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COLEÇÃO RIZOMAS - VOL. 1 Um campo social dirigido pela técnica, pelo consumo e pelas exigências do mercado não é apenas danoso ao meio ambiente: ele é também nocivo à subjetividade de seus membros. Parece mesmo haver uma relação direta: quanto mais cresce o prodigioso corpo das sociedades modernas - mais máquinas, mais dispositivos, mais imagens, mais circulação de mercadorias - mais as subjetividades são diminuídas e amesquinhadas. Como disse Bergson, seria preciso inventar uma alma à altura desse corpo: novas maneiras de sentir e de pensar, novas possibilidades de vida. Cada cérebro é nele mesmo um rizoma que se ramifica em tantos outros rizomas; e se plantar árvores é muito bom, melhor ainda é cultivar rizomas e fazer com que proliferem uns nos outros. A coleção rizomas , voltada para a tradução de grandes pensadores contemporâneos, foi concebida como um estímulo a esse esforço, que é de todos e de cada um. IS8N ôsasacbfe'i-i "uff" Universidade Federal Fluminense editora da UFF Gabriel Tarde As Leis Sociais um esboço de sociologia Tradução e notas de Frantisco Traverso Fuchs Editora da UFF

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Gabriel Tarde - As leis sociais (português)

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Page 1: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

COLEÇÃO RIZOMAS - VOL. 1

Um campo social dirigido pela técnica, pelo consumo e pelas exigências do mercado não é apenas danoso ao meio ambiente: ele é também nocivo à subjetividade de seus membros. Parece mesmo haver uma relação direta: quanto mais cresce o prodigioso corpo das sociedades modernas - mais máquinas, mais dispositivos, mais imagens, mais circulação de mercadorias - mais as subjetividades são diminuídas e amesquinhadas. Como disse Bergson, seria preciso inventar uma alma à altura desse corpo: novas maneiras de sentir e de pensar, novas possibilidades de vida. Cada cérebro é nele mesmo um rizoma que se ramifica em tantos outros rizomas; e se plantar árvores é muito bom, melhor ainda é cultivar rizomas e fazer com que proliferem uns nos outros. A c o l e ç ã o r i z o m a s , voltada para a tradução de grandes pensadores contemporâneos, foi concebida como um estímulo a esse esforço, que é de todos e de cada um.

IS8N ôsasacbfe'i-i

"uff"UniversidadeFederalFlum inense editora da UFF

Gabriel Tarde

As Leis Sociaisum esboço de sociologia

Tradução e notas de Frantisco Traverso Fuchs

Editora da UFF

Page 2: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

© 2012 by Francisco T. Fuchs (Tradução brasileira)

Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal Fluminense

Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - Niterói - CEP. 24220-

900 — RJ — Brasil — Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: 2629-5288 - www.eduff.uff.br E-mai 1: [email protected]

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Normalização: Uilza Cláudia Rufmo Damasceno

Concepção de capa: F. T. FuchsCapa e projeto gráfico: Marcos Antonio de Jesus

Desenho da capa: M.C. Escher’s “Symmetry Drawing E21” © 2010 The M.C.

Escher Company-Holland. A li rights reserved.

________ Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)T181 Tarde, Gabriel 1843-1904

As leis sociais: um esboço de Sociologia/Gabriel Tarde; tradução e notas:

Francisco Traverso Fuchs - Niterói: Editora da UFF, 2011.

114 p. ; 21cm.

ISBN: 978-85-228-0669-0

Tradução de Les lois sociales. Esquisse d ’une sociologie.

1. Sociologia I. Título

_______ CDD 301

Universidade Federal FluminenseReitor: Roberto de Souza Salles

Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello

Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Antonio Claudio Lucas da

D iretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos

Seção de Editoração e Produção: Ricardo Borges

Seção de Distribuição: Luciene P. de Moraes

Seção de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos

Comissão Editorial Presidente: Mauro Romero Leal Passos

Ana Maria Martensen Roland Kaleff

Eurídice Figueiredo

Gizlene Neder

Heraldo Silva da Costa Mattos

Humberto Fernandes Machado

Luiz Sérgio de Oliveira

Marco Antonio Sloboda Cortez

Maria Lais Pereira da Silva

Renato de Souza Bravo

Rita Leal Paixão

Simoni Lahud Guedes

Tania de Vasconcellos

E d ito ra filia d a a

Associação Brasileira das Editoras Un iversitárias

Sumário

Nota do tradutor, 7

Prefácio, 17

Introdução, 19

Primeiro CapítuloRepetição dos fenômenos, 23

Segundo CapítuloOposição dos fenômenos, 49

Terceiro CapítuloAdaptação dos fenômenos, 83

Conclusão, 109

Page 3: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

Nota do tradutor

Jean-Gabriel de Tarde nasceu em Sarlat (hoje Sarlat-la-

-Canéda) no ano de 1843. Passou metade da vida servindo como

juiz na região de Dordogne, mas em 1894 foi nomeado diretor do

serviço de estatística judiciária do Ministério da Justiça, saindo

da província para viver em Paris. Dois anos depois, começou a le­

cionar na École Libre des Sciences Politiques, e posteriormente no

Collège Libre des Sciences Sociales, onde proferiu as conferências

reunidas neste livro. No início de 1900 obteve a cadeira de Filosofia

Moderna no Collège de France,1 que ocupou até 1904, ano de sua

morte. Celebrado em sua época como o grande nome da sociologia

francesa, Tarde polemizou com Lombroso e Durkheim e escreveu

obras que ajudaram a fundar a sociologia e a criminologia moder­

nas. Já nos primeiros anos do século XX, no entanto, a situação se

inverteu a favor de Durkheim, que

tornou-se o principal representante da sociologia como

disciplina científica, ao passo que Tarde havia sido evacua­

do para a prestigiosa (porém irrelevante) posição de mero

“precursor” - e um precursor não muito bom, já que havia

sido marcado para sempre pelos pecados do “psicologismo”

e do “espiritualismo”.2

Muitos anos se passariam até que o panorama mudasse

novamente, desta vez em favor de Tarde. Pode-se dizer que essa

virada começou a acontecer em 1968, quando Gilles Deleuze o

apresentou como o inventor de uma nova dialética da diferença e

1 Bergson, que também havia concorrido a essa vaga, obteve três meses depois a cadeira de Filosofia Grega e Latina, assumindo após a morte deTarde a cadeira de Filosofia Moderna. Bergson, Henri. Mélanges, Paris, PUF, 1972, p. 415,417 e 637.

2 Latour, Bruno. Gabriel Tarde and the End ofthe Social, www.bruno-latour.fr/sites/default/ files/82-TARDE-JOYCE-SOCIAL-GB.pdf (acessado em 11 de agosto de 2010).

Page 4: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

8 As Leis Sociais

da repetição.3 Com efeito, graças a Deleuze, Latour e outros, temos

hoje uma ideia muito mais adequada a respeito do pensamento de

Tarde e de sua importância.

As Leis Sociais, publicado originalmente em 1898 a partir de

uma série de conferências realizadas no ano anterior, oferece uma

breve síntese do pensamento tardeano e é uma excelente introdu­

ção à obra de Gabriel Tarde. 0 autor não apenas apresenta neste

livro seus três conceitos fundamentais, abordados separadamente

em livros anteriores, mas também mostra as relações existentes

entre eles, estabelecendo toda uma hierarquia complexa entre a

repetição, a oposição e a adaptação ou invenção. Trabalhando simul­

taneamente no plano da epistemologia e da ciência, Tarde procura

mostrar que os fenómenos físicos, biológicos e sociais se produzem

a partir de inumeráveis repetições, oposições e adaptações, e que

o conhecimento é primeiramente construído a partir da percepção

de repetições, oposições e adaptações “grandiosas” - vagas, impre­

cisas ou mesmo francamente errôneas - e vai ganhando contornos

mais precisos à medida que repetições, oposições e adaptações

menos grosseiras vão sendo percebidas:

É justamente porque tudo no mundo dos fatos caminha do

pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho inver­

tido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno

e, pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares

verdadeiramente explicativos em último lugar.4

A tese central defendida por Tarde neste seu esboço de

sociologia é a de que todas as ciências atingiram a maturidade ao

descobrir e compreender, em seus respectivos objetos, as verda­

3 Deleuze, Gilles. DifférenceetRépétition, Paris, PUF, 1981 (1968), p. 38,104."0 conjunto da filosofia de Tarde se apresenta deste modo: uma dialética da diferença e da repetição, que funda sobre toda uma cosmologia a possibilidade de uma microssociologia.”

4 Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, Paris, Félix Alcan, 1898, p. 88.

Gabriel Tarde 9

deiras repetições, oposições e adaptações, e que a sociologia só

ganhará status de ciência a partir do momento em que fizer o mes­

mo. Ora, para alcançar esse objetivo, a sociologia precisa descer

até os “fatos elementares”, infinitesimais, que são também os fatos

“verdadeiramente explicativos”. Assim como a biologia descobriu

na célula e na atividade celular o fato biológico elementar, é preciso

que a sociologia descubra o fato social elementar. Isso equivale a

dizer que, para ultrapassar as analogias vãs e as entidades imagi­

nárias que ainda encontravam eco na sociologia de sua época (por

exemplo, as analogias entre as sociedades e os organismos vivos,

a crença no suposto “gênio” de um povo ou de uma raça, a socie­

dade como uma espécie de “pessoa divina” exterior e superior aos

indivíduos, moldando-os sem jamais ser por eles moldada), Tarde

precisava descer até o plano molecular da sociedade, lá onde ela é

efetivamente produzida por movimentos reais: ou seja, por atos de

indivíduos sobre indivíduos. No entanto, assim como o átomo não

é o limite absoluto da matéria, o indivíduo não constitui o termo

último de um campo social. Aquém do indivíduo existe algo que é

pré-individual, e embora o indivíduo seja o único agente social, ele

mesmo só pode ser compreendido a partir dos elementos infinite­

simais que o constituem. Esses elementos são os desejos e crenças

que atravessam os indivíduos e que se propagam, se opõem e se

adaptam em seu percurso. Não é que Tarde transforme os homens

em impessoais “portadores” de desejos e crenças; é antes como

se o indivíduo produzisse sua diferença justamente no jogo aberto

entre os desejos e crenças que o atravessam e que ele incorpora,

opõe ou modifica, dando origem (nesse último caso) a um novo

desejo ou crença. Se a Ciência tem por objeto aquilo que se repete,

apenas a Arte poderá dar conta dessas singularidades que são os

indivíduos; mas se os indivíduos são sui generis, é porque cada

um deles é um lance de dados único, lançado e relançado a cada

momento a partir das singularidades pré-individuais (desejos e

crenças) que o atravessam e constituem. E se porventura uma

Page 5: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

10 As Leis Sociais

sociedade qualquer também apresenta esse aspecto sui generis, é

simplesmente porque ela é a integral de todos esses lances de da­

dos, a integração dinâmica de múltiplos processos de diferenciação.

Atento à revolução introduzida pelo cálculo diferencial e integral,

Tarde esboçará (curiosamente, numa nota de pé de página) todo

um método sociológico baseado em registros monográficos das

variações pontuais de desejos e crenças.5 Por fim, à guisa de con­

clusão, Tarde retorna a um tema esboçado na primeira conferência

e apresenta (ainda que à margem, como ele mesmo diz) algumas

especulações cosmológicas sobre a natureza da própria matéria

(o infinitesimal no sentido absoluto), que, segundo ele, não é uma

“poeira infinita” de elementos homogêneos, mas uma “multidão de

virtualidades elementares”.

Eu diria que Tarde é um autor infinitamente mais fácil de ler

do que de traduzir. Suas longas frases repletas de interpolações não

chegam a dificultar a leitura, mas sem dúvida põem qualquer tradu­

tor à prova. Tentei interferir o mínimo possível no estilo tardeano,

ainda que algumas vezes tenha me sentido forçado, para efeito de

clareza, a alterar a pontuação e o ritmo das frases. Também tentei

não multiplicar desnecessariamente o número de notas, servindo-

-me desse recurso ora para fornecer uma rápida referência, ora para

apontar uma curiosidade de estilo do texto original. Com relação

ao aspecto técnico ou conceituai da tradução, houve apenas uma

dificuldade realmente digna de nota.6

5 "Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso nâo é verdadeiro. Pode-se muito bem acumular cons­tatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados." Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, op. cit., p. 154.

6 Tarde usa como noções correlatas as locuções rayon im ita tif e rayonnement im ita tif (literalmente, "raio im itativo" e "irradiação imitativa"). Como notou Bruno Latour (op. cit.), a locução raio im itativo é um tanto extravagante, e o próprio Tarde não a usou em

Gabriel Tarde 11

Para concluir esta breve apresentação, gostaria de chamar a

atenção para um ponto que me parece essencial. Nenhum homem,

ainda que seja um visionário, consegue escapar inteiramente à sua

época, e o leitor atento há de verificar, ao ler as entrelinhas (ou as

linhas mesmas) desta ou daquela passagem, que Tarde é um autor

do século XIX. Nada há de surpreendente nisso; em compensação,

o que é verdadeiramente espantoso é que esse pensador intempes­

tivo, que não se alinhou a nenhuma escola ou corrente ideológica,

pudesse estar tão à frente de seu tempo. Segundo Bergson, o

pensamento de Tarde

nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver nas iniciati­

vas individuais e em sua irradiação a verdadeira causa do

que se faz numa sociedade, e mesmo do que acontece no

mundo. Seduzidos pelos admiráveis sucessos das ciências

físicas, nós nos inclinamos excessivamente a construir as

ciências sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como prin-

Lois de L'Imitation, embora tenha usado a locução courant im ita tif (corrente imitativa). Assim, meu primeiro impulso foi o de usar a palavra "corrente". Entretanto, ao traduzir- -se rayon por corrente quebra-se o vínculo etimológico (e acima de tudo o vínculo iógico) entre o rayon (do qual todos os imitadores participam) e o rayonnement, que remete à fonte de uma novidade, ao seu inventor ou agenciador. Ficaria enfraquecida a importante analogia que o autor estabelece entre as"correntes im itativas"e as ondas físicas: o leitor tenderia a pensar a "corrente" mais como uma "continuidade de ligação entre elos" do que como um fluxo que possui uma origem definida e qúe pode inter­ferir em outro fluxo, ou seja, como algo semelhante a uma onda eletromagnética. Por fim, essa escolha tornaria mais difícil, para o leitor de língua portuguesa, a distinção entre as ocorrências de rayon e de courant no texto original. Minha segunda opção foi o uso do termo onda para traduzir rayon. Nesse caso, somente o vínculo etimológico seria perdido; e nas passagens em que Tarde realmente utiliza o termo onde (onda), ele sempre se refere explicitamente a ondas físicas, o que tornaria mais fácil distinguir os dois usos. No entanto, embora tenha achado essa solução (onda imitativa), que foi aliás utilizada por Bergson, a mais elegante de todas, acabei optando pela tradução literal da palavra rayon e de todas as locuções de que ela participa; raio, raio imitativo, raios de exemplos. Se os próprios franceses experimentam um estranhamento diante da escolha original de Tarde, não há razão para suprimir essa estranheza na tradução. Obviamente, essa escolha resolve, em definitivo, todas as dificuldades mencionadas acima. Por fim, a palavra "irradiação" me pareceu, em todos os casos, bem melhor do que "influência", que é um dos significados de rayonnement e que seria uma tradução aceitável em determinados contextos.

Page 6: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

12 As Leis Sociais

cípio que a evolução das sociedades deve obedecer a leis

inelutáveis, anos representar os acontecimentos históricos

como resultados necessários de forças cegas, impessoais,

que se comporiam entre si mecanicamente. Contra essa

tendência, que se tornou natural ao nosso espírito, toda

a filosofia de Tarde protesta. As sociedades humanas são,

sem dúvida, atravessadas por correntes; mas na origem de

cada corrente há uma impulsão, e es sa impulsão vem de um

homem. Assim como a história de cada um de nós se explica

pelas iniciativas tomadas e pelos hábitos contraídos, a vida

das sociedades é feita de invenções que surgiram aqui e ali

e das modificações duráveis a que essas invenções condu­

ziram ao serem adotadas.7

O que essas palavras - e, portanto, o pensamento de Tarde

- têm a ver com nossa existência concreta, aqui e agora, para além

(ou aquém) de todas as querelas acadêmicas? Vivemos uma época

difícil, marcada pelo fim das utopias, pela consolidação de uma

ordem mundial nada auspiciosa (que valoriza somente nossa força

de trabalho e nossa capacidade de consumo) e por uma crescente

dissolução do campo social. E nós vivemos o fim das utopias mais

ou menos do mesmo modo que Nietzsche descreveu a derrocada

dos valores superiores: como se a ausência desses projetos de

futuro decretasse a desvalorização generalizada da vida, a perda

do sentido, a total impossibilidade de ação, a vigência do cinismo.

Nós nos sentimos - e esse me parece ser o ponto crucial - peque­

nos demais diante das enormes mudanças que teriam de ocorrer

e das potências que supostamente teríamos de enfrentar. Em uma

palavra, nós nos sentimos infinitesimais diante de um onipresente

“sistema” ao qual nada escapa e que não saberíamos ou poderíamos

modificar. Afinal, já não temos um projeto que pudéssemos opor à

7 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélangés, op.cit., p. 799-800.

Gabriel Tarde 13

progressiva transformação do homem num homo economicus, sim­

ples apêndice descartável de um sistema globalizado de produção

de bens e serviços.8

Diante desse quadro sombrio, a microssociologia de Tarde

é uma rajada de ar fresco. Ela vem nos mostrar que tudo, absolu­

tamente tudo, vem precisamente do infinitesimal, e que a solução

dos nossos problemas talvez não venha de um único e grandioso

projeto de sociedade, mas de pequenas ações e pensamentos ino­

vadores capazes de infiltrar-se como a água e espalhar-se como

o fogo. Assim como as moléculas são o infinitesimal da vida e as

partículas são o infinitesimal da matéria, nós somos - com nossos

desejos e crenças - o infinitesimal da sociedade. E em todos os

níveis, a potência inventiva está no infinitesimal.

Evidentemente, nossos hábitos de pensamento tendem a

rejeitar essa maneira de perceber a realidade social. Confron­

tados com ela, nossa primeira reação será a de dizer que seria

muita pretensão pensar que podemos fazer alguma diferença na

imensa ordem das coisas. Mas não seria exatamente o contrário?

Não estaríamos sendo pretensiosos ao afirmar a existência de

limites a respeito dos quais nada sabemos? Pois a verdade é que

não sabemos, e jamais poderíamos saber de antemão, qual será o

alcance da menor das nossas ações e do mais casual dos nossos

pensamentos. Hoje, quem nos sugere essa maneira de ver é a pró­

pria ciência contemporânea (tão diferente da ciência na época de

Tarde), uma vez que o chamado efeito borboleta aplica-se também

às realidades sociais. Mas será que podemos atribuir essa maneira

de ver a Gabriel Tarde sem com isso projetar retrospectivamente

uma teoria científica relativamente recente no pensamento de um

autor do século XIX? Sim, nós podemos e mesmo devemos fazê-lo,

como sugere este texto admirável que Bergson escreveu a respeito

de seu colega no Collège de France;

Obviamente, não estou levando em consideração projetos de sociedade de caráter explicitamente totalitário ou teocrático, ou seja, antidemocráticos por excelência.

Page 7: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

14 As Leis Sociais

Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode acar­

retar consequências incalculáveis, como um simples gesto

individual, caindo no meio social como uma pedra na água

de uma bacia, o abala por inteiro por meio de ondas imita-

tivas que vão sempre se alargando, ela [a obra de Tarde]

nos dá um sentimento agudo de nossa responsabilidade.

Revelando-nos tudo o que devemos a outrem, inventores em

certos momentos, mas imitadores durante a vida inteira, ela

esclarece e fortifica em nós o sentimento de solidariedade.

Remetendo ao costume muitas coisas que normalmente con­

sideramos como pertencentes à natureza; fazendo remontar

apensamentos individuais, a vontades individuais, aorigem

de transformações profundas da sociedade e da humanida­

de, ela nos desabitua a crer em fatalidades históricas; ela

nos convida a agir, a ganhar confiança em nós mesmos, a

jamais desesperar com o presente, a encarar tranquilamente

o porvir. Para além da inteligência à qual se dirige, é a von­

tade que ela atinge, estimula e torna mais firme.9

Talvez estejamos demasiadamente acostumados a pensar

em termos de grandes projetos e de grandiosas finalidades para

que possamos compreender de imediato o alcance dessas pala­

vras. Longe de constituírem uma exaltação das prerrogativas da

consciência, o que seria um total contrassenso na medida em que

remeteria ainda ao plano dos projetos e finalidades, elas se referem

a forças que atravessam os indivíduos e, consequentemente, um

campo social dado. Pois esse gesto ou iniciativa “individual” de que

fala Bergson envolve precisamente algo que é de outra natureza:

um puro fluxo de desejo ou crença. Os partidários de Durkheim

9 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 800-801. Grifo meu.

Gabriel Tarde 15

responderam que isso era psicologia ou inter-psicologia, e

não sociologia. Mas isso não é verdade a não ser na aparên­

cia, ou numa primeira aproximação: uma micro-imitação

parece ir, com efeito, de um indivíduo a outro. Ao mesmo

tempo, e mais profundamente, ela remete a um fluxo ou a

uma onda, e não ao indivíduo... A imitação, a oposição e a

invenção infinitesimais são como quanta de fluxos, que mar­

cam uma propagação, uma binarização ou uma conjugação

de crenças e desejos.10

O que pode acontecer quando estudantes fazem uma reivin­

dicação? Ou então: qual é a potência de uma ideia nova, ou talvez

nem tão nova assim, porém formulada de uma nova maneira? Qual

é a potência da mais inocente das crenças, do mais inocente dos

desejos? Não se sabe, não se pode sabê-lo de antemão. Eu diria que

Tarde é um autor revolucionário: a revolução é que nao era o que

pensávamos. “Tarde preocupou-se muito menos com a natureza

íntima dos elementos, seu estado original e seu estado final, do que

com sua ação recíproca”.11 O segredo de um devir revolucionário,

que por sinal nada tem a ver com as “metas” de uma revolução, não

depende necessariamente de barricadas, mas certamente envolve

essa ação recíproca entre os homens — para além do otimismo e

do pessimismo, das utopias e distopias, para além do desespero

e da própria esperança.

10 Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Mille Plateaux, Paris, De minuit, 1980, p. 267." Bergson, Henri. Préface aux "Pages Choisies"de G. Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 812.

Page 8: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

Prefácio

Neste pequeno volume, que contém a substância de várias conferên­

cias realizadas no Collège libre des sciences sociales em outubro de

1897, tentei oferecer não somente nem precisamente o resumo ou a

quintessência de minhas três obras principais de sociologia geral -

as Leis da Imitação, a Oposição Social e a Lógica Social - mas ainda,

e acima de tudo, o laço íntimo que as une. Essa conexão, que pode

muito bem ter escapado ao leitor desses livros, é aqui iluminada

por considerações de ordem mais geral. Elas permitem, ao que me

parece, abarcar num mesmo ponto de vista esses três pedaços, pu­

blicados separadamente, de um mesmo pensamento, esses membra

disjecta12 de um mesmo corpo de ideias. Talvez me digam que desde

o início eu poderia ter apresentado num todo sistemático o que dividi

em três publicações. Mas as obras em vários volumes afugentam,

e com alguma razão, o leitor contemporâneo; além disso, para que

fatigar-nos com essas grandes construções unitárias, com esses

edifícios completos? Se aqueles que nos acompanham terão tanta

pressa em demolir essas edificações para servir-se de seus materiais

ou apropriar-se de um pavilhão destacado, mais vale poupar-lhes o

trabalho da demolição e entregar-lhes o pensamento em fragmen­

tos. Todavia, para uso dos espíritos singulares que se comprazem

em reconstruir aquilo que se lhes oferece em estado fragmentado,

tal como outros em quebrar aquilo que se lhes apresenta acabado,

talvez não seja inútil juntar às partes esparsas da obra um desenho,

um esboço que indique o plano de conjunto que teríamos executado

com gosto se para tanto tivéssemos sentido a força e a audácia. Essa

é toda a razão de ser desta pequena brochura.

G.T.

Abril de 1898.

12 Tradução livre: partes dispersas, separadas. (N. do T.)

Page 9: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

Introdução

Ao percorrer o museu da história e a sucessão de seus

quadros multicoloridos e heteróclitos, ao viajar através

dos povos, todos eles diversos e cambiantes, a primeira

impressão do observador superficial é a de que os ienômenos da

vida social escapam a qualquer fórmula geral, a qualquer lei cien­

tífica, e que a pretensão de fundar uma sociologia é uma quimera.

Mas os primeiros pastores que observaram o céu estrelado e os

primeiros agricultores que tentaram adivinhar os segredos da

vida das plantas devem ter ficado igualmente impressionados pela

resplandecente desordem do firmamento, pela multiformidade de

seus meteoros, pela exuberante diversidade das formas vegetais

e animais; e a ideia de explicar o céu e a floresta por um pequeno

número de noções logicamente encadeadas sob o nome de astro­

nomia e de biologia, essa ideia, se ela pudesse ocorrer-lhes, teria

sido a seus olhos o cúmulo da extravagância. Com efeito, não existe

menos complicação, irregularidade real e aparente capricho no

mundo dos meteoros ou no interior de uma floresta virgem do que

na balbúrdia da história humana.

Como, então, a despeito da sinuosa diversidade dos estados

celestes ou dos estados silvestres, das coisas físicas ou das coisas

viventes, chegou-se a gerar e fazer crescer, pouco a pouco, um

embrião de mecânica ou de biologia? Isso se deve a três condi­

ções que importa distinguir claramente para formular uma noção

precisa e completa de como convém entender esse substantivo

e esse adjetivo tão utilizados, ciência e científico. Em primeiro

lugar, começou-se a perceber algumas similitudes no meio dessas

diferenças, algumas repetições entre essas variações: os retornos

periódicos dos mesmos estados do céu, das mesmas estações, o

curso regularmente repetido das idades - juventude, maturidade,

velhice - no seres vivos, e os traços comuns aos indivíduos de uma

Page 10: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

20 /As Leis Sociais

mesma espécie. Não existe ciência do individual considerado nele

mesmo; só existe ciência do geral, ou seja, do indivíduo conside­

rado como repetido ou suscetível de ser repetido indefinidamente.

A ciência é uma ordenação de fenômenos encarados pelo viés

de suas repetições. Isso não quer dizer que diferenciar não seja um

dos procedimentos essenciais do espírito científico. Diferenciar,

tanto quanto assimilar, é fazer ciência; mas somente na medida

em que a coisa que se discerne é um tipo extraído, na natureza,

de um certo número de exemplares, e mesmo suscetível de ser

reeditado indefinidamente. Pode-se descobrir um tipo específico

e caracterizá-lo claramente, mas se ele for julgado como sendo o

privilégio de um indivíduo único, incapaz de ser transmitido à sua

posteridade, não terá interesse para o cientista senão a título de

curiosidade teratológica.

