tarde, gabriel. as leis sociais
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Gabriel Tarde - As leis sociais (português)TRANSCRIPT
COLEÇÃO RIZOMAS - VOL. 1
Um campo social dirigido pela técnica, pelo consumo e pelas exigências do mercado não é apenas danoso ao meio ambiente: ele é também nocivo à subjetividade de seus membros. Parece mesmo haver uma relação direta: quanto mais cresce o prodigioso corpo das sociedades modernas - mais máquinas, mais dispositivos, mais imagens, mais circulação de mercadorias - mais as subjetividades são diminuídas e amesquinhadas. Como disse Bergson, seria preciso inventar uma alma à altura desse corpo: novas maneiras de sentir e de pensar, novas possibilidades de vida. Cada cérebro é nele mesmo um rizoma que se ramifica em tantos outros rizomas; e se plantar árvores é muito bom, melhor ainda é cultivar rizomas e fazer com que proliferem uns nos outros. A c o l e ç ã o r i z o m a s , voltada para a tradução de grandes pensadores contemporâneos, foi concebida como um estímulo a esse esforço, que é de todos e de cada um.
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"uff"UniversidadeFederalFlum inense editora da UFF
Gabriel Tarde
As Leis Sociaisum esboço de sociologia
Tradução e notas de Frantisco Traverso Fuchs
Editora da UFF
© 2012 by Francisco T. Fuchs (Tradução brasileira)
Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal Fluminense
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Desenho da capa: M.C. Escher’s “Symmetry Drawing E21” © 2010 The M.C.
Escher Company-Holland. A li rights reserved.
________ Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)T181 Tarde, Gabriel 1843-1904
As leis sociais: um esboço de Sociologia/Gabriel Tarde; tradução e notas:
Francisco Traverso Fuchs - Niterói: Editora da UFF, 2011.
114 p. ; 21cm.
ISBN: 978-85-228-0669-0
Tradução de Les lois sociales. Esquisse d ’une sociologie.
1. Sociologia I. Título
_______ CDD 301
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E d ito ra filia d a a
Associação Brasileira das Editoras Un iversitárias
Sumário
Nota do tradutor, 7
Prefácio, 17
Introdução, 19
Primeiro CapítuloRepetição dos fenômenos, 23
Segundo CapítuloOposição dos fenômenos, 49
Terceiro CapítuloAdaptação dos fenômenos, 83
Conclusão, 109
Nota do tradutor
Jean-Gabriel de Tarde nasceu em Sarlat (hoje Sarlat-la-
-Canéda) no ano de 1843. Passou metade da vida servindo como
juiz na região de Dordogne, mas em 1894 foi nomeado diretor do
serviço de estatística judiciária do Ministério da Justiça, saindo
da província para viver em Paris. Dois anos depois, começou a le
cionar na École Libre des Sciences Politiques, e posteriormente no
Collège Libre des Sciences Sociales, onde proferiu as conferências
reunidas neste livro. No início de 1900 obteve a cadeira de Filosofia
Moderna no Collège de France,1 que ocupou até 1904, ano de sua
morte. Celebrado em sua época como o grande nome da sociologia
francesa, Tarde polemizou com Lombroso e Durkheim e escreveu
obras que ajudaram a fundar a sociologia e a criminologia moder
nas. Já nos primeiros anos do século XX, no entanto, a situação se
inverteu a favor de Durkheim, que
tornou-se o principal representante da sociologia como
disciplina científica, ao passo que Tarde havia sido evacua
do para a prestigiosa (porém irrelevante) posição de mero
“precursor” - e um precursor não muito bom, já que havia
sido marcado para sempre pelos pecados do “psicologismo”
e do “espiritualismo”.2
Muitos anos se passariam até que o panorama mudasse
novamente, desta vez em favor de Tarde. Pode-se dizer que essa
virada começou a acontecer em 1968, quando Gilles Deleuze o
apresentou como o inventor de uma nova dialética da diferença e
1 Bergson, que também havia concorrido a essa vaga, obteve três meses depois a cadeira de Filosofia Grega e Latina, assumindo após a morte deTarde a cadeira de Filosofia Moderna. Bergson, Henri. Mélanges, Paris, PUF, 1972, p. 415,417 e 637.
2 Latour, Bruno. Gabriel Tarde and the End ofthe Social, www.bruno-latour.fr/sites/default/ files/82-TARDE-JOYCE-SOCIAL-GB.pdf (acessado em 11 de agosto de 2010).
8 As Leis Sociais
da repetição.3 Com efeito, graças a Deleuze, Latour e outros, temos
hoje uma ideia muito mais adequada a respeito do pensamento de
Tarde e de sua importância.
As Leis Sociais, publicado originalmente em 1898 a partir de
uma série de conferências realizadas no ano anterior, oferece uma
breve síntese do pensamento tardeano e é uma excelente introdu
ção à obra de Gabriel Tarde. 0 autor não apenas apresenta neste
livro seus três conceitos fundamentais, abordados separadamente
em livros anteriores, mas também mostra as relações existentes
entre eles, estabelecendo toda uma hierarquia complexa entre a
repetição, a oposição e a adaptação ou invenção. Trabalhando simul
taneamente no plano da epistemologia e da ciência, Tarde procura
mostrar que os fenómenos físicos, biológicos e sociais se produzem
a partir de inumeráveis repetições, oposições e adaptações, e que
o conhecimento é primeiramente construído a partir da percepção
de repetições, oposições e adaptações “grandiosas” - vagas, impre
cisas ou mesmo francamente errôneas - e vai ganhando contornos
mais precisos à medida que repetições, oposições e adaptações
menos grosseiras vão sendo percebidas:
É justamente porque tudo no mundo dos fatos caminha do
pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho inver
tido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno
e, pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares
verdadeiramente explicativos em último lugar.4
A tese central defendida por Tarde neste seu esboço de
sociologia é a de que todas as ciências atingiram a maturidade ao
descobrir e compreender, em seus respectivos objetos, as verda
3 Deleuze, Gilles. DifférenceetRépétition, Paris, PUF, 1981 (1968), p. 38,104."0 conjunto da filosofia de Tarde se apresenta deste modo: uma dialética da diferença e da repetição, que funda sobre toda uma cosmologia a possibilidade de uma microssociologia.”
4 Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, Paris, Félix Alcan, 1898, p. 88.
Gabriel Tarde 9
deiras repetições, oposições e adaptações, e que a sociologia só
ganhará status de ciência a partir do momento em que fizer o mes
mo. Ora, para alcançar esse objetivo, a sociologia precisa descer
até os “fatos elementares”, infinitesimais, que são também os fatos
“verdadeiramente explicativos”. Assim como a biologia descobriu
na célula e na atividade celular o fato biológico elementar, é preciso
que a sociologia descubra o fato social elementar. Isso equivale a
dizer que, para ultrapassar as analogias vãs e as entidades imagi
nárias que ainda encontravam eco na sociologia de sua época (por
exemplo, as analogias entre as sociedades e os organismos vivos,
a crença no suposto “gênio” de um povo ou de uma raça, a socie
dade como uma espécie de “pessoa divina” exterior e superior aos
indivíduos, moldando-os sem jamais ser por eles moldada), Tarde
precisava descer até o plano molecular da sociedade, lá onde ela é
efetivamente produzida por movimentos reais: ou seja, por atos de
indivíduos sobre indivíduos. No entanto, assim como o átomo não
é o limite absoluto da matéria, o indivíduo não constitui o termo
último de um campo social. Aquém do indivíduo existe algo que é
pré-individual, e embora o indivíduo seja o único agente social, ele
mesmo só pode ser compreendido a partir dos elementos infinite
simais que o constituem. Esses elementos são os desejos e crenças
que atravessam os indivíduos e que se propagam, se opõem e se
adaptam em seu percurso. Não é que Tarde transforme os homens
em impessoais “portadores” de desejos e crenças; é antes como
se o indivíduo produzisse sua diferença justamente no jogo aberto
entre os desejos e crenças que o atravessam e que ele incorpora,
opõe ou modifica, dando origem (nesse último caso) a um novo
desejo ou crença. Se a Ciência tem por objeto aquilo que se repete,
apenas a Arte poderá dar conta dessas singularidades que são os
indivíduos; mas se os indivíduos são sui generis, é porque cada
um deles é um lance de dados único, lançado e relançado a cada
momento a partir das singularidades pré-individuais (desejos e
crenças) que o atravessam e constituem. E se porventura uma
10 As Leis Sociais
sociedade qualquer também apresenta esse aspecto sui generis, é
simplesmente porque ela é a integral de todos esses lances de da
dos, a integração dinâmica de múltiplos processos de diferenciação.
Atento à revolução introduzida pelo cálculo diferencial e integral,
Tarde esboçará (curiosamente, numa nota de pé de página) todo
um método sociológico baseado em registros monográficos das
variações pontuais de desejos e crenças.5 Por fim, à guisa de con
clusão, Tarde retorna a um tema esboçado na primeira conferência
e apresenta (ainda que à margem, como ele mesmo diz) algumas
especulações cosmológicas sobre a natureza da própria matéria
(o infinitesimal no sentido absoluto), que, segundo ele, não é uma
“poeira infinita” de elementos homogêneos, mas uma “multidão de
virtualidades elementares”.
Eu diria que Tarde é um autor infinitamente mais fácil de ler
do que de traduzir. Suas longas frases repletas de interpolações não
chegam a dificultar a leitura, mas sem dúvida põem qualquer tradu
tor à prova. Tentei interferir o mínimo possível no estilo tardeano,
ainda que algumas vezes tenha me sentido forçado, para efeito de
clareza, a alterar a pontuação e o ritmo das frases. Também tentei
não multiplicar desnecessariamente o número de notas, servindo-
-me desse recurso ora para fornecer uma rápida referência, ora para
apontar uma curiosidade de estilo do texto original. Com relação
ao aspecto técnico ou conceituai da tradução, houve apenas uma
dificuldade realmente digna de nota.6
5 "Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso nâo é verdadeiro. Pode-se muito bem acumular constatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados." Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, op. cit., p. 154.
6 Tarde usa como noções correlatas as locuções rayon im ita tif e rayonnement im ita tif (literalmente, "raio im itativo" e "irradiação imitativa"). Como notou Bruno Latour (op. cit.), a locução raio im itativo é um tanto extravagante, e o próprio Tarde não a usou em
Gabriel Tarde 11
Para concluir esta breve apresentação, gostaria de chamar a
atenção para um ponto que me parece essencial. Nenhum homem,
ainda que seja um visionário, consegue escapar inteiramente à sua
época, e o leitor atento há de verificar, ao ler as entrelinhas (ou as
linhas mesmas) desta ou daquela passagem, que Tarde é um autor
do século XIX. Nada há de surpreendente nisso; em compensação,
o que é verdadeiramente espantoso é que esse pensador intempes
tivo, que não se alinhou a nenhuma escola ou corrente ideológica,
pudesse estar tão à frente de seu tempo. Segundo Bergson, o
pensamento de Tarde
nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver nas iniciati
vas individuais e em sua irradiação a verdadeira causa do
que se faz numa sociedade, e mesmo do que acontece no
mundo. Seduzidos pelos admiráveis sucessos das ciências
físicas, nós nos inclinamos excessivamente a construir as
ciências sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como prin-
Lois de L'Imitation, embora tenha usado a locução courant im ita tif (corrente imitativa). Assim, meu primeiro impulso foi o de usar a palavra "corrente". Entretanto, ao traduzir- -se rayon por corrente quebra-se o vínculo etimológico (e acima de tudo o vínculo iógico) entre o rayon (do qual todos os imitadores participam) e o rayonnement, que remete à fonte de uma novidade, ao seu inventor ou agenciador. Ficaria enfraquecida a importante analogia que o autor estabelece entre as"correntes im itativas"e as ondas físicas: o leitor tenderia a pensar a "corrente" mais como uma "continuidade de ligação entre elos" do que como um fluxo que possui uma origem definida e qúe pode interferir em outro fluxo, ou seja, como algo semelhante a uma onda eletromagnética. Por fim, essa escolha tornaria mais difícil, para o leitor de língua portuguesa, a distinção entre as ocorrências de rayon e de courant no texto original. Minha segunda opção foi o uso do termo onda para traduzir rayon. Nesse caso, somente o vínculo etimológico seria perdido; e nas passagens em que Tarde realmente utiliza o termo onde (onda), ele sempre se refere explicitamente a ondas físicas, o que tornaria mais fácil distinguir os dois usos. No entanto, embora tenha achado essa solução (onda imitativa), que foi aliás utilizada por Bergson, a mais elegante de todas, acabei optando pela tradução literal da palavra rayon e de todas as locuções de que ela participa; raio, raio imitativo, raios de exemplos. Se os próprios franceses experimentam um estranhamento diante da escolha original de Tarde, não há razão para suprimir essa estranheza na tradução. Obviamente, essa escolha resolve, em definitivo, todas as dificuldades mencionadas acima. Por fim, a palavra "irradiação" me pareceu, em todos os casos, bem melhor do que "influência", que é um dos significados de rayonnement e que seria uma tradução aceitável em determinados contextos.
12 As Leis Sociais
cípio que a evolução das sociedades deve obedecer a leis
inelutáveis, anos representar os acontecimentos históricos
como resultados necessários de forças cegas, impessoais,
que se comporiam entre si mecanicamente. Contra essa
tendência, que se tornou natural ao nosso espírito, toda
a filosofia de Tarde protesta. As sociedades humanas são,
sem dúvida, atravessadas por correntes; mas na origem de
cada corrente há uma impulsão, e es sa impulsão vem de um
homem. Assim como a história de cada um de nós se explica
pelas iniciativas tomadas e pelos hábitos contraídos, a vida
das sociedades é feita de invenções que surgiram aqui e ali
e das modificações duráveis a que essas invenções condu
ziram ao serem adotadas.7
O que essas palavras - e, portanto, o pensamento de Tarde
- têm a ver com nossa existência concreta, aqui e agora, para além
(ou aquém) de todas as querelas acadêmicas? Vivemos uma época
difícil, marcada pelo fim das utopias, pela consolidação de uma
ordem mundial nada auspiciosa (que valoriza somente nossa força
de trabalho e nossa capacidade de consumo) e por uma crescente
dissolução do campo social. E nós vivemos o fim das utopias mais
ou menos do mesmo modo que Nietzsche descreveu a derrocada
dos valores superiores: como se a ausência desses projetos de
futuro decretasse a desvalorização generalizada da vida, a perda
do sentido, a total impossibilidade de ação, a vigência do cinismo.
Nós nos sentimos - e esse me parece ser o ponto crucial - peque
nos demais diante das enormes mudanças que teriam de ocorrer
e das potências que supostamente teríamos de enfrentar. Em uma
palavra, nós nos sentimos infinitesimais diante de um onipresente
“sistema” ao qual nada escapa e que não saberíamos ou poderíamos
modificar. Afinal, já não temos um projeto que pudéssemos opor à
7 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélangés, op.cit., p. 799-800.
Gabriel Tarde 13
progressiva transformação do homem num homo economicus, sim
ples apêndice descartável de um sistema globalizado de produção
de bens e serviços.8
Diante desse quadro sombrio, a microssociologia de Tarde
é uma rajada de ar fresco. Ela vem nos mostrar que tudo, absolu
tamente tudo, vem precisamente do infinitesimal, e que a solução
dos nossos problemas talvez não venha de um único e grandioso
projeto de sociedade, mas de pequenas ações e pensamentos ino
vadores capazes de infiltrar-se como a água e espalhar-se como
o fogo. Assim como as moléculas são o infinitesimal da vida e as
partículas são o infinitesimal da matéria, nós somos - com nossos
desejos e crenças - o infinitesimal da sociedade. E em todos os
níveis, a potência inventiva está no infinitesimal.
Evidentemente, nossos hábitos de pensamento tendem a
rejeitar essa maneira de perceber a realidade social. Confron
tados com ela, nossa primeira reação será a de dizer que seria
muita pretensão pensar que podemos fazer alguma diferença na
imensa ordem das coisas. Mas não seria exatamente o contrário?
Não estaríamos sendo pretensiosos ao afirmar a existência de
limites a respeito dos quais nada sabemos? Pois a verdade é que
não sabemos, e jamais poderíamos saber de antemão, qual será o
alcance da menor das nossas ações e do mais casual dos nossos
pensamentos. Hoje, quem nos sugere essa maneira de ver é a pró
pria ciência contemporânea (tão diferente da ciência na época de
Tarde), uma vez que o chamado efeito borboleta aplica-se também
às realidades sociais. Mas será que podemos atribuir essa maneira
de ver a Gabriel Tarde sem com isso projetar retrospectivamente
uma teoria científica relativamente recente no pensamento de um
autor do século XIX? Sim, nós podemos e mesmo devemos fazê-lo,
como sugere este texto admirável que Bergson escreveu a respeito
de seu colega no Collège de France;
Obviamente, não estou levando em consideração projetos de sociedade de caráter explicitamente totalitário ou teocrático, ou seja, antidemocráticos por excelência.
14 As Leis Sociais
Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode acar
retar consequências incalculáveis, como um simples gesto
individual, caindo no meio social como uma pedra na água
de uma bacia, o abala por inteiro por meio de ondas imita-
tivas que vão sempre se alargando, ela [a obra de Tarde]
nos dá um sentimento agudo de nossa responsabilidade.
Revelando-nos tudo o que devemos a outrem, inventores em
certos momentos, mas imitadores durante a vida inteira, ela
esclarece e fortifica em nós o sentimento de solidariedade.
Remetendo ao costume muitas coisas que normalmente con
sideramos como pertencentes à natureza; fazendo remontar
apensamentos individuais, a vontades individuais, aorigem
de transformações profundas da sociedade e da humanida
de, ela nos desabitua a crer em fatalidades históricas; ela
nos convida a agir, a ganhar confiança em nós mesmos, a
jamais desesperar com o presente, a encarar tranquilamente
o porvir. Para além da inteligência à qual se dirige, é a von
tade que ela atinge, estimula e torna mais firme.9
Talvez estejamos demasiadamente acostumados a pensar
em termos de grandes projetos e de grandiosas finalidades para
que possamos compreender de imediato o alcance dessas pala
vras. Longe de constituírem uma exaltação das prerrogativas da
consciência, o que seria um total contrassenso na medida em que
remeteria ainda ao plano dos projetos e finalidades, elas se referem
a forças que atravessam os indivíduos e, consequentemente, um
campo social dado. Pois esse gesto ou iniciativa “individual” de que
fala Bergson envolve precisamente algo que é de outra natureza:
um puro fluxo de desejo ou crença. Os partidários de Durkheim
9 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 800-801. Grifo meu.
Gabriel Tarde 15
responderam que isso era psicologia ou inter-psicologia, e
não sociologia. Mas isso não é verdade a não ser na aparên
cia, ou numa primeira aproximação: uma micro-imitação
parece ir, com efeito, de um indivíduo a outro. Ao mesmo
tempo, e mais profundamente, ela remete a um fluxo ou a
uma onda, e não ao indivíduo... A imitação, a oposição e a
invenção infinitesimais são como quanta de fluxos, que mar
cam uma propagação, uma binarização ou uma conjugação
de crenças e desejos.10
O que pode acontecer quando estudantes fazem uma reivin
dicação? Ou então: qual é a potência de uma ideia nova, ou talvez
nem tão nova assim, porém formulada de uma nova maneira? Qual
é a potência da mais inocente das crenças, do mais inocente dos
desejos? Não se sabe, não se pode sabê-lo de antemão. Eu diria que
Tarde é um autor revolucionário: a revolução é que nao era o que
pensávamos. “Tarde preocupou-se muito menos com a natureza
íntima dos elementos, seu estado original e seu estado final, do que
com sua ação recíproca”.11 O segredo de um devir revolucionário,
que por sinal nada tem a ver com as “metas” de uma revolução, não
depende necessariamente de barricadas, mas certamente envolve
essa ação recíproca entre os homens — para além do otimismo e
do pessimismo, das utopias e distopias, para além do desespero
e da própria esperança.
10 Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Mille Plateaux, Paris, De minuit, 1980, p. 267." Bergson, Henri. Préface aux "Pages Choisies"de G. Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 812.
Prefácio
Neste pequeno volume, que contém a substância de várias conferên
cias realizadas no Collège libre des sciences sociales em outubro de
1897, tentei oferecer não somente nem precisamente o resumo ou a
quintessência de minhas três obras principais de sociologia geral -
as Leis da Imitação, a Oposição Social e a Lógica Social - mas ainda,
e acima de tudo, o laço íntimo que as une. Essa conexão, que pode
muito bem ter escapado ao leitor desses livros, é aqui iluminada
por considerações de ordem mais geral. Elas permitem, ao que me
parece, abarcar num mesmo ponto de vista esses três pedaços, pu
blicados separadamente, de um mesmo pensamento, esses membra
disjecta12 de um mesmo corpo de ideias. Talvez me digam que desde
o início eu poderia ter apresentado num todo sistemático o que dividi
em três publicações. Mas as obras em vários volumes afugentam,
e com alguma razão, o leitor contemporâneo; além disso, para que
fatigar-nos com essas grandes construções unitárias, com esses
edifícios completos? Se aqueles que nos acompanham terão tanta
pressa em demolir essas edificações para servir-se de seus materiais
ou apropriar-se de um pavilhão destacado, mais vale poupar-lhes o
trabalho da demolição e entregar-lhes o pensamento em fragmen
tos. Todavia, para uso dos espíritos singulares que se comprazem
em reconstruir aquilo que se lhes oferece em estado fragmentado,
tal como outros em quebrar aquilo que se lhes apresenta acabado,
talvez não seja inútil juntar às partes esparsas da obra um desenho,
um esboço que indique o plano de conjunto que teríamos executado
com gosto se para tanto tivéssemos sentido a força e a audácia. Essa
é toda a razão de ser desta pequena brochura.
G.T.
Abril de 1898.
12 Tradução livre: partes dispersas, separadas. (N. do T.)
Introdução
Ao percorrer o museu da história e a sucessão de seus
quadros multicoloridos e heteróclitos, ao viajar através
dos povos, todos eles diversos e cambiantes, a primeira
impressão do observador superficial é a de que os ienômenos da
vida social escapam a qualquer fórmula geral, a qualquer lei cien
tífica, e que a pretensão de fundar uma sociologia é uma quimera.
Mas os primeiros pastores que observaram o céu estrelado e os
primeiros agricultores que tentaram adivinhar os segredos da
vida das plantas devem ter ficado igualmente impressionados pela
resplandecente desordem do firmamento, pela multiformidade de
seus meteoros, pela exuberante diversidade das formas vegetais
e animais; e a ideia de explicar o céu e a floresta por um pequeno
número de noções logicamente encadeadas sob o nome de astro
nomia e de biologia, essa ideia, se ela pudesse ocorrer-lhes, teria
sido a seus olhos o cúmulo da extravagância. Com efeito, não existe
menos complicação, irregularidade real e aparente capricho no
mundo dos meteoros ou no interior de uma floresta virgem do que
na balbúrdia da história humana.
Como, então, a despeito da sinuosa diversidade dos estados
celestes ou dos estados silvestres, das coisas físicas ou das coisas
viventes, chegou-se a gerar e fazer crescer, pouco a pouco, um
embrião de mecânica ou de biologia? Isso se deve a três condi
ções que importa distinguir claramente para formular uma noção
precisa e completa de como convém entender esse substantivo
e esse adjetivo tão utilizados, ciência e científico. Em primeiro
lugar, começou-se a perceber algumas similitudes no meio dessas
diferenças, algumas repetições entre essas variações: os retornos
periódicos dos mesmos estados do céu, das mesmas estações, o
curso regularmente repetido das idades - juventude, maturidade,
velhice - no seres vivos, e os traços comuns aos indivíduos de uma
20 /As Leis Sociais
mesma espécie. Não existe ciência do individual considerado nele
mesmo; só existe ciência do geral, ou seja, do indivíduo conside
rado como repetido ou suscetível de ser repetido indefinidamente.
A ciência é uma ordenação de fenômenos encarados pelo viés
de suas repetições. Isso não quer dizer que diferenciar não seja um
dos procedimentos essenciais do espírito científico. Diferenciar,
tanto quanto assimilar, é fazer ciência; mas somente na medida
em que a coisa que se discerne é um tipo extraído, na natureza,
de um certo número de exemplares, e mesmo suscetível de ser
reeditado indefinidamente. Pode-se descobrir um tipo específico
e caracterizá-lo claramente, mas se ele for julgado como sendo o
privilégio de um indivíduo único, incapaz de ser transmitido à sua
posteridade, não terá interesse para o cientista senão a título de
curiosidade teratológica.
Repetição significa repetição conservadora, causação sim
ples e elementar sem nenhuma criação, pois - como mostram a
transmissão de movimento de um corpo a outro ou a comunicação
da vida de um ser vivo ao rebento que dele nasceu - o efeito re
produz a causa de maneira elementar. Mas também a destruição
dos fenômenos, e não apenas sua reprodução, é importante para a
ciência. Assim, seja qual for a região da realidade à qual se aplique, a
ciência deve buscar, em segundo lugar, as oposições que ali existem
e que lhe são próprias: ela estará atenta, portanto, ao equilíbrio de
forças e à simetria das formas, às lutas entre os organismos vivos,
aos combates de todos os seres.
Mas isso não é tudo, e nem mesmo é o essencial. É preciso,
antes de mais nada, estar atento às adaptações dos fenômenos, às
suas relações de coprodução verdadeiramente criadora. É para
captar, depurar e explicar essas harmonias que o cientista trabalha;
e descobrindo-as, ele chega a constituir essa adaptação superior: a
harmonia entre seu sistema de noções e fórmulas e a coordenação
interna das realidades.
Gabriel Tarde 21
Assim, a ciência consiste em considerar uma realidade qual
quer sob três aspectos: as repetições, as oposições e as adaptações
que ela encerra, e que tantas variações, tantas dissimetrias, tantas
desarmonias impedem de ver. A relação entre causa e efeito não
constitui, por ela mesma, o elemento próprio do conhecimento
científico. Se assim fosse, a história pragmática, que é sempre um
encadeamento de causas e efeitos, e que sempre nos ensina que
tal batalha ou tal insurreição teve tais consequências, seria o mais
perfeito exemplar da ciência. Sabemos, no entanto, que a história
só se torna uma ciência na medida em que as relações de causa
lidade que ela assinala aparecem como estabelecidas entre uma
causa geral, suscetível de repetição ou repetindo-se de fato, e um
efeito geral, não menos repetido ou suscetível de sê-lo. Por outro
lado, a matemática jamais nos mostra a causalidade em obra; e
quando ela a postula sob o nome de função, é dissimulando-a sob
uma equação. No entanto, a matemática é^uma ciência e mesmo o
protótipo da ciência. Por quê? Porque em parte alguma é realizada
uma eliminação tão completa do lado dessemelhante e individual
das coisas, em lugar algum elas se apresentam sob o aspecto de
uma repetição tão precisa e tão definida, e de uma oposição tão
simétrica. A grande lacuna da matemática é a de não enxergar,
ou enxergar mal, as adaptações dos fenômenos. Daí advém sua
insuficiência, tão vivamente sentida pelos filósofos, mesmo e
especialmente por geômetras como Descartes, Comte, Cournot.
