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9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................................10 CAPÍTULO I 1.1 O mito : origens....................................................................................15 1.2 O duplo e seus duplos: as muitas faces do mito..................................19 1.3 Na literatura: do mito ao romance........................................................23 CAPÍTULO II 2.1 O duplo moderno: de Edgar Allan Poe a José Saramago..................35 2.2 O duplo contemporâneo em Saramago – O Homem Duplicado........43 2.3 Duplicando a escritura........................................................................49 CAPÍTULO III 3.1 A palavra em Saramago: o duplo possível.........................................55 3.2 A identidade e o nome: a personagem nomeada...............................60 3.3 Fronteiras entre os duplos: autor – narrador – personagem..............65 CONCLUSÃO..........................................................................................73 ANEXOS..................................................................................................75 REFERÊNCIAS.......................................................................................81

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................10

CAPÍTULO I

1.1 O mito : origens....................................................................................15

1.2 O duplo e seus duplos: as muitas faces do mito..................................19

1.3 Na literatura: do mito ao romance........................................................23

CAPÍTULO II

2.1 O duplo moderno: de Edgar Allan Poe a José Saramago..................35

2.2 O duplo contemporâneo em Saramago – O Homem Duplicado........43

2.3 Duplicando a escritura........................................................................49

CAPÍTULO III

3.1 A palavra em Saramago: o duplo possível.........................................55

3.2 A identidade e o nome: a personagem nomeada...............................60

3.3 Fronteiras entre os duplos: autor – narrador – personagem..............65

CONCLUSÃO..........................................................................................73

ANEXOS..................................................................................................75

REFERÊNCIAS.......................................................................................81

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INTRODUÇÃO

No desenvolvimento de um trabalho de dissertação está implícito um caminho

por vezes tortuoso. A busca para aprofundar o conhecimento teórico leva o

pesquisador por desvios inimagináveis que, se não forem contidos a tempo,

poderiam comprometer o resultado final ou, ao invés disso, fazer com que o tema

possa ser abordado de outra maneira, tornando o trabalho mais rico e interessante.

O labirinto está presente na intrincada rede da pesquisa acadêmica.

Nesse caso específico, o ponto de partida foi o interesse pessoal pela

mitologia. No trabalho de graduação, definimos que o tema seria o mito do duplo no

cinema de ficção científica – a saga Star Wars - e sua relação com as canções de

gesta medievais – em especial Ami e Amile. Mas esse trabalho demonstrou ser

insuficiente para o aprofundamento do mito do duplo, pois no contexto medieval o

duplo não apresenta grandes conflitos e Star Wars é uma retomada de vários mitos

medievais, embora seja uma produção contemporânea. É somente a partir do século

XVIII que a literatura retoma este mito de forma intensa e rica em abordagens

diversas. Afinal, “o mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma

estrutura dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com

uma dialética sempre original”. (DABEZIES, 2000,p.733)

Buscando maior aproximação com o mito do duplo após o século XVIII, surgiu

o interesse de analisar o conto de Edgar Allan Poe – William Wilson – que

consideramos um dos marcos na forma moderna de tratamento ao mito do duplo, ou

seja, uma forma que indaga quem é o homem que participa da construção da

sociedade do século XIX.

O Romantismo representa o auge do dilaceramento do eu, o duplo se torna a

sombra, o animal, aquele ser desconhecido capaz de destruir e fragmentar a

identidade do homem e não, como no mito medieval, complementá-lo e unificá-lo.

William Wilson é o outro, aquele que se revela a consciência que persegue o

original até a sua destruição. Em princípio, uma discussão sobre a posição que o

homem ocupa na sociedade e seus conflitos internos.

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O duplo que surge no século XIX e está representado neste trabalho por

William Wilson é a estrutura básica do duplo moderno, intrinsecamente diferente do

duplo medieval. O homem não mais como imagem e semelhança de Deus, mas um

ser em busca de si mesmo e de sua integração numa realidade conflituosa.

Porém, durante o curso do mestrado e ao cursar disciplinas voltadas à

Literatura Contemporânea, a intenção em investigar novas formas do duplo

fortaleceu-se. Já conhecedores da obra de José Saramago e tendo escolhido o

romance O homem duplicado como objeto para o Projeto de Pesquisa,

continuamos a perseguir o duplo e suas faces na contemporaneidade.

Como um dos grandes representantes da contemporaneidade, Saramago

trabalha o duplo em sintonia com a sua época, concordando com a seguinte citação

de Cortázar (1993, p.66): “o romance antigo ensina-nos que o homem é(sic!); nos

começos da era contemporânea indaga como ele é; romance(sic!) de hoje

perguntar-se-á seu porquê e para quê”. E é este o principal questionamento de O homem duplicado.

Essa questão levou-nos por caminhos que não esperávamos e multiplicou as

possibilidades de análise do mito do duplo sob aspectos até então desconhecidos.

Perguntamo-nos então, se a crise de identidade por que passa a literatura na

contemporaneidade teria no mito do duplo um representante alegórico. Um dilema

se apresentou: o trabalho partiria de um desenvolvimento do histórico do mito do

duplo na literatura a partir de século XVIII ou a análise seria centrada num único

autor?

A solução encontrada foi a de incluir um pequeno histórico, não só do mito do

duplo na literatura, mas da formação desse mito nos primórdios do homem. O autor

escolhido para estudarmos as alterações do mito na contemporaneidade continuou

sendo Saramago e o romance O homem duplicado. Somando-se a ele, o conto

William Wilson de E.A. Poe, foi a opção para situar o mito na modernidade.

A disposição dos capítulos se apresenta da seguinte forma:

No 1º capítulo, desenvolveremos o conceito de mito e, mais detalhadamente,

o mito do duplo. A relação entre o pensamento mítico e a razão e o surgimento da

consciência humana, ponto de partida para a inseparável convivência do homem

com seu duplo. No segundo item desse capítulo, o percurso do duplo nas obras

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literárias e os diferentes olhares para o mito. A afinidade entre o mito e o romance,

enquanto gêneros que se inter-relacionam até o mito como tema e não mais como

um gênero específico, será enfocada no terceiro item do 1º capítulo.

No 2º capítulo, no primeiro item, introduziremos o duplo moderno por meio de

Edgar Allan Poe, que mostrou ser indispensável na apresentação de alguns

elementos essenciais do duplo. A relevância de Poe e sua influência na literatura é

indiscutível. Um autor que chegou a ser confundido com sua obra, não só em sua

época, mas até os dias atuais. Em todos os seus contos, se apresenta um narrador

que é sempre um eu, será um duplo?

No segundo item, apresentaremos o romance de Saramago, O homem duplicado e as características do duplo contemporâneo. No terceiro, analisaremos

os artifícios narrativos utilizados por esse autor. O objetivo é analisar o duplo

enquanto personagem e abordar alguns aspectos da duplicidade que se expandem

na narrativa, por meio do autor, do narrador, da personagem.

Em relação a Poe, José Saramago representa a outra face da moeda. Um

autor contemporâneo, polêmico, com uma obra premiada inclusive com o Nobel e

alvo de críticas as mais diversas. A palavra, a crítica e o romance como forma de se

falar da escritura, serão os tópicos do primeiro item do 3º capítulo.

No segundo item do 3º capítulo, discutiremos a questão identitária e sua

relação com o nome das personagens, pelo viés mitológico.

As declarações de Saramago sobre a questão autor-narrador causaram furor

entre os acadêmicos e nos levou a indagar: porque Saramago-autor insiste em

querer ser o narrador e dominar todas as etapas da criação? Um duplo surge nesse

questionamento e será abordado no terceiro item do 3º capítulo de nossa pesquisa.

Além do aspecto mítico, o duplo apresenta outras faces. Partimos de uma

visada mitológica e chegamos ao sujeito social, um duplo constituído de uma face

íntima, interior e outra coletiva, construída na convivência com os outros. Desse

modo, o duplo na literatura se revela mais complexo do que poderia parecer a

princípio. Não somente um eu que se desdobra em conflitos interiores, mas um eu

que precisa do outro para existir, que se estabelece como sujeito na interação social.

Na contemporaneidade, a escritura é a forma que o autor encontra para não

só duplicar-se, mas multiplicar-se e extrapolar os horizontes da existência cotidiana.

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A palavra é a arma e o texto vai além de contar histórias, o texto instiga a crítica,

analisa, provoca, questiona.

Procuramos, durante nossa pesquisa, não ampliar demais o leque da

discussão sobre a identidade e sua crise, pois esse tema complexo não caberia

numa dissertação apenas. Centramos nossa análise no mito do duplo enquanto

personagem, uma das imagens literárias capaz de demonstrar o que é a identidade

e como sua estrutura pode ser afetada pela propalada crise identitária. Essa

centralização não excluiu as necessárias incursões por outras áreas, pois o tema da

identidade é transdisciplinar. Com auxílio da Antropologia, Ciências Sociais,

Psicologia e Filosofia, adentramos nos diversos aspectos que formam o indivíduo e

sua identidade, procurando entender e ampliar o espectro da análise do duplo na

contemporaneidade.

Para James Joyce um romance é “uma carta endereçada por alguém a um

outro eu”, o que confirma a relevância de se investigar estes vários Duplos, tentar

buscar nos diálogos travados entre as histórias, os autores, personagens e leitores,

os vários aspectos de seus (des)encontros.

No andamento desse trabalho, estamos cientes da dificuldade de abordar o

duplo em todas as suas faces, portanto as possíveis lacunas estão à espera de um

trabalho mais aprofundado que deverá ser desenvolvido posteriormente, suprindo as

faltas que neste com certeza se apresentam. Seria impossível pretender a conclusão

para um tema tão inquietante e sedutor, parte do imaginário humano que, assim

como a literatura, permite sempre um olhar para o devir.

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Gênesis – “A criação da mulher”

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CAPITULO I

1.1 O mito: origens

“Tout société est mythomorphique sous peine de mort.” Gilbert Durand

Originalmente, o mito era a verdade. Nas sociedades primitivas, não se

pensava o mito, antes sentia-se e vivia-se o mito sem racionalizá-lo. Quando o

homem começa a pensar sobre o mito e sistematiza a mitologia, esse pensamento

já está fora da estrutura original da consciência mítica. O sentido e o entendimento

que o homem primitivo dá ao mundo surgem dessa consciência primeira,

diferentemente dos animais, que fazem parte do mundo, que aderem à natureza,

integrando-a. Para o homem, sempre haverá limites e o mito é que permite a

reintegração e a busca pelo equilíbrio numa natureza sempre hostil.

Segundo Gusdorf (1979, p.24), “o mito guardará sempre o sentido de um

longo olhar em direção à integridade perdida, e algo assim como de uma intenção

restitutiva”. Uma busca por um paraíso perdido que nunca existiu.

O nascimento da humanidade está intrinsecamente relacionado com a

sobrevivência no mundo. A consciência humana vai além do horizonte material,

alarga-se num nível mental que só o mito pode harmonizar. Por meio do mito, o

homem primitivo apreende a si e ao mundo e cria códigos de conduta que

possibilitam a vida em comunidade.

Eliade(1994, p.11) define mito como “uma história sagrada; ele relata um

acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ´princípio`”. Esse

tempo primordial ou tempo não-histórico é importante para compreendermos como o

mito é constantemente reavivado dentro da sociedade por meio dos rituais, dos

festivais (fertilidade, colheita, nascimento, morte) e pode ser encontrado até mesmo

nas sociedades modernas como, por exemplo, a comunhão, na Igreja Católica e na

literatura de ficção1, como veremos neste trabalho. É neste sentido que o mito pode

1 A ficção aproveita-se dos temas míticos em todas as épocas, reavivando e retomando o tempo primordial. Podemos citar, a título de exemplo, a epopéia de Ulisses, encontrada na Ilíada e na Odisséia, de Homero (séc.IX

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estar presente em épocas diferentes, um elemento mítico pode ultrapassar gerações

e permanecer vivo, enquanto possuir um sentido ou motivo de existência para as

sociedades.

Mas antes de ser revivido pela literatura, o mito passou por outras

transformações. De uma consciência que está integrada à natureza humana e é

vivida cotidianamente até as narrativas orais, temos um passo. Dessas narrativas à

literatura como a conhecemos hoje, temos outro, imenso, que tem inscrito em si uma

transformação mais profunda do que a princípio transparece. Transforma-se a

própria reflexão humana e implica na formação do pensamento racional.

A experiência mítica primordial é coletiva, atende e justifica a existência de

todos os indivíduos da comunidade. O sentido dos rituais primitivos é repetir ou

imitar um acontecimento ou o ato de um ser mítico para que dêem sentido ao mundo

e atinjam o status de realidade. Como diz Gusdorf (1994, p.39), “só o mito é que é

princípio de realidade”.

Enquanto o homem primitivo tem no mito seu porto seguro e não conhece a

ruptura entre a realidade e o seu “eu”, o homem moderno, “privado de seu

ancoradouro transcendente, vai inventar a religião, a filosofia, a política, para

recuperar a segurança perdida”(GUSDORF, 1994, p.105). Acrescentamos a

invenção da literatura que, retomando os mitos, produzirá um efeito semelhante ao

dos rituais: o da repetição incansável dos arquétipos, na contínua tentativa de

restabelecer a unidade perdida.

Na fronteira entre o mito primitivo e a sua relação com a coletividade e a

consciência racional individualista é que emerge o duplo. No momento em que o

homem se afasta do mito original e a razão assume o lugar antes reservado aos

mitos, instaura-se um processo de fracionamento, que tende a se intensificar quanto

mais o homem tenta dominar o mundo racionalmente. Há sempre uma falta da qual

o homem não mais se libertará.

Para o homem primitivo, só existe um “eu” relacionado com a comunidade em

que vive. Sua existência é participação, esse indivíduo só existe enquanto tal dentro

a.C.), em Troilus e Cressida, de Shakespeare (1603) e Ulisses, de James Joyce (1922). Como retomada do Gênesis bíblico, citamos o auto sacramental de Calderón de La Barca: La Vida è Sueño e a peça teatral de Lope de Vega: La Creación del mundo y primera culpa del hombre, ambas escritas por volta de 1600. Fonte: BRUNEL, P.Dicionário de Mitos Literários,op.cit.

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de um esquema grupal, é o “nós” que impera na consciência mítica. A identidade

desse homem vem do exterior, é uma máscara social que cada um assume e que

lhe indica como deve se portar na sua sociedade. Não há crise de identidade para o

homem primitivo, bem instalado em seu personagem mítico, atuando de acordo com

normas sociais pré-estabelecidas. A crise só advirá quando os questionamentos

sobre os mitos começarem a aflorar.

Ao narrar as histórias míticas, o homem primitivo começa a desligar-se da

consciência mítica e consequentemente, interroga-se sobre ela, deixa de viver o

mito e passa a tentar explicá-lo. Importante destacar que essa passagem de uma

“idade mítica” para uma era racional não aconteceu de uma só vez: a mudança foi,

como todo movimento evolutivo, lenta e gradativa. Desenvolvendo a capacidade de

racionalizar o mundo, o homem passa a apreender a natureza de outras maneiras, é

o início das narrativas como forma de expressão humana desligada do sentido do

sagrado. Dois caminhos se manifestam: a arte, obedecendo à razão e à inteligência

como desejo de satisfação estética e a religião, como vestígio da necessidade

básica do homem de viver os mitos.

Devemos mencionar que as diversas formas de expressão simbólica do

homem têm suas características próprias:

[...] o mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como símbolos: não no sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu próprio mundo significativo.(CASSIRER, 1992,p.22)

Da mesma forma, Octavio Paz (1982, p.41-42) valoriza a linguagem e nos

apresenta uma de suas principais características, a duplicidade, afinal, a palavra

nunca é o objeto que nomeia, pois entre um e outro há o próprio homem e sua

consciência: A essência da linguagem é simbólica porque consiste em representar um elemento da realidade por outro, como ocorre com as metáforas.[...]A palavra é um símbolo que emite símbolos. O homem é homem graças à linguagem, graças à metáfora original que o fez ser outro e o separou do mundo natural. O homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo.

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A literatura é um desses símbolos e não pode ser considerada um mito; ela se

utiliza de elementos míticos em determinados momentos da história e, a cada

época, esses valores se modificam, pois dependem do imaginário de cada grupo

social, em determinado período histórico.

O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita imagens míticas, ele próprio pode adquirir valor e fascínio mítico em certas circunstâncias, para determinado público durante certo tempo. Igualmente, ele pode perder seu valor mítico quando o público ou as circunstâncias mudam; até o século XX, o Don Juan de Molière havia perdido todo o seu poder de fascínio, já o Don Giovanni de Mozart voltou a ter novo valor mítico quando Hoffmann, em 1813, explicou-o à sua maneira para o novo público romântico.(DABEZIES, 2000,p.732)

A importância que assume o mito literário é valiosa para as sociedades

modernas. Ele permite religar o homem a um mundo que não existe mais, mas que

está profundamente enraizado no inconsciente humano. O homem de hoje precisa

dos mitos, embora sua relação com eles seja diferente da dos primitivos. De

qualquer forma, “a mitologia oferece [...] uma escrita cifrada que desenvolve todas

as intenções implícitas constituídas do ser no mundo.”(GUSDORF, 1980, p.309)

Numa sociedade que não conserva mais o sentido do sagrado, a literatura

representa um dos campos onde o mito pode manifestar-se, sendo valorizado pela

qualidade da estrutura formal do texto, além da habilidade do escritor em inovar,

apresentando uma atualização do mito na qual se reconhecerão as expectativas de

um determinado grupo social.

Discutir o mito do duplo é, portanto, atingir o âmago da natureza humana. Ele

pode ser considerado o resultado da cisão primordial, que permitiu ao homo habilis

deixar de ser apenas mais um animal no mundo e tornar-se homo sapiens, capaz de

pensar e agir no mundo, construindo e transformando a natureza ao seu redor. A

consciência de si e as conseqüências que advêm dessa nova perspectiva é que

possibilitam às complexas estruturas míticas atuarem junto ao imaginário e ao

inconsciente, resultando naquilo que é mais representativo da natureza humana: a

criação, seja ela linguagem, arte, ciência ou religião.