Repetição significa repetição conservadora, causação sim­

ples e elementar sem nenhuma criação, pois - como mostram a

transmissão de movimento de um corpo a outro ou a comunicação

da vida de um ser vivo ao rebento que dele nasceu - o efeito re­

produz a causa de maneira elementar. Mas também a destruição

dos fenômenos, e não apenas sua reprodução, é importante para a

ciência. Assim, seja qual for a região da realidade à qual se aplique, a

ciência deve buscar, em segundo lugar, as oposições que ali existem

e que lhe são próprias: ela estará atenta, portanto, ao equilíbrio de

forças e à simetria das formas, às lutas entre os organismos vivos,

aos combates de todos os seres.

Mas isso não é tudo, e nem mesmo é o essencial. É preciso,

antes de mais nada, estar atento às adaptações dos fenômenos, às

suas relações de coprodução verdadeiramente criadora. É para

captar, depurar e explicar essas harmonias que o cientista trabalha;

e descobrindo-as, ele chega a constituir essa adaptação superior: a

harmonia entre seu sistema de noções e fórmulas e a coordenação

interna das realidades.

Gabriel Tarde 21

Assim, a ciência consiste em considerar uma realidade qual­

quer sob três aspectos: as repetições, as oposições e as adaptações

que ela encerra, e que tantas variações, tantas dissimetrias, tantas

desarmonias impedem de ver. A relação entre causa e efeito não

constitui, por ela mesma, o elemento próprio do conhecimento

científico. Se assim fosse, a história pragmática, que é sempre um

encadeamento de causas e efeitos, e que sempre nos ensina que

tal batalha ou tal insurreição teve tais consequências, seria o mais

perfeito exemplar da ciência. Sabemos, no entanto, que a história

só se torna uma ciência na medida em que as relações de causa­

lidade que ela assinala aparecem como estabelecidas entre uma

causa geral, suscetível de repetição ou repetindo-se de fato, e um

efeito geral, não menos repetido ou suscetível de sê-lo. Por outro

lado, a matemática jamais nos mostra a causalidade em obra; e

quando ela a postula sob o nome de função, é dissimulando-a sob

uma equação. No entanto, a matemática é^uma ciência e mesmo o

protótipo da ciência. Por quê? Porque em parte alguma é realizada

uma eliminação tão completa do lado dessemelhante e individual

das coisas, em lugar algum elas se apresentam sob o aspecto de

uma repetição tão precisa e tão definida, e de uma oposição tão

simétrica. A grande lacuna da matemática é a de não enxergar,

ou enxergar mal, as adaptações dos fenômenos. Daí advém sua

insuficiência, tão vivamente sentida pelos filósofos, mesmo e

especialmente por geômetras como Descartes, Comte, Cournot.

Repetição, oposição, adaptação: essas são, repito, as três di­

ferentes chaves que a ciência usa para abrir os arcanos do universo.

Ela busca, antes de qualquer coisa, não exatamente as causas, mas

as leis de repetição, as leis de oposição, as leis de adaptação dos fe­

nômenos. São três tipos de leis (e é importante não confundi-las) tão

solidárias quanto distintas: em biologia, por exemplo, a tendência

das espécies a se multiplicar segundo uma progressão geométrica

(lei de repetição) é o fundamento da concorrência vital e da seleção

(lei de oposição); e a produção de variações individuais, de aptidões

Page 11: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

22 As Leis Sociais

e harmonias individuais diferentes, assim como a correlação de

crescimento (lei de adaptação)13 são necessárias ao seu funcio­

namento. Mas entre essas três chaves, a primeira e a terceira são

muito mais importantes do que a segunda: a primeira é a grande

chave-mestra, a terceira, mais sutil, da acesso aos tesouros mais re­

cônditos e mais preciosos; a segunda, intermediária e subordinada,

revela-nos os choques e as lutas de utilidade passageira, espécie

de termo médio destinado a se esvanecer pouco a pouco, embora

jamais completamente, e a só desaparecer, ainda que parcialmente,

depois de numerosas transformações e atenuações.

Essas considerações eram necessárias para indicar o que a

sociologia deve ser caso deseje merecer o nome de ciência, e para

que caminhos os sociólogos devem dirigi-la se eles se importam

em vê-la assumir decididamente o posto que lhe pertence. Como

qualquer outra ciência, ela não poderá fazê-lo a não ser possuindo

seu próprio domínio de repetições, seu próprio domínio de oposi-

Ções e seu próprio domínio de adaptações, todos característicos

e exclusivos. Ela não progredirá a não ser esforçando-se, como

fizeram todas as ciências anteriores, para sempre substituir as

falsas repetições por repetições verdadeiras, as falsas oposições

por oposições verdadeiras, as falsas harmonias por harmonias

verdadeiras, e para substituir repetições, oposições e harmonias

verdadeiras, porém vagas, por repetições, oposições e adaptações

cada vez mais precisas. Coloquemo-nos sucessivamente em cada

um desses pontos de vista para verificar inicialmente se a evolução

das ciências em geral, e da sociologia em particular, se fez e se faz

no sentido que eu acabo de definir imperfeitamente, e que preten­

do definir cada vez melhor; e em seguida, para indicar as leis do

desenvolvimento social sob cada um desses aspectos.

Note-se que Cuvier e os naturalistas de sua época (inclusive seu adversário Lamarck) bus­caram, sobretudo, as leis de adaptação, enquanto Darwin e seus discípulos evolucionistas abordaram os fenômenos da vida dando preferência aos aspectos relativos às suas repeti­ções e às suas oposições (lei de Malthus e lei da concorrência vital), embora, por certo, eles também tenham se preocupado com aquilo que importa acima de tudo, a adaptação vital.

Primeiro capítulo

Repetição dos fenômenos

Coloquemo-nos na presença de um grande objeto: o

céu estrelado, o mar, uma floresta, uma multidão, uma

cidade. De todos os pontos desse objeto emanam im­

pressões que assediam os sentidos do selvagem, bem como os

do cientista. Neste, porém, essas sensações múltiplas e inco­

erentes sugerem noções logicamente agenciadas, um feixe de

fórmulas explicativas. Como ocorreu a lenta elaboração dessas

sensações em noções e em leis? Como o conhecimento dessas

coisas se tornou cada vez mais científico? Eu diria que isso

aconteceu, em primeiro lugar, à medida que mais similitudes

foram descobertas, ou que, depois de se ter acreditado ver

similitudes superficiais, aparentes e decepcionantes, similitu­

des mais reais e profundas foram percebidas. Em geral, isso

significa que se passou de similitudes e repetições de massa,

complexas e confusas, a similitudes e repetições de pormenor,

mais difíceis de captar, porém mais precisas, elementares e

infinitamente numerosas, bem como infinitesimais. E somente

depois que essas similitudes elementares foram percebidas é

que as similitudes superiores, mais amplas, mais complexas,

mais vagas, puderam ser explicadas e reduzidas ao seu justo

valor. Esse progresso ocorreu cada vez que muitas origina-

lidades distintas, anteriormente julgadas sui generis, foram

assimiladas em combinações de similitudes. Isso não quer

dizer que a ciência, ao progredir, faça desaparecer ou mesmo

diminuir a proporção de originalidades fenomenais, os aspectos

não repetidos da realidade. É verdade que as originalidades

de massa, grandes e visíveis, se dissolvem sob o olhar mais

penetrante do observador, mas em proveito de originalidades

Page 12: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

24 ■As Leis Sociais

mais profundas e recônditas que vão se multiplicando inde­

finidamente, juntamente com as uniformidades elementares.

Apliquemos o que foi dito ao céu estrelado. Houve um início

de ciência astronômica a partir do momento em que pastores ocio­

sos e curiosos notaram a periodicidade das revoluções celestes

aparentes, o levantar e deitar das estrelas, os passeios circulares

do Sol e da Lua, a sucessão regular e o retorno regular de suas

posições no céu. Mas certos astros pareciam constituir exceções

em face da generalidade dessa única e grandiosa revolução circular:

as estrelas errantes, os planetas, aos quais se atribuía uma marcha

caprichosa, a cada instante diferente dela mesma e das demais;

até que se percebeu quanta regularidade havia nessas anomalias.

Julgava-se, aliás, que todas as estrelas fixas e errantes, sóis e pla­

netas, aí compreendidas as estrelas cadentes, eram semelhantes

entre si, e só se estabelecia uma diferença marcante entre elas e ó

Sol ou a Lua, que gozavam da reputação de serem os únicos astros

verdadeiramente originais do firmamento.

Ora, a astronomia progrediu quando, por um lado, essa

aparente rotação do céu inteiro, enorme e única, foi substituída

pela realidade de uma inumerável quantidade de pequenas rota­

ções muito diferentes entre si, e que não apresentavam nenhuma

sincronia, cada qual se repetindo indefinidamente; e quando, por

outro lado, a originalidade do Sol desapareceu, substituída por

uma originalidade mais difícil de perceber, a de cada estrela, sol

de um sistema invisível, centro de um mundo planetário análogo

ao turbilhão de nossos planetas.

A astronomia deu um passo ainda maior quando as diferenças

dessas gravitações siderais, cuja generalidade sem exceções não

excluía a desigualdade de velocidade, de distância, de elipticidade,14

etc., desapareceram diante da lei de gravitação newtoniana, que

apresentou todas as periodicidades de movimento, das menores

14 No orig ina l, ellipticité, caráter de uma figura (no caso, de uma órb ita ) e líp tica(N. doTJ.

Gabriel Tarde 25

às maiores, das mais rápidas às mais lentas, como a repetição in­

cessante e contínua de um mesmo fato: a atração em razão direta

das massas e em razão inversa ao quadrado das distâncias. E seria

ainda melhor se, explicando esse mesmo fato por meio de uma

hipótese audaciosa, sempre perseguida e sempre obsedante, fosse

possível enxergar aí o efeito da pressão de átomos etéreos, pressão

decorrente de vibrações atômicas de uma inimaginável exiguidade,

mas também de uma inconcebível multiplicidade.

Não terei razão ao dizer que a ciência astronômica trabalhou

o tempo todo com similitudes e repetições, e que seu progresso

consistiu em partir de similitudes e repetições únicas ou bem pouco

numerosas, gigantescas e aparentes, para chegar a uma infinidade

de similitudes e repetições infinitesimais, reais e elementares, que

aliás permitiram, ao surgirem, explicar as primeiras?

E será possível dizer - entre parênteses - que o céu tenha

perdido algo de seu caráter pitoresco à medida que a astronomia

progredia? De modo algum. Em primeiro lugar, a precisão cres­

cente dos instrumentos e das observações permitiu distinguir nas

gravitações repetidas dos astros muitas diferenças antes desper­

cebidas, sendo fonte de novas descobertas, notadamente a de Le

Verrier.15 Depois o firmamento se ampliou cada vez mais, e na sua

imensidade aumentada, foram acentuadas as desigualdades de

volume, de velocidade e de particularidades físicas entre astros e

grupos de astros. As variedades de configuração das nebulosas se

multiplicaram, e quando o uso do espectroscópio (coisa inaudita)

tornou possível analisar tão maravilhosamente a composição quí­

mica dos corpos celestes, foram constatadas entre os seres que

as povoam dessemelhanças que se pode chamar de profundas.

Enfim, percebeu-se melhor a geografia dos astros mais próximos, e

se julgarmos os demais a partir desses, deve-se acreditar - depois

15 Urbain Le Verrier, matemático e astrônomo francês que em 1846 previu, somente com base em cálculos e na observação da órbita do planeta Urano, a existência do planeta Netuno. (N.doT.)

Page 13: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

26 As Leis Sociais

de haver estudado os canais de Marte, por exemplo - que cada um

dos inumeráveis planetas a gravitar sobre nossas cabeças ou sob

nossos pés possui seus acidentes característicos, seu mapa-múndi

especial, suas particularidades locais que, lá como aqui, dão a cada

canto do solo seu charme peculiar e imprimem, sem nenhuma

dúvida, o amor pela terra natal no coração de seus habitantes,

sejam eles quais forem.

A meu ver, isso não é tudo - porém digo-o baixinho, com

receio de incorrer na grave censura de fazer metafísica... Eu creio

que é impossível explicar as dessemelhanças às quais me refiro -

mesmo que fossem apenas essas desigualdades de posição e essa

caprichosa distribuição de matéria através do espaço - pela hipó­

tese, tão cara aos químicos (que são, quanto a isso, os verdadeiros

metafísicos), de elementos atômicos perfeitamente semelhantes.

Creio que a pretensa lei de Spencer sobre a instabilidade do homo­

gêneo nada explica, e que, por consequência, a única maneira de

explicar a floração de exuberantes diversidades à superfície dos

fenômenos é admitir no fundo das coisas uma tumultuosa infinidade

de elementos caracterizados individualmente. Assim, do mesmo

modo que as similitudes de massa foram resolvidas em similitudes

de pormenor, as diferenças de massa, grosseiras e bem visíveis,

se transformaram em diferenças de pormenor infinitamente sutis.

E assim como as similitudes de pormenor permitem explicar por

si mesmas as similitudes de conjunto, as diferenças de pormenor,

essas originalidades elementares e invisíveis que eu vislumbro,

permitem igualmente explicar por si mesmas as diferenças apa­

rentes e grandiosas, o pitoresco do universo visível.

Temos aí o mundo físico. No mundo vivo acontece a mesma

coisa. Coloquemo-nos, como o homem primitivo, no meio de uma

floresta. Existe ali toda a fauna e flora de uma região, e nós sabe­

mos agora que os fenômenos tão dessemelhantes apresentados

por esses diversos animais e plantas se resolvem, no fundo, numa

enorme quantidade de pequenos fatos infinitesimais resumidos

Gabriel Tarde 27

pelas leis da biologia, biologia animal ou vegetal, pouco importa;

atualmente ambas se confundem. Mas no início se diferenciava

profundamente o que hoje assimilamos, ao passo que muitas

coisas que hoje diferenciamos eram assimiladas. As similitudes e

as repetições percebidas então, das quais se alimentava a ciência

nascente dos organismos, eram superficiais e decepcionantes:

foram assimiladas plantas sem nenhum parentesco, cujo porte e

folhagem eram vagamente assemelhados, enquanto era traçado

um abismo entre plantas da mesma família, mas de talhe e silhueta

bastante desiguais. A ciência botânica progrediu ao aprender que

os caracteres mais importantes, isto é, mais repetidos e mais sig­

nificativos, acompanhados por um cortejo de outras similitudes,

não. eram os mais visíveis; ao contrário, eram os mais recônditos,

os mais sutis, ou seja, aqueles concernentes aos órgãos de repro­

dução: por exemplo, o fato de ter um ou dois cotilédones, ou de

não ter nenhum.

E a biologia, síntese da zoologia e da botânica, nasceu no dia

em que a teoria celular mostrou que, tanto nos animais como nas

plantas, a célula era o elemento infinitamente repetido, primeira­

mente a célula germinal, e depois todas as outras que dela proce­

dem; e que o fenômeno vital elementar é a repetição indefinida, em

cada célula, dos modos de nutrição e de atividade, de crescimento

e de proliferação, cujo depósito tradicional ela recebeu de herança

e transmitirá fielmente à sua posteridade. Essa conformidade aos

precedentes que se chama de hábito ou de hereditariedade - diga­

mos, numa palavra, hereditariedade, já que o hábito é uma here­

ditariedade interna e a hereditariedade é um hábito exteriorizado

- é a forma propriamente vital da repetição; tal como a ondulação

ou, em geral, o movimento periódico, é sua forma física, tal como

a imitação, como veremos, é sua forma social.

Vemos, portanto, que o progresso da ciência dos seres

vivos teve como efeito derrubar gradualmente todas as barreiras

que existiam entre eles do ponto de vista de suas similitudes e

Page 14: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

28 /)s Leis Sociais

repetições, substituindo, também ali, semelhanças grosseiras e

aparentes, grandiosas e pouco numerosas, por semelhanças muito

precisas, inumeráveis e infinitesimais, que são as únicas capazes de

explicar as primeiras. Mas ao mésmo tempo aparecem distinções

múltiplas, e não apenas a originalidade de cada indivíduo se torna

mais evidente, mas também somos forçados a admitir originalida-

des celulares, e em primeiro lugar germinais: pois não existe nada

tão semelhante quanto duas células germinais, mas existirá algo

mais diferente do que seu conteúdo? Depois de experimentar a

insuficiência das explicações propostas por Darwin e Lamarck a

respeito da origem das espécies - cujos termos comuns, por sinal,

a descendência, a evolução, permanecem para além de qualquer

contestação - é preciso convir que a causa verdadeira da espécie é

o segredo das células, a invenção de algum óvulo inicial possuindo

uma originalidade particularmente fecunda.16

Pois bem, eu afirmo que se examinarmos uma cidade, uma

multidão ou um exército, em vez de examinarmos uma floresta ou

o firmamento, veremos que as considerações anteriores se aplicam

à ciência social do mesmo modo que se aplicam à astronomia e à

biologia. Também aqui passamos de generalizações apressadas,

fundadas sobre analogias vãs e factícias, grandiosas e ilusórias, a

generalizações apoiadas sobre conjuntos de pequenos fatos seme­

lhantes, possuindo uma similitude relativamente clara e precisa.

Há muito tempo a sociologia trabalha para constituir-se.

Ela tentou seus primeiros balbucios a partir do momento em que

discerniu, ou acreditou discernir, algo de periódico e de regular no

confuso caos dos fatos sociais. A concepção antiga do grande ano

cíclico, ao término do qual tudo, no mundo social como no mundo

16 Essa afirmação de Tarde parece referir-se à teoria do plasma germinativo de August Weis- mann. 0 biólogo alemão rejeitava a hereditariedade dos caracteres adquiridos e preco­nizava que o segredo da variação (surgimento de novas espécies) reside exclusivamente nas células germinativas e depende de alterações em seus elementos moleculares. A descoberta do ADN demonstrou que Weismann estava na direção correta, e tinha razão ao mesmo tempo contra Darwin e contra Lamarck. (N. doT.)

Gabriel Tarde 29

natural, se repetia na mesma ordem, era já um primeiro esboço de

sociologia. Aristóteles substituiu essa única e falsa repetição de

conjunto, acolhida pelo quimérico talento de Platão, por repetições

de pormenor, frequentemente verdadeiras, mas sempre muito vagas

e difíceis de acompanhar de perto; elas são formuladas em sua

Política a propósito do que existe de mais superficial ou de menos

profundo na vida social, a sucessão de formas governamentais.

Interrompida desde então, a evolução da sociologia recomeçou ab

ovo17 nos tempos modernos. Os ricorsi 18 de Vico são a retomada

e a fragmentação, menos quimérica, dos ciclos antigos; essa tese,

tal como a de Montesquieu sobre a pretensa semelhança entre

civilizações surgidas sob o mesmo clima, são dois bons exemplos

de repetições e similitudes superficiais ou ilusórias que nutriram

a ciência antes que ela encontrasse um alimento mais substancial.

Chateaubriand, no seu Ensaio sobre as Revoluções, desenvolveu um

longo paralelo entre a revolução inglesa e^a revolução francesa e

divertiu-se com as mais superficiais comparações. Outros funda­

ram grandes pretensões teóricas sobre vãs analogias entre o gênio

púnico e o gênio inglês, ou entre o império romano e o império

inglês... Essa pretensão de encerrar os fatos sociais em fórmulas

de desenvolvimento, que os constrangeriam a repetir-se em massa

com variações insignificantes, foi a grande ilusão da sociologia:

seja sob a forma já mais precisa que Hegel lhe deu com suas sé­

ries de tríades, seja sob a forma ainda mais científica e precisa, e

menos afastada da verdade, que ela recebeu dos evolucionistas

contemporâneos. Estes, a propósito das transformações do direi­

to, notadamente do regime familiar e do regime de propriedade

- e a propósito das transformações da linguagem, da religião, da

indústria, das belas-artes - arriscaram a formulação de leis gerais

razoavelmente precisas que sujeitariam a marcha das sociedades,

sob esses diversos aspectos, a passar e repassar pelos mesmos

17 Tradução livre: desde o início, a partir do zero. (N. doT.)18 Recorrências. (N. do T.)

Page 15: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

30 As Leis Sociais

caminhos, arbitrariamente traçados, de fases sucessivas. Era ne­

cessário reconhecer que essas pretensas regras estão repletas de

exceções, e que a evolução - linguística, jurídica, religiosa, política,

econômica, artística, moral - não é uma rota única, mas uma rede

de caminhos na qual abundam as encruzilhadas.

Felizmente, à sombra e ao abrigo dessas ambiciosas genera­

lizações, trabalhadores mais modestos se esforçavam, com mais

sucesso, para anotar leis de pormenor de uma solidez bem diferente.

Eles eram linguistas, mitólogos, sobretudo economistas. Esses es­

pecialistas da sociologia perceberam várias relações interessantes

entre fatos consecutivos ou concomitantes, relações que se repro­

duziam a cada instante nos limites do pequeno domínio que eles

estudavam: encontra-se na Riqueza das Nações de Adam Smith, na

Gramática comparada das línguas indo-européias de Bopp e na obra

de Dietz, para ficar nesses três exemplos, uma enorme quantidade

de observações desse gênero, nas quais se exprime uma similitude

entre inumeráveis ações humanas como a pronúncia de certas con­

soantes ou de certas vogais, as compras e as vendas, a produção e

o consumo de certos artigos, etc. É verdade que essas similitudes,

nelas mesmas, deram lugar a leis imperfeitas, relativas ao plerumque

fít,19 quando os linguistas ou economistas tentaram formulá-las em

leis; mas é porque se teve demasiada pressa para enunciá-las, antes

mesmo de se discernir, no seio dessas verdades parciais, a verdade

geral que elas implicam, o fato social elementar que a sociologia

persegue obscuramente e que ela deve atingir para realizar-se.

Muitas vezes pressentiu-se que essa explicação geral das leis

ou pseudo-leis (econômicas, linguísticas, mitológicas ou outras)

cabia à psicologia. Ninguém compreendeu isso com mais força e

clareza do que Stuart Mill. No fim de sua Lógica, ele concebeu a

sociologia como a psicologia aplicada. O problema é que ele não

exprimiu seu pensamento com suficiente precisão, e a psicologia

19 Tradução livre: o usual, aquilo que geralmente acontece. (N. do T.)

Gabriel Tarde 31

à qual ele se dirigiu para obter a chave dos fenômenos sociais era

a psicologia meramente individual, aquela que estuda as relações

internas entre impressões ou imagens no interior de um mesmo

cérebro, e que acredita dar conta de tudo, nesse domínio, pelas

leis de associação desses elementos internos. Assim concebida,

a sociologia se tornava uma espécie de associacionismo inglês

aumentado e exteriorizado, e perdia sua originalidade. Não é exa­

tamente ou unicamente a essa psicologia /nfra-cerebral, é antes de

tudo à psicologia inter-cerebral, que estuda o estabelecimento de

relações conscientes entre muitos indivíduos, que convém pedir

o fato social elementar, cujos grupamentos ou combinações múlti­

plas constituem os fenômenos ditos simples, objetos das ciências

sociais particulares. O contato de um espírito com outro é, com

efeito, na vida de cada um deles, um acontecimento à parte, que

se destaca vivamente do conjunto de seus contatos com o resto

do universo e dá lugar aos estados de alma mais imprevisíveis (e

mais inexplicáveis pela psicologia fisiológica).20

Essa relação de um sujeito com um objeto que também é

um sujeito não é uma percepção que em nada se assemelha à

coisa percebida (autorizando por isso o cético idealista a colocar

20 As experiências realizadas sobre a sugestão hipnótica e sobre a sugestão em estado devigília forneceram abundantes materiais para a futura construção da Psicologia inter-ce­rebral.Tomarei a liberdade de remeter o leitor às tentativas de aplicação dessa psicologia ainda embrionária que realizei em todas as minha obras e particularmente no capítulo intitulado Qu'est ce qu'une société? (Lois de L'Imitation, 1890), que já havia aparecido em novembro de 1884 na Revue philosophique; em algumas páginas de minha Philosophie pénale (1890) sobre a formação de hordas criminosas (capítulo sobre o crime, p. 384 e seguintes, 1a edição); em minha comunicação intitulada Crimes des foules, discutida no Congresso de Antropologia Criminal de Bruxelas em .outubro de 1892; e no meu artigo publicado sob o título de Foules et Sectes na Revue des Deux Mondes (dezembro de 1893). Esses dois últimos estudos foram reimpressos sem modificações no meu Essais et mélanges sociologiques, em 1895 (Edições Storch et Masson, Paris-Lyon). Eu gostaria de observar en passant que o trecho da Philosophie pénale citado acima, senão o capítulo de Lois de Limitation, do qual ele não passa de um corolário, contém em substância e muito explicitamente a explicação dos fenômenos de massa que foram desenvolvidos mais tarde em outros estudos, e que ele apareceu anteriormente aos interessantes trabalhos sobre a psicologia das massas editados no estrangeiro ou na França. Digo isto não para dim inuir seu mérito, mas para responder a certas insinuações, às quais, por sinal, eu fiz justiça em outros lugares.

Page 16: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

32 As Leis Sociais

sua realidade em dúvida), mas antés a sensação de uma coisa

senciente, a volição de uma coisa volitiva, a crença em uma coisa

crente, em resumo, em uma pessoa, na qual a pessoa que perce­

be se reflete e que ela não poderia negar sem negar a si mesma.

Essa consciência de uma consciência é o inconcussum quid21 que

Descartes procurava e que o eu individual não pôde lhe fornecer.

Além disso, essa relação singular não é uma impulsão física, dada

ou recebida, um transporte de força motora do sujeito ao objeto

inanimado ou vice-versa, conforme se trate de um estado ativo ou

passivo, mas uma transmissão de algo interior, mental, que passa

de um sujeito ao outro sem por isso, coisa estranha, perder-se ou

diminuir-se no primeiro. E o que pode ser assim transmitido de

uma alma a outra por meio de um contato psicológico? São suas

sensações, seus estados afetivos? Não, isso é essencialmente

incomunicável. Tudo o que dois sujeitos podem comunicar entre

si tendo consciência disso, de maneira a sentir-se mais unidos e

semelhantes, são suas noções e volições, seus juízos e desígnios,

formas que podem permanecer as mesmas apesar da diferença

de seu conteúdo, produtos da elaboração espiritual que se exerce

quase indiferentemente sobre signos sensíveis quaisquer. Tampou­

co ela difere sensivelmente passando de um espírito de tipo visual

a um espírito de tipo acústico óu motor, de modo que as ideias

geométricas de um cego de nascença são exatamente as mesmas

que geômetras dotados de visão possuem; e um plano de batalha

sugerido por um general de humor bilioso e melancólico a generais

de temperamento vivo e sanguíneo ou fleumático e resignado não

deixará de ser o mesmo: para isso basta que eles tracem a mesma

série de operações, e por outro lado, que estas sejam desejadas

por eles com igual força de querer, a despeito da maneira de sentir

toda especial, toda individual, que leva cada um deles a desejar.

A energia de tendência psíquica, de avidez mental, que eu chamo

21 Tradução livre: algo firme, constante, inabalável. (N. doT.)

Gabriel Tarde 33

de desejo, tal como a energia de entusiasmo intelectual, de ade­

são e constrição mental, que eu chamo de crença, é uma corrente

homogênea e contínua que, sob a variável coloração das tintas de

afetividade próprias a cada espírito, circula idêntica, ora dividida,

fragmentada, ora concentrada, e que se comunica sem alteração

de uma pessoa a outra, bem como de uma percepção a outra no

interior de uma mesma pessoa.