Repetição, oposição, adaptação: essas são, repito, as três di
ferentes chaves que a ciência usa para abrir os arcanos do universo.
Ela busca, antes de qualquer coisa, não exatamente as causas, mas
as leis de repetição, as leis de oposição, as leis de adaptação dos fe
nômenos. São três tipos de leis (e é importante não confundi-las) tão
solidárias quanto distintas: em biologia, por exemplo, a tendência
das espécies a se multiplicar segundo uma progressão geométrica
(lei de repetição) é o fundamento da concorrência vital e da seleção
(lei de oposição); e a produção de variações individuais, de aptidões
22 As Leis Sociais
e harmonias individuais diferentes, assim como a correlação de
crescimento (lei de adaptação)13 são necessárias ao seu funcio
namento. Mas entre essas três chaves, a primeira e a terceira são
muito mais importantes do que a segunda: a primeira é a grande
chave-mestra, a terceira, mais sutil, da acesso aos tesouros mais re
cônditos e mais preciosos; a segunda, intermediária e subordinada,
revela-nos os choques e as lutas de utilidade passageira, espécie
de termo médio destinado a se esvanecer pouco a pouco, embora
jamais completamente, e a só desaparecer, ainda que parcialmente,
depois de numerosas transformações e atenuações.
Essas considerações eram necessárias para indicar o que a
sociologia deve ser caso deseje merecer o nome de ciência, e para
que caminhos os sociólogos devem dirigi-la se eles se importam
em vê-la assumir decididamente o posto que lhe pertence. Como
qualquer outra ciência, ela não poderá fazê-lo a não ser possuindo
seu próprio domínio de repetições, seu próprio domínio de oposi-
Ções e seu próprio domínio de adaptações, todos característicos
e exclusivos. Ela não progredirá a não ser esforçando-se, como
fizeram todas as ciências anteriores, para sempre substituir as
falsas repetições por repetições verdadeiras, as falsas oposições
por oposições verdadeiras, as falsas harmonias por harmonias
verdadeiras, e para substituir repetições, oposições e harmonias
verdadeiras, porém vagas, por repetições, oposições e adaptações
cada vez mais precisas. Coloquemo-nos sucessivamente em cada
um desses pontos de vista para verificar inicialmente se a evolução
das ciências em geral, e da sociologia em particular, se fez e se faz
no sentido que eu acabo de definir imperfeitamente, e que preten
do definir cada vez melhor; e em seguida, para indicar as leis do
desenvolvimento social sob cada um desses aspectos.
Note-se que Cuvier e os naturalistas de sua época (inclusive seu adversário Lamarck) buscaram, sobretudo, as leis de adaptação, enquanto Darwin e seus discípulos evolucionistas abordaram os fenômenos da vida dando preferência aos aspectos relativos às suas repetições e às suas oposições (lei de Malthus e lei da concorrência vital), embora, por certo, eles também tenham se preocupado com aquilo que importa acima de tudo, a adaptação vital.
Primeiro capítulo
Repetição dos fenômenos
Coloquemo-nos na presença de um grande objeto: o
céu estrelado, o mar, uma floresta, uma multidão, uma
cidade. De todos os pontos desse objeto emanam im
pressões que assediam os sentidos do selvagem, bem como os
do cientista. Neste, porém, essas sensações múltiplas e inco
erentes sugerem noções logicamente agenciadas, um feixe de
fórmulas explicativas. Como ocorreu a lenta elaboração dessas
sensações em noções e em leis? Como o conhecimento dessas
coisas se tornou cada vez mais científico? Eu diria que isso
aconteceu, em primeiro lugar, à medida que mais similitudes
foram descobertas, ou que, depois de se ter acreditado ver
similitudes superficiais, aparentes e decepcionantes, similitu
des mais reais e profundas foram percebidas. Em geral, isso
significa que se passou de similitudes e repetições de massa,
complexas e confusas, a similitudes e repetições de pormenor,
mais difíceis de captar, porém mais precisas, elementares e
infinitamente numerosas, bem como infinitesimais. E somente
depois que essas similitudes elementares foram percebidas é
que as similitudes superiores, mais amplas, mais complexas,
mais vagas, puderam ser explicadas e reduzidas ao seu justo
valor. Esse progresso ocorreu cada vez que muitas origina-
lidades distintas, anteriormente julgadas sui generis, foram
assimiladas em combinações de similitudes. Isso não quer
dizer que a ciência, ao progredir, faça desaparecer ou mesmo
diminuir a proporção de originalidades fenomenais, os aspectos
não repetidos da realidade. É verdade que as originalidades
de massa, grandes e visíveis, se dissolvem sob o olhar mais
penetrante do observador, mas em proveito de originalidades
24 ■As Leis Sociais
mais profundas e recônditas que vão se multiplicando inde
finidamente, juntamente com as uniformidades elementares.
Apliquemos o que foi dito ao céu estrelado. Houve um início
de ciência astronômica a partir do momento em que pastores ocio
sos e curiosos notaram a periodicidade das revoluções celestes
aparentes, o levantar e deitar das estrelas, os passeios circulares
do Sol e da Lua, a sucessão regular e o retorno regular de suas
posições no céu. Mas certos astros pareciam constituir exceções
em face da generalidade dessa única e grandiosa revolução circular:
as estrelas errantes, os planetas, aos quais se atribuía uma marcha
caprichosa, a cada instante diferente dela mesma e das demais;
até que se percebeu quanta regularidade havia nessas anomalias.
Julgava-se, aliás, que todas as estrelas fixas e errantes, sóis e pla
netas, aí compreendidas as estrelas cadentes, eram semelhantes
entre si, e só se estabelecia uma diferença marcante entre elas e ó
Sol ou a Lua, que gozavam da reputação de serem os únicos astros
verdadeiramente originais do firmamento.
Ora, a astronomia progrediu quando, por um lado, essa
aparente rotação do céu inteiro, enorme e única, foi substituída
pela realidade de uma inumerável quantidade de pequenas rota
ções muito diferentes entre si, e que não apresentavam nenhuma
sincronia, cada qual se repetindo indefinidamente; e quando, por
outro lado, a originalidade do Sol desapareceu, substituída por
uma originalidade mais difícil de perceber, a de cada estrela, sol
de um sistema invisível, centro de um mundo planetário análogo
ao turbilhão de nossos planetas.
A astronomia deu um passo ainda maior quando as diferenças
dessas gravitações siderais, cuja generalidade sem exceções não
excluía a desigualdade de velocidade, de distância, de elipticidade,14
etc., desapareceram diante da lei de gravitação newtoniana, que
apresentou todas as periodicidades de movimento, das menores
14 No orig ina l, ellipticité, caráter de uma figura (no caso, de uma órb ita ) e líp tica(N. doTJ.
Gabriel Tarde 25
às maiores, das mais rápidas às mais lentas, como a repetição in
cessante e contínua de um mesmo fato: a atração em razão direta
das massas e em razão inversa ao quadrado das distâncias. E seria
ainda melhor se, explicando esse mesmo fato por meio de uma
hipótese audaciosa, sempre perseguida e sempre obsedante, fosse
possível enxergar aí o efeito da pressão de átomos etéreos, pressão
decorrente de vibrações atômicas de uma inimaginável exiguidade,
mas também de uma inconcebível multiplicidade.
Não terei razão ao dizer que a ciência astronômica trabalhou
o tempo todo com similitudes e repetições, e que seu progresso
consistiu em partir de similitudes e repetições únicas ou bem pouco
numerosas, gigantescas e aparentes, para chegar a uma infinidade
de similitudes e repetições infinitesimais, reais e elementares, que
aliás permitiram, ao surgirem, explicar as primeiras?
E será possível dizer - entre parênteses - que o céu tenha
perdido algo de seu caráter pitoresco à medida que a astronomia
progredia? De modo algum. Em primeiro lugar, a precisão cres
cente dos instrumentos e das observações permitiu distinguir nas
gravitações repetidas dos astros muitas diferenças antes desper
cebidas, sendo fonte de novas descobertas, notadamente a de Le
Verrier.15 Depois o firmamento se ampliou cada vez mais, e na sua
imensidade aumentada, foram acentuadas as desigualdades de
volume, de velocidade e de particularidades físicas entre astros e
grupos de astros. As variedades de configuração das nebulosas se
multiplicaram, e quando o uso do espectroscópio (coisa inaudita)
tornou possível analisar tão maravilhosamente a composição quí
mica dos corpos celestes, foram constatadas entre os seres que
as povoam dessemelhanças que se pode chamar de profundas.
Enfim, percebeu-se melhor a geografia dos astros mais próximos, e
se julgarmos os demais a partir desses, deve-se acreditar - depois
15 Urbain Le Verrier, matemático e astrônomo francês que em 1846 previu, somente com base em cálculos e na observação da órbita do planeta Urano, a existência do planeta Netuno. (N.doT.)
26 As Leis Sociais
de haver estudado os canais de Marte, por exemplo - que cada um
dos inumeráveis planetas a gravitar sobre nossas cabeças ou sob
nossos pés possui seus acidentes característicos, seu mapa-múndi
especial, suas particularidades locais que, lá como aqui, dão a cada
canto do solo seu charme peculiar e imprimem, sem nenhuma
dúvida, o amor pela terra natal no coração de seus habitantes,
sejam eles quais forem.
A meu ver, isso não é tudo - porém digo-o baixinho, com
receio de incorrer na grave censura de fazer metafísica... Eu creio
que é impossível explicar as dessemelhanças às quais me refiro -
mesmo que fossem apenas essas desigualdades de posição e essa
caprichosa distribuição de matéria através do espaço - pela hipó
tese, tão cara aos químicos (que são, quanto a isso, os verdadeiros
metafísicos), de elementos atômicos perfeitamente semelhantes.
Creio que a pretensa lei de Spencer sobre a instabilidade do homo
gêneo nada explica, e que, por consequência, a única maneira de
explicar a floração de exuberantes diversidades à superfície dos
fenômenos é admitir no fundo das coisas uma tumultuosa infinidade
de elementos caracterizados individualmente. Assim, do mesmo
modo que as similitudes de massa foram resolvidas em similitudes
de pormenor, as diferenças de massa, grosseiras e bem visíveis,
se transformaram em diferenças de pormenor infinitamente sutis.
E assim como as similitudes de pormenor permitem explicar por
si mesmas as similitudes de conjunto, as diferenças de pormenor,
essas originalidades elementares e invisíveis que eu vislumbro,
permitem igualmente explicar por si mesmas as diferenças apa
rentes e grandiosas, o pitoresco do universo visível.
Temos aí o mundo físico. No mundo vivo acontece a mesma
coisa. Coloquemo-nos, como o homem primitivo, no meio de uma
floresta. Existe ali toda a fauna e flora de uma região, e nós sabe
mos agora que os fenômenos tão dessemelhantes apresentados
por esses diversos animais e plantas se resolvem, no fundo, numa
enorme quantidade de pequenos fatos infinitesimais resumidos
Gabriel Tarde 27
pelas leis da biologia, biologia animal ou vegetal, pouco importa;
atualmente ambas se confundem. Mas no início se diferenciava
profundamente o que hoje assimilamos, ao passo que muitas
coisas que hoje diferenciamos eram assimiladas. As similitudes e
as repetições percebidas então, das quais se alimentava a ciência
nascente dos organismos, eram superficiais e decepcionantes:
foram assimiladas plantas sem nenhum parentesco, cujo porte e
folhagem eram vagamente assemelhados, enquanto era traçado
um abismo entre plantas da mesma família, mas de talhe e silhueta
bastante desiguais. A ciência botânica progrediu ao aprender que
os caracteres mais importantes, isto é, mais repetidos e mais sig
nificativos, acompanhados por um cortejo de outras similitudes,
não. eram os mais visíveis; ao contrário, eram os mais recônditos,
os mais sutis, ou seja, aqueles concernentes aos órgãos de repro
dução: por exemplo, o fato de ter um ou dois cotilédones, ou de
não ter nenhum.
E a biologia, síntese da zoologia e da botânica, nasceu no dia
em que a teoria celular mostrou que, tanto nos animais como nas
plantas, a célula era o elemento infinitamente repetido, primeira
mente a célula germinal, e depois todas as outras que dela proce
dem; e que o fenômeno vital elementar é a repetição indefinida, em
cada célula, dos modos de nutrição e de atividade, de crescimento
e de proliferação, cujo depósito tradicional ela recebeu de herança
e transmitirá fielmente à sua posteridade. Essa conformidade aos
precedentes que se chama de hábito ou de hereditariedade - diga
mos, numa palavra, hereditariedade, já que o hábito é uma here
ditariedade interna e a hereditariedade é um hábito exteriorizado
- é a forma propriamente vital da repetição; tal como a ondulação
ou, em geral, o movimento periódico, é sua forma física, tal como
a imitação, como veremos, é sua forma social.
Vemos, portanto, que o progresso da ciência dos seres
vivos teve como efeito derrubar gradualmente todas as barreiras
que existiam entre eles do ponto de vista de suas similitudes e
28 /)s Leis Sociais
repetições, substituindo, também ali, semelhanças grosseiras e
aparentes, grandiosas e pouco numerosas, por semelhanças muito
precisas, inumeráveis e infinitesimais, que são as únicas capazes de
explicar as primeiras. Mas ao mésmo tempo aparecem distinções
múltiplas, e não apenas a originalidade de cada indivíduo se torna
mais evidente, mas também somos forçados a admitir originalida-
des celulares, e em primeiro lugar germinais: pois não existe nada
tão semelhante quanto duas células germinais, mas existirá algo
mais diferente do que seu conteúdo? Depois de experimentar a
insuficiência das explicações propostas por Darwin e Lamarck a
respeito da origem das espécies - cujos termos comuns, por sinal,
a descendência, a evolução, permanecem para além de qualquer
contestação - é preciso convir que a causa verdadeira da espécie é
o segredo das células, a invenção de algum óvulo inicial possuindo
uma originalidade particularmente fecunda.16
Pois bem, eu afirmo que se examinarmos uma cidade, uma
multidão ou um exército, em vez de examinarmos uma floresta ou
o firmamento, veremos que as considerações anteriores se aplicam
à ciência social do mesmo modo que se aplicam à astronomia e à
biologia. Também aqui passamos de generalizações apressadas,
fundadas sobre analogias vãs e factícias, grandiosas e ilusórias, a
generalizações apoiadas sobre conjuntos de pequenos fatos seme
lhantes, possuindo uma similitude relativamente clara e precisa.
Há muito tempo a sociologia trabalha para constituir-se.
Ela tentou seus primeiros balbucios a partir do momento em que
discerniu, ou acreditou discernir, algo de periódico e de regular no
confuso caos dos fatos sociais. A concepção antiga do grande ano
cíclico, ao término do qual tudo, no mundo social como no mundo
16 Essa afirmação de Tarde parece referir-se à teoria do plasma germinativo de August Weis- mann. 0 biólogo alemão rejeitava a hereditariedade dos caracteres adquiridos e preconizava que o segredo da variação (surgimento de novas espécies) reside exclusivamente nas células germinativas e depende de alterações em seus elementos moleculares. A descoberta do ADN demonstrou que Weismann estava na direção correta, e tinha razão ao mesmo tempo contra Darwin e contra Lamarck. (N. doT.)
Gabriel Tarde 29
natural, se repetia na mesma ordem, era já um primeiro esboço de
sociologia. Aristóteles substituiu essa única e falsa repetição de
conjunto, acolhida pelo quimérico talento de Platão, por repetições
de pormenor, frequentemente verdadeiras, mas sempre muito vagas
e difíceis de acompanhar de perto; elas são formuladas em sua
Política a propósito do que existe de mais superficial ou de menos
profundo na vida social, a sucessão de formas governamentais.
Interrompida desde então, a evolução da sociologia recomeçou ab
ovo17 nos tempos modernos. Os ricorsi 18 de Vico são a retomada
e a fragmentação, menos quimérica, dos ciclos antigos; essa tese,
tal como a de Montesquieu sobre a pretensa semelhança entre
civilizações surgidas sob o mesmo clima, são dois bons exemplos
de repetições e similitudes superficiais ou ilusórias que nutriram
a ciência antes que ela encontrasse um alimento mais substancial.
Chateaubriand, no seu Ensaio sobre as Revoluções, desenvolveu um
longo paralelo entre a revolução inglesa e^a revolução francesa e
divertiu-se com as mais superficiais comparações. Outros funda
ram grandes pretensões teóricas sobre vãs analogias entre o gênio
púnico e o gênio inglês, ou entre o império romano e o império
inglês... Essa pretensão de encerrar os fatos sociais em fórmulas
de desenvolvimento, que os constrangeriam a repetir-se em massa
com variações insignificantes, foi a grande ilusão da sociologia:
seja sob a forma já mais precisa que Hegel lhe deu com suas sé
ries de tríades, seja sob a forma ainda mais científica e precisa, e
menos afastada da verdade, que ela recebeu dos evolucionistas
contemporâneos. Estes, a propósito das transformações do direi
to, notadamente do regime familiar e do regime de propriedade
- e a propósito das transformações da linguagem, da religião, da
indústria, das belas-artes - arriscaram a formulação de leis gerais
razoavelmente precisas que sujeitariam a marcha das sociedades,
sob esses diversos aspectos, a passar e repassar pelos mesmos
17 Tradução livre: desde o início, a partir do zero. (N. doT.)18 Recorrências. (N. do T.)
30 As Leis Sociais
caminhos, arbitrariamente traçados, de fases sucessivas. Era ne
cessário reconhecer que essas pretensas regras estão repletas de
exceções, e que a evolução - linguística, jurídica, religiosa, política,
econômica, artística, moral - não é uma rota única, mas uma rede
de caminhos na qual abundam as encruzilhadas.
Felizmente, à sombra e ao abrigo dessas ambiciosas genera
lizações, trabalhadores mais modestos se esforçavam, com mais
sucesso, para anotar leis de pormenor de uma solidez bem diferente.
Eles eram linguistas, mitólogos, sobretudo economistas. Esses es
pecialistas da sociologia perceberam várias relações interessantes
entre fatos consecutivos ou concomitantes, relações que se repro
duziam a cada instante nos limites do pequeno domínio que eles
estudavam: encontra-se na Riqueza das Nações de Adam Smith, na
Gramática comparada das línguas indo-européias de Bopp e na obra
de Dietz, para ficar nesses três exemplos, uma enorme quantidade
de observações desse gênero, nas quais se exprime uma similitude
entre inumeráveis ações humanas como a pronúncia de certas con
soantes ou de certas vogais, as compras e as vendas, a produção e
o consumo de certos artigos, etc. É verdade que essas similitudes,
nelas mesmas, deram lugar a leis imperfeitas, relativas ao plerumque
fít,19 quando os linguistas ou economistas tentaram formulá-las em
leis; mas é porque se teve demasiada pressa para enunciá-las, antes
mesmo de se discernir, no seio dessas verdades parciais, a verdade
geral que elas implicam, o fato social elementar que a sociologia
persegue obscuramente e que ela deve atingir para realizar-se.
Muitas vezes pressentiu-se que essa explicação geral das leis
ou pseudo-leis (econômicas, linguísticas, mitológicas ou outras)
cabia à psicologia. Ninguém compreendeu isso com mais força e
clareza do que Stuart Mill. No fim de sua Lógica, ele concebeu a
sociologia como a psicologia aplicada. O problema é que ele não
exprimiu seu pensamento com suficiente precisão, e a psicologia
19 Tradução livre: o usual, aquilo que geralmente acontece. (N. do T.)
Gabriel Tarde 31
à qual ele se dirigiu para obter a chave dos fenômenos sociais era
a psicologia meramente individual, aquela que estuda as relações
internas entre impressões ou imagens no interior de um mesmo
cérebro, e que acredita dar conta de tudo, nesse domínio, pelas
leis de associação desses elementos internos. Assim concebida,
a sociologia se tornava uma espécie de associacionismo inglês
aumentado e exteriorizado, e perdia sua originalidade. Não é exa
tamente ou unicamente a essa psicologia /nfra-cerebral, é antes de
tudo à psicologia inter-cerebral, que estuda o estabelecimento de
relações conscientes entre muitos indivíduos, que convém pedir
o fato social elementar, cujos grupamentos ou combinações múlti
plas constituem os fenômenos ditos simples, objetos das ciências
sociais particulares. O contato de um espírito com outro é, com
efeito, na vida de cada um deles, um acontecimento à parte, que
se destaca vivamente do conjunto de seus contatos com o resto
do universo e dá lugar aos estados de alma mais imprevisíveis (e
mais inexplicáveis pela psicologia fisiológica).20
Essa relação de um sujeito com um objeto que também é
um sujeito não é uma percepção que em nada se assemelha à
coisa percebida (autorizando por isso o cético idealista a colocar
20 As experiências realizadas sobre a sugestão hipnótica e sobre a sugestão em estado devigília forneceram abundantes materiais para a futura construção da Psicologia inter-cerebral.Tomarei a liberdade de remeter o leitor às tentativas de aplicação dessa psicologia ainda embrionária que realizei em todas as minha obras e particularmente no capítulo intitulado Qu'est ce qu'une société? (Lois de L'Imitation, 1890), que já havia aparecido em novembro de 1884 na Revue philosophique; em algumas páginas de minha Philosophie pénale (1890) sobre a formação de hordas criminosas (capítulo sobre o crime, p. 384 e seguintes, 1a edição); em minha comunicação intitulada Crimes des foules, discutida no Congresso de Antropologia Criminal de Bruxelas em .outubro de 1892; e no meu artigo publicado sob o título de Foules et Sectes na Revue des Deux Mondes (dezembro de 1893). Esses dois últimos estudos foram reimpressos sem modificações no meu Essais et mélanges sociologiques, em 1895 (Edições Storch et Masson, Paris-Lyon). Eu gostaria de observar en passant que o trecho da Philosophie pénale citado acima, senão o capítulo de Lois de Limitation, do qual ele não passa de um corolário, contém em substância e muito explicitamente a explicação dos fenômenos de massa que foram desenvolvidos mais tarde em outros estudos, e que ele apareceu anteriormente aos interessantes trabalhos sobre a psicologia das massas editados no estrangeiro ou na França. Digo isto não para dim inuir seu mérito, mas para responder a certas insinuações, às quais, por sinal, eu fiz justiça em outros lugares.
32 As Leis Sociais
sua realidade em dúvida), mas antés a sensação de uma coisa
senciente, a volição de uma coisa volitiva, a crença em uma coisa
crente, em resumo, em uma pessoa, na qual a pessoa que perce
be se reflete e que ela não poderia negar sem negar a si mesma.
Essa consciência de uma consciência é o inconcussum quid21 que
Descartes procurava e que o eu individual não pôde lhe fornecer.
Além disso, essa relação singular não é uma impulsão física, dada
ou recebida, um transporte de força motora do sujeito ao objeto
inanimado ou vice-versa, conforme se trate de um estado ativo ou
passivo, mas uma transmissão de algo interior, mental, que passa
de um sujeito ao outro sem por isso, coisa estranha, perder-se ou
diminuir-se no primeiro. E o que pode ser assim transmitido de
uma alma a outra por meio de um contato psicológico? São suas
sensações, seus estados afetivos? Não, isso é essencialmente
incomunicável. Tudo o que dois sujeitos podem comunicar entre
si tendo consciência disso, de maneira a sentir-se mais unidos e
semelhantes, são suas noções e volições, seus juízos e desígnios,
formas que podem permanecer as mesmas apesar da diferença
de seu conteúdo, produtos da elaboração espiritual que se exerce
quase indiferentemente sobre signos sensíveis quaisquer. Tampou
co ela difere sensivelmente passando de um espírito de tipo visual
a um espírito de tipo acústico óu motor, de modo que as ideias
geométricas de um cego de nascença são exatamente as mesmas
que geômetras dotados de visão possuem; e um plano de batalha
sugerido por um general de humor bilioso e melancólico a generais
de temperamento vivo e sanguíneo ou fleumático e resignado não
deixará de ser o mesmo: para isso basta que eles tracem a mesma
série de operações, e por outro lado, que estas sejam desejadas
por eles com igual força de querer, a despeito da maneira de sentir
toda especial, toda individual, que leva cada um deles a desejar.
A energia de tendência psíquica, de avidez mental, que eu chamo
21 Tradução livre: algo firme, constante, inabalável. (N. doT.)
Gabriel Tarde 33
de desejo, tal como a energia de entusiasmo intelectual, de ade
são e constrição mental, que eu chamo de crença, é uma corrente
homogênea e contínua que, sob a variável coloração das tintas de
afetividade próprias a cada espírito, circula idêntica, ora dividida,
fragmentada, ora concentrada, e que se comunica sem alteração
de uma pessoa a outra, bem como de uma percepção a outra no
interior de uma mesma pessoa.
Quando eu disse que toda ciência verdadeira chega a um
domínio próprio de repetições elementares, inumeráveis e infi
nitesimais, é como se eu já houvesse dito que toda ciência verda
deira fundamenta-se em quantidades que lhe são específicas.22
A quantidade, com efeito, é a possibilidade de séries infinitas e
de repetições infinitamente pequenas. Eis porque eu me permiti
insistir sobre o caráter quantitativo das duas energias mentais
que, como dois rios divergentes, banham a dupla face do eu, sua
atividade mental e sua atividade voluntária. JMegar esse caráter é
declarar a impossibilidade da sociologia. Mas não se pode negá-lo
sem recusar a evidência, e esta é a prova de que as quantidades em
questão são propriamente sociais: sua natureza quantitativa apare
ce tanto melhor, e fere o espírito com maior vivacidade e clareza,
quando são consideradas em massas mais amplas, sob a forma de
correntes de fé ou de paixão popular, de convicções tradicionais
ou opiniaticidades costumeiras, abraçando grupos humanos mais
numerosos. Quanto mais cresce uma coletividade, e mais se eleva
ou apequena uma opinião, ou seja, a crença ou o querer nacional,
afirmativo ou negativo, em relação a um objeto dado - alta ou baixa
exemplarmente expressa pelas cotações da Bolsa - mais ela se tor
na suscetível de medida e comparável aos movimentos de pressão
atmosférica ou à força viva de uma queda d’água. É por isso que a
estatística se desenvolve com crescente facilidade à medida que
22 No texto original consta a palavra qualidades (em vez da palavra quantidades): "toute science vraie repose sur des qualités qui lui sont spéciales". Uma vez que o contexto não dá margem a dúvidas, optei por fazer a alteração no próprio corpo do texto. (N. doT.)
