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  • Sorco, sua linguagem, sua poesia. Blanca Cebollero Otn.

    Cest lintrieur de la folie quelle sest

    manifeste: la figure de la finitude se

    donnat ainsi dans le langage comme cette

    rgion informe, muette, insgnifiante o le

    langage peut se librer. (Michel Foucault)

    Sorco, sua me, sua filha o terceiro dos contos do livro Primeiras

    estrias que Guimares Rosa publicou em 1962. O titulo do livro paradoxal

    porque o primeiro livro de contos do autor Sagarana, publicado em 1946. Tinha

    publicado tambm Corpo de baile e a sua obra prima Grande Serto: Veredas, em

    1956. Outros livros posteriores do autor so Tutamia, publicado em 1967 e os

    pstumos Estas Estrias e Ave, Palabra. A hiptese que Luiz Costa Limas1 prope

    para resolver o paradoxo do titulo explica tambm qual o significado geral do livro

    Primeiras estrias:

    So as primeiras estrias de um Brasil novo no comeo do surgir. Assim a primeira e a ltima estrias se enlaam pelo lugar comum onde passam [] Modifica-se a realidade dos gerais e Guimares Rosa anuncia a mudana. Braslia. [] Agora, porm, Guimares Rosa nota que os seus gerias esto em mudana e, longe de tremer pela novidade, porfia por incorpor-la ao seu universo.

    Braslia foi construida nessa altura e a mudana incorpora-se narrativa de

    Guimares Rosa atravs destas estrias cujos protagonistas so os meninos, os

    velhos, os foragidos e os loucos. O escritor visa desestabilizar a linguagem, recri-

    la para evitar a esclerotizao dos significados, procura uma linguagem mvel

    atravs de personagens que tambm no so estveis porque esto nas margens e

    conseguem criar novos sentidos nas suas falas e nas suas vidas. Para Teresa

    Cristina Cerdeira2 o movimento e a viagem so dois elementos fundamentais nesta

    obra de Guimares Rosa:

    Estruturada sob a forma de uma grande viagem, que comea e finda com o mesmo personagem em duas viagens de avio, o texto multiplica os viajantes reais ou

    1 O Mundo em Perspectiva: Guimares Rosa, in Guimares Rosa, (sel. Eduardo Coutinho) Civilizao brasileira, Rio de Janeiro, 1983, p. 501. 2 O Gozo da Fico ou uma Histria Inventada no Feliz in O avesso do Condado. Ensaios de literatura, Lisboa, Caminho, 2000, p. 323.

  • metafricos- que empreendem caminhadas necessariamente feitas para fora do modelo imposto, para fora do centro, para fora da lei.

    Como explica Maria de Ftima A. P. Marinho Saraiva3 h quatro textos em

    Primeiras estrias que focam o problema da loucura: Darandina, Taranto, meu

    Patro, Benfaceja e Sorco, sua me, sua filha. Mas para Maria Teresa Abelha

    Alves4 este ultimo conto que aborda a loucura como criao e que a pe em relao

    com a poesia.

    Em Anlise estrutural de Primeiras Estrias Maria Luiza Ramos5 destaca

    que, no primeiro conto do livro Primeiras estrias6, As margens da alegria, se

    descreve o lugar do Menino durante a viagem de avio desta maneira: Seu lugar era

    o da janelinha, para o mvel mundo (PE, p. 50). Segundo a ensasta, essa frase

    contm o paradigma da obra, que se pode caracterizar pela expresso `o mvel do

    mundo. De acordo com Eduardo Coutinho7 o que acontece na obra de Guimares

    Rosa o seguinte:

    Os tipos marginalizados, os loucos, os insensatos pem por terra as dicotomias do racionalismo, afirmando-se nas suas diferenas. E, ao erigir este universo, em que a fala dos desfavorecidos se faz tambm ouvir, Rosa efetua verdadeira deconstruo do discurso hegemnico da lgica ocidental e se lana na busca de terceiras possibilidades.

    A partir destas duas ideias possvel realizar uma anlise do conto Sorco,

    sua me, sua filha que vise compreender a loucura como figura ou metfora do

    movimento incessante do mundo, do devir, e o canto das loucas como a fala desse

    devir, uma fala situada alm das dicotomias e excluses que estabelece a lgica

    ocidental.

    1.- O tempo.

    Em Sorco, sua me, sua filha o tempo da estria duplo: divide-se pela

    passagem do trem que vai levar o vago com as duas mulheres. Esse corte na

    3 Primeiras estrias de Guimarzaes Rosa. Enorme mentira, Dissertao complementar, Porto, Universidade do Porto, 1986, p. 39. 4 Primeiras estrias: a alteridade inventada no feliz in Veredas de Rosa, I, Seminrio internacional Guimares Rosa 1998-2000, Belo Horizonte: PUC Minas, 2000, p. 346-350. 5 Cf. Guimares Rosa, (sel. Eduardo Coutinho) Civilizao brasileira, Rio de Janeiro, 1983, p. 514-519. 6 Edio utilizada: Joo Guimares Rosa, , Primeiras estrias, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2001. Todas as referncias e citaes desta edio passam a ser indicadas com PE. 7 Guimares Rosa: um alquimista da palavra in Fico completa, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994, p. 21

