Entre as árvores escuras e caladasO céu vermelho arde,E nascido da secreta cor da tardeDionysos passa na poeira das estradas.
A abundância dos frutos de SetembroHabita a sua face e cada membroTem essa perfeição vermelha e plena,Essa glória ardente e serenaQue distinguia os deuses dos mortais.
RECONHECI-TE
Reconheci-te logo - destruídaSem te poder olhar porque tu erasO próprio coração da minha vidaE eu esperei-te em todas as esperas.
Conheci-te e vivi-te em cada deusE do teu peso em mim é que eu fui tristeSempre. Tu depois só me destruísteCom os teus passos mais reais que os meus.
NOITE
Noite de folha em folha murmurada,Branca de mil silêncios, negra de astros,Com desertos de sombra e luar, dançaImperceptível em gestos quietos.
AS IMAGENS TRANSBORDAM
As imagens transbordam fugitivasE estamos nus em frente às coisas vivasQue presença jamais pode cumprirO impulso que há em nós, interminável,De tudo ser e em cada flor florir?
GESTO
Eu em tudo Te vi amanhecerMas nenhuma presença Te cumpriu,Só me ficou o gesto que subiuÀs mais longínquas fontes do meu ser.
EURYDICE
A noite é o seu manto que ela arrastaSobre a triste poeira do meu serQuando escuto cantar do seu morrerEm que o meu coração todo se gasta.
Voam no firmamento os seus cabelosNas suas mãos a voz do mar ecoaUsa as estrelas como uma coroaE atravessa sorrindo os pesadelos.
Veio com ar de alguém que não existeFalava-me de tudo quanto morreE devagar no ar quebrou-se tristeDe ser aparição água que escorre.
MONTANHA
Vi países de pedras e de riosOnde nuvens escuras como aranhasRoem o perfil roxo das montanhasEntre poentes cor-de-rosa e frios
Transbordante passei entre as imagensExcessivas das terras e dos céusMergulhando no corpo desse deusQue se oferece, como um beijo, nas paisagens.
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PRA MINHA IMPERFEIÇÃO
Pra minha imperfeição está suspensoEm cada flor da terra um tédio imenso.
Todo o milagre, toda a maravilhaTorna mais funda a minha solidão.E todo o esplendor pra mim é vão,Pois não sou perfeição nem maravilha.
As flores, as manhãs, o vento, o marNão podem embalar a minha vida.Imperfeita não posso comungarNa perfeição aos deuses oferecida.
DEVAGAR NO JARDIM
Devagar no jardim a noite poisaE o bailado dos seus passosLiberta a minha alma dos seus laços,Como se de novo fosse criada cada coisa.
CORAL(1950)
EU CHAMEI-TE
Eu chamei-te para ser a torreQue viste um dia branca ao pé do mar,Chamei-te para me perder nos teus caminhos.Chamei-te para sonhar o que sonhaste.Chamei-te para não ser eu:Pedi-te que apagassesA torre que eu fui, os meus caminhos, os sonhos
que sonhei
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GRÁFICO
I Curva dos espaços, curva das baías,Vida que não é vida com os gestos inúteisQuem me consolará do meu corpo sepultado?
II
Ela está dentro de mim na claridadeQue o sol poisa no cimo das montanhasPor ela sei que vencerei a noiteE todo o peso morto dos meus membros.
III
Mostrai-me as anémonas, as medusas e os coraisDo fundo do mar.Eu nasci há um instante.
IV
A mulher branca que a noite traz no ventreVeio à tona das águas e morreu.
V
Chego à praia e vejo que sou euO dia branco.
TERROR DE TE AMAR
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.Mal de te amar neste lugar de imperfeiçãoOnde tudo nos quebra e emudeceOnde tudo nos mente e nos separa.
ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI
HomensNo perfil agudo dos quartosNos ângulos mortais da sombra com a luz.
Vê como as espadas nascem evidentesSem que ninguém as erguesse ! de repente.
Vê como os gestos se esculpemEm geometrias exactas do destino.
Vê como os homens se tornam animaisE como os animais se tornam anjosE um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.
Vê como pairam longamente os olhosCheios de liquidez, cheios de mágoaDuma mulher nos seus cabelos estrangulada.
E todo o quarto jaz abandonadoCheio de horror e cheio de desordem.E as portas ficam abertas,Abertas para os caminhosPor onde os homens fogem,No silêncio agudo dos espaços,Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
SIBILAS
Sibilas no interior dos antros hirtosTotalmente sem amor e cegas,Alimentando o vazio como um fogoEnquanto a sombra dissolve a noite e o diaNa mesma luz de horror desencarnada.
Trazer para fora o monstruoso orvalhoDas noites interiores, o suorDas forças amarradas a si mesmasQuando as palavras batem contra os murosEm grandes voos cegos de aves presasE agudamente o horror de ter as asasSoa como um relógio no vazio.
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LONGE E NÍTIDOS
Longe e nítidos caminham os caminhosDuma aventura perdida.Próxima a brisaAbre-se no ar.
É o azul e o verde e o fresco duma idadeMorta mas que regressaCom os seus claros cavalos de cristalQue se vão esbarrar no horizonte.
MÃOS
Côncavas de terLongas de desejoFrescas de abandonoConsumidas de espantoInquietas de tocar e não prender
ROSTO NU
Rosto nu na luz directa.
Rosto suspenso, despido e permeável,Osmose lenta.Boca entreaberta como se bebesse,Cabeça atenta.
Rosto desfeito,Rosto sem recusa onde nada se defende,Rosto que se dá na angústia do pedido,Rosto que as vozes atravessam.
Rosto derivando lentamente,Pressentimento que os laranjais segredam,Rosto abandonado e transparenteQue as negras noites de amor em si recebem
Longos raios de frio correm sobre o marEm silêncio ergueram-se as paisagensE eu toco a solidão como uma pedra.
11
Rosto perdidoQue amargos ventos de secura em si sepultamE que as ondas do mar puríssimas lamentam.
FINAL
Mas na janela o ângulo intacto duma esperaResolve em si o dia liso.