34 As Leis Sociais
os Estados crescem; o êxito da estatística, cujo objeto próprio é
pesquisar e discernir quantidades verdadeiras na barafunda dos
fatos sociais, é proporcional à sua obstinação de medir, no fundo,
por meio dos atos humanos que adiciona, massas de crenças e de
desejos. A estatística dos valores da Bolsa exprime as variações
da confiança pública no sucesso de tais ou tais empresas, na sol
vência de tais ou tais Estados devedores, e as variações do desejo
público, do interesse público, ao qual se dá satisfação por essas
dívidas e por essas empresas. A estatística industrial e agrícola
exprime a importância das necessidades gerais que reclamam a
produção de tais ou tais artigos e a suposta conveniência dos meios
necessários para satisfazê-las. A consulta da estatística judiciária,
em suas enumerações de processos e delitos, só é interessante
porque a travessia de suas linhas permite, ano após ano, a leitura
da progressão ou regressão dos desejos públicos engajados em vias
processuais ou delituosas: por exemplo, a tendência ao divórcio
ou ao roubo, e também a proporção de esperanças públicas vol
tadas para certos processos ou delitos. A estatística populacional,
que sob muitos aspectos é meramente biológica e diz respeito à
propagação da espécie, também é sociológica na medida em que
diz respeito à duração e aos progressos das instituições sociais, e
exprime o crescimento ou o decréscimo do desejo de paternidade
e de maternidade, bem como da crença geral de que a felicidade é
obtida a partir do casamento e das uniões fecundas.
Mas sob que condição as forças de crença e de desejo
acumuladas em indivíduos distintos podem ser legitimamente
adicionadas? À condição de ter o mesmo objeto, de incidir sobre
uma mesma ideia a afirmar, sobre uma mesma ação a executar.
Mas como se produz essa convergência de direção que torna as
energias individuais capazes de formar um todo social? Será espon
taneamente, por um encontro fortuito, ou por uma espécie de har
monia preestabelecida? Não, a não ser talvez em casos bem raros;
e mesmo essas exceções, se tivéssemos tempo para examiná-las,
Gabriel Tarde 35
confirmariam a regra. Essa conformidade minuciosa de espíritos
e de vontades que constitui o fundamento da vida social, mesmo
nas épocas mais perturbadas; essa presença simultânea de tantas
ideias precisas, de tantos fins e meios precisos em todos os espí
ritos e em todas as vontades de uma mesma sociedade num dado
momento; nada disso é o efeito da hereditariedade orgânica que
fez nascer homens muito semelhantes entre si, nem da identidade
do meio geográfico que teria oferecido recursos mais ou menos
iguais a aptidões mais ou menos iguais, e sim da sugestão-imitação
que, a partir de um primeiro criador de uma ideia ou de um ato,
propagou gradualmente seu exemplo. As necessidades orgânicas
e as tendências espirituais só existem em nós num estado de vir-
tualidades realizáveis sob as mais diversas formas, a despeito de
sua vaga similitude primordial; e foi a indicação de um primeiro
iniciador imitado que determinou, entre essas realizações possí
veis, a escolha de uma delas.
Voltemos ao casal social elementar que mencionei anterior
mente, não o casal do homem e da mulher que se amam - esse casal,
considerado do ponto de vista sexual, é puramente vital - mas o
casal de duas pessoas, seja qual for o sexo a que elas pertencem,
no qual uma age espiritualmente sobre a outra. Eu afirmo que a
relação entre essas duas pessoas é o elemento único e necessário
da vida social, e que ele consiste sempre, originalmente, em uma
imitação de um pelo outro. Porém é preciso bem compreender isto
para não cair sob o golpe de vãs e superficiais objeções. 0 incon
testável é que dizendo, fazendo, pensando não importa o que, uma
vez engajados na vida social, nós imitamos outrem a cada instante,
a menos que nós inovemos, o que é raro; e ainda é fácil mostrar
que nossas inovações são, em sua maior parte, combinações de
exemplos anteriores, e que elas permanecem estranhas à vida
social enquanto não forem imitadas. Vocês não dizem uma palavra
que não seja a reprodução - agora inconsciente, mas inicialmente
consciente e desejada - de articulações verbais remontando ao
36 As Leis Soda is
mais longínquo passado, ainda que com um sotaque característi
co da sua vizinhança; vocês não realizam um rito de sua religião,
sinal da cruz, beijo no ícone, prece, que não reproduza gestos e
fórmulas tradicionais, ou seja, formadas pela imitação dos ances
trais; vocês não executam uma ordem qualquer, militar ou civil,
ou um ato qualquer de sua profissão, que não tenha sido ensinada
e que não tenham copiado de um modelo vivo; vocês não dão uma
pincelada, se são pintores, não escrevem um verso, se são poetas,
que não seja conforme aos hábitos ou à prosódia de sua escola;
até mesmo sua originalidade é feita de banalidades acumuladas, e
aspira a tornar-se banal por sua vez.
Assim, o caráter constante de um fato social, seja ele qual for,
é imitativo; e esse caráter é próprio e exclusivo dos fatos sociais.
Sobre esse ponto, entretanto, Giddings - que, por sinal, posicionou-
-se frequentemente no meu ponto de vista sociológico - mè fez
uma objeção ilusória: imita-se, diz ele, de uma sociedade a outra,
e mesmo inimigos se imitam, apoderando-se de armamentos, de
táticas de guerra, de segredos profissionais. Assim, o campo da
imitação ultrapassaria o campo da sociabilidade e não poderia ser
a característica deste.23 Mas espanta-me que tal objeção venha de
23 Dando-se à palavra imitação a acepção larga que ela recebe num livro recente e já célebre (0 Desenvolvimento Mental da Criança) de Baldwin, professor de psicologia da Universidadede Princeton, pode-se dizer que a imitação é o fato fundamental, não somente da vida sociale da vida psicológica, mas da própria vida orgânica, na qual ela seria a condição para o hábito e a hereditariedade. Mas a tese desse fino psicólogo, longe de contradizer a minha, é na verdade sua veemente ilustração e confirmação. A imitação de homem a homem, tal como eu a entendo, é a decorrência da imitação de estado a estado no mesmo homem, imitação interna que eu mesmo já havia chamado de hábito e que, distinguindo-se da primeira por características suficientemente precisas, não me permite confundi-las. Baldwin, que é antes de mais nada um psicofisiologista, explica muito bem a origem orgânica e mental da imitação, e seu papel termina precisamente no momento em que começa o do psicossociólogo. É uma pena que seu livro não tenha antecedido meu livro sobre as Leis da Imitação, pois suas análises teriam sido proveitosas. Mas elas não me obrigaram a retificar em nada as leis e considerações enunciadas em minha obra. Em todo caso, seu livro é a melhor resposta que posso dar àqueles que me censuraram por ter estendido demais o sentido da palavra Imitação. Baldwin, estendendo-o muito mais, prova que isso não é verdade. Eu soube, durante a revisão deste texto, que Baldwin acaba de aplicar suas ideias à sociologia [Social and Ethical Interprétations in Mental Development], e que ele, seguindo um caminho independènte, foi conduzido espontaneamente a uma maneira de ver bastante análoga àquela desenvolvida no meu livro Lois de l'Imitation.
Gabriel Tarde 37
um autor que percebe na luta entre sociedades um poderoso agente
de sua posterior socialização, de sua comunhão em uma sociedade
mais ampla elaborada por essas mesmas batalhas. Com efeito, não
é evidente que povos rivais ou mesmo inimigos tendem a se fun
dir à medida que assimilam suas instituições? Assim, é certo que
cada novo ato de imitação tende a conservar ou fortificar o laço
social, não apenas entre indivíduos já associados, mas também
entre indivíduos ainda não associados, de modo que a imitação
prepara a associação de amanhã, ou seja, tece agora, por meio de
fios invisíveis, aquilo que irá se tornar um laço manifesto.
Não me deterei em outras objeções que me foram feitas, pois
elas provêm de um entendimento muito incompleto de minhas
ideias. Elas se desfazem por si mesmas aos olhos de quem se co
loca claramente no meu ponto de vista. No que diz respeito a elas,
remeto à leitura de minhas obras.
Mas não basta reconhecer o caráter imitativo de todo fenô
meno social. Eu afirmo, além disso, que essa relação de imitação
existiu, na origem, não apenas entre um indivíduo e uma massa
confusa de homens (como acontecerá mais tarde), mas entre dois
indivíduos apenas, entre os quais um, a criança, está nascendo
para a vida social, e o outro, o adulto, já socializado há muito
tempo, lhe serve de modelo individual. É avançando na vida que
nós iremos tomar como regra modelos coletivos e impessoais,
geralmente inconscientes; mas antes de falar, pensar e agir tal
como nós falamos, pensamos e agimos em nosso mundo, come
çamos por falar, pensar e agir como ele (ou ela) fala, pensa e age;
e esse ele ou ela é um de nossos familiares. No fundo desse nós,
se procurarmos bem, não encontraremos outra coisa além de um
certo número de eles e elas que se embaralharam e se confundi
ram ao multiplicar-se. Por mais simples que seja essa distinção,
ela é esquecida por todos aqueles que contestam que a iniciativa
individual tenha um papel criador numa instituição e numa obra
social qualquer, e acreditam dizer alguma coisa afirmando, por
38 As Leis Sociais
exemplo, que as línguas e religiões são obras coletivas, que as
massas, as massas sem nenhum dirigente, produziram o grego, o
sânscrito, o hebraico, o budismo, o cristianismo; e por fim, que a
explicação das formações e transformações das sociedades está
na ação coercitiva da coletividade sobre o indivíduo pequeno ou
grande, sempre modelado e sujeitado, e jamais na ação sugestiva e
contagiosa de indivíduos de elite sobre a coletividade. Na realidade,
tais explicações são ilusórias, e seus autores não percebem que
eludem a dificuldade principal ao postular uma força coletiva, uma
similitude, sob certos aspectos, entre milhões de homens: ou seja,
o problema de saber como essa assimilação geral pôde acontecer.
Podemos responder com precisão levando a analogia até onde
eu á conduzi, até a relação intercerebral entre dois espíritos, ao
reflexo de um no outro, e somente então se poderá explicar essas
unanimidades parciais, essas conspirações dos corações, essas
comunhões de espírito que, uma vez formadas e perpetuadas pela
tradição, imitação dos ancestrais, exercem uma pressão tão fre
quentemente tirânica, e ainda mais frequentemente salutar, sobre
o indivíduo.24 Portanto, é a essa relação que o sociólogo deve se
ater, tal como o astrônomo se atém à relação entre duas massas
que atraem e são atraídas; é a ela que ele deve pedir a chave do
mistério social, a fórmula de algumas leis simples, universalmente
verdadeiras, que podem ser discernidas em meio ao caos aparente
da história e da vida humanas.
O que eu tenho a ressaltar no momento é que a sociologia,
assim compreendida, difere das antigas concepções que reinavam
sob esse nome tal como a astronomia moderna difere da dos gregos,
ou tal como a biologia, a partir da teoria .celular, difere da história
24 Não podemos esquecer esta observação, que é das mais simples: é sempre a partir da mais tenra infância que entramos na vida social. Ora, a criança, que se volta para outrem como a flor se volta para o Sol, sofre muito mais a atração do que o constrangimento de seu meio familiar; e durante toda a sua vida, ela irá beber avidamente os exemplos recebidos.
Gabriel Tarde 39
natural de outrora.25 Dito de outro modo, ela repousa sobre um
fundamento de similitudes e de repetições elementares e verda
deiras, infinitamente numerosas e extremamente precisas, que
substituíram, como matéria primeira da elaboração científica, um
pequeno número de falsas ou vagas - e decepcionantes - analogias.
E eu posso acrescentar que, se por causa dessa substituição o lado
similar das sociedades progrediu em extensão e em profundidade,
seu lado diferencial também ganhou com a mudança. Sem dúvida
será preciso, daqui por diante, renunciar a essas diferenças factí
cias que a “filosofia da história” estabelecia entre povos sucessivos,
espécies de grandes personagens de um único e imenso drama no
qual cada um tinha seu papel providencial a desempenhar. Conse
quentemente, já não é permitido compreender essa expressão, da
qual tanto se abusou, o gênio de um povo ou de uma raça (e também
o gênio de uma língua, o gênio de uma religião), da mesma maneira
que ela era compreendida por nossos antecessores, mesmo tão
próximos como Renan e Taine. Emprestava-se uma originalidade
imaginária, aliás mal definida, a esses gênios coletivos, entidades
ou ídolos metafísicos; a eles eram atribuídas certas predisposições,
supostamente invencíveis, em relação a determinados tipos gra
maticais, concepções religiosas e formas de governo; e neles eram
supostas, ao contrário, certas incompatibilidades absolutas a res
peito de concepções ou instituições pertencentes a estes ou aqueles
entre seus rivais. Por exemplo, o gênio semita seria absolutamente
refratário ao politeísmo, ao sistema analítico das línguas modernas,
ao governo parlamentar; o gênio grego, ao monoteísmo; o gênio chi
nês e o gênio japonês, a todas as nossas instituições e concepções
25 Em resumo, essa concepção é quase o inverso da concepção professada pelos evolucionis- tasunilinearese também por Durkheim:ao invés de explicar tudo pela pretensa imposição de uma lei de evolução que constrangeria os fenômenos de conjunto a se reproduzir, a se repetir identicamente numa certa ordem, ao invés de explicar o pequeno pelo grande, o detalhe pelo conjunto, eu explico as similitudes de conjunto pela acumulação de pequenas ações elementares, o grande pelo pequeno, o conjunto pelo pormenor. Essa maneira de ver está destinada a produzir na sociologia as mesmas transformações que a introdução da análise infinitesimal produziu na matemática.
40 As Leis Sociais
europeias era geral... Se os fatos protestassem contra essa teoria
ontológica, seriam torturados até que fossem constrangidos a
confessar; seria inútil mostrar a esses teóricos a profundidade
das transformações sofridas pela propagação de uma religião
proselitista, de uma língua, ou de uma instituição como o júri, por
exemplo, bem além das fronteiras de seu povo e de sua raça de
origem, a despeito dos obstáculos que os gênios de outras nações
e de outras raças deveriam inelutavelmente lhes opor. Eles respon
dem remanejando a ideia e fazendo uma distinção entre as raças
nobres e inventivas, as únicas investidas do privilégio de descobrir
e propagar descobertas, e as raças nascidas para a servidão, que
não possuem nenhuma compreensão das línguas, religiões e ideias
que tomam ou parecem tomar emprestado das primeiras. Por sinal,
negava-se a possibilidade de que esse proselitismo conquistador de
uma civilização sobre outras, de um gênio popular sobre outros,
pudesse franquear certos limites, e especialmente europeizar a
China e o Japão. Já foi provado o contrário em relação a este último,
e em breve irá acontecer o mesmo com o Império do Meio.
Mais cedo ou mais tarde, será preciso abrir os olhos para as
evidências, e reconhecer que o gênio de um povo ou de uma raça,
ao invés de ser o fator dominante e superior dos gênios individu
ais que seriam seus rebentos e suas manifestações passageiras,
é muito simplesmente uma etiqueta cômoda, a síntese anônima
dessas inumeráveis originalidades pessoais, que são as únicas
verdadeiras, eficazes e ativas a cada instante, e que estão em fer
mentação contínua no seio de cada sociedade graças a empréstimos
incessantes e a uma fecunda troca de exemplos com as sociedades
vizinhas. 0 gênio coletivo, impessoal, é portanto função e não fator
dos gênios individuais, infinitamente numerosos; ele é sua fotografia
compósita, e não deve ser sua máscara. E certamente não teremos
nada a lamentar, em relação ao pitoresco social capaz de suscitar
o interesse do historiador artista, quando chegarmos a perceber
através dessa fantasmagoria - esclarecida, mais do que dissipada
Gabriel Tarde 41
- sobre atores históricos vagamente caracterizados que chama
mos de Egito, Roma, Atenas, etc., um pulular de individualidades
inovadoras, cada qual sui generis, marcada pelo seu próprio selo,
distinto e reconhecível entre mil.
Assim, posso concluir mais uma vez que, pela introdução
desse ponto de vista sociológico, estaremos fazendo precisamente
o que todas as outras ciências fizeram quando substituíram um
pequeno número de similitudes e diferenças, falsas ou vagas, por
inumeráveis similitudes e diferenças precisas e verdadeiras; e isso
será duplamente proveitoso para o artista e para o cientista, e
sobretudo para o filósofo, que deve, a não ser que ele mesmo seja
algo distinto, sintetizar ambos.
Mais algumas observações. Antes que se descobrisse algum
fato astronômico elementar, como a atração descrita pela lei newto-
niana, ou pelo menos a gravitação elíptica, houve conhecimentos
astronômicos heterogêneos - uma ciência da Lua, selenologia, uma
ciência do Sol, heliologia - mas não a astronomia. Antes que se
descobrisse um fato químico elementar (afinidades, combinações
em proporções definidas), houve conhecimentos químicos, químicas
especiais, do ferro, do estanho, do cobre, etc., mas não a química.
Antes que se descobrisse o fato físico essencial - a comunicação
ondulatória do movimento molecular - houve conhecimentos fí
sicos: ótica, acústica, termologia, eletrologia, mas não a física. A
física tornou-se físico-química, a ciência da natureza inorgânica
inteira, quando entreviu a possibilidade de explicar tudo pelas leis
fundamentais da mecânica, ou seja, quando acreditou descobrir,
como fato inorgânico elementar, a reação igual e contrária à ação,
a conservação da energia, a redução de todas as forças em formas
de movimento, o equivalente mecânico do calor, da eletricidade,
da luz, etc. Enfim, antes da descoberta das analogias existentes,
do ponto de vista da reprodução, entre os animais e as plantas,
nem mesmo havia uma botânica e uma zoologia, mas botânicas e
zoologias, ou seja, uma hipologia, uma cinologia, etc. Mas a des-
42 Ai Leis Sociais
coberta de similitudes só conferia uma unidade muito parcial a
todas essas ciências esparsas, a esse.s membra disjecta da futura
biologia. A biologia somente nasceu de fato quando a teoria celular
veio mostrar o fato vital elementar, o funcionamento da célula (ou
do elemento histológico) e sua proliferação, perpetuada pelo óvulo,
ele mesmo célula, de modo que a nutrição e a geração passaram a
ser encaradas sob um mesmo ângulo.
Muito bem, trata-se agora de fazer, similarmente, a ciência
social a partir das ciências sociais. Já houve, com efeito, ciências
sociais, ao menos esboçadas, prelúdios de ciência política, de
linguística, de mitologia comparada, de estética, de moral, uma
economia política já bem avançada, muito antes que houvesse
o embrião de uma sociologia. A sociologia supõe um fato social
elementar. E ela o supõe com tal força que, enquanto não havia
chegado a descobri-lo - talvez porque ele estivesse na sua cára,
se me perdoam essa expressão - ela sonhava com ele, ela o imagi
nava sob a forma de uma dessas similitudes vãs e imaginárias que
atravancam o berço de todas as ciências, e acreditava dizer algo
de profundamente instrutivo ao conceber uma sociedade como
um grande organismo, o indivíduo (ou, segundo outros, a família)
como a célula social, e toda forma de atividade social como uma
função de tipo celular. Eu já fiz os maiores esforços, juntamente
com a maior parte dos sociólogos, para desembaraçar a ciência
nascente dessa estorvante concepção. Ainda cabe uma palavra a
esse respeito.
O conhecimento científico sente com tal força a necessidade
de apoiar-se em similitudes e repetições que, antes de possuí
das, criou outras, imaginárias, e ficou à espera das verdadeiras;
desse ponto de vista, é preciso classificar a famosa metáfora do
organismo social entre tantas outras concepções simbólicas que
tiveram a mesma utilidade passageira. A alegoria desempenhou
um papel imenso nas origens de todas as ciências, bem como de
toda a literatura. Na matemática, antes das sólidas generalizações
Gabriel Tarde 43
de Arquimedes, nós tivemos os devaneios alegóricos de Pitágoras
e Platão. A astrologia e a magia, vestíbulo da astronomia, balbucio
da química, estão fundadas sobre o postulado da alegoria universal
mais do que sobre o da analogia universal; elas admitem uma har
monia preestabelecida entre as posições de certos planetas e os
destinos de certos homens, entre tal ação simulada e tal ação real,
entre a natureza de uma substância química e a do corpo celeste
que leva seu nome, etc. Não nos esqueçamos do caráter simbólico
dos procedimentos jurídicos primitivos, das ações da lei no direito
romano, antigos tateios da jurisprudência. Notemos também - pois
a teologia foi uma ciência dos nossos ancestrais, tal como a juris
prudência - o abuso dos sentidos figurados atribuídos aos relatos
bíblicos por parte dos mais antigos teólogos, que viam na história
de Jacó a cópia antecipada da história de Cristo, ou daqueles que
simbolizavam os amores entre esposo e esposa no Cântico dos
Cânticos como sendo os amores entre Cristo p sua Igreja. Assim co
meça a ciência teológica na Idade Média, assim começa a literatura
moderna no Roman de la Rose. Há uma grande distância entre essas
ideias e as ideias da Suma de São Tomás de Aquino. Encontramos
um vestígio desse misticismo simbólico ainda em nosso século, nas
obras agora esquecidas - porém dignas de serem exumadas em
razão de suas graças fenelonistas de estilo - de Père Gratry, que
acreditava ver no sistema solar o símbolo das relações sucessivas
entre a alma e Deus, em torno do qual, segundo ele, gira a alma.
Ainda segundo ele, o círculo e a elipse simbolizam toda a moral,
que está inscrita hieroglificamente nas seções cônicas.
E claro que eu não posso comparar essas excentricidades
aos desenvolvimentos parcialmente sólidos, e sempre sérios,
que Comte, e depois Herbert Spencer, e ainda mais recentemente
René Worms e Novicow, deram à tese da sociedade-organismo. Eu
aprecio o mérito e a utilidade momentânea dessas obras, ainda
que as critique. No entanto, agora generalizando o que já foi dito,
creio.ter o direito de enunciar a seguinte proposição: o progresso
44 As Leis Sociais
de uma ciência consiste em substituir as similitudes e repetições
exteriores, isto é, as comparações do objeto próprio dessa ciência
a outros objetos, por similitudes e repetições interiores, isto é,
comparações desse objeto consigo mesmo, considerado em seus
exemplares múltiplos e sob outros aspectos. A ideia do organismo
social, que encara a nação como uma planta ou um animal, corres
ponde à ideia do mecanicismo vital, que encara uma planta ou um
animal como uma entidade mecânica. Mas não foi por meio dessa
comparação, aprofundada e prolongada, entre um corpo vivo e um
mecanismo, que a biologia progrediu, e sim pela comparação das
plantas entre elas, dos animais entre eles, dos corpos viventes entre
si.26 E não é pela comparação entre as sociedades e os organismos
que a sociologia deu e ainda dará grandes passos, é pela compara
ção das sociedades entre elas, é pelas inumeráveis coincidências
entre evoluções nacionais distintas, do ponto de vista da língua,
do direito, da religião, da indústria, das artes, dos costumes: e é
sobretudo pela atenção concedida a essas imitações de homem a
homem, que fornecem a explicação analítica dos fatos de conjunto.
Depois desses longos preliminares, chegou o momento de
expor as leis gerais que regem a repetição imitativa, que estão
para a sociologia como as leis do hábito e da hereditariedade estão
para a biologia, ou as leis da gravitação para a astronomia, e as
leis da ondulação para a física. Mas eu já tratei abundantemente
desse tema numa de minhas obras, As Leis da Imitação, à qual
tomarei a liberdade de remeter aqueles que têm interesse nesse
assunto. Todavia, convém trazer à luz algo que ainda não está
suficientemente claro, a saber, que todas essas leis decorrem, no
fundo, de um princípio superior: a tendência que possui um exem-
26 Do mesmo modo, não foram as comparações pita^óricas entre a matemática e as demais ciências que fizeram a matemática avançar; elas foram estéreis, ao passo que a aproximação entre a geometria e a álgebra, conduzida por Descartes, foi fecunda; mas foi somente a partir da invenção do cálculo infinitesimal, quando se desceu até o elemento matemático indecomponível cujas repetições indefinidas tudo explicam, que a fecundidade matemática apareceu em sua plenitude.
Gabriel Tarde 45
plo, uma vez lançado num certo grupo social, a se propagar nele
segundo uma progressão geométrica se esse grupo permanecer
homogêneo. Não vejo nada de misterioso, aliás, nessa tendência.
Ela significa algo de muito simples: quando, por exemplo, se faz
sentir num grupo a necessidade de exprimir uma nova ideia por
meio de uma nova palavra, o primeiro a imaginar uma expressão
capaz de satisfazer essa necessidade só terá de pronunciá-la para
que, de boca em boca, ela seja repercutida por todos os falantes do
grupo em questão, e para que se espalhe, mais tarde, nos grupos
vizinhos. Isso não quer dizer em absoluto que essa expressão seja
dotada de uma alma que a leva a irradiar-se desse modo, tal como
o físico, ao dizer que a onda sonora tende a espalhar-se pelo ar, não
atribui a essa forma simples uma força própria, ávida e ambiciosa.27
Não, é apenas um modo de falar, que serve para dizer, num caso,
que as forças motoras inerentes às moléculas do ar encontraram
nessa repetição ondulatória um caminho de escoamento; e para
dizer, no outro caso, que a necessidade particular inerente aos
indivíduos humanos do grupo em questão foi satisfeita com essa
repetição imitativa, que poupa sua preguiça (análoga à inércia
material) do esforço que a invenção exige. Seja como for, não há
razão para duvidar dessa tendência à progressão geométrica; na
prática, porém, ela é entravada por obstáculos de vários tipos, e é
raro, embora não seja extremamente raro, que os diagramas esta
tísticos relativos à difusão pública de uma nova invenção industrial
mostrem essa progressão regular. Que obstáculos são esses? Há
aqueles que provêm da diversidade de climas e raças, mas eles
não são os mais fortes; o entrave maior que detém a expansão de
uma inovação social (e sua consolidação em costume tradicional) é
alguma outra inovação igualmente expansiva que ela encontra em
27 Tampouco o naturalista, ao dizer que uma espécie tende a se propagar segundo uma progressão geométrica, encara essa forma simples como possuindo por ela mesma, independentemente do Sol, das afinidades químicas, de todas as energias físicas que ela meramente canaliza, uma energia e uma aspiração independentes.
46 As Leis Sociais
seu caminho, e que, para empregar uma metáfora física, interfere
nela. Com efeito, toda vez que alguém hesita entre duas maneiras
de falar, entre duas ideias, entre duascrenças, entre duas maneiras
de agir, está ocorrendo nele uma interferência de irradiações imi-
tativas, de irradiações imitativas que, a partir de focos diferentes,
muitas vezes distantes um do outro no espaço e no tempo (isto é,
focos de inventores e imitadores individuais primitivos), se pro
pagaram até ele. Como resolver essa dificuldade? Quais serão as
influências decisivas? Essas influências, como já disse, são de dois
tipos: lógicas e extralógicas. É preciso acrescentar que mesmo es
sas últimas são lógicas em certo sentido da palavra; por exemplo,
quando diante de dois exemplos, o plebeu escolhe cegamente o
exemplo do patrício, o camponês escolhe o do citadino, o provin
ciano escolhe o do parisiense. No que eu chamei de cascata de
imitação, que corre de cima para baixo na escala social, por mais
cega que seja a imitação, ela sempre advém de uma presunção de
superioridade daquele que dá o exemplo; o modelo parece possuir,
sobre o imitador, uma autoridade social. Ocorre o mesmo quando,
entre o exemplo de seus ancestrais e o de um inovador estrangeiro,
o homem primitivo prefere sem hesitação o primeiro, que ele julga
infalível; ocorre o mesmo quando, diante do mesmo dilema, o indi
víduo das modernas cidades faz a escolha contrária, convencido a
priori de que o novo é sempre preferível ao antigo. Não obstante,
uma opinião como essa, fundada sobre considerações extrínsecas
à própria natureza dos dois modelos comparados, das duas ideias
ou volições, merece ser cuidadosamente distinguida dos casos em
que a opção é baseada num juízo sobre o caráter intrínseco das
duas ideias ou das duas volições; e é para esse tipo de influências
decisórias que se pode reservar o epíteto de lógicas.