Quando eu disse que toda ciência verdadeira chega a um

domínio próprio de repetições elementares, inumeráveis e infi­

nitesimais, é como se eu já houvesse dito que toda ciência verda­

deira fundamenta-se em quantidades que lhe são específicas.22

A quantidade, com efeito, é a possibilidade de séries infinitas e

de repetições infinitamente pequenas. Eis porque eu me permiti

insistir sobre o caráter quantitativo das duas energias mentais

que, como dois rios divergentes, banham a dupla face do eu, sua

atividade mental e sua atividade voluntária. JMegar esse caráter é

declarar a impossibilidade da sociologia. Mas não se pode negá-lo

sem recusar a evidência, e esta é a prova de que as quantidades em

questão são propriamente sociais: sua natureza quantitativa apare­

ce tanto melhor, e fere o espírito com maior vivacidade e clareza,

quando são consideradas em massas mais amplas, sob a forma de

correntes de fé ou de paixão popular, de convicções tradicionais

ou opiniaticidades costumeiras, abraçando grupos humanos mais

numerosos. Quanto mais cresce uma coletividade, e mais se eleva

ou apequena uma opinião, ou seja, a crença ou o querer nacional,

afirmativo ou negativo, em relação a um objeto dado - alta ou baixa

exemplarmente expressa pelas cotações da Bolsa - mais ela se tor­

na suscetível de medida e comparável aos movimentos de pressão

atmosférica ou à força viva de uma queda d’água. É por isso que a

estatística se desenvolve com crescente facilidade à medida que

22 No texto original consta a palavra qualidades (em vez da palavra quantidades): "toute science vraie repose sur des qualités qui lui sont spéciales". Uma vez que o contexto não dá margem a dúvidas, optei por fazer a alteração no próprio corpo do texto. (N. doT.)

Page 17: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

34 As Leis Sociais

os Estados crescem; o êxito da estatística, cujo objeto próprio é

pesquisar e discernir quantidades verdadeiras na barafunda dos

fatos sociais, é proporcional à sua obstinação de medir, no fundo,

por meio dos atos humanos que adiciona, massas de crenças e de

desejos. A estatística dos valores da Bolsa exprime as variações

da confiança pública no sucesso de tais ou tais empresas, na sol­

vência de tais ou tais Estados devedores, e as variações do desejo

público, do interesse público, ao qual se dá satisfação por essas

dívidas e por essas empresas. A estatística industrial e agrícola

exprime a importância das necessidades gerais que reclamam a

produção de tais ou tais artigos e a suposta conveniência dos meios

necessários para satisfazê-las. A consulta da estatística judiciária,

em suas enumerações de processos e delitos, só é interessante

porque a travessia de suas linhas permite, ano após ano, a leitura

da progressão ou regressão dos desejos públicos engajados em vias

processuais ou delituosas: por exemplo, a tendência ao divórcio

ou ao roubo, e também a proporção de esperanças públicas vol­

tadas para certos processos ou delitos. A estatística populacional,

que sob muitos aspectos é meramente biológica e diz respeito à

propagação da espécie, também é sociológica na medida em que

diz respeito à duração e aos progressos das instituições sociais, e

exprime o crescimento ou o decréscimo do desejo de paternidade

e de maternidade, bem como da crença geral de que a felicidade é

obtida a partir do casamento e das uniões fecundas.

Mas sob que condição as forças de crença e de desejo

acumuladas em indivíduos distintos podem ser legitimamente

adicionadas? À condição de ter o mesmo objeto, de incidir sobre

uma mesma ideia a afirmar, sobre uma mesma ação a executar.

Mas como se produz essa convergência de direção que torna as

energias individuais capazes de formar um todo social? Será espon­

taneamente, por um encontro fortuito, ou por uma espécie de har­

monia preestabelecida? Não, a não ser talvez em casos bem raros;

e mesmo essas exceções, se tivéssemos tempo para examiná-las,

Gabriel Tarde 35

confirmariam a regra. Essa conformidade minuciosa de espíritos

e de vontades que constitui o fundamento da vida social, mesmo

nas épocas mais perturbadas; essa presença simultânea de tantas

ideias precisas, de tantos fins e meios precisos em todos os espí­

ritos e em todas as vontades de uma mesma sociedade num dado

momento; nada disso é o efeito da hereditariedade orgânica que

fez nascer homens muito semelhantes entre si, nem da identidade

do meio geográfico que teria oferecido recursos mais ou menos

iguais a aptidões mais ou menos iguais, e sim da sugestão-imitação

que, a partir de um primeiro criador de uma ideia ou de um ato,

propagou gradualmente seu exemplo. As necessidades orgânicas

e as tendências espirituais só existem em nós num estado de vir-

tualidades realizáveis sob as mais diversas formas, a despeito de

sua vaga similitude primordial; e foi a indicação de um primeiro

iniciador imitado que determinou, entre essas realizações possí­

veis, a escolha de uma delas.

Voltemos ao casal social elementar que mencionei anterior­

mente, não o casal do homem e da mulher que se amam - esse casal,

considerado do ponto de vista sexual, é puramente vital - mas o

casal de duas pessoas, seja qual for o sexo a que elas pertencem,

no qual uma age espiritualmente sobre a outra. Eu afirmo que a

relação entre essas duas pessoas é o elemento único e necessário

da vida social, e que ele consiste sempre, originalmente, em uma

imitação de um pelo outro. Porém é preciso bem compreender isto

para não cair sob o golpe de vãs e superficiais objeções. 0 incon­

testável é que dizendo, fazendo, pensando não importa o que, uma

vez engajados na vida social, nós imitamos outrem a cada instante,

a menos que nós inovemos, o que é raro; e ainda é fácil mostrar

que nossas inovações são, em sua maior parte, combinações de

exemplos anteriores, e que elas permanecem estranhas à vida

social enquanto não forem imitadas. Vocês não dizem uma palavra

que não seja a reprodução - agora inconsciente, mas inicialmente

consciente e desejada - de articulações verbais remontando ao

Page 18: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

36 As Leis Soda is

mais longínquo passado, ainda que com um sotaque característi­

co da sua vizinhança; vocês não realizam um rito de sua religião,

sinal da cruz, beijo no ícone, prece, que não reproduza gestos e

fórmulas tradicionais, ou seja, formadas pela imitação dos ances­

trais; vocês não executam uma ordem qualquer, militar ou civil,

ou um ato qualquer de sua profissão, que não tenha sido ensinada

e que não tenham copiado de um modelo vivo; vocês não dão uma

pincelada, se são pintores, não escrevem um verso, se são poetas,

que não seja conforme aos hábitos ou à prosódia de sua escola;

até mesmo sua originalidade é feita de banalidades acumuladas, e

aspira a tornar-se banal por sua vez.

Assim, o caráter constante de um fato social, seja ele qual for,

é imitativo; e esse caráter é próprio e exclusivo dos fatos sociais.

Sobre esse ponto, entretanto, Giddings - que, por sinal, posicionou-

-se frequentemente no meu ponto de vista sociológico - mè fez

uma objeção ilusória: imita-se, diz ele, de uma sociedade a outra,

e mesmo inimigos se imitam, apoderando-se de armamentos, de

táticas de guerra, de segredos profissionais. Assim, o campo da

imitação ultrapassaria o campo da sociabilidade e não poderia ser

a característica deste.23 Mas espanta-me que tal objeção venha de

23 Dando-se à palavra imitação a acepção larga que ela recebe num livro recente e já célebre (0 Desenvolvimento Mental da Criança) de Baldwin, professor de psicologia da Universidadede Princeton, pode-se dizer que a imitação é o fato fundamental, não somente da vida sociale da vida psicológica, mas da própria vida orgânica, na qual ela seria a condição para o hábito e a hereditariedade. Mas a tese desse fino psicólogo, longe de contradizer a minha, é na verdade sua veemente ilustração e confirmação. A imitação de homem a homem, tal como eu a entendo, é a decorrência da imitação de estado a estado no mesmo homem, imitação interna que eu mesmo já havia chamado de hábito e que, distinguindo-se da primeira por características suficientemente precisas, não me permite confundi-las. Bal­dwin, que é antes de mais nada um psicofisiologista, explica muito bem a origem orgânica e mental da imitação, e seu papel termina precisamente no momento em que começa o do psicossociólogo. É uma pena que seu livro não tenha antecedido meu livro sobre as Leis da Imitação, pois suas análises teriam sido proveitosas. Mas elas não me obrigaram a retificar em nada as leis e considerações enunciadas em minha obra. Em todo caso, seu livro é a melhor resposta que posso dar àqueles que me censuraram por ter estendido demais o sentido da palavra Imitação. Baldwin, estendendo-o muito mais, prova que isso não é verdade. Eu soube, durante a revisão deste texto, que Baldwin acaba de aplicar suas ideias à sociologia [Social and Ethical Interprétations in Mental Development], e que ele, seguindo um caminho independènte, foi conduzido espontaneamente a uma maneira de ver bastante análoga àquela desenvolvida no meu livro Lois de l'Imitation.

Gabriel Tarde 37

um autor que percebe na luta entre sociedades um poderoso agente

de sua posterior socialização, de sua comunhão em uma sociedade

mais ampla elaborada por essas mesmas batalhas. Com efeito, não

é evidente que povos rivais ou mesmo inimigos tendem a se fun­

dir à medida que assimilam suas instituições? Assim, é certo que

cada novo ato de imitação tende a conservar ou fortificar o laço

social, não apenas entre indivíduos já associados, mas também

entre indivíduos ainda não associados, de modo que a imitação

prepara a associação de amanhã, ou seja, tece agora, por meio de

fios invisíveis, aquilo que irá se tornar um laço manifesto.

Não me deterei em outras objeções que me foram feitas, pois

elas provêm de um entendimento muito incompleto de minhas

ideias. Elas se desfazem por si mesmas aos olhos de quem se co­

loca claramente no meu ponto de vista. No que diz respeito a elas,

remeto à leitura de minhas obras.

Mas não basta reconhecer o caráter imitativo de todo fenô­

meno social. Eu afirmo, além disso, que essa relação de imitação

existiu, na origem, não apenas entre um indivíduo e uma massa

confusa de homens (como acontecerá mais tarde), mas entre dois

indivíduos apenas, entre os quais um, a criança, está nascendo

para a vida social, e o outro, o adulto, já socializado há muito

tempo, lhe serve de modelo individual. É avançando na vida que

nós iremos tomar como regra modelos coletivos e impessoais,

geralmente inconscientes; mas antes de falar, pensar e agir tal

como nós falamos, pensamos e agimos em nosso mundo, come­

çamos por falar, pensar e agir como ele (ou ela) fala, pensa e age;

e esse ele ou ela é um de nossos familiares. No fundo desse nós,

se procurarmos bem, não encontraremos outra coisa além de um

certo número de eles e elas que se embaralharam e se confundi­

ram ao multiplicar-se. Por mais simples que seja essa distinção,

ela é esquecida por todos aqueles que contestam que a iniciativa

individual tenha um papel criador numa instituição e numa obra

social qualquer, e acreditam dizer alguma coisa afirmando, por

Page 19: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

38 As Leis Sociais

exemplo, que as línguas e religiões são obras coletivas, que as

massas, as massas sem nenhum dirigente, produziram o grego, o

sânscrito, o hebraico, o budismo, o cristianismo; e por fim, que a

explicação das formações e transformações das sociedades está

na ação coercitiva da coletividade sobre o indivíduo pequeno ou

grande, sempre modelado e sujeitado, e jamais na ação sugestiva e

contagiosa de indivíduos de elite sobre a coletividade. Na realidade,

tais explicações são ilusórias, e seus autores não percebem que

eludem a dificuldade principal ao postular uma força coletiva, uma

similitude, sob certos aspectos, entre milhões de homens: ou seja,

o problema de saber como essa assimilação geral pôde acontecer.

Podemos responder com precisão levando a analogia até onde

eu á conduzi, até a relação intercerebral entre dois espíritos, ao

reflexo de um no outro, e somente então se poderá explicar essas

unanimidades parciais, essas conspirações dos corações, essas

comunhões de espírito que, uma vez formadas e perpetuadas pela

tradição, imitação dos ancestrais, exercem uma pressão tão fre­

quentemente tirânica, e ainda mais frequentemente salutar, sobre

o indivíduo.24 Portanto, é a essa relação que o sociólogo deve se

ater, tal como o astrônomo se atém à relação entre duas massas

que atraem e são atraídas; é a ela que ele deve pedir a chave do

mistério social, a fórmula de algumas leis simples, universalmente

verdadeiras, que podem ser discernidas em meio ao caos aparente

da história e da vida humanas.

O que eu tenho a ressaltar no momento é que a sociologia,

assim compreendida, difere das antigas concepções que reinavam

sob esse nome tal como a astronomia moderna difere da dos gregos,

ou tal como a biologia, a partir da teoria .celular, difere da história

24 Não podemos esquecer esta observação, que é das mais simples: é sempre a partir da mais tenra infância que entramos na vida social. Ora, a criança, que se volta para outrem como a flor se volta para o Sol, sofre muito mais a atração do que o constrangimento de seu meio familiar; e durante toda a sua vida, ela irá beber avidamente os exemplos recebidos.

Gabriel Tarde 39

natural de outrora.25 Dito de outro modo, ela repousa sobre um

fundamento de similitudes e de repetições elementares e verda­

deiras, infinitamente numerosas e extremamente precisas, que

substituíram, como matéria primeira da elaboração científica, um

pequeno número de falsas ou vagas - e decepcionantes - analogias.

E eu posso acrescentar que, se por causa dessa substituição o lado

similar das sociedades progrediu em extensão e em profundidade,

seu lado diferencial também ganhou com a mudança. Sem dúvida

será preciso, daqui por diante, renunciar a essas diferenças factí­

cias que a “filosofia da história” estabelecia entre povos sucessivos,

espécies de grandes personagens de um único e imenso drama no

qual cada um tinha seu papel providencial a desempenhar. Conse­

quentemente, já não é permitido compreender essa expressão, da

qual tanto se abusou, o gênio de um povo ou de uma raça (e também

o gênio de uma língua, o gênio de uma religião), da mesma maneira

que ela era compreendida por nossos antecessores, mesmo tão

próximos como Renan e Taine. Emprestava-se uma originalidade

imaginária, aliás mal definida, a esses gênios coletivos, entidades

ou ídolos metafísicos; a eles eram atribuídas certas predisposições,

supostamente invencíveis, em relação a determinados tipos gra­

maticais, concepções religiosas e formas de governo; e neles eram

supostas, ao contrário, certas incompatibilidades absolutas a res­

peito de concepções ou instituições pertencentes a estes ou aqueles

entre seus rivais. Por exemplo, o gênio semita seria absolutamente

refratário ao politeísmo, ao sistema analítico das línguas modernas,

ao governo parlamentar; o gênio grego, ao monoteísmo; o gênio chi­

nês e o gênio japonês, a todas as nossas instituições e concepções

25 Em resumo, essa concepção é quase o inverso da concepção professada pelos evolucionis- tasunilinearese também por Durkheim:ao invés de explicar tudo pela pretensa imposição de uma lei de evolução que constrangeria os fenômenos de conjunto a se reproduzir, a se repetir identicamente numa certa ordem, ao invés de explicar o pequeno pelo grande, o detalhe pelo conjunto, eu explico as similitudes de conjunto pela acumulação de pequenas ações elementares, o grande pelo pequeno, o conjunto pelo pormenor. Essa maneira de ver está destinada a produzir na sociologia as mesmas transformações que a introdução da análise infinitesimal produziu na matemática.

Page 20: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

40 As Leis Sociais

europeias era geral... Se os fatos protestassem contra essa teoria

ontológica, seriam torturados até que fossem constrangidos a

confessar; seria inútil mostrar a esses teóricos a profundidade

das transformações sofridas pela propagação de uma religião

proselitista, de uma língua, ou de uma instituição como o júri, por

exemplo, bem além das fronteiras de seu povo e de sua raça de

origem, a despeito dos obstáculos que os gênios de outras nações

e de outras raças deveriam inelutavelmente lhes opor. Eles respon­

dem remanejando a ideia e fazendo uma distinção entre as raças

nobres e inventivas, as únicas investidas do privilégio de descobrir

e propagar descobertas, e as raças nascidas para a servidão, que

não possuem nenhuma compreensão das línguas, religiões e ideias

que tomam ou parecem tomar emprestado das primeiras. Por sinal,

negava-se a possibilidade de que esse proselitismo conquistador de

uma civilização sobre outras, de um gênio popular sobre outros,

pudesse franquear certos limites, e especialmente europeizar a

China e o Japão. Já foi provado o contrário em relação a este último,

e em breve irá acontecer o mesmo com o Império do Meio.

Mais cedo ou mais tarde, será preciso abrir os olhos para as

evidências, e reconhecer que o gênio de um povo ou de uma raça,

ao invés de ser o fator dominante e superior dos gênios individu­

ais que seriam seus rebentos e suas manifestações passageiras,

é muito simplesmente uma etiqueta cômoda, a síntese anônima

dessas inumeráveis originalidades pessoais, que são as únicas

verdadeiras, eficazes e ativas a cada instante, e que estão em fer­

mentação contínua no seio de cada sociedade graças a empréstimos

incessantes e a uma fecunda troca de exemplos com as sociedades

vizinhas. 0 gênio coletivo, impessoal, é portanto função e não fator

dos gênios individuais, infinitamente numerosos; ele é sua fotografia

compósita, e não deve ser sua máscara. E certamente não teremos

nada a lamentar, em relação ao pitoresco social capaz de suscitar

o interesse do historiador artista, quando chegarmos a perceber

através dessa fantasmagoria - esclarecida, mais do que dissipada

Gabriel Tarde 41

- sobre atores históricos vagamente caracterizados que chama­

mos de Egito, Roma, Atenas, etc., um pulular de individualidades

inovadoras, cada qual sui generis, marcada pelo seu próprio selo,

distinto e reconhecível entre mil.

Assim, posso concluir mais uma vez que, pela introdução

desse ponto de vista sociológico, estaremos fazendo precisamente

o que todas as outras ciências fizeram quando substituíram um

pequeno número de similitudes e diferenças, falsas ou vagas, por

inumeráveis similitudes e diferenças precisas e verdadeiras; e isso

será duplamente proveitoso para o artista e para o cientista, e

sobretudo para o filósofo, que deve, a não ser que ele mesmo seja

algo distinto, sintetizar ambos.

Mais algumas observações. Antes que se descobrisse algum

fato astronômico elementar, como a atração descrita pela lei newto-

niana, ou pelo menos a gravitação elíptica, houve conhecimentos

astronômicos heterogêneos - uma ciência da Lua, selenologia, uma

ciência do Sol, heliologia - mas não a astronomia. Antes que se

descobrisse um fato químico elementar (afinidades, combinações

em proporções definidas), houve conhecimentos químicos, químicas

especiais, do ferro, do estanho, do cobre, etc., mas não a química.

Antes que se descobrisse o fato físico essencial - a comunicação

ondulatória do movimento molecular - houve conhecimentos fí­

sicos: ótica, acústica, termologia, eletrologia, mas não a física. A

física tornou-se físico-química, a ciência da natureza inorgânica

inteira, quando entreviu a possibilidade de explicar tudo pelas leis

fundamentais da mecânica, ou seja, quando acreditou descobrir,

como fato inorgânico elementar, a reação igual e contrária à ação,

a conservação da energia, a redução de todas as forças em formas

de movimento, o equivalente mecânico do calor, da eletricidade,

da luz, etc. Enfim, antes da descoberta das analogias existentes,

do ponto de vista da reprodução, entre os animais e as plantas,

nem mesmo havia uma botânica e uma zoologia, mas botânicas e

zoologias, ou seja, uma hipologia, uma cinologia, etc. Mas a des-

Page 21: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

42 Ai Leis Sociais

coberta de similitudes só conferia uma unidade muito parcial a

todas essas ciências esparsas, a esse.s membra disjecta da futura

biologia. A biologia somente nasceu de fato quando a teoria celular

veio mostrar o fato vital elementar, o funcionamento da célula (ou

do elemento histológico) e sua proliferação, perpetuada pelo óvulo,

ele mesmo célula, de modo que a nutrição e a geração passaram a

ser encaradas sob um mesmo ângulo.

Muito bem, trata-se agora de fazer, similarmente, a ciência

social a partir das ciências sociais. Já houve, com efeito, ciências

sociais, ao menos esboçadas, prelúdios de ciência política, de

linguística, de mitologia comparada, de estética, de moral, uma

economia política já bem avançada, muito antes que houvesse

o embrião de uma sociologia. A sociologia supõe um fato social

elementar. E ela o supõe com tal força que, enquanto não havia

chegado a descobri-lo - talvez porque ele estivesse na sua cára,

se me perdoam essa expressão - ela sonhava com ele, ela o imagi­

nava sob a forma de uma dessas similitudes vãs e imaginárias que

atravancam o berço de todas as ciências, e acreditava dizer algo

de profundamente instrutivo ao conceber uma sociedade como

um grande organismo, o indivíduo (ou, segundo outros, a família)

como a célula social, e toda forma de atividade social como uma

função de tipo celular. Eu já fiz os maiores esforços, juntamente

com a maior parte dos sociólogos, para desembaraçar a ciência

nascente dessa estorvante concepção. Ainda cabe uma palavra a

esse respeito.

O conhecimento científico sente com tal força a necessidade

de apoiar-se em similitudes e repetições que, antes de possuí­

das, criou outras, imaginárias, e ficou à espera das verdadeiras;

desse ponto de vista, é preciso classificar a famosa metáfora do

organismo social entre tantas outras concepções simbólicas que

tiveram a mesma utilidade passageira. A alegoria desempenhou

um papel imenso nas origens de todas as ciências, bem como de

toda a literatura. Na matemática, antes das sólidas generalizações

Gabriel Tarde 43

de Arquimedes, nós tivemos os devaneios alegóricos de Pitágoras

e Platão. A astrologia e a magia, vestíbulo da astronomia, balbucio

da química, estão fundadas sobre o postulado da alegoria universal

mais do que sobre o da analogia universal; elas admitem uma har­

monia preestabelecida entre as posições de certos planetas e os

destinos de certos homens, entre tal ação simulada e tal ação real,

entre a natureza de uma substância química e a do corpo celeste

que leva seu nome, etc. Não nos esqueçamos do caráter simbólico

dos procedimentos jurídicos primitivos, das ações da lei no direito

romano, antigos tateios da jurisprudência. Notemos também - pois

a teologia foi uma ciência dos nossos ancestrais, tal como a juris­

prudência - o abuso dos sentidos figurados atribuídos aos relatos

bíblicos por parte dos mais antigos teólogos, que viam na história

de Jacó a cópia antecipada da história de Cristo, ou daqueles que

simbolizavam os amores entre esposo e esposa no Cântico dos

Cânticos como sendo os amores entre Cristo p sua Igreja. Assim co­

meça a ciência teológica na Idade Média, assim começa a literatura

moderna no Roman de la Rose. Há uma grande distância entre essas

ideias e as ideias da Suma de São Tomás de Aquino. Encontramos

um vestígio desse misticismo simbólico ainda em nosso século, nas

obras agora esquecidas - porém dignas de serem exumadas em

razão de suas graças fenelonistas de estilo - de Père Gratry, que

acreditava ver no sistema solar o símbolo das relações sucessivas

entre a alma e Deus, em torno do qual, segundo ele, gira a alma.

Ainda segundo ele, o círculo e a elipse simbolizam toda a moral,

que está inscrita hieroglificamente nas seções cônicas.

E claro que eu não posso comparar essas excentricidades

aos desenvolvimentos parcialmente sólidos, e sempre sérios,

que Comte, e depois Herbert Spencer, e ainda mais recentemente

René Worms e Novicow, deram à tese da sociedade-organismo. Eu

aprecio o mérito e a utilidade momentânea dessas obras, ainda

que as critique. No entanto, agora generalizando o que já foi dito,

creio.ter o direito de enunciar a seguinte proposição: o progresso

Page 22: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

44 As Leis Sociais

de uma ciência consiste em substituir as similitudes e repetições

exteriores, isto é, as comparações do objeto próprio dessa ciência

a outros objetos, por similitudes e repetições interiores, isto é,

comparações desse objeto consigo mesmo, considerado em seus

exemplares múltiplos e sob outros aspectos. A ideia do organismo

social, que encara a nação como uma planta ou um animal, corres­

ponde à ideia do mecanicismo vital, que encara uma planta ou um

animal como uma entidade mecânica. Mas não foi por meio dessa

comparação, aprofundada e prolongada, entre um corpo vivo e um

mecanismo, que a biologia progrediu, e sim pela comparação das

plantas entre elas, dos animais entre eles, dos corpos viventes entre

si.26 E não é pela comparação entre as sociedades e os organismos

que a sociologia deu e ainda dará grandes passos, é pela compara­

ção das sociedades entre elas, é pelas inumeráveis coincidências

entre evoluções nacionais distintas, do ponto de vista da língua,

do direito, da religião, da indústria, das artes, dos costumes: e é

sobretudo pela atenção concedida a essas imitações de homem a

homem, que fornecem a explicação analítica dos fatos de conjunto.

Depois desses longos preliminares, chegou o momento de

expor as leis gerais que regem a repetição imitativa, que estão

para a sociologia como as leis do hábito e da hereditariedade estão

para a biologia, ou as leis da gravitação para a astronomia, e as

leis da ondulação para a física. Mas eu já tratei abundantemente

desse tema numa de minhas obras, As Leis da Imitação, à qual

tomarei a liberdade de remeter aqueles que têm interesse nesse

assunto. Todavia, convém trazer à luz algo que ainda não está

suficientemente claro, a saber, que todas essas leis decorrem, no

fundo, de um princípio superior: a tendência que possui um exem-

26 Do mesmo modo, não foram as comparações pita^óricas entre a matemática e as demais ciências que fizeram a matemática avançar; elas foram estéreis, ao passo que a aproximação entre a geometria e a álgebra, conduzida por Descartes, foi fecunda; mas foi somente a partir da invenção do cálculo infinitesimal, quando se desceu até o elemento matemático indecomponível cujas repetições indefinidas tudo explicam, que a fecundidade matemática apareceu em sua plenitude.

Gabriel Tarde 45

plo, uma vez lançado num certo grupo social, a se propagar nele

segundo uma progressão geométrica se esse grupo permanecer

homogêneo. Não vejo nada de misterioso, aliás, nessa tendência.