POEMAS DE UM LIVRO DESTRUÍDO(INÉDITOS)
NÃO PROCURES VERDADE
Não procures verdade no que sabesNem destino procures nos teus gestosTudo quanto acontece é solitárioFora de saber fora das leisDentro de um ritmo cego inumerávelOnde nunca foi dito nenhum nome.
A MEMÓRIA LONGÍNQUA
A memória longínqua de uma pátriaEterna mas perdida e não sabemosSe é passado ou futuro onde a perdemos.
EURYDICE
Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado e [perdido
Para que cercada sejas minha
Este é o canto do amor em que te falo13
Para que escutando sejas minha
Este é o poema ! engano do teu rostoNo qual eu busco a abolição da morte.
1946
NO TEMPO DIVIDIDO
POEMA DE AMOR DE ANTÓNIO E DE CLEÓPATRA
Pelas tuas mãos medi o mundoE na balança pura dos teus ombrosPesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.
PURO ESPÍRITO
Puro espírito de êxtase e de ventoQue no silêncio da planície danças
Eu não quero tocar teu corpo de águaNem quero possuir-te nem cantar-tePesa-me já de mais a minha mágoaSem que seja preciso procurar-te.
EURYDICE
Eurydice perdida que no cheiroE nas vozes do mar procura Orpheu:Ausência que povoa terra e céuE cobre de silêncio o mundo inteiro.
Assim bebi manhãs de nevoeiroE deixei de estar viva e de ser euEm procura de um rosto que era o meuO meu rosto secreto e verdadeiro.
Porém nem nas marés, nem na miragemEu te encontrei. Erguia-se somenteO rosto liso e puro da paisagem.
E devagar tornei-me transparente
Como morta nascida à tua imagemE no mundo perdida estérilmente.
MAR NOVO
ROSTO
Onde os outros puseram a mentiraFicou o testemunho do teu rostoPuro e verdadeiro como a morte
Ficou o teu rosto que ninguém conheceO teu desejo sempre anoitecidoFicou o ritmo exacto da má sorteE o jardim proibido.
MARINHEIRO REAL
Vem do mar azul o marinheiroVem tranquilo ritmado inteiroPerfeito como um deus,Alheio às ruas.
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BIOGRAFIA
Tive amigos que morriam, outros que partiamOutros quebravam o seu rosto contra o tempoOdiei o que era fácilProcurei-me na luz, no ar, no vento.
POEMA INSPIRADO NOS PAINÉIS QUE JÚLIO RESENDE DESENHOU
PARA O MONUMENTO QUE DEVIA SER CONSTRUÍDO EM SAGRES
I
Nenhuma ausência em ti cais da partida.Movimento ritual, surdo rumor de búzios,Alegria de ir ver o êxtase do marCom suas ondas-cães, seus cavalos,Suas crinas de vento, seus colares de espuma,Seus gritos, seus perigos, seus abismos de fogo.
Nenhuma ausência em ti cais de partida.Impetuosas velas, plenitude do tempo,Euforia desdobrando os seus gestos na hora gloriosaDo Lusíada que parte para o universo puroSem nenhum peso morto, sem nenhum obscuroPrenúncio de traição sob os seus passos.
REGRESSO
II
Quem cantará vosso regresso mortoQue lágrimas, que grito hão-de dizerA desilusão e o peso em vosso corpo.
Portugal tão cansado de morrerIninterruptamente e devagarEnquanto o vento vivo vem do mar
Quem são os vencedores desta agonia?Quem são os senhores sombrios desta noiteOnde agoniza morre e se desviaA antiga linha clara e criadoraDo nosso rosto voltado para o dia?
LUAR
Toma-me ó noite em teus jardins suspensosEm teus pátios de luar e de silêncioEm teus adros de vento e de vazio.
NoiteBagdad debruçada no teu rio
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País dos brilhos e do esquecimentoCom teu rumor de cedros e teu lentoCírculo azul do tempo.
BRISA
Que mão branca na brisa se despede?Que palavra de amorA noite de Maio em si recebe e perde?
Desenha-te o luar como uma estátuaQue no tempo não fica
Quem poderá deterO instante que não pára de morrer?
NA CIDADE DA REALIDADE ENCONTRADA E AMADA
Na cidade da realidade encontrada e amadaCaminhei com a brisa pelas ruasHavia muros brancos e janelas pintadas
As madres-silvas floriam e brilhavamOs limoeiros de folhas polidasCaiu uma folha de nespereira sobre o tanque
E o tempo veio ao meu encontro confundindoOs meus gestos e os teus nos seusEram mil e mil noites uma após outra surgindoE o meu rosto flutuava entre a manhã e a tarde
E as esquinas ergueram as suas sombras azuisAo longo de um silêncio de árabeE do Abril dos campos veio um perfume inteiro de searasE quando abri a porta as estrelas surgiram
Na cidade da realidade encontrada e amadaO sol dá lentamente a volta às praças e aos quartosPara varrer o chão e preparar a noiteQue é redonda azul e atenta
E a porta da cidade é feita de dois barcos
Oh, quem dirá o verde o azul e o frescoO hálito da água e o perfume do ventoVê-se a manhã criar uma por uma cada coisa.Vê-se quebrar a onda da noite transparente.
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LIVRO SEXTO
REINO
Reino de medusas e água lisaReino de silêncio luz e pedraHabitação das formas espantosasColuna de sal e círculo de luzMedida da balança misteriosa.
BARCOS
Um por um para o mar passam os barcosPassam em frente de promontórios e terraçosCortando as águas lisas como um chão
E todos os deuses são de novo nomeadosPara além das ruínas dos seus templos
A CONQUISTA DE CACELA
As praças fortes foram conquistadasPor seu poder e foram sitiadasAs cidades do mar pela riqueza
Porém CacelaFoi desejada só pela beleza.
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CAMINHO DA MANHA
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas Passa debaixo a porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali, entre a cidade e água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram, realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio mar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia-idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de oregãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões.Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo da parede nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o
branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
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AS GRUTAS
O esplendor poisava solene sobre o mar. E ! entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido ! quase me cega a perfeição como um sol olhando de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras,porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.