Por ora, nada mais direi, pois no próximo capítulo falaremos
novamente desses duelos lógicos e teleológicos, elementos da
oposição social. Acrescento apenas que as interferências das irra
diações imitativas nem sempre são entraves mútuos; muitas vezes
Gabriel Tarde 47
elas são alianças mútuas e servem para acelerar, para amplificar
essas irradiações; e por vezes elas ocasionam uma ideia genial que
nasce de seu encontro e de sua combinação em um cérebro, como
veremos no capítulo consagrado à adaptação social.
Segundo capítulo
Oposição dos fenômenos
Em termos teóricos, o aspecto-repetição dos fenômenos é
o mais importante. Mas seu aspecto-oposição, em termos
práticos, do ponto de vista das aplicações da ciência,
apresenta um interesse maior. E de Aristóteles até nossos dias,
ele jamais cessou de ser, senão totalmente ignorado, ao menos
confundido na mixórdia das diferenças sem critério.
Aqui, como acima, direi que o progresso das ciências con
sistiu na substituição de um pequeno número de oposições vãs,
grosseiras e superficiais, percebidas ou imaginadas inicialmente,
por oposições sutis e profundas, inumeráveis, penosamente des
cobertas, e na substituição de oposições exteriores por oposições
interiores ao assunto considerado. Esse progresso consistiu tam
bém, devo acrescentar, na eliminação de dissimetrias ou de assi
metrias aparentes e em sua substituição por muitas dissimetrias
e assimetrias ocultas e bem mais instrutivas.
Busquemos as oposições no céu estrelado. 0 dia e a noite,
e inicialmente o Céu e a Terra, foram as primeiras antíteses; delas
viveram as cosmogonias religiosas e os embriões da astronomia
e da geologia nascentes, ou que aspiravam ao nascimento. Depois
surgiram oposições mais verdadeiras, porém ainda mal compreen
didas ou simplesmente subjetivas e superficiais: o zénite e o nadir
(que não passa da antítese do alto e do baixo levada ao extremo), os
quatro pontos cardeais (opostos dois a dois), o inverno e o verão,
a primavera e o outono, a manhã e a tarde, meio-dia e meia-noite,
o quarto crescente e o quarto minguante da Lua, etc. É verdade
que todas essas oposições foram conservadas pela ciência, mas
perdendo muito de sua importância e de sua significação primitivas.
Para nós, o oeste é apenas uma orientação relativa à nossa posição
50 As Leis Sociais
em face da estrela que chamamos de Polar; para um selvagem, o
oeste é o lugar da felicidade póstuma, do descanso eterno das al
mas (que para outros é o leste). Daí decorre a orientação ritual dos
templos e das tumbas. O quarto crescente e o quarto minguante
da Lua certamente não têm, para nós, o sentido imaginário e tão
importante que a superstição dos agricultores primitivos (e a de
nossos camponeses) lhes atribui. De acordo com estes, a lua nova
possui a virtude de fazer crescer rapidamente, e a lua cheia, a de
impedir que cresça qualquer coisa que se plante numa ou noutra
dessas duas fases lunares.28 É um vestígio da distinção antitética
entre dias fastos e nefastos.
Assim, essas oposições foram conservadas, mas com um
caráter superficial e convencional. Outras foram suprimidas: por
exemplo, as oposições entre celeste e terrestre, Sol e Lua; e a im
portância destas e daquelas transferiu-se para outras, bem mais
profundas. Em primeiro lugar, a descoberta da natureza elíptica,
parabólica ou hiperbólica das curvas descritas pelos astros, plane
tas e cometas permitiu compreender a perfeita simetria das duas
metades de cada uma dessas curvas com relação aos dois lados
do eixo central. (Eu chamei a simetria de perfeita, mas existem per
turbações, que são repetições mútuas dessas curvas, umas pelas
outras, no interior de um mesmo sistéma.) Além disso, percebeu-
-se que as elipses planetárias iam crescendo e decrescendo de
maneira alternada, com uma grande regularidade, em função das
oscilações em torno de uma posição de equilíbrio. Enfim, a antítese
astronomicamente profunda, universal, contínua - fundamento de
todas as outras - está na igualdade entre a atração que a massa ou
molécula sofre e aquela que ela exerce. Cada massa atrai e é atraída,
e essa é uma das mais belas ilustrações da lei mecânica de oposi
ção universal, chamada de lei de reação igual e contrária à ação.
28 No original: "La nouvelle lune, suivant ceux-ci, a la vertu de faire pousser rapidement, et la vieille lune d'empêcher de croître tout ce qu'on plante à l'une ou à l'autre de ces deux phases lunaires". (N. do T.)
Gabriel Tarde 51
A física e a química, tal como a astronomia, começaram com
falsos contrários. Os quatro elementos concebidos pelos primeiros
físicos se opunham dois a dois: a água e o fogo, o ar e a terra. Imagi
navam-se antipatias inatas entre determinadas substâncias. Vieram
à luz ideias mais sãs sobre a verdadeira natureza das oposições
físicas e químicas quando se descobriu o caráter de algum modo
oposto dos ácidos e bases, e sobretudo das eletricidades de nome
contrário, assim como a polaridade luminosa. A ideia de polaridade,
que desempenhou um papel tão grande nas teorias físico-químicas,
marcou um enorme progresso sobre as concepções anteriores; e
agora ela mesma está sendo explicada pela noção de ondulação, que
a abrange ou está em vias de abranger. Assim como a luz, o calor
e a eletricidade aparecem como propagações esféricas ou lineares
de vibrações infinitesimais e infinitamente rápidas, a combinação
química tende a ser considerada como um entrelaçamento de ondas
harmoniosamente unidas: mas aqui nós já̂ tocamos nos domínios
da adaptação. Até mesmo a atração foi muitas vezes explicada por
pressões de vibrações etéreas. Seja como for, é evidente que as
gravitações elípticas dos astros, apesar da diferença de dimensão,
são comparáveis às ondas físicas, esse vai-e-vem de moléculas se
gundo elipses muito alongadas, e que nos dois casos existe ritmo
ondulatório. Em suma, podemos ver como o progresso das ciências
estendeu e aprofundou o campo da oposição, substituindo vagas
oposições qualitativas por oposições quantitativas precisas e ritma
das, tecido da teia do mundo. A maravilhosa simetria das formas
cristalinas próprias a cada substância química é a tradução gráfica,
a expressão visual dessas oposições rítmicas entre os inumeráveis
movimentos que a constituem. E não seria precisamente a essa
ritmicidade dos movimentos interiores dos corpos que se deveria
pedir a explicação última da lei de Mendeleev, que nos mostra os
grupos de substâncias formando escalas superpostas e periodica
mente repetidas, teclado ao qual faltam, aqui e ali, algumas teclas
que descobriremos com o passar do tempo?
52 As Leis Sociais
Mas ao mesmo tempo que a evolução das ciências físicas
permitia a descoberta de oposições e simetrias mais profundas,
mais claras, mais explicativas, ela também revelava assimetrias,
arritmias, inoposições ainda mais importantes. Ela mostrou, por
exemplo, que não existe no sistema solar nenhum corpo planetário
que retrograde, que caminhe num sentido inverso ao sentido geral;
apenas alguns satélites constituem exceção. A configuração das
nebulosas que nossos telescópios descobrem é frequentemente
dissimétrica. Se adotarmos as ideias de Stanislas Meunier, não tere
mos a menor razão para pensar que existe simetria entre a evolução
e a dissolução de um sistema solar (se é que existe dissolução),
nem entre a formação das sucessivas camadas geológicas de um
planeta e sua desagregação final. A disseminação dos astros no
céu continua sendo o que era antes do progresso da astronomia: o
que existe de mais caprichoso e pitoresco. Ao contrário, a sublime
desordem desse espetáculo é tanto mais pungente e profunda na
medida em que progride o conhecimento das forças equilibradas,
simetricamente opostas, que parecem constituir tudo isso. Que
astrônomo do presente sonharia, como fizeram os antigos, com
uma Anti-Terra, uma Antichton, onde tudo seria o inverso terrestre?
À medida que conhecemos melhor a geografia de nosso planeta,
ficamos cada vez mais assombrados pela total ausência de simetria
na configuração dos continentes e das cadeias de montanhas, e
a rede pentagonal de Élie de Beaumont já não seduz ninguém. Os
progressos da cristalografia permitiram a observação de dissime-
trias antes desconhecidas, cuja importância foi posta em relevo
pelos trabalhos de Pasteur; mas tudo o que posso fazer é indicar
esse tema.
As oposições grosseiras ou aparentes no mundo vivo - a vida
e a morte, a juventude e a velhice - foram as primeiras a serem nota
das, e também estão entre as mais antigas similitudes constatadas
entre as plantas e os animais, rudimento de uma biologia geral.
Tampouco foi possível deixar de notar a simetria das formas vivas,
Gabriel Tarde 53
tão assombrosa e tão estranha por sua universalidade. Mas também
foram imaginadas várias oposições vitais sem nenhuma realidade
ou valor; pode-se incluir entre estas a oposição entre os anjos e
os demônios, já que ambos foram concebidos como espécies de
animais superiores. Do mesmo modo, para o selvagem, e às vezes
para o iletrado de hoje, a grande oposição entre os vivos está entre
os seres bons e ruins para comer, entre as plantas alimentícias e
as venenosas, entre os animais úteis e os nocivos. Essa oposição
é subjetivamente verdadeira, mas torna-se imaginária a partir do
momento em que é objetivada, como fazem instintivamente os
ignorantes de todas as raças. Durante muito tempo, os médicos
conceberam a saúde e a doença como dois estados precisamente
contrários, e as causas da doença como sendo precisamente in
versas às causas da saúde. No fundo, o erro homeopático nasceu
dessa ilusão. A doença e a saúde, assim concebidas, são entidades
verbais que o progresso da fisiologia dissipou. Longe de se opor
a ele, o desvio patológico é parte do funcionamento fisiológico.
Também a dissolução individual foi encarada como o inverso da
evolução, e a velhice, como o retorno da infância. Esse ponto de
vista só pôde ser totalmente eliminado depois que a embriologia
nos permitiu conhecer a travessia de uma série de formas ances
trais que, evidentemente, nada têm de inversamente análogo às
fases do declínio senil.
Muito tempo depois que as ciências da vida começaram a
se constituir, os fisiologistas imaginaram uma oposição, factícia e
científica ao mesmo tempo, entre a animalidade e a vegetação: para
eles, a respiração animal é precisamente o inverso da respiração
vegetal e destrói o que esta produz (a combinação de oxigênio e
carbono). A fisiologia comparada, por meio dos trabalhos de Claude
Bernard e outros, demonstrou o caráter superficial dessa inversão e
a unidade fundamental da vida nos dois reinos, que não são opostos
29 Ver a esse respeito a tese de GeorgesCanguilhem:ONorma/eoPafofóg/co, Rio de Janeiro,
Ed. Forense Universitária. (N. doT.)
54 As Leis Sociais
e sim divergentes. Em compensação, o progresso do saber substi
tuiu essas oposições falsas ou vagas, que opunham entre si grupos
de seres, seres ou entidades de um mesmo ser, por inumeráveis e
infinitesimais oposições - inteiramente reais - na intimidade dos
tecidos, como a oposição entre a oxidação e a desoxidação de cada
célula, ou entre a acumulação e o gasto de energia. Também aqui,
a oposição mostrou-se muito mais fundamental e fecunda sob a
forma do ritmo do que sob a forma da luta.
Ao mesmo tempo, porém, vieram à luz dissimetrias novas
e mais dissimuladas: para citar apenas um exemplo, o estudo das
funções cerebrais, que permitiu localizar a faculdade da linguagem
no hemisfério esquerdo, estabeleceu uma dissimetria funcional
extremamente importante entre as duas metades do cérebro. Não
é o único caso em que a simetria da forma entre órgãos correspon
dentes nas duas metades do corpo — mão direita e esquerda, olho
direito e esquerdo, etc. — mascara a dissimetria ou a assimetria
profunda de sua função. Além disso, como já notei anteriormente,
a muito antiga e especiosa ideia teórica segundo a qual a dissolu
ção dos seres vivos, dos tipos viventes, havia de ser exatamente
o oposto de sua evolução, teve de desaparecer diante dos pro
gressos da observação. E seja nos indivíduos, seja nas espécies,
essa ausência de simetria entre os dois lados da vida, ascensão e
descenso, tem um sentido profundo: ela tende a provar que a vida
não é um simples jogo, apenas uma gangorra de forças por assim
dizer, mas uma marcha à frente, e que a ideia de progresso não é
um discurso vão. Ela tende a nos fazer considerar a oposição dos
fenômenos, suas simetrias, suas lutas e também seus ritmos, tal
como suas repetições, como simples instrumentos do progresso,
como termos médios.
A sociologia dá lugar a considerações análogas. Na origem
(pois, sob certos aspectos, ela é bastante antiga), a sociologia
começou como mitologia; e foi mitologicamente que ela se pôs a
explicar toda a história por meio de lutas fantásticas, guerras ima
Gabriei Tarde 55
ginárias e gigantescas entre deuses bons e deuses maus, deuses
da luz e deuses da noite, heróis e monstros. Os metafísicos, assim
como as mitologias, abusaram dos combates; também eles imagi
naram oposições seriais, diretas e retrógradas, desenvolvimentos
da humanidade em um sentido seguidos por desenvolvimentos
em sentido inverso. Aqui, Platão e os filósofos hindus deram-se
as mãos. Hegel, com suas ambiciosas generalizações, com sua
classificação dos povos sob o estandarte de ideias antagonistas,
e Cousin, com sua antítese imaginária entre o Oriente-infinito e a
Grécia-finita, também são excelentes espécimes das antinomias
sociológicas do passado. Tudo isso foi dissipado e ninguém mais
se dá ao trabalho de opor - sobretudo depois da surpreendente
europeização do Japão em alguns anos - a pretensa imutabilidade
inata dos asiáticos à pretensa progressividade inata dos europeus.
Os economistas já prestaram um valoroso serviço à ciência
social substituindo a guerra, como fator-chave da história, pela
concorrência, espécie de guerra não apertas adocicada e atenu
ada, mas ao mesmo tempo reduzida e multiplicada. Por fim, se
nosso ponto de vista for adotado, será preciso considerar que,
no âmago daquilo que os economistas chamam de concorrência
dos consumidores ou dos coprodutores, existe uma concorrência
de desejos e de crenças; e se essa luta que constatamos entre
as formas industriais for generalizada e estendida a todas as
formas linguísticas, religiosas, políticas, artísticas e morais da
vida social, veremos que a verdadeira oposição social elementar
deve ser buscada no próprio seio de cada indivíduo social sem
pre que ele hesita entre adotar ou rejeitar um novo modelo que
lhe é proposto: uma nova locução, um novo rito, uma nova ideia,
uma nova escola de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa
pequena batalha interna, que se reproduz milhões de vezes a
cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e
infinitamente fecunda da história. Ela introduz em sociologia uma
tranquila e profunda revolução.
56 As Leis Sociais
Mas ao mesmo tempo, e ainda a partir desse ponto de vista,
revela-se o caráter simplesmente auxiliar e subordinado da oposição
social, mesmo sob sua forma psicológica; e isso decorre da colo
cação em evidência de muitas assimetrias ou dissimetrias que não
aparecem de imediato. Tive de traçar uma distinção (que quase não
encontrou opositores) entre o reversível e o irreversível em todas as
categorias de fatos sociais, e ficou estabelecido que o irreversível era
sempre o mais importante: por exemplo, a série de descobertas da
ciência ou da indústria. Vemos aqui acentuar-se, em virtude dessas
oposições psicológicas inumeráveis que compõem a vida de todo
indivíduo social, sua originalidade individual, seu gênio próprio que
a nada se opõe; e tudo aquilo que chamamos de gênio de um povo,
ou se preferirmos, o gênio de uma língua, o gênio de uma religião,
é sua expressão coletiva e abreviativa. Também vemos efetuar-se,
pelo próprio jogo dessas pequenas oposições infinitesimais que
acabei de mencionar, o lado estético da vida social, pelo qual ela
não é comparável ou oponível a coisa alguma.
Mas tudo isso não passa de um esboço bastante incompleto;
é preciso adentrar mais intimamente esse tema, tão pouco explo
rado e tão relevante. Ponhamo-nos de acordo, em primeiro lugar,
a respeito dos diversos sentidos dessa palavra: oposição. Vou
permitir-me retomar aqui a definição e a classificação que propus no
meu livro sobre a oposição universal. Façamos um resumo de nosso
ponto de vista atual. A oposição é vulgarmente — e erradamente —
concebida como um máximo de diferença. Ela é, na realidade, uma
espécie muito singular de repetição, a de duas coisas semelhantes
que tendem a destruir-se entre si precisamente em virtude de sua
semelhança. Os opostos, os contrários, formam sempre um par,
uma dualidade, e não são oponíveis enquanto seres ou grupos de
seres, sempre dessemelhantes e de algum modo sui generis, e nem
mesmo como estados de um mesmo ser ou de seres diferentes,
mas como tendências, como forças; pois a razão de percebermos
determinadas formas ou estados como opostos (o côncavo e o
Gabriel Tarde 57
convexo, o prazer e a dor, o frio e o quente) é a contrariedade real
ou suposta das forças pelas quais esses estados foram produzidos.
Vemos que é preciso eliminar de saída, como pseudo-oposições que
são, todas as antíteses das mitologias ou das filosofias da história
fundadas sobre pretensas contrariedades de natureza, entre dois
povos, duas raças, duas formas de governo: por exemplo, entre a
república e a monarquia (ver, a esse respeito, certos hegelianos),
entre o ocidente e o oriente, entre duas religiões (cristianismo e
islamismo), entre duas famílias de línguas inatas (línguas semíticas
e línguas indo-europeias). Esses contrastes são acidentalmente e
parcialmente verdadeiros se encararmos as maneiras pelas quais
essas coisas, em circunstâncias mais ou menos passageiras, afir
mam e negam a mesma ideia, desejam e repelem o mesmo alvo;
mas esses mesmos contrastes são quiméricos se julgarmos, tal
como pareciam acreditar muitos filósofos antigos, que a antipatia
recíproca entre essas coisas é essencial, absoluta, inata.
Toda oposição verdadeira implica, portanto, uma relação
entre duas forças, duas tendências, duas direções. Mas os fenôme
nos pelos quais essas forças se realizam podem ser de dois tipos:
qualitativos e quantitativos, ou seja, eles podem ser formados
por fases heterogêneas ou por fases homogêneas. Uma série de
fases heterogêneas é uma evolução qualquer, que sempre pode
ser concebida (erradamente ou não) como reversível, como sus
cetível de retrogradar seguindo o caminho exatamente inverso.
Por exemplo, um químico extrai aguardente de uma planta por
meio de uma série de operações químicas, o que não quer dizer
que será possível reconstituir a planta; mas se não é possível, é
ao menos imaginável. Esse é o sonho dos antigos filósofos no que
concerne às transformações da humanidade. Uma série de fases
homogêneas constitui essa evolução de tipo especial que se chama
aumento ou diminuição, crescimento ou declínio, alta ou baixa.
Não é necessário entrar em detalhes para notar que cada vez mais
oposições dessa ordem, precisas e mensuráveis, vão se revelando
58 As Leis Sociais
à medida que a ciência social se desenvolve com a civilização: as
cotações da Bolsa, os diagramas estatísticos onde a alta e a baixa
deste ou daquele valor - a alta e a baixa deste ou daquele gênero
de criminalidade, do suicídio, da natalidade, dos matrimônios,
da previdência medida pelas flutuações dos livros contábeis dos
bancos ou das seguradoras, etc. - são registrados sob a forma de
curvas ondulatórias.
Eu acabo de distinguir as oposições de série (evolução e
contra-evolução) das oposições de grau (aumento e diminuição).
Mais importante ainda é a categoria das oposições de signo ou, se
preferirmos, oposições diametrais. Embora elas sejam confundidas
com as anteriores na linguagem matemática, na qual o mais e o
menos simbolizam tanto o contraste entre o positivo e o negativo
quanto o contraste entre o aumento e a diminuição, é preciso notar
que o crescimento e a diminuição alternados de uma mesma força
dirigida no mesmo sentido constituem uma oposição muito diferen
te daquela em que, dadas duas forças situadas numa mesma linha
reta, uma se dirige de A para B e a outra de B para A. Do mesmo
modo, a oposição entre o crescimento e a diminuição do crédito
não deve ser confundida com a oposição entre esse crédito e uma
dívida de igual valor; e a maior ou menor inclinação ao roubo e
ao crime, numa sociedade, é bem diferente da antítese entre essa
inclinação e a inclinação à generosidade e à filantropia. Para dar
de imediato uma explicação psicológica desses e de tantos outros
contrastes sociais, notemos que o aumento e a posterior diminuição
de nossa crença afirmativa em uma ideia (religiosa ou científica,
jurídica ou política) são coisas completamente diferentes da afir
mação e posterior negação dessa mesma ideia; e que o aumento e a
posterior diminuição do nosso desejo por um objeto, por exemplo,
nosso amor por uma mulher, é completamente diferente do desejo
por um objeto e sua posterior repulsa (nosso amor e depois nosso
ódio por uma mesma mulher). É verdadeiramente curioso constatar
que essas quantidades subjetivas, crença e desejo, comportam dois
Gabriel Tarde 59
signos opostos, um positivo, outro negativo, e que elas são real
mente comparáveis às quantidades objetivas, às forças mecânicas
dirigidas em sentidos opostos ao longo de uma mesma linha reta.
0 espaço é constituído de modo a comportar uma infinidade de
pares de direções opostas entre si, e nossa consciência é consti
tuída de modo a comportar uma infinidade de afirmações opostas
a negações, uma infinidade de desejos opostos a repulsões (tendo
precisamente o mesmo objeto). Sem essa dupla singularidade,
cuja coincidência é singular, o Universo não conheceria a guerra
e a discórdia, e todo o lado trágico da vida seria tão inconcebível
quanto impossível.
Observação essencial: sejam quais forem as oposições (de
séries, degraus ou de signos), elas podem ocorrer seja entre termos
realizados num mesmo ser (uma mesma molécula, um mesmo
organismo, um mesmo eu), seja entre dois seres diferentes (duas
moléculas ou duas massas, dois organismos, duas consciências
humanas). Mas é importante distinguir cuidadosamente esses dois
casos; e é importante, em primeiro lugar, do ponto de vista de outra
distinção não menos essencial, que consiste em não confundir os
casos em que os termos são simultâneos e aqueles em que eles
são sucessivos. No primeiro caso, existe choque, luta, equilíbrio;
no segundo, existe alternância, ritmo. No primeiro caso, há sempre
destruição e perda de força; no segundo, não. Ora, quando eles se
produzem no interior de dois seres diferentes, as oposições, sejam
elas de séries, de graus ou de signos, podem ser simultâneas ou
sucessivas, lutas ou ritmos; mas quando seus termos pertencem
a um mesmo ser, a um mesmo corpo ou a um mesmo eu, elas não
podem ser ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas a não ser
que sejam oposição de signos. Quanto às oposições de séries e
de graus, nessa hipótese, elas só comportam termos sucessivos,
alternativos. Por exemplo, não é possível que a velocidade de um
móvel numa mesma direção aumente e diminua ao mesmo tem
po; isso só é possível sucessivamente; mas pode ser que ele seja
60 As Leis Sociais
animado por duas tendências distintas, que se dirigem em sentidos
contrários: é o caso do equilíbrio, muitas vezes simbolizado pela
simetria de formas opostas, notadamente nos cristais. Do mesmo
modo, não é possível que o amor de um homem por uma mulher
esteja ao mesmo tempo em vias de aumentar e de diminuir, o que
só é possível alternativamente; mas pode ser que ele, ao mesmo
tempo, ame e odeie essa mulher, antinomia do coração realizada
em tantos crimes passionais. Não é possível que a fé religiosa de
um homem cresça e diminua ao mesmo tempo, isso só é possível
sucessivamente; mas pode ser que ele carregue ao mesmo tempo
em seu pensamento, muitas vezes sem perceber, a afirmação enér
gica e a não menos enérgica negação implícita de certos dogmas, a
afirmação simultânea de certa crença cristã e de certo preconceito
mundano ou político que nega essa crença. Por fim, é evidentemente
impossível que a mesma molécula passe ao mesmo tempo por uma
série de transformações químicas e pelas transformações inversas,
ou que o mesmo homem perceba a um só tempo, em dois sentidos
opostos, a mesma série de estados psicológicos, o que só seria
possível sucessivamente. Ao contrário, nada é mais habitual do
que ver simultaneamente, num sistema de corpos, astronômicos
ou outros, um corpo que vai do afélio ao periélio enquanto outro
vai do periélio ao afélio, ou um corpo que acelera enquanto outro
desacelera; e nada é mais ordinário do que ver, numa sociedade,
uma pessoa cuja ambição ou fé aumenta enquanto essa mesma
ambição e essa mesma fé diminuem em outra; ou então uma pessoa
que, fazendo uma viagem circular, atravessa uma série de sensa
ções visuais, enquanto outra pessoa, fazendo o itinerário inverso,
percorre na ordem contrária essa mesma gama de sensações.
A discussão de cada uma das espécies de oposições apre
sentadas aqui nos levaria demasiadamente longe. Limitemo-nos
a algumas considerações gerais. Em primeiro lugar, se existem
oposições exteriores (chamemos assim as oposições de tendência
entre muitos seres, entre muitos homens); elas só são possíveis
Gabriel Tarde 61
porque existem ou podem existir oposições internas (entre tendên
cias diferentes de um mesmo ser, de um mesmo homem). Isso se
aplica às oposições de séries e de graus tal como às oposições de
signos, mas sobretudo a estas. Se existem homens ou grupos de
homens que evoluem num sentido, enquanto outros homens ou
grupos de homens evoluem no sentido inverso, por exemplo, do
naturalismo ao idealismo em matéria de arte, ou do idealismo ao
naturalismo - ou do regime aristocrático ao regime democrático
ou da democracia à aristocracia, etc. - é porque cada homem pode
evoluir e contraevoluir dessa maneira. Se existem povos e classes
em que a fé religiosa aumenta, ao passo que em outros povos e
em outras classes ela diminui, é porque a consciência de cada
homem comporta aumentos e diminuições de intensidade de uma
crença. Enfim, se existem partidos políticos ou seitas religiosas que
afirmam e desejam precisamente o que outros partidos e seitas
negam e rejeitam, é porque o espírito e o coração de cada homem
são suscetíveis de conter o sim e o não, o “a favor e o contra , a
propósito de uma mesma ideia ou de um mesmo desígnio.