Ela significa algo de muito simples: quando, por exemplo, se faz

sentir num grupo a necessidade de exprimir uma nova ideia por

meio de uma nova palavra, o primeiro a imaginar uma expressão

capaz de satisfazer essa necessidade só terá de pronunciá-la para

que, de boca em boca, ela seja repercutida por todos os falantes do

grupo em questão, e para que se espalhe, mais tarde, nos grupos

vizinhos. Isso não quer dizer em absoluto que essa expressão seja

dotada de uma alma que a leva a irradiar-se desse modo, tal como

o físico, ao dizer que a onda sonora tende a espalhar-se pelo ar, não

atribui a essa forma simples uma força própria, ávida e ambiciosa.27

Não, é apenas um modo de falar, que serve para dizer, num caso,

que as forças motoras inerentes às moléculas do ar encontraram

nessa repetição ondulatória um caminho de escoamento; e para

dizer, no outro caso, que a necessidade particular inerente aos

indivíduos humanos do grupo em questão foi satisfeita com essa

repetição imitativa, que poupa sua preguiça (análoga à inércia

material) do esforço que a invenção exige. Seja como for, não há

razão para duvidar dessa tendência à progressão geométrica; na

prática, porém, ela é entravada por obstáculos de vários tipos, e é

raro, embora não seja extremamente raro, que os diagramas esta­

tísticos relativos à difusão pública de uma nova invenção industrial

mostrem essa progressão regular. Que obstáculos são esses? Há

aqueles que provêm da diversidade de climas e raças, mas eles

não são os mais fortes; o entrave maior que detém a expansão de

uma inovação social (e sua consolidação em costume tradicional) é

alguma outra inovação igualmente expansiva que ela encontra em

27 Tampouco o naturalista, ao dizer que uma espécie tende a se propagar segundo uma progressão geométrica, encara essa forma simples como possuindo por ela mesma, independentemente do Sol, das afinidades químicas, de todas as energias físicas que ela meramente canaliza, uma energia e uma aspiração independentes.

Page 23: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

46 As Leis Sociais

seu caminho, e que, para empregar uma metáfora física, interfere

nela. Com efeito, toda vez que alguém hesita entre duas maneiras

de falar, entre duas ideias, entre duascrenças, entre duas maneiras

de agir, está ocorrendo nele uma interferência de irradiações imi-

tativas, de irradiações imitativas que, a partir de focos diferentes,

muitas vezes distantes um do outro no espaço e no tempo (isto é,

focos de inventores e imitadores individuais primitivos), se pro­

pagaram até ele. Como resolver essa dificuldade? Quais serão as

influências decisivas? Essas influências, como já disse, são de dois

tipos: lógicas e extralógicas. É preciso acrescentar que mesmo es­

sas últimas são lógicas em certo sentido da palavra; por exemplo,

quando diante de dois exemplos, o plebeu escolhe cegamente o

exemplo do patrício, o camponês escolhe o do citadino, o provin­

ciano escolhe o do parisiense. No que eu chamei de cascata de

imitação, que corre de cima para baixo na escala social, por mais

cega que seja a imitação, ela sempre advém de uma presunção de

superioridade daquele que dá o exemplo; o modelo parece possuir,

sobre o imitador, uma autoridade social. Ocorre o mesmo quando,

entre o exemplo de seus ancestrais e o de um inovador estrangeiro,

o homem primitivo prefere sem hesitação o primeiro, que ele julga

infalível; ocorre o mesmo quando, diante do mesmo dilema, o indi­

víduo das modernas cidades faz a escolha contrária, convencido a

priori de que o novo é sempre preferível ao antigo. Não obstante,

uma opinião como essa, fundada sobre considerações extrínsecas

à própria natureza dos dois modelos comparados, das duas ideias

ou volições, merece ser cuidadosamente distinguida dos casos em

que a opção é baseada num juízo sobre o caráter intrínseco das

duas ideias ou das duas volições; e é para esse tipo de influências

decisórias que se pode reservar o epíteto de lógicas.

Por ora, nada mais direi, pois no próximo capítulo falaremos

novamente desses duelos lógicos e teleológicos, elementos da

oposição social. Acrescento apenas que as interferências das irra­

diações imitativas nem sempre são entraves mútuos; muitas vezes

Gabriel Tarde 47

elas são alianças mútuas e servem para acelerar, para amplificar

essas irradiações; e por vezes elas ocasionam uma ideia genial que

nasce de seu encontro e de sua combinação em um cérebro, como

veremos no capítulo consagrado à adaptação social.

Page 24: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

Segundo capítulo

Oposição dos fenômenos

Em termos teóricos, o aspecto-repetição dos fenômenos é

o mais importante. Mas seu aspecto-oposição, em termos

práticos, do ponto de vista das aplicações da ciência,

apresenta um interesse maior. E de Aristóteles até nossos dias,

ele jamais cessou de ser, senão totalmente ignorado, ao menos

confundido na mixórdia das diferenças sem critério.

Aqui, como acima, direi que o progresso das ciências con­

sistiu na substituição de um pequeno número de oposições vãs,

grosseiras e superficiais, percebidas ou imaginadas inicialmente,

por oposições sutis e profundas, inumeráveis, penosamente des­

cobertas, e na substituição de oposições exteriores por oposições

interiores ao assunto considerado. Esse progresso consistiu tam­

bém, devo acrescentar, na eliminação de dissimetrias ou de assi­

metrias aparentes e em sua substituição por muitas dissimetrias

e assimetrias ocultas e bem mais instrutivas.

Busquemos as oposições no céu estrelado. 0 dia e a noite,

e inicialmente o Céu e a Terra, foram as primeiras antíteses; delas

viveram as cosmogonias religiosas e os embriões da astronomia

e da geologia nascentes, ou que aspiravam ao nascimento. Depois

surgiram oposições mais verdadeiras, porém ainda mal compreen­

didas ou simplesmente subjetivas e superficiais: o zénite e o nadir

(que não passa da antítese do alto e do baixo levada ao extremo), os

quatro pontos cardeais (opostos dois a dois), o inverno e o verão,

a primavera e o outono, a manhã e a tarde, meio-dia e meia-noite,

o quarto crescente e o quarto minguante da Lua, etc. É verdade

que todas essas oposições foram conservadas pela ciência, mas

perdendo muito de sua importância e de sua significação primitivas.

Para nós, o oeste é apenas uma orientação relativa à nossa posição

Page 25: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

50 As Leis Sociais

em face da estrela que chamamos de Polar; para um selvagem, o

oeste é o lugar da felicidade póstuma, do descanso eterno das al­

mas (que para outros é o leste). Daí decorre a orientação ritual dos

templos e das tumbas. O quarto crescente e o quarto minguante

da Lua certamente não têm, para nós, o sentido imaginário e tão

importante que a superstição dos agricultores primitivos (e a de

nossos camponeses) lhes atribui. De acordo com estes, a lua nova

possui a virtude de fazer crescer rapidamente, e a lua cheia, a de

impedir que cresça qualquer coisa que se plante numa ou noutra

dessas duas fases lunares.28 É um vestígio da distinção antitética

entre dias fastos e nefastos.

Assim, essas oposições foram conservadas, mas com um

caráter superficial e convencional. Outras foram suprimidas: por

exemplo, as oposições entre celeste e terrestre, Sol e Lua; e a im­

portância destas e daquelas transferiu-se para outras, bem mais

profundas. Em primeiro lugar, a descoberta da natureza elíptica,

parabólica ou hiperbólica das curvas descritas pelos astros, plane­

tas e cometas permitiu compreender a perfeita simetria das duas

metades de cada uma dessas curvas com relação aos dois lados

do eixo central. (Eu chamei a simetria de perfeita, mas existem per­

turbações, que são repetições mútuas dessas curvas, umas pelas

outras, no interior de um mesmo sistéma.) Além disso, percebeu-

-se que as elipses planetárias iam crescendo e decrescendo de

maneira alternada, com uma grande regularidade, em função das

oscilações em torno de uma posição de equilíbrio. Enfim, a antítese

astronomicamente profunda, universal, contínua - fundamento de

todas as outras - está na igualdade entre a atração que a massa ou

molécula sofre e aquela que ela exerce. Cada massa atrai e é atraída,

e essa é uma das mais belas ilustrações da lei mecânica de oposi­

ção universal, chamada de lei de reação igual e contrária à ação.

28 No original: "La nouvelle lune, suivant ceux-ci, a la vertu de faire pousser rapidement, et la vieille lune d'empêcher de croître tout ce qu'on plante à l'une ou à l'autre de ces deux phases lunaires". (N. do T.)

Gabriel Tarde 51

A física e a química, tal como a astronomia, começaram com

falsos contrários. Os quatro elementos concebidos pelos primeiros

físicos se opunham dois a dois: a água e o fogo, o ar e a terra. Imagi­

navam-se antipatias inatas entre determinadas substâncias. Vieram

à luz ideias mais sãs sobre a verdadeira natureza das oposições

físicas e químicas quando se descobriu o caráter de algum modo

oposto dos ácidos e bases, e sobretudo das eletricidades de nome

contrário, assim como a polaridade luminosa. A ideia de polaridade,

que desempenhou um papel tão grande nas teorias físico-químicas,

marcou um enorme progresso sobre as concepções anteriores; e

agora ela mesma está sendo explicada pela noção de ondulação, que

a abrange ou está em vias de abranger. Assim como a luz, o calor

e a eletricidade aparecem como propagações esféricas ou lineares

de vibrações infinitesimais e infinitamente rápidas, a combinação

química tende a ser considerada como um entrelaçamento de ondas

harmoniosamente unidas: mas aqui nós já̂ tocamos nos domínios

da adaptação. Até mesmo a atração foi muitas vezes explicada por

pressões de vibrações etéreas. Seja como for, é evidente que as

gravitações elípticas dos astros, apesar da diferença de dimensão,

são comparáveis às ondas físicas, esse vai-e-vem de moléculas se­

gundo elipses muito alongadas, e que nos dois casos existe ritmo

ondulatório. Em suma, podemos ver como o progresso das ciências

estendeu e aprofundou o campo da oposição, substituindo vagas

oposições qualitativas por oposições quantitativas precisas e ritma­

das, tecido da teia do mundo. A maravilhosa simetria das formas

cristalinas próprias a cada substância química é a tradução gráfica,

a expressão visual dessas oposições rítmicas entre os inumeráveis

movimentos que a constituem. E não seria precisamente a essa

ritmicidade dos movimentos interiores dos corpos que se deveria

pedir a explicação última da lei de Mendeleev, que nos mostra os

grupos de substâncias formando escalas superpostas e periodica­

mente repetidas, teclado ao qual faltam, aqui e ali, algumas teclas

que descobriremos com o passar do tempo?

Page 26: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

52 As Leis Sociais

Mas ao mesmo tempo que a evolução das ciências físicas

permitia a descoberta de oposições e simetrias mais profundas,

mais claras, mais explicativas, ela também revelava assimetrias,

arritmias, inoposições ainda mais importantes. Ela mostrou, por

exemplo, que não existe no sistema solar nenhum corpo planetário

que retrograde, que caminhe num sentido inverso ao sentido geral;

apenas alguns satélites constituem exceção. A configuração das

nebulosas que nossos telescópios descobrem é frequentemente

dissimétrica. Se adotarmos as ideias de Stanislas Meunier, não tere­

mos a menor razão para pensar que existe simetria entre a evolução

e a dissolução de um sistema solar (se é que existe dissolução),

nem entre a formação das sucessivas camadas geológicas de um

planeta e sua desagregação final. A disseminação dos astros no

céu continua sendo o que era antes do progresso da astronomia: o

que existe de mais caprichoso e pitoresco. Ao contrário, a sublime

desordem desse espetáculo é tanto mais pungente e profunda na

medida em que progride o conhecimento das forças equilibradas,

simetricamente opostas, que parecem constituir tudo isso. Que

astrônomo do presente sonharia, como fizeram os antigos, com

uma Anti-Terra, uma Antichton, onde tudo seria o inverso terrestre?

À medida que conhecemos melhor a geografia de nosso planeta,

ficamos cada vez mais assombrados pela total ausência de simetria

na configuração dos continentes e das cadeias de montanhas, e

a rede pentagonal de Élie de Beaumont já não seduz ninguém. Os

progressos da cristalografia permitiram a observação de dissime-

trias antes desconhecidas, cuja importância foi posta em relevo

pelos trabalhos de Pasteur; mas tudo o que posso fazer é indicar

esse tema.

As oposições grosseiras ou aparentes no mundo vivo - a vida

e a morte, a juventude e a velhice - foram as primeiras a serem nota­

das, e também estão entre as mais antigas similitudes constatadas

entre as plantas e os animais, rudimento de uma biologia geral.

Tampouco foi possível deixar de notar a simetria das formas vivas,

Gabriel Tarde 53

tão assombrosa e tão estranha por sua universalidade. Mas também

foram imaginadas várias oposições vitais sem nenhuma realidade

ou valor; pode-se incluir entre estas a oposição entre os anjos e

os demônios, já que ambos foram concebidos como espécies de

animais superiores. Do mesmo modo, para o selvagem, e às vezes

para o iletrado de hoje, a grande oposição entre os vivos está entre

os seres bons e ruins para comer, entre as plantas alimentícias e

as venenosas, entre os animais úteis e os nocivos. Essa oposição

é subjetivamente verdadeira, mas torna-se imaginária a partir do

momento em que é objetivada, como fazem instintivamente os

ignorantes de todas as raças. Durante muito tempo, os médicos

conceberam a saúde e a doença como dois estados precisamente

contrários, e as causas da doença como sendo precisamente in­

versas às causas da saúde. No fundo, o erro homeopático nasceu

dessa ilusão. A doença e a saúde, assim concebidas, são entidades

verbais que o progresso da fisiologia dissipou. Longe de se opor

a ele, o desvio patológico é parte do funcionamento fisiológico.

Também a dissolução individual foi encarada como o inverso da

evolução, e a velhice, como o retorno da infância. Esse ponto de

vista só pôde ser totalmente eliminado depois que a embriologia

nos permitiu conhecer a travessia de uma série de formas ances­

trais que, evidentemente, nada têm de inversamente análogo às

fases do declínio senil.

Muito tempo depois que as ciências da vida começaram a

se constituir, os fisiologistas imaginaram uma oposição, factícia e

científica ao mesmo tempo, entre a animalidade e a vegetação: para

eles, a respiração animal é precisamente o inverso da respiração

vegetal e destrói o que esta produz (a combinação de oxigênio e

carbono). A fisiologia comparada, por meio dos trabalhos de Claude

Bernard e outros, demonstrou o caráter superficial dessa inversão e

a unidade fundamental da vida nos dois reinos, que não são opostos

29 Ver a esse respeito a tese de GeorgesCanguilhem:ONorma/eoPafofóg/co, Rio de Janeiro,

Ed. Forense Universitária. (N. doT.)

Page 27: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

54 As Leis Sociais

e sim divergentes. Em compensação, o progresso do saber substi­

tuiu essas oposições falsas ou vagas, que opunham entre si grupos

de seres, seres ou entidades de um mesmo ser, por inumeráveis e

infinitesimais oposições - inteiramente reais - na intimidade dos

tecidos, como a oposição entre a oxidação e a desoxidação de cada

célula, ou entre a acumulação e o gasto de energia. Também aqui,

a oposição mostrou-se muito mais fundamental e fecunda sob a

forma do ritmo do que sob a forma da luta.

Ao mesmo tempo, porém, vieram à luz dissimetrias novas

e mais dissimuladas: para citar apenas um exemplo, o estudo das

funções cerebrais, que permitiu localizar a faculdade da linguagem

no hemisfério esquerdo, estabeleceu uma dissimetria funcional

extremamente importante entre as duas metades do cérebro. Não

é o único caso em que a simetria da forma entre órgãos correspon­

dentes nas duas metades do corpo — mão direita e esquerda, olho

direito e esquerdo, etc. — mascara a dissimetria ou a assimetria

profunda de sua função. Além disso, como já notei anteriormente,

a muito antiga e especiosa ideia teórica segundo a qual a dissolu­

ção dos seres vivos, dos tipos viventes, havia de ser exatamente

o oposto de sua evolução, teve de desaparecer diante dos pro­

gressos da observação. E seja nos indivíduos, seja nas espécies,

essa ausência de simetria entre os dois lados da vida, ascensão e

descenso, tem um sentido profundo: ela tende a provar que a vida

não é um simples jogo, apenas uma gangorra de forças por assim

dizer, mas uma marcha à frente, e que a ideia de progresso não é

um discurso vão. Ela tende a nos fazer considerar a oposição dos

fenômenos, suas simetrias, suas lutas e também seus ritmos, tal

como suas repetições, como simples instrumentos do progresso,

como termos médios.

A sociologia dá lugar a considerações análogas. Na origem

(pois, sob certos aspectos, ela é bastante antiga), a sociologia

começou como mitologia; e foi mitologicamente que ela se pôs a

explicar toda a história por meio de lutas fantásticas, guerras ima­

Gabriei Tarde 55

ginárias e gigantescas entre deuses bons e deuses maus, deuses

da luz e deuses da noite, heróis e monstros. Os metafísicos, assim

como as mitologias, abusaram dos combates; também eles imagi­

naram oposições seriais, diretas e retrógradas, desenvolvimentos

da humanidade em um sentido seguidos por desenvolvimentos

em sentido inverso. Aqui, Platão e os filósofos hindus deram-se

as mãos. Hegel, com suas ambiciosas generalizações, com sua

classificação dos povos sob o estandarte de ideias antagonistas,

e Cousin, com sua antítese imaginária entre o Oriente-infinito e a

Grécia-finita, também são excelentes espécimes das antinomias

sociológicas do passado. Tudo isso foi dissipado e ninguém mais

se dá ao trabalho de opor - sobretudo depois da surpreendente

europeização do Japão em alguns anos - a pretensa imutabilidade

inata dos asiáticos à pretensa progressividade inata dos europeus.

Os economistas já prestaram um valoroso serviço à ciência

social substituindo a guerra, como fator-chave da história, pela

concorrência, espécie de guerra não apertas adocicada e atenu­

ada, mas ao mesmo tempo reduzida e multiplicada. Por fim, se

nosso ponto de vista for adotado, será preciso considerar que,

no âmago daquilo que os economistas chamam de concorrência

dos consumidores ou dos coprodutores, existe uma concorrência

de desejos e de crenças; e se essa luta que constatamos entre

as formas industriais for generalizada e estendida a todas as

formas linguísticas, religiosas, políticas, artísticas e morais da

vida social, veremos que a verdadeira oposição social elementar

deve ser buscada no próprio seio de cada indivíduo social sem­

pre que ele hesita entre adotar ou rejeitar um novo modelo que

lhe é proposto: uma nova locução, um novo rito, uma nova ideia,

uma nova escola de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa

pequena batalha interna, que se reproduz milhões de vezes a

cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e

infinitamente fecunda da história. Ela introduz em sociologia uma

tranquila e profunda revolução.

Page 28: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

56 As Leis Sociais

Mas ao mesmo tempo, e ainda a partir desse ponto de vista,

revela-se o caráter simplesmente auxiliar e subordinado da oposição

social, mesmo sob sua forma psicológica; e isso decorre da colo­

cação em evidência de muitas assimetrias ou dissimetrias que não

aparecem de imediato. Tive de traçar uma distinção (que quase não

encontrou opositores) entre o reversível e o irreversível em todas as

categorias de fatos sociais, e ficou estabelecido que o irreversível era

sempre o mais importante: por exemplo, a série de descobertas da

ciência ou da indústria. Vemos aqui acentuar-se, em virtude dessas

oposições psicológicas inumeráveis que compõem a vida de todo

indivíduo social, sua originalidade individual, seu gênio próprio que

a nada se opõe; e tudo aquilo que chamamos de gênio de um povo,

ou se preferirmos, o gênio de uma língua, o gênio de uma religião,

é sua expressão coletiva e abreviativa. Também vemos efetuar-se,

pelo próprio jogo dessas pequenas oposições infinitesimais que

acabei de mencionar, o lado estético da vida social, pelo qual ela

não é comparável ou oponível a coisa alguma.

Mas tudo isso não passa de um esboço bastante incompleto;

é preciso adentrar mais intimamente esse tema, tão pouco explo­

rado e tão relevante. Ponhamo-nos de acordo, em primeiro lugar,

a respeito dos diversos sentidos dessa palavra: oposição. Vou

permitir-me retomar aqui a definição e a classificação que propus no

meu livro sobre a oposição universal. Façamos um resumo de nosso

ponto de vista atual. A oposição é vulgarmente — e erradamente —

concebida como um máximo de diferença. Ela é, na realidade, uma

espécie muito singular de repetição, a de duas coisas semelhantes

que tendem a destruir-se entre si precisamente em virtude de sua

semelhança. Os opostos, os contrários, formam sempre um par,

uma dualidade, e não são oponíveis enquanto seres ou grupos de

seres, sempre dessemelhantes e de algum modo sui generis, e nem

mesmo como estados de um mesmo ser ou de seres diferentes,

mas como tendências, como forças; pois a razão de percebermos

determinadas formas ou estados como opostos (o côncavo e o

Gabriel Tarde 57

convexo, o prazer e a dor, o frio e o quente) é a contrariedade real

ou suposta das forças pelas quais esses estados foram produzidos.

Vemos que é preciso eliminar de saída, como pseudo-oposições que

são, todas as antíteses das mitologias ou das filosofias da história

fundadas sobre pretensas contrariedades de natureza, entre dois

povos, duas raças, duas formas de governo: por exemplo, entre a

república e a monarquia (ver, a esse respeito, certos hegelianos),

entre o ocidente e o oriente, entre duas religiões (cristianismo e

islamismo), entre duas famílias de línguas inatas (línguas semíticas

e línguas indo-europeias). Esses contrastes são acidentalmente e

parcialmente verdadeiros se encararmos as maneiras pelas quais

essas coisas, em circunstâncias mais ou menos passageiras, afir­

mam e negam a mesma ideia, desejam e repelem o mesmo alvo;

mas esses mesmos contrastes são quiméricos se julgarmos, tal

como pareciam acreditar muitos filósofos antigos, que a antipatia

recíproca entre essas coisas é essencial, absoluta, inata.

Toda oposição verdadeira implica, portanto, uma relação

entre duas forças, duas tendências, duas direções. Mas os fenôme­

nos pelos quais essas forças se realizam podem ser de dois tipos:

qualitativos e quantitativos, ou seja, eles podem ser formados

por fases heterogêneas ou por fases homogêneas. Uma série de

fases heterogêneas é uma evolução qualquer, que sempre pode

ser concebida (erradamente ou não) como reversível, como sus­

cetível de retrogradar seguindo o caminho exatamente inverso.

Por exemplo, um químico extrai aguardente de uma planta por

meio de uma série de operações químicas, o que não quer dizer

que será possível reconstituir a planta; mas se não é possível, é

ao menos imaginável. Esse é o sonho dos antigos filósofos no que

concerne às transformações da humanidade. Uma série de fases

homogêneas constitui essa evolução de tipo especial que se chama

aumento ou diminuição, crescimento ou declínio, alta ou baixa.

Não é necessário entrar em detalhes para notar que cada vez mais

oposições dessa ordem, precisas e mensuráveis, vão se revelando

Page 29: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

58 As Leis Sociais

à medida que a ciência social se desenvolve com a civilização: as

cotações da Bolsa, os diagramas estatísticos onde a alta e a baixa

deste ou daquele valor - a alta e a baixa deste ou daquele gênero

de criminalidade, do suicídio, da natalidade, dos matrimônios,

da previdência medida pelas flutuações dos livros contábeis dos

bancos ou das seguradoras, etc. - são registrados sob a forma de

curvas ondulatórias.

Eu acabo de distinguir as oposições de série (evolução e

contra-evolução) das oposições de grau (aumento e diminuição).

Mais importante ainda é a categoria das oposições de signo ou, se

preferirmos, oposições diametrais. Embora elas sejam confundidas

com as anteriores na linguagem matemática, na qual o mais e o

menos simbolizam tanto o contraste entre o positivo e o negativo

quanto o contraste entre o aumento e a diminuição, é preciso notar

que o crescimento e a diminuição alternados de uma mesma força

dirigida no mesmo sentido constituem uma oposição muito diferen­

te daquela em que, dadas duas forças situadas numa mesma linha

reta, uma se dirige de A para B e a outra de B para A. Do mesmo

modo, a oposição entre o crescimento e a diminuição do crédito

não deve ser confundida com a oposição entre esse crédito e uma

dívida de igual valor; e a maior ou menor inclinação ao roubo e

ao crime, numa sociedade, é bem diferente da antítese entre essa

inclinação e a inclinação à generosidade e à filantropia. Para dar

de imediato uma explicação psicológica desses e de tantos outros

contrastes sociais, notemos que o aumento e a posterior diminuição

de nossa crença afirmativa em uma ideia (religiosa ou científica,

jurídica ou política) são coisas completamente diferentes da afir­

mação e posterior negação dessa mesma ideia; e que o aumento e a

posterior diminuição do nosso desejo por um objeto, por exemplo,

nosso amor por uma mulher, é completamente diferente do desejo

por um objeto e sua posterior repulsa (nosso amor e depois nosso

ódio por uma mesma mulher). É verdadeiramente curioso constatar

que essas quantidades subjetivas, crença e desejo, comportam dois

Gabriel Tarde 59

signos opostos, um positivo, outro negativo, e que elas são real­

mente comparáveis às quantidades objetivas, às forças mecânicas

dirigidas em sentidos opostos ao longo de uma mesma linha reta.

0 espaço é constituído de modo a comportar uma infinidade de

pares de direções opostas entre si, e nossa consciência é consti­

tuída de modo a comportar uma infinidade de afirmações opostas

a negações, uma infinidade de desejos opostos a repulsões (tendo

precisamente o mesmo objeto). Sem essa dupla singularidade,

cuja coincidência é singular, o Universo não conheceria a guerra

e a discórdia, e todo o lado trágico da vida seria tão inconcebível

quanto impossível.

Observação essencial: sejam quais forem as oposições (de

séries, degraus ou de signos), elas podem ocorrer seja entre termos

realizados num mesmo ser (uma mesma molécula, um mesmo

organismo, um mesmo eu), seja entre dois seres diferentes (duas

moléculas ou duas massas, dois organismos, duas consciências

humanas). Mas é importante distinguir cuidadosamente esses dois

casos; e é importante, em primeiro lugar, do ponto de vista de outra

distinção não menos essencial, que consiste em não confundir os

casos em que os termos são simultâneos e aqueles em que eles

são sucessivos. No primeiro caso, existe choque, luta, equilíbrio;

no segundo, existe alternância, ritmo. No primeiro caso, há sempre

destruição e perda de força; no segundo, não. Ora, quando eles se

produzem no interior de dois seres diferentes, as oposições, sejam

elas de séries, de graus ou de signos, podem ser simultâneas ou

sucessivas, lutas ou ritmos; mas quando seus termos pertencem

a um mesmo ser, a um mesmo corpo ou a um mesmo eu, elas não

podem ser ao mesmo tempo simultâneas e sucessivas a não ser

que sejam oposição de signos. Quanto às oposições de séries e

de graus, nessa hipótese, elas só comportam termos sucessivos,

alternativos. Por exemplo, não é possível que a velocidade de um

móvel numa mesma direção aumente e diminua ao mesmo tem­

po; isso só é possível sucessivamente; mas pode ser que ele seja

Page 30: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

60 As Leis Sociais

animado por duas tendências distintas, que se dirigem em sentidos

contrários: é o caso do equilíbrio, muitas vezes simbolizado pela

simetria de formas opostas, notadamente nos cristais. Do mesmo

modo, não é possível que o amor de um homem por uma mulher

esteja ao mesmo tempo em vias de aumentar e de diminuir, o que

só é possível alternativamente; mas pode ser que ele, ao mesmo

tempo, ame e odeie essa mulher, antinomia do coração realizada

em tantos crimes passionais. Não é possível que a fé religiosa de

um homem cresça e diminua ao mesmo tempo, isso só é possível

sucessivamente; mas pode ser que ele carregue ao mesmo tempo

em seu pensamento, muitas vezes sem perceber, a afirmação enér­

gica e a não menos enérgica negação implícita de certos dogmas, a

afirmação simultânea de certa crença cristã e de certo preconceito

mundano ou político que nega essa crença. Por fim, é evidentemente

impossível que a mesma molécula passe ao mesmo tempo por uma

série de transformações químicas e pelas transformações inversas,

ou que o mesmo homem perceba a um só tempo, em dois sentidos

opostos, a mesma série de estados psicológicos, o que só seria

possível sucessivamente. Ao contrário, nada é mais habitual do

que ver simultaneamente, num sistema de corpos, astronômicos

ou outros, um corpo que vai do afélio ao periélio enquanto outro

vai do periélio ao afélio, ou um corpo que acelera enquanto outro

desacelera; e nada é mais ordinário do que ver, numa sociedade,

uma pessoa cuja ambição ou fé aumenta enquanto essa mesma

ambição e essa mesma fé diminuem em outra; ou então uma pessoa

que, fazendo uma viagem circular, atravessa uma série de sensa­

ções visuais, enquanto outra pessoa, fazendo o itinerário inverso,

percorre na ordem contrária essa mesma gama de sensações.