As margens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.
Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta roca e a maré retirando deixou redondo e dourado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.
Um fio invisível de deslumbramento espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta de beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio liquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao principio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.
O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente
e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A
linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu queria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.
DESPEDIDA
Na estação na tarde o fumoO rumor o vaivém as facesAnónimasCriam no interior do amor um outro cais
As lágrimasO fogo da minha alma as queima antes que brotem.
MEIO DA VIDA
Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebradoPorque o meio-diaEm seu despido fulgor rodeia a terra
A casa compõe uma por uma as suas sombrasA casa prepara a tardeFrutos e canções se multiplicamNua e agudaA doçura da vida
INSCRIÇÃO
Quando eu morrer voltarei para buscarOs instantes que não vivi junto do mar.
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CARTA AOS AMIGOS MORTOS
Eis que morrestes ! agora já não bate O vosso coração cujo baterDava ritmo e esperança ao meu viverAgora estais perdidos para mim! O olhar não atravessa esta distância !Nem irei procurar-vos pois não souOrpheu tendo escolhido para mimEstar presente aqui onde estou viva.Eu vos desejo a paz nesse caminhoFora do mundo que respiro e vejo.Porém aqui eu escolhi viverNada me resta senão olhar de frenteNeste país de dor e de incerteza.Aqui eu escolhi permanecerOnde a visão é dura e mais difícilAqui me resta apenas fazer frenteAo rosto sujo de ódio e de injustiçaA lucidez me serve para verA cidade a cair muro por muroE as faces a morrerem uma a umaE a morte que me corta ela me ensinaQue o sinal do homem não é uma coluna.E eu vos peço por este amor cortadoQue vos lembreis de mim lá onde o amorJá não pode morrer nem ser quebrado.Que o vosso coração que já não bateO tempo denso de sangue e de saudadeMas vive a perfeição da claridadeSe compadeça de mim e de meu prantoSe compadeça de mim e de meu canto.
O HOSPITAL E A PRAIA
E eu caminhei no hospitalOnde o branco é desolado e sujoOnde o branco é a cor que fica onde não há corE onde a luz é cinza
E eu caminhei nas praias e nos camposO azul do mar e o roxo da distânciaEnrolei-os em redor do meu pescoçoCaminhei na praia quase livre como um deus
Não perguntei por ti à pedra meu SenhorNem me lembrei de ti bebendo o ventoO vento era vento e a pedra pedraE isso inteiramente me bastava
E nos espaços da manhã marinhaQuase livre como um deus eu caminhava
E todo o dia vivi como uma cega
Porém no hospital eu vi o rostoQue não é pinheiral nem é rochedoE vi a luz como cinza na paredeE vi a dor absurda e desmedida
PÁTRIA
Por um país de pedra e vento duroPor um país de luz perfeita e claraPelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciênciaQue a miséria longamente desenhouRente aos ossos com toda a exactidãoDum longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao ventoE pela limpidez das tão amadasPalavras sempre ditas com paixãoPela cor e pelo peso das palavrasPelo concreto silêncio limpo das palavrasDonde se erguem as coisas nomeadasPela nudez das palavras deslumbradas
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! Pedra rio vento casaPranto dia canto alentoEspaço raiz e águaÓ minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o marE o exílio se inscreve em pleno tempo
A VESTE DOS FARISEUS
Era um Cristo sem poderSem espada e sem riquezaSeus amigos o negavamAntes do galo cantarA polícia o perseguiaGuiada por Fariseus
O poder lavou as mãosDaquele sangue inocenteCrucificai-o depressaLhe pedia toda a genteGuiada por Fariseus
Foi cuspido e foi julgadoNo centro da cidadeInsultos o perseguiramE morreu desfigurado
O templo rasgou seus véusE Pilatos seus vestidos
A treva caiu dos céusSobre a terra em pleno dia
Nem uma nódoa se via Na veste dos Fariseus.
CANTAR
Tão longo caminhoQuanto passo andado
E todas as portasEncontrou fechadas
Tão longo o caminhoComo vai sozinho
Sua sombra erranteDesenha as paredes
Sob o sol a pinoSob as luas verdes
A água do exílioÉ brilhante e fria
Por estradas brancasOu por negras ruas
Quanto passo andadoPor amor da terra
País ocupadoOnde o medo impera
Num quarto fechado
As portas se fechamOs olhos se fecham
Fecham-se janelasAs bocas se calam
Os gestos se escondemQuando ele pergunta
Ninguém lhe respondeSó insultos colhe
Solidão vindimaO rosto lhe viram
E não querem vê-loSeu longo combate
Encontra silêncioSilêncio daqueles
Que em sombra tornadosEm monstros se tornam
Naquela cidadeTão poucos os homens
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GEOGRAFIA(1967)
A LUZ E A CASA
Em redor da luzCom sombras e brancosA casa se procura
Minhas mãos quase tocamO brando respirarDa sua atenção pura
DE UM AMOR MORTO
De um amor morto ficaUm pesado tempo quotidianoOnde os gestos se esbarramAo longo do ano
De um amor morto não ficaNenhuma memóriaO passado se rendeO presente o devoraE os navios do tempoAgudos e lentosO levam embora
Pois um amor morto não deixaEm nós seu retratoDe infinita demoraÉ apenas um factoQue a eternidade ignora
A FLAUTA
No canto do quarto a sombra tocou sua pequena flautaFoi então que me lembrei de cisternas e medusas
E do brilho mortal da praia nua
Estava o anel da noite solenemente posto no meu dedoE a navegação do silêncio continuou sua viagem
[antiquíssima
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SIGNO
Meu signo é o da morte porém tragoUma balança interior uma aliançaDa solidão com as coisas exteriores
MANUEL BANDEIRA
Este poeta estáDo outro lado do marMas reconheço a sua voz há muitos anosE digo ao silêncio os seus versos devagar
RelembrandoO antigo jovem tempo tempo quandoPelos sombrios corredores da casa antigaNas solenes penumbras do silêncioEu recitava"As três mulheres do sabonete Araxá"E a minha avó se espantava
Manuel Bandeira era o maior espantava da minha avóQuando em manhãs intactas e perdidasNo quarto em manhãs intactas e perdidasSaudadeEu liaA canção do "Trem de ferro"E o "Poema do beco"
Tempo antigo lembrança demoradaQuando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da
[cerejeiraQuandoMe sentava nos bancos pintados de frescoE no junho inquieto e transparenteAs três mulheres do sabonete AraxáMe acompanhavamTão visíveisQue um eléctrico amarelo as decepava.