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1.2 O duplo e seus duplos: as muitas faces do mito

“Que nunca poderiam ser exactamente iguais, iguais em tudo, já se sabe, disse, como se estivesse a conversar com aquele quase seu outro eu que o olhava de dentro do aparelho de televisão”. José Saramago

É importante situar o duplo e sua origem mítica para entendermos sua

transformação na literatura contemporânea.

O duplo é um mito presente desde épocas remotas, em várias civilizações;

aparece em lendas nórdicas e germânicas, nas quais o duplo é presságio de morte,

assim como na América pré-colombiana, onde encontraremos o duplo

homem/animal e as divindades masculinas/femininas e no Egito, na forma de

manifestação da força vital – o Ka. Para Edgar Morin, o duplo é um mito que

acompanha o homem desde que este tomou consciência da morte.

Assim, a irrupção da morte, no sapiens, é, ao mesmo tempo, a irrupção de uma verdade e de uma ilusão, a irrupção de uma elucidação e do mito, a irrupção de uma ansiedade e de uma segurança, a irrupção de um conhecimento objetivo e de uma nova subjetividade e, principalmente, de sua ligação ambígua.(MORIN, 1979, p.104)

A consciência da morte implica consciência de si mesmo e do outro. Segundo

Todorov (2003,p.220), “não se pode falar de morte ‘em si’: sempre se morre para

alguém”. É o surgimento da individualidade e das relações afetivas na comunidade

que possibilitará a permanência deste indivíduo entre os seus pares, além da morte.

Os ritos e mitos de sobrevivência, ou seja, os funerais e respectivos rituais, atuam

como integradores da morte. Ela é parte da vida e ao mesmo tempo, transformação

em outro estado, é a ausência por excelência, a falta que atuará na formação do

duplo. O sapiens, para Morin (1979), rejeita, vence e soluciona a morte por meio do

mito e da magia.

Algumas das primeiras manifestações do duplo como mito literário aparecem

em O Banquete de Platão, como o andrógino que representava a união primitiva e

também no Gênesis, quando a mulher é criada a partir do homem.

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Achamos importante exemplificar, pois, embora longa, a transcrição do trecho

de O Banquete em que é descrita a divisão do andrógino em homem e mulher, nos

apresenta o mito do duplo em seu aspecto literário e é, também, um exemplo de um

mito de origem, ambos relativos à criação do homem:

Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, [...] andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome [...]. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando [...], apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses[...]. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles[...]. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas[...].” Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois, [...] a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem,[...]. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. [...] Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. [...]. Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente - pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, [...] que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça[...]. Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento.(Platão, 1972, p.28-30)

A importância do duplo é a sua íntima afinidade com a própria existência

humana; a consciência da morte e sua representação simbólica, seja por meio de

rituais, de danças e da arte (pintura, escultura etc.), pode ser considerada a primeira

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manifestação de individualidade do homem e se aperfeiçoará por meio da linguagem

falada e escrita.

A representação pela imagem ou pela palavra assegura o domínio sobre o ser

representado.

Assim, a imagem já não é uma simples imagem, ela tem em si a presença do duplo do ser representado e permite, por meio desse intermediário, agir sobre esse ser; é esta ação que é propriamente mágica: rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de possessão da imagem (encantamento).(MORIN, 1979, p.106-7)

Partimos, portanto, de um mito sagrado de origem remota e que se revela

parte da constituição psíquica do homem, para a representação deste mito como um

tema literário moderno e atual, como tudo o que se refere à história humana. A

perseverança dos mitos como tema universal é indiscutível, afinal, “quanto mais o

tema for importante e de um interesse durável, mais a vitalidade da obra será

assegurada”.(TOMACHEVSKI, 1976, p.171)

O mito do duplo aparece, em suas representações literárias, em diferentes

épocas e apresentando características diversas, pois sua estrutura é dinâmica,

como a de todo mito, permitindo ordenar seus elementos – personagens,

acontecimentos - em torno de uma narrativa sempre original.

Na Antiguidade, encontramos nas narrativas o duplo homogêneo, idêntico

física e psicologicamente e que tem como principais características: a substituição

de um pelo outro; a usurpação da identidade, sem que isso cause um

questionamento interior no usurpado ou no usurpador; o sósia ou gêmeo confundido

com o herói. Sua presença é marcante nas comédias e no drama, desde Plauto até

Shakespeare. Entretanto, isso não significa que é somente esse aspecto que o

duplo apresenta; sua ambigüidade causadora de confusões mostra sua face

monstruosa em autores como Empédocles, em As Purificações e Eurípides, em As Bacantes2.

A partir do século XVII, com o abandono da noção de unidade que o sujeito

apresenta, desde tempos imemoriais, começa a surgir na literatura, com mais 2 O duplo monstruoso é analisado por Renè Girard, na obra A violência e o Sagrado, Editora Paz e Terra, 1998. As obras de Empédocles e Eurípides são discutidas em alguns capítulos com referência ao duplo. Nestas obras, o duplo deixa de ser bufão e transforma-se em monstro; neste aspecto, Girard defende outras formas de duplos: a visão dupla, a metamorfose, a possessão.

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intensidade, o duplo dilacerado, fragmentário. O duplo, no Ocidente, está

diretamente ligado à relação binária sujeito-objeto, que se estabelece com Descartes

e o cogito.

O homem de areia e O reflexo perdido, entre outros, de

E.T.A.Hoffman(1776-1822), A história maravilhosa de Peter Schlemihl, de

Chamisso(1781-1838), são obras que marcam os primeiros momentos dessa

transformação e irão influenciar autores como Poe, Maupassant, Machado de Assis,

Jorge Luis Borges, marcando indelevelmente o duplo na literatura como aquele ser

(homem, sombra, reflexo, o igual e o diferente) em constante duelo consigo mesmo.

De uma relação em grande parte “amigável” com o duplo, atingimos o

extremo do terror absoluto, da necessidade imprescindível de destruir aquele que

ameaça a integridade de um sujeito que se sabe dividido. O compromisso do duplo

literário na modernidade é encontrar caminhos para uma aceitação que se torna, a

cada passo, inevitável: a consciência de que é fragmento não o torna único, apenas

o conforta.

Edgar Allan Poe utilizou-se de forma magistral das várias faces assumidas

pelo duplo que vão do animal ao espelho, da sombra ao demônio, até o

desdobramento no tempo e no espaço. Essas representações serão recorrentes na

literatura contemporânea, todavia, apresentando novidades, como em Beckett, que

fragmenta o “eu” discursivamente3. É evidente que o duplo cômico, o gêmeo ou

sósia, não deixou de aparecer nas narrativas, apenas tornou-se menos freqüente.

Na Contemporaneidade, Stuart Hall (2005) demonstra que o fracionamento

implica um deslocamento dentro de uma sociedade antagônica:

“a identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.È definida historicamente, e não biologicamente.[...]A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.”(HALL, 2005, p.13)

3 Nicole F. Bravo, no texto Duplo, traça um perfil do mito do duplo, desde a Antiguidade até o século XX. Analisando o duplo e seu desmembramento na linguagem, ela cita “Textos a troco de nada”, de Beckett, que constrói um monólogo sem referência no espaço e no tempo, destruindo na enunciação a identidade contida no eu. “O eu, puro discurso, está no cruzamento de uma trama de vozes”. BRAVO, Nicole F. Duplo. In: Dicionário de Mitos Literários. 3ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

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Esse deslocamento acarreta múltiplas divisões sociais e desarticula as

identidades estáveis do passado, promovendo um confronto com identidades

possíveis, que se alternam e com as quais o homem se identifica temporariamente.

Em O homem duplicado, Tertuliano é um retrato dessa “celebração móvel”,

um homem que não consegue estabelecer uma identidade, sendo levado a assumir

a vida de seu duplo e, consequentemente, identificar-se nela, percebendo que esse

não será o fim de sua jornada, outro duplo se apresenta, tornando infinita a busca de

uma ilusão: a identidade unificada.

1.3 Na literatura: do mito ao romance

“Algumas vezes é na consciência comum que se produz a ‘mitificação’, e a literatura a registra. Mas em outras vezes é a literatura que toma essa iniciativa. Daí a nova grande categoria de mitos literários: tudo o que a literatura transformou em mitos”. Pierre Brunel

Os primeiros indícios de que o homem interpreta o mundo simbolicamente

datam da pré-história. Escavações de sepulturas registram um cuidado específico

com o morto; a pintura dos ossos, a posição fetal, entre outros detalhes,

demonstram claramente uma intencionalidade nesta atitude. Para Salustio, “o

mundo é um objeto simbólico” e o homem foi capaz de interpretar isso muito cedo.

As estruturas simbólicas se manifestam no e pelo homem, por meio de

imagens pictóricas, de esculturas, de ritos, cantos e danças, e, sem dúvida, pela

linguagem falada e escrita.

Antes de dominar a escrita, o homem se comunicava oralmente por grunhidos

e gestos até que se aprimorou, passando a nomear a si e a natureza que o cercava.

Ao denominar um objeto, um animal ou a si mesmo, o homem tomou consciência de

que poderia possuir este ser pelo poder da palavra. Dar um nome é ter domínio

sobre o ser, presentificando-o em sua ausência por meio da palavra certa.

Podemos sugerir que a poesia surge neste aprendizado do homem como uma

função mágica, que possibilita a transformação de sua realidade. Concordamos com

Thomson (s.d., p.20), “a poesia tem uma função mágica, destinando-se a modificar,

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de uma forma ou outra, o mundo exterior, por meio de um fenômeno de mimese, isto

é, procura impor a ilusão à realidade”.

A partir da nomeação, o aprimoramento da linguagem levou o homem a

narrar os fatos que lhe aconteciam e a tentar estabelecer relações entre os

acontecimentos naturais e o poder que a palavra lhe dava. Surgem os rituais em que

se usa da “palavra mágica” para fazer chover, produzir caça abundante, aumentar a

fertilidade da terra etc. O homem começa a sentir, então, necessidade de saber

como surgiu o universo em que vive e explicar sua existência no mundo. O sagrado,

como parte da existência humana, integra sobremaneira a realidade. É a vez dos

mitos.

Se o sentir religioso principia onde não há mais palavras para a admiração (ou o temor que quase sempre a encerra), a admiração pelo que pode ser nomeado ou aludido engendra a poesia, que se proporá precisamente a essa nominação, cujas raízes de clara origem mágico-poética persistem na linguagem, grande poema coletivo do homem.(CORTÁZAR, 1999, p.264)

Os mitos possibilitam ao homem enfrentar seus temores e dar-lhes uma

explicação verossímil. Pelos mitos, o homem interpreta a criação do universo, dos

deuses e do próprio homem e é por meio deles que se explica a origem dos animais,

das plantas, da noite, do dia, enfim, da natureza como um todo. Deste modo,

entendemos que é pela palavra e pela representação artística e simbólica que o

homem se conecta ao universo mítico-religioso, capaz de transformá-lo em poesia e

arte.

Esse vínculo originário entre a consciência lingüística e a mítico-religiosa expressa-se, sobretudo, no fato de que todas as formações verbais aparecem outrossim como entidades míticas, providas de determinados poderes míticos, e de que a Palavra se converte numa espécie de arquipotência, onde radica todo o ser e todo acontecer. Em todas as cosmogonias míticas, por mais longe que remontemos em sua história, sempre volvemos a deparar com esta posição suprema da Palavra. (CASSIRER, 1992, p.64)

Mircea Eliade(Cf.1994), grande estudioso dos mitos, ao focalizar as diferentes

mitologias do mundo, tanto Ocidental como Oriental, encontra elementos comuns

entre elas, o que demonstra a força e importância deles na formação da estrutura

psíquica do homem.

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O relato mítico, sagrado, era, nas sociedades arcaicas, um elemento de

coesão social4, domínio dos sacerdotes e xamãs, que só podia ser ouvido por

aqueles que passassem por uma iniciação, num momento ritualístico.

Recitar um mito significa mais do que contar uma história, é compartilhar e

reviver um tempo diverso do tempo histórico, ao qual o homem moderno está

habituado. É um tempo singular, em que o presente está impregnado pelo passado,

convivendo simultaneamente no momento da récita, ou seja, o mito atualiza um

acontecimento passado. Os mitos de origem do universo, da natureza e do homem

justificam sua existência, portanto são essenciais às sociedades arcaicas.

Um outro aspecto a ser considerado é a questão da verossimilhança: no mito

o que se conta é a verdade, por mais fantasiosa que pareça ao homem moderno.

Para os primitivos não havia possibilidade de discussão sobre o mito. Vejamos um

pequeno exemplo chinês, a história da criação:

Antigamente, havia apenas um grande caos, Hundun. Havia dois imperadores: Hu, o Imperador do Mar do Norte, e Shu, o Imperador do Mar do Sul. Quando eles encontraram Hundun, este era um ser incompleto, carecendo dos sete orifícios necessários para a visão, a alimentação e a fala, a respiração, o olfato, a reprodução e a excreção. Assim, fulminando-o com raios, eles perfuraram um dos orifícios todo dia, por sete dias. Finalmente, Hundun morreu no processo. Os nomes Hu e Shu se combinam para formar a palavra Hu-shu, ou ‘relâmpago’. Assim a obra da criação começou quando o relâmpago penetrou o caos. (BIERLEIN, 2003, p.18)

Para o homem moderno, um mito como esse é uma metáfora, uma imagem

criada para explicar fenômenos da natureza. Para o primitivo, é a criação do

universo sendo presentificada.

Aos poucos, elementos míticos foram se incorporando às lendas e contos

populares, também de transmissão oral, atualizados e reintegrados nas sociedades

em que eram contados. O narrador, nesses casos, tinha uma importância vital, era

ele o responsável por instaurar o suspense, dar o tom aos acontecimentos narrados,

preparar o ambiente para a recepção dos ouvintes, tanto quanto nas narrações dos

4 Para Joseph Campbell (2002, p.239) a mitologia tradicional teria quatro funções. São elas, a mística ou metafísica, a cosmológica, a sociológica e a psicológica, sendo esta última a que sustentaria todas as outras e moldaria “os indivíduos às metas e ideais de seus vários grupos sociais”, integrando-os nas respectivas sociedades ao longo da vida.

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sacerdotes, em que havia todo um “preparativo cenográfico”, antes do início da

narrativa/cerimônia.

Podemos imaginar os homens primitivos sentados ao redor de uma fogueira,

contando uns aos outros os fatos do dia, a caçada, o perigo, a presença da morte, o

tempo ruim; muitas coisas podiam ser ditas, e muitas podiam também ser

inventadas, seja para impressionar os ouvintes com o intuito de se mostrar o melhor,

o mais forte, o mais corajoso, seja para explicar eventos naturais, que o homem não

podia controlar (como um terremoto ou uma tempestade, por exemplo). Segundo

Benjamim (1975a, p.66), “a experiência propicia ao narrador a matéria narrada, quer

esta experiência seja própria ou relatada. E, por sua vez, transforma-se na

experiência daqueles que ouvem a estória”.

Criar histórias, narrar aventuras, dominar a palavra, simbolizar a natureza.

Nunca mais o homem libertou-se deste encantamento. É na pré-história que se inicia

a aventura literária do homem. Dos primórdios, em que a narrativa só existia na

oralidade, aos dias de hoje, muita coisa mudou, mas também, pelo menos em

relação ao contar histórias, muita coisa permaneceu.

O relato mítico pode ser considerado um gênero literário? Muitas teorias

incluem o mito nas categorias de gênero, mas não podemos deixar de lembrar que

os primeiros (e verdadeiros, segundo Eliade) relatos míticos pertenciam à esfera da

oralidade. No momento em que passaram a ser escritos, os mitos perderam seu

valor sagrado, de mistério, pertencente a alguns poucos iniciados e tornaram-se

públicos, parte integrante da cultura de uma sociedade. O mito passou do sagrado

ao literário; é sob este aspecto que nos cabe encontrá-lo e analisá-lo.

O mito, transformado em narrativa escrita, integra o que Bakhtin chama de

gênero primário, ou seja, uma narrativa transmitida originariamente por via oral.

Nesta categoria, podemos incluir também o conto, pois, em suas origens, o conto

era transmitido oralmente. Cabe aqui uma questão: mas não é toda narrativa, todo

contar histórias, em suas bases, de tradição oral?

Para muitos estudiosos, o romance moderno distanciou-se de tal forma das

narrativas primordiais que não poderia ser considerado um gênero originário da

oralidade. Seus elementos de complexidade narrativa, digressões, saltos no tempo,

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descrições detalhadas, análises psicológicas, o fluxo de consciência, os monólogos

interiores, distanciam-no da aparente simplicidade da narrativa oral.

Entretanto, a partir do momento em que um mito, conto ou fábula é

transportado para a escrita, perde elementos caracterizadores da oralidade, não

sendo, portanto, possível confundir um texto escrito (mesmo que transcrito tal e qual

a forma falada) com um texto oral. O que se perde, em primeira instância é o som da

voz do narrador; em seguida podemos listar a própria presença física deste

narrador, seus gestos, a entonação da voz, as pausas, enfim, a dramaticidade da

fala e da expressão corporal. Um contador de histórias ou recitador de mitos não é o

narrador do texto escrito; este precisa de outras estratégias para prender o leitor.

Mas, para outros estudiosos, o romance apresenta características que

remetem à oralidade. Uma dessas características é a citação. Para Irene

Machado(1995, p.109), o narrador do romance é uma voz que transmite uma outra

voz, a do autor. Analisando o romance a partir de Bakhtin, a autora diz: “a idéia

básica de Bakhtin é que todo romance deveria ser lido como um texto entre aspas. A

enunciação nele produzida não é emissão de uma voz narradora, mas transmissão

do discurso de outrem citado pelo autor”.

Outra questão é o fato de que contar histórias é uma atividade

primordialmente oral e a escritura um registro dessa atividade, sendo que “o

discurso escrito deve se oferecer ao leitor como enunciação de vozes capazes de

criar a ilusão oral do relato.”(MACHADO, 1995, p.162)

E qual a relação que podemos fazer entre o relato mítico e o romance moderno? Podemos dizer que a ligação mais estreita entre ambos é justamente o discurso citado. O mito é sempre um discurso do outro, “caixa de ressonância que só se alimenta – às vezes implicitamente – da palavra do outro”. (BRICOUT, 2000, p.196)

Nos mitos retratados na literatura o “dizem que”, “contam que” é tão freqüente

como em outro gênero importante, o conto, sendo que esta fórmula pode ser

encontrada em diferentes textos narrativos.