A discussão de cada uma das espécies de oposições apre­

sentadas aqui nos levaria demasiadamente longe. Limitemo-nos

a algumas considerações gerais. Em primeiro lugar, se existem

oposições exteriores (chamemos assim as oposições de tendência

entre muitos seres, entre muitos homens); elas só são possíveis

Gabriel Tarde 61

porque existem ou podem existir oposições internas (entre tendên­

cias diferentes de um mesmo ser, de um mesmo homem). Isso se

aplica às oposições de séries e de graus tal como às oposições de

signos, mas sobretudo a estas. Se existem homens ou grupos de

homens que evoluem num sentido, enquanto outros homens ou

grupos de homens evoluem no sentido inverso, por exemplo, do

naturalismo ao idealismo em matéria de arte, ou do idealismo ao

naturalismo - ou do regime aristocrático ao regime democrático

ou da democracia à aristocracia, etc. - é porque cada homem pode

evoluir e contraevoluir dessa maneira. Se existem povos e classes

em que a fé religiosa aumenta, ao passo que em outros povos e

em outras classes ela diminui, é porque a consciência de cada

homem comporta aumentos e diminuições de intensidade de uma

crença. Enfim, se existem partidos políticos ou seitas religiosas que

afirmam e desejam precisamente o que outros partidos e seitas

negam e rejeitam, é porque o espírito e o coração de cada homem

são suscetíveis de conter o sim e o não, o “a favor e o contra , a

propósito de uma mesma ideia ou de um mesmo desígnio.

Ao dizer isso, estou longe de querer identificar as lutas

exteriores com as lutas internas. Em certo sentido, elas são in­

compatíveis; com efeito, somente quando a luta interna chegou

ao fim - quando o indivíduo, depois de ter sido lacerado por

influências contraditórias, fez sua escolha e adotou determinada

opinião ou resolução de preferência a outras, estabelecendo a

paz em si mesmo - é que a guerra entre ele e os indivíduos que

fizeram uma escolha oposta se torna possível. Isso não basta,

entretanto, para fazer a guerra eclodir. Para tal é preciso, além

disso, que esse indivíduo saiba que os outros indivíduos fizeram

uma escolha contrária à dele. Sem isso, seria como se não existisse

a oposição exterior dos contrários, simultâneos ou sucessivos,

pois ela não apresentaria em absoluto as características de uma

luta exterior que a tornaria realmente eficaz. Para que haja uma

guerra ou luta religiosa, é preciso que cada fiel de um culto saiba

Page 31: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

62 AsLeisSociais

que os fiéis de outro culto negam exatamente o que ele afirma, e é

preciso que essa negação (que não é adotada imitativamente, mas

ao contrário, repelida por ele) se justaponha na sua consciência à

sua própria afirmação, cuja intensidade é, desse modo, redobrada.

Por exemplo, para que exista concorrência econômica entre os

candidatos a compra de uma casa, é preciso que cada um deles

saiba que sua vontade de possuir esse imóvel é contrariada pelos

seus competidores, que querem que ele não a possua; e ele irá

querê-la com ainda mais força ao saber que seus competidores não

querem que ele a possua. Sem essa condição, a concorrência nela

mesma será estéril, e os economistas erraram ao não distinguir de

maneira suficientemente clara os casos em que não há, entre os

concorrentes, consciência de sua concorrência, e a medida muito

variável dessa consciência, os graus infinitos que a separam da

inconsciência completa.

Eis porque eu tinha razão ao dizer que é preciso buscar a

oposição social elementar, porém não, como se poderia acreditar

à primeira vista, na relação entre dois indivíduos que se contra­

dizem ou se contrariam, e sim nos duelos lógicos e teológicos,

nos combates singulares de teses e antíteses, de quereres e não-

-quereres30 cujo teatro é a consciência do indivíduo social. Sem

dúvida é possível que me perguntem: mas então qual é a diferença

entre a oposição simplesmente psicológica e a oposição social?

Ela é diferente em virtude de sua causa e, sobretudo, pelos seus

efeitos. Em virtude da causa: um solitário recebe em seus sentidos

duas percepções aparentemente contraditórias, e hesita entre

dois juízos sensitivos: um que lhe diz que determinada mancha

vista a distância é um lago, outro que lhe diz o contrário; eis uma

oposição interna cuja origem é inteiramente psicológica, e que é

um caso infinitamente raro. Pode-se afirmar sem medo de errar

30 No original,"de vouloirs et de nouloirs" (grifo do autor). 0 termo nouloiré um neologismo de Tarde que imita a palavra latina no/o (infinitivo nolle). A palavra noto significa “não querer"e é formada por ne (não) e volo, velle (querer). (N. do T.)

Gabriel Tarde 63

que todas as dúvidas e hesitações de que sofre o mais isolado

dos homens, nascido na mais selvagem das tribos, devem-se a

um encontro nele ocorrido, seja entre dois raios de exemplos que

vieram interferir em seu cérebro, seja pelo cruzamento entre um

raio de exemplos e uma percepção dos sentidos. Ao escrever, eu

hesito frequentemente entre duas locuções sinônimas, e cada

uma delas apresenta-se como preferível à outra na circunstância

dada: aqui, dois raios imitativos interferiram em mim, ou seja,

duas séries de homens que, a partir do primeiro inventor de uma

dessas palavras e do primeiro inventor da outra, chegaram até

mim. Pois eu aprendi cada uma dessas palavras de um indivíduo

que a aprendeu de outro, e assim por diante, remontando até o

primeiro indivíduo que a pronunciou. (Mais uma vez, é isso que eu

chamo de raio imitatiuo\ e a totalidade de raios desse gênero, pro­

venientes de um inventor, de um iniciador, de um inovador qual­

quer cujo exemplo se propagou, é o que eu chamo de irradiação

imitativa. A vida social se compõe de um denso entrecruzamento

de irradiações desse gênero, entre as quais ocorrem inumeráveis

interferências.) Outros exemplos: eu sou juiz e hesito entre uma

opinião que se funda sobre uma série de decisões baseadas nas

orientações de determinado autor, por exemplo, Marcadé ou De-

molombe, e uma opinião oposta que se apoia numa outra série

de decisões emanadas de tal outro comentador; mais uma vez,

interferência entre dois raios imitativos. A mesma coisa acontece

quando eu hesito entre o gás e a eletricidade para iluminar meu

apartamento. Mas quando um jovem camponês, diante do pôr do

sol, não sabe se deve acreditar na palavra de seu professor (que

lhe assegura que o cair da noite deve-se a um movimento da Terra

e não do Sol) ou no testemunho de seus sentidos, que lhe dizem

o contrário, existe um único raio imitativo que, por intermédio

de seu professor, liga-o a Galileu. Tanto faz, pois isso basta para

que sua hesitação, sua oposição interna e individual, seja social

em virtude de sua causa.

Page 32: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

64 As Leis Sociais

Mas é sobretudo pelos seus efeitos (ou melhor, por sua inefi­

cácia) que a oposição simplesmente individual difere da oposição

social elementar, que também é, entretanto, individual. Por vezes a

hesitação do indivíduo permanece encerrada nele, e não se propaga

(nem tende a se propagar) imitativamente entre seus vizinhos; nes­

se caso, o fenômeno permanece puramente individual. Na maioria

dos casos, porém, a própria dúvida é quase tão contagiosa quanto

a fé, e todo aquele que devém cético num meio fervoroso logo se

tornará o foco de um ceticismo que irá irradiar-se ao seu redor:

será possível, nesse caso, negar o caráter social do estado de luta

interna que caracteriza cada um dos indivíduos desse grupo?

Mas encaremos a questão de uma forma ainda mais geral.

Quando o indivíduo toma consciência da contradição que existe

entre um de seus julgamentos, propósitos, ideias ou hábitos - dog­

ma, fraseado, procedimento industrial, tipo de arma ou ferramenta,

etc. -e um julgamento, propósito, ideia ou hábito de outro homem

ou homens, ele tem três alternativas. Ou ele se deixa influenciar

completamente pelo outro, abandonando bruscamente sua própria

maneira de pensar e agir; nesse caso não houve luta interna, e sim

vitória sem combate: apenas mais um entre os contínuos fenôme­

nos de imitação de que é feita a vida social. Ou então o indivíduo

é apenas parcialmente influenciado pelo outro, e esse é o caso

discutido mais acima; depois do choque advém um amortecimento

de sua força, mais ou menos entravada e paralisada. Ou então ele

reàge contra a ideia ou o hábito estrangeiro, contra a crença ou

a vontade que o afronta, e passa a afirmar ou querer ainda mais

energicamente o que ele já afirmava e queria. Mas nesse último

caso, em que ele tensiona todas as energias de sua convicção ou

de sua paixão para repelir o exemplo de outrem, haverá nele uma

luta íntima de outro gênero, tão tonificante quanto a anterior era

enervante. Ela também perturba, e ainda mais do que a outra, pre­

cisamente porque é uma sobre-excitação (e não uma paralisia) das

forças individuais, apta a espalhar-se contagiosamente; daí a cisão

Gabriel Tarde 65

de uma sociedade em partidos. Um novo partido é sempre formado

por um grupo de pessoas que adotaram, seguindo o exemplo de

outras, uma ideia ou resolução contrária à que reinava até então

em seu meio, e da qual elas mesmas estavam imbuídas. Esse novo

dogmatismo, por outro lado, tornado mais intolerante e mais inten­

so à medida que se difunde, suscita contra si a coalizão daqueles

que, fiéis às tradições, fizeram exatamente a escolha contrária; e

aqui teremos, face a face, dois fanatismos.

Seja sob sua forma dogmática e violenta, seja sob sua forma

cética e enervada, a justaposição individual de termos opostos é

social desde que se difunda imitativamente. Se não fosse assim,

nada haveria de social em fatos como estes: a rivalidade entre

duas línguas, o francês e o alemão, ou o francês e o inglês, em

suas respectivas fronteiras, Bélgica, Suíça, ilhas normandas; ou a

rivalidade entre duas religiões igualmente limítrofes. Uma dessas

línguas e uma dessas religiões constantemente sobrepuja a outra

depois de incessantes combates que não ocorrem entre homens

rivais, mas em cada espírito, em cada consciência, entre duas

locuções rivais, entre duas crenças rivais. Haverá algo mais inte­

ressante, em termos sociais, do que essas enxurradas linguísticas

e religiosas? Socialmente, tudo provém de oposições psicológicas,

e é preciso voltar sempre a esse ponto. Mas também é verdade

que é extremamente importante evitar a confusão entre essas

duas formas de oposição, uma na qual o combate de dois termos

justapostos tem lugar no próprio indivíduo, e outra na qual o indi­

víduo simplesmente adota um dos termos opostos (embora ambos

estejam justapostos nele), e onde o combate, por conseguinte, só

tem lugar nas suas relações com outros homens. A esse respeito

podemos nos perguntar, como fiz há muito tempo em um de meus

primeiros artigos,31 o que seria pior para uma sociedade: estar

dividida em partidos ou seitas que se combatem em virtude de

S1 Artigo posteriormente reproduzido no meu livro Lois de 1'lmitation (primeiro capítulo, quase in fine).

Page 33: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

66 As Leis Sociais

seus programas e dogmas opostos, em povos que guerreiam, ou

ser composta por indivíduos em paz uns com os outros, mas cada

qual, individualmente, em luta consigo mesmo, presa do ceticismo,

da irresolução ou do desencorajamento. Valerá mais essa paz de

superfície que oculta um surdo e contínuo estado de guerra das

almas consigo mesmas, ou diremos que as guerras mais mortíferas,

as próprias guerras religiosas e todós os acessos de delírio político

nas mais sangrentas revoluções são preferíveis a esse torpor? Se

nós só tivéssemos escolha entre essas duas soluções, teríamos de

confessar que o problema social seria estranhamente árduo. Mas

não parece que é exatamente assim, já que os homens, tão logo

cessam momentaneamente de guerrear nos campos de batalha e

de combater acirradamente na arena da concorrência industrial

ou da competição política, recaem na doença profunda das al­

mas ansiosas, indecisas, desencorajadas, hesitantes entre seus

sacerdotes e seus doutores que se contradizem, entre as velhas

máximas de uma moral respeitada da boca para fora e as práticas

contrárias de uma moral que ainda não ousa formular-se? E não é

patente que, quando os homens põem fim ao seu esquartejamento

interior, aos seus contínuos tremores, aos empuxos de doutrinas e

de condutas contraditórias, será para alinhar-se em dois campos, de

acordo com as diferentes opções que fizeram, e pôr-se a guerrear?

Só nos restaria escolher entre a guerra exterior ou a luta interna.

Esse seria o dilema apresentado aos derradeiros sonhadores da

paz perpétua, entre os quais me incluo.

Felizmente, a verdade é menos triste e menos desesperadora.

A observação mostra que todo estado de luta, exterior ou interior,

sempre aspira (e acaba chegando) a uma vitória definitiva ou a um

tratado de paz. No que concerne à luta íntima, seja qual for o nome

que lhe dermos - dúvida, irresolução, angústia, desespero - isso é

evidente: aqui, a luta sempre aparece como uma crise excepcional

e passageira, e ninguém pensaria em considerá-la como um estado

normal, ou julgá-la preferível, com suas dolorosas agitações, à paz

Gabriel Tarde 67

pretensamente amolengada do trabalho regular, sob o império de

um juízo bem assentado e de uma vontade decidida. Mas será di­

ferente no que concerne à luta exterior, à luta entre os homens? A

história, se bem compreendida, mostra que a guerra evolui sempre

num certo sentido, e que essa direção, cem vezes reproduzida e

fácil de distinguir através dos tortuosos emaranhados históricos,

nos faz prever sua gradual rarefação e sua futura desaparição. Com

efeito, em consequência da irradiação imitativa, que trabalha, por

assim dizer, incessante e subterraneamente para estender o campo

social, os fenômenos vão se estendendo; e a guerra participa desse

movimento. De uma multidão infinita de guerras muito pequenas,

porém atrozes, entre pequenos clãs, passa-se a um número bem

menor de guerras um pouco maiores, porém menos odientas, entre

pequenas cidades, e depois entre grandes cidades, e depois entre

povos cada vez mais populosos, e chega-se, enfim, a uma era de

conflitos muito grandiosos e raros, porém sem nenhuma ferocidade,?

entre colossos nacionais cuja própria grandeza torna pacíficos.

Detenho-me para notar que, por causa dessa passagem do

pequeno ao grande, do pequeno muito numeroso ao grande extre­

mamente raro, a evolução da guerra, e de todo fenômeno social

em geral, parece contradizer a evolução das ciências tal como vem

sendo exposta aqui. No entanto, ela constitui, de fato, sua contra­

prova e confirmação. É justamente porque tudo no mundo dos fatos

caminha do pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho

invertido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno e,

pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares verda­

deiramente explicativos em último lugar.

Retornemos. Em cada uma de suas etapas, em cada uma de

suas extensões, que são acima de tudo apaziguamentos, a guerra

diminuiu, ou ao menos transformou-se de maneira favorável ao

seu ulterior desaparecimento. Cada crescimento dos Estados,

das tribos às cidades, das cidades aos reinos, impérios, imensas

federações, significou a supressão dos combates numa região cada

Page 34: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

68 As Leis Sociais

vez mais extensa. Ainda em nossa época, há sempre sobre a Terra

regiões, mesmo que estreitas - um vale oprimido entre montanhas,

uma grande ilha, um fragmento bem recortado de uma superfície

continental, mais tarde o contorno de um mar interior - que foram

percebidas durante muito tempo por seus habitantes como uma

espécie de universo distinto; e quando esse pequeno universo foi

enfim pacificado por uma série de conquistas que reuniram todas

as localidades sob um mesmo jugo, parecia que o alvo derradeiro,

a finalidade sempre buscada - a pacificação universal - havia sido

atingida. Tinha-se enfim um momento de repouso no império dos

faraós, no Império Chinês, entre os Incas do Peru, em certas ilhas do

Pacífico, no Império Romano. Infelizmente, essa meta fascinante re­

cuava assim que era vislumbrada, e a Terra mostrava-se bem maior

do que se acreditava anteriormente; estabeleciam-se relações, que

logo se tornavam beligerantes, com vizinhos poderosos de cuja

existência não se havia suspeitado, e que precisavam ser conquis­

tados, ou pelos quais era preciso ser conquistado, para assentar

definitivamente a paz no mundo. A continuação das guerras é, em

resumo, a extensão gradual do domínio da paz. Mas essa extensão

não poderia ser indefinida; essa miragem ansiosa não poderia ser

um perpétuo tormento, já que o globo terrestre possui limites e que

estes já foram, há muito tempo, circunavegados. O que caracteriza

nossa época, e em certo sentido torna-a profundamente diferente

de todo o passado (embora as leis da história se apliquem a ela tal

como outrora), é que pela primeira vez a política internacional dos

grandes estados civilizados já não abrange em suas preocupações,

como antigamente, apenas um continente ou dois, mas a totalidade

do globo, e que assim se desvela o termo último da evolução da

guerra, perspectiva tão deslumbrante que mal ousamos acreditá-la,

perspectiva de um alvo certamente difícil de realizar, mas também

muito real; um alvo incapaz de decepcionar e que, uma vez próximo,

não poderia mais retroceder. Não existe aí algo capaz de eletrizar

todos os corações? Depois de ter estabelecido a Paz nos limites de

Gabriel Tarde 69

um rio como o Nilo ou o Amur, ou no litoral de um pequeno mar,

depois de ter sido (como demonstrou Metchnikoff, e como as leis

da irradiação imitativa explicam maravilhosamente) pluvial e me­

diterrânea, a civilização se torna oceânica, isto é, planetária; e é

agora, com o encerramento da época de suas crises de crescimento,

que sua grande floração poderá começar.

E verdade que, mesmo que terminem as guerras, não terão

fim as lutas dolorosas entre os homens. Existem outras formas de

luta, e uma das principais entre elas é a concorrência. Mas também

se pode aplicar à concorrência - oposição de ordem econômica e

não mais política - o que acaba de ser dito. Como a guerra, a con­

corrência vai do pequeno ao grande: do muito pequeno e muito

numeroso ao muito grande e muito pouco numeroso. A concorrên­

cia, desde seu início, se apresenta sob três formas: a concorrência

entre consumidores do mesmo artigo, a concorrência entre os

produtores de um mesmo artigo, e a concorrência entre produtor e

consumidor, entre vendedor e comprador do mesmo artigo. Afinal,

se os artigos são diferentes, não há nenhuma oposição recíproca

dos desejos; há antes adaptação recíproca, quando os artigos são

suscetíveis de serem trocados entre si.

Mas já que estamos tocando aqui num tema dos mais deli­

cados, e que não convém abordar por enquanto a não ser por um

aspecto especial, para além de qualquer opinião preconcebida,

coletivista ou outra qualquer, façamos em primeiro lugar algumas

observações de uma veracidade sem margem para dúvidas. Con­

corrência é uma palavra ambígua que significa - ao mesmo tempo

ou alternadamente - concurso e luta, e é por isso que se eterniza a

disputa entre aqueles que, por enxergarem nessa coisa equívoca

apenas o seu aspecto de oposição, com razão a maldizem, e aque­

les que, encarando-a pelo seu aspecto de adaptação, louvam-na

igualmente com razão, por causa das invenções civilizatórias que

ela suscitou. Mas é sob seu aspecto desfavorável que nós iremos

considerá-la aqui.

Page 35: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

70 As Leis Sociais

O combate e a contradição não são em absoluto essenciais

aos desejos dos diversos consumidores ou dos diversos produtores

de um mesmo objeto, e nem mesmo aos desejos de consumidores

e produtores quando confrontados entre si. Produtor e comprador

estão sempre de acordo na medida em que um quer comprar o que

o outro quer vender; nem sempre pelo mesmo preço, é verdade,

mas sempre há um preço com o qual concordarão e que encerrará

o debate entre eles. Os desejos dos produtores tampouco estão em

contrariedade na medida em que cada um deles tem sua clientela

e seus canais de distribuição que, tal como a produção, momen­

taneamente não serão capazes de expandir-se; eles só se tornam

contraditórios à medida que os meios de produção se expandem

e que cada um deles deseja produzir mais e apropriar-se da pro­

dução do outro. É verdade que a civilização acarreta um aumento

constante dos meios de produção, e que, sendo assim, essa luta

entre coprodutores é inevitável e deve tornar-se cada vez mais viva.

Quanto aos desejos dos consumidores de um determinado artigo, é

possível dizer que, longe de se prejudicarem mutuamente, aqueles

que competem pela compra de um mesmo artigo em geral se aju­

dam mutuamente, desde que a produção desse artigo seja capaz

de acompanhar o aumento da demanda: pois quanto mais houver

pessoas desejosas de comprar bicicletas, mais o preço das bici­

cletas irá baixar. Os desejos dos consumidores só estão realmente

em contradição naqueles casos - como acontece frequentemente

com os artigos de primeira necessidade, bem como com os artigos

de luxo - em que o número de exemplares da coisa desejada não

consegue suprir a demanda e tampouco pode multiplicar-se tão

rapidamente quanto se multiplicam, pelo contágio da moda, os

desejos que ela suscita.

Dito isso, e voltando à ideia que apresentamos há pouco,

notemos que cada uma das três espécies de concorrência distin­

guidas aqui está em conformidade com a lei indicada. As pequenas

barganhas entre vendedor e comprador, em todos os mercados

Gabriel Tarde 71

primitivos, são incessantes e inumeráveis; pouco a pouco elas

são suprimidas, mas para serem substituídas por essas grandes

barganhas suscitadas, nos mercados municipais, pela fixação da

taxa municipal do trigo e da carne; e quando estas são suprimidas,

é para dar lugar a barganhas ainda maiores, pelas discussões nas

Câmaras onde se debatem projetos de lei que tendem a favorecer,

pela imposição ou supressão de taxas aduaneiras, os interesses

da massa de produtores ou da massa de consumidores nacionais.

As sociedades cooperativas de consumo, isto é, aquelas em que o

consumidor e o produtor se unem, nasceram da necessidade de pôr

fim a essa espécie de concorrência, e se desenvolvem junto com

ela. Também entre compradores a concorrência tende a estender-

-se:32 em todos os mercados primitivos, a competição por um

saco de trigo ou por uma cabeça de gado está restrita a algumas

pessoas; essas inumeráveis pequenas competições, que muitas

vezes culminam em pequenas sociedades especulativas locais,*são substituídas, quando os mercados começam a crescer e a di­

minuir em número, por competições maiores, cada vez maiores, e

estas culminam, por sua vez, ora em uniões importantes, como os

sindicatos agrícolas, ora em sociedades especulativas mais vastas,

os trusts e kartells gigantescos que conhecemos.

Mas examinemos a concorrência mais bem estudada, e que

é na realidade a mais intensa, porque é a mais consciente: a dos

produtores entre si. Ela começa com rivalidades inumeráveis entre

pequenos mercadores que disputam mercados minúsculos, origi­

nalmente justapostos e praticamente fechados aos demais; mas à

medida que caem as barreiras que os separam, eles se confundem

em mercados maiores e menos numerosos, e também as pequenas

32 Hoje em dia, em épocas de escassez, não há um único saco de trigo no mais remoto vilarejo da Crimeia ou da América que não suscite uma competição, não mais entre vizinhos, como outrora, mas entre mercadores de todas as nações europeias; assim como não existem, em épocas normais, quadros de grandes mestres ou livros antigos no mais obscuro dos castelos franceses cuja aquisição não esteja ameaçada pela concorrência, não de alguns amadores da vizinhança, ou da província, ou mesmo da França inteira, mas de milionários americanos.

Page 36: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

72 As Leis Sociais

oficinas rivais se fundem, seja voluntariamente, seja pela força, em

fábricas maiores e menos numerosas, onde o trabalho produtivo,

outrora ciosamente oposto a si mesmo, agora é harmoniosamente

coordenado; e a rivalidade entre essas fábricas reproduz, numa

escala ainda maior, a das oficinas de outrora, até que se chega,

pelo crescimento gradual dos mercados, que tendem a se tornar

um único mercado, a alguns gigantes da indústria e do comércio,

que também rivalizam entre si, a menos que entrem num acordo.

Em resumo, a concorrência se desenvolve em círculos con­

cêntricos que vão se ampliando. Mas a ampliação da concorrência

tem como condição e como razão de ser a ampliação da associação.

Da associação ou do monopólio, objetar-se-á. Que seja, mas o mo­

nopólio é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema

da concorrência, assim como a unidade imperial é apenas uma das

duas soluções possíveis para o problema da guerra. Um desses pro­

blemas pode ser resolvido pela associação dos indivíduos, assim

como o outro pode ser resolvido pela confederação dos povos. De

resto, o próprio monopólio, à força de estender-se, se torna mais

brando, e caso ele se tornasse universal em certas modalidades

de produção (termo ao qual ele tende e que Paul Leroy-Beaulieu

julgou, erroneamente a meu ver, para sempre e absolutamente

inatingível),33 seria provavelmente mais suportável, em certos casos,

33 Um monopólio é sempre parcial e relativo. Sem dúvida, Paul Leroy-Beaulieu tem razão ao dizer que a concorrência jamais chega ao monopólio absoluto e completo, e o exemplo que ele menciona - o das lojas de departamentos - parece, à primeira vista, dos mais sólidos: o BonMarché, por exemplo, depois de ter suprimido a concorrência de tantas lojas pequenas, viu surgir a concorrência do Louvre, do Printemps, da Samarítaine, etc. Mas na realidade, numa certa zona e numa certa medida, cada um desses colossos do comércio monopolizou uma situação disputada por milhares de pequenas lojas; cada uma delas tem sua própria clientela numa região que, por motivos quaisquer de capricho ou de moda, pertence-lhe com exclusividade. Na maioria dos casos, é simplesmente porque elas adquiriram, em relação a determinado artigo, a reputação de oferecer uma qualidade melhor do que seus concorrentes. Na realidade, essa pretensa concorrência entre as lojas de departamentos (que além do mais pode ser temperada ou atenuada por entendi­mentos entre elas, muito mais fáceis, em função de seu número reduzido, do que entre a infinidade de pequenas lojas que elas substituíram), essa concorrência tende a tornar-se cada vez mais uma simples divisão de trabalho, ou melhor, uma grande repartição de monopólios parciais que elas partilharam ou vão, pouco a pouco, partilhando entre si.