Estes poemas caminharam comigo como a brisaNos passeados campos da minha juventudeEstes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombroE foram parte do tempo respirado
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EPIDAURO
O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é
trazida à luztrazida à liberdade da luztrazida ao espanto da luz
Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Knossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si mesmo a violência do touro.
Só poderás ser liberta aqui na manhã d'Epidauro. Onde o ar toca o teu rosto para te reconhecer e a doçura da luz te parece imortal. A tua voz subirá sozinha as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das sílabas ! portadoras limpas da serenidade.
CREPÚSCULO DOS DEUSES
Um sorriso de espanto brotou das ilhas do EgeuE Homero fez florir o roxo sobre o marO Kouros avançou um passo exactamenteA palidez de Atena cintilou no dia
Então a claridade dos deuses venceu os monstros nos [frontões de todos os templos
E para o fundo do seu império recuaram os Persas
Celebrámos a vitória: a trevaFoi exposta e sacrificada em grandes pátios brancosO grito rouco do coro purificou a cidade
Mas eis que se apagaramOs antigos deuses sol interior das coisasEis que se abriu o vazio que nos separa das coisasSomos alucinados pela ausência bebidos pela ausência
E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:
«Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra [quebrado
Febo já não tem cabana nem loureiro profético nem fonte [melodiosa
A água que fala calou-se»
DUAL(1972)
A PEQUENA PRAÇA
A minha vida tinha tomado a forma da pequena praçaNaquele Outono em que a tua morte se organizava
[meticulosamenteEu agarrava-me à praça porque tu amavasA humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojasOnde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendasEu procurava tornar-me tu porque tu ias morrerE a vida toda deixava ali de ser a minhaEu procurava sorrir como tu sorrias Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabacoE à mulher sem pernas que rezasse por tiEu acendia velas em todos os altaresDas igrejas que ficam no canto da praçaPois mal abri os olhos e vi foi para lerA vocação do eterno escrita no teu rostoEu convocava as ruas os lugares as gentesQue foram as testemunhas do teu rostoPara que eles te chamassem para que eles desfizessemO tecido que a morte entrelaçava em ti
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ERAS BELA
Eras bela como a pintura de MantegnaOnde cada coisa mostra a nítida atenção Do olhar soletrando a eternidade Eras bela como a pintura de Mantegna Decifrando a escrita da Ressurreição
EM NOME
Em nome da tua ausência Construi com loucura uma grande casa branca e ao longo das paredes te chorei
DELPHICA
I (FRISO ARCAICO)
«Saudo-vos, ó filhas dos corcéis de pés de tempestade.»
Simónides de Keos
Patas dos corcéis da tempestade Tão concisas tão duras e tão finas Puro rigor de espigas ! arquitraveMedida amor e fúria se combinam
Delphos, Maio de 1970
DELPHICA
III(ANTINOOS)
Noite diurnaAté à mais funda limpidez do instinto Sob teus cabelos em anel sombria vinha
Corpo terrestre e solene como o azul mais aceso da [montanha
O quase imóvel fogo dos teus beiços Pesa como um fruto pleno no rumor de brisa da árvore
Porta aberta para toda a natureza É através de ti que os meus rios caminham como veiasNovilho de testa curta no secreto silêncio do bosque
Sobre os teus ombros poisa terrível o meio-diaDo divino celebrado terrestre
DELPHICA
IV
Desde a orla do marOnde tudo começou intacto no primeiro dia de mimDesde a orla do mar Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotasEnquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu vooOnde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária
[das conchas Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das
[ondasE nadei de olhos abertos na transparência das águasPara reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusaPara fundar no sal e na pedra o eixo rectoDa construção possível
Desde a sombra do bosque Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência
[múltipla
Desde a sombra do bosque desde a orla do mar Caminhei para Delphos Porque acreditei que o mundo era sagrado E tinha um centro Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e
[pesado
Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e [destruído
As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais [antiga
A língua torceu-se na boca de SibilaA água que primeiro eu escutei já não se ouvia Só Antinoos mostrou o seu corpo assombrado Seu nocturno meio-dia
DELPHOS, MAIO DE 1970
HÁ MUITO
Há muito que deixei aquela praia De grandes areias e grandes vagas Mas sou eu ainda quem na brisa respira E é por mim que espera cintilando a maré vasa
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OS DIAS DE VERÃO
Os dias de Verão vastos como um reinoCintilantes de areia e maré lisaOs quartos apuram seu fresco de penumbraIrmão do lírio e da concha é nosso corpo
Tempo é de repouso e festaO instante é completo como um frutoIrmão do universo é nosso corpo
O destino torna-se próximo e legívelEnquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos
[astrosQue em sua imóvel mobilidade nos conduzem
Como se em tudo aflorasse eternidade
Justa é a forma do nosso corpo
EIS AQUI
Em CretaOnde o Minotauro reinaBanhei-me no mar
Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiroNa antiquíssima juventude do dia
Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeuSó bebi retsina tendo derramado na terra a parte que
[pertence aos deusesDe CretaEnfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das