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Nos diálogos platônicos a técnica de encaixe5 é utilizada para que se possa

contar um mito, do qual não se sabe a origem, portanto,

(...) o narrador desdobra-se em vários personagens que fazem eco à narrativa ouvida de outrem (...) Cada um dos narradores fictícios é ao mesmo tempo depositário e distribuidor de uma história que se propaga de um para outro, modificando-se sem cessar.(BRICOUT, 2000, p.196)

Essa interpretação sobre a técnica do encaixe confere com a de

Todorov(1970, p.126), para quem “ser a narrativa de uma narrativa é o destino de

toda narrativa que se realiza através do encaixe”.

Inicialmente, no conto popular, o mito se inscreve e é absorvido pela cultura,

adquirindo contornos moralizantes. Embora utilize a mitologia, o conto não deixa

transparecer sua vocação iniciática; o que era inicialmente sagrado e secreto passa

a ser de domínio público, adquirindo assim, um caráter ficcional, voltado para a

diversão.

Naquele que podemos chamar de conto moderno, já não encontramos

abertamente os elementos mitológicos e sua intenção moralizante não existe mais.

A partir de Edgar A. Poe6, o conto, enquanto gênero, foi teorizado, formatado,

esquematizado. O efeito no leitor era o foco principal e toda a construção do texto

deveria partir dessa premissa. O conto deve ser breve, quase instantâneo e, para

causar um impacto direto no receptor, nada deve desviar a atenção da trama. Poe

também utilizou a narrativa encaixante, criando múltiplos narradores para contar

uma mesma história, assim como vários elementos míticos, que aparecem nos

temas escolhidos pelo autor.

O encaixe pode ser encontrado em vários gêneros, assim como outras

características do relato oral e que se apresentam também no romance moderno.

Então como negar ao romance a origem na narrativa oral? 5 Técnica de encaixe(ou engaste, segundo tradução do texto Os homens-narrativas, por Claudia Berliner, na edição de 2003 da Martins Fontes do Poética da Prosa, incluído na bibliografia final) é aquela em que uma segunda história é inserida numa história primeira, podendo ser acrescentadas outras histórias dentro de cada uma delas. O narrador pode ser o mesmo, assim como podemos encontrar as mesmas personagens ou, ao invés disso, se apresentam diferentes narradores e personagens. Geralmente, no encaixe, o aparecimento de uma nova personagem desencadeia uma nova narrativa e assim sucessivamente. Para maiores detalhes, ver TODOROV, Tzvetan. Os homens-narrativas. In: As estruturas narrativas, op.cit. 6 Edgar Allan Poe escreveu o ensaio A Filosofia da Composição para explicar seu método de construção do texto literário, mais especificamente do poema O Corvo. Sua teoria privilegia o efeito produzido pela narrativa. Outro aspecto relevante é que toda intriga deve ser elaborada tendo em vista o seu epílogo, só assim o escritor teria domínio sobre o “tom da obra” e, conseqüentemente, sobre seus efeitos no leitor.

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Para Eliade (1994, p.163),

o que deve ser salientado é que a prosa narrativa, especialmente o romance, tomou, nas sociedades modernas, o lugar ocupado pela recitação dos mitos e dos contos nas sociedades tradicionais e populares.

Estas relações entre a oralidade, o mito, o conto, e todas as demais

ramificações narrativas até o romance moderno fazem com que afirmemos uma vez

mais a existência de uma integração entre os gêneros literários, que é impossível de

ser negada. O romance moderno, principalmente, é um “gênero em devir”, nas

palavras de Bakhtin, que retoma todos os outros gêneros e assume a característica

de uma aventura incomensurável, tanto para quem escreve, como para quem lê. O

romance retoma, inclusive, uma característica do mito, que é a saída do tempo

histórico, aproximando a literatura das mitologias.

O tempo que se “vive” ao ler um romance não é, evidentemente, o tempo que um membro de uma sociedade tradicional reintegra, ao escutar um mito. Em ambos os casos, porém, há a “saída” do tempo histórico e pessoal, e o mergulho num tempo fabuloso, trans-histórico.(ELIADE, 1994, p.164)

É relevante mencionarmos a influência do leitor na avaliação dos textos

literários e críticos em cada época. Por meio de novos modos de ver, das

interpretações possíveis num momento histórico diferente, é que são acrescentados

novos saberes ao conhecimento do homem moderno. Concordamos com Irene

Machado(1995, p.19) quando diz que “é no processo de leitura que os diferentes

repertórios e posturas se confrontam, manifestando sua capacidade de dizer dentro

de um outro contexto”.

Para exemplificar a transformação de um mito em gênero literário utilizaremos

o conto William Wilson, de Edgar Allan Poe, publicado em 1839 e o romance de

José Saramago, O homem duplicado, de 2002. Ambas as narrativas retomam o

mito do duplo como tema central, mas construídas de acordo com as características

próprias do gênero literário a que pertencem.

William Wilson é uma narrativa exemplar, plenamente de acordo com a

teoria do próprio Poe. Relato curto, intenso, que seduz o leitor logo nas primeiras

linhas e termina causando uma forte emoção.

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Em geral o conto privilegia um núcleo de ação, justamente por estar centrado

apenas em um acontecimento.

Segundo Cortazar(1993, p.122), [Poe] Compreendeu que a eficácia de um conto depende da sua intensidade como acontecimento puro, isto é, que todo comentário ao acontecimento em si (...) deve ser radicalmente suprimido. Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a coisa que ocorre e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento e não alegoria (...) ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou didáticas.

O que nos interessa observar, neste momento, é como o narrador se coloca

na história: “Que me seja permitido, no momento, chamar-me William Wilson. A

página em branco, que tenho diante de mim, não deve ser manchada com meu

verdadeiro nome”.(POE, 1978, p.85)7

Aqui temos um narrador em primeira pessoa, mas que inicia sua escritura

informando, ou melhor, solicitando uma permissão para assumir outro nome. E a

quem ele solicita? Ao leitor, seu imprescindível companheiro.

O duplo, tema do conto, se manifesta logo nas primeiras palavras, por meio

do pseudônimo adotado pelo narrador; a partir deste momento não é mais ele, mas

outro que é o responsável pelo narrar. O “W” na inicial do nome adotado(William

Wilson) também é uma marcação do duplo e, assim, o conto vai construindo um

universo ambivalente, o espelho no qual se reflete o medo mais íntimo do homem: a

perda da identidade.

O duplo em Poe é direto e incisivo, não há uma explicação, nem divagações

filosóficas em torno do fato, pelo contrário, o narrador leva o leitor por um

emaranhado de perguntas que ficam sem resposta.

Saramago utiliza o tema para discutir a sociedade moderna. No decorrer da

história, o narrador coloca o leitor numa posição questionadora, de intenso diálogo

diante de um fato aparentemente insólito, mas descrito com relativa naturalidade. Há

sempre uma pergunta a ser respondida: Quem é o homem que vive hoje numa

sociedade massificadora, quais as suas perspectivas frente a uma cultura que tende

a unificar seus integrantes?

7 Tradução de Berenice Xavier.

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Para Saramago, o homem perde a identidade sem perceber. Integrado na

cultura global depara-se com seu duplo e é obrigado a assumir a identidade perdida

descobrindo quem realmente é. Para isso, luta por sua sobrevivência enquanto

indivíduo singular, revelando uma personalidade encoberta pela rotina de uma vida

medíocre.

Encontrar o duplo ou saber-se duplo de alguém é perturbador; há um erro,

como a própria personagem de O homem duplicado reconhece: “Serei um erro,

perguntou-se, e supondo que efectivamente o sou, que significado, que

conseqüências para um ser humano terá saber-se errado”.(HD, 2002, p.28)8

A conseqüência de saber-se errado é o comprometimento da própria

natureza da identidade humana:

Olharam-se em silêncio, conscientes da total inutilidade de qualquer palavra que proferissem, presas de um sentimento confuso de humilhação e perda que arredava o assombro que seria a manifestação natural, como se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade própria do outro.(HD, 2002, p.217)

Para Bakhtin (2003, p.55) “nossa individualidade não teria existência se o

outro não a criasse”. O que se coloca em discussão no duplo é que esse outro

nunca deve ser idêntico para que um deles não seja anulado. O resultado da

duplicação pode ser a perda da identidade que, simbolicamente, significa a própria

morte.

Por ser um romance, a narrativa não produz o mesmo efeito do conto de Poe,

mas leva o leitor a ponderar sobre sua própria existência. O efeito da leitura de

ambas as obras não é o mesmo, mas são duradouros os questionamentos por

causa da intensidade do tema: o duplo.

A importância dos mitos e de sua representação literária demonstra as

imensas possibilidades de adaptação entre os gêneros. Os mitos surgem ainda na

oralidade; em determinado momento histórico passam a ser transcritos e,

posteriormente, agregam-se, sobretudo como temas, aos contos, poesias,

romances, nunca perdendo sua força e vitalidade.

8 As citações do romance O Homem Duplicado serão identificadas pelas iniciais HD, em todo o trabalho.

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Os gêneros diluem-se e integram-se uns nos outros; é a proximidade, seja em

suas diferenças ou similitudes, que torna as classificações rígidas dispensáveis.

Entendendo a flexibilidade inerente à linguagem, devemos direcioná-la para a

literatura, que, por ser arte, é transgressora e criativa, envolvendo em suas teias

todo o poder da “palavra-mágica”. Na interação entre os gêneros é que podemos

defini-los; é no diálogo travado no interior do texto literário, que encontramos a

identidade de cada gênero.

Entendemos o gênero como “horizonte de expectativa”, “protocolo de leitura”,

constituído cultural, social e historicamente. O leitor lê e interpreta de acordo com a

época e a sociedade em que vive. Não há como separar o contexto histórico do

leitor da leitura efetuada; o que é possível, para o leitor proficiente é identificar em

sua leitura estes elementos (sociais/históricos/culturais) que são parte integrante de

sua constituição de sujeito, embora as grandes obras literárias sejam

supratemporais.

Não se deve reduzir a literatura apenas à época de sua criação. Para

Bakhtin,

As obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e, além disso, levam freqüentemente (as grandes obras, sempre) uma vida mais intensiva e plena que em sua atualidade. (2003, p.362)

As obras literárias devem conter em si os séculos passados para que possam

sobreviver aos séculos futuros. Nesse processo, há um enriquecimento de sentidos,

significados que se revelam pela leitura, alcançados somente por intermédio do

acúmulo de conhecimento adquirido pelo passar do tempo9, tempo chamado por

Bakhtin de grande tempo, em que a obra lateja, pulsa, vive plena, aguardando novas

e surpreendentes descobertas.

Concordamos com Bakhtin quando diz:

Os gêneros têm um significado particularmente importante. Ao longo dos séculos de sua vida, os gêneros (da literatura e do discurso) acumulam formas de visão e assimilação de determinados aspectos do mundo. Para o escritor-artesão, os gêneros servem como chavão externo, já o grande artista desperta neles as potencialidades de sentido jacentes. (2003, p.364)

9 Este tempo não é somente o tempo da humanidade, das gerações que passam. A cada dia da vida de um homem se acrescentam novos conhecimentos e, portanto, novas possibilidades de leitura. O mesmo texto, para o mesmo homem pode ter, ao longo de sua vida, diversos significados.

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Entre Poe e Saramago há muitas diferenças. Poe é incisivo e, embora conte a

história de uma vida, o tempo da narrativa é rápido, pois é o tempo do leitor.

Dominado pelo discurso poeano, o leitor se torna ávido para desvendar o enigma.

Não há nada no texto que dele desvie a atenção; o que importa é o acontecimento, o

surgimento do duplo. Poe não se preocupa com explicar o mistério, ele o apresenta

e abre para o leitor uma grande experiência emocional que o projetará além de seu

cotidiano.

Saramago trabalha o duplo num romance e inclui em seu discurso

considerações que vão além do tema principal. Como em vários de seus romances,

encontramos interferências do narrador nas ações e pensamentos das personagens,

demonstrando claramente suas posições pessoais no discurso, fazendo reflexões

que não têm diretamente relação com a história. Em suma, constrói uma narrativa

complexa, dinâmica ou, como diz Borges referindo-se ao gênero romance, uma

narrativa de ritmos, que leva o leitor a divagar junto com o narrador e o arrebata de

volta ao texto. O resultado é um efeito diverso do encontrado em Poe, ou seja, uma

reflexão que se constrói aos poucos, juntamente com a história.

Na literatura moderna o texto literário, conto, romance, drama, novela, poesia,

etc, atinge um alto grau de complexidade, interagindo uns em relação aos outros;

não há estaticidade e sim, movimento.

Uma visão ampla e atual dos gêneros nos leva a concluir, em concordância

com Beider (1993, p.81), que “(é) tradicional tudo que tende a fazer do romance a

narrativa de uma aventura; é moderno tudo que tende a fazer do romance a

aventura da narrativa”. Aventura que consideramos infinita em suas possibilidades,

não só no romance, como em qualquer outro gênero.

Devemos pensar os gêneros como uma multiplicidade de formas, que se

enriquecem umas em relação às outras, levando o leitor ao êxtase, a um contato

com sua verdadeira essência, capaz de alterar a sua visão do mundo e de si próprio.

O que o mito do duplo revela na Contemporaneidade é um homem

permanentemente em processo, um ser inacabado, que se elabora enquanto

discurso no espaço da literatura produzindo um gênero “em devir” que, assim como

o homem, está em processo: o romance moderno.

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René Magritte – “Reprodução proibida (Retrato de Edward James)” , 1937

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CAPITULO II

2.1 O duplo moderno: de Edgar Allan Poe a José Saramago

“Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’.” Stuart Hall

O mito do duplo, em O homem duplicado, apresenta características que se

aliam ao duplo de Edgar Allan Poe, no conto William Wilson.

Sincronicamente, é possível verificar os aspectos do mito que permeiam O homem duplicado e que são inicialmente elaborados em William Wilson.

Diacronicamente, o século XIX e as profundas transformações sócio-culturais

provocadas pela Revolução Industrial e percebidas por E.A.Poe, conduzem a

análise do duplo até a contemporaneidade. Será que a crise de identidade por que

passa o homem contemporâneo e é recriada na literatura pode ter suas bases no

séc. XIX? De que forma e com que intensidade o mito do duplo alinhava esses

elementos?

É na cidade que o romance, gênero que se inaugura na modernidade,

aparece na sua forma tradicional. Mas, paradoxalmente, é no conto, uma das mais

antigas formas de narrar, que Edgar Allan Poe constrói sua teoria do efeito, e com

ela inicia aquela que será a grande característica da literatura moderna: a

metalinguagem. Certamente, devemos lembrar que Cervantes, nos idos de 1605,

em D. Quixote de La Mancha10, adotando, como um dos recursos, a

metalinguagem e com ela produzindo uma crítica irônica aos romances de cavalaria

criou um texto que se aproxima, tanto na forma quanto no conteúdo, do romance

que surge na modernidade.

Poe percebe, antes de seus contemporâneos, as mudanças que adviriam da

Revolução Industrial, a força do jornal como grande veículo de comunicação e a

10 Importante realçar que D. Quixote, com sua fantasia e imaginação, representando o sensível e Sancho Pança, mobilizando o real, o inteligível, formam uma dualidade que sinaliza as primeiras mudanças na concepção do duplo.

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cidade como massificadora e solitária. Talvez por isso, em sua obra, transpareça a

angústia de um futuro sombrio e pareça, aos olhos de hoje, tão atual e instigante.

Para Cortázar(Cf.1993), a obra de Poe vive num contínuo presente, porque atinge a

natureza profunda do homem. Além disso, o sujeito deslocado que se multiplica na

obra poeana, direciona um olhar profético para o futuro. O homem, enquanto

principal foco de interesse, e a linguagem como instrumento de (des)construção na

literatura tenderão a fragmentar-se cada vez mais, como um imenso espelho

estilhaçado em mil pedaços.

Embora Poe tenha sido capaz de compreender o seu tempo como poucos de

seus contemporâneos, sua obra não é realista, no sentido de retratar a realidade de

forma direta. Seus contos mostram o lado escuro da alma, a impotência humana

frente ao desconhecido, seus medos e pesadelos.

Interessante observar que o duplo é um mito que transita do inconsciente

humano à interação social. Por meio deste mito, pode-se falar do oculto, do

nebuloso, do obscuro, daquilo que é mais interior no “eu”, como o faz Poe,

integrando nesse aspecto a relação do eu com o outro externo, social, e

considerando-se, concomitantemente, a possibilidade desse outro não ser apenas

externo, mas interno, um outro dentro do eu.

A crise de identidade por que passa o homem do século XIX não é, sem

dúvida, a mesma por que passa o homem na atualidade, mas as sementes foram

lançadas, neste período histórico, momento importante para entendermos o mundo

contemporâneo.

O crescimento das grandes cidades, as indústrias, o jornal, são apenas o

início de uma imensa transformação sócio-cultural, que se inicia na Inglaterra e, aos

poucos, se espalha pela Europa e Américas. A euforia dos princípios da era

moderna acaba no começo do século XX, quando a Primeira Guerra Mundial deixa

uma cicatriz sinalizadora de que as transformações poderiam não estar sendo

totalmente benéficas. A humanidade nunca havia enfrentado uma guerra de

proporções tão violentas e será difícil superar o trauma causado por ela. Junto com

a guerra vêm o avanço tecnológico, as mudanças sociais e novas fronteiras que

delimitam uma Europa despedaçada. Quase vinte anos separam a 1ª Grande

Guerra da Segunda, e novamente a humanidade conheceu o terror.

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Enquanto isso, deixamos de andar numa carruagem para conhecer

aeronaves capazes de cruzar os oceanos. Nunca, em toda a história humana, a

evolução tecnológica foi tão rápida como do final do século XIX aos nossos dias. A

descoberta do inconsciente por Freud desmonta a teoria cartesiana do “Penso, logo

existo”, apresentando ao século XX um novo sujeito: aquele que é governado por

processos psíquicos e simbólicos que fogem ao controle da consciência. A

dificuldade do homem para se adaptar a essas novas condições é expressa pela

Arte, que sempre demonstrou a capacidade de prenunciar o futuro. O artista é

aquele que vê além do homem comum; sua sensibilidade lhe permite escutar os

rumores, sejam eles música ou gritos, e enxergar as paisagens, belas ou

apavorantes, que se formam nos interstícios da vida cotidiana.