Ao dizer isso, estou longe de querer identificar as lutas
exteriores com as lutas internas. Em certo sentido, elas são in
compatíveis; com efeito, somente quando a luta interna chegou
ao fim - quando o indivíduo, depois de ter sido lacerado por
influências contraditórias, fez sua escolha e adotou determinada
opinião ou resolução de preferência a outras, estabelecendo a
paz em si mesmo - é que a guerra entre ele e os indivíduos que
fizeram uma escolha oposta se torna possível. Isso não basta,
entretanto, para fazer a guerra eclodir. Para tal é preciso, além
disso, que esse indivíduo saiba que os outros indivíduos fizeram
uma escolha contrária à dele. Sem isso, seria como se não existisse
a oposição exterior dos contrários, simultâneos ou sucessivos,
pois ela não apresentaria em absoluto as características de uma
luta exterior que a tornaria realmente eficaz. Para que haja uma
guerra ou luta religiosa, é preciso que cada fiel de um culto saiba
62 AsLeisSociais
que os fiéis de outro culto negam exatamente o que ele afirma, e é
preciso que essa negação (que não é adotada imitativamente, mas
ao contrário, repelida por ele) se justaponha na sua consciência à
sua própria afirmação, cuja intensidade é, desse modo, redobrada.
Por exemplo, para que exista concorrência econômica entre os
candidatos a compra de uma casa, é preciso que cada um deles
saiba que sua vontade de possuir esse imóvel é contrariada pelos
seus competidores, que querem que ele não a possua; e ele irá
querê-la com ainda mais força ao saber que seus competidores não
querem que ele a possua. Sem essa condição, a concorrência nela
mesma será estéril, e os economistas erraram ao não distinguir de
maneira suficientemente clara os casos em que não há, entre os
concorrentes, consciência de sua concorrência, e a medida muito
variável dessa consciência, os graus infinitos que a separam da
inconsciência completa.
Eis porque eu tinha razão ao dizer que é preciso buscar a
oposição social elementar, porém não, como se poderia acreditar
à primeira vista, na relação entre dois indivíduos que se contra
dizem ou se contrariam, e sim nos duelos lógicos e teológicos,
nos combates singulares de teses e antíteses, de quereres e não-
-quereres30 cujo teatro é a consciência do indivíduo social. Sem
dúvida é possível que me perguntem: mas então qual é a diferença
entre a oposição simplesmente psicológica e a oposição social?
Ela é diferente em virtude de sua causa e, sobretudo, pelos seus
efeitos. Em virtude da causa: um solitário recebe em seus sentidos
duas percepções aparentemente contraditórias, e hesita entre
dois juízos sensitivos: um que lhe diz que determinada mancha
vista a distância é um lago, outro que lhe diz o contrário; eis uma
oposição interna cuja origem é inteiramente psicológica, e que é
um caso infinitamente raro. Pode-se afirmar sem medo de errar
30 No original,"de vouloirs et de nouloirs" (grifo do autor). 0 termo nouloiré um neologismo de Tarde que imita a palavra latina no/o (infinitivo nolle). A palavra noto significa “não querer"e é formada por ne (não) e volo, velle (querer). (N. do T.)
Gabriel Tarde 63
que todas as dúvidas e hesitações de que sofre o mais isolado
dos homens, nascido na mais selvagem das tribos, devem-se a
um encontro nele ocorrido, seja entre dois raios de exemplos que
vieram interferir em seu cérebro, seja pelo cruzamento entre um
raio de exemplos e uma percepção dos sentidos. Ao escrever, eu
hesito frequentemente entre duas locuções sinônimas, e cada
uma delas apresenta-se como preferível à outra na circunstância
dada: aqui, dois raios imitativos interferiram em mim, ou seja,
duas séries de homens que, a partir do primeiro inventor de uma
dessas palavras e do primeiro inventor da outra, chegaram até
mim. Pois eu aprendi cada uma dessas palavras de um indivíduo
que a aprendeu de outro, e assim por diante, remontando até o
primeiro indivíduo que a pronunciou. (Mais uma vez, é isso que eu
chamo de raio imitatiuo\ e a totalidade de raios desse gênero, pro
venientes de um inventor, de um iniciador, de um inovador qual
quer cujo exemplo se propagou, é o que eu chamo de irradiação
imitativa. A vida social se compõe de um denso entrecruzamento
de irradiações desse gênero, entre as quais ocorrem inumeráveis
interferências.) Outros exemplos: eu sou juiz e hesito entre uma
opinião que se funda sobre uma série de decisões baseadas nas
orientações de determinado autor, por exemplo, Marcadé ou De-
molombe, e uma opinião oposta que se apoia numa outra série
de decisões emanadas de tal outro comentador; mais uma vez,
interferência entre dois raios imitativos. A mesma coisa acontece
quando eu hesito entre o gás e a eletricidade para iluminar meu
apartamento. Mas quando um jovem camponês, diante do pôr do
sol, não sabe se deve acreditar na palavra de seu professor (que
lhe assegura que o cair da noite deve-se a um movimento da Terra
e não do Sol) ou no testemunho de seus sentidos, que lhe dizem
o contrário, existe um único raio imitativo que, por intermédio
de seu professor, liga-o a Galileu. Tanto faz, pois isso basta para
que sua hesitação, sua oposição interna e individual, seja social
em virtude de sua causa.
64 As Leis Sociais
Mas é sobretudo pelos seus efeitos (ou melhor, por sua inefi
cácia) que a oposição simplesmente individual difere da oposição
social elementar, que também é, entretanto, individual. Por vezes a
hesitação do indivíduo permanece encerrada nele, e não se propaga
(nem tende a se propagar) imitativamente entre seus vizinhos; nes
se caso, o fenômeno permanece puramente individual. Na maioria
dos casos, porém, a própria dúvida é quase tão contagiosa quanto
a fé, e todo aquele que devém cético num meio fervoroso logo se
tornará o foco de um ceticismo que irá irradiar-se ao seu redor:
será possível, nesse caso, negar o caráter social do estado de luta
interna que caracteriza cada um dos indivíduos desse grupo?
Mas encaremos a questão de uma forma ainda mais geral.
Quando o indivíduo toma consciência da contradição que existe
entre um de seus julgamentos, propósitos, ideias ou hábitos - dog
ma, fraseado, procedimento industrial, tipo de arma ou ferramenta,
etc. -e um julgamento, propósito, ideia ou hábito de outro homem
ou homens, ele tem três alternativas. Ou ele se deixa influenciar
completamente pelo outro, abandonando bruscamente sua própria
maneira de pensar e agir; nesse caso não houve luta interna, e sim
vitória sem combate: apenas mais um entre os contínuos fenôme
nos de imitação de que é feita a vida social. Ou então o indivíduo
é apenas parcialmente influenciado pelo outro, e esse é o caso
discutido mais acima; depois do choque advém um amortecimento
de sua força, mais ou menos entravada e paralisada. Ou então ele
reàge contra a ideia ou o hábito estrangeiro, contra a crença ou
a vontade que o afronta, e passa a afirmar ou querer ainda mais
energicamente o que ele já afirmava e queria. Mas nesse último
caso, em que ele tensiona todas as energias de sua convicção ou
de sua paixão para repelir o exemplo de outrem, haverá nele uma
luta íntima de outro gênero, tão tonificante quanto a anterior era
enervante. Ela também perturba, e ainda mais do que a outra, pre
cisamente porque é uma sobre-excitação (e não uma paralisia) das
forças individuais, apta a espalhar-se contagiosamente; daí a cisão
Gabriel Tarde 65
de uma sociedade em partidos. Um novo partido é sempre formado
por um grupo de pessoas que adotaram, seguindo o exemplo de
outras, uma ideia ou resolução contrária à que reinava até então
em seu meio, e da qual elas mesmas estavam imbuídas. Esse novo
dogmatismo, por outro lado, tornado mais intolerante e mais inten
so à medida que se difunde, suscita contra si a coalizão daqueles
que, fiéis às tradições, fizeram exatamente a escolha contrária; e
aqui teremos, face a face, dois fanatismos.
Seja sob sua forma dogmática e violenta, seja sob sua forma
cética e enervada, a justaposição individual de termos opostos é
social desde que se difunda imitativamente. Se não fosse assim,
nada haveria de social em fatos como estes: a rivalidade entre
duas línguas, o francês e o alemão, ou o francês e o inglês, em
suas respectivas fronteiras, Bélgica, Suíça, ilhas normandas; ou a
rivalidade entre duas religiões igualmente limítrofes. Uma dessas
línguas e uma dessas religiões constantemente sobrepuja a outra
depois de incessantes combates que não ocorrem entre homens
rivais, mas em cada espírito, em cada consciência, entre duas
locuções rivais, entre duas crenças rivais. Haverá algo mais inte
ressante, em termos sociais, do que essas enxurradas linguísticas
e religiosas? Socialmente, tudo provém de oposições psicológicas,
e é preciso voltar sempre a esse ponto. Mas também é verdade
que é extremamente importante evitar a confusão entre essas
duas formas de oposição, uma na qual o combate de dois termos
justapostos tem lugar no próprio indivíduo, e outra na qual o indi
víduo simplesmente adota um dos termos opostos (embora ambos
estejam justapostos nele), e onde o combate, por conseguinte, só
tem lugar nas suas relações com outros homens. A esse respeito
podemos nos perguntar, como fiz há muito tempo em um de meus
primeiros artigos,31 o que seria pior para uma sociedade: estar
dividida em partidos ou seitas que se combatem em virtude de
S1 Artigo posteriormente reproduzido no meu livro Lois de 1'lmitation (primeiro capítulo, quase in fine).
66 As Leis Sociais
seus programas e dogmas opostos, em povos que guerreiam, ou
ser composta por indivíduos em paz uns com os outros, mas cada
qual, individualmente, em luta consigo mesmo, presa do ceticismo,
da irresolução ou do desencorajamento. Valerá mais essa paz de
superfície que oculta um surdo e contínuo estado de guerra das
almas consigo mesmas, ou diremos que as guerras mais mortíferas,
as próprias guerras religiosas e todós os acessos de delírio político
nas mais sangrentas revoluções são preferíveis a esse torpor? Se
nós só tivéssemos escolha entre essas duas soluções, teríamos de
confessar que o problema social seria estranhamente árduo. Mas
não parece que é exatamente assim, já que os homens, tão logo
cessam momentaneamente de guerrear nos campos de batalha e
de combater acirradamente na arena da concorrência industrial
ou da competição política, recaem na doença profunda das al
mas ansiosas, indecisas, desencorajadas, hesitantes entre seus
sacerdotes e seus doutores que se contradizem, entre as velhas
máximas de uma moral respeitada da boca para fora e as práticas
contrárias de uma moral que ainda não ousa formular-se? E não é
patente que, quando os homens põem fim ao seu esquartejamento
interior, aos seus contínuos tremores, aos empuxos de doutrinas e
de condutas contraditórias, será para alinhar-se em dois campos, de
acordo com as diferentes opções que fizeram, e pôr-se a guerrear?
Só nos restaria escolher entre a guerra exterior ou a luta interna.
Esse seria o dilema apresentado aos derradeiros sonhadores da
paz perpétua, entre os quais me incluo.
Felizmente, a verdade é menos triste e menos desesperadora.
A observação mostra que todo estado de luta, exterior ou interior,
sempre aspira (e acaba chegando) a uma vitória definitiva ou a um
tratado de paz. No que concerne à luta íntima, seja qual for o nome
que lhe dermos - dúvida, irresolução, angústia, desespero - isso é
evidente: aqui, a luta sempre aparece como uma crise excepcional
e passageira, e ninguém pensaria em considerá-la como um estado
normal, ou julgá-la preferível, com suas dolorosas agitações, à paz
Gabriel Tarde 67
pretensamente amolengada do trabalho regular, sob o império de
um juízo bem assentado e de uma vontade decidida. Mas será di
ferente no que concerne à luta exterior, à luta entre os homens? A
história, se bem compreendida, mostra que a guerra evolui sempre
num certo sentido, e que essa direção, cem vezes reproduzida e
fácil de distinguir através dos tortuosos emaranhados históricos,
nos faz prever sua gradual rarefação e sua futura desaparição. Com
efeito, em consequência da irradiação imitativa, que trabalha, por
assim dizer, incessante e subterraneamente para estender o campo
social, os fenômenos vão se estendendo; e a guerra participa desse
movimento. De uma multidão infinita de guerras muito pequenas,
porém atrozes, entre pequenos clãs, passa-se a um número bem
menor de guerras um pouco maiores, porém menos odientas, entre
pequenas cidades, e depois entre grandes cidades, e depois entre
povos cada vez mais populosos, e chega-se, enfim, a uma era de
conflitos muito grandiosos e raros, porém sem nenhuma ferocidade,?
entre colossos nacionais cuja própria grandeza torna pacíficos.
Detenho-me para notar que, por causa dessa passagem do
pequeno ao grande, do pequeno muito numeroso ao grande extre
mamente raro, a evolução da guerra, e de todo fenômeno social
em geral, parece contradizer a evolução das ciências tal como vem
sendo exposta aqui. No entanto, ela constitui, de fato, sua contra
prova e confirmação. É justamente porque tudo no mundo dos fatos
caminha do pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho
invertido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno e,
pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares verda
deiramente explicativos em último lugar.
Retornemos. Em cada uma de suas etapas, em cada uma de
suas extensões, que são acima de tudo apaziguamentos, a guerra
diminuiu, ou ao menos transformou-se de maneira favorável ao
seu ulterior desaparecimento. Cada crescimento dos Estados,
das tribos às cidades, das cidades aos reinos, impérios, imensas
federações, significou a supressão dos combates numa região cada
68 As Leis Sociais
vez mais extensa. Ainda em nossa época, há sempre sobre a Terra
regiões, mesmo que estreitas - um vale oprimido entre montanhas,
uma grande ilha, um fragmento bem recortado de uma superfície
continental, mais tarde o contorno de um mar interior - que foram
percebidas durante muito tempo por seus habitantes como uma
espécie de universo distinto; e quando esse pequeno universo foi
enfim pacificado por uma série de conquistas que reuniram todas
as localidades sob um mesmo jugo, parecia que o alvo derradeiro,
a finalidade sempre buscada - a pacificação universal - havia sido
atingida. Tinha-se enfim um momento de repouso no império dos
faraós, no Império Chinês, entre os Incas do Peru, em certas ilhas do
Pacífico, no Império Romano. Infelizmente, essa meta fascinante re
cuava assim que era vislumbrada, e a Terra mostrava-se bem maior
do que se acreditava anteriormente; estabeleciam-se relações, que
logo se tornavam beligerantes, com vizinhos poderosos de cuja
existência não se havia suspeitado, e que precisavam ser conquis
tados, ou pelos quais era preciso ser conquistado, para assentar
definitivamente a paz no mundo. A continuação das guerras é, em
resumo, a extensão gradual do domínio da paz. Mas essa extensão
não poderia ser indefinida; essa miragem ansiosa não poderia ser
um perpétuo tormento, já que o globo terrestre possui limites e que
estes já foram, há muito tempo, circunavegados. O que caracteriza
nossa época, e em certo sentido torna-a profundamente diferente
de todo o passado (embora as leis da história se apliquem a ela tal
como outrora), é que pela primeira vez a política internacional dos
grandes estados civilizados já não abrange em suas preocupações,
como antigamente, apenas um continente ou dois, mas a totalidade
do globo, e que assim se desvela o termo último da evolução da
guerra, perspectiva tão deslumbrante que mal ousamos acreditá-la,
perspectiva de um alvo certamente difícil de realizar, mas também
muito real; um alvo incapaz de decepcionar e que, uma vez próximo,
não poderia mais retroceder. Não existe aí algo capaz de eletrizar
todos os corações? Depois de ter estabelecido a Paz nos limites de
Gabriel Tarde 69
um rio como o Nilo ou o Amur, ou no litoral de um pequeno mar,
depois de ter sido (como demonstrou Metchnikoff, e como as leis
da irradiação imitativa explicam maravilhosamente) pluvial e me
diterrânea, a civilização se torna oceânica, isto é, planetária; e é
agora, com o encerramento da época de suas crises de crescimento,
que sua grande floração poderá começar.
E verdade que, mesmo que terminem as guerras, não terão
fim as lutas dolorosas entre os homens. Existem outras formas de
luta, e uma das principais entre elas é a concorrência. Mas também
se pode aplicar à concorrência - oposição de ordem econômica e
não mais política - o que acaba de ser dito. Como a guerra, a con
corrência vai do pequeno ao grande: do muito pequeno e muito
numeroso ao muito grande e muito pouco numeroso. A concorrên
cia, desde seu início, se apresenta sob três formas: a concorrência
entre consumidores do mesmo artigo, a concorrência entre os
produtores de um mesmo artigo, e a concorrência entre produtor e
consumidor, entre vendedor e comprador do mesmo artigo. Afinal,
se os artigos são diferentes, não há nenhuma oposição recíproca
dos desejos; há antes adaptação recíproca, quando os artigos são
suscetíveis de serem trocados entre si.
Mas já que estamos tocando aqui num tema dos mais deli
cados, e que não convém abordar por enquanto a não ser por um
aspecto especial, para além de qualquer opinião preconcebida,
coletivista ou outra qualquer, façamos em primeiro lugar algumas
observações de uma veracidade sem margem para dúvidas. Con
corrência é uma palavra ambígua que significa - ao mesmo tempo
ou alternadamente - concurso e luta, e é por isso que se eterniza a
disputa entre aqueles que, por enxergarem nessa coisa equívoca
apenas o seu aspecto de oposição, com razão a maldizem, e aque
les que, encarando-a pelo seu aspecto de adaptação, louvam-na
igualmente com razão, por causa das invenções civilizatórias que
ela suscitou. Mas é sob seu aspecto desfavorável que nós iremos
considerá-la aqui.
70 As Leis Sociais
O combate e a contradição não são em absoluto essenciais
aos desejos dos diversos consumidores ou dos diversos produtores
de um mesmo objeto, e nem mesmo aos desejos de consumidores
e produtores quando confrontados entre si. Produtor e comprador
estão sempre de acordo na medida em que um quer comprar o que
o outro quer vender; nem sempre pelo mesmo preço, é verdade,
mas sempre há um preço com o qual concordarão e que encerrará
o debate entre eles. Os desejos dos produtores tampouco estão em
contrariedade na medida em que cada um deles tem sua clientela
e seus canais de distribuição que, tal como a produção, momen
taneamente não serão capazes de expandir-se; eles só se tornam
contraditórios à medida que os meios de produção se expandem
e que cada um deles deseja produzir mais e apropriar-se da pro
dução do outro. É verdade que a civilização acarreta um aumento
constante dos meios de produção, e que, sendo assim, essa luta
entre coprodutores é inevitável e deve tornar-se cada vez mais viva.
Quanto aos desejos dos consumidores de um determinado artigo, é
possível dizer que, longe de se prejudicarem mutuamente, aqueles
que competem pela compra de um mesmo artigo em geral se aju
dam mutuamente, desde que a produção desse artigo seja capaz
de acompanhar o aumento da demanda: pois quanto mais houver
pessoas desejosas de comprar bicicletas, mais o preço das bici
cletas irá baixar. Os desejos dos consumidores só estão realmente
em contradição naqueles casos - como acontece frequentemente
com os artigos de primeira necessidade, bem como com os artigos
de luxo - em que o número de exemplares da coisa desejada não
consegue suprir a demanda e tampouco pode multiplicar-se tão
rapidamente quanto se multiplicam, pelo contágio da moda, os
desejos que ela suscita.
Dito isso, e voltando à ideia que apresentamos há pouco,
notemos que cada uma das três espécies de concorrência distin
guidas aqui está em conformidade com a lei indicada. As pequenas
barganhas entre vendedor e comprador, em todos os mercados
Gabriel Tarde 71
primitivos, são incessantes e inumeráveis; pouco a pouco elas
são suprimidas, mas para serem substituídas por essas grandes
barganhas suscitadas, nos mercados municipais, pela fixação da
taxa municipal do trigo e da carne; e quando estas são suprimidas,
é para dar lugar a barganhas ainda maiores, pelas discussões nas
Câmaras onde se debatem projetos de lei que tendem a favorecer,
pela imposição ou supressão de taxas aduaneiras, os interesses
da massa de produtores ou da massa de consumidores nacionais.
As sociedades cooperativas de consumo, isto é, aquelas em que o
consumidor e o produtor se unem, nasceram da necessidade de pôr
fim a essa espécie de concorrência, e se desenvolvem junto com
ela. Também entre compradores a concorrência tende a estender-
-se:32 em todos os mercados primitivos, a competição por um
saco de trigo ou por uma cabeça de gado está restrita a algumas
pessoas; essas inumeráveis pequenas competições, que muitas
vezes culminam em pequenas sociedades especulativas locais,*são substituídas, quando os mercados começam a crescer e a di
minuir em número, por competições maiores, cada vez maiores, e
estas culminam, por sua vez, ora em uniões importantes, como os
sindicatos agrícolas, ora em sociedades especulativas mais vastas,
os trusts e kartells gigantescos que conhecemos.
Mas examinemos a concorrência mais bem estudada, e que
é na realidade a mais intensa, porque é a mais consciente: a dos
produtores entre si. Ela começa com rivalidades inumeráveis entre
pequenos mercadores que disputam mercados minúsculos, origi
nalmente justapostos e praticamente fechados aos demais; mas à
medida que caem as barreiras que os separam, eles se confundem
em mercados maiores e menos numerosos, e também as pequenas
32 Hoje em dia, em épocas de escassez, não há um único saco de trigo no mais remoto vilarejo da Crimeia ou da América que não suscite uma competição, não mais entre vizinhos, como outrora, mas entre mercadores de todas as nações europeias; assim como não existem, em épocas normais, quadros de grandes mestres ou livros antigos no mais obscuro dos castelos franceses cuja aquisição não esteja ameaçada pela concorrência, não de alguns amadores da vizinhança, ou da província, ou mesmo da França inteira, mas de milionários americanos.
72 As Leis Sociais
oficinas rivais se fundem, seja voluntariamente, seja pela força, em
fábricas maiores e menos numerosas, onde o trabalho produtivo,
outrora ciosamente oposto a si mesmo, agora é harmoniosamente
coordenado; e a rivalidade entre essas fábricas reproduz, numa
escala ainda maior, a das oficinas de outrora, até que se chega,
pelo crescimento gradual dos mercados, que tendem a se tornar
um único mercado, a alguns gigantes da indústria e do comércio,
que também rivalizam entre si, a menos que entrem num acordo.
Em resumo, a concorrência se desenvolve em círculos con
cêntricos que vão se ampliando. Mas a ampliação da concorrência
tem como condição e como razão de ser a ampliação da associação.
Da associação ou do monopólio, objetar-se-á. Que seja, mas o mo
nopólio é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema
da concorrência, assim como a unidade imperial é apenas uma das
duas soluções possíveis para o problema da guerra. Um desses pro
blemas pode ser resolvido pela associação dos indivíduos, assim
como o outro pode ser resolvido pela confederação dos povos. De
resto, o próprio monopólio, à força de estender-se, se torna mais
brando, e caso ele se tornasse universal em certas modalidades
de produção (termo ao qual ele tende e que Paul Leroy-Beaulieu
julgou, erroneamente a meu ver, para sempre e absolutamente
inatingível),33 seria provavelmente mais suportável, em certos casos,
33 Um monopólio é sempre parcial e relativo. Sem dúvida, Paul Leroy-Beaulieu tem razão ao dizer que a concorrência jamais chega ao monopólio absoluto e completo, e o exemplo que ele menciona - o das lojas de departamentos - parece, à primeira vista, dos mais sólidos: o BonMarché, por exemplo, depois de ter suprimido a concorrência de tantas lojas pequenas, viu surgir a concorrência do Louvre, do Printemps, da Samarítaine, etc. Mas na realidade, numa certa zona e numa certa medida, cada um desses colossos do comércio monopolizou uma situação disputada por milhares de pequenas lojas; cada uma delas tem sua própria clientela numa região que, por motivos quaisquer de capricho ou de moda, pertence-lhe com exclusividade. Na maioria dos casos, é simplesmente porque elas adquiriram, em relação a determinado artigo, a reputação de oferecer uma qualidade melhor do que seus concorrentes. Na realidade, essa pretensa concorrência entre as lojas de departamentos (que além do mais pode ser temperada ou atenuada por entendimentos entre elas, muito mais fáceis, em função de seu número reduzido, do que entre a infinidade de pequenas lojas que elas substituíram), essa concorrência tende a tornar-se cada vez mais uma simples divisão de trabalho, ou melhor, uma grande repartição de monopólios parciais que elas partilharam ou vão, pouco a pouco, partilhando entre si.
Gabriel Tarde 73
do que o estado de concorrência aguda que ele teria substituído.
A concorrência tende a uma monopolização, ao menos parcial e
relativa, ou a uma associação de concorrentes, tal como a guerra
tende ao esmagamento do perdedor ou a um tratado favorável com
ele, a uma pacificação igualmente parcial e relativa. 0 crescimento
dos Estados conquistadores contribuiu para isso. Estou ciente de
que os grandes Estados modernos, tomando o lugar dos feudos
da Idade Média, fizeram reinar uma paz bastante incompleta, e até
aqui bastante curta, mas cuja extensão e duração vão aumentan
do, tal como os exércitos grandiosos de hoje em dia. Negar que a
concorrência culmine no monopólio (ou na associação) e imaginar
que se está defendendo a concorrência de seus detratores é, ao
contrário, recusar a única desculpa que se poderia alegar: como
se, para defender o militarismo dos ataques de que ele é objeto,
nos esforçássemos para demonstrar que a guerra não produz a
paz depois da vitória. E bem verdade que a guerra só produz a
paz para renascer da própria paz, e numa escala ainda maior; do
mesmo modo, a concorrência só se apazigua momentaneamente
na associação para renascer da própria associação, sob a forma de
rivalidades entre associações, corporações, sindicatos e assim por
diante; mas chega-se assim, finalmente, a associações gigantes que,
não podendo mais expandir-se, só poderão, depois de travarem
seus combates, associar-se.
Existe uma terceira grande forma de luta social, a discussão.
Ela está sem dúvida implicada nas formas precedentes, mas se a
guerra e a concorrência são discussões, uma é a discussão com
atos mortíferos, e a outra, a discussão com atos ruinosos. Falemos
um pouco da pura e simples discussão que se vale de palavras.