[ervasPara inteiramente acordada comungar a terraDe CretaBeijei o chão como UlissesCaminhei na luz nua
Devastada era eu própria como a cidade em ruínaQue ninguém reconstruiuMas no sol dos meus pátios vaziosA fúria reina intactaE penetra comigo no interior do marPorque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos
[abertosE reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona
[flor a florE o mar de Creta por dentro é todo azulOferenda incrível de primordial alegriaOnde o sombrio Minotauro navega
Pinturas ondas colunas e planíciesEm CretaInteiramente acordada atravessei e o diaE caminhei no interior dos palácios veementes e
[vermelhosPalácios sucessivos e roucosOnde se ergue o respirar de sussurrada trevaE nos fitam pupilas semi azuis de penumbra e terrorImanentes ao dia !Caminhei no palácio dual de combate e confrontoOnde o Príncipe dos lírios ergue os seus gestos matinais
Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeuO Dionysios que dança comigo na vaga não se vende em
[nenhum mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo serSem cessar se busca e se perde se desune e se reúneE este é a dança do ser
Em CretaOs muros de tijolo da cidade minoicaSão feitos de barro amassado com algasE quando me virei para trás da minha sombraVi que era azul o sol que tocava meu ombro
Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vagaDe olhos abertos inteiramente acordadaSem drogas e sem filtroSó vinho bebido em frente da solenidade das coisas !Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o
[labirintoSem jamais perderem o fio de linha da palavra
Outubro 1970
LAMENTAÇÃO DE ADRIANOSOBRE A MORTE DE ANTINOO
Não escreverei mais o meu nome em letras gregas sobre a [cera das tabuinhas
Porque estás mortoE contigo morreu o meu projecto de viver a condição
[divina
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O POETA TRÁGICO
No principio era o labirintoO secreto palácio do terror calado! Ele trouxe para o exterior o medoDisse-o na lisura dos pátios no quadradoDe sol de nudez e de confrontoExpôs o medo como um toiro debelado
RETRATO DE UMA PRINCESADESCONHECIDA
Para que ela tivesse um pescoço tão finoPara que os seus pulsos tivessem um quebrar de caulePara que os seus olhos fossem tão frontais e limposPara que a sua espinha fosse tão direitaE ela usasse a cabeça tão erguidaCom uma tão simples claridade sobre a testaForam necessárias sucessivas gerações de escravosDe corpo dobrado e grossas mãos pacientesServindo sucessivas gerações de príncipesAinda um pouco toscos e grosseirosÁvidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gentePara que ela fosse aquela perfeiçãoSolitária exilada sem destino
CAMÕES E A TENÇA
Irás ao paço. Irás pedir que a tençaSeja paga na data combinadaEste país te mata lentamentePaís que tu chamaste e não respondePaís que tu nomeias e não nasce
Em tua perdição se conjuraramCalúnias desamor inveja ardenteE sempre os inimigos sobejaramA quem ousou seu ser inteiramente
E aqueles que invocaste não te viramPorque estavam curvados e dobradosPela paciência cuja mão de cinzaTinha apagado os olhos no seu rosto
Irás ao paço irás pacientementePois não te pedem canto mas paciência
Este país te mata lentamente
NOME DAS COISAS(1977)
CÍCLADES
(evocando Fernando Pessoa)
A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presençaO teu nome emerge como se aquiO negativo que foste de ti se revelasse
Viveste no avessoViajante incessante do inversoIsento de ti próprioViúvo de ti próprioEm Lisboa cenário da vidaE eras o inquilino de um quarto alugado por cima de
[uma leitariaO empregado competente de uma casa comercialO frequentador irónico delicado e cortês dos cafés
[da BaixaO visionário discreto dos cafés virados para o Tejo
(Onde ainda no mármore das mesasBuscamos o rastro frio das tuas mãos! O imperceptível dedilhar das tuas mãos)Esquartejado pelas fúrias do não-vividoÀ margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todosCom meticulosa exactidão desenhaste os mapasDas múltiplas navegações da tua ausência !Aquilo que não foi nem fostes ficou ditoComo ilha surgida a barlaventoCom prumos sondas astrolábios bússolasProcedeste ao levantamento do desterro
Nasceste depoisE alguém gastara em si toda a verdadeO caminho da Índia já fora descobertoDos deuses só restavaO incerto perpassarNo murmúrio e no cheiro das paisagensE tinhas muitos rostosPara que não sendo ninguém dissesses tudoViajavas no avesso no inverso do adverso
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Porém obstinada eu invoco ! ó dividido !O instante que te unisseE celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste
Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do [teu rosto
Estes são o rápidos golfinhos da tua alegriaQue os deuses não te deram nem quiseste
Este é o país onde a carne das estátuas como choupos [estremece
Atravessada pelo respirar leve da luz
Aqui brilha o azul-respiração das coisasNas praias onde há um espelho voltado para o mar
Aqui o enigma que me interroga desde sempreÉ mais nu e veemente e por isso te invoco:«Porque foram quebrados os teus gestosQuem te cercou de muros e de abismosQuem derramou no chão os teus segredos»
Invoco-te como se chegasses neste barcoE poisasses os teus pés nas ilhasE sua excessiva proximidade te invadisseComo um rosto amado debruçado sobre ti
No estio deste lugar chamo por tiQue hibernaste a própria vida como o animal na
[estação adversaQue te quiseste distante como quem ante o quadro pra
[melhor ver recuaE quiseste a distância que sofreste
Chamo por ti ! reúno os destroços as ruínas os [pedaços !