Diante de fatos históricos tão relevantes e de tão profundas e rápidas

mudanças, o homem de hoje vê-se acuado, frente aos modernos equipamentos que

invadem as casas e nos obrigam a constantes atualizações para que possamos

acompanhar as novidades, que vão de computadores domésticos a celulares que, a

cada dia, se tornam mais e mais parecidos com micro computadores com câmeras e

acesso à internet.

Nossa relação com o mundo que nos cerca é, aparentemente, mais próxima,

devido à rapidez com que as notícias chegam até nós e nos envolvem em imagens

impactantes. O contato com o outro, via internet, salas de bate-papo, e-mails etc.,

parece aproximar as pessoas, mas existe o agravante da falsa identidade com a

qual é possível esconder-se, numa máscara ou duplo. Mesmo assim, em princípio,

isso faz com que estejamos mais inseridos num contexto social globalizante,

provavelmente ilusório, pois não é necessária a interação pessoal direta para que

saibamos o que se passa no mundo. A globalização11 alterou nossa percepção do

mundo: as distâncias são mais curtas e o tempo, por conta dos fatores já descritos,

encolheu.

O isolamento do homem, nos dias de hoje, pode ser tão grande quanto o do

homem no século XIX, que se via perdido frente às multidões das grandes cidades,

à posição na escala social e à velocidade dos trens.

11 A globalização “se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e experiência, mais interconectado.” (Hall,2005, p.67)

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Segundo Gusdorf (1980, p.300), o mal-estar contemporâneo tem a sua

origem[...]na desorientação ontológica que o homem sofre no novo mundo que veio

a criar. Todas as modificações que o mundo sofre após a Revolução Industrial, as

alterações na natureza, seja pela construção de represas, o crescimento das

cidades, a poluição atmosférica, e outras já citadas, atuam na relação do homem

com sua realidade mais próxima.

O mito do duplo aparece, no contexto do século XIX, como a expressão

sombria de uma identidade que não se estabelece numa sociedade em formação. O

duplo é a forma encontrada pelo escritor para dar vida às suas mais íntimas

inquietações. É no Outro idêntico a mim que, supostamente, posso encontrar

respostas que não são encontradas dentro do ser, mas é também, neste duplo

idêntico que se perde a principal característica formadora da identidade: a diferença.

Devemos ter em mente que

A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. (HALLL, 2005, p.39)

Na falta e na fragmentação é que o homem busca encontrar-se, um ser que

se transforma constantemente e que, à luz do mito do duplo, acredita estar frente a

frente consigo mesmo, como num espelho. Mas o espelho também não é o “eu”,

pois lhe falta o essencial: a interioridade. O que ele reflete é a aparência, falsa ilusão

de materialidade. A ilusão criada pelo mito é mais intensa quando percebemos sua

profunda afinidade com o medo. Encontrar-se é causa de horrores inimagináveis,

ver no outro um igual a si mesmo é o pior dos pesadelos, pois não é possível

identificar os medos internos que se refletem no externo. Como diz Kiefer(1995), “o

Idêntico é o absoluto Desconhecido, porque só se pode conhecer o que é filtrado

pela diferença”.

O reflexo no espelho12 é uma das imagens recorrentes do duplo. Mesmo que

não seja o principal foco de atenção do duplicado, esta imagem vai aparecendo, ao

longo do tempo, em diferentes obras. No caso de William Wilson, a cena final se

passa em frente a um grande espelho, embora o narrador não saiba exatamente

distinguir se o que vê é sua imagem refletida ou seu inimigo mortal:

12 Ver o texto citado de E.T.A. Hoffman, O reflexo perdido.

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“Um vasto espelho – em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio – erguia-se no ponto onde antes nada vira; e, enquanto me dirigia tomado de horror, para esse espelho, minha própria imagem, mas com o rosto pálido e manchado de sangue, adiantou-se ao meu encontro, com um passo fraco e vacilante”. (POE, 1978, p.107)

No romance O homem duplicado, Tertuliano olhando o espelho sabe que

isto é o mesmo que encarar o seu duplo: tem consciência de que a imagem do outro

é idêntica à sua, em qualquer época de suas vidas ou em qualquer situação:

“Se aquele tipo que fez de empregado da recepção aqui estivesse, pensou dramaticamente, se estivesse aqui diante deste espelho, a cara que de si mesmo veria seria esta. Não censuremos Tertuliano Máximo Afonso de não ter se lembrado de que o outro usava bigode no filme, não se lembrou, é certo, mas talvez por saber de ciência certa que hoje já não o usa[...]”(HD,2002, p.35)

Na contemporaneidade, a crise de identidade verificada nos romances

saramaguianos é estudada pela Prof.ª Shirley Carreira13, e apresenta alguns

aspectos de interesse para vincularmos o duplo de Poe ao duplo de Saramago.

Enquanto o duplo poeano está em permanente conflito com duas identidades

possíveis, a que é regida pelo desejo e a que é prescrita pelas normas sociais, o

duplo saramaguiano, conforme Carreira, “coloca em xeque os processos de

concepção da identidade, atribuindo-lhe um princípio que, antes de ser social e

histórico, é primordialmente discursivo”.14

A identidade formada por uma elaboração discursiva é foco de atenção. Já

em Poe é possível perceber um cuidado especial com a linguagem. O título do conto

William Wilson é um anagrama que possibilita várias interpretações, senão

vejamos: Will I am = serei eu? Wil(l) son = filho do desejo.

Essa é apenas uma das possibilidades que remete a uma chave criptográfica,

em que estaria a explicação do duplo Wilson. Vale acrescentar que Poe tinha pleno

domínio da arte da criptografia e a percepção das inúmeras perspectivas da

linguagem que, no seu tempo, era um aspecto inovador. Poe percebeu que a

montagem tipográfica era um quebra-cabeça e demonstrou, em sua obra, todo um 13 Estudo publicado na Revista Eletrônica Sincronia: http://sincronia.cucsh.udg.mx/carreira1.htm 14 A (des)construção da identidade nos romances de José Saramago, publicado na Revista Eletrônica Sincronia: http://sincronia.cucsh.udg.mx/carreira1.htm

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conhecimento adquirido em seu trabalho com os jornais. Talvez seja essa a maior

inovação de Poe: ver a linguagem como algo mais do que simples instrumento de

contar histórias. A própria linguagem é dupla, existe a possibilidade que lhe é

inerente de construir conceitos no interior do próprio texto, das próprias palavras.

Jogos lúdicos em contos que, além de narrativa, trazem em seu bojo outros sentidos

implícitos e que, para chegar a eles, precisamos retirar os véus e desvendar o seu

verdadeiro conteúdo. Para Santaella(1985, p.172), Poe inaugura uma análise

sígnica do “eu”; em William Wilson, “o eu pensado, no ato de ser pensado, se faz

signo para o eu que pensa”. Seria esse conto, portanto, espelhamento da

consciência do eu vendo-se no outro.

Saramago não se utiliza dos recursos poeanos, antes é adepto da alegoria15

como forma de contar uma história por outra, mas na questão identitária temos

elementos curiosos. Alguns de seus romances não possuem personagens

nomeados, em outros o nome é um elemento essencial. No caso de O homem duplicado, um professor de História que se chama Tertuliano Máximo Afonso é, no

mínimo, uma ironia com nomes de personagens históricos. Um ator de nome

Antonio Claro e que usa o pseudônimo de Daniel Santa-Clara é o duplo de

Tertuliano, e está acostumado a viver outras identidades por trás das câmeras; é,

antes de tudo, um duplo em si mesmo. Para Tertuliano, a História deveria ser

ensinada do presente para o passado; diz que, sabendo o que acontece hoje, pode-

se entender melhor o passado; não por acaso, no romance, sabemos de tudo o que

irá acontecer, os fatos são antecipados pelo narrador ou pelos pensamentos das

personagens.

Tanto Tertuliano quanto as outras personagens do romance, vivem numa

metrópole. O contato humano entre vizinhos é praticamente inexistente, a

indiferença no cumprimento matinal e encontros ocasionais deixam perceber que a

solidão é uma das características dos grandes conglomerados urbanos. E.A. Poe foi

capaz de compreender e anunciar essa particularidade em sua obra. O próprio

Wilson tenta escapar de seu duplo, viajando por grandes cidades, tão solitário

quanto o “flanêur” de Baudelaire, observando Paris e confirmado por Walter 15 “[A alegoria é uma] representação concreta de uma idéia abstrata. Exposição de um pensamento sob forma figurada em que se representa algo para indicar outra coisa. Subjacente ao nível manifesto, comporta um outro conteúdo. É uma metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na substituição do pensamento em causa por outro, ligando ao primeiro por uma relação de semelhança”. (KOTHE, 1986,p.90)

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Benjamin(Cf.1975b), em suas análises da obra baudelairiana. A modernidade é

predominantemente solitária.

A existência de um duplo apavorante e perturbador é aceitável se

entendermos que a solidão está tão entranhada no indivíduo que, mesmo vivendo

em meio a uma multidão, não há proximidade maior. Tertuliano é um solitário, um

homem deprimido que cumpre seus deveres no trabalho, conversa com as pessoas

por obrigação e recebe Maria da Paz, sua namorada, a contragosto. A

individualidade, nesse sentido, se torna sinônimo de solidão. O surgimento de um

igual a ele perturba o sistema em que está inserido e leva-o a lutar pela sua

singularidade. Não importa que sua vida seja medíocre; nada é pior do que saber da

existência de um duplicado que toma conta de todos os seus pensamentos. Como

compartilhar a identidade com um outro desconhecido que, mesmo perdido numa

multidão, é capaz de ameaçar a estabilidade de uma vida comum e intrometer-se

em seus relacionamentos?

Ao mesmo tempo, a definição do que é a identidade se converte em foco de

atenção. O que faz um diferente do outro? Nus, ambos são idênticos; para os outros,

sua identidade está nas roupas, nos documentos, no carro que possuem. O conflito

instalado demonstra que a diferença encontrada na personalidade não basta para

diferenciá-los. Esta diferença pode ser encoberta se o duplo for um bom ator.

Discutindo a identidade por meio do duplo, Saramago não esconde a intenção

de falar do mundo hoje. Em todos os seus romances está presente este

engajamento social; sua obra é um libelo para fazer do leitor um crítico, e o

romancista é, como diz Berrini(1998, p.135), “uma espécie de profeta, cuja missão

agora é alertar os homens a respeito deste mundo terrível que é o nosso”.

Em Poe, o duplo Wilson aparece para conter as extravagâncias e os prejuízos

causados por William Wilson. Encontrar um outro que funciona como uma

consciência externa é perturbador e a necessidade de eliminá-lo para continuar a

agir sem remorsos é o intuito de William Wilson. Mas a eliminação do outro é a

causa da perda completa da razão, a queda num abismo sem fim.

Na narrativa poeana, o duplo aparece desde a frase inicial. Aquele que narra

está escondido sob um pseudônimo e conta uma história, por meio de uma carta,

dos fatos acontecidos. Não por acaso, no derradeiro encontro, ambos os Wilson

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estão usando máscaras, outro símbolo do duplo. Chegando ao final do conto, o leitor

percebe que há um vácuo temporal entre o que acontece após a eliminação do

duplo e a escrita da história. Apesar do vácuo, a narrativa é circular, o fim remete ao

início.

Em Saramago, acontece algo similar. Não existe um fim especificamente: a

última frase remete a uma nova narrativa, em tudo parecida com a que o leitor acaba

de conhecer. Para ambos os autores, não é admissível um final feliz para os

duplicados, uma característica bem particular do duplo pós-Poe.

Outro aspecto de ambas as narrativas é serem divididas em duas partes que

não são estruturalmente marcadas. Só a leitura atenta permite identificar esses

limites.

Em William Wilson, a primeira parte remete à infância do narrador e sua

convivência com o duplo, até sua saída do colégio. O leitor é informado, nesse

primeiro momento, que a única diferença entre ambos os Wilson é o tom de voz: o

segundo, ou duplo, fala sussurrando. A segunda parte é a vida desregrada, sem

morada fixa, vagando pelo mundo na tentativa de fugir do outro Wilson, o duplo que

deseja ser escutado e sabe que só interferindo nos atos do narrador é que pode

impedí-lo de prejudicar os outros e a si mesmo. Edgar Allan Poe consegue, em mais

ou menos vinte páginas, construir um enredo que conta a vida inteira de uma

personagem. Sua capacidade de concentrar os fatos mais importantes e não se

prender em detalhes, nem trazer para a narrativa os questionamentos que seriam

inevitáveis num romance, faz com que a leitura flua rapidamente, deixando as

conclusões para o leitor. É a intensidade dos acontecimentos que importa, ou antes,

é o próprio acontecimento, a presença daquilo que é contado. A narração desse

conto, como na maioria dos contos poeanos, é em primeira pessoa, fator de

aproximação que cria um vínculo com o leitor.

Em O homem duplicado, a primeira parte contém a descoberta por

Tertuliano, da existência do outro, seus questionamentos e suas artimanhas para

encontrar o duplicado. A principal característica desta primeira parte é a lentidão da

narrativa, que se arrasta por quase duzentas páginas, tornando o leitor cúmplice da

ansiedade e curiosidade de Tertuliano. A partir do encontro dos duplos, a narrativa

segue um ritmo frenético, até o final inesperado. Se o narrador poeano é o próprio

Wilson, aqui o narrador é um Outro, que interfere e oscila entre a onisciência e a

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simples observação, que às vezes conversa com o leitor, faz digressões, outras

comanda a narrativa ou é impotente na condução dos fatos.

Por meio destes artifícios, percebemos que as narrativas são duplas tanto no

tema, quanto na escolha dos nomes das personagens e seus pseudônimos, como

na sua organização estrutural. O duplo permeia a narrativa, possibilitando a

interação do leitor com suas várias faces.

O cuidado com o tratamento lingüístico, tanto na obra poeana, quanto na obra

de Saramago, é extremado. Dois autores que perseguem a perfeição na forma,

utilizando diferentes recursos, mas ambos conseguindo desvelar um universo

encantatório.

Se Saramago fala de seu tempo, alegoricamente, Poe nos apresenta um

mundo onírico, inconsciente. Neste sentido, o espelho é a melhor metáfora para

traduzir uma possível similaridade entre esses autores: opostos, mas

complementares, ou, para não fugir de nosso tema, possíveis duplos. A

incompletude humana é eterna; o que muda é a forma de olhar ou, parafraseando

Haroldo de Campos, o tema pode ser o mesmo, o que se deve procurar são novas

formas de falar dele.

2.2 O duplo contemporâneo em Saramago - O homem duplicado

“toda a gente sabe que nenhum homem pode ser exactamente igual a outro num mundo em que se fabricam máquinas para acordar”. José Saramago

No romance de José Saramago, não somente o homem é duplicado, mas o

autor nos apresenta, por meio de um narrador múltiplo em si mesmo, que tudo e

todos podem ser duplicados.

O elemento que marca a identidade das personagens é o nome. Não há

nomes repetidos, a singularidade de cada um é que assevera a unidade de cada

ser. A importância do nome no romance aparece desde a primeira página e em

vários momentos podemos identificar comentários relevantes, tais como quando

Tertuliano identifica seu duplo e o narrador comenta: “se duas pessoas iguais se

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encontram, o natural é quererem saber tudo uma da outra, e o nome é sempre a primeira coisa porque imaginamos que essa é a porta por onde se entra”.(HD,

2002, p.24)16

O cenário inicial do romance é uma locadora de vídeos, local onde nos é

apresentado o professor de História, Tertuliano Maximo Afonso, que está em busca

de um vídeo indicado por outra personagem, designado somente por professor de

Matemática. Tertuliano não aprecia cinema, mas segue o conselho do colega e

aluga o filme, não um lançamento, mas um filme produzido aproximadamente cinco

anos antes. Ao assisti-lo, descobre que um dos atores é idêntico a si mesmo, mas

essa descoberta não ocorre no momento em que esta personagem aparece na tela

e sim, mais tarde, quando a sensação de que há alguém na casa o desperta. Ver-se

no vídeo causa um grande impacto, principalmente quando Tertuliano repara que o

ator se parece com ele cinco anos atrás, quando ele também usava bigode e era

mais magro.

Perceber que são idênticos e que há possibilidade das mudanças físicas

ocorrerem simultaneamente em ambos, causa-lhe uma grande perturbação,

levando-o a alterar sua rotina, ou melhor, criar uma outra rotina que envolve uma

estratégia para descobrir quem é esse duplo. Tertuliano fica obcecado pela imagem

do outro; no espelho, olhar-se é ver-se outro.

Em determinado momento, o colega que indicou o filme comenta sobre a

semelhança que notou entre o ator e o professor, fazendo com que Tertuliano reaja

de modo irritado. O leitor fica sem saber se essa indicação foi inocente ou se o

professor de Matemática tinha outra intenção ao sugerir o filme.

O narrador do romance, desde o princípio, se mostra onisciente, ”o professor

de História não tinha ouvido as primeiras palavras do director, mas nós, que aqui sempre estaremos para as faltas, podemos dizer que não tinha perdido

muito”(HD,2002, p.79),e também, ”Eis o que dirá, eis o que está dizendo”(HD,2002,

p.244) mas, vez por outra, finge um desconhecimento de fatos ou de pensamentos

que percebemos serem simulados, ”não se conte connosco, simples transcritores

de pensamentos alheios e fiéis copistas das suas acções, para que antecipemos os

passos seguintes de uma procissão que ainda agora vai no adro”(HD,2002, p.188).

16 Todos os grifos neste item são nossos.

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Ele faz questão de deixar claro que o que está sendo contado é uma história

inventada, um romance. A todo o momento há uma conversa com o leitor,

chamando-o a participar da narrativa, lembrar fatos, partilhar das digressões do

narrador. Além de tudo, a voz do narrador, em várias passagens se confunde com

outras vozes, como ecos que não se sabe a origem, ironicamente expondo esse

artifício, como no trecho abaixo :

“Há dúvidas sobre se o que acaba de ser escrito, desde as palavras Honestas até à palavra necessidades, tenha sido obra efectiva do pensamento de Tertuliano Máximo Afonso, mas representando elas, e as que entre uma e outra se podem ler, a mais santa e pura das verdades, mal parecia deixar passar a ocasião.”(HD, 2002, p.163)

Suas observações sobre a ambigüidade das palavras, dos gestos, ações e

pensamentos que se repetem entre as personagens, mostram que o duplo não está

somente na representação das duas personagens, Tertuliano e Antonio Claro, mas

em todo o romance.