Gabriel Tarde 73

do que o estado de concorrência aguda que ele teria substituído.

A concorrência tende a uma monopolização, ao menos parcial e

relativa, ou a uma associação de concorrentes, tal como a guerra

tende ao esmagamento do perdedor ou a um tratado favorável com

ele, a uma pacificação igualmente parcial e relativa. 0 crescimento

dos Estados conquistadores contribuiu para isso. Estou ciente de

que os grandes Estados modernos, tomando o lugar dos feudos

da Idade Média, fizeram reinar uma paz bastante incompleta, e até

aqui bastante curta, mas cuja extensão e duração vão aumentan­

do, tal como os exércitos grandiosos de hoje em dia. Negar que a

concorrência culmine no monopólio (ou na associação) e imaginar

que se está defendendo a concorrência de seus detratores é, ao

contrário, recusar a única desculpa que se poderia alegar: como

se, para defender o militarismo dos ataques de que ele é objeto,

nos esforçássemos para demonstrar que a guerra não produz a

paz depois da vitória. E bem verdade que a guerra só produz a

paz para renascer da própria paz, e numa escala ainda maior; do

mesmo modo, a concorrência só se apazigua momentaneamente

na associação para renascer da própria associação, sob a forma de

rivalidades entre associações, corporações, sindicatos e assim por

diante; mas chega-se assim, finalmente, a associações gigantes que,

não podendo mais expandir-se, só poderão, depois de travarem

seus combates, associar-se.

Existe uma terceira grande forma de luta social, a discussão.

Ela está sem dúvida implicada nas formas precedentes, mas se a

guerra e a concorrência são discussões, uma é a discussão com

atos mortíferos, e a outra, a discussão com atos ruinosos. Falemos

um pouco da pura e simples discussão que se vale de palavras.

Também ela, quando evolui (pois existem numerosas e pequenas

discussões privadas que não evoluem, e felizmente morrem ao

nascer), evolui da maneira que descrevemos, embora o fenômeno

seja nesse caso mais difícil de perceber. Lembremos que somente

quando a discussão mental entre duas ideias contraditórias pre­

Page 37: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

74 As Leis Sociais

sentes no mesmo cérebro chegou ao fim é que se torna possível

a discussão verbal entre dois homens que resolveram a questão

de maneiras diferentes. Do mesmo modo, se a discussão verbal

escrita ou impressa que ocorre entre grupos de homens, e entre

grupos cada vez mais extensos, substitui a discussão verbal entre

dois homens, é sob a condição de que ela tenha sido encerrada em

cada um desses grupos por um acordo relativo e momentâneo, por

uma espécie de unanimidade, inicialmente fragmentada em uma

infinidade de pequenas facções, de pequenos clãs, de pequenas

igrejas, de pequenas ágoras, de pequenas escolas que se combatem,

e depois de muitas polêmicas, concentrada em um número muito

pequeno de grandes partidos, de grandes religiões, de grandes

grupos parlamentares, de grandes escolas de filosofia ou arte entre

os quais são travados os supremos combates. Não foi assim que

se estabeleceu, pouco a pouco, a unanimidade católica? Não foi

à custa de discussões muito vivas, às vezes sangrentas, entre os

fiéis de cada igreja local, que se chegou, nos dois ou três primeiros

séculos da Igreja, a um acordo sobre um pequeno credo, que por sua

vez estava em desacordo com o credo das igrejas vizinhas, dando

lugar a colóquios, a concílios provinciais que resolviam as dificul­

dades, mas que por vezes se contradiziam e acabavam levando

suas querelas para o seio dos concílios nacionais ou ecumênicos?

A unanimidade política da antiga França monárquica foi produzida

do mesmo modo, e a unanimidade política da nova França, num

sentido democrático, está igualmente em vias de produzir-se. Do

mesmo modo se estabeleceu aquilo que de bom grado eu chamaria

de unanimidade linguistica, ou seja, a unanimidade da língua nacio­

nal: posteriormente às rivalidades entre dialetos e provincialismos

rebeldes ao purismo ortodoxo. Também a unanimidade jurídica

se estabeleceu, há muito tempo, de maneira análoga: inumeráveis

costumes locais pacificaram milhares de discussões jurídicas dis­

tintas (mas não todas, como o mostram os processos), e depois

esses costumes, conflitantes entre si, foram unificados em alguns

Gabriel Tarde 75

costumes regionais que foram, por sua vez, finalmente substituí­

dos por uma legislação uniforme. A unanimidade científica, que se

constituiu lentamente e, em larga medida, por meio de uma série

de discussões (ora encerradas, ora revividas) entre cientistas e

escolas científicas, daria lugar a considerações semelhantes.

Entre todas as formas de discussão, existe uma, a discussão

jurídica (o processo, civil ou comercial), que chama a atenção. Se­

ria verdade que também o processo pode ampliar-se, e por causa

dessa ampliação mesma, caminhar em direção à sua pacificação?

Sim - por mais estranha que essa proposição possa parecer à pri­

meira vista. Em primeiro lugar, é certo que os processos, entre os

povos primitivos, não diferem das guerras privadas; de fato, sem

a presença soberana do Estado-juiz, a maior parte das diferenças

entre litigantes seria resolvida na base da violência. Os processos

são duelos atenuados, guerras embrionárias. Reciprocamente, as

guerras são processos entre nações, proces§os que seguem seu

desenvolvimento natural em razão da ausência de uma autoridade

supranacional. Assim, se compararmos as querelas judiciais que

hoje ocorrem em nossos tribunais com as querelas medievais, em

que as partes eram campeões armados, ou com as querelas das

tribos germânicas, nos convenceremos de que o ardor litigioso

não cessou de adocicar-se. E eu posso acrescentar que ele se

adocicou por causa de suas próprias ampliações. Pode-se dizer,

com efeito, que as questões jurídicas se ampliaram à medida que

os costumes locais cederam lugar aos costumes provinciais e, por

fim, às leis nacionais; a cada etapa de unificação jurídica, cada

forma de processo, ou seja, cada dificuldade jurídica que dá lugar

a duas interpretações diametralmente opostas, toma um caráter

mais geral. Ora, é generalizando-se dessa forma que cada espécie

de discussão judicial chega finalmente à sua última etapa: uma

decisão da Suprema Corte que elimina novas instaurações desse

gênero de processo. Quantas vezes isso não aconteceu ao longo

de nosso século!

Page 38: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

76 /Is Leis Sodais

Poderiam objetar-me, casualmente, que os povos se tornam

cada vez mais discutidores à medida que se civilizam, e que as

discussões públicas, as polêmicas na imprensa e os debates par­

lamentares alimentam as discussões verbais privadas em vez de

substituí-las; mas essa objeção não se sustentaria. Se selvagens

e bárbaros discutem pouco - felizmente, já que a maior parte de

suas discussões degenera em brigas e combates - é porque eles,

por assim dizer, não falam e não pensam. Dado o número infinita­

mente pequeno de suas ideias, é surpreendente que eles briguem

com tanta frequência; e é espantoso que pessoas com tão poucos

interesses diferentes encontrem tantos motivos para litigar. Por

outro lado, se há uma coisa que mal notamos e que deveria desper­

tar nossa admiração, é que exista, em nossas cidades civilizadas,

uma imensa corrente de ideias despertadas em nós pela conver­

sação e pela leitura, porém tão poucas discussões, e discussões

tão pouco acaloradas. Deveríamos ficar estupefatos ao ver tantos

homens pensarem e falarem e se contradizerem tão pouco, ao

vê-los agirem tanto e se enfrentarem tão pouco, do mesmo modo

que vemos tão poucos acidentes de trânsito em nossas ruas tão

animadas e apinhadas, ou tão poucas guerras numa época de

relações internacionais tão extensas e complicadas! E o que nos

colocou mais ou menos de acordo a propósito de tantos pontos?

Estas três grandes coisas, elaboradas sucessivamente ao longo de

discussões que duraram séculos: a Religião, a Jurisprudência e a

Ciência. Notemos também que, num país civilizado, as discussões

públicas sobrepujam e muito, em importância, em candente inte­

resse e mesmo em vivacidade, as discussões privadas; é o inverso

do que ocorre num país bárbaro. Nossas sessões parlamentares

são de uma violência crescente, ao passo que o tom das discussões

nos cafés e nos salões torna-se cada vez mais doce.

Em resumo, sob suas três formas principais - guerra, con­corrência, discussão - a oposição-luta em nossas sociedades humanas mostra-se obediente à mesma lei de desenvolvimento:

Gabriel Tarde 77

apaziguamentos intermitentes e crescentes que se alternam com

retomadas da discórdia, amplificada e centralizada, até o acordo

final, ainda que relativo. A consequência disso - e nós temos

várias outras razões para pensar assim - é que a oposição-luta

desempenha, no mundo social bem como no mundo vivente e no

mundo inorgânico, apenas o papel de um termo médio, destinado a

desaparecer progressivamente, a esgotar-se e eliminar a si mesma

em virtude de seu próprio crescimento, pelo qual ela corre em

direção à sua própria destruição. E chegou o momento de dizer,

ou de redizer mais explicitamente, qual é a verdadeira relação

entre esses três grandes aspectos científicos do universo que eu

denominei de Repetição, Oposição e Adaptação dos fenômenos.

Os dois últimos procedem do primeiro, e o segundo é ordinaria­

mente, mas nem sempre, o intermediário entre o primeiro e o

terceiro. É porque as forças físicas se propagam ou tendem a se

propagar em progressão geométrica - em virtucip de sua repetição

ondulatória - que elas interferem entre si, ou então se adaptam e

se combinam; e suas interferências-choques parecem apenas ser­

vir para preparar suas interferências-alianças, suas combinações.

É porque as espécies vivas tendem a se propagar em progressão

geométrica - em virtude da repetição hereditária de seus exem­

plares individuais - que elas interferem, seja em cruzamentos

bem-sucedidos e fecundos, seja nos combates pela vida tão bem

estudados pelos darwinistas (que só perceberam a interferência

vital pelo seu lado violento, no qual eles viram, com um exagero

evidente, o único ou o principal meio de criação de novas espé­

cies, ou seja, de readaptação das antigas espécies). E é também

porque as realidades sociais em geral (um dogma, uma locução,

um princípio científico, uma regra moral, uma prece, um proce­

dimento industrial, etc.) tendem a se propagar geometricamente

pela repetição imitativa que elas - com ou sem êxito - interferem,

ou seja, se encontram pelo seu lado dissonante em determinados

cérebros, onde suscitam duelos lógicos e teleológicos, primeiro

Page 39: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

78 As Leis Sociais

germe das oposições sociais (guerras, concorrências, polêmicas),

ou então se encontram, pelo seu lado harmonizável, em cérebros

geniais (mas também em cérebros ordinários), suscitando verda­

deiras alianças lógicas, invenções, iniciativas fecundas, fontes de

todas as adaptações sociais.

Eis aí os três termos de uma série circular capaz de encadear-

-se sem fim. Pois é repetindo-se por imitação que a invenção - a

adaptação social elementar - se difunde e se fortifica, tendendo,

pelo encontro de uma de suas irradiações imitativas com uma

irradiação imitativa emanada de alguma outra invenção, antiga

ou nova, a suscitar ora novas lutas, ora (diretamente ou por

meio dessas lutas) novas e mais complexas invenções, que em

breve também irão irradiar imitativamente, e assim por diante,

ao infinito. Notemos que tanto o duelo lógico como a síntese ló­

gica, tanto o elemento social da oposição-luta como o elemento

social da adaptação têm necessidade da repetição imitativa para

socializar-se, para generalizar-se e crescer. A única diferença é

que a propagação imitativa do estado de discórdia interior entre

duas ideias, ou mesmo do estado de discórdia exterior entre dois

homens que escolheram uma dessas ideias, irá fatalmente sofrer

um desgaste e pôr fim a essa discórdia dentro de um determinado

tempo, pois todo combate é fatigante e culmina numa vitória; en­

quanto a propagação imitativa do estado de harmonia (ao mesmo

tempo interno e externo) alcançado pela iluminação de uma nova

verdade, síntese de nossos conhecimentos anteriores e comunhão

de nosso espírito com todos os espíritos que comungam com ela,

não tem razão alguma para deter-se e se fortificará ao avançar. Dos

três termos comparados entre si, o primeiro e o último ultrapassam

largamente o segundo em altura, em profundidade, em importância

e talvez em duração. A única utilidade do segundo, a oposição, é a

de provocar uma tensão das forças antagonistas aptas a suscitar

o gênio inventivo: a invenção militar que, ao dar a vitória a um dos

lados, momentaneamente põe fim à guerra; a invenção industrial

Gabriel Tarde 79

que, adotada ou monopolizada por um dos rivais da indústria, lhe

assegura o triunfo, e momentaneamente põe fim à concorrência; a

invenção filosófica, científica, jurídica ou estética que interrompe

bruscamente inumeráveis discussões, mesmo que seja para dar

origem, mais tarde, a novas discussões. Eis aí a única utilidade,

a única razão de ser da oposição; mas quantas vezes a invenção

pela qual ela clama deixa de atender ao seu chamado! Quantas

vezes a guerra abate o gênio ao invés de estimulá-lo! E quantos

talentos são esterilizados pelas polêmicas da imprensa, pelos de­

bates parlamentares, pela vã esgrima dos Congressos! Tudo que

se pode afirmar - e que confirma o que já foi dito - é que a ordem

histórica de preponderância sucessiva das três formas de luta é

precisamente a de sua aptidão a estimular a inventividade: com

efeito, passa-se de uma era em que a guerra é preponderante a uma

fase em que a concorrência predomina, e enfim a discussão. Além

disso, numa sociedade que se civiliza, a troca se desenvolve mais

rapidamente do que a concorrência, a conversação se desenvolve

mais rapidamente do que a discussão, e o internacionalismo, mais

rapidamente do que o militarismo.

Acabamos de falar somente das oposições-lutas, aquelas

que acontecem entre termos simultâneos que se chocam. Quanto

às oposições-ritmos, que consistem em termos sucessivos (qua­

lidades ou quantidades, pouco importa), de uma alta seguida de

uma baixa ou de uma ida seguida de um retorno e vice-versa,

pode parecer à primeira vista que elas sejam menos enigmáti­

cas do que as outras, já que não são paralisias e destruições

mútuas de forças. No entanto, se olharmos mais de perto, esse

vaivém de forças que constituem sucessivamente um “a favor”

e um “contra”, ou que dizem um “sim” e um “não”, é ainda mais

difícil de compreender do que o choque entre duas forças que se

encontram e se equilibram. Pois essas interferências destrutivas

têm, ao menos, um caráter acidental, não desejado, e nós sabemos

que elas são quase inseparáveis das interferências criadoras, tal

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80 As Leis Sociais

como a sombra e o corpo; isso para não mencionar que, em nós,

o equilíbrio e a neutralização recíproca das tendências contrá­

rias, das sugestões rivais que vêm de fora, permitem a eclosão

de nossa originalidade natural, sendo essa, possivelmente, uma

das melhores justificativas da luta em geral. Mas o ritmo, seja ele

qualitativo ou quantitativo, parece ser um jogo normal no qual

as forças se comprazem e que foi desejado por elas. E confesso

que se eu tivesse sérias razões para considerar esse vaivém, essa

flutuação pueril, como algo que ocorre num plano mais amplo -

ou seja, se pensasse que a dissolução fosse exatamente o inverso

da evolução, a regressão o inverso da progressão, e que tudo se

pusesse a recomeçar indefinidamente sem nenhuma orientação de

conjunto - eu seria tomado por um desespero schopenhaueriano.

Felizmente não é assim, e o ritmo, o ritmo mais ou menos preciso,

regular, verdadeiramente digno desse nome, mostra-se em toda

parte, mas apenas nos detalhes dos fenômenos, sendo a própria

condição de sua repetição precisa, e por isso mesmo, condição

de sua variação. A gravitação de um astro só se repete em razão

de suas idas e vindas elípticas; uma onda sonora ou luminosa só

se repete em razão de um ir e voltar retilíneo, circular ou elíptico;

a contração de um elemento muscular e a inervação de um ele­

mento nervoso só se propagam, num músculo ou ao longo de um

nervo, sob condição de voltarem ao seu ponto de partida. Baldwin

mostrou recentemente que também a imitação é “uma reação

circular”, e que se pode defini-la como “uma reação muscular que

procura alcançar os estímulos capazes de reconduzir aos mesmos

estados, que novamente tenderão aos mesmos estímulos e assim

por diante”. No livro de onde retirei essa citação, ele estende o

uso da palavra imitação muito além da minha acepção, e genera-

lizando-a ao ponto de fazê-la abranger ao mesmo tempo todo o

funcionamento vital e todo o funcionamento social, ele escreve

o seguinte: “O tipo de reações ou repetições circulares que nós

chamamos de imitação é um tipo fundamental, sempre o mesmo

Gabriel Tarde 81

e comum a toda atividade motora”.34 Mas a repetição, a marcha

regular dos fenômenos, e apenas a condição de seu itinerário, de

sua evolução, sempre mais ou menos irregular e pitoresca, e que

se torna mais e mais irregular e pitoresca à medida que progride.

Ora, é só na marcha, mas de modo algum no itinerário, que o

vaivém rítmico apresenta alguma precisão. E é assim até mesmo

no que diz respeito ao ritmo quantitativo, essas altas e baixas

gerais que a estatística permite medir no curso de uma civilização

em processo de desenvolvimento. É extremamente raro, nesse

caso, que o aumento e a diminuição constatados sejam iguais ou

semelhantes; que as curvas ascendentes de riqueza, por exemplo,

ou do preço dos valores da Bolsa, da fé religiosa, da instrução,

da criminalidade, etc., se reflitam de maneira inversa nas curvas

descendentes de mesma natureza e com as mesmas caracterís­

ticas. Isso é bem conhecido pelos estatísticos. Eu já me referi ao

caráter irreversível de várias evoluções sociais, justamente as

mais importantes, e não preciso voltar a esse ponto.

Para concluir, a oposição, sob suas duas grandes formas,

revela e acentua cada vez mais seu caráter simplesmente auxiliar

e intermediário: como ritmo, ela só serve diretamente à repetição,

e indiretamente à variação, desaparecendo quando esta aparece.

Como luta, ela só serve para suscitar a adaptação, da qual iremos

agora nos ocupar.

34 A tradução americana d'As Leis Sociais, prefaciada pelo próprio James Baldwin, alterou ligeiramente o texto deTarde ao incorporar a redação original das citações do livro Mental Development in the Child and the Race (3aed., p. 151 e p. 23). Como isso pode ser dealgum interesse para o pesquisador, eis aqui a reprodução desse trecho:

... Baldwin has recently shown that im itation itself is a "circular reaction,"and that it may be defined as a"brain-state due to stimulating conditions, muscular reaction which repro­duces or retains the stimulating conditions, same brain-state again due to same stimulating conditions, and so on." In the work from which this quotation is taken, he extends the meaning of the word im itation far beyond that which I assigned it; and, generalizing the term in such a way as to include both the vital and the social functions, he writes: "The self-repeating or circular type of reaction, to which the name im itation is given... is seen to be fundamental and to remain the same, as far as structure is concerned, for all motor activity whatever." Gabriel Tarde. Social Laws, trad. Howard C. Warren, Macmillan, New York, 1899, p. 141. (N. do T.)

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Terceiro capítulo

Adaptação dos fenômenos

As explicações datias nas duas conferências anteriores

já nos prepararam para compreender o verdadeiro

sentido da palavra “adaptação”, que exprime o aspecto

mais profundo sob o qual a ciência aborda o universo. Veremos

mais uma vez que a evolução da ciência - seja qual for o tipo de

realidades às quais se aplique - consiste na passagem do gran­

de ao pequeno, do vago ao preciso, do falso ou superficial ao

verdadeiro e ao profundo; ou seja, ela consiste primeiramente

em descobrir ou imaginar uma imensa harmonia de conjunto

ou algumas grandes e vagas harmonias exteriores, que vão

sendo gradualmente substituídas por inumeráveis harmonias

interiores, um número infinito de infinitesimais e fecundas

adaptações. Veremos também que a evolução da realidade, que

aqui como alhures é precisamente inversa à do conhecimento,

consiste numa tendência incessante das pequenas harmonias

interiores a exteriorizar-se e amplificar-se progressivamente.

Incidentalmente, não deixaremos de notar, como fizemos ante­

riormente, que se o progresso do saber nos faz descobrir novas

e mais profundas harmonias, ele também nos revela muitas de­

sarmonias, ainda mais profundas, que antes não percebíamos.

Comecemos com algumas definições ou explicações neces­

sárias. 0 que é exatamente uma adaptação, uma harmonia natural?

Tomemos um exemplo fora do contexto da vida, pois nesta o vínculo

teleológico entre o órgão e a função é tão claro que não precisa ser

explicado: o leito de um rio. Percebe-se aqui uma montanha, ou

uma cadeia de colinas, adaptada ao escoamento das águas do rio;

os raios do Sol adaptados à evaporação das águas do oceano em

nuvens; e os ventos adaptados ao transporte dessas nuvens para

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o cume das montanhas, de onde elas voltam a cair em chuvas que

alimentam as fontes, os riachos e os pequenos rios, afluentes dos

grandes cursos d água. Existe um equilíbrio móvel, um circuito de

ações encadeadas que se repetem - que se repetem com variações.

Pode-se dizer que um ser vivo é um circuito semelhante a esse,

só que muito mais complicado, e onde a adaptação não é apenas

unilateral, como nesse exemplo, mas recíproca. O órgão serve à

realização da função vital e, reciprocamente, a função vital serve

à manutenção do órgão; ao passo que, nos ciclos planetários da

água, a montanha está adaptada ao escoamento da água, mas o

escoamento da água, ao invés de servir à manutenção da montanha,

tem poi efeito o seu desnudamento e mesmo, de maneira gradual, a

sua supressão. É também sem nenhuma reciprocidade que o calor

do Sol está adaptado à irrigação do solo.

Lembremos que sempre se trata de uma harmonia que se

repete. Acabamos de ver um exemplo; vejamos outros. Cada pla­

neta de um sistema solar, considerado do ponto de vista mecânico,

ou seja, como um ponto que se move, apresenta o espetáculo de

uma harmonia entre sua propensão a fundir-se no Sol e sua ten­

dência a afastar-se dele tangencialmente: se essas duas forças,

centrípeta e centrífuga, se exercessem ao longo de uma linha reta,

haveria oposição, mas como elas são perpendiculares entre si, o

que existe é adaptação. (Assim, na natureza, oposição e adaptação

se transformam uma na outra.)35 Ora, a gravitação do planeta é a

repetição, a repetição variada, dessa adaptação mecânica. Mesmo

se o considerarmos em termos geológicos - do ponto de vista de

sua composição estratigráfica e físico-química um planeta é um

agenciamento muito harmonioso de estratos superpostos; e se a

esse respeito dermos crédito a Stanislas Meunier, tal agenciamento

se repetirá em cada planeta, e mesmo na constituição geral do

Também um ciclone ou tromba d'água é uma harmonia atmosférica, um circuito deações que se deve ao acordo entre duas forças que não se entravam mutuamente mas se completam em sua resultante.

Gabriel Tarde 85

sistema solar: pois um corte transversal da Terra mostraria, entre

o centro e a circunferência, uma sucessão de camadas incan­

descentes, depois solidificadas, depois líquidas, depois gasosas,

cada qual necessária à seguinte, e essa sucessão seria análoga à

encontrada nos astros, desde o Sol, no centro, até Netuno, que é

gasoso. De qualquer modo, pouco nos importa se essa analogia é

verdadeira ou não.

Um agregado qualquer é um composto de seres adaptados

entre si, seja uns com os outros, seja num conjunto subordinado

a uma função comum. Agregado significa adaptat,36 Mas, além dis­

so, diversos agregados que possuem relações entre si podem ser

coadaptados, constituindo um adaptat de um grau superior. Seria

possível distinguir, desse modo, uma infinidade de graus. Para

simplificar, façamos uma distinção entre apenas dois graus de adap­

tação. A adaptação de primeiro grau é aquela que ocorre entre os

elementos do sistema considerado; a adaptação de segundo grau é

aquela que os une aos sistemas que os cercam, àquilo que podemos

chamar, muito vagamente, de seu “meio”. 0 ajustamento a si mesmo

difere muito, em toda ordem de fatos, do ajustamento a outrem,

tal como a repetição de si (hábito) difere da repetição de outrem

(hereditariedade e imitação), tal como a oposição a si mesmo (he­

sitação, dúvida) difere da oposição a outrem (luta, concorrência).

Muitas vezes esses dois tipos de adaptação, em certa medida, se

excluem mutuamente; é o caso das constituições políticas, onde se

observa com bastante frequência que as mais coerentes, as mais

logicamente deduzidas (apresentando portanto o mais alto grau de

adaptação de primeiro grau) são as menos adaptadas às exigências

de seu meio tradicional e costumeiro, e que, reciprocamente, as

mais práticas são as menos lógicas. A mesma observação aplica-se

às gramáticas de tantas línguas, às religiões, às belas-artes, etc.:

36 Adaptat é a 3a pessoa do singular do presente do indicativo do verbo latino adapto (infi­nitivo adaptare): adequar, ajustar, adaptar. 0 uso que Tarde faz do termo adaptat (como substantivo) é análogo ao uso, bem mais corrente, de outro termo latino: habitat. (N. doT.)

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86 As Leis Sociais

a única gramática perfeita, com regras sem nenhuma exceção, é a

do... volapuque.37 Ela também é aplicável aos organismos: há entre

eles alguns que são perfeitos, mas que não são viáveis, e que se

tornariam mais viáveis se fossem menos perfeitos. A perfeição de

sua acomodação pode atrapalhar sua flexibilidade.38

Feitas essas indicações preliminares, mostremos a verdade

das duas teses enunciadas acima. Os partidários das causas finais

fizeram tudo o que podiam para desacreditar a ideia de finalidade.

Não é menos certo, no entanto, que os primeiros balbucias da

ciência datam do momento em que essa noção foi introduzida,

mesmo que de forma mística e bem pouco racional, na concepção

do mundo. Diante da visão do céu estrelado, com que sonhou a

ciência primitiva? Com uma adaptação imensa, única, quimérica,

nascida da ilusão que aprendemos a chamar de geocêntrica, segun­

do a qual todas as estrelas existem para a Terra; a Terra, e sobre

ela uma cidade ou um burgo seriam o único foco de interesse do

firmamento, perpetuamente inquieto acerca do destino desses

seres efemeros que nós somos. A astrologia foi o desenvolvimento

lógico dessa grandiosa e imaginária adaptação do céu à Terra e ao

homem. A verdadeira astronomia não somente fez desaparecer essa

absurda harmonia, mas também quebrou a unidade da harmonia

celeste ao dividi-la em várias harmonias parciais, tão numerosas

quantos os próprios sistemas solares, coerentes neles mesmos e

simetricamente coordenados, porém ligados entre si por liames

muito vagos e duvidosos, agrupados em nebulosas informes, em

37 Linguagem artificial criada em 1880 pelo clérigo alemão Johann Martin Schleyer. (N. doT.)38 Sendo dada uma visão espiritual ou ideia, pode-se progredir intelectualmente a partir

dessa ideia (que é, em geral, uma mistura de verdade e erro) em dois sentidos diferentes: (I o) Apenas no sentido de uma adaptação de primeiro grau, ou seja, de uma harmoniza­ção gradual dessa ideia consigo mesma, de sua diferenciação e coesão interna (esse é o desenvolvimento de muitas teologias e metafísicas); (2°) No sentido de uma adaptação de segundo grau, isto é, de uma harmonização gradual dessa ideia com os dados dos sentidos, com os aportes exteriores da percepção e da descoberta (desenvolvimento científico). No primeiro caso, o progresso muitas vezes consiste em passar de um erro menor a um erro maior.