Porque o mundo estalou como pedreiraE no chão rolam capitéis e braçosColunas divididas estilhaçosE da ânfora resta o espalhamento de cacosPerante os quais os deuses se tornam estrangeiros
Porém aqui as deusas cor de trigoErguem a longa harpa dos seus dedosE encantam o sol azul onde te invocoOnde invoco a palavra impessoal da tua ausência
Pudesse o instante da festa romper o teu lutoÓ viúvo de ti mesmoE que ser e estar coincidissemNo um da boda
Como se o teu navio te esperasse em ThasosComo se PenélopeNos seus quartos altosEntre seus cabelos te fiasse
1972
GUERRA OU LISBOA 72
Partiu vivo jovem forte Voltou bem grave e calado Com morte no passaporte
Sua morte nos jornais Surgiu em letra pequena É preciso que o país Tenha a consciência serena
SUA BELEZA
Sua beleza é total Tem a nítida esquadria de um MantegnaPorém como Picasso derrepenteDesloca o visual
Seu torso lembra o respirar da velaSeu corpo é solar e frontalSua beleza à força de ser belaPromete mais do que prazerPromete um mundo mais inteiro e mais realComo pátria do ser
25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperavaO dia inicial inteiro e limpoOnde emergimos da noite e do silêncioE livres habitamos a substância do tempo
25 de Abril de 1974
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NESTA HORA
Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade todaMesmo aquela que é impopular neste dia em que se
[invoca o povoPois é preciso que o povo regresse do seu longo
[exílioE lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia
[verdade
Meia verdade é como habitar meio quartoGanhar meio salárioComo só ter direitoA metade da vida
O demagogo diz da verdade a metadeE o resto joga com habilidadePorque pensa que o povo só pensa metadePorque pensa que o povo não percebe nem sabe
A verdade não é uma especialidadePara especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo é preciso exporPartir do olhar da mão e da razãoPartir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do arComo quem parte da terra onde os homens estãoPara construir o canto do terrestre! Sob o olhar silente de atenção !
Para construir a festa do terrestreNa nudez de alegria que nos veste
20 de Maio de 1974
BREVE ENCONTRO
Este é o amor das palavras demoradasMoradas habitadasNelas moraEm memória e demoraO nosso breve encontro com a vida
A PALAVRA
Heraclito de Epheso diz:
«O pior de todos os males seriaA morte da palavra»
Diz o provérbio do Malinké:
«Um homem pode enganar-se em sua parte de alimentoMas não podeEnganar-se na sua parte de palavra»
MUSEU
Aqui ! como convém aos mortais !Tudo é divinoE a pintura embriaga maisQue o próprio vinho
POR DELICADEZA
Bailarina fuiMas nunca danceiEm frente das gradesSó três passos dei
Tão breve o começoTão cedo negadoDancei no avessoDo tempo bailado
Dançarina fuiMas num baileiDeixe-me ficarNa prisão do rei
?Onde o mar abertoE o tempo lavado?!Perdi-me tão pertoDo jardim buscado
Bailarina fuiMas nunca baileiMinha vida todaComo cega errei
Minha vida atadaNunca a desateiComo Rimbaud disseTambém eu direi:
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«Juventude ociosaPor tudo iludidaPor delicadezaPerdi minha vida»
OÁSIS
Penetremos no palmarA água será clara o leite doceO calor será leve o linho branco e frescoO silêncio estará nu ! o cantoDa flauta será nítido no lisoDa penumbra
Lavaremos nossas mãos de desencontro e poeira
POEMAS INÉDITOS
MAR
De novo o som o ressoar o marDe novo o embalo do tumulto mais antigoE a inteireza de instante primitivo
De novo o canto o murmurar o marQue se repete intacto e sacralDe novo o limpo e nu clamor primordial
MADRUGADA
Um leve tremor precede a madrugadaQuando mar e céu na mesma cor se azulamE são mais claras as luzes dos barcos pescadoresE para além d'insânias e rumoresNossa vida se vê extasiada
Agosto, 79. Algarve
NAVEGAÇÕES VI
Navegavam sem o mapa que faziam
(Atrás deixando concluios e conversasIntrigas surdas de bordeis e paços)
Os homens sábios tinham concluídoQue só podia haver o já sabido:Para a frente era só o inavegávelSob o clamor de um sol inabitável
Indecifrável escrita de outros astrosNo silêncio das zonas nebulosasTrémula a bússola tacteava espaços
Depois surgiram praias luminosasBaías promontórios enseadasPovos e reinos danças e cidades
Por isso aprendemos a aventuraDe quebrar horizontes esbarradosE avançar sem mapas à procuraDo corpo e do desenho da verdade
Setembro 1979
NOSSA SENHORA DA SAÚDE
Seu rosto seria a cintilante claridadeDe uma praiaEm sua humana carne brilhariaA luz sem mancha do primeiro dia
Por isso lhe rogamos que reconstrua e reúnaTudo quanto foi destroçado e dividido
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HABITAÇÃO
Muito antes do chaléAntes do prédioAntes mesmo da antigaCasa bela e graveAntes de solares palácios e castelosNo princípioA casa foi sagrada !Isto é habitadaNão só por homens e por vivosMas também pelos mortos e por deuses
Isso depois foi saqueadoTudo foi reordenado e divididoCaminhamos no trilhoDe elaboradas percas
Porém a poesia permaneceComo se a divisão não tivesse acontecidoPermanece mesmo depois de varridoO sussurro de tílias junto à casa de infância
1980
LUÍS DE CAMÕESENSOMBRAMENTO
E DESCOBRIMENTO
A poesia é, por sua natureza, o contrário de uma instituição.No entanto, às vezes, acontece que um poeta se torna célebre, e a sua
obra e o seu nome passam a ser tratados como instituições.
E a Camões aconteceu mesmo não só ter sido transformado em instituição, mas também ! e para vergonha de todos nós ! ser uma instituição usada e manipulada ao longo dos tempos pelas diversas estratégias do poder.
Na sociedade em que estamos, o que é real nunca é oficial, e a poesia é rapidamente empurrada para dentro de casa.
E seria grave esquecermos que Camões teve uma aguda e precisa e veemente consciência da sua condição de poeta maldito. Uma trágica e amarga consciência da sua solidão.
De um extremo ao outro da sua obra, ele afirma e grita essa consciência.Por isso, em frente de qualquer centenário ou homenagem que lhe sejam dedicados, deveremos recordar um poema que ! talvez pensando em Camões, talvez pensando em Fernando Pessoa, talvez pensando em si próprio ! Carlos Queiroz escreveu:
Do poeta já morto, o claro nomeErgueram como estandarteE a sua obra desfraldaram.
Oh, deixem-no incompreendidoSozinho como na vida,Como na vida esquecido...