Os elementos míticos aparecem em diferentes aspectos além do duplo; o

labirinto, explicitado num comentário sobre Tertuliano: “uma incurável perplexidade

perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas”. (HD,

2002,p.203-4) ou “este homem confuso, enredador de labirintos e perdido

neles”(HD,2002,p.290) e em outras ocasiões, como na descrição da metrópole:

”uma sucessiva duplicação horizontal e vertical de um labirinto”(HD,2002,p.71). A

cidade como labirinto é considerado um chavão dos tempos modernos, ela assume

o papel que nos contos de fadas e na literatura anterior à Revolução Industrial cabia

à floresta17. Encontramos o labirinto na própria configuração do romance, que nos

leva por caminhos que pensamos serem saídas e se revelam armadilhas. As

personagens femininas: Carolina, mãe de Tertuliano é comparada a Cassandra, filha

do rei de Tróia, Príamo, que vaticina a destruição da cidade e Helena, que, pelas

atitudes e situações em que se vê envolvida, pode ser comparada à sua homônima,

Helena de Tróia. O próprio Tertuliano é chamado por sua mãe de Tróia: “não queiras

tu ser mais uma(Tróia)”.(HD, 2002,p.260)

17 Cf. Labirinto, In Dicionário de Mitos Literários.

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Maria da Paz, a amante e futura noiva de Tertuliano, nada sabe sobre o duplo

e acaba envolvida no turbilhão de acontecimentos justamente por estar alheia à

verdade. Sem querer, ela se torna arma e carrasco de Antonio Claro.

De todas as personagens, o ator Antonio Claro é a mais adaptada à situação

de parecer outro. Acostumado a utilizar um pseudônimo, Daniel Santa-Clara, ”assim

como Tertuliano Maximo Afonso é, a todas as luzes, o outro do actor Daniel Santa-

Clara, assim também o actor Daniel Santa-Clara, embora por outra ordem de razões,

é o outro de Antonio Claro”(HD,2002,p.190), e a viver outras personalidades no

cinema, o primeiro impulso do ator quando descobre que tem um duplo é tirar

proveito da situação: “este Tertuliano poderá servir-me de duplo, mando a ele fazer

as cenas perigosas e enfadonhas, e fico em casa, ninguém se aperceberia da troca.”

(HD,2002,p.182)

Outra personagem que aparece a Tertuliano de tempos em tempos é o

Senso-Comum. Nenhum de seus conselhos para desistir de encontrar o duplo é

seguido o que o leva a comentar: “tenho a impressão de que puseste em marcha

uma máquina trituradora que avança para ti”(HD, 2002,p.121-2) e a fazer

comentários como: “Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio.”

(HD,2002,p.157). Para o Senso-Comum, Tertuliano deveria esquecer a existência do

duplo, afinal, o desconhecido que não faz parte do senso comum deve ser rejeitado,

para que a harmonia prevaleça. Mas, perguntamos, como poderia existir um

romance sem que a harmonia fosse rompida? Talvez o papel do Senso-Comum seja

o de alter-ego, uma invasão programada dessa figura saramaguiana peculiar: o

autor. Por meio dele, Saramago pode provocar discussões metalingüísticas

“disfarçadas”, diferente das digressões usuais porque são internas à personagem

Tertuliano, propositadamente inseridas no texto; o Senso-Comum é mais uma das

vozes que se confundem na narrativa saramaguiana.

Em vários acontecimentos do romance notamos a duplicidade das ações. Ao

escrever uma carta à Produtora dos filmes em que trabalha Antonio Claro, Tertuliano

usa o nome da Maria da Paz, autorizado por ela e imitando a assinatura, o que faz

as duas personagens discutirem sobre as diferenças entre falsear e falsificar,

levando Maria da Paz a dizer: “o que eu estava era a manifestar o desejo de que

houvesse uma palavra capaz de exprimir, por si só, o sentido daquelas duas”, pois

para ela, “se o acto existe, também deveria existir a palavra”.(HD,2002,p.125). Em

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outro momento, Maria da Paz e Tertuliano voltam ao assunto da carta e, muito

perspicaz, ela retruca: “Ali, o meu nome não foi mais que uma máscara, a máscara do teu nome, a máscara de ti”.(HD, 2002,p.167)

Quando Tertuliano descobre o endereço do ator, compra uma barba postiça e

vai até o endereço, para fazer um reconhecimento da área. Da mesma forma,

Antonio Claro repete o gesto em relação a Tertuliano, levando o narrador a ironizar:

As acções dos seres humanos, apesar de não serem já dirigidas por irresistíveis instintos hereditários, repetem-se com tão assombrosa regularidade que cremos ser lícito, sem forçar a nota, admitir a hipótese de uma lenta mas constante formação de um novo tipo de instinto, supomos que sociocultural será a palavra adequada, o qual, induzido por variantes adquiridas de tropismos repetitivos, e desde que respondendo a idênticos estímulos, faria com que a idéia que ocorreu a um tenha necessariamente de ocorrer a outro.(HD, 2002, p.189)

Olhar o espelho após colocar a barba postiça que permitirá uma visita à rua

onde mora seu duplo é a experiência do reconhecimento:

Quando pela primeira vez olhou sua nova fisionomia sentiu um fortíssimo impacte interior(...), o choque não tinha sido o resultado, simplesmente, de se ver distinto do que era antes, mas sim, (...) uma consciência também distinta de si mesmo, como se, finalmente, tivesse acabado de encontrar-se com a sua própria e autêntica identidade. Era como se, por parecer diferente, se tivesse tornado mais ele mesmo.(HD, 2002, p.164).

A impressão que o domina fará como que saia de casa e vá tirar um retrato

cuidadoso dessa imagem que, ao contemplar, poderá dizer: “Este sou eu”.(HD,

p.165) A ironia deste episódio está em que a fotografia ampliada virá junto com seis

outros retratos menores, os quais Tertuliano resolve destruir para não se ver

multiplicado. Como se já bastasse um duplo real e a foto em que aparece barbado,

além do nome de Maria da Paz, sob o qual se esconde, uma máscara, para torná-lo

múltiplo.

O encontro entre Antonio Claro e Tertuliano causa uma avalanche de

sentimentos em ambos, mas nenhum deles próximo à amizade ou simpatia. A voz, o

corpo, as cicatrizes que cada um possui reproduzem-se no outro sem exceções; ao

observarem-se nus o narrador comenta:

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Olharam-se em silêncio, conscientes da total inutilidade de qualquer palavra que proferissem, presas de um sentimento confuso de humilhação e perda que arredava o assombro que seria a manifestação natural, como se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade própria do outro.(HD, 2002, p.217)

Na tentativa de descobrir uma possível diferença entre ambos, comparam a

hora e a data de nascimento e, neste instante, Tertuliano descobre que é o

duplicado, pois nasceu meia hora depois de Antonio Claro. Esta constatação leva

Tertuliano a pensar se, já que nasceram no mesmo dia, morreriam com a mesma

diferença de tempo, ou seja, Antonio Claro antes de Tertuliano. Mas no decorrer do

romance verificamos que tal fato não se confirma: a substituição ocorre pela morte

de Antonio Claro, Tertuliano assume a identidade do original, mas não há catarse.

Quando finalmente pensa que é o original recebe um telefonema de outro que se

identifica como um duplo, sua busca pela própria identidade continua.

O confronto entre os duplos Antonio Claro e Tertuliano é um jogo perigoso,

comparado pelo Senso-Comum a uma partida de xadrez, em que os lances

determinam a vida ou a morte. A primeira jogada foi de Tertuliano, que após o

encontro envia ao ator a barba postiça que usou como disfarce. Este vê nesta

atitude um desafio e, percebendo que sua vida nunca voltará ao normal após todos

os acontecimentos até então, vai à casa de Tertuliano e lhe conta seu plano: dormir

com Maria da Paz, única personagem que não sabe da existência do outro.

A afronta é recebida por um Tertuliano exasperado, que aguarda o próximo

lance para ver como agirá, que peça irá mover. Antonio Claro pensa que dá as

cartas, que é dono da situação e propõe a troca das roupas, dos documentos, do

carro, da chave da casa, em suma, da identidade. A partir desse instante, Antonio

Claro responde pelo nome de Tertuliano Maximo Afonso.

Tertuliano aguarda a saída de Antonio Claro para vestir as roupas dele, pegar

os documentos e a chave do carro, partindo em seguida para a casa dele, onde

encontrará Helena e agirá da mesma forma que o ator, fingindo ser o marido dela. É

este seu lance, nesta partida de xadrez definitiva, agindo tal e qual seu duplo. A

única coisa que levará de sua casa será o livro sobre as antigas civilizações

mesopotâmicas, que está sempre lendo, mas nunca termina. Nesse livro há um

capítulo sobre o rei Hamurabi e o código, não por acaso, aquele em que se diz: “olho

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por olho, dente por dente”. O que não esperava Tertuliano é que tanto Antonio Claro

quanto Maria da Paz morressem em um acidente de automóvel. Nunca saberá a

personagem daquilo que é informado pelo narrador, que Maria da Paz é quem dá o

último lance, descobrindo que aquele homem que está com ela não é seu noivo e,

ao discutir com ele no carro, provoca o acidente fatal.

Sem saber o que fazer, Tertuliano identifica-se para Helena, conta sobre o

acidente e ela o surpreende ao convidá-lo a ser Antonio Claro definitivamente. O

duplo assume o lugar do original, embora jamais deixe de ser Tertuliano. A ironia

está em ser agora, definitivamente, um ator, sua única forma de identificar-se como

Tertuliano e que usa para que sua mãe saiba que está vivo, o nome do cão,

Tormactus. Não somente Cassandra tinha razão, mas também o Senso-Comum que

não deixou de alertar o homem duplicado.

2.3 Duplicando a escritura

“E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual, que isso só é que se mantém constante, nada mais.” José Saramago

A escritura permite manipular, por meio das palavras, o tempo da leitura, o

tempo dos acontecimentos, o tempo das personagens. O tempo (e também o

espaço) na narrativa ficcional só existe pela sua apresentação na linguagem; é o

discurso, ordenando sucessivamente os fatos, que estabelece a modalidade

temporal do texto. Podemos comparar o tempo da narrativa com o tempo da música,

por exemplo: em alguns momentos, a narrativa corre, antecipa fatos, sintetiza vários

acontecimentos em poucas linhas; em outros, utilizando-se da digressão, da

descrição e da narração estendem-se as passagens, prolongando-se por várias

páginas os acontecimentos da narrativa.

Em O Homem Duplicado, José Saramago consegue do leitor uma

participação intensa na expectativa dos acontecimentos futuros. Quando a

personagem Tertuliano Maximo Afonso descobre que tem um duplo, o leitor fica num

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estado de ansiedade, que se arrasta pela leitura das páginas, juntamente com a

personagem, na expectativa do fatídico encontro. O romance se divide em dois:

antes e depois do encontro. Este tempo, constituído pela forma de expressão, é o

tempo do discurso, que difere do tempo da história. Este é pluridimensional, pois

permite que vários eventos aconteçam ao mesmo tempo; aquele é linear, pois os

eventos, mesmo os simultâneos, devem ser narrados em seqüência. Sendo assim,

“o discurso nos dá a configuração da narrativa como um todo significativo; a história,

o aspecto episódico dos acontecimentos e suas relações, juntamente com os

motivos que os concatenam”.(NUNES, 1995, p.28)

O artifício de Saramago para suspender a narrativa e intensificar o suspense

é predominantemente a digressão. Um fato simples, como o empréstimo de um

vídeo na locadora, é narrado num longo parágrafo que vai da página 9 a 11. Nele, o

narrador aproveita para nos apresentar Tertuliano, comentar sobre sua depressão e

referir-se a personagens saramaguianas de outros romances, ironizar sobre o nome

Tertuliano, fazer considerações sobre a vida, portanto, na ida da personagem à

locadora nos é apresentada uma síntese da sua personalidade e, também, a

característica principal deste narrador, que tudo sabe, mesmo aquilo que está além

do narrado, fazendo questão de dar opiniões sobre os mais diversos assuntos.

É interessante notar que, antes do encontro, o texto se prolonga por

aproximadamente 200 páginas e o leitor compartilha da expectativa do encontro que

demora a acontecer. No instante em que os duplos, Tertuliano e Antonio Claro se

deparam frente a frente, os acontecimentos seguintes se desenrolam num ritmo

quase frenético.

Esses artifícios narrativos são chamados por Benedito Nunes (1995) de

“figuras da duração”, ou seja,

Figuras retóricas avalizadoras do estatuto fictício do texto, na ordem dos efeitos estéticos decorrentes das diferenças de andamento, e que exercem, como mecanismos básicos da economia de tempo – da relação e do ajuste dos acontecimentos narrados – uma função estruturante.(NUNES, 1995, p.35)

Observamos assim, como relacionando a velocidade da narrativa, mais

acelerada ou mais lenta, obtém-se um efeito no leitor, seja de antecipação ou

rapidez, seja de suspense e expectativa.

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Nesse movimento que leva o leitor a um pacto com o texto, percebemos a

predominância do narrador, hábil condutor que enfeitiça a narrativa, tal e qual um

“contador de histórias”, como nos recorda Berrini (1998, p.55), realçando o “contacto

directo e constante; essa comunicação viva entre narrador/leitor”. 18

O tempo da história em O Homem Duplicado não é especificado, mas pode

ser calculado em torno de dois meses, sinalizados pelo calendário escolar; afinal

Tertuliano é professor de História e sabemos, pelo narrador, que ele descobre ter

um duplo um pouco antes das férias escolares, período em que sucedem os

acontecimentos mais importantes do romance. O narrador também antecipa para o

leitor que a personagem não voltará a dar aulas, o que nos leva a concluir que a

ação se desenrola no período das férias e que, provavelmente, a narrativa se conclui

antes do final do recesso escolar.

Aqueles que gozam de informações sobre os deveres que o professor de História tem de cumprir, sabem que ele, neste preciso instante, se encontra tranqüilamente sentado à secretária, trabalhando[...],quando o certo, e isto sim podemos já antecipá-lo, é que o professor Tertuliano Maximo Afonso não voltará a entrar numa sala de aula em toda a sua vida.(HD, 2002, p.191)

O narrador faz um jogo irônico com o leitor, pois da mesma forma como ele

antecipa fatos, algumas poucas páginas antes, se coloca como um narrador

inocente:

Não se conte connosco, simples transcritores de pensamentos alheios e fiéis copistas das suas acções, para que antecipemos os passos seguintes de uma procissão que ainda agora vai no adro.(HD, 200, p.188)

Podemos deduzir que, do mesmo modo que temos duas personagens que

são uma o duplo da outra; dois tempos, antes e depois do encontro; temos também

um narrador fazendo um jogo duplo, ora mostrando, ora disfarçando sua onisciência.

Neste romance, temos duas personagens que não se parecem

psicologicamente, mas são fisicamente idênticas. Uma é professor de História e a

outra é ator de cinema. Dois mundos, duas identidades.

18 Vale lembrar que os romances de Saramago, a partir de Levantado do Chão, não possuem a pontuação tradicional: encontramos somente vírgulas e pontos finais. Essas marcas retomam a base da oralidade, recuperando a tradição oral dos contadores de histórias. Cf. Calbucci (1999, p.92)

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A partir do instante em que Tertuliano, o professor, descobre que há outro

homem igual a ele, o ator Antonio Claro, sua vida se resume em tentar encontrar e

conhecer este homem. A simples possibilidade da existência de um duplo o perturba

de tal forma que, mesmo não sabendo o porquê, Tertuliano faz de tudo para

encontrá-lo.

A única solução possível para a duplicidade é a morte, mas a substituição de

um pelo outro nada garante. Ao assumir a identidade de Antonio Claro, Tertuliano

assume uma nova vida, mas jamais deixará de ser ele mesmo, afinal, sua memória

será sempre a do professor de História. Para conseguir substituir seu duplo, deveria

esquecer-se de seu passado e reconstruir suas lembranças, tornando suas as

memórias de outro homem.

No romance, a personagem terá o auxílio da esposa de Antonio Claro, que se

dispõe a apresentá-lo a sua nova vida, ajudando-o a construir recordações. Mesmo

assim, será sempre Tertuliano, em tudo igual ao outro, menos naquilo que realmente

constitui uma identidade, sua memória.

Neste sentido, Rosenfeld (1973), diz que

O homem não vive apenas no tempo, mas ele é tempo, pois a nossa consciência é uma totalidade que engloba, como atualidade presente, o passado e, além disso, o futuro, como um horizonte de possibilidades e expectativas.

Mas a identidade não é formada somente de lembranças, de memória. O

esquecimento é essencial para se constituir uma identidade, visto que é por meio

das lembranças devidamente selecionadas, que a memória se forma. Não é

humanamente possível recordar-se de tudo; somente Funes, personagem borgiano,

é detentor de uma memória infinita e que afinal, se revela inútil.

O homem é um ser que esquece e esquecendo recria um passado, atualiza

suas lembranças, constrói sua identidade; podemos dizer que sua memória é

constituída de esquecimentos. Segundo Montoto (1999, p.104), “não deve ser

entendido o esquecimento como oposto à memória senão como um elemento que a

articula”.

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Entretanto, este não é um esquecimento vazio, oco, e sim um esquecimento

que abre espaço para as recordações mais significativas, uma ausência cheia de

significados, quebra-cabeça montado pela memória ao longo da vida.

A capacidade de esquecer, isto é, de não lembrar-se, permite a criação; só assim o mundo pode seguir seu curso natural, porque esquecer não significa destruição ou desaparecimento, senão impossibilidade, às vezes momentânea, de ter acesso a um conceito. (MONTOTO, 1999, p.104)

Para a personagem Tertuliano, será como nascer de novo, aprender a

guardar lembranças que não viveu, ser um eterno ator; ironia, se lembrarmos que

seu duplo era ator de cinema. Este papel, o professor terá que desempenhar

forçosamente, dentro e fora de cena, por toda a vida.