Gabriel Tarde 87

constelações esparsas de resplandecente desordem. Desde sempre

apaixonada pela ordem, a razão humana logo teve de renunciar à

sua busca pelas marcas mais evidentes de uma coordenação divi­

na na totalidade do mundo - o Cosmos, o mais alto objeto de sua

admiração. Ela teve de descer ao sistema solar para encontrá-las, e

quanto mais ela conhecia deste pequeno mundo, mais encontrava

nos detalhes, e não no conjunto desse belo agrupamento de massas,

os motivos para extasiar-se. Mais do que as relações entre os pró­

prios planetas, era a relação de cada um deles com seus satélites, e

mais ainda, era a superfície de cada um desses globos, sua formação

geológica, seu regime de águas, que revelavam um acordo perfeito

e surpreendente. Doravante, já não é mais em direção à imensa

abóbada celeste que a alma religiosa deve voltar-se para adorar a

sabedoria profunda que move este mundo; agora, é para o cadi­

nho do químico que ela deverá olhar se quiser escrutar o mistério

das harmonias físicas mais precisas e maravilhosas, ainda mais

admiráveis do que a mixórdia estrelada: as combinações químicas.

Se, por meio do uso de um microscópio suficientemente forte, pu­

déssemos perceber o interior de uma molécula, ficaríamos muito

mais fascinados pela mescla prodigiosa de movimentos elípticos

e circulares que provavelmente a constituem do que com o jogo,

no fim das contas bastante simples, dos grandes piões celestes!

Se passarmos do mundo físico ao mundo da vida, também

constataremos que o primeiro procedimento da razão foi conce­

ber a criação orgânica inteira, vegetal e animal, como uma única

e grandiosa adaptação aos fins da humanidade, destinada à sua

nutrição, diversão, proteção, e também para avisá-la sobre perigos

ocultos. As práticas divinatórias e o totemismo, difundidos desde

as origens entre todos os povos, têm o mesmo fundamento. E os

progressos do saber podem muito bem ter dissipado essa ilusão

antropocêntrica, mas algo dela permaneceu no erro científico que

reinou durante tanto tempo entre os filósofos naturalistas: o de re­

presentar a série paleontológica como uma ascensão em linha reta

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88 As Leis Sociais

até o homem, e o de encarar cada espécie viva ou extinta como uma

nota num grande concerto chamado de Plano divino da natureza,

edifício ideal e regular cujo apogeu era o homem. Penosamente, à

força dos desmentidos acumulados pela observação, ele precisou

desprender-se de uma ideia que lhe era tão cara, reconhecendo que

não é nas grandes linhas da evolução dos seres (tão ramificadas e

tortuosas), e nem mesmo nos grandes agrupamentos de espécies

diferentes em faunas e floras regionais (apesar da notável adapta­

ção revelada nos casos de comensalismo ou em determinadas rela­

ções entre insetos e flores) que a natureza demonstra no mais alto

grau sua maravilhosa potência de harmonia, mas sim nos detalhes

de cada organismo. A meu ver, os partidários das causas finais39

comprometeram a ideia de finalidade ao empregá-la de maneira

abusiva e errônea, mas não excessiva; ao contrário, eu poderia

criticá-los por terem feito dessa ideia, com seus hábitos mentais

unificadores, um uso demasiadamente restrito. Não existe um fim

na natureza, um fim em relação ao qual todo o resto seria um meio;

o que existe é uma multidão infinita de fins que tentam servir-se

uns dos outros. Cada organismo, e cada célula de cada organismo,

e talvez cada elemento celular dentro de cada célula, possui sua

própria pequena providência particular. Assim, tal como antes,

também aqui somos levados a pensar que a força harmonizadora

- ao menos aquela com a qual a ciência tem o direito de ocupar-

-se, sem negar a possibilidade de que alguma outra exista - não é

imensa e única, exterior e superior, mas infinitamente multiplicada,

infinitesimal e interna. A bem dizer, a fonte de todas as harmonias

vitais (às quais temos um acesso cada vez mais restrito à medida

que nos afastamos desse ponto de partida para abranger um campo

mais vasto) é o óvulo fecundado, interseção viva de linhagens que

se encontraram ali, num cruzamento às vezes feliz, início de novas

39 No original, "les cause-finaliers" (grifo do autor), expressão usada por Voltaire no seu Dictionnaire Philosophique. (N. doT.)

Gabriel Tarde 89

aptidões que irão, por sua vez, se difundir e propagar, graças à

seleção dos mais aptos ou à eliminação dos menos aptos.

Voltemo-nos para o mundo social. Os teólogos, que sempre

foram (sem sabê-lo) os primeiros sociólogos, frequentemente

concebem a grande rede de todas as histórias dos povos da Terra

como algo que converge, desde os primórdios da humanidade,

para o. advento de seu próprio culto. Leiam Bossuet. A sociologia

pode muito bem ter se tornado laica, mas nem por isso libertou-se

desse gênero de preocupação. Comte transpôs magistralmente o

pensamento de Bossuet, que ele tinha boas razões para admirar:

para ele, toda a história da humanidade converge para a era e o

reino de seu próprio positivismo, espécie de neocatolicismo laico.

Aos olhos de Augustin Thierry, de Guizot e de outros historiadores

filósofos, todo o curso da história europeia parecia convergir, por

volta de 1830, para a Monarquia de Julho... A bem dizer, Comte

não fundou a sociologia, e o que ele nos oferece sob esse nome é

ainda uma simples filosofia da história, embora admiravelmente

deduzida; é a última palavra em termos de filosofia da história.

Como todos os “sistemas” que assim foram nomeados, sua con­

cepção apresenta-nos a história humana (ou melhor, essa mixórdia

confusa de novelos multicoloridos) sob a aparência de uma única

e mesma evolução, representação única e solitária de uma espécie

de trilogia ou de tragédia única, agenciada segundo as regras do

gênero, na qual tudo se encadeia, na qual cada um dos três estados

encadeados se compõe de fases ligadas entre si, cada elo adaptado

e encadeado exclusivamente ao elo seguinte, e na qual tudo se

precipita irresistivelmente para o grande e derradeiro desenlace.

Com Spencer, deu-se um grande passo em direção a um

entendimento mais salutar da adaptação social: sua fórmula de

evolução social já não é aplicável somente a um Drama único, e sim a

um determinado número de Dramas sociais diferentes. Ao formular

leis do desenvolvimento linguístico, religioso, econômico, político,

moral, estético, os evolucionistas de sua escola também admitem,

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90 As Leis Sociais

ao menos implicitamente, que essas leis estão aptas a reger todos

os povos que existem ou existirão, e não apenas uma pequena

parcela de povos aos quais reservamos o privilégio de serem cha­

mados de históricos. Entretanto (ao mesmo tempo multiplicado e

com dimensões reduzidas), é sempre o mesmo erro que reapare­

ce: o de acreditar que, para observar nos fatos sociais o gradual

surgimento da regularidade, da ordem, do encadeamento lógico,

é preciso abandonar seus detalhes, essencialmente irregulares, e

elevar-se bem alto, até abraçar numa visão panorâmica os mais

vastos conjuntos; que o princípio e a fonte de toda coordenação

social reside em algum fato de caráter muito geral do qual ela desce

gradualmente até os fatos particulares, porém enfraquecendo-se

singularmente; e que, em resumo, o homem agita-se, mas é uma

lei de evolução que o conduz.

Eu acredito que, de algum modo, é exatamente o contrário.

Não é que eu negue que existam, entre as diversas e multiformes

evoluções históricas dos povos, como nos rios que correm numa

mesma bacia, algumas inclinações comuns; e eu sei muito bem

que, se muitos desses riachos ou rios se perdem pelo caminho, os

demais, por uma série de confluentes, acabam por confundir-se

numa mesma corrente geral que, apesar de sua divisão em braços

diversos, não parece destinada a fracionar-se em múltiplos estuá­

rios. Mas eu também vejo que a verdadeira causa desse derradeiro

rio, nascido dos demais rios, dessa preponderância final de uma

evolução social (a dos povos qualificados como históricos) entre

todas as outras, é a série de descobertas da ciência e de inven­

ções da indústria que se acumularam sem cessar, utilizando-se

reciprocamente, formando sistema e feixe, e cujo encadeamento

dialético real, não menos sinuoso, parece refletir-se vagamente no

dos povos que contribuíram para produzi-lo. E se remontarmos

à verdadeira fonte dessa grande corrente científica e industrial,

nós a encontraremos em cada um dos cérebros geniais, obscu­

ros ou célebres, que adicionaram uma verdade nova ou um novo

Gabriel Tarde 91

meio de ação ao legado secular da humanidade, e que, por meio

dessa contribuição, tornaram as relações entre os homens mais

harmoniosas ao desenvolver a comunhão de seus pensamentos e

a colaboração de seus esforços. De maneira inversa aos filósofos

que acabei de mencionar, constato que somente o pormenor dos

fatos humanos abriga adaptações notáveis, que é ali que reside o

princípio das harmonias menores que podem ser percebidas num

domínio mais amplo, e que, quanto mais nos elevamos de um pe­

queno grupo social bastante unido (família, escola, oficina, igreja

local, convento, regimento) à cidade, à província e à nação, menos

notável e perfeita será a solidariedade. Em geral, existe mais lógica

numa frase do que em um discurso, e num discurso do que em uma

série ou grupo de discursos; num rito singular do que em todo um

credo; num artigo da lei do que em um código inteiro; numa teoria

científica particular do que em todo um corpo científico; assim

como há mais lógica em cada tarefa executaçla por um trabalhador

do que no conjunto de sua conduta.

Notemos que será assim a menos que uma potente indivi­

dualidade intervenha para regulamentar e disciplinar os fatos de

conjunto. Esse tipo de intervenção, aliás, tende a se tornar cada vez

mais frequente, pois a civilização se caracteriza pelas facilidades

que oferece à realização de um programa individual de reorgani­

zação social; e nesse caso, nem sempre é verdade que a harmonia

dos agenciamentos esteja em razão inversa de sua massa: muitas

vezes, e cada vez mais frequentemente, as massas mais volumosas

podem ser as mais harmoniosas. Por exemplo, a administração fran­

cesa, organizada pelo gênio despótico de Napoleão, está tão bem

adaptada à sua finalidade geral quanto suas menores engrenagens

aos seus próprios fins; a rede de estradas de ferro da Prússia está

tão bem adaptada à sua finalidade estratégica quanto cada uma de

suas estações às suas próprias finalidades comerciais ou outras;

os sistemas de Kant, Hegel ou Spencer são tão coerentes em sua

ordenação geral quanto algumas das pequenas teorias parciais que

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92 /4s Leis Sociais

lhes servem como base. Uma legislação bem codificada pode apre­

sentar tanta ordem no arranjo de suas seções e capítulos quanto

em cada uma das leis parciais que ela reúne na relação entre suas

diversas disposições; e quando uma religião foi retrabalhada por

uma teologia vigorosa, o encadeamento de seus dogmas pode ser

ou parecer mais lógico do que cada um deles considerado à par­

te. No entanto, como é fácil perceber, esses fatos, aparentemente

contrários aos que foram expostos acima, na realidade contribuem

para mostrar que o gênio individual é a verdadeira fonte de toda

harmonia social. Pois essas belas coordenações tiveram de ser

concebidas antes de ser executadas; e antes de cobrir um território

imenso, elas começaram a existir sob a forma de uma ideia oculta

em algumas células cerebrais.

Diremos agora que a adaptação social elementar é, no fundo, a

que existe entre dois homens, um dos quais responde, com palavras

ou ações, à questão proposta pelo outro, plenamente verbalizada

ou tácita? Pois a satisfação de uma necessidade, assim como a

solução de um problema, é uma resposta a uma questão. Diremos

então que essa harmonia elementar consiste na relação entre dois

homens, na qual um deles ensina e o outro aprende, um ordena e

o outro obedece, um produz e o outro consome, na qual um é ator,

poeta, artista, e o outro é espectador, leitor, amador? Ou diremos

que eles se reuniram e fizeram uma obra em colaboração? Sim, é

isso que diremos, pois embora nessa relação entre dois homens

esteja implicada uma relação entre modelo e cópia, trata-se de

algo bem diferente.

A meu ver, no entanto, é preciso levar a análise ainda mais

longe e, como já indiquei, buscar a adaptação social elementar no

próprio cérebro, no gênio individual do inventor. A invenção que

está destinada a ser imitada - pois aquela que permanece encer­

rada no espírito de seu autor não é socialmente relevante - é uma

harmonia de ideias que é a mãe de todas as harmonias entre os

homens. Para que exista uma troca entre produtor e consumidor, e

Gabriel Tarde 93

para que, em primeiro lugar, exista um dom para o consumidor, o

dom da coisa produzida (pois a troca é a dádiva tornada mútua, e

como tal, vem depois da dádiva unilateral), é preciso que o produtor

tenha inicialmente duas ideias: a da necessidade do consumidor ou

donatário, e a de um meio apto a satisfazê-la. A adaptação exterior

que chamamos de dádiva, e em seguida de troca, não teria sido

possível sem essa adaptação interior de duas ideias. Do mesmo

modo, a divisão de trabalho entre vários homens que executam

as diversas tarefas de uma mesma operação, anteriormente exe­

cutada por um único homem, não teria sido possível se ele não

tivesse a ideia de conceber essas diversas tarefas como partes de

um mesmo todo, como meios para um mesmo fim. No fundo de

qualquer associação entre homens, existe originariamente, repito,

uma associação entre as ideias de um mesmo homem.

Não posso aceitar a objeção de que essa adaptação das

ideias entre si só merece o nome de social quando ela se exprime

numa adaptação dos homens entre si. Com efeito, ela muitas vezes

se exprime de outro modo, e mais ainda, parece que esse outro

gênero de expressão tende a prevalecer. Depois que o trabalho

realizado por um único homem foi substituído por uma divisão do

trabalho entre muitos homens, acontece com frequência que uma

nova invenção faça com que uma única máquina realize todas as

fases da operação. Nesse caso, a divisão do trabalho, a associação

das tarefas entre homens, só desempenhou o papel de um termo

médio entre a associação de ideias do primeiro criador da obra e

a associação das engrenagens da máquina. Não é no grupo de tra­

balhadores que a ideia de gênio se encarnou; ela foi materializada

em pedaços de ferro e madeira. E esse caso tende a generalizar-se

com a progressiva utilização de máquinas na produção. Suponham,

embora isso seja impossível, que toda a produção humana seja

realizada pelas máquinas. Já não haverá divisão do trabalho, pois

não haverá nenhum ou quase nenhum trabalho, e podemos dizer,

se quisermos, que já não haverá harmonia social propriamente

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94 As Leis Sociais

dita, mas que a união social aumentará; porém essa união social,

ainda mais desejável do que a harmonia, não terá sido o efeito

dessas inumeráveis e infinitesimais adaptações cerebrais? Onde

encontrar fatores sociais mais potentes do que esses fatos, que

seriam puramente individuais?

Nós acabamos de ver que a evolução da sociologia a condu­

ziu, tal como aconteceu em outros campos, a descer das alturas

quiméricas das causas vagas e grandiosas até as ações infinitesi­

mais, reais e precisas. Mostremos agora, ou melhor, assinalemos

- pois falta-nos espaço para uma exposição mais detalhada - que

a evolução da realidade social, exatamente inversa à da ciência

social, consistiu na passagem gradual de uma infinidade de har­

monias muito pequenas a um menor número de harmonias maio­

res, e depois a um número muito reduzido de harmonias muito

grandes, até chegar, num futuro ainda indefinido, à realização do

progresso social em uma civilização única e total, tão harmoniosa

quanto possível. Note-se que essa lei de alargamento progressivo

não deve ser compreendida aqui como a tendência à difusão imi-

tativa de uma invenção ou grupo de invenções; isso seria voltar

à lei da imitação, que nós já conhecemos. E nem mesmo se trata

do incessante alargamento que essa irradiação imitativa propor­

ciona à harmonia social que chamamos de “divisão do trabalho”

e que deveríamos antes chamar de “solidariedade dos trabalhos”.

Ainda que uma indústria permaneça a mesma, sem nenhum novo

progresso, a cooperação social que resulta dela crescerá à medida

que, por um lado, as necessidades de consumo que ela satisfaz, e

por outro, os atos de produção pelos quais ela supre essa deman­

da, se propagarem por imitação para além da região, inicialmente

bastante circunscrita, onde ela nasceu. Por mais importante que

seja o fenômeno de crescimento dos mercados, habitual prelúdio

da federação dos povos, não é ele que está em causa aqui. A bem

dizer, é muito raro que, sem nenhum progresso intrínseco da in­

dústria, esse progresso extrínseco possa realizar-se.

Gabriel Tarde 95

É desse progresso intrínseco que queremos falar, ou seja,

da tendência de uma invenção, de uma adaptação social dada, a

se complicar e intensificar ao adaptar-se a outra invenção, a outra

adaptação, engendrando desse modo uma nova adaptação que,

por meio de outros encontros e outras alianças lógicas do mesmo

gênero, conduzirá a uma síntese mais alta, e assim por diante. Esses

dois progressos - o progresso de uma invenção em extensão por

meio de sua propagação imitativa, e seu progresso em compreensão,

de algum modo, por meio de uma série de alianças lógicas - são

certamente muito distintos, porém longe de serem inversamente

proporcionais (apesar da oposição habitual, concernente a outros

aspectos, entre a extensão e a compreensão das ideias), eles mar­

cham paralelamente e são inseparáveis. A cada aliança cerebral

de duas invenções em uma terceira — quando, por exemplo, a ideia

da roda e a ideia da domesticação do cavalo, depois de se propa­

garem independentemente (talvez durante séculos), se fundiram

e harmonizaram na ideia de carro - foi preciso, necessariamente,

que a imitação operasse para aproximá-las em um mesmo cérebro,

tal como foi preciso, para o surgimento de cada uma delas, que

seus elementos fossem trazidos para o espírito de seus autores por

meio de diversas irradiações de exemplos. Melhor ainda, a cada

síntese de novas invenções, geralmente é preciso uma irradiação

imitativa mais vasta que as precedentes. Existe um entrelaçamento

contínuo entre essas duas progressões, a progressão imitativa,

uniformizadora, e a progressão inventiva, sistematizadora. Elas

estão ligadas entre si por um vínculo que, sem dúvida, nada tem de

rigoroso (pois, por exemplo, uma série de árduos teoremas pôde

desenrolar-se no cérebro de um Arquimedes ou de um Newton

sem nenhuma contribuição de elementos trazidos por sábios

estrangeiros no decorrer de cada uma dessas descobertas), mas

esse vínculo é suficientemente costumeiro para nos fazer acreditar

que constataremos um crescimento da extensão do campo social

e da intensidade das comunicações sociais, e uma ampliação e

Page 48: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

96 As Leis Sociais

aprofundamento das nacionalidades (senão dos Estados), sempre

que crescerem a riqueza das línguas, a beleza arquitetônica das

teologias, a coesão das ciências, a complexidade e a codificação das

leis, a organização espontânea ou a regulamentação dos trabalhos

industriais, o regime financeiro, a coordenação e a complicação

administrativas, os refinamentos e a variedade da literatura e das

belas-artes.

Mais uma vez, no entanto, é preciso não confundir, como

muitas vezes acontece, o progresso da instrução, simples fato de imi­

tação, e o progresso da ciência, fato de adaptação; nem o progresso

da industrialização com o progresso da indústria, ou o progresso

da moralidade com o progresso da moral, ou o progresso do mili­

tarismo com o progresso da arte militar, ou o progresso da língua,

entendido aqui como sua expansão territorial, com o progresso da

linguagem, entendido aqui como o refinamento de sua gramática

ou o enriquecimento de seu vocabulário. Tomemos estes dois ca­

sos: a ciência progride enquanto a instrução para de expandir-se;

ou então há uma progressiva expansão da instrução enquanto a

ciência permanece estacionária. Serão eles equivalentes? E será

possível dizer, para falar um tanto vagamente, que houve nesses

dois casos um progresso das luzes? Não, pois essas coisas não

têm uma medida comum. Cada ganho da ciência, cada verdade que

se acrescenta ao seu agregado — ao seu adaptat — de proposições

concordantes entre si, não é uma simples soma, mas antes uma

multiplicação, uma confirmação recíproca. Mas cada aluno novo

que se junta aos outros, cada nova edição de um exemplar cerebral

da ciência ensinada é apenas uma unidade extra adicionada às ou­

tras. Para sermos exatos, reconheçamos que existe aí algo mais do

que uma adição: pois a comunhão de inteligência que resulta desse

processo, por conta da similitude do ensinamento transmitido às

diversas crianças, aumenta a confiança de cada uma delas em seus

Gabriel Tarde 97

conhecimentos40 e também é uma adaptação social; e está longe

de ser uma das menos preciosas.

Antes de prosseguir, façamos algumas importantes observa­

ções. Em primeiro lugar, notemos a que ponto a ideia de adaptação

torna-se mais clara e precisa quando passamos do mundo físico, ou

mesmo do mundo vivo, ao mundo social. Será que sabemos com pre­

cisão o que é a adaptação de uma molécula ácida à molécula básica

com a qual ela se combina, ou o que é a adaptação de um grão de

pólen ao óvulo que, fecundado por ele, dará nascimento a um novo

indivíduo que talvez seja o primeiro de uma nova raça? Nada sabe­

mos sobre isso. É verdade que, no caso da interferência entre ondas

sonoras que, ao invés de se destruírem, se ajudam mutuamente e

produzem um reforço do som ou um timbre inesperado, nós estamos

um pouco mais bem informados sobre a natureza do fenômeno; no

entanto, esse simples reforço do som, ou mesmo a produção desse

timbre (que é uma criação original somente do,ponto de vista sub­

jetivo de nossas sensações acústicas) nada têm em comum com o

fato, objetivamente inovador, da combinação química. Do mesmo

modo, quando duas espécies animais ou vegetais se encontram,

ajudando e parasitando uma à outra, trata-se de um caso muito

claro de mutualismo vital que proporciona um simples aumento

de seu bem-estar e de sua propagação, e não deve ser confundido

com o caso da fecundação, que continua bastante obscuro. Mas

quando se produz uma feliz interferência, qualquer que seja, entre

duas irradiações imitativas, ela é sempre transparente para nossa

razão. Ela pode consistir simplesmente num estímulo mútuo - como

40 Notemos de passagem que essa similitude entre os ensinamentos somente é completa na escola primária, e que ela é menor na escola secundária, apesar da uniformidade dos programas de bacharelado [baccalauréat]; e ela é ainda menor nas instituições de ensino superior, onde o livre desacordo das doutrinas é tão frequente. Nota-se aqui o caráter subordinado e mediador da Contradição, da Discussão: o ensino superior, no qual ela reina, tende sempre a descambar no ensino secundário, no qual ela já é menos acentuada, e na escola primária, na qual ela não existe. Aqui as contradições dos cientistas não servem para nada, ou só servem para trazer à luz adaptações de verdades para uso futuro de professores rurais.

Page 49: TARDE, Gabriel. As Leis Sociais

98 As Leis Sociais

a propagação das lâmpadas a gás favoreceu a do gás e vice-versa,

ou como a propagação da língua francesa favorece a da literatura

francesa, que por sua vez a favorece. E também é possível que essa

interferência tenha uma eficácia mais profunda e provoque uma

invenção nova, foco de uma nova imitação irradiadora - tal como a

propagação do cobre, ao encontrar-se com a do estanho, sugeriu a

ideia da fabricação do bronze, ou como o conhecimento da álgebra

e da geometria sugeriram a Descartes a expressão algébrica das

curvas. Mas nesse último caso, como no primeiro, vemos claramente

que a adaptação é uma relação lógica ou teleológica, e que ela sem­

pre se enquadra em um desses dois tipos: ora ela é, como a lei de

Newton, tal como em qualquer lei científica, uma síntese de ideias

que anteriormente não pareciam nem confirmar-se nem contradizer-

-se, e que agora se confirmam mutuamente como consequências

de um mesmo princípio; ora ela é, como numa máquina industrial

qualquer, uma síntese de ações que, outrora estranhas umas às

outras, se favorecem mutuamente através de uma engenhosa coli­

gação, meios solidários para um mesmo fim. A invenção do carro

(já complexa, como sabemos), a invenção do ferro, a invenção da

força motriz do vapor, a invenção do pistão, a invenção do trilho:

tantas invenções que pareciam estranhas umas às outras e que se

solidarizaram na invenção da locomotiva.

Em segundo lugar, quer se trate de uma síntese de ações, de

uma invenção científica ou industrial, religiosa ou estética (em uma

palavra, teórica ou prática), podemos chamar de “acoplamento

lógico” o procedimento elementar que a formou. Com efeito, qual­

quer que seja o número de ideias ou atos sintetizados numa teoria

ou máquina, jamais existe uma combinação de mais do que dois

elementos de cada vez, adaptados entre si no cérebro do inventor

ou de cada um dos inventores que colaboraram sucessivamente

para sua formação.41 Em sua Sémantique, Michel Bréal fez uma

41 Ver, no livro Lois de 1'imitation, o capítulo sobre as leis lógicas da imitação, sobretudo p. 175 e p. 195 e seguintes; e no livro Logique Sociale, o capítulo sobre as leis da invenção.

Gabriel Tarde 99

observação muito perspicaz a respeito da linguagem que sustenta

esta minha observação geral: “qualquer que seja o comprimento”,

diz ele, “de uma palavra composta, ela jamais compreende mais

do que dois termos. Essa regra não é arbitrária: ela decorre da

natureza de nosso espírito que associa suas ideias em pares.” Em

outra passagem relativa às figuras esquemáticas pelas quais James

Darmesteter tentou tornar visível a evolução dos sentidos das pa­

lavras de acordo com diferentes vias, o mesmo autor escreve: “é

preciso lembrar que essas figuras complicadas só têm valor para

o linguista: aquele que inventa o novo sentido (de uma palavra)

esquece momentaneamente todos os sentidos anteriores, salvo um,

de maneira que as ideias sempre se associam de duas em duas.” E

isso sempre acontece, tal como nas oposições entre ideias, como

já vimos. Seria fácil, porém tedioso, mostrar a generalidade desse

processo; bastaria flagrar sucessivamente cada descoberta ou

aperfeiçoamento no momento em que ela é adiçionada à descoberta

anterior, seja na esfera científica, jurídica, econômica, política, ar­

tística ou moral. Em vez disso, é preferível indicar por que é assim,

e como isso se torna possível e necessário.