Sabemos pouco da vida de Camões, e as interpretações pouco nos ajudam. Será melhor entendermos a sua poesia literalmente:
O dia em que eu nasci, moura e pereçanão o queira jamais o tempo dar,Não torne mais ao mundo, e, se tornar,eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o sol lhe escureçamostre o mundo sinais de se acabar,nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,a mãe ao próprio não conheça
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As pessoas pasmadas, de ignorantes,as lágrimas no rosto, a cor perdida,cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,que este dia deitou ao mundo a vidamais desgraçada que se viu!
Mas se não aceito que Camões seja tratado como instituição, que seja tratado abstractamente como poeta oficial, é porque nele amo e busco o poeta real.
E desse poeta real poderemos dizer, parafraseando Fernando Pessoa, que ele foi
«não português mas Portugal»
Pois Camões assume a Pátria sua e nossa, duplamente. Assume-a como História.
Carlos de Oliveira disse um dia que Camões é a aleluia da língua portuguesa. Ele não vem apenas, como diria Mallarmé, dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Camões encontra e constrói a objectividade da língua portuguesa. E cria a ressonância e o eco, encontra o justo peso das sílabas, o espaço do silêncio, a articulação justa.
Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano,Já que a minha presença não te agrada,Que te custava ter-me neste engano,Ou fosses monte, nuvem, sonho, ou nada?
(Os Lusíadas, canto V,57)
(...)Camões assume Portugal no plano da História. Não apenas porque escreve Os Lusíadas, mas porque vive tão exemplarmente a sua condição de português, e nele Portugal se vive.
Como Portugal ele é simultaneamente realização e frustração, encontro e desencontro, ensombramento e descobrimento.
Como Portugal, ele volta de África estropiado, vencedor e vencido, e da Índia regressa deslumbrado e naufragado. Como Portugal, ele conhece a livre respiração dos longos mares e a asfixia entre provincianas intrigas.
Como Portugal, de todas as riquezas volta pobre.São muito poucos os documentos que temos sobre a vida de Camões, e os
seus biógrafos são discutidos. Mas para além de factos imaginários, supostos ou presumíveis, a sua obra diz-nos literalmente aquela muito especial amargura à portuguesa que, então como agora, Portugal tece em redor daqueles que o assumem.
Em todos os países, como diria Fernando Pessoa, «os deuses vendem o que dão». Mas em Portugal vendem mais caro. A amargura que encontramos nos poemas Camonianos não precisa de ser documentada por velhos papéis e antigos biógrafos, pois ela continua a ser documentada pela vida quotidiana.
No seu livro Novas Andanças do Demónio, Jorge de Sena publicou um conto que tem como tema o final da vida de Camões, e se intitula «Super Flumina Babylonis». Este texto é uma das mais puras obras-primas da língua
portuguesa e é também o pano da Verónica da poesia portuguesa.Pode-se discutir se os factos narrados por alguns biógrafos do poeta,
nos quais Jorge de Sena, no seu conto, se inspira, são verdadeiros ou fantasiosos. Mas há neles, como num conto, o tom da verdade, e essa verdade o próprio Camões a documenta:
Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenhoDestemperada e a voz enrouquecida,E não do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda e endurecida.O favor com que mais se acende o engenhoNão no dá a pátria, não, que está metidaNo gosto da cobiça e na rudezaDuma austera, apagada e vil tristeza.
Devemos meditar na expressão «gente surda»: nestas duas palavras, Camões identifica aquela muito especial desatenção que a sociedade portuguesa dispensa àqueles que ousam uma atitude de liberdade e de criação. Pois a surdez não é dedicada apenas ao poeta, mas igualmente ao músico, ao pintor, ao arquitecto, ao sábio. O poeta é mesmo aquele que resiste melhor, pois pode criar quase sem apoio social. É por isso que, entre nós, a poesia é a mais rica das tradições culturais.
Camões resiste e, porque resiste, sofre, vê e denuncia essa desatenção, essa surdez asfixiante.
Ele vê e denuncia uma atitude que é simultaneamente moral e cultural e que, através dos séculos e das variações políticas, continua. A sua crítica ao seu tempo aplica-se ao nosso:
Vede, Ninfas, que engenhos de senhoresO vosso Tejo cria valerosos,Que assim sabem prezar, com tais favores,A quem os faz, cantando, gloriosos!Que exemplos a futuros escritores,Para espertar engenhos curiosos,Para porem as cousas em memóriaQue merecem ter eterna glória!
(Os Lusíadas, canto VII, 82)
E, mais adiante, ele retrata os oportunistas da sua época, que continuam a ser nossos contemporâneos. Ele diz-nos que não cantará
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Nenhum que use de seu poder bastante
Para servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio.
A poesia de amor de Camões é escrita dentro de uma tradição de poesia do amor impossível, que vem quase até aos nossos dias.
Na maioria dos seus poemas líricos corre esse longo pranto de amor inacessível. Num mundo de madrugadas e névoas, de separações, de ausências e de naufrágios, passam os rostos das amadas mortas, distantes, negadas, inatingíveis, afogadas no Índico.
No entanto, nos poemas líricos não encontramos a mesma amargura radicalmente sombria que encontrámos nos poemas de acusação social. Encontramos dor, sofrimento, mágoa, mas ainda nimbados pelo maravilhamento do encontro. E o rosto das amadas não foi apenas negação e morte, ou engano, ou distância, mas também enlevo, encantamento, amor vivido.
Como vemos no soneto que diz a botticelliana beleza de não sei que amada:
Ondados fios d'ouro reluzente,que agora da mão bela recolhidos,agora sobre as rosas estendidos,fazeis que sua beleza s'acrescente.
Pois a poesia de amor camoniana é também a expressão de uma intensa vitalidade que, como o próprio poeta diz, «em várias flamas variamente ardia».
E em muitas das redondilhas, o poema de amor é poema do jogo de amor:
Dama d'estranho primorse vos forpesada minha firmeza,olhai, não me deis tristeza,porque a converto em amor.Se cuidaisde me matar quando usaisde esquivança,irei tomar por vingançaamar-vos cada vez mais.
e nalguns poemas como a maravilhosa obra-prima que são as Endechas a Bárbara, escrava, encontramos aquele misto de abandono e de felicidade que é o encontro do aventureiro com a sua própria vida vida.