O romance contemporâneo tem essa capacidade de levar o homem a refletir

sobre o próprio homem e como, parafraseando Rosenfeld (1973), o homem é tempo

e não apenas está nele; este mesmo tempo se torna elemento essencial na

arquitetura da identidade das personagens. Para Cortázar (1993, p.82), “agora (os

romances) são escritos ou lidos para confrontar-se hoje e aqui”, levando-nos a

concluir que o romance, por meio da linguagem, tem o poder de manipular o tempo,

arquitetar maneiras de driblar o presente, o passado e o futuro, mas, das múltiplas

formas que pode elaborar, está sempre falando do e para o homem, um homem

presente, num tempo infinitamente presente.

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René Magritte - A traição das imagens - 1929

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CAPITULO III 3.1 A palavra em Saramago: o duplo possível

“Porque la palabra es un dios bifronte que mira lo real desde ángulos análogos y simultáneos (contradictorios y complementarios) al mismo tiempo; en otros términos, la palabra al nombrar aclara y opaca lo nombrado.” Rafael Rattia

Uma das características do romance, a partir do final do século XIX e início do

século XX, é a metalinguagem, ou, mais propriamente, a metacrítica. O romance

não somente conta uma história como constrói a crítica, a análise, a investigação do

ato de escrever e da criação literária. O escritor não é mais um ser à parte, um

iluminado que recebe das musas a inspiração necessária para elaborar uma história;

ele é, a partir de então, um analista de sua escritura (e da alheia), um crítico mordaz

de sua época e da elaboração do romance, um estudioso interessado na linguagem

e no seu uso literário.

A revelação do potencial humano, por meio da psicanálise e da medicina, as

descobertas da física, da química e a consciência da impossibilidade de dominar

completamente o conhecimento disponível tornam o homem um ser deslocado,

dividido, incompleto. Quanto mais o mundo se amplia a sua volta, mais sofre o

artista, aquele que, por excelência, deseja transcender os limites da condição

humana. Pela postura crítica em relação ao mundo, o artista supera-se por meio da

arte, instrumento que “mais do que conhecer o mundo, produz complementos do

mundo, formas autônomas que se acrescentam às existentes, exibindo leis próprias

e vida pessoal”.(ECO, 1976, p.54)

Sua incapacidade de abarcar a plenitude de um universo de saberes reflete-

se na criação da obra de arte, seja ela qual for, pintura, escultura, literatura. A arte

revela-se tão incompleta quanto o artista que está sempre em busca de algo, para

além de si mesmo. Como diz Octavio Paz (1982,p.215):

Flecha esticada, sempre rasgando o ar, sempre adiante de si, precipitando-se mais além de si mesmo, disparado, exalado, o homem avança sem cessar e cai, e a cada passo é outro e ele mesmo.

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É por este motivo que o romance tornou-se a forma literária privilegiada pelo

século XX: a incompletude do artista transposta para a escritura em processo, um

gênero em devir. Na impossibilidade de ser uno, completa-se no outro, no texto que

se apresenta como desafio.

Construir uma poética da obra literária inserida na obra ficcional é um desafio

para muitos escritores, entretanto a crítica acaba por incorporar-se à criação literária,

como explicita Davi Arrigucci Júnior na introdução do livro Valise de Cronópio(1993,

p.8), de Julio Cortazar:

Essa obra que se espia e ameaça, arriscando-se, sob o ferrão da crítica, a não prosseguir, firmando esse namoro com o silêncio que sempre acena com o branco da página, é já uma obra crítica. E essa crítica é um componente decisivo do texto de criação, ao qual se incorpora como elemento da estrutura, atuando, por isso mesmo, no jogo das relações internas que multiplicam as direções do sentido.

Vários escritores converteram-se em críticos e/ou teóricos importantes, assim

como críticos embrenharam-se nas malhas do texto literário como autores, mas é

freqüente a obra crítica/teórica inserir-se na obra literária, pois, como dissemos, o

texto literário é, na atualidade, metalingüístico. Podemos citar alguns escritores que

se destacaram do final do século XIX ao século XX, desenvolvendo uma obra crítica:

Machado de Assis, Marcel Proust, André Gide, Edward M. Forster, Umberto Eco,

Ítalo Calvino, Octavio Paz, Julio Cortazar, Jorge Luiz Borges, Haroldo de Campos e,

por que não, José Saramago.

Saramago não se dedicou (ainda) a escrever estudos críticos/teóricos19

independentes, mas nos atrevemos a considerar que inseridas no texto literário

estão várias idéias relativas à escritura e ao uso da linguagem poética que, se

reunidas, dariam um panorama das considerações teóricas e críticas

saramaguianas.

Para Saramago, os escritores mais importantes deste século são Kafka,

Borges e Pessoa, pela contribuição que deram à contemporaneidade. Em vários de

seus romances, podemos perceber o eco das vozes destes grandes escritores,

inserido na temática ou na estrutura do texto. Pessoa e seu heterônimo Ricardo Reis

19 Devemos levar em conta que, além de romances, Saramago tem publicado alguns diários, os Cadernos de Lanzarote, nos quais podemos identificar diversos comentários e críticas sobre a produção literária moderna, tanto a sua própria como a de contemporâneos, além de anotações sobre o fazer poético, a linguagem, a escritura.

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estão presentes em O Ano da morte de Ricardo Reis, Borges no labirinto, nos

espelhos, no livro que Ricardo Reis não consegue terminar de ler, The god of the

labyrinth. Kafka, na estrutura do texto, no encontro do vivo (que também não existe,

pois é uma criação literária de Fernando Pessoa) com o morto, um fato absurdo e

que é apresentado como normal, sem perturbar a ordem natural da existência20.

Em outro romance, Todos os nomes, Saramago utiliza-se do labirinto como

um elemento essencial, desde a Conservatória do Registo Geral, em que se usa o

fio de Ariadne para encontrar o caminho do arquivo dos mortos, até o Cemitério,

labirinto que tem a forma de uma árvore21.

No romance O homem duplicado, encontramos mais referências ao labirinto,

seja na definição da cidade ou da personalidade de Tertuliano Maximo Afonso. O

elemento kafkiano e, podemos incluir borgiano, é a própria presença do duplo, não

explicada, assustadora, mas que é aceita mesmo que não tenha uma explicação

razoável. Aliás, não há tentativa de explicações, o que querem os envolvidos na

trama é verem-se livres daquela presença incômoda. O romance gira em torno da

busca de uma solução, mesmo que isto signifique a morte de alguém.

Consciente ou, até mesmo, inconscientemente, o escritor produz uma obra

repleta de referências (culturais, sociais, históricas) que pode se tornar uma obra de

arte atemporal. Atingindo qualidade estética, todos os elementos constituintes do

texto adquirem um aspecto de eternidade; a verdadeira obra de arte cria, inclusive,

seus precursores22, o tempo deixa de existir na atemporalidade artística.

As obras dissolvem as fronteiras de sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e além disso levam freqüentemente (as grandes obras, sempre) uma vida mais intensiva e plena que em sua atualidade.(BAKHTIN, 2003, p.362)

Pensar a criação dos precursores e a atemporalidade do texto literário é

pensar no leitor que, atualizando o texto lido, acrescenta-lhe novos significados de

20 Para Todorov(1971, p.56) “uma literatura de inspiração inicialmente fantástica substitui a causalidade do bom senso por uma causalidade por assim dizer, irracional”. Kafka modifica a relação entre os acontecimentos, inserindo neles elementos inesperados, irreais, mas construindo uma narrativa que normaliza este estranhamento. 21 Na definição dada pelo narrador de Todos os nomes, o cemitério parece um polvo, com os tentáculos envolvendo o mundo dos vivos. A imagem que fica é a de uma árvore e suas ramificações. 22 Monegal (1980) analisa esta hipótese no ensaio de Borges “Kafka y sus precursores” de 1951. Neste ensaio uma das fontes citadas por Borges é T.S. Eliott, Points of view (1941). Posteriormente Harold Bloom utiliza-se das idéias de Borges em seu livro sobre Yeats (1970).

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acordo com seu contexto sócio-histórico-cultural. Segundo Eco (1989) “tanto o

conhecimento dos textos como o conhecimento do mundo, não passam de dois

capítulos do conhecimento enciclopédico e que, portanto, numa certa medida, o

texto se refere sempre, seja como for, ao mesmo patrimônio cultural”.

A atemporalidade de uma obra está em reunir em si os séculos passados

para viver nos séculos futuros, pertencendo, deste modo, a todas as épocas e a

todos os leitores. É um texto que contém em si um potencial a ser desvendado.

Os fenômenos semânticos podem existir em forma latente, em forma potencial, e revelar-se apenas nos contextos dos sentidos culturais das épocas posteriores favoráveis a tal descoberta. (BAKHTIN, 2003, p.363)

A discussão de O homem duplicado é sobre a natureza humana e sua

incerteza, o texto é metalingüístico e inconcluso. Saramago não apenas conta uma

história, mas faz dela mote para falar da matéria-prima do escritor, a palavra,

ambígua, poderosa, essencial.

Vejamos a definição de Calvino (2003,p.121) sobre o romance

contemporâneo:

O romance contemporâneo como enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo[...]presença simultânea dos elementos mais heterogêneos que concorrem para a determinação de cada evento.

Não é incomum que os escritores se debatam num constante enfrentamento

com a palavra. Gabriel Garcia Márquez, em Cem anos de solidão, constrói um

episódio em que uma peste de insônia produz como conseqüência o progressivo

esquecimento dos habitantes de Macondo. Esquecem-se, como não podia deixar de

ser, das palavras, do nome das coisas, chegando a colocar placas para identificá-

las, mas o que aconteceria quando não se conseguisse mais ler? Para Carlos

Drummond, enfrentar as palavras é um desafio infindo (“Lutar com palavras é a luta

mais vã.”) Fernando Pessoa, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, já não

consegue ler depois de morto (“a leitura é a primeira virtude que se perde.”), o

narrador de O homem duplicado se debate entre a precariedade das palavras

(“essas vieram ao mundo com um destino nevoento,difuso”) e a valoração do ato da

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leitura (“ler também é uma forma de estar lá”) . A linguagem operacionalizada pela

arte é o céu e o inferno daquele que dela se alimenta.

A linguagem para Saramago é mágica, às vezes traiçoeira; em vários

romances, podemos encontrar alguma observação sobre a força e ambigüidade das

palavras e do pouco que conhecemos delas:

Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos.(HD, 2002, p.87)

Dominando o prosador ou o poeta está um poder que os faz prisioneiros,

cúmplices e amantes das palavras. Elas são insuficientes, talvez fugidias, mas, ao

mesmo tempo, arma e forma nas mãos do homem que intenta desafiá-las:

Como conseguiremos nós explicar o que se passou, juntamos palavras, palavras e palavras (...), e, por mais que nos esforcemos, sempre acabamos por nos encontrar do lado de fora dos sentimentos que ingenuamente tínhamos querido descrever.(HD, 2002, p.102)

As palavras são tão irresistíveis a Saramago que provocam divagações ao

longo das narrativas. Capítulos são iniciados ou interrompidos pelas discussões

sobre a origem das palavras, a denominação das coisas, como se a insuficiência

dos termos inquietasse o escritor a todo tempo. A consciência de que as palavras

são inseparáveis do homem e a certeza de sua rebeldia, escapando de definições

conclusivas, faz com que o escritor percorra um labirinto sem saída, onde o

Minotauro é a própria linguagem.

Para o homem, não há alternativas, a realidade só pode ser descrita pelas

palavras, portanto interpretada; há sempre um espaço entre uma e outra:

A palavra não é idêntica à realidade que nomeia porque entre o homem e as coisas – e, mais profundamente, entre o homem e seu ser – se interpõe a consciência de si mesmo. A palavra é uma ponte através da qual o homem tenta superar a distância que o separa da realidade exterior. (PAZ, 1982, p.43)

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Não só as palavras recebem atenção do romancista, a própria escritura do

romance ou a posição do narrador transparecem na constituição do texto:

Há alturas da narração, e esta, como já se vai ver, foi justamente uma delas, em que qualquer manifestação paralela de idéias e de sentimentos por parte do narrador à margem do que estivessem a sentir ou pensar nesse momento as personagens deveria ser expressamente proibida pelas leis do bem escrever.(HD, 2002, p.34)

Deixando claro ao leitor que o texto é um romance, Saramago se propõe a

partilhar, como diz Calvino (2003, p.127), uma “antiga ambição de representar a

multiplicidade das relações, em ato e potencialidade”, sobre o romance, tornando-o

cada vez mais metalingüístico e metacrítico. Essas relações entre o real e o

ficcional, entre o fazer literário e o ler a ficção fazem com que a participação do leitor

seja mais intensa, atuando de forma crítica sobre o texto, ao mesmo tempo em que

frui da matéria ficcional. A verdade da escrita compromete-se com a verossimilhança

da ficção.

Todorov (1971), afirma “que a literatura não se deixa submeter à prova da

verdade; não é verdadeira nem falsa”. A literatura só precisa ser verossímil, ou seja,

fazer-nos acreditar que aquilo que está sendo contado é verdadeiro.

Entrelaçando a ficção, a realidade, discussões existenciais, comentários

sobre a linguagem de forma original e poética, Saramago constrói uma narrativa que

pode ser considerada um modelo de romance contemporâneo. O romance hoje é

aquele que inclui os leitores que não fogem à indagação de sua realidade,

confrontando-se com o aqui e agora, ampliando os horizontes do homem porque fala

do e ao próprio homem. Enfrentar o labirinto é o desafio e a solução.

3.2 A identidade e o nome: a personagem nomeada

“Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio.” José Saramago

Os romances saramaguianos possuem características peculiares que

provocam múltiplas abordagens teóricas. Entre essas características podemos citar:

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1. os romances de predominância histórica, p.ex., Memorial do Convento,

História do cerco de Lisboa, O ano da morte de Ricardo Reis.

2. os romances em que espaço e tempo são indeterminados, p.ex., Ensaio

sobre a cegueira, Todos os nomes, O homem duplicado.

3. algumas imagens reincidentes, tais como: o labirinto, o livro, o cão, a

personagem feminina como elemento de força, a discussão sobre a vida e a

morte, as digressões (espaço privilegiado para a crítica), a personagem em

busca de algo (sentido para a vida?)

4. todos os romances são alegóricos, quase beirando o ensaio filosófico.

5. o nome(ou a falta dele) como definidor da identidade.

Estes aspectos se entrelaçam em determinados momentos, realçando a

importância de determinada imagem, como no caso de Ensaio sobre a cegueira,

em que às personagem anônimas se soma a falta de identificação da cidade e do

tempo.

Não sendo o objetivo deste trabalho aprofundar todos os aspectos pertinentes

à obra saramaguiana, nos deteremos no aspecto que se relaciona ao duplo e à

questão identitária: o nome.

No caso de O homem duplicado, temos personagens nomeadas de forma

que o nome de algumas delas pode ser relacionado com personagens e fatos

históricos e determinam características da personalidade de cada um.

Podemos perceber a importância do nome no início do romance; as primeiras

páginas são dedicadas a explicar quem é Tertuliano e justificar tal nome. Vejamos:

O homem que acabou de entrar na loja para alugar uma cassete vídeo tem no seu bilhete de identidade um nome nada comum[...] Tertuliano pesa-lhe como uma lousa desde o primeiro dia em que percebeu que o malfadado nome dava para ser pronunciado com uma ironia que podia ser ofensiva.(HD, 2002, p.9) 23

O narrador aproveita para falar de outros personagens saramaguianos, sem

nomeá-los:

23 Todos os grifos são nossos.

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[...]aquele pintor de retratos de quem nunca chegamos a conhecer mais que a inicial do nome, aquele médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer no braços da pátria amada, aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para plantar no seu lugar uma mentira, aquele funcionário subalterno do registo civil que fazia desaparecer certidões de óbito[...] (HD, 2002, p.10)24

E completa ironizando: “[...]mas nenhum que tivesse a desgraça de chamar-

se Tertuliano, e isso terá decerto representado para eles uma impagável vantagem

no que toca às relações com os próximos”. (HD, 2002, p.10)

Mais à frente, quando Tertuliano volta à locadora, o narrador comenta sobre o

pensamento futuro do funcionário da loja: “[...]passará a ter motivos mais que

suficientes para reflectir sobre a concomitância entre a raridade de um nome e o

estranhíssimo comportamento de quem o usa”. (HD, 2002, p.48)

Embora já tenhamos comentado no item 2.2 sobre os nomes das

personagens do romance, achamos conveniente retomar e acrescentar alguns

dados à análise da nomeação.

Tertuliano Máximo Afonso é professor de História e seu nome remete a vários

personagens históricos:Tertuliano: apologista romano; Maximo: título de alguns

imperadores romanos, Afonso: possível referência a D.Afonso Henriques e,

conseqüentemente, ao romance História do Cerco de Lisboa, do próprio

Saramago. É uma personagem singular, pois ter um nome diferente o perturba,

chegando a influir no seu comportamento, tornando-o fechado, arredio aos outros.

Antonio Claro, um nome comum para um homem comum, mas que usa o

pseudônimo de Daniel Santa-Clara, seu duplo, o nome que protege a identidade

verdadeira do ator. Daniel é também o nome do irmão de Lídia, personagem do

romance O ano da morte de Ricardo Reis, marinheiro do contratorpedeiro Afonso

de Albuquerque, que morre no fim do romance.

Maria da Paz nomeia a personagem que é amante de Tertuliano, uma mulher

como tantas outras, sonhadora, honesta e trabalhadora.

Helena, a esposa do ator Antonio Claro, também leva um nome histórico que

remete à história de Tróia, cidade que é citada no romance como metáfora para

24 As personagens são: H., o pintor do Manual de Pintura e Caligrafia, Ricardo Reis, de O ano da morte de Ricardo Reis, Raimundo Silva, de História do Cerco de Lisboa e Sr. José, de Todos os nomes.

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Tertuliano. É a mulher que se sente dividida entre dois homens, tal qual a

personagem histórica.