  • temporalidade expresso no primeiro pargrafo: O trem do serto passava s

    12h45m (PE, p. 62). Destaca-se assim o momento concreto que marca uma diviso

    na existncia de Sorco: o antes, com a me e a filha; o depois, sem elas. Na

    narrao o Antes curto: a espera das pessoas at a chegada de Sorco com as duas

    mulheres e a entrada destas no carro. Mas esse Antes prolonga-se atravs da voz

    colectiva que, focalizada pelo narrador, remete para o tempo de convivo de Sorco

    com a loucura das duas: um tempo difcil, de luta: De antes, Sorco agentara de

    repassar tantas desgraas, de morar com as duas, pelejava (PE, p. 64) O Depois

    previsto como o tempo de encerrar a loucura para san-la: agora iam remir com as

    duas, em hospcios. O se seguir. (PE, p. 64). O encerro no hospcio ja

    prefigurado pelas grades do vago onde as mulheres vo fazer a viagem. O depois

    previsto tambm como o tempo em que Sorco vai ficar sozinho mas libertado

    (remido) da loucura. Mas nessa duplicidade lgica do tempo da estria vai instalar-

    se o imprevisto: embora as mulheres loucas sejam fechadas e levadas embora, a

    loucura fica atravs do canto de Sorco, e com a comunidade de pessoas que

    comeam a cantar. Desta maneira o imprevisto do canto como acontecimento

    transtorna a binariedade da lgica temporal e abre uma terceira possibilidade.

    2.- O espao.

    O espao tambm duplo: na esplanada da estao h uma oposio entre o

    vago que vai levar as mulheres e as rvores de cedro sob as quais fica o povo.

    Segundo Rodrigues Belo8, a descrio negativa que se faz do vago no casual:

    O fato de o vago no ser um vago comum de passageiros evoca a idia de

    excluso: o vago era para passageiros que no eram comuns. As grades, o rodar

    atrelado ao expresso e a sua ubicao quase no fim da esplanada, do lado do

    curral de embarque de bois (PE, p. 63) indiciam que o carro o lugar do marginal,

    do colocado parte, no lado dos animais (do irracional), afastado do lugar de

    embarque dos homens. Alis, o carro lembrava um canao no seco, navio (PE, p.

    63). Esta comparao intensificada pela duplicao por sinonmia do termo navio

    remete, segundo Rodrigues Belo, nau dos loucos. A nau dos loucos uma

    imagem literria de uma obra do sculo XV ( Stultifera navis, de Brant) e tambm

    8 Fbio Roberto Rodrigues Belo, Loucura e morte em Sorco, sua me, sua filha de Joo Guimares Rosa, Boletim do Centro de Estudos Portugueses, vol. 19 n 25. Jul/Dic 1999, VFMG, p. 110

  • uma imagem pictrica de Hieronymus Bosch, mas tambm a primeira figura que

    descreve Foucault em Histria da loucura na poca classica, para explicar qual o

    processo de construo histrica do conceito de loucura. Neste estudo Foucault9

    relaciona tambm a loucura com a viagem ao dizer que o louco es el pasajero por

    excelencia, o sea, el prisionero del viaje.

    Tambm no conto as duas mulheres sero as prisioneiras da viagem no vago

    com janelas de grades. Mas o povo no fica no espao do vago, o povo caava

    jeito de ficarem debaixo da sombra das rvores de cedro (PE, p. 63). Este espao

    define-se como oposto ao do vago porque, como Rodrigues Belo explica, a rvore

    de cedro um smbolo de incorruptibilidade e o povo no quer ser vtima da

    seduo e corrupo da loucura.

    Nesta descrio que, segundo Lenira Marques Covizzi10, realizada atravs

    de semelhanas e diferenas estabelece-se outra duplicidade entre a casa de Sorco,

    espao privado onde os limites entre loucura e sanidade esto apagados, e o espao

    pblico da estao no qual a ordem dita normas, ou seja, onde se efetiva o discurso

    da normalidade e a ao da excluso dos que no esto de acordo com a norma

    determinada como sanidade11. A Rua de Baixo pela que vem Sorco e as

    mulheres uma mediao entre os dois espaos, o pblico e o privado.

    Ambas as duplicidades do espao que ordenam hierarquicamente o aceite e o

    excludo so quebradas no final do conto. Quando as pessoas, ao ouvir a cantiga de

    Sorco, comeam tambm a cantar, abandonam a proteo das rvores de cedro e

    caminham atrs dele. Para onde que eles vo? As ltimas frases do conto

    aclaram-no: A gente estava levando agora o Sorco para a casa dele, de verdade.

    A gente, com ele, ia at aonde que ia aquela cantiga (PE, p. 66). A expresso de

    verdade marca o contraste com a situao anterior ao canto de Sorco: Estava

    voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta (PE, p. 66).

    S atravs do canto, da assuno da loucura, ele consegue voltar casa de verdade,

    ao espao onde a linha que separa a razo e a loucura j no existe mais, e no ao

    espao desconhecido, longe, fora de conta da san