Os Lusíadas, poema do descobrimento, poema da possibilidade humana, são a antítese do ensombramento. Para além da asfixia que começa a crescer, para além do gosto da cobiça e da vileza, Camões canta os portugueses que navegaram para a frente, para ver o que havia. Logo no canto I diz:
Os portugueses somos do OcidenteImos buscando as terras do Oriente...
Nestes dois versos, o poeta nos identifica: pertencemos à cultura do Ocidente, e, dentro da lógica dessa cultura, a nossa tarefa específica é ir para além das próprias fronteiras, e indagar tudo, ver tudo. Somos a gente do estar duplo. Gente que tem uma pátria mas vai a caminho.
Camões celebra o surgir, o aparecer, aquilo a que os Gregos chamaram «aletheia». Celebra os homens que buscam a desocultação, o emergir de um fenómeno, a escrita da terra.
Celebra sem mentir, em pura verdade, a coragem e a perícia do povo a que pertence: uma coragem prática que ele viu. Canta uma arte de enfrentar o abismo:
Alija,disse o mestre rijamente,Alija tudo ao mar, não falte acordo!Vão outros dar à bomba, não cessando;À bomba, que nos imos alagando!
Correm logo os soldados animososA dar à bomba; e, tanto que chegaram,Os balanços que os mares temerososDeram à nau, num bordo os derribaram.Três marinheiros, duros e forçosos,A manear o leme não bastaram:Talhas lhe punham, duma e doutra parte,Sem aproveitar dos homens força e arte.
Os Descobrimentos não são apenas uma obra cultural, mas um acto cultural. Camões sabe, por isso, que traz uma poética nova, que a fonte da sua inspiração não está no mito nem no oculto, nem num outro mundo, mas sim no exposto e no actual e no mundo em que estamos. Nos Lusíadas, o lugar do poema é o vivido. Os Lusíadas são uma epopeia contada por um homem que aventurosamente a viveu.
Heródoto diz-nos que Homero e Hesíodo foram os educadores da Grécia. Será Camões um educador dos portugueses?
Quando vemos que a maioria dos portugueses mesmo letrados, comem as sílabas, é evidente que não os podemos considerar discípulos da dicção camoniana. A forma como a língua portuguesa é normalmente falada leva-nos a pensar que os leitores de Camões são poucos.
Essa lição de falar camoniano é nos poetas que a vamos encontrar. Na nitidez de Cesário Verde ou na subtileza chinesa de Camilo Pessanha:
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Passou o Outono já, já torno o frio...!Outono de seu riso magoado...ÁLGIDO inverno! Oblíquo o sol, gelado...!O sol, e as águas límpidas do rio.
Águas claras do rio! Água do rio,Fugindo sob o meu olhar cansado,Para onde me levais meu vão cuidado?Aonde vais, meu coração vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,E debaixo das águas fugidias,Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?!E, refractadas, longamente ondeando,As suas mãos translúcidas e frias...
Em poemas escritos em diversas épocas, em diversos climas e por diversos poetas, algo de familiar e fundamental, aqui e além emerge: é o tom da voz camoniana que regressa. Como neste poema de Cecília Meireles:
És precária e veloz, felicidadeCustas a vir e quando vens não te demorasFoste tu que ensinaste aos homensQue havia tempoE para te medirSe inventaram as horas.
Felicidade és coisa estranha e duvidosaFizeste para sempre a vida ficar tristePois um dia se vê que as horas todas passamE um tempo despovoado e profundo persiste.
E também em Torga encontramos o silabado silêncio camoniano:
Chove uma grossa chuva inesperada,Que a tarde não pediu mas agradece.Chove na rua, já de si molhadaDuma vida que é chuva e não parece.
O rigor, a densidade e a inteligência da arte poética de Camões brilham em Fernando Pessoa:
Vossa formosa juventude leda,Vossa felicidade pensativa,Vosso modo de olhar a quem vos olha,Vosso não conhecer-vos.
Tudo quanto vós sois, que vos semelhaÀ vida universal que vos esqueceDá carinho de amor a quem vos amaPor serdes não lembrando
Quanta igual mocidade a eterna praiaDe Cronos, pai injusto da justiça,Ondas, quebrou, deixando à sua memóriaUm brando som de espuma.
E a nitidez da dicção camoniana, o entendimento da exacta possibilidade de cada palavra encontram a sua sequência na dicção sem falha de João Cabral de Melo:
Está no caixão expostoComo uma mercadoriaÀ mostra para venderQuem antes tudo vendia.
E a voz de Camões, com seu tumulto rouco, sua paixão e sua veemência ecoa neste poema de Jorge de Sena:
Cendrada luz enegrecendo o dia,tão pálida nos longes dos telhados!Para escrever mal vejo, e todaviaa dor libérrima que a mão me guiaessa me vê, conforta meus cuidados.
Ao fim terrível que me espera extenso,nenhum conforto poderei pedir.Da liberdade o desdobrado lençomeu rosto cobrirá. Nem sei se pensoou se pensarei quando de mim fugir.
Perdem-se as letras. Noite, meu amor,ó minha vida, eu nunca disse nada.Por nós, por ti, por mim, falou a dor.E a dor é evidente ! liberdade.
(As Evidências XXI)
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Creio profundamente que toda a arte é didáctica, creio que só a arte é didáctica.
Camões propõe-nos palavras ditas sílaba por sílaba. Propõe-nos a contínua acusação do gosto da cobiça e da vileza, a contínua acusação da surdez, da asfixia, do opaco. Ensina-nos a não aceitar o ensombramento que nos rói. Ensina-nos uma atitude crítica constante. Ensina-nos a procurar a diversidade do mundo em que estamos. Propõe-nos uma imagem exigente de nós próprios que nunca mais nos deixará sossegar.
Abril 1980
Nota ! Texto lido na Universidade de Coimbra, em Abril de 1980, e inserido no «Ciclo de Colóquios Camonianos».