Segundo Cassirer (2003), o nome, na instância mítica, é parte integrante da

pessoa, pertencendo “à mesma categoria que seu corpo ou sua alma”. Por esse

ponto de vista, podemos analisar melhor a importância do nome no romance O

Homem Duplicado.

Enquanto em alguns romances, tais como Ensaio sobre a cegueira e Todos

os nomes, Saramago buscou deixar anônimas as suas personagens, em outros – O homem duplicado, Memorial do Convento - o nome tem tal importância que

merece comentários do autor, como no caso do nome Blimunda: Tentando, nesta ocasião, destrinçar aceitavelmente as razões finais da escolha que fiz, seria uma primeira razão a de ter procurado um nome estranho e raro para dá-lo a uma personagem que é, em si mesma, estranha e rara. De facto, essa mulher a quem chamei Blimunda, a par dos poderes mágicos que transporta consigo e que por si sós a separam do seu mundo, está constituída, enquanto pessoa configurada por uma personagem, de maneira tal que a tornaria inviável, não apenas no distante século XVIII em que a pus a viver, mas também no nosso próprio tempo. Ao ilogismo da personagem teria de corresponder, necessariamente, o próprio ilogismo do nome que lhe ia ser dado. Blimunda não tinha outro recurso que chamar-se Blimunda.25

Então o nome da personagem não seria uma muleta, um apêndice, mas algo

que corresponde à própria essência da personagem.

Sobre as personagens de O homem duplicado, Saramago, em entrevista ao

jornalista Haroldo Ceravolo Sereza, em 01 de novembro de 2002, declarou o

seguinte: “Os nomes desses personagens não têm mais importância que os de quaisquer outros", afirma Saramago. "Repare que o próprio António Claro usa o nome artístico de Daniel Santa-Clara e quanto ao professor de história, a única razão de se chamar assim resultou de querer eu dar-lhe um nome pomposo." Se Saramago escolheu o nome, "o Destino se encarregará de lho mudar”.

A declaração pode parecer incongruente, comparada com a anterior,

referente à personagem Blimunda. Afinal, parafraseando o narrador de O homem

25 SARAMAGO, José, in Jornal de Letras, Lisboa, 15 de Maio de 1990, pág. 29.

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duplicado, o nome é a porta de entrada para o conhecimento entre duas pessoas.

Não faz sentido então, acreditar que os nomes em um romance que discute a

identidade, o outro, o duplo, vão ser escolhidos aleatoriamente. Saramago parece

querer confundir o estudioso de sua obra e se divertir com isso. Nos Cadernos de Lanzarote, em nota do dia 06 de janeiro de 1997, ao escrever sobre o livro Todos

os nomes, lemos: “o nome das pessoas é demasiado intrigante para ser

banalizado”. É essa, também, a nossa convicção.

Sendo o nome considerado parte do homem, assim como sua alma, ele é

aquilo que faz do homem um indivíduo. Sem o nome, a individualidade se apaga,

dilui-se, produzindo um efeito coletivizante. Não por acaso, é esse o efeito causado

pelo anonimato das personagens de Ensaio sobre a cegueira. Saramago não está

se referindo a alguns indivíduos, mas sim ao coletivo humano, imago mundi, em

suas próprias palavras, e, mais ainda, conforme seu Diário III, dos Cadernos de

Lanzarote, em 04 de março de 1995, “no Ensaio não se lacrimejam as mágoas

íntimas de personagens inventadas, o que ali se estará gritando é esta interminável

e absurda dor do mundo.”

No caso específico de O homem duplicado, o nome adquire uma

importância mítica. Nomear equivale a buscar a marca de uma identidade que

percebemos oscilante. Cada personagem tem no nome características da

personalidade. Tertuliano, em sua procura pela identidade, deixa de ser o professor

e se torna o ator Antonio Claro, mas como a busca se mostra infrutífera, outro duplo,

anônimo, aparece para abalar a falsa segurança adquirida pela identidade usurpada.

Segundo Cassirer (2003, p.69),

Para a concepção mítica fundamental, a individualidade humana não é algo simplesmente fixo e imutável, mas algo que, a cada passo, em uma nova fase decisiva da vida, ganha um outro ser, um outro eu,[sendo que] esta transformação se exprime, antes de tudo, na troca do nome.

Entretanto, a busca de Tertuliano se revela infrutífera, ao passar de professor

a ator, assumindo outra identidade, outro eu, ganhou novo nome, endereço, esposa;

todos demonstrando serem frágeis laços que não sustentam a individualidade,

comprometida pelo surgimento de outro duplo. A nós, leitores, fica a perturbação de

não haver um final para a história do homem duplicado, sua busca é eternizada por

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um de seus últimos atos no romance, escrever um recado para Helena: “Voltarei”.

Qual dos duplos voltará, não sabemos, a inquietação permanece.

Um outro aspecto a ser observado é que a personagem de um romance não é

uma pessoa real, mas um ser criado pela linguagem por alguém investido de poder

criador: o autor. Por mais similitudes que encontremos entre uma personagem

fictícia e alguém de carne e osso, não devemos nos iludir, as diferenças começam

pela criação verbal, ficcional do texto e que dão vida à personagem26. “As

personagens, segundo Rosenfeld(1970, p.29) ao falarem, revelam-se de um modo

bem mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou procuram

disfarçar a sua opinião verdadeira”. Desse modo, a sinceridade das falas e a

obviedade do disfarce se apresentam como “índices evidentes da onisciência

ficcional”.

O nome de uma personagem é, consequentemente, pré-fixado, assim como

sua personalidade, seus atos e as conseqüências que advirão deles; sua existência

segue uma lógica que difere da vida real, mas não menos complexa. A incompletude

que ocasionalmente transparece não é fortuita, ela é estabelecida pelo escritor, que

elabora pela estrutura textual um contexto similar ao que experimentamos na vida

cotidiana.

3.3 Fronteiras entre os duplos: autor – narrador – personagem

“O artista, homem-duplo por excelência, é aquele que pode compreender que por trás das aparências se esconde a verdadeira vida. O mundo é duplo.” Nicole Bravo

Saramago, numa declaração polêmica27, disse que, para ele, quem narra uma

história é o próprio escritor. Segundo ele, a figura do narrador não existe, as

opiniões e declarações expostas na obra são do autor, sempre. Logo, nada mais

26 Para E.M.Forster, as personagens são “massas verbais”, cuja natureza está condicionada ao que o escritor imagina de si e das outras pessoas, acrescida de outros aspectos de seu trabalho. 27 Ensaio publicado pela Revista Cult, dez.1998. Ver bibliografia e anexo.

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provocante do que investigar a relação entre as figuras do autor, do narrador e da

personagem, pelo viés do duplo.

Partiremos, portanto, do princípio de que essas figuras – autor – narrador –

personagem – são máscaras de um indivíduo e buscaremos, numa abordagem

ampla, os pontos de contato entre as figuras mencionadas, cientes de que uma

análise detalhada de cada um dos aspectos é por demais ampla não sendo o alvo

desse capítulo, por conseguinte, não pretendemos esgotar o tema proposto.

O nome do autor faz referência direta ao criador do texto e Saramago quer

nos fazer crer que este nome é o mesmo de seu narrador, ou seja, que Saramago-

autor é o mesmo que Saramago-narrador e, mais ainda, que Saramago-pessoa. O

dilema parece simples de se resolver, afinal, o narrador saramaguiano é um

“intruso”, como diz Calbucci (1999, p.98), sendo “possível identificar uma série de

opiniões do próprio autor (como o pessimismo, o ateísmo e o comunismo),

subjacentes aos enunciados”.

É evidente que a vida – que compreende a ideologia, a cultura e a época em

que se vive - interfere na construção da obra, há uma constante observação do

mundo que servirá como elemento constitutivo, mas isso não implica a transposição

tal e qual da vida para a ficção. Mesmo no caso de um narrador opinativo, como é o

de Saramago, ele não é igual ao escritor, embora receba influência das idéias dele,

é sempre uma relação dialética. Uma obra de arte é sempre uma (re)criação e não

uma cópia e literatura é, antes de tudo, linguagem, signo, transformada em ficção,

que resulta numa “aparência de realidade”.

O texto de todo romance é um discurso citado, conforme Bakhtin, o que

significa que o discurso do narrador está em constante interação com o discurso do

outro, do autor, há sempre uma outra voz que fala no romance: “Por trás do relato do

narrador nós lemos um segundo, o relato do autor sobre o que narra o narrador e,

além disso, sobre o próprio narrador”. (BAKHTIN, 2002,p.118)

A escritura literária, assim como qualquer criação artística, pode ser

comparada a um rito iniciático. O escritor seria aquele que passando por um

processo de iniciação teria tido, segundo Bilen (2000, p.586), “o sentimento do

universal, do intemporal, da totalidade e da liberdade absoluta”, atingindo o patamar

de um herói mítico.

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Embora pareça fantasiosa, a comparação faz sentido. Vários escritores

deixaram anotações de seu sofrimento, dúvidas e hesitações durante o processo de

escrita. Nos diversos Cadernos de Lanzarote, Saramago descreve a gênese de

alguns de seus romances. Vejamos uma pequena seqüência de citações sobre o

Ensaio sobre a cegueira:

Diário I – 1993:

20 de abril - Esta manhã, quando acordei, veio-me à idéia o Ensaio sobre a cegueira, e durante uns minutos tudo me pareceu claro – excepto que do tema possa vir a sair alguma vez um romance[...]

13 de agosto - Após um princípio hesitante, sem norte nem estilo, à procura das palavras como o pior dos aprendizes, as coisas parecem querer melhorar.[...]

30 de agosto – terminado o primeiro capítulo do Ensaio. Um mês para escrever 15 páginas...

Diário II - 1994:

29 de abril - [...] sentei-me a trabalhar no Ensaio sobre a cegueira[...].Passadas duas horas achei que devia parar: os cegos do relato resistiam a deixar-se guiar aonde a mim mais me convinha.

8 de julho – O Ensaio saiu do atoleiro em que tinha caído há já não sei quantos meses. [...] Estava na Pinacoteca [...] (quando) os pilares fundamentais da narrativa se me definiram com tal simplicidade que ainda hoje me pergunto como foi que não tinha visto antes o que ali me parecia óbvio. [...] a “revelação” não foi tão completa, mas sei que vai determinar um desenvolvimento coerente da história, antes atascada e sem esperanças.

Diário III – 1995:

9 de agosto – Terminei ontem o Ensaio sobre a cegueira, quase quatro anos após o surgimento da idéia[..] E lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam.[...] Enfim acabou, já não terei de sofrer mais.

De certa maneira, o impulso criador está envolto de similaridades com a

trajetória heróica, senão vejamos: a clareza inicial dá espaço ao caos, a dificuldade

na escritura é angustiante até que a “revelação” ocorre; esse é o momento da

reestruturação que culmina num êxtase, o da conclusão do texto.

Na apresentação do livro El hacedor28, chamada Borges e Eu, Jorge Luis

Borges coloca em discussão o problema do autor e achamos pertinente reproduzir

aqui alguns trechos do pequeno, mas denso, texto:

28 Jorge Luis Borges, “El Hacedor”, EMECÊ, Buenos Aires, 1960.

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É ao outro, ao Borges, que as coisas acontecem. Eu ando por Buenos Aires [...]; de Borges recebo notícias pelo correio e vejo seu nome numa lista de professores ou num dicionário bibliográfico. [...] Seria exagerado dizer que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. [...] Eu vou permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém)[...]. Anos atrás, tentei livrar-me dele e passei das mitologias do subúrbio para os jogos com o tempo e com o infinito. Mas agora esses jogos são de Borges e terei que imaginar outras coisas. Assim, minha vida é uma fuga e tudo perco e tudo pertence ao esquecimento, ou ao outro.

Não sei qual dos dois escreve esta página.

A dúvida final de Borges é, provavelmente, a dúvida existencial de todo

escritor, afinal, separar o homem do escritor é quase impossível, ainda mais no caso

específico de escritores como Saramago, que agarra seu narrador como se fosse

perder o leme do barco caso criasse um narrador “auto-suficiente”, com idéias

próprias e não esse seu “alter-ego” dominador.

Embora seu caráter dominante, esse narrador é singular, pois revela uma

pluralidade de vozes atuando juntamente com ele, o que dispersa o foco e possibilita

outras leituras. Machado (1995, p.132), ao explicar a polifonia dos romances de

Dostoievski sob a perspectiva bakhtiniana, diz que “se perdermos de vista a posição

do narrador, simplesmente não conseguimos ouvir as vozes que se embaralham

num tenso diálogo ao longo da narrativa.” É a mesma condição das narrativas

saramaguianas.

Para Saramago, parafraseando Borges, não é possível deixar tudo pertencer

ao outro, é sempre a ele, ao homem Saramago que pertence o texto, mesmo que os

rumos de sua narrativa não sigam exatamente os seus desejos, conforme

declaração do Diário-III, de 9 de agosto de 1995, quando fala sobre o fim da

escritura do Ensaio sobre a cegueira: “da idéia inicial direi que ficou tudo e quase

nada: é verdade que escrevi o que queria, mas não escrevi como o tinha pensado”.

De alguma forma, o texto foge ao controle do escritor, por mais que queira

domá-lo, ele é como um animal selvagem, não aceita impunemente as rédeas que

lhe colocam, pois o texto instaura, segundo Schawrtz (2004, p.130),uma “intenção

primordial e é portador sempre da última e provisória verdade”.

Ainda que o escritor queira dominar o texto que escreve essa tentativa não se

efetiva, porque, afinal,

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A obra é um acontecimento, um ato irreprimível, uma realidade nova que se revela ao fazer-se, jamais a expressão controlada de uma realidade exterior. Sabemos quanta defasagem – dolorosa ou irônica – existe entre as intenções de um autor e a realidade de sua criação. (PICON, 1970, p.16)

A analogia do escritor com as suas personagens é outro fato que provoca

confusões na distinção entre eles, tal como Flaubert29 que, quando perguntado

sobre quem seria Madame Bovary, respondeu: “Madame Bovary sou eu.”

Bovary é Flaubert porque, além do embasamento na realidade, sua

personagem tem muito dele próprio, é constituída de elementos externos e internos

ao escritor, mas isso não a torna um ser humano. Para Ernesto Sabato (2003,

p.126) “todos os personagens de um romance representam, de algum modo, seu

criador. Mas todos, de algum modo, o traem”. Essa traição ocorre, segundo Sabato,

porque as personagens tornam-se independentes do criador, podendo chegar a ser

exatamente o contrário do que o esperado por ele.

Por serem construídas pela linguagem, as personagens são mais coerentes,

significativas e ricas do que na vida real. Como diz Rosenfeld (1970, p.35):

O autor pode realçar aspectos essenciais pela seleção que apresenta, dando às personagens um caráter mais nítido do que a observação da realidade costuma sugerir, levando-as, ademais, através de situações mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida.

Bovary e todas as outras personagens fictícias são seres de linguagem, nas

quais o autor (e o leitor) pode se identificar por encontrar nelas traços

antropomórficos, mas devemos ter em mente que antes de tudo elas são, como

afirma Segolin (1999), personagens-texto.

A partir dessas premissas, quais sejam: a íntima relação do autor com o texto

e do autor (e leitor) com as personagens; podemos discorrer sobre a duplicidade que

se instala nesse confronto.

29 Gustave Flaubert (1821-1880), escritor francês, inspirou-se num caso de adultério, seguido do suicídio da mulher, para escrever Madame Bovary (1857), obra pela qual foi processado por “ofensa a moral pública e religiosa”. No julgamento, quando lhe perguntaram quem teria sido o modelo, porque a personagem era muito real, ele proferiu a resposta citada.

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Para entender melhor a duplicidade que envolve autor/personagem,

atentaremos ao que diz Bakhtin(2003, p.33), para quem o eu só se constitui perante

um outro:

[...[pode-se dizer que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal personalidade não existe se o outro não a cria; a memória estética é produtiva, cria pela primeira vez o homem exterior em um novo plano de existência.

Na atividade estética, aqui entendida como a escritura, o autor cria a

personagem, dá-lhe vida colocando-se em seu lugar, o lugar do outro. O autor se

solidariza com a personagem a ponto de fundir-se com ela. O outro não é apenas

um objeto, mas um outro eu. Nesse encontro estético, o duplo aparece, a integração

da imagem/palavra criada pelo autor lhe dá “significação artística”.

Sendo o produto da criação um duplo, Bakhtin(2003, p.5) nos diz que “a luta

do artista por uma imagem definida da personagem é, em um grau considerável,

uma luta dele consigo mesmo”, uma luta infindável pois, continuamente, texto após

texto, o autor enfrentará a si mesmo.

O narrador de O homem duplicado está sempre marcando sua presença,

seja ironizando:

[...]Máximo Afonso, servimo-nos aqui da versão abreviada do nome porque à nossa vista a autorizou aquele que é seu único senhor e dono, mas principalmente porque a palavra Tertuliano, estando tão próxima, apenas duas linhas atrás, viria desservir gravemente a fluência da narrativa.[...] (HD, 2002, p.12)

Ou recordando possíveis regras do ato de escrever e suas particularidades:

Há alturas da narração, e esta, como já se vai ver, foi justamente uma delas, em que qualquer manifestação paralela de idéias e de sentimentos por parte do narrador à margem do que estivessem a sentir ou a pensar nesse momento as personagens deveria ser expressamente proibida pelas leis do bem escrever. (HD, 2002, p.34)

As digressões são artifícios muito comuns nas narrativas saramaguianas, e

esse romance não está isento delas, de certo modo, sua presença é mais uma

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forma do narrador fortalecer sua imagem, uma luta consigo mesmo e tentar fazê-la

coincidir com a do autor:

Para o relator, ou o narrador, na mais do que provável hipótese de se preferir uma figura beneficiada com o sinete da aprovação acadêmica, o mais fácil, chegado a este ponto, seria escrever que o percurso do professor de História através da cidade, e até entrar em casa, não teve história.[...]aquelas três palavras, Não Teve História, empregam-se quando há urgência em passar ao episódio seguinte ou quando, por exemplo, não se sabe muito bem o que fazer com os pensamentos que a personagem está a ter por sua própria conta, sobretudo se não têm qualquer relação com as circunstâncias vivenciais em cujo quadro supostamente se determina e actua. (HD, 2002, p.52)

É o narrador que decide o que vai entrar no texto e os rumos que a narrativa

tomará:

[...]mas os pensamentos dele eram a tal extremo alheios ao que[...] tinha andado a viver, que se resolvêssemos tomá-los em consideração e os trasladássemos a este relato,a história que nos havíamos proposto contar teria de ser inevitavelmente substituída por outra. [...] uma vez que conhecemos tudo sobre os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso, sabemos que valeria a pena, mas isso representaria aceitar como baldados e nulos os duros esforços até agora cometidos [...] e voltar ao princípio, à irônica e insolente primeira folha[...] (HD, 2002, p.53)

Sempre irônico e onisciente, como se tivesse consciência de que o texto pode

escapar-lhe entre os dedos, mas agindo como o fingidor pessoano, fingindo tão

completamente e lutando para afirmar mais e mais seu domínio. Como nos diz

Schwartz (2004, p.45), as estratégias desse narrador peculiar “buscam não enganar

ou iludir o leitor[...], mas sim, convencê-lo de suas idéias a respeito daquilo que

narra”.