Também ela, quando evolui (pois existem numerosas e pequenas
discussões privadas que não evoluem, e felizmente morrem ao
nascer), evolui da maneira que descrevemos, embora o fenômeno
seja nesse caso mais difícil de perceber. Lembremos que somente
quando a discussão mental entre duas ideias contraditórias pre
74 As Leis Sociais
sentes no mesmo cérebro chegou ao fim é que se torna possível
a discussão verbal entre dois homens que resolveram a questão
de maneiras diferentes. Do mesmo modo, se a discussão verbal
escrita ou impressa que ocorre entre grupos de homens, e entre
grupos cada vez mais extensos, substitui a discussão verbal entre
dois homens, é sob a condição de que ela tenha sido encerrada em
cada um desses grupos por um acordo relativo e momentâneo, por
uma espécie de unanimidade, inicialmente fragmentada em uma
infinidade de pequenas facções, de pequenos clãs, de pequenas
igrejas, de pequenas ágoras, de pequenas escolas que se combatem,
e depois de muitas polêmicas, concentrada em um número muito
pequeno de grandes partidos, de grandes religiões, de grandes
grupos parlamentares, de grandes escolas de filosofia ou arte entre
os quais são travados os supremos combates. Não foi assim que
se estabeleceu, pouco a pouco, a unanimidade católica? Não foi
à custa de discussões muito vivas, às vezes sangrentas, entre os
fiéis de cada igreja local, que se chegou, nos dois ou três primeiros
séculos da Igreja, a um acordo sobre um pequeno credo, que por sua
vez estava em desacordo com o credo das igrejas vizinhas, dando
lugar a colóquios, a concílios provinciais que resolviam as dificul
dades, mas que por vezes se contradiziam e acabavam levando
suas querelas para o seio dos concílios nacionais ou ecumênicos?
A unanimidade política da antiga França monárquica foi produzida
do mesmo modo, e a unanimidade política da nova França, num
sentido democrático, está igualmente em vias de produzir-se. Do
mesmo modo se estabeleceu aquilo que de bom grado eu chamaria
de unanimidade linguistica, ou seja, a unanimidade da língua nacio
nal: posteriormente às rivalidades entre dialetos e provincialismos
rebeldes ao purismo ortodoxo. Também a unanimidade jurídica
se estabeleceu, há muito tempo, de maneira análoga: inumeráveis
costumes locais pacificaram milhares de discussões jurídicas dis
tintas (mas não todas, como o mostram os processos), e depois
esses costumes, conflitantes entre si, foram unificados em alguns
Gabriel Tarde 75
costumes regionais que foram, por sua vez, finalmente substituí
dos por uma legislação uniforme. A unanimidade científica, que se
constituiu lentamente e, em larga medida, por meio de uma série
de discussões (ora encerradas, ora revividas) entre cientistas e
escolas científicas, daria lugar a considerações semelhantes.
Entre todas as formas de discussão, existe uma, a discussão
jurídica (o processo, civil ou comercial), que chama a atenção. Se
ria verdade que também o processo pode ampliar-se, e por causa
dessa ampliação mesma, caminhar em direção à sua pacificação?
Sim - por mais estranha que essa proposição possa parecer à pri
meira vista. Em primeiro lugar, é certo que os processos, entre os
povos primitivos, não diferem das guerras privadas; de fato, sem
a presença soberana do Estado-juiz, a maior parte das diferenças
entre litigantes seria resolvida na base da violência. Os processos
são duelos atenuados, guerras embrionárias. Reciprocamente, as
guerras são processos entre nações, proces§os que seguem seu
desenvolvimento natural em razão da ausência de uma autoridade
supranacional. Assim, se compararmos as querelas judiciais que
hoje ocorrem em nossos tribunais com as querelas medievais, em
que as partes eram campeões armados, ou com as querelas das
tribos germânicas, nos convenceremos de que o ardor litigioso
não cessou de adocicar-se. E eu posso acrescentar que ele se
adocicou por causa de suas próprias ampliações. Pode-se dizer,
com efeito, que as questões jurídicas se ampliaram à medida que
os costumes locais cederam lugar aos costumes provinciais e, por
fim, às leis nacionais; a cada etapa de unificação jurídica, cada
forma de processo, ou seja, cada dificuldade jurídica que dá lugar
a duas interpretações diametralmente opostas, toma um caráter
mais geral. Ora, é generalizando-se dessa forma que cada espécie
de discussão judicial chega finalmente à sua última etapa: uma
decisão da Suprema Corte que elimina novas instaurações desse
gênero de processo. Quantas vezes isso não aconteceu ao longo
de nosso século!
76 /Is Leis Sodais
Poderiam objetar-me, casualmente, que os povos se tornam
cada vez mais discutidores à medida que se civilizam, e que as
discussões públicas, as polêmicas na imprensa e os debates par
lamentares alimentam as discussões verbais privadas em vez de
substituí-las; mas essa objeção não se sustentaria. Se selvagens
e bárbaros discutem pouco - felizmente, já que a maior parte de
suas discussões degenera em brigas e combates - é porque eles,
por assim dizer, não falam e não pensam. Dado o número infinita
mente pequeno de suas ideias, é surpreendente que eles briguem
com tanta frequência; e é espantoso que pessoas com tão poucos
interesses diferentes encontrem tantos motivos para litigar. Por
outro lado, se há uma coisa que mal notamos e que deveria desper
tar nossa admiração, é que exista, em nossas cidades civilizadas,
uma imensa corrente de ideias despertadas em nós pela conver
sação e pela leitura, porém tão poucas discussões, e discussões
tão pouco acaloradas. Deveríamos ficar estupefatos ao ver tantos
homens pensarem e falarem e se contradizerem tão pouco, ao
vê-los agirem tanto e se enfrentarem tão pouco, do mesmo modo
que vemos tão poucos acidentes de trânsito em nossas ruas tão
animadas e apinhadas, ou tão poucas guerras numa época de
relações internacionais tão extensas e complicadas! E o que nos
colocou mais ou menos de acordo a propósito de tantos pontos?
Estas três grandes coisas, elaboradas sucessivamente ao longo de
discussões que duraram séculos: a Religião, a Jurisprudência e a
Ciência. Notemos também que, num país civilizado, as discussões
públicas sobrepujam e muito, em importância, em candente inte
resse e mesmo em vivacidade, as discussões privadas; é o inverso
do que ocorre num país bárbaro. Nossas sessões parlamentares
são de uma violência crescente, ao passo que o tom das discussões
nos cafés e nos salões torna-se cada vez mais doce.
Em resumo, sob suas três formas principais - guerra, concorrência, discussão - a oposição-luta em nossas sociedades humanas mostra-se obediente à mesma lei de desenvolvimento:
Gabriel Tarde 77
apaziguamentos intermitentes e crescentes que se alternam com
retomadas da discórdia, amplificada e centralizada, até o acordo
final, ainda que relativo. A consequência disso - e nós temos
várias outras razões para pensar assim - é que a oposição-luta
desempenha, no mundo social bem como no mundo vivente e no
mundo inorgânico, apenas o papel de um termo médio, destinado a
desaparecer progressivamente, a esgotar-se e eliminar a si mesma
em virtude de seu próprio crescimento, pelo qual ela corre em
direção à sua própria destruição. E chegou o momento de dizer,
ou de redizer mais explicitamente, qual é a verdadeira relação
entre esses três grandes aspectos científicos do universo que eu
denominei de Repetição, Oposição e Adaptação dos fenômenos.
Os dois últimos procedem do primeiro, e o segundo é ordinaria
mente, mas nem sempre, o intermediário entre o primeiro e o
terceiro. É porque as forças físicas se propagam ou tendem a se
propagar em progressão geométrica - em virtucip de sua repetição
ondulatória - que elas interferem entre si, ou então se adaptam e
se combinam; e suas interferências-choques parecem apenas ser
vir para preparar suas interferências-alianças, suas combinações.
É porque as espécies vivas tendem a se propagar em progressão
geométrica - em virtude da repetição hereditária de seus exem
plares individuais - que elas interferem, seja em cruzamentos
bem-sucedidos e fecundos, seja nos combates pela vida tão bem
estudados pelos darwinistas (que só perceberam a interferência
vital pelo seu lado violento, no qual eles viram, com um exagero
evidente, o único ou o principal meio de criação de novas espé
cies, ou seja, de readaptação das antigas espécies). E é também
porque as realidades sociais em geral (um dogma, uma locução,
um princípio científico, uma regra moral, uma prece, um proce
dimento industrial, etc.) tendem a se propagar geometricamente
pela repetição imitativa que elas - com ou sem êxito - interferem,
ou seja, se encontram pelo seu lado dissonante em determinados
cérebros, onde suscitam duelos lógicos e teleológicos, primeiro
78 As Leis Sociais
germe das oposições sociais (guerras, concorrências, polêmicas),
ou então se encontram, pelo seu lado harmonizável, em cérebros
geniais (mas também em cérebros ordinários), suscitando verda
deiras alianças lógicas, invenções, iniciativas fecundas, fontes de
todas as adaptações sociais.
Eis aí os três termos de uma série circular capaz de encadear-
-se sem fim. Pois é repetindo-se por imitação que a invenção - a
adaptação social elementar - se difunde e se fortifica, tendendo,
pelo encontro de uma de suas irradiações imitativas com uma
irradiação imitativa emanada de alguma outra invenção, antiga
ou nova, a suscitar ora novas lutas, ora (diretamente ou por
meio dessas lutas) novas e mais complexas invenções, que em
breve também irão irradiar imitativamente, e assim por diante,
ao infinito. Notemos que tanto o duelo lógico como a síntese ló
gica, tanto o elemento social da oposição-luta como o elemento
social da adaptação têm necessidade da repetição imitativa para
socializar-se, para generalizar-se e crescer. A única diferença é
que a propagação imitativa do estado de discórdia interior entre
duas ideias, ou mesmo do estado de discórdia exterior entre dois
homens que escolheram uma dessas ideias, irá fatalmente sofrer
um desgaste e pôr fim a essa discórdia dentro de um determinado
tempo, pois todo combate é fatigante e culmina numa vitória; en
quanto a propagação imitativa do estado de harmonia (ao mesmo
tempo interno e externo) alcançado pela iluminação de uma nova
verdade, síntese de nossos conhecimentos anteriores e comunhão
de nosso espírito com todos os espíritos que comungam com ela,
não tem razão alguma para deter-se e se fortificará ao avançar. Dos
três termos comparados entre si, o primeiro e o último ultrapassam
largamente o segundo em altura, em profundidade, em importância
e talvez em duração. A única utilidade do segundo, a oposição, é a
de provocar uma tensão das forças antagonistas aptas a suscitar
o gênio inventivo: a invenção militar que, ao dar a vitória a um dos
lados, momentaneamente põe fim à guerra; a invenção industrial
Gabriel Tarde 79
que, adotada ou monopolizada por um dos rivais da indústria, lhe
assegura o triunfo, e momentaneamente põe fim à concorrência; a
invenção filosófica, científica, jurídica ou estética que interrompe
bruscamente inumeráveis discussões, mesmo que seja para dar
origem, mais tarde, a novas discussões. Eis aí a única utilidade,
a única razão de ser da oposição; mas quantas vezes a invenção
pela qual ela clama deixa de atender ao seu chamado! Quantas
vezes a guerra abate o gênio ao invés de estimulá-lo! E quantos
talentos são esterilizados pelas polêmicas da imprensa, pelos de
bates parlamentares, pela vã esgrima dos Congressos! Tudo que
se pode afirmar - e que confirma o que já foi dito - é que a ordem
histórica de preponderância sucessiva das três formas de luta é
precisamente a de sua aptidão a estimular a inventividade: com
efeito, passa-se de uma era em que a guerra é preponderante a uma
fase em que a concorrência predomina, e enfim a discussão. Além
disso, numa sociedade que se civiliza, a troca se desenvolve mais
rapidamente do que a concorrência, a conversação se desenvolve
mais rapidamente do que a discussão, e o internacionalismo, mais
rapidamente do que o militarismo.
Acabamos de falar somente das oposições-lutas, aquelas
que acontecem entre termos simultâneos que se chocam. Quanto
às oposições-ritmos, que consistem em termos sucessivos (qua
lidades ou quantidades, pouco importa), de uma alta seguida de
uma baixa ou de uma ida seguida de um retorno e vice-versa,
pode parecer à primeira vista que elas sejam menos enigmáti
cas do que as outras, já que não são paralisias e destruições
mútuas de forças. No entanto, se olharmos mais de perto, esse
vaivém de forças que constituem sucessivamente um “a favor”
e um “contra”, ou que dizem um “sim” e um “não”, é ainda mais
difícil de compreender do que o choque entre duas forças que se
encontram e se equilibram. Pois essas interferências destrutivas
têm, ao menos, um caráter acidental, não desejado, e nós sabemos
que elas são quase inseparáveis das interferências criadoras, tal
80 As Leis Sociais
como a sombra e o corpo; isso para não mencionar que, em nós,
o equilíbrio e a neutralização recíproca das tendências contrá
rias, das sugestões rivais que vêm de fora, permitem a eclosão
de nossa originalidade natural, sendo essa, possivelmente, uma
das melhores justificativas da luta em geral. Mas o ritmo, seja ele
qualitativo ou quantitativo, parece ser um jogo normal no qual
as forças se comprazem e que foi desejado por elas. E confesso
que se eu tivesse sérias razões para considerar esse vaivém, essa
flutuação pueril, como algo que ocorre num plano mais amplo -
ou seja, se pensasse que a dissolução fosse exatamente o inverso
da evolução, a regressão o inverso da progressão, e que tudo se
pusesse a recomeçar indefinidamente sem nenhuma orientação de
conjunto - eu seria tomado por um desespero schopenhaueriano.
Felizmente não é assim, e o ritmo, o ritmo mais ou menos preciso,
regular, verdadeiramente digno desse nome, mostra-se em toda
parte, mas apenas nos detalhes dos fenômenos, sendo a própria
condição de sua repetição precisa, e por isso mesmo, condição
de sua variação. A gravitação de um astro só se repete em razão
de suas idas e vindas elípticas; uma onda sonora ou luminosa só
se repete em razão de um ir e voltar retilíneo, circular ou elíptico;
a contração de um elemento muscular e a inervação de um ele
mento nervoso só se propagam, num músculo ou ao longo de um
nervo, sob condição de voltarem ao seu ponto de partida. Baldwin
mostrou recentemente que também a imitação é “uma reação
circular”, e que se pode defini-la como “uma reação muscular que
procura alcançar os estímulos capazes de reconduzir aos mesmos
estados, que novamente tenderão aos mesmos estímulos e assim
por diante”. No livro de onde retirei essa citação, ele estende o
uso da palavra imitação muito além da minha acepção, e genera-
lizando-a ao ponto de fazê-la abranger ao mesmo tempo todo o
funcionamento vital e todo o funcionamento social, ele escreve
o seguinte: “O tipo de reações ou repetições circulares que nós
chamamos de imitação é um tipo fundamental, sempre o mesmo
Gabriel Tarde 81
e comum a toda atividade motora”.34 Mas a repetição, a marcha
regular dos fenômenos, e apenas a condição de seu itinerário, de
sua evolução, sempre mais ou menos irregular e pitoresca, e que
se torna mais e mais irregular e pitoresca à medida que progride.
Ora, é só na marcha, mas de modo algum no itinerário, que o
vaivém rítmico apresenta alguma precisão. E é assim até mesmo
no que diz respeito ao ritmo quantitativo, essas altas e baixas
gerais que a estatística permite medir no curso de uma civilização
em processo de desenvolvimento. É extremamente raro, nesse
caso, que o aumento e a diminuição constatados sejam iguais ou
semelhantes; que as curvas ascendentes de riqueza, por exemplo,
ou do preço dos valores da Bolsa, da fé religiosa, da instrução,
da criminalidade, etc., se reflitam de maneira inversa nas curvas
descendentes de mesma natureza e com as mesmas caracterís
ticas. Isso é bem conhecido pelos estatísticos. Eu já me referi ao
caráter irreversível de várias evoluções sociais, justamente as
mais importantes, e não preciso voltar a esse ponto.
Para concluir, a oposição, sob suas duas grandes formas,
revela e acentua cada vez mais seu caráter simplesmente auxiliar
e intermediário: como ritmo, ela só serve diretamente à repetição,
e indiretamente à variação, desaparecendo quando esta aparece.
Como luta, ela só serve para suscitar a adaptação, da qual iremos
agora nos ocupar.
34 A tradução americana d'As Leis Sociais, prefaciada pelo próprio James Baldwin, alterou ligeiramente o texto deTarde ao incorporar a redação original das citações do livro Mental Development in the Child and the Race (3aed., p. 151 e p. 23). Como isso pode ser dealgum interesse para o pesquisador, eis aqui a reprodução desse trecho:
... Baldwin has recently shown that im itation itself is a "circular reaction,"and that it may be defined as a"brain-state due to stimulating conditions, muscular reaction which reproduces or retains the stimulating conditions, same brain-state again due to same stimulating conditions, and so on." In the work from which this quotation is taken, he extends the meaning of the word im itation far beyond that which I assigned it; and, generalizing the term in such a way as to include both the vital and the social functions, he writes: "The self-repeating or circular type of reaction, to which the name im itation is given... is seen to be fundamental and to remain the same, as far as structure is concerned, for all motor activity whatever." Gabriel Tarde. Social Laws, trad. Howard C. Warren, Macmillan, New York, 1899, p. 141. (N. do T.)
Terceiro capítulo
Adaptação dos fenômenos
As explicações datias nas duas conferências anteriores
já nos prepararam para compreender o verdadeiro
sentido da palavra “adaptação”, que exprime o aspecto
mais profundo sob o qual a ciência aborda o universo. Veremos
mais uma vez que a evolução da ciência - seja qual for o tipo de
realidades às quais se aplique - consiste na passagem do gran
de ao pequeno, do vago ao preciso, do falso ou superficial ao
verdadeiro e ao profundo; ou seja, ela consiste primeiramente
em descobrir ou imaginar uma imensa harmonia de conjunto
ou algumas grandes e vagas harmonias exteriores, que vão
sendo gradualmente substituídas por inumeráveis harmonias
interiores, um número infinito de infinitesimais e fecundas
adaptações. Veremos também que a evolução da realidade, que
aqui como alhures é precisamente inversa à do conhecimento,
consiste numa tendência incessante das pequenas harmonias
interiores a exteriorizar-se e amplificar-se progressivamente.
Incidentalmente, não deixaremos de notar, como fizemos ante
riormente, que se o progresso do saber nos faz descobrir novas
e mais profundas harmonias, ele também nos revela muitas de
sarmonias, ainda mais profundas, que antes não percebíamos.
Comecemos com algumas definições ou explicações neces
sárias. 0 que é exatamente uma adaptação, uma harmonia natural?
Tomemos um exemplo fora do contexto da vida, pois nesta o vínculo
teleológico entre o órgão e a função é tão claro que não precisa ser
explicado: o leito de um rio. Percebe-se aqui uma montanha, ou
uma cadeia de colinas, adaptada ao escoamento das águas do rio;
os raios do Sol adaptados à evaporação das águas do oceano em
nuvens; e os ventos adaptados ao transporte dessas nuvens para
84 As Leis Sociais
o cume das montanhas, de onde elas voltam a cair em chuvas que
alimentam as fontes, os riachos e os pequenos rios, afluentes dos
grandes cursos d água. Existe um equilíbrio móvel, um circuito de
ações encadeadas que se repetem - que se repetem com variações.
Pode-se dizer que um ser vivo é um circuito semelhante a esse,
só que muito mais complicado, e onde a adaptação não é apenas
unilateral, como nesse exemplo, mas recíproca. O órgão serve à
realização da função vital e, reciprocamente, a função vital serve
à manutenção do órgão; ao passo que, nos ciclos planetários da
água, a montanha está adaptada ao escoamento da água, mas o
escoamento da água, ao invés de servir à manutenção da montanha,
tem poi efeito o seu desnudamento e mesmo, de maneira gradual, a
sua supressão. É também sem nenhuma reciprocidade que o calor
do Sol está adaptado à irrigação do solo.
Lembremos que sempre se trata de uma harmonia que se
repete. Acabamos de ver um exemplo; vejamos outros. Cada pla
neta de um sistema solar, considerado do ponto de vista mecânico,
ou seja, como um ponto que se move, apresenta o espetáculo de
uma harmonia entre sua propensão a fundir-se no Sol e sua ten
dência a afastar-se dele tangencialmente: se essas duas forças,
centrípeta e centrífuga, se exercessem ao longo de uma linha reta,
haveria oposição, mas como elas são perpendiculares entre si, o
que existe é adaptação. (Assim, na natureza, oposição e adaptação
se transformam uma na outra.)35 Ora, a gravitação do planeta é a
repetição, a repetição variada, dessa adaptação mecânica. Mesmo
se o considerarmos em termos geológicos - do ponto de vista de
sua composição estratigráfica e físico-química um planeta é um
agenciamento muito harmonioso de estratos superpostos; e se a
esse respeito dermos crédito a Stanislas Meunier, tal agenciamento
se repetirá em cada planeta, e mesmo na constituição geral do
Também um ciclone ou tromba d'água é uma harmonia atmosférica, um circuito deações que se deve ao acordo entre duas forças que não se entravam mutuamente mas se completam em sua resultante.
Gabriel Tarde 85
sistema solar: pois um corte transversal da Terra mostraria, entre
o centro e a circunferência, uma sucessão de camadas incan
descentes, depois solidificadas, depois líquidas, depois gasosas,
cada qual necessária à seguinte, e essa sucessão seria análoga à
encontrada nos astros, desde o Sol, no centro, até Netuno, que é
gasoso. De qualquer modo, pouco nos importa se essa analogia é
verdadeira ou não.
Um agregado qualquer é um composto de seres adaptados
entre si, seja uns com os outros, seja num conjunto subordinado
a uma função comum. Agregado significa adaptat,36 Mas, além dis
so, diversos agregados que possuem relações entre si podem ser
coadaptados, constituindo um adaptat de um grau superior. Seria
possível distinguir, desse modo, uma infinidade de graus. Para
simplificar, façamos uma distinção entre apenas dois graus de adap
tação. A adaptação de primeiro grau é aquela que ocorre entre os
elementos do sistema considerado; a adaptação de segundo grau é
aquela que os une aos sistemas que os cercam, àquilo que podemos
chamar, muito vagamente, de seu “meio”. 0 ajustamento a si mesmo
difere muito, em toda ordem de fatos, do ajustamento a outrem,
tal como a repetição de si (hábito) difere da repetição de outrem
(hereditariedade e imitação), tal como a oposição a si mesmo (he
sitação, dúvida) difere da oposição a outrem (luta, concorrência).
Muitas vezes esses dois tipos de adaptação, em certa medida, se
excluem mutuamente; é o caso das constituições políticas, onde se
observa com bastante frequência que as mais coerentes, as mais
logicamente deduzidas (apresentando portanto o mais alto grau de
adaptação de primeiro grau) são as menos adaptadas às exigências
de seu meio tradicional e costumeiro, e que, reciprocamente, as
mais práticas são as menos lógicas. A mesma observação aplica-se
às gramáticas de tantas línguas, às religiões, às belas-artes, etc.:
36 Adaptat é a 3a pessoa do singular do presente do indicativo do verbo latino adapto (infinitivo adaptare): adequar, ajustar, adaptar. 0 uso que Tarde faz do termo adaptat (como substantivo) é análogo ao uso, bem mais corrente, de outro termo latino: habitat. (N. doT.)
86 As Leis Sociais
a única gramática perfeita, com regras sem nenhuma exceção, é a
do... volapuque.37 Ela também é aplicável aos organismos: há entre
eles alguns que são perfeitos, mas que não são viáveis, e que se
tornariam mais viáveis se fossem menos perfeitos. A perfeição de
sua acomodação pode atrapalhar sua flexibilidade.38
Feitas essas indicações preliminares, mostremos a verdade
das duas teses enunciadas acima. Os partidários das causas finais
fizeram tudo o que podiam para desacreditar a ideia de finalidade.
Não é menos certo, no entanto, que os primeiros balbucias da
ciência datam do momento em que essa noção foi introduzida,
mesmo que de forma mística e bem pouco racional, na concepção
do mundo. Diante da visão do céu estrelado, com que sonhou a
ciência primitiva? Com uma adaptação imensa, única, quimérica,
nascida da ilusão que aprendemos a chamar de geocêntrica, segun
do a qual todas as estrelas existem para a Terra; a Terra, e sobre
ela uma cidade ou um burgo seriam o único foco de interesse do
firmamento, perpetuamente inquieto acerca do destino desses
seres efemeros que nós somos. A astrologia foi o desenvolvimento
lógico dessa grandiosa e imaginária adaptação do céu à Terra e ao
homem. A verdadeira astronomia não somente fez desaparecer essa
absurda harmonia, mas também quebrou a unidade da harmonia
celeste ao dividi-la em várias harmonias parciais, tão numerosas
quantos os próprios sistemas solares, coerentes neles mesmos e
simetricamente coordenados, porém ligados entre si por liames
muito vagos e duvidosos, agrupados em nebulosas informes, em
37 Linguagem artificial criada em 1880 pelo clérigo alemão Johann Martin Schleyer. (N. doT.)38 Sendo dada uma visão espiritual ou ideia, pode-se progredir intelectualmente a partir
dessa ideia (que é, em geral, uma mistura de verdade e erro) em dois sentidos diferentes: (I o) Apenas no sentido de uma adaptação de primeiro grau, ou seja, de uma harmonização gradual dessa ideia consigo mesma, de sua diferenciação e coesão interna (esse é o desenvolvimento de muitas teologias e metafísicas); (2°) No sentido de uma adaptação de segundo grau, isto é, de uma harmonização gradual dessa ideia com os dados dos sentidos, com os aportes exteriores da percepção e da descoberta (desenvolvimento científico). No primeiro caso, o progresso muitas vezes consiste em passar de um erro menor a um erro maior.
Gabriel Tarde 87
constelações esparsas de resplandecente desordem. Desde sempre
apaixonada pela ordem, a razão humana logo teve de renunciar à
sua busca pelas marcas mais evidentes de uma coordenação divi
na na totalidade do mundo - o Cosmos, o mais alto objeto de sua
admiração. Ela teve de descer ao sistema solar para encontrá-las, e
quanto mais ela conhecia deste pequeno mundo, mais encontrava
nos detalhes, e não no conjunto desse belo agrupamento de massas,
os motivos para extasiar-se. Mais do que as relações entre os pró
prios planetas, era a relação de cada um deles com seus satélites, e
mais ainda, era a superfície de cada um desses globos, sua formação
geológica, seu regime de águas, que revelavam um acordo perfeito
e surpreendente. Doravante, já não é mais em direção à imensa
abóbada celeste que a alma religiosa deve voltar-se para adorar a
sabedoria profunda que move este mundo; agora, é para o cadi
nho do químico que ela deverá olhar se quiser escrutar o mistério
das harmonias físicas mais precisas e maravilhosas, ainda mais
admiráveis do que a mixórdia estrelada: as combinações químicas.
Se, por meio do uso de um microscópio suficientemente forte, pu
déssemos perceber o interior de uma molécula, ficaríamos muito
mais fascinados pela mescla prodigiosa de movimentos elípticos
e circulares que provavelmente a constituem do que com o jogo,
no fim das contas bastante simples, dos grandes piões celestes!