Um outro tipo de narrador é aquele que encontramos em Poe: o narrador em

primeira pessoa, aquele que diz eu. Nesse caso, lembrando o conto William Wilson, podemos perceber que um jogo duplo se instaura, quando o narrador é a

personagem principal do texto. Senão vejamos: quando o narrador conta sua própria

história é criado um vínculo maior com o leitor, que passa a compartilhar do que é

contado com a máxima intensidade. Num conto em que o tema é o duplo, por si só

um elemento sobrenatural, esse vínculo leva o leitor à dúvida sobre a veracidade do

que é contado o que, segundo Todorov(2003), é o dilema fundamental da narrativa

fantástica.

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Sem pretender discutir aqui se William Wilson pertence ou não ao fantástico,

concordamos com Todorov nesse aspecto: a primeira pessoa como narrador leva-

nos a questionar a veracidade da narrativa, afinal, “a personagem pode mentir, o

narrador não deveria”(TODOROV, 2003, p.93), mas quando essas categorias se

fundem, o terreno se torna movediço e a duplicidade transparece na leitura da

narrativa.

Nesse caso, o narrador não convence o leitor de nada, antes deixa-o tão

confuso quanto ele mesmo; seu discurso é ambíguo, transtornado, beirando à

insanidade. Fica nas mãos do leitor assumir que o texto e a atmosfera criada podem

ser ferramentas de identificação com o mais profundo que há em si mesmo. Para

Poe, assim como para Saramago, o texto funciona como um instrumento de

domínio: “durante a hora da leitura, a alma do leitor permanece submissa à vontade

daquele(o autor)...” 30, embora cada um utilize diferentes artifícios para criar um

universo ficcional que possibilita ao leitor adentrar em novos mundos.

Se pensarmos nas vozes que encontramos no texto literário, podemos

perceber que o leitor é também uma figura importante na construção da narrativa. É

ele que reunirá todos esses “outros” que falam dentro do texto, inclusive nas

referências às outras obras literárias, como diz Picon:

cada obra é como uma presença escondida na sombra que a luz de outras obras procura e liberta: uma voz que não podemos ouvir senão quando responde em forma de eco a outras vozes.(1970, p.81)

A perspectiva da leitura é mais um aspecto a ser considerado dentre os

elementos que citamos, quais sejam, autor, narrador e personagem. De certo modo,

o leitor é também um duplo que se identifica com o texto no ato da leitura, a obra

considerada como o espelho que refrata diferentes imagens: o autor e suas

intenções que, como num prisma se dispersam no narrador e nas personagens, o

leitor e suas expectativas e a tradição literária, inseparável de qualquer texto, todos

integrados na grande aventura que é a literatura de ficção.

30 Citado por Julio Cortazar em Poe:o poeta, o narrador e o crítico, in: Valise de Cronópio, 1993, p. 121.

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CONCLUSÃO

O homem em busca de uma compreensão maior de si mesmo é que torna

possível a Arte. Por meio dela o inconsciente transborda, a loucura viceja, a

genialidade constrói. Não se pode imaginar o homem sem que a Arte esteja

presente; é ela, além da religião e da ciência, que dá ao ser humano seu caráter

distinto dos outros animais.

Entre todos os aspectos que diferenciam o homem dos outros seres,

podemos dizer que sem a linguagem nada disso seria possível. As palavras e seu

poder mágico, criador da realidade, fizeram do homem um ser à parte: o único entre

os animais capaz de vivenciar a natureza e tudo que a constitui a partir da

nomeação. Entre o homem e sua realidade está a consciência de si e do mundo, o

imaginário que possibilita a existência das diferentes formas de expressão humana.

O bem mais precioso do ser humano é também aquele que lhe retirou a

inocência: ser consciente de si transformou o homem num ente em constante busca.

O paraíso não está mais acessível, o caminho é sempre procurar, seja pela

Literatura ou outras formas de Arte, seja pela religião ou a ciência, um encontro

improvável.

Se o mito é a resposta do primitivo, para o moderno ele será a pergunta, seu

caráter sagrado deixa de existir e o homem se aproveitará de seus símbolos para

empreender uma busca do conhecimento e, ao mesmo tempo, questionar sua

realidade.

O mito do duplo é um exemplo do questionamento perpétuo do ser humano, a

resposta que não está a seu alcance. A partir do momento em que a razão e

consciência de si passam a existir, o homem será incapaz de ver-se uno. A unidade

é uma ilusão, a humanidade é formada de seres duplos, ora em relação ao seu

íntimo – consciente/inconsciente –, ora em relação ao exterior – no contato com a

sociedade. Esses vários aspectos se desdobram a cada época, sendo que a

Literatura se apropria do duplo e o reveste de múltiplas formas, além do que

podemos encontrá-lo desde em comédias até em novelas fantásticas ou contos de

horror. Maleável como todos os mitos, o duplo literário permite ao homem um

descanso na inquietação permanente de saber-se múltiplo, por meio dele é possível

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indagar a sociedade de determinada fase histórica ou olhar para o inconsciente

humano e nele ver o horror ou a plenitude.

Sabemos que uma pesquisa que abordasse os diferentes aspectos do mito do

duplo e tentasse abarcar as diversas versões literárias já produzidas seria inviável.

O foco é necessário e benéfico. Em nosso caso específico, procuramos abordar o

mito do duplo como personagem no século XX, por meio de O homem duplicado,

sem perder de vista a primeira grande transformação do duplo no século XIX,

exemplificada por William Wilson. Um pequeno histórico das origens do mito fez-se

necessário e a importância do surgimento da consciência de si no homem, tornaram

possível aprofundar a análise do mito do duplo e seu relevo na literatura.

Entender as transformações sociais e culturais por que passou o homem

desde a Revolução Industrial até o século XX, as conseqüências delas na formação

identitária e o destaque para essas mudanças no âmbito literário foi parte de nosso

objetivo. O duplo que Saramago nos apresenta é um emblema desse homem

contemporâneo, descentrado, fragmentado, sem esperanças num mundo que não

valoriza sua identidade. Sua luta se torna um jogo de espelhos, no qual a imagem se

reflete infinitamente. Dessa maneira, o romance assume uma forma inconclusa, pois

não se consegue vislumbrar um arremate para seu principal argumento: o homem.

Embora não tenhamos nos dedicado a uma análise estilística do romance,

acreditamos que o estudo realizado tenha sido suficiente para a compreensão do

duplo enquanto personagem, sua relação com o nome e sua importância mítica. O

desdobramento do mito do duplo na linguagem, o aspecto crítico e metalingüístico

da obra saramaguiana e as relações entre autor, narrador e personagem, facultaram

a ampliação do objetivo para outros aspectos do duplo, sem, contudo, realizarmos

uma pesquisa exaustiva noutra direção, o que tornaria impraticável a conclusão

dessa dissertação. O tema é por demais extenso e o leque de opções servirá de

base para posteriores pesquisas. Procuramos contribuir para que o interesse sobre

o duplo possibilite novas investigações, atentando para outros autores, sejam eles

contemporâneos ou não.

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ANEXOS ANEXO A – Borges e Eu31

É ao outro, ao Borges, que as coisas acontecem. Eu ando por Buenos Aires e

me detenho, talvez já mecanicamente, a examinar o arco de um saguão e porta

antiga; de Borges recebo notícias pelo correio e vejo seu nome numa lista de

professores ou num dicionário bibliográfico. Eu gosto dos relógios de areia, dos

mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o

outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma

em atributos de um ator. Seria exagerado dizer que nossa relação e hostil; eu vivo,

eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me

justifica. Não me custa nada confessar que ele criou certas páginas válidas, mas

essas páginas não podem me salvar, talvez porque as coisas boas não pertencem a

ninguém, nem mesmo ao outro, mas à linguagem ou à tradição. De resto, estou

destinado a me perder, definitivamente, e só algum instante de mim poderá

sobreviver no outro. Pouco a pouco, vou lhe cedendo tudo, ainda que eu conheça

seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza acreditava que todas as

coisas querem perseverar em seu ser; a pedra quer eternamente ser pedra e o tigre

um tigre. Eu vou permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém); mas

me reconheço menos nos seus livros do que em muitos outros ou do que no

trabalhoso rasqueado de um violão. Anos atrás, tentei livrar-me dele e passei das

mitologias do subúrbio para os jogos com o tempo e com o infinito. Mas agora esses

jogos são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, minha vida é uma

fuga e tudo perco e tudo pertence ao esquecimento, ou ao outro...

Não sei qual dos dois escreve esta página.

31 Borges, Jorge Luis. Borges e Eu. In: Obras Completas. Tomo II. São Paulo: Globo, 1999.

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ANEXO B – O autor como narrador32

Falto de mapas, abandonado de guias, com o temor reverencial de quem pisa

terra estranha, uma terra onde os sistemas de comunicação estão habitualmente

redigidos em línguas que, não raro, só vagas semelhanças guardam ainda com a

linguagem comum, atrever-me-ei a expor-vos umas poucas idéias elementares, as

únicas que poderia autorizar-se um simples prático da literatura como eu.

Por experiência própria, tenho observado que, no seu trato com autores a

quem a fortuna, o destino ou a má-sorte não permitiram a graça de um título

acadêmico, mas que, não obstante, foram capazes de produzir obra digna de algum

estudo, a atitude das universidades costuma ser de benévola e sorridente tolerância,

muito parecida com a que costumam usar as pessoas sensíveis na sua relação com

as crianças e os velhos, uns porque ainda não sabem, outros porque já esqueceram.

E graças a tão generoso procedimento que os professores de Literatura, em geral, e

os de Teoria da Literatura, em particular, têm acolhido com simpática

condescendência — mas sem que se deixem abalar nas suas convicções científicas

— a minha ousada declaração de que a figura do narrador não existe, e de que só o

autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance,

conto ou teatro. E quando, indo procurar auxílio a uma duvidosa ou, pelo menos,

problemática correspondência das artes, argumento que entre um quadro e a

pessoa que o contempla não há outra mediação que não seja a do respectivo autor,

e portanto não é possível identificar ou sequer imaginar, por exemplo, a figura de um

narrador na Gioconda ou na Parábola dos cegos, o que se me responde é que,

sendo as artes diferentes, diferentes teriam igualmente de ser as regras que as

traduzem e as leis que as governam. Esta peremptória resposta parece querer

ignorar o facto, fundamental no meu entender, de que não há, objectivamente,

nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre

a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã [tela]

do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares,

prolongamentos de um cérebro, ambas instrumentos mecânicos e sensitivos

capazes de composições e ordenações sem mais barreiras ou intermediários que os

da fisiologia e da psicologia. 32 Saramago, José. O autor como narrador. Revista CULT. São Paulo, nº 17, p.25-27, dez. 1998.

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Nesta contestação, claro está, não vou ao ponto de negar que a figura do que

denominamos narrador possa ser demonstrada no texto, ao menos, com o devido

respeito, segundo uma lógica bastante similar à das provas definitivas da existência

de Deus formuladas por Santo Anselmo... Aceito, até, a probabilidade de variantes

ou desdobramentos de um narrador central, com o encargo de expressarem uma

pluralidade de pontos de vista e de juízos considerada útil à dialéctica dos conflitos.

A pergunta que me faço é se a obsessiva atenção dada pelos analistas de texto a

tão escorregadias entidades, propiciadora, sem dúvida, de suculentas e gratificantes

especulações teóricas, não estará a contribuir para a redução do autor e do seu

pensamento a um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da

obra.

Quando falo de pensamento, estou a incluir nele os sentimentos e as

sensações, as idéias e os sonhos, as vidências do mundo exterior e do mundo

interior sem as quais o pensamento se tornaria em puro pensar inoperante.

Abandonando qualquer precaução retórica, o que aqui estou assumindo, afinal, são

as minhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a identidade real da voz

narradora que veicula, nos livros que tenho escrito e em todos quantos li até agora,

aquilo que derradeiramente creio ser, caso por caso e quaisquer que sejam as

técnicas empregadas, o pensamento do autor, seu próprio e exclusivo (até onde é

possível sê-lo) ou deliberadamente tomado de empréstimo, de acordo com os

interesses da narração. E também me pergunto se a resignação ou indiferença com

que os autores de hoje parecem aceitar a "usurpação", pelo narrador, da matéria, da

circunstância e do espaço narrativos que antes lhe eram pessoal e inapelavelmente

imputados, não será, no fim de contas, a expressão mais ou menos consciente de

um certo grau de abdicação, e não apenas literária, das suas responsabilidades

próprias.

Que fazemos, em geral, nós, os que escrevemos? Contamos histórias.

Contam histórias os romancistas, contam histórias os dramaturgos, contam histórias

os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca,

poetas, dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar

quotidianos são já uma história. As palavras proferidas, ou apenas pensadas, desde

o levantar da cama, pela manhã, até ao regresso a ela, chegada a noite, sem

esquecer as do sonho e as que ao sonho tentaram descrever, constituem uma

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história com uma coerência própria, contínua ou fragmentada, e poderão, como tal,

em qualquer momento, ser organizadas e articuladas em história escrita.

O escritor, esse, tudo quanto escreve, desde a primeira palavra, desde a

primeira linha, é escrito em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes

escondida - porém, de certo modo, visível e óbvia, no sentido de que ele está

sempre obrigado a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos que sejam

comuns a ambos, para chegar finalmente a algo que, querendo parecer novo,

diferente, original, já era afinal conhecido, porque, sucessivamente, ia sendo

reconhecível. O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é portanto um

mistificador: conta histórias e sabe que elas não são mais do que umas quantas

palavras suspensas no que eu chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras

frágeis, assustadas pela atracção de um não-sentido que constantemente as

empurra para o caos de códigos cuja chave a cada momento ameaça perder-se.

Não esqueçamos, porém, que assim como as verdades puras não existem, também

as puras falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda a verdade leva

consigo, inevitavelmente, uma parcela de falsidade, quanto mais não seja por

insuficiência expressiva das palavras, também certo é que nenhuma falsidade pode

ser tão radical que não veicule, mesmo contra a intenção do mentiroso, uma parcela

de verdade. A mentira conterá, pois, duas verdades: a própria sua, elementar, isto é,

a verdade da sua própria contradição (a verdade está oculta nas palavras que a

negam), e a outra verdade de que, sem o querer, se tornou veículo, comporte ou

não esta nova verdade, por sua vez, uma parcela de mentira.

De fingimentos de verdade e de verdade de fingimentos se fazem, pois, as

histórias. Contudo, em minha opinião, e a despeito do que, no texto, se nos

apresenta como uma evidência material, a história que ao leitor mais deveria

interessar não é a que, liminarmente, lhe é proposta pela narrativa. Um livro não

está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias,

surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração - um livro

é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu

autor. Pergunto-me até, se o que determina o leitor a ler não será uma secreta

esperança de descobrir no interior do livro — mais do que a história que lhe será

narrada - a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor. Tal como o entendo, o

romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do

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romancista. Com isto não pretendo sugerir ao leitor que se entregue durante a leitura

a um trabalho de detective ou antropólogo, procurando pistas ou removendo

camadas geológicas, ao cabo das quais, como um culpado ou uma vítima, ou como

um fóssil, se encontraria escondido o autor...

Muito pelo contrário: o autor está no livro todo, o autor é todo o livro, mesmo

quando o livro não consiga ser todo o autor. Não foi simplesmente para chocar a

sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert declarou que Madame Bovary era ele

próprio. Parece-me, até, que, ao dizê-lo, não fez mais do que arrombar uma porta

desde sempre aberta. Sem faltar ao respeito devido ao autor de Bouvard et

Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que uma tal afirmação não peca por excesso,

mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar que ele era também o marido e os

amantes de Emma, que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de

todas as condições e idades, nela viviam, casa, rua e cidade reais ou imaginadas,

tanto faz. Porque a imagem e o espírito, o sangue e a carne de tudo isto, tiveram de

passar, inteiros, por uma só pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o homem, a

pessoa. Também eu, ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a

Blimunda e o Baltasar de Memorial do convento, e em O evangelho segundo Jesus

Cristo não sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou

também o Deus e Diabo que lá estão...

O que o autor vai narrando nos seus livros é, tão-somente, a sua história

pessoal. Não o relato da sua vida, não a sua biografia, quantas vezes anódina,

quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a secreta, a profunda, a labiríntica,

aquela que com o seu próprio nome dificilmente ousaria ou saberia contar. Talvez

porque o que há de grande em cada ser humano seja demasiado grande para caber

nas palavras com que ele a si mesmo se define e nas sucessivas figuras de si

mesmo que povoam um passado que não é apenas seu, e por isso lhe escapará

sempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que

somos mesquinhos e pequenos é a tal ponto comum que nada de novo poderia

ensinar a esse outro ser pequeno e grande que é o leitor.

Finalmente, talvez seja por alguma destas razões que certos autores, entre os

quais julgo dever incluir-me, privilegiem, nas histórias que contam, não a história que

vivem ou viveram, mas a história da sua própria memória, com as suas exactidões,

os seus desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas

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verdades que não podem impedir-se de ser mentiras. Bem vistas as coisas, sou só a

memória que tenho, e essa é a história que conto. Omniscientemente.

Quanto ao narrador, que poderá ele ser senão uma personagem mais de uma

história que não é a sua?

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