Se passarmos do mundo físico ao mundo da vida, também
constataremos que o primeiro procedimento da razão foi conce
ber a criação orgânica inteira, vegetal e animal, como uma única
e grandiosa adaptação aos fins da humanidade, destinada à sua
nutrição, diversão, proteção, e também para avisá-la sobre perigos
ocultos. As práticas divinatórias e o totemismo, difundidos desde
as origens entre todos os povos, têm o mesmo fundamento. E os
progressos do saber podem muito bem ter dissipado essa ilusão
antropocêntrica, mas algo dela permaneceu no erro científico que
reinou durante tanto tempo entre os filósofos naturalistas: o de re
presentar a série paleontológica como uma ascensão em linha reta
88 As Leis Sociais
até o homem, e o de encarar cada espécie viva ou extinta como uma
nota num grande concerto chamado de Plano divino da natureza,
edifício ideal e regular cujo apogeu era o homem. Penosamente, à
força dos desmentidos acumulados pela observação, ele precisou
desprender-se de uma ideia que lhe era tão cara, reconhecendo que
não é nas grandes linhas da evolução dos seres (tão ramificadas e
tortuosas), e nem mesmo nos grandes agrupamentos de espécies
diferentes em faunas e floras regionais (apesar da notável adapta
ção revelada nos casos de comensalismo ou em determinadas rela
ções entre insetos e flores) que a natureza demonstra no mais alto
grau sua maravilhosa potência de harmonia, mas sim nos detalhes
de cada organismo. A meu ver, os partidários das causas finais39
comprometeram a ideia de finalidade ao empregá-la de maneira
abusiva e errônea, mas não excessiva; ao contrário, eu poderia
criticá-los por terem feito dessa ideia, com seus hábitos mentais
unificadores, um uso demasiadamente restrito. Não existe um fim
na natureza, um fim em relação ao qual todo o resto seria um meio;
o que existe é uma multidão infinita de fins que tentam servir-se
uns dos outros. Cada organismo, e cada célula de cada organismo,
e talvez cada elemento celular dentro de cada célula, possui sua
própria pequena providência particular. Assim, tal como antes,
também aqui somos levados a pensar que a força harmonizadora
- ao menos aquela com a qual a ciência tem o direito de ocupar-
-se, sem negar a possibilidade de que alguma outra exista - não é
imensa e única, exterior e superior, mas infinitamente multiplicada,
infinitesimal e interna. A bem dizer, a fonte de todas as harmonias
vitais (às quais temos um acesso cada vez mais restrito à medida
que nos afastamos desse ponto de partida para abranger um campo
mais vasto) é o óvulo fecundado, interseção viva de linhagens que
se encontraram ali, num cruzamento às vezes feliz, início de novas
39 No original, "les cause-finaliers" (grifo do autor), expressão usada por Voltaire no seu Dictionnaire Philosophique. (N. doT.)
Gabriel Tarde 89
aptidões que irão, por sua vez, se difundir e propagar, graças à
seleção dos mais aptos ou à eliminação dos menos aptos.
Voltemo-nos para o mundo social. Os teólogos, que sempre
foram (sem sabê-lo) os primeiros sociólogos, frequentemente
concebem a grande rede de todas as histórias dos povos da Terra
como algo que converge, desde os primórdios da humanidade,
para o. advento de seu próprio culto. Leiam Bossuet. A sociologia
pode muito bem ter se tornado laica, mas nem por isso libertou-se
desse gênero de preocupação. Comte transpôs magistralmente o
pensamento de Bossuet, que ele tinha boas razões para admirar:
para ele, toda a história da humanidade converge para a era e o
reino de seu próprio positivismo, espécie de neocatolicismo laico.
Aos olhos de Augustin Thierry, de Guizot e de outros historiadores
filósofos, todo o curso da história europeia parecia convergir, por
volta de 1830, para a Monarquia de Julho... A bem dizer, Comte
não fundou a sociologia, e o que ele nos oferece sob esse nome é
ainda uma simples filosofia da história, embora admiravelmente
deduzida; é a última palavra em termos de filosofia da história.
Como todos os “sistemas” que assim foram nomeados, sua con
cepção apresenta-nos a história humana (ou melhor, essa mixórdia
confusa de novelos multicoloridos) sob a aparência de uma única
e mesma evolução, representação única e solitária de uma espécie
de trilogia ou de tragédia única, agenciada segundo as regras do
gênero, na qual tudo se encadeia, na qual cada um dos três estados
encadeados se compõe de fases ligadas entre si, cada elo adaptado
e encadeado exclusivamente ao elo seguinte, e na qual tudo se
precipita irresistivelmente para o grande e derradeiro desenlace.
Com Spencer, deu-se um grande passo em direção a um
entendimento mais salutar da adaptação social: sua fórmula de
evolução social já não é aplicável somente a um Drama único, e sim a
um determinado número de Dramas sociais diferentes. Ao formular
leis do desenvolvimento linguístico, religioso, econômico, político,
moral, estético, os evolucionistas de sua escola também admitem,
90 As Leis Sociais
ao menos implicitamente, que essas leis estão aptas a reger todos
os povos que existem ou existirão, e não apenas uma pequena
parcela de povos aos quais reservamos o privilégio de serem cha
mados de históricos. Entretanto (ao mesmo tempo multiplicado e
com dimensões reduzidas), é sempre o mesmo erro que reapare
ce: o de acreditar que, para observar nos fatos sociais o gradual
surgimento da regularidade, da ordem, do encadeamento lógico,
é preciso abandonar seus detalhes, essencialmente irregulares, e
elevar-se bem alto, até abraçar numa visão panorâmica os mais
vastos conjuntos; que o princípio e a fonte de toda coordenação
social reside em algum fato de caráter muito geral do qual ela desce
gradualmente até os fatos particulares, porém enfraquecendo-se
singularmente; e que, em resumo, o homem agita-se, mas é uma
lei de evolução que o conduz.
Eu acredito que, de algum modo, é exatamente o contrário.
Não é que eu negue que existam, entre as diversas e multiformes
evoluções históricas dos povos, como nos rios que correm numa
mesma bacia, algumas inclinações comuns; e eu sei muito bem
que, se muitos desses riachos ou rios se perdem pelo caminho, os
demais, por uma série de confluentes, acabam por confundir-se
numa mesma corrente geral que, apesar de sua divisão em braços
diversos, não parece destinada a fracionar-se em múltiplos estuá
rios. Mas eu também vejo que a verdadeira causa desse derradeiro
rio, nascido dos demais rios, dessa preponderância final de uma
evolução social (a dos povos qualificados como históricos) entre
todas as outras, é a série de descobertas da ciência e de inven
ções da indústria que se acumularam sem cessar, utilizando-se
reciprocamente, formando sistema e feixe, e cujo encadeamento
dialético real, não menos sinuoso, parece refletir-se vagamente no
dos povos que contribuíram para produzi-lo. E se remontarmos
à verdadeira fonte dessa grande corrente científica e industrial,
nós a encontraremos em cada um dos cérebros geniais, obscu
ros ou célebres, que adicionaram uma verdade nova ou um novo
Gabriel Tarde 91
meio de ação ao legado secular da humanidade, e que, por meio
dessa contribuição, tornaram as relações entre os homens mais
harmoniosas ao desenvolver a comunhão de seus pensamentos e
a colaboração de seus esforços. De maneira inversa aos filósofos
que acabei de mencionar, constato que somente o pormenor dos
fatos humanos abriga adaptações notáveis, que é ali que reside o
princípio das harmonias menores que podem ser percebidas num
domínio mais amplo, e que, quanto mais nos elevamos de um pe
queno grupo social bastante unido (família, escola, oficina, igreja
local, convento, regimento) à cidade, à província e à nação, menos
notável e perfeita será a solidariedade. Em geral, existe mais lógica
numa frase do que em um discurso, e num discurso do que em uma
série ou grupo de discursos; num rito singular do que em todo um
credo; num artigo da lei do que em um código inteiro; numa teoria
científica particular do que em todo um corpo científico; assim
como há mais lógica em cada tarefa executaçla por um trabalhador
do que no conjunto de sua conduta.
Notemos que será assim a menos que uma potente indivi
dualidade intervenha para regulamentar e disciplinar os fatos de
conjunto. Esse tipo de intervenção, aliás, tende a se tornar cada vez
mais frequente, pois a civilização se caracteriza pelas facilidades
que oferece à realização de um programa individual de reorgani
zação social; e nesse caso, nem sempre é verdade que a harmonia
dos agenciamentos esteja em razão inversa de sua massa: muitas
vezes, e cada vez mais frequentemente, as massas mais volumosas
podem ser as mais harmoniosas. Por exemplo, a administração fran
cesa, organizada pelo gênio despótico de Napoleão, está tão bem
adaptada à sua finalidade geral quanto suas menores engrenagens
aos seus próprios fins; a rede de estradas de ferro da Prússia está
tão bem adaptada à sua finalidade estratégica quanto cada uma de
suas estações às suas próprias finalidades comerciais ou outras;
os sistemas de Kant, Hegel ou Spencer são tão coerentes em sua
ordenação geral quanto algumas das pequenas teorias parciais que
92 /4s Leis Sociais
lhes servem como base. Uma legislação bem codificada pode apre
sentar tanta ordem no arranjo de suas seções e capítulos quanto
em cada uma das leis parciais que ela reúne na relação entre suas
diversas disposições; e quando uma religião foi retrabalhada por
uma teologia vigorosa, o encadeamento de seus dogmas pode ser
ou parecer mais lógico do que cada um deles considerado à par
te. No entanto, como é fácil perceber, esses fatos, aparentemente
contrários aos que foram expostos acima, na realidade contribuem
para mostrar que o gênio individual é a verdadeira fonte de toda
harmonia social. Pois essas belas coordenações tiveram de ser
concebidas antes de ser executadas; e antes de cobrir um território
imenso, elas começaram a existir sob a forma de uma ideia oculta
em algumas células cerebrais.
Diremos agora que a adaptação social elementar é, no fundo, a
que existe entre dois homens, um dos quais responde, com palavras
ou ações, à questão proposta pelo outro, plenamente verbalizada
ou tácita? Pois a satisfação de uma necessidade, assim como a
solução de um problema, é uma resposta a uma questão. Diremos
então que essa harmonia elementar consiste na relação entre dois
homens, na qual um deles ensina e o outro aprende, um ordena e
o outro obedece, um produz e o outro consome, na qual um é ator,
poeta, artista, e o outro é espectador, leitor, amador? Ou diremos
que eles se reuniram e fizeram uma obra em colaboração? Sim, é
isso que diremos, pois embora nessa relação entre dois homens
esteja implicada uma relação entre modelo e cópia, trata-se de
algo bem diferente.
A meu ver, no entanto, é preciso levar a análise ainda mais
longe e, como já indiquei, buscar a adaptação social elementar no
próprio cérebro, no gênio individual do inventor. A invenção que
está destinada a ser imitada - pois aquela que permanece encer
rada no espírito de seu autor não é socialmente relevante - é uma
harmonia de ideias que é a mãe de todas as harmonias entre os
homens. Para que exista uma troca entre produtor e consumidor, e
Gabriel Tarde 93
para que, em primeiro lugar, exista um dom para o consumidor, o
dom da coisa produzida (pois a troca é a dádiva tornada mútua, e
como tal, vem depois da dádiva unilateral), é preciso que o produtor
tenha inicialmente duas ideias: a da necessidade do consumidor ou
donatário, e a de um meio apto a satisfazê-la. A adaptação exterior
que chamamos de dádiva, e em seguida de troca, não teria sido
possível sem essa adaptação interior de duas ideias. Do mesmo
modo, a divisão de trabalho entre vários homens que executam
as diversas tarefas de uma mesma operação, anteriormente exe
cutada por um único homem, não teria sido possível se ele não
tivesse a ideia de conceber essas diversas tarefas como partes de
um mesmo todo, como meios para um mesmo fim. No fundo de
qualquer associação entre homens, existe originariamente, repito,
uma associação entre as ideias de um mesmo homem.
Não posso aceitar a objeção de que essa adaptação das
ideias entre si só merece o nome de social quando ela se exprime
numa adaptação dos homens entre si. Com efeito, ela muitas vezes
se exprime de outro modo, e mais ainda, parece que esse outro
gênero de expressão tende a prevalecer. Depois que o trabalho
realizado por um único homem foi substituído por uma divisão do
trabalho entre muitos homens, acontece com frequência que uma
nova invenção faça com que uma única máquina realize todas as
fases da operação. Nesse caso, a divisão do trabalho, a associação
das tarefas entre homens, só desempenhou o papel de um termo
médio entre a associação de ideias do primeiro criador da obra e
a associação das engrenagens da máquina. Não é no grupo de tra
balhadores que a ideia de gênio se encarnou; ela foi materializada
em pedaços de ferro e madeira. E esse caso tende a generalizar-se
com a progressiva utilização de máquinas na produção. Suponham,
embora isso seja impossível, que toda a produção humana seja
realizada pelas máquinas. Já não haverá divisão do trabalho, pois
não haverá nenhum ou quase nenhum trabalho, e podemos dizer,
se quisermos, que já não haverá harmonia social propriamente
94 As Leis Sociais
dita, mas que a união social aumentará; porém essa união social,
ainda mais desejável do que a harmonia, não terá sido o efeito
dessas inumeráveis e infinitesimais adaptações cerebrais? Onde
encontrar fatores sociais mais potentes do que esses fatos, que
seriam puramente individuais?
Nós acabamos de ver que a evolução da sociologia a condu
ziu, tal como aconteceu em outros campos, a descer das alturas
quiméricas das causas vagas e grandiosas até as ações infinitesi
mais, reais e precisas. Mostremos agora, ou melhor, assinalemos
- pois falta-nos espaço para uma exposição mais detalhada - que
a evolução da realidade social, exatamente inversa à da ciência
social, consistiu na passagem gradual de uma infinidade de har
monias muito pequenas a um menor número de harmonias maio
res, e depois a um número muito reduzido de harmonias muito
grandes, até chegar, num futuro ainda indefinido, à realização do
progresso social em uma civilização única e total, tão harmoniosa
quanto possível. Note-se que essa lei de alargamento progressivo
não deve ser compreendida aqui como a tendência à difusão imi-
tativa de uma invenção ou grupo de invenções; isso seria voltar
à lei da imitação, que nós já conhecemos. E nem mesmo se trata
do incessante alargamento que essa irradiação imitativa propor
ciona à harmonia social que chamamos de “divisão do trabalho”
e que deveríamos antes chamar de “solidariedade dos trabalhos”.
Ainda que uma indústria permaneça a mesma, sem nenhum novo
progresso, a cooperação social que resulta dela crescerá à medida
que, por um lado, as necessidades de consumo que ela satisfaz, e
por outro, os atos de produção pelos quais ela supre essa deman
da, se propagarem por imitação para além da região, inicialmente
bastante circunscrita, onde ela nasceu. Por mais importante que
seja o fenômeno de crescimento dos mercados, habitual prelúdio
da federação dos povos, não é ele que está em causa aqui. A bem
dizer, é muito raro que, sem nenhum progresso intrínseco da in
dústria, esse progresso extrínseco possa realizar-se.
Gabriel Tarde 95
É desse progresso intrínseco que queremos falar, ou seja,
da tendência de uma invenção, de uma adaptação social dada, a
se complicar e intensificar ao adaptar-se a outra invenção, a outra
adaptação, engendrando desse modo uma nova adaptação que,
por meio de outros encontros e outras alianças lógicas do mesmo
gênero, conduzirá a uma síntese mais alta, e assim por diante. Esses
dois progressos - o progresso de uma invenção em extensão por
meio de sua propagação imitativa, e seu progresso em compreensão,
de algum modo, por meio de uma série de alianças lógicas - são
certamente muito distintos, porém longe de serem inversamente
proporcionais (apesar da oposição habitual, concernente a outros
aspectos, entre a extensão e a compreensão das ideias), eles mar
cham paralelamente e são inseparáveis. A cada aliança cerebral
de duas invenções em uma terceira — quando, por exemplo, a ideia
da roda e a ideia da domesticação do cavalo, depois de se propa
garem independentemente (talvez durante séculos), se fundiram
e harmonizaram na ideia de carro - foi preciso, necessariamente,
que a imitação operasse para aproximá-las em um mesmo cérebro,
tal como foi preciso, para o surgimento de cada uma delas, que
seus elementos fossem trazidos para o espírito de seus autores por
meio de diversas irradiações de exemplos. Melhor ainda, a cada
síntese de novas invenções, geralmente é preciso uma irradiação
imitativa mais vasta que as precedentes. Existe um entrelaçamento
contínuo entre essas duas progressões, a progressão imitativa,
uniformizadora, e a progressão inventiva, sistematizadora. Elas
estão ligadas entre si por um vínculo que, sem dúvida, nada tem de
rigoroso (pois, por exemplo, uma série de árduos teoremas pôde
desenrolar-se no cérebro de um Arquimedes ou de um Newton
sem nenhuma contribuição de elementos trazidos por sábios
estrangeiros no decorrer de cada uma dessas descobertas), mas
esse vínculo é suficientemente costumeiro para nos fazer acreditar
que constataremos um crescimento da extensão do campo social
e da intensidade das comunicações sociais, e uma ampliação e
96 As Leis Sociais
aprofundamento das nacionalidades (senão dos Estados), sempre
que crescerem a riqueza das línguas, a beleza arquitetônica das
teologias, a coesão das ciências, a complexidade e a codificação das
leis, a organização espontânea ou a regulamentação dos trabalhos
industriais, o regime financeiro, a coordenação e a complicação
administrativas, os refinamentos e a variedade da literatura e das
belas-artes.
Mais uma vez, no entanto, é preciso não confundir, como
muitas vezes acontece, o progresso da instrução, simples fato de imi
tação, e o progresso da ciência, fato de adaptação; nem o progresso
da industrialização com o progresso da indústria, ou o progresso
da moralidade com o progresso da moral, ou o progresso do mili
tarismo com o progresso da arte militar, ou o progresso da língua,
entendido aqui como sua expansão territorial, com o progresso da
linguagem, entendido aqui como o refinamento de sua gramática
ou o enriquecimento de seu vocabulário. Tomemos estes dois ca
sos: a ciência progride enquanto a instrução para de expandir-se;
ou então há uma progressiva expansão da instrução enquanto a
ciência permanece estacionária. Serão eles equivalentes? E será
possível dizer, para falar um tanto vagamente, que houve nesses
dois casos um progresso das luzes? Não, pois essas coisas não
têm uma medida comum. Cada ganho da ciência, cada verdade que
se acrescenta ao seu agregado — ao seu adaptat — de proposições
concordantes entre si, não é uma simples soma, mas antes uma
multiplicação, uma confirmação recíproca. Mas cada aluno novo
que se junta aos outros, cada nova edição de um exemplar cerebral
da ciência ensinada é apenas uma unidade extra adicionada às ou
tras. Para sermos exatos, reconheçamos que existe aí algo mais do
que uma adição: pois a comunhão de inteligência que resulta desse
processo, por conta da similitude do ensinamento transmitido às
diversas crianças, aumenta a confiança de cada uma delas em seus
Gabriel Tarde 97
conhecimentos40 e também é uma adaptação social; e está longe
de ser uma das menos preciosas.
Antes de prosseguir, façamos algumas importantes observa
ções. Em primeiro lugar, notemos a que ponto a ideia de adaptação
torna-se mais clara e precisa quando passamos do mundo físico, ou
mesmo do mundo vivo, ao mundo social. Será que sabemos com pre
cisão o que é a adaptação de uma molécula ácida à molécula básica
com a qual ela se combina, ou o que é a adaptação de um grão de
pólen ao óvulo que, fecundado por ele, dará nascimento a um novo
indivíduo que talvez seja o primeiro de uma nova raça? Nada sabe
mos sobre isso. É verdade que, no caso da interferência entre ondas
sonoras que, ao invés de se destruírem, se ajudam mutuamente e
produzem um reforço do som ou um timbre inesperado, nós estamos
um pouco mais bem informados sobre a natureza do fenômeno; no
entanto, esse simples reforço do som, ou mesmo a produção desse
timbre (que é uma criação original somente do,ponto de vista sub
jetivo de nossas sensações acústicas) nada têm em comum com o
fato, objetivamente inovador, da combinação química. Do mesmo
modo, quando duas espécies animais ou vegetais se encontram,
ajudando e parasitando uma à outra, trata-se de um caso muito
claro de mutualismo vital que proporciona um simples aumento
de seu bem-estar e de sua propagação, e não deve ser confundido
com o caso da fecundação, que continua bastante obscuro. Mas
quando se produz uma feliz interferência, qualquer que seja, entre
duas irradiações imitativas, ela é sempre transparente para nossa
razão. Ela pode consistir simplesmente num estímulo mútuo - como
40 Notemos de passagem que essa similitude entre os ensinamentos somente é completa na escola primária, e que ela é menor na escola secundária, apesar da uniformidade dos programas de bacharelado [baccalauréat]; e ela é ainda menor nas instituições de ensino superior, onde o livre desacordo das doutrinas é tão frequente. Nota-se aqui o caráter subordinado e mediador da Contradição, da Discussão: o ensino superior, no qual ela reina, tende sempre a descambar no ensino secundário, no qual ela já é menos acentuada, e na escola primária, na qual ela não existe. Aqui as contradições dos cientistas não servem para nada, ou só servem para trazer à luz adaptações de verdades para uso futuro de professores rurais.
98 As Leis Sociais
a propagação das lâmpadas a gás favoreceu a do gás e vice-versa,
ou como a propagação da língua francesa favorece a da literatura
francesa, que por sua vez a favorece. E também é possível que essa
interferência tenha uma eficácia mais profunda e provoque uma
invenção nova, foco de uma nova imitação irradiadora - tal como a
propagação do cobre, ao encontrar-se com a do estanho, sugeriu a
ideia da fabricação do bronze, ou como o conhecimento da álgebra
e da geometria sugeriram a Descartes a expressão algébrica das
curvas. Mas nesse último caso, como no primeiro, vemos claramente
que a adaptação é uma relação lógica ou teleológica, e que ela sem
pre se enquadra em um desses dois tipos: ora ela é, como a lei de
Newton, tal como em qualquer lei científica, uma síntese de ideias
que anteriormente não pareciam nem confirmar-se nem contradizer-
-se, e que agora se confirmam mutuamente como consequências
de um mesmo princípio; ora ela é, como numa máquina industrial
qualquer, uma síntese de ações que, outrora estranhas umas às
outras, se favorecem mutuamente através de uma engenhosa coli
gação, meios solidários para um mesmo fim. A invenção do carro
(já complexa, como sabemos), a invenção do ferro, a invenção da
força motriz do vapor, a invenção do pistão, a invenção do trilho:
tantas invenções que pareciam estranhas umas às outras e que se
solidarizaram na invenção da locomotiva.
Em segundo lugar, quer se trate de uma síntese de ações, de
uma invenção científica ou industrial, religiosa ou estética (em uma
palavra, teórica ou prática), podemos chamar de “acoplamento
lógico” o procedimento elementar que a formou. Com efeito, qual
quer que seja o número de ideias ou atos sintetizados numa teoria
ou máquina, jamais existe uma combinação de mais do que dois
elementos de cada vez, adaptados entre si no cérebro do inventor
ou de cada um dos inventores que colaboraram sucessivamente
para sua formação.41 Em sua Sémantique, Michel Bréal fez uma
41 Ver, no livro Lois de 1'imitation, o capítulo sobre as leis lógicas da imitação, sobretudo p. 175 e p. 195 e seguintes; e no livro Logique Sociale, o capítulo sobre as leis da invenção.
Gabriel Tarde 99
observação muito perspicaz a respeito da linguagem que sustenta
esta minha observação geral: “qualquer que seja o comprimento”,
diz ele, “de uma palavra composta, ela jamais compreende mais
do que dois termos. Essa regra não é arbitrária: ela decorre da
natureza de nosso espírito que associa suas ideias em pares.” Em
outra passagem relativa às figuras esquemáticas pelas quais James
Darmesteter tentou tornar visível a evolução dos sentidos das pa
lavras de acordo com diferentes vias, o mesmo autor escreve: “é
preciso lembrar que essas figuras complicadas só têm valor para
o linguista: aquele que inventa o novo sentido (de uma palavra)
esquece momentaneamente todos os sentidos anteriores, salvo um,
de maneira que as ideias sempre se associam de duas em duas.” E
isso sempre acontece, tal como nas oposições entre ideias, como
já vimos. Seria fácil, porém tedioso, mostrar a generalidade desse
processo; bastaria flagrar sucessivamente cada descoberta ou
aperfeiçoamento no momento em que ela é adiçionada à descoberta
anterior, seja na esfera científica, jurídica, econômica, política, ar
tística ou moral. Em vez disso, é preferível indicar por que é assim,
e como isso se torna possível e necessário.
Por um lado, isso se deve essencialmente ao fato de que a
marcha do espirito, seu funcionamento elementar, consiste em
passar de uma ideia a outra ligando as duas por um juízo ou por
uma volição: por um juízo que mostra a ideia do atributo implicada
na ideia do sujeito, ou por um ato de vontade que encara a ideia
do meio como estando implicada na ideia da finalidade. Por outro
lado, se o espírito passa de um juízo a outro juízo mais complexo,
e de uma volição a outra, mais compreensiva, é porque à força de
repetir-se mentalmente em virtude dessa dupla forma de imitação
de si mesmo, que chamamos de memória e hábito, um juízo ter
mina por enrodilhar-se numa noção, fusão de seus dois termos
doravante soldados e indistintos; e uma volição, um desígnio,
acaba transformando-se num reflexo cada vez menos consciente.
Por causa dessa transformação inevitável - que ocorre em larga
100 As Leis Sociais
escala, socialmente, sob os nomes respeitáveis de tradição e costu
me - nossos antigos juízos tornam-se aptos a integrar, agora como
noções, um novo juízo; e nossos antigos desígnios tornam-se aptos
a integrar um novo desígnio. Da mais baixa à mais alta operação
de nosso entendimento e de nossa vontade, esse procedimento é
o mesmo; e não existe descoberta teórica que seja algo além da
junção judiciária de um atributo, ou seja, de antigos juízos, a um
novo sujeito, assim como não há descoberta prática que seja algo
além da junção voluntária de um meio, ou seja, de um antigo fim,
anteriormente desejado por si mesmo, a um novo fim. Por meio
dessa alternância, ao mesmo tempo tão simples e tão fecunda,
de mudanças inversas que se sucedem indefinidamente, o juízo
e a finalidade de ontem se tornam a noção simples e o simples
meio de hoje, que suscitarão o juízo ou a finalidade de amanhã,
e assim por diante; e foi de acordo com esse ritmo social, e tam
bém psicológico, que todos os grandes edifícios de descobertas
e invenções que despertam nossa admiração foram construídos:
nossas línguas, nossas religiões, nossas ciências, nossos códigos,
nossas administrações, e decerto nossa organização militar, nossas
indústrias, nossas artes.
Quando consideramos uma dessas grandes coisas sociais
- uma gramática, um código, uma teologia - o espírito individual
parece tão diminuto ao pé desses monumentos, que a ideia de
enxergar nele o único construtor dessas gigantescas catedrais
parece ridícula aos olhos de alguns sociólogos; e como estes não
percebem que com isso renunciam à possibilidade de explicá-las,
pode-se perfeitamente desculpá-los por serem levados a dizer que
tais obras são eminentemente impessoais. Apenas mais um passo
levaria a postular (como meu ilustre adversário Durkheim) que,
longe de serem funções do indivíduo, elas são seus fatores, existindo
independentemente das pessoas humanas e governando-as despo
ticamente ao projetar sobre elas sua sombra opressiva. Mas como
essas realidades sociais - pois se eu combato a ideia do organismo
Gabriel Tarde 101
social, estou longe de contradizer a de um certo realismo social,
que precisaria ser definido - como, repito, essas realidades sociais
foram produzidas? Eu admito de bom grado que, uma vez que fo
ram produzidas, elas se impõem ao indivíduo, às vezes de maneira
coercitiva, o que é raro, e mais frequentemente por persuasão, por
sugestão, pelo prazer singular de que gozamos, desde o berço, ao
nos impregnar com os exemplos dos mil modelos existentes em
nosso ambiente, como uma criança ao sugar o leite de sua mãe. Eu
admito isso, mas como esses monumentos grandiosos aos quais
me refiro foram construídos, e por quem, a não ser por homens e
esforços humanos?
Quanto ao monumento científico, talvez o mais grandioso
de todos os monumentos humanos, não há dúvida possível. Ele
foi construído sob a luz plena da história, e nós seguimos seu
desenvolvimento praticamente desde seu inicio até os dias de
hoje. Que nossas ciências tenham sido no igício uma poeira de
pequenas descobertas esparsas e sem ligação, que foram em se
guida agrupadas - sendo cada um desses agrupamentos já uma
descoberta - em pequenas teorias que depois foram, por sua vez,
fundidas em teorias mais amplas, confirmadas ou retificadas por
uma infinidade de outras descobertas, e enfim fortemente coligadas
por inúmeras hipóteses lançadas sobre elas, elevadas invenções
do espírito unificador, tudo isso é indiscutível. Não existe lei, teoria
científica ou sistema filosófico que não exiba a assinatura de seu
inventor. Tudo isso é de origem individual, tanto os materiais quanto
os planos, os planos de conjunto e os planos de pormenor; tudo,
até mesmo aquilo que agora é ensinado na escola primária e está
difundido em todos os cérebros cultivados, foi no início o segredo
de um cérebro solitário, onde essa pequena lâmpada, tímida e tre-
meluzente, irradiou com dificuldade numa estreita esfera, através
das contradições, até que, fortificada por sua expansão, tornou-se
um luminoso farol.
102 As Leis Sociais
Mas se é evidente que a ciência foi construída desse modo,
não é menos certo que a construção de um dogma, de um corpo
jurídico, de um governo ou de um regime econômico ocorreu da
mesma maneira; e se existem possíveis dúvidas no que diz respeito
ã língua ou ã moral, é porque a obscuridade de suas origens e a
lentidão de suas transformações ocultam de nossos olhos a maior
parte de seu percurso, mas é muito provável que sua evolução tenha
seguido o mesmo caminho. Não é por meio de minúsculas criações
de expressões imaginativas, de giros pitorescos, de novas palavras
ou novos sentidos que nossa língua se enriquece à nossa volta? E
cada uma dessas inovações, pelo simples fato de ser geralmente
anônima, deixa por isso de ser uma iniciativa pessoal que, pouco
a pouco, vai sendo imitada? E não é desses achados expressivos,
vicejantes em cada língua, que as línguas em contato se servem
reciprocamente para engrossar seu-dicionário e flexibilizar ou
mesmo complicar sua gramática? Não é também por uma série de
pequenas revoltas individuais contra a moral estabelecida, ou de
pequenas adições aos seus preceitos, que essa moral sofre lentas
modificações? E não foi uma passagem através de fases suces
sivas que conduziu de uma era muito antiga, na qual as línguas
eram inumeráveis porém muito pobres, cada uma falada por uma
horda, uma tribo, um burgo, e em que as morais eram também
muito numerosas, muito desiguais e muito simples, à nossa época,
na qual um pequeno número de línguas muito ricas e de morais
muito complicadas estão prestes a disputar a futura hegemonia
do globo terrestre?
No entanto, é preciso conceder aos adversários da teoria
das causas individuais na história o mérito de perceber que ela foi
falseada; e ela foi falseada na medida em que se falava de grandes
homens lá onde era preciso falar de grandes ideias, muitas vezes
surgidas em homens muito pequenos, e mesmo de pequenas ideias,
inovações infinitesimais trazidas por cada um de nós à obra comum.
A verdade é que todos nós, ou quase todos, colaboramos na pro
Gabriel Tarde 103
dução desses grandes edifícios que nos dominam e nos protegem;
cada um de nós, por mais ortodoxo que pareça, tem sua própria
religião, e por mais correto que pareça, tem sua própria língua,
sua própria moral; o mais vulgar dos cientistas tem sua própria
ciência, o mais rotineiro dos administradores tem sua própria arte
administrativa. E assim como cada um tem sua pequena invenção,
consciente ou inconsciente, para acrescentar ao legado secular
das coisas sociais das quais somos depositários passageiros, cada
um também gera uma irradiação imitativa (em sua esfera mais ou
menos limitada) que basta para prolongar seu achado além de sua
existência efêmera, e guardá-lo para os trabalhadores futuros que o
farão funcionar. A imitação, que socializa o individual, perpetua em
toda parte as boas ideias, e ao perpetuá-las, as aproxima e fecunda.
Acaso poderíamos dizer que, sendo dada a natureza eterna
das coisas e estando elas na presença do também persistente
espírito humano, a ciência chegaria, mais cedo ou mais tarde, e
não importando por qual caminho de descobèrtas individuais, ao
estágio atual e ao estágio em que nossos netos a conhecerão, e que
sua forma futura, clara e gloriosa, já estava predeterminada desde
as primeiras percepções do cérebro selvagem, e que por isso o
acidente do gênio ou o papel do indivíduo pouco importam, ou vão
perdendo a cada dia sua importância à medida que nos aproxima
mos da realidade ideal, platonicamente atrativa, cujos contornos
já se deixam adivinhar? Mas se essa objeção fosse verdadeira, ela
teria de ser generalizada, e disso resultaria que, no decorrer de um
encadeamento qualquer de satisfações e necessidades, nascidas
alternadamente umas das outras, uma irresistível atração de não
sei quais planos divinos, invisivelmente imperiosos, conduziria
inevitavelmente a humanidade ao mesmo termo político, econô
mico ou outro, à mesma constituição, à mesma indústria, à mesma
língua, à mesma legislação final... Até o momento, não há nada mais
contrário aos fatos do que essa visão, pois quanto mais as diversas
civilizações que partilham a Terra - cristã, budista, islâmica - se
104 As Leis Sociais
desenvolvem, mais sua originalidade e dessemelhança se acentu
am. Entretanto, aquilo que me agrada nessa maneira de ver é que
ela é idealista, mas não o bastante, sendo por isso um idealismo
falho. O mundo não é movido por uma só ideia ou por um peque
no número de ideias situadas no ar; existem milhões e milhões
que lutam pela glória de serem seus portadores. Essas ideias que
agitam o mundo são as ideias de seus próprios atores: cada um
deles batalhou para fazer triunfar a sua, sonho de reorganização
local, nacional ou internacional, que se desenvolvia ao realizar-
-se, e que mesmo sucumbindo podia avultar-se. Cada indivíduo
histórico foi um projeto de uma nova humanidade, e todo o seu ser
individual, todo o seu esforço individual, não passou da afirmação
desse universal fragmentário do qual ele era o portador. E desse
sem-número de ideias, desses grandes programas patrióticos ou
humanitários que dominam, como grandes bandeiras mutuamente
despedaçadas, a mixórdia humana, talvez apenas uma sobreviva,
uma única dentre miríades, porém ela mesma terá sido individual
em sua origem, tendo jorrado do cérebro ou do coração de um
homem; e eu aceito a ideia de que seu triunfo tenha sido necessá
rio, mas sua necessidade, que se revela retrospectivamente, que
ninguém planejou de antemão, que ninguém poderia prever com
certeza, não passa da expressão verbal da superioridade dos es
forços individuais postos ao serviço dessa concepção individual.
Causa final e causas eficientes se confundem aqui, e não há motivo
para distingui-las.
E é justamente porque toda construção social deve todos
os seus materiais, e mesmo todos os seus planos, a contribuições
individuais, que eu não poderia admitir aquilo que chegou a ser
considerado o atributo essencial da realidade social: seu caráter
soberano e dominador em relação ao indivíduo. Se assim fosse,
essa realidade jamais teria se desenvolvido e esses monumentos
jamais poderiam ter sido edificados, pois em cada um de seus
desenvolvimentos sucessivos causados pela introdução de uma
Gabriel Tarde 105
novidade - uma nova palavra, um novo projeto de lei, uma nova
teoria científica, um novo projeto industrial, etc. - é evidente que
a inovação não foi introduzida à força, e sim por persuasão e doce
sugestão. Vejam a maneira pela qual cresce o palácio das ciências.
Uma teoria é longamente discutida no ensino superior antes de
propagar-se sob a forma de uma hipótese mais ou menos prová
vel, e ao descer para o ensino secundário ela já se afirma mais
resolutamente; mas, por via de regra, ela só se torna um autêntico
dogma quando chega ao ensino primário, exercendo ou tentando
exercer sobre o espírito de seus partidários infantis, que aliás se
prestam a isso com a maior boa vontade do mundo, a coerção, de
modo nenhum despótica, à qual nos referimos. Em outros termos,
isso significa que seu atual caráter imperioso se estabeleceu em
virtude de sua persuasão anterior, e tudo isso por propagação
imitativa. O mesmo acontece quando uma novidade industrial se
difunde: ela é um capricho da elite antes de ser uma necessidade
do público e de fazer parte daquilo que se considera necessário.
Pois o luxo de hoje é o necessário de amanhã, pela mesma razão
que o ensino superior de hoje é o ensino secundário, e mesmo o
primário, de amanhã.
Esse grande tema da adaptação social exigiria vários outros
desenvolvimentos; tomarei a liberdade de remeter o leitor ao meu
livro sobre a Lógica Social, onde esbocei alguns deles. Aqui, porém,
é preciso impor limites. Não preciso insistir muito na observação,
infelizmente muito óbvia, que estabelece a seguinte relação: quanto
mais as adaptações são múltiplas e precisas, mais aumentam as
inadaptações sociais, dolorosas, enigmáticas, que justificam tantas
queixas. Mas agora estamos aptos a dizer por que as harmonias
naturais, assim como as simetrias naturais, raramente são perfeitas,
e por que elas se misturam (ou mesmo dão origem) a desarmonias
e dissimetrias, que por sua vez poderão contribuir para suscitar
adaptações e oposições mais altas. É que a adaptação perfeita e a
oposição perfeita são as duas extremidades de uma série infinita,
106 As Leis Sociais
entre as quais se intercalam inumeráveis posições. Entre a confir
mação absoluta de uma tese por outra e a contradição absoluta en
tre ambas, existe uma infinidade de contradições e de confirmações
parciais, sem mencionar a infinidade de graus de crença afirmativa
e negativa. Uma questão seguida de uma resposta: eis aí a invenção.
Porém mil respostas a uma questão dada são possíveis, cada vez
mais exatas e completas. Para a questão da necessidade de ver,
o olho humano não é a única resposta; existem todos os olhos de
insetos, de pássaros, de moluscos. Para a questão da necessidade
de fixar a fala, houve apenas a resposta do alfabeto fenício.
No seio de qualquer sociedade há uma infinidade de peque
nas ou grandes respostas às questões, e uma infinidade de novas
questões que surgem dessas mesmas respostas; e é precisamente
por causa disso que existe também um considerável número de
pequenas ou grandes lutas entre partidários de soluções diferentes.
A luta não passa de um choque de harmonias, mas esse choque não
é, por certo, a única relação entre as harmonias; sua relação mais
habitual é o acordo, a produção de uma harmonia superior. A cada
instante, seja falando, seja trabalhando com qualquer coisa, nós
experimentamos uma necessidade e a satisfazemos, e é essa série
de satisfações ou soluções que constitui o discurso ou o trabalho,
e também a política (interna ou externa), a diplomacia e a guerra,
todas as formas de atividade humana. Os esforços incessantemente
repetidos dos indivíduos de uma nação para adaptar sua língua ao
devir de seu pensamento42 acabam modificando e transformando
gradualmente as línguas, bem como suscitando novas línguas. Se
tivéssemos feito o registro de todos esses esforços sucessivos, tal
como tentou fazer o abade Rousselot num recanto de La Charente,
seria possível dizer o número preciso de adaptações linguísticas
elementares que foram integradas numa modificação do som ou do
sentido das palavras. Para adaptar seus dogmas e preceitos reli
42 Ver a esse respeito a Sémantique de Michel Bréal.
Gabriel Tarde 107
giosos, e também seus costumes e leis, e até mesmo sua moral, aos
seus conhecimentos e necessidades, os indivíduos, principalmente
aqueles que se sentem mais inadaptados ao seu meio (e talvez a si
mesmos), também fazem esforços incessantes que desembocam
em pequenas descobertas acumuladas.43 E de tempos em tempos
surge algum grande inventor, algum grande agenciador.
As desarmonias são, para as harmonias, o que as dissime-
trias são para as simetrias, o que as variações são para as repeti
ções. Ora, é apenas no seio das repetições precisas, das oposições
claras, das harmonias estreitas, que eclodem as amostras mais ca
racterísticas da diversidade, do pitoresco e da desordem universais,
43 Se quisermos fazer da sociologia uma ciência verdadeiramente experimental e nela imprimir o mais profundo selo de precisão, é necessário, creio eu, contar com a colaboração de um grande número de observadores devotados e generalizar o método do abade Rousselot no que ele tem de essencial. Suponham que vinte, trinta ou cinquenta sociólogos, nascidos em diferentes regiões da França ou em outros países, redijam separadamente, como maior cuidado e minúcia possíveis, a série de pequenas transformações - de ordem política, econômica, etc. - que eles foram capazes de observar na sua pequena cidade ou vilarejo natal, e em primeiro lugar na sua vizinhança mais imediata; suponham que, em vez de limitar-se a generalidades, ele notem os pormenores das manifestações individuais de uma alta ou baixa da fé religiosa ou da fé política, de moralidade ou imoralidade, de luxo, de conforto, de uma modificação da crença política ou religiosa, ocorridas diante de seus olhos a partir da idade em que já fossem capazes de compreendê-las, em primeiro lugar na sua própria família e no seu círculo de amizades; suponham que eles se esforcem, como o ilustre linguista citado mais acima, para chegar à fonte individual dessas pequenas diminuições, ou aumentos, ou transformações de ideias e tendências, que a partir dali se propagaram num certo grupo de pessoas e que se traduzem por imperceptíveis mudanças na linguagem, nos gestos, na higiene, em hábitos quaisquer; suponham tudo isso, e vocês verão que desse conjunto de monografias similares, eminentemente instrutivas, seria possível extrair as mais importantes verdades, cujo conhecimento seria útil não apenas para o sociólogo mas também para o homem de Estado. Essas monografias narrativas seriam profundamente diferentes das monografias descritivas, e bem mais esclarecedoras. Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso não é verdadeiro. Pode-se muito bem acumular constatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados. Mas aquele que conhecer bem, com precisão de detalhes, a mudança de costumes em alguns pontos particulares, durante dez anos e num único país, não poderá deixar de pôr as mãos na fórmula geral das transformações sociais e, por conseguinte, das próprias formações sociais, aplicável em todos os países e em todos os tempos. Seria bom, para tal pesquisa, aplicar um questionário a princípio bastante limitado; poder-se-ia perguntar, por exemplo, em certas regiões rurais do Sul, por que e como se introduziu e propagou o hábito de deixar de cumprimentar os proprietários ricos da vizinhança, ou sob que influências se começa a perder a fé na bruxaria, nos lobisomens, etc.
108 /\s Leis Sociais
ou seja, as fisionomias individuais. É pouca coisa, é coisa muito
passageira, uma fisionomia de homem ou de mulher, afinada pela
vida social, pela vida de imitação intensa, complicada e contínua.
Mas nada é mais importante do que essa nuança fugidia. E o pintor
não perdeu o tempo que gastou para fixá-la, tampouco o poeta ou
o romancista que a faz reviver. O pensador não tem o direito de
sorrir diante de seus longos esforços para captar essa coisa quase
inatingível que nunca havia existido e que jamais voltará a existir.
Não existe ciência do individual, mas só existe arte do individual. E
o cientista, ponderando que a vida universal inteira está suspensa
na floração da individualidade das pessoas, teria de considerar o
trabalho do artista com uma modéstia um tanto invejosa se ele
mesmo, imprimindo necessariamente seu estilo pessoal à sua con
cepção geral das coisas, não lhe desse sempre um valor estético,
verdadeira razão de ser de seu pensamento.
Conclusão
*
Ehora de terminar, e para rematar, façamos um resumo
das principais conclusões às quais fomos conduzidos e
busquemos sua significação de conjunto. Vimos que toda
ciência vive de similitudes, de contrastes ou de simetrias, e de
harmonias - ou seja, de repetições, oposições e adaptações -
e indagamos qual é a lei de cada um desses três termos, bem
como a relação de cada um deles com os demais. Vimos que
o espírito humano, apesar de sua propensão natural - que a
princípio parece tão legítima - a ater-se aos maiores fenômenos,
aos mais imponentes, aos mais prestigiosos, para explicar os
menos visíveis, foi irresistivelmente conduzido a encontrar o
princípio das coisas, em toda ordem de fatos, nos fatos mais
recônditos, cuja fonte, a bem dizer, continua insondável para
ele. Essa constatação deveria causar-lhe uma grande surpresa,
mas não foi assim, pois o hábito da observação científica nos
familiarizou com essa reversão da ordem sonhada pelo pen
samento nascente. Assim, a lei da repetição, quer se trate da
repetição ondulatória e gravitacional do mundo físico, ou da
repetição hereditária e habitual do mundo vivo, ou da repetição
imitativa do mundo social, é a tendência de passar por via de
amplificação progressiva de um infinitesimal relativo a um infi
nito relativo. A lei de oposição não é diferente: ela consiste em
uma tendência a amplificar-se numa esfera sempre crescente a
partir de um ponto vital. Socialmente, esse ponto é o cérebro
de um indivíduo, a célula desse cérebro onde se produz, pela
interferência de ondas imitativas vindas de fora, uma contra
dição entre duas crenças ou dois desejos. Essa é a oposição
social elementar, princípio inicial das mais sangrentas guerras,
assim como a repetição social elementar é o fato individual do
primeiro imitador, ponto de partida de um imenso contágio
110 As Leis Sociais
de moda. A lei de adaptação, por fim, assemelha-se às ante
riores: a adaptação social elementar é a invenção individual a
ser imitada, ou seja, a feliz interferência entre duas imitações,
inicialmente num único espírito; e a tendência dessa harmonia
- que na origem é toda interior - é não somente exteriorizar-
-se ao se difundir, mas ainda acoplar-se logicamente, graças
a essa difusão imitativa, com alguma outra invenção, e assim
por diante, até que, por meio de complicações e harmonizações
sucessivas de harmonias, apareçam essas grandes obras cole
tivas do espírito humano: uma gramática, uma teologia, uma
enciclopédia, um corpo de direito, uma organização natural ou
artificial do trabalho, uma estética, uma moral.
Assim, em resumo, é certo que tudo vem do infinitesimal, e
acrescentemos, é provável que tudo a ele retorne. Ele é o alfa e o
ômega. Tudo o que constitui o universo visível, acessível às nossas
observações, tudo isso provém, como sabemos, do invisível e do
impenetrável, de um nada aparente do qual sai, de maneira ines
gotável, toda a realidade. Se nós refletíssemos sobre esse estranho
fenômeno, ficaríamos admirados com a potência do preconceito, ao
mesmo tempo popular e científico, que faz com que todo mundo -
tanto um Spencer como um desavisado - olhe para o infinitesimal
como algo insignificante, ou seja, homogêneo, neutro, sem nada
de característico ou espiritual. Ilusão inextirpável! E ainda mais
inexplicável na medida em que também nós, como todos os seres,
estamos destinados a voltar em breve, pela morte, a esse infinitesi
mal de onde saímos, esse infinitesimal tão desprezado, que poderia
muito bem ser, no fundo - quem sabe? - todo o verdadeiro além, o
único refúgio póstumo, procurado em vão nos espaços infinitos...
Seja como for, que razão teríamos para julgar a priori, sem conhecer
o mundo elementar, que apenas o mundo visível, o mundo espa
çoso e volumoso, é o teatro do pensamento, a sede de fenômenos
variados e viventes? Como podemos supor tal coisa, quando a cada
instante vemos emergir um ser individual, com sua fisionomia pró
Gabriel Tarde 111
pria e radiante, do fundo de um óvulo fecundado, do fundo de uma
parte desse óvulo, de uma parte que quanto mais a procuramos,
mais vai se circunscrevendo e esvanecendo, até não sei que ponto
inimaginável? Esse ponto, fonte de tamanha diferença, como julgá-
-lo indiferenciado? Eu sei bem qual é a objeção que me aguarda:
a pretensa lei da instabilidade do homogêneo. Mas ela é falsa, ela
é arbitrária, ela foi imaginada expressamente para conciliar um
preconceito (o de acreditar que aquilo que é indistinto aos nossos
olhos é indiferenciado em si mesmo) com a evidência das diversida-
des fenomenais, das exuberantes variações viventes, psicológicas
e sociais. A verdade é que apenas o heterogêneo é instável, e que
o homogêneo é essencialmente estável. A estabilidade das coisas
está em razão direta de sua homogeneidade. A única coisa na Na
tureza que é (ou parece ser) perfeitamente homogênea é o Espaço
geométrico, que não mudou desde Euclides. Tem-se a intenção de
dizer simplesmente que o menor germe de heterogeneidade, ao
ser introduzido num agregado relativamente homogêneo, como o
fermento na massa, provocará nele uma diferenciação crescente?
Isso eu contesto: num país ortodoxo, de unanimidade religiosa ou
política, a introdução de uma heresia ou de uma dissidência tem
muito mais chances de ser rapidamente reabsorvida ou expulsa do
que de crescer às expensas da Igreja ou da política reinantes. Eu não
nego a lei de diferenciação em suas aplicações orgânicas ou sociais,
mas ela estará sendo muito mal compreendida caso impeça a visão
da lei de uniformização crescente que se mistura e se entrelaça
com ela. Na realidade, a diferenciação da qual se quer falar é antes
a adaptação da qual falamos; por exemplo, a divisão do trabalho
em nossas sociedades não passa da associação ou coadaptação
progressiva de trabalhos diversos por meio de invenções sucessi
vas. Circunscrita em seus primórdios às tarefas caseiras, ela vai se
repetindo e ampliando sem cessar, estendendo-se primeiramente
à cidade, na qual as diversas tarefas, outrora semelhantes umas às
outras, porém diferenciadas interiormente, tornam-se diferentes
112 As Leis Sociais
umas das outras, mas separadamente mais homogêneas; depois
torna-se nacional, e em seguida internacional. Assim, não é verdade
que a diferença vá aumentando, pois se a cada instante aparecem
novidades e outras diferenças, também desaparecem antigas
diferenças; e levando em conta essa consideração, não teremos
nenhuma razão para pensar que a soma das diferenças, se é que
é possível somar coisas que não têm uma medida comum, tenha
aumentado no universo. Algo muito mais importante do que um sim
ples aumento de diferença acontece sem cessar: a diferenciação da
própria diferença. A própria mudança vai mudando, e num sentido
determinado, que nos encaminha de uma era de diferenças cruas
e justapostas, como de cores berrantes que não combinam, para
uma era de diferenças harmoniosamente nuançadas. Seja lá o que
se possa pensar dessa maneira de ver, é inconcebível que, segundo
a hipótese de uma substância homogênea eternamente submetida
à disciplina niveladora e coordenadora das leis científicas, tivesse
jamais podido existir um universo como o nosso, deslumbrante
em seu desmedido luxo de surpresas e caprichos. 0 que poderia
nascer a partir do perfeitamente semelhante e perfeitamente regra
do, a não ser um mundo eterna e imensamente tedioso? Do mesmo
modo, a essa concepção corrente do universo como formado por
uma poeira infinita de elementos, todos semelhantes no fundo e
dos quais a diversidade teria emergido sabe-se lá como, eu me
permito opor minha concepção particular que o representa como
a realização de uma multidão de virtualidades elementares,44 cada
qual caracterizada e ambiciosa, cada qual trazendo em si seu uni
verso distinto, seu universo próprio e de sonho. Pois o número de
projetos abortados por ele é infinitamente maior do que o número
de projetos desenvolvidos; e é entre os sonhos concorrentes, entre
os programas rivais, muito mais do que entre os seres, que acon
44 Ver a esse respeito o estudo Monadologie et Sociologie, publicado em EssaisetMélanges, Paris-Lyon, Storck et Masson, 1895. [Existe uma tradução brasileira: Monodologia e sociologia e outros ensaios, trad. de Paulo Neves, São Paulo, Cosac Naify, 2007. (N. do T.)]
Gabriel Tarde 113
tece a grande batalha pela vida que elimina os menos adaptados.
Dessa forma, o subsolo misterioso do mundo fenomenal seria tão
rico em diversidades - embora sejam outras diversidades - quanto
o patamar das realidades superficiais.
Mas, no fim das contas, a metafísica aqui esboçada é de es
cassa importância em relação a tudo que foi exposto até aqui, e é
entre parênteses que eu lanço essa hipótese, fazendo observar que,
mesmo rejeitada, ela deixará de pé as considerações mais sólidas
e positivas apresentadas anteriormente. Ela tão somente permite
abarcar, sob um mesmo ponto de vista, os dois tipos de verdades,
aparentemente estranhas entre si, que nós colhemos ao longo de
nosso caminho, a saber: aquelas que dizem respeito à progressão
regular das repetições, das lutas, das harmonias universais, ao
aspecto regular do mundo, alimento da ciência; e aquelas relativas
ao aspecto selvagem do mundo, presa extraordinária da arte em
perpétua renovação em face do que parece ser a eterna necessidade
do diverso, do desordenado, graças ao próprio funcionamento da
assimilação, da simetrização, da harmonização universais. Nada
é mais fácil de compreender do que essa aparente anomalia, se
supormos que as originalidades subfenomenais das coisas traba
lham não para apagar-se, mas para florescer num nível mais alto.
A partir disso, tudo se explica; e assim como as relações
mútuas entre os nossos três termos, repetição, oposição, adapta
ção, são facilmente inteligíveis quando consideramos a repetição
progressiva como algo que funciona a serviço da adaptação que
ela propaga e que, por suas interferências, ela desenvolve - mas
também como algo que às vezes funciona a favor da oposição, que
por interferências de outro tipo, ela também condiciona - pode-se
igualmente acreditar que todas as três colaboram para o floresci
mento da variação universal sob suas formas individuais e pessoais
mais elevadas, mais amplas e mais profundas.
(Outubro de 1897)