Por um lado, isso se deve essencialmente ao fato de que a

marcha do espirito, seu funcionamento elementar, consiste em

passar de uma ideia a outra ligando as duas por um juízo ou por

uma volição: por um juízo que mostra a ideia do atributo implicada

na ideia do sujeito, ou por um ato de vontade que encara a ideia

do meio como estando implicada na ideia da finalidade. Por outro

lado, se o espírito passa de um juízo a outro juízo mais complexo,

e de uma volição a outra, mais compreensiva, é porque à força de

repetir-se mentalmente em virtude dessa dupla forma de imitação

de si mesmo, que chamamos de memória e hábito, um juízo ter­

mina por enrodilhar-se numa noção, fusão de seus dois termos

doravante soldados e indistintos; e uma volição, um desígnio,

acaba transformando-se num reflexo cada vez menos consciente.

Por causa dessa transformação inevitável - que ocorre em larga

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100 As Leis Sociais

escala, socialmente, sob os nomes respeitáveis de tradição e costu­

me - nossos antigos juízos tornam-se aptos a integrar, agora como

noções, um novo juízo; e nossos antigos desígnios tornam-se aptos

a integrar um novo desígnio. Da mais baixa à mais alta operação

de nosso entendimento e de nossa vontade, esse procedimento é

o mesmo; e não existe descoberta teórica que seja algo além da

junção judiciária de um atributo, ou seja, de antigos juízos, a um

novo sujeito, assim como não há descoberta prática que seja algo

além da junção voluntária de um meio, ou seja, de um antigo fim,

anteriormente desejado por si mesmo, a um novo fim. Por meio

dessa alternância, ao mesmo tempo tão simples e tão fecunda,

de mudanças inversas que se sucedem indefinidamente, o juízo

e a finalidade de ontem se tornam a noção simples e o simples

meio de hoje, que suscitarão o juízo ou a finalidade de amanhã,

e assim por diante; e foi de acordo com esse ritmo social, e tam­

bém psicológico, que todos os grandes edifícios de descobertas

e invenções que despertam nossa admiração foram construídos:

nossas línguas, nossas religiões, nossas ciências, nossos códigos,

nossas administrações, e decerto nossa organização militar, nossas

indústrias, nossas artes.

Quando consideramos uma dessas grandes coisas sociais

- uma gramática, um código, uma teologia - o espírito individual

parece tão diminuto ao pé desses monumentos, que a ideia de

enxergar nele o único construtor dessas gigantescas catedrais

parece ridícula aos olhos de alguns sociólogos; e como estes não

percebem que com isso renunciam à possibilidade de explicá-las,

pode-se perfeitamente desculpá-los por serem levados a dizer que

tais obras são eminentemente impessoais. Apenas mais um passo

levaria a postular (como meu ilustre adversário Durkheim) que,

longe de serem funções do indivíduo, elas são seus fatores, existindo

independentemente das pessoas humanas e governando-as despo­

ticamente ao projetar sobre elas sua sombra opressiva. Mas como

essas realidades sociais - pois se eu combato a ideia do organismo

Gabriel Tarde 101

social, estou longe de contradizer a de um certo realismo social,

que precisaria ser definido - como, repito, essas realidades sociais

foram produzidas? Eu admito de bom grado que, uma vez que fo­

ram produzidas, elas se impõem ao indivíduo, às vezes de maneira

coercitiva, o que é raro, e mais frequentemente por persuasão, por

sugestão, pelo prazer singular de que gozamos, desde o berço, ao

nos impregnar com os exemplos dos mil modelos existentes em

nosso ambiente, como uma criança ao sugar o leite de sua mãe. Eu

admito isso, mas como esses monumentos grandiosos aos quais

me refiro foram construídos, e por quem, a não ser por homens e

esforços humanos?

Quanto ao monumento científico, talvez o mais grandioso

de todos os monumentos humanos, não há dúvida possível. Ele

foi construído sob a luz plena da história, e nós seguimos seu

desenvolvimento praticamente desde seu inicio até os dias de

hoje. Que nossas ciências tenham sido no igício uma poeira de

pequenas descobertas esparsas e sem ligação, que foram em se­

guida agrupadas - sendo cada um desses agrupamentos já uma

descoberta - em pequenas teorias que depois foram, por sua vez,

fundidas em teorias mais amplas, confirmadas ou retificadas por

uma infinidade de outras descobertas, e enfim fortemente coligadas

por inúmeras hipóteses lançadas sobre elas, elevadas invenções

do espírito unificador, tudo isso é indiscutível. Não existe lei, teoria

científica ou sistema filosófico que não exiba a assinatura de seu

inventor. Tudo isso é de origem individual, tanto os materiais quanto

os planos, os planos de conjunto e os planos de pormenor; tudo,

até mesmo aquilo que agora é ensinado na escola primária e está

difundido em todos os cérebros cultivados, foi no início o segredo

de um cérebro solitário, onde essa pequena lâmpada, tímida e tre-

meluzente, irradiou com dificuldade numa estreita esfera, através

das contradições, até que, fortificada por sua expansão, tornou-se

um luminoso farol.

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102 As Leis Sociais

Mas se é evidente que a ciência foi construída desse modo,

não é menos certo que a construção de um dogma, de um corpo

jurídico, de um governo ou de um regime econômico ocorreu da

mesma maneira; e se existem possíveis dúvidas no que diz respeito

ã língua ou ã moral, é porque a obscuridade de suas origens e a

lentidão de suas transformações ocultam de nossos olhos a maior

parte de seu percurso, mas é muito provável que sua evolução tenha

seguido o mesmo caminho. Não é por meio de minúsculas criações

de expressões imaginativas, de giros pitorescos, de novas palavras

ou novos sentidos que nossa língua se enriquece à nossa volta? E

cada uma dessas inovações, pelo simples fato de ser geralmente

anônima, deixa por isso de ser uma iniciativa pessoal que, pouco

a pouco, vai sendo imitada? E não é desses achados expressivos,

vicejantes em cada língua, que as línguas em contato se servem

reciprocamente para engrossar seu-dicionário e flexibilizar ou

mesmo complicar sua gramática? Não é também por uma série de

pequenas revoltas individuais contra a moral estabelecida, ou de

pequenas adições aos seus preceitos, que essa moral sofre lentas

modificações? E não foi uma passagem através de fases suces­

sivas que conduziu de uma era muito antiga, na qual as línguas

eram inumeráveis porém muito pobres, cada uma falada por uma

horda, uma tribo, um burgo, e em que as morais eram também

muito numerosas, muito desiguais e muito simples, à nossa época,

na qual um pequeno número de línguas muito ricas e de morais

muito complicadas estão prestes a disputar a futura hegemonia

do globo terrestre?

No entanto, é preciso conceder aos adversários da teoria

das causas individuais na história o mérito de perceber que ela foi

falseada; e ela foi falseada na medida em que se falava de grandes

homens lá onde era preciso falar de grandes ideias, muitas vezes

surgidas em homens muito pequenos, e mesmo de pequenas ideias,

inovações infinitesimais trazidas por cada um de nós à obra comum.

A verdade é que todos nós, ou quase todos, colaboramos na pro­

Gabriel Tarde 103

dução desses grandes edifícios que nos dominam e nos protegem;

cada um de nós, por mais ortodoxo que pareça, tem sua própria

religião, e por mais correto que pareça, tem sua própria língua,

sua própria moral; o mais vulgar dos cientistas tem sua própria

ciência, o mais rotineiro dos administradores tem sua própria arte

administrativa. E assim como cada um tem sua pequena invenção,

consciente ou inconsciente, para acrescentar ao legado secular

das coisas sociais das quais somos depositários passageiros, cada

um também gera uma irradiação imitativa (em sua esfera mais ou

menos limitada) que basta para prolongar seu achado além de sua

existência efêmera, e guardá-lo para os trabalhadores futuros que o

farão funcionar. A imitação, que socializa o individual, perpetua em

toda parte as boas ideias, e ao perpetuá-las, as aproxima e fecunda.

Acaso poderíamos dizer que, sendo dada a natureza eterna

das coisas e estando elas na presença do também persistente

espírito humano, a ciência chegaria, mais cedo ou mais tarde, e

não importando por qual caminho de descobèrtas individuais, ao

estágio atual e ao estágio em que nossos netos a conhecerão, e que

sua forma futura, clara e gloriosa, já estava predeterminada desde

as primeiras percepções do cérebro selvagem, e que por isso o

acidente do gênio ou o papel do indivíduo pouco importam, ou vão

perdendo a cada dia sua importância à medida que nos aproxima­

mos da realidade ideal, platonicamente atrativa, cujos contornos

já se deixam adivinhar? Mas se essa objeção fosse verdadeira, ela

teria de ser generalizada, e disso resultaria que, no decorrer de um

encadeamento qualquer de satisfações e necessidades, nascidas

alternadamente umas das outras, uma irresistível atração de não

sei quais planos divinos, invisivelmente imperiosos, conduziria

inevitavelmente a humanidade ao mesmo termo político, econô­

mico ou outro, à mesma constituição, à mesma indústria, à mesma

língua, à mesma legislação final... Até o momento, não há nada mais

contrário aos fatos do que essa visão, pois quanto mais as diversas

civilizações que partilham a Terra - cristã, budista, islâmica - se

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104 As Leis Sociais

desenvolvem, mais sua originalidade e dessemelhança se acentu­

am. Entretanto, aquilo que me agrada nessa maneira de ver é que

ela é idealista, mas não o bastante, sendo por isso um idealismo

falho. O mundo não é movido por uma só ideia ou por um peque­

no número de ideias situadas no ar; existem milhões e milhões

que lutam pela glória de serem seus portadores. Essas ideias que

agitam o mundo são as ideias de seus próprios atores: cada um

deles batalhou para fazer triunfar a sua, sonho de reorganização

local, nacional ou internacional, que se desenvolvia ao realizar-

-se, e que mesmo sucumbindo podia avultar-se. Cada indivíduo

histórico foi um projeto de uma nova humanidade, e todo o seu ser

individual, todo o seu esforço individual, não passou da afirmação

desse universal fragmentário do qual ele era o portador. E desse

sem-número de ideias, desses grandes programas patrióticos ou

humanitários que dominam, como grandes bandeiras mutuamente

despedaçadas, a mixórdia humana, talvez apenas uma sobreviva,

uma única dentre miríades, porém ela mesma terá sido individual

em sua origem, tendo jorrado do cérebro ou do coração de um

homem; e eu aceito a ideia de que seu triunfo tenha sido necessá­

rio, mas sua necessidade, que se revela retrospectivamente, que

ninguém planejou de antemão, que ninguém poderia prever com

certeza, não passa da expressão verbal da superioridade dos es­

forços individuais postos ao serviço dessa concepção individual.

Causa final e causas eficientes se confundem aqui, e não há motivo

para distingui-las.

E é justamente porque toda construção social deve todos

os seus materiais, e mesmo todos os seus planos, a contribuições

individuais, que eu não poderia admitir aquilo que chegou a ser

considerado o atributo essencial da realidade social: seu caráter

soberano e dominador em relação ao indivíduo. Se assim fosse,

essa realidade jamais teria se desenvolvido e esses monumentos

jamais poderiam ter sido edificados, pois em cada um de seus

desenvolvimentos sucessivos causados pela introdução de uma

Gabriel Tarde 105

novidade - uma nova palavra, um novo projeto de lei, uma nova

teoria científica, um novo projeto industrial, etc. - é evidente que

a inovação não foi introduzida à força, e sim por persuasão e doce

sugestão. Vejam a maneira pela qual cresce o palácio das ciências.

Uma teoria é longamente discutida no ensino superior antes de

propagar-se sob a forma de uma hipótese mais ou menos prová­

vel, e ao descer para o ensino secundário ela já se afirma mais

resolutamente; mas, por via de regra, ela só se torna um autêntico

dogma quando chega ao ensino primário, exercendo ou tentando

exercer sobre o espírito de seus partidários infantis, que aliás se

prestam a isso com a maior boa vontade do mundo, a coerção, de

modo nenhum despótica, à qual nos referimos. Em outros termos,

isso significa que seu atual caráter imperioso se estabeleceu em

virtude de sua persuasão anterior, e tudo isso por propagação

imitativa. O mesmo acontece quando uma novidade industrial se

difunde: ela é um capricho da elite antes de ser uma necessidade

do público e de fazer parte daquilo que se considera necessário.

Pois o luxo de hoje é o necessário de amanhã, pela mesma razão

que o ensino superior de hoje é o ensino secundário, e mesmo o

primário, de amanhã.

Esse grande tema da adaptação social exigiria vários outros

desenvolvimentos; tomarei a liberdade de remeter o leitor ao meu

livro sobre a Lógica Social, onde esbocei alguns deles. Aqui, porém,

é preciso impor limites. Não preciso insistir muito na observação,

infelizmente muito óbvia, que estabelece a seguinte relação: quanto

mais as adaptações são múltiplas e precisas, mais aumentam as

inadaptações sociais, dolorosas, enigmáticas, que justificam tantas

queixas. Mas agora estamos aptos a dizer por que as harmonias

naturais, assim como as simetrias naturais, raramente são perfeitas,

e por que elas se misturam (ou mesmo dão origem) a desarmonias

e dissimetrias, que por sua vez poderão contribuir para suscitar

adaptações e oposições mais altas. É que a adaptação perfeita e a

oposição perfeita são as duas extremidades de uma série infinita,

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106 As Leis Sociais

entre as quais se intercalam inumeráveis posições. Entre a confir­

mação absoluta de uma tese por outra e a contradição absoluta en­

tre ambas, existe uma infinidade de contradições e de confirmações

parciais, sem mencionar a infinidade de graus de crença afirmativa

e negativa. Uma questão seguida de uma resposta: eis aí a invenção.

Porém mil respostas a uma questão dada são possíveis, cada vez

mais exatas e completas. Para a questão da necessidade de ver,

o olho humano não é a única resposta; existem todos os olhos de

insetos, de pássaros, de moluscos. Para a questão da necessidade

de fixar a fala, houve apenas a resposta do alfabeto fenício.

No seio de qualquer sociedade há uma infinidade de peque­

nas ou grandes respostas às questões, e uma infinidade de novas

questões que surgem dessas mesmas respostas; e é precisamente

por causa disso que existe também um considerável número de

pequenas ou grandes lutas entre partidários de soluções diferentes.

A luta não passa de um choque de harmonias, mas esse choque não

é, por certo, a única relação entre as harmonias; sua relação mais

habitual é o acordo, a produção de uma harmonia superior. A cada

instante, seja falando, seja trabalhando com qualquer coisa, nós

experimentamos uma necessidade e a satisfazemos, e é essa série

de satisfações ou soluções que constitui o discurso ou o trabalho,

e também a política (interna ou externa), a diplomacia e a guerra,

todas as formas de atividade humana. Os esforços incessantemente

repetidos dos indivíduos de uma nação para adaptar sua língua ao

devir de seu pensamento42 acabam modificando e transformando

gradualmente as línguas, bem como suscitando novas línguas. Se

tivéssemos feito o registro de todos esses esforços sucessivos, tal

como tentou fazer o abade Rousselot num recanto de La Charente,

seria possível dizer o número preciso de adaptações linguísticas

elementares que foram integradas numa modificação do som ou do

sentido das palavras. Para adaptar seus dogmas e preceitos reli­

42 Ver a esse respeito a Sémantique de Michel Bréal.

Gabriel Tarde 107

giosos, e também seus costumes e leis, e até mesmo sua moral, aos

seus conhecimentos e necessidades, os indivíduos, principalmente

aqueles que se sentem mais inadaptados ao seu meio (e talvez a si

mesmos), também fazem esforços incessantes que desembocam

em pequenas descobertas acumuladas.43 E de tempos em tempos

surge algum grande inventor, algum grande agenciador.

As desarmonias são, para as harmonias, o que as dissime-

trias são para as simetrias, o que as variações são para as repeti­

ções. Ora, é apenas no seio das repetições precisas, das oposições

claras, das harmonias estreitas, que eclodem as amostras mais ca­

racterísticas da diversidade, do pitoresco e da desordem universais,

43 Se quisermos fazer da sociologia uma ciência verdadeiramente experimental e nela impri­mir o mais profundo selo de precisão, é necessário, creio eu, contar com a colaboração de um grande número de observadores devotados e generalizar o método do abade Rous­selot no que ele tem de essencial. Suponham que vinte, trinta ou cinquenta sociólogos, nascidos em diferentes regiões da França ou em outros países, redijam separadamente, como maior cuidado e minúcia possíveis, a série de pequenas transformações - de ordem política, econômica, etc. - que eles foram capazes de observar na sua pequena cidade ou vilarejo natal, e em primeiro lugar na sua vizinhança mais imediata; suponham que, em vez de limitar-se a generalidades, ele notem os pormenores das manifestações individuais de uma alta ou baixa da fé religiosa ou da fé política, de moralidade ou imoralidade, de luxo, de conforto, de uma modificação da crença política ou religiosa, ocorridas diante de seus olhos a partir da idade em que já fossem capazes de compreendê-las, em primeiro lugar na sua própria família e no seu círculo de amizades; suponham que eles se esforcem, como o ilustre linguista citado mais acima, para chegar à fonte individual dessas peque­nas diminuições, ou aumentos, ou transformações de ideias e tendências, que a partir dali se propagaram num certo grupo de pessoas e que se traduzem por imperceptíveis mudanças na linguagem, nos gestos, na higiene, em hábitos quaisquer; suponham tudo isso, e vocês verão que desse conjunto de monografias similares, eminentemente instru­tivas, seria possível extrair as mais importantes verdades, cujo conhecimento seria útil não apenas para o sociólogo mas também para o homem de Estado. Essas monografias narrativas seriam profundamente diferentes das monografias descritivas, e bem mais esclarecedoras. Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as mudanças sociais; mas o inverso não é verdadeiro. Pode-se muito bem acumular constatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados. Mas aquele que conhecer bem, com precisão de detalhes, a mudança de costumes em alguns pontos particulares, durante dez anos e num único país, não poderá deixar de pôr as mãos na fórmula geral das transformações sociais e, por conseguinte, das próprias formações sociais, aplicável em todos os países e em todos os tempos. Seria bom, para tal pesquisa, aplicar um questionário a princípio bastante limitado; poder-se-ia perguntar, por exemplo, em certas regiões rurais do Sul, por que e como se introduziu e propagou o hábito de deixar de cumprimentar os proprietários ricos da vizinhança, ou sob que influências se começa a perder a fé na bruxaria, nos lobisomens, etc.

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108 /\s Leis Sociais

ou seja, as fisionomias individuais. É pouca coisa, é coisa muito

passageira, uma fisionomia de homem ou de mulher, afinada pela

vida social, pela vida de imitação intensa, complicada e contínua.

Mas nada é mais importante do que essa nuança fugidia. E o pintor

não perdeu o tempo que gastou para fixá-la, tampouco o poeta ou

o romancista que a faz reviver. O pensador não tem o direito de

sorrir diante de seus longos esforços para captar essa coisa quase

inatingível que nunca havia existido e que jamais voltará a existir.

Não existe ciência do individual, mas só existe arte do individual. E

o cientista, ponderando que a vida universal inteira está suspensa

na floração da individualidade das pessoas, teria de considerar o

trabalho do artista com uma modéstia um tanto invejosa se ele

mesmo, imprimindo necessariamente seu estilo pessoal à sua con­

cepção geral das coisas, não lhe desse sempre um valor estético,

verdadeira razão de ser de seu pensamento.

Conclusão

*

Ehora de terminar, e para rematar, façamos um resumo

das principais conclusões às quais fomos conduzidos e

busquemos sua significação de conjunto. Vimos que toda

ciência vive de similitudes, de contrastes ou de simetrias, e de

harmonias - ou seja, de repetições, oposições e adaptações -

e indagamos qual é a lei de cada um desses três termos, bem

como a relação de cada um deles com os demais. Vimos que

o espírito humano, apesar de sua propensão natural - que a

princípio parece tão legítima - a ater-se aos maiores fenômenos,

aos mais imponentes, aos mais prestigiosos, para explicar os

menos visíveis, foi irresistivelmente conduzido a encontrar o

princípio das coisas, em toda ordem de fatos, nos fatos mais

recônditos, cuja fonte, a bem dizer, continua insondável para

ele. Essa constatação deveria causar-lhe uma grande surpresa,

mas não foi assim, pois o hábito da observação científica nos

familiarizou com essa reversão da ordem sonhada pelo pen­

samento nascente. Assim, a lei da repetição, quer se trate da

repetição ondulatória e gravitacional do mundo físico, ou da

repetição hereditária e habitual do mundo vivo, ou da repetição

imitativa do mundo social, é a tendência de passar por via de

amplificação progressiva de um infinitesimal relativo a um infi­

nito relativo. A lei de oposição não é diferente: ela consiste em

uma tendência a amplificar-se numa esfera sempre crescente a

partir de um ponto vital. Socialmente, esse ponto é o cérebro

de um indivíduo, a célula desse cérebro onde se produz, pela

interferência de ondas imitativas vindas de fora, uma contra­

dição entre duas crenças ou dois desejos. Essa é a oposição

social elementar, princípio inicial das mais sangrentas guerras,

assim como a repetição social elementar é o fato individual do

primeiro imitador, ponto de partida de um imenso contágio

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110 As Leis Sociais

de moda. A lei de adaptação, por fim, assemelha-se às ante­

riores: a adaptação social elementar é a invenção individual a

ser imitada, ou seja, a feliz interferência entre duas imitações,

inicialmente num único espírito; e a tendência dessa harmonia

- que na origem é toda interior - é não somente exteriorizar-

-se ao se difundir, mas ainda acoplar-se logicamente, graças

a essa difusão imitativa, com alguma outra invenção, e assim

por diante, até que, por meio de complicações e harmonizações

sucessivas de harmonias, apareçam essas grandes obras cole­

tivas do espírito humano: uma gramática, uma teologia, uma

enciclopédia, um corpo de direito, uma organização natural ou

artificial do trabalho, uma estética, uma moral.

Assim, em resumo, é certo que tudo vem do infinitesimal, e

acrescentemos, é provável que tudo a ele retorne. Ele é o alfa e o

ômega. Tudo o que constitui o universo visível, acessível às nossas

observações, tudo isso provém, como sabemos, do invisível e do

impenetrável, de um nada aparente do qual sai, de maneira ines­

gotável, toda a realidade. Se nós refletíssemos sobre esse estranho

fenômeno, ficaríamos admirados com a potência do preconceito, ao

mesmo tempo popular e científico, que faz com que todo mundo -

tanto um Spencer como um desavisado - olhe para o infinitesimal

como algo insignificante, ou seja, homogêneo, neutro, sem nada

de característico ou espiritual. Ilusão inextirpável! E ainda mais

inexplicável na medida em que também nós, como todos os seres,

estamos destinados a voltar em breve, pela morte, a esse infinitesi­

mal de onde saímos, esse infinitesimal tão desprezado, que poderia

muito bem ser, no fundo - quem sabe? - todo o verdadeiro além, o

único refúgio póstumo, procurado em vão nos espaços infinitos...

Seja como for, que razão teríamos para julgar a priori, sem conhecer

o mundo elementar, que apenas o mundo visível, o mundo espa­

çoso e volumoso, é o teatro do pensamento, a sede de fenômenos

variados e viventes? Como podemos supor tal coisa, quando a cada

instante vemos emergir um ser individual, com sua fisionomia pró­

Gabriel Tarde 111

pria e radiante, do fundo de um óvulo fecundado, do fundo de uma

parte desse óvulo, de uma parte que quanto mais a procuramos,

mais vai se circunscrevendo e esvanecendo, até não sei que ponto

inimaginável? Esse ponto, fonte de tamanha diferença, como julgá-

-lo indiferenciado? Eu sei bem qual é a objeção que me aguarda:

a pretensa lei da instabilidade do homogêneo. Mas ela é falsa, ela

é arbitrária, ela foi imaginada expressamente para conciliar um

preconceito (o de acreditar que aquilo que é indistinto aos nossos

olhos é indiferenciado em si mesmo) com a evidência das diversida-

des fenomenais, das exuberantes variações viventes, psicológicas

e sociais. A verdade é que apenas o heterogêneo é instável, e que

o homogêneo é essencialmente estável. A estabilidade das coisas

está em razão direta de sua homogeneidade. A única coisa na Na­

tureza que é (ou parece ser) perfeitamente homogênea é o Espaço

geométrico, que não mudou desde Euclides. Tem-se a intenção de

dizer simplesmente que o menor germe de heterogeneidade, ao

ser introduzido num agregado relativamente homogêneo, como o

fermento na massa, provocará nele uma diferenciação crescente?

Isso eu contesto: num país ortodoxo, de unanimidade religiosa ou

política, a introdução de uma heresia ou de uma dissidência tem

muito mais chances de ser rapidamente reabsorvida ou expulsa do

que de crescer às expensas da Igreja ou da política reinantes. Eu não

nego a lei de diferenciação em suas aplicações orgânicas ou sociais,

mas ela estará sendo muito mal compreendida caso impeça a visão

da lei de uniformização crescente que se mistura e se entrelaça

com ela. Na realidade, a diferenciação da qual se quer falar é antes

a adaptação da qual falamos; por exemplo, a divisão do trabalho

em nossas sociedades não passa da associação ou coadaptação

progressiva de trabalhos diversos por meio de invenções sucessi­

vas. Circunscrita em seus primórdios às tarefas caseiras, ela vai se

repetindo e ampliando sem cessar, estendendo-se primeiramente

à cidade, na qual as diversas tarefas, outrora semelhantes umas às

outras, porém diferenciadas interiormente, tornam-se diferentes

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112 As Leis Sociais

umas das outras, mas separadamente mais homogêneas; depois

torna-se nacional, e em seguida internacional. Assim, não é verdade

que a diferença vá aumentando, pois se a cada instante aparecem

novidades e outras diferenças, também desaparecem antigas

diferenças; e levando em conta essa consideração, não teremos

nenhuma razão para pensar que a soma das diferenças, se é que

é possível somar coisas que não têm uma medida comum, tenha

aumentado no universo. Algo muito mais importante do que um sim­

ples aumento de diferença acontece sem cessar: a diferenciação da

própria diferença. A própria mudança vai mudando, e num sentido

determinado, que nos encaminha de uma era de diferenças cruas

e justapostas, como de cores berrantes que não combinam, para

uma era de diferenças harmoniosamente nuançadas. Seja lá o que

se possa pensar dessa maneira de ver, é inconcebível que, segundo

a hipótese de uma substância homogênea eternamente submetida

à disciplina niveladora e coordenadora das leis científicas, tivesse

jamais podido existir um universo como o nosso, deslumbrante

em seu desmedido luxo de surpresas e caprichos. 0 que poderia

nascer a partir do perfeitamente semelhante e perfeitamente regra­

do, a não ser um mundo eterna e imensamente tedioso? Do mesmo

modo, a essa concepção corrente do universo como formado por

uma poeira infinita de elementos, todos semelhantes no fundo e

dos quais a diversidade teria emergido sabe-se lá como, eu me

permito opor minha concepção particular que o representa como

a realização de uma multidão de virtualidades elementares,44 cada

qual caracterizada e ambiciosa, cada qual trazendo em si seu uni­

verso distinto, seu universo próprio e de sonho. Pois o número de

projetos abortados por ele é infinitamente maior do que o número

de projetos desenvolvidos; e é entre os sonhos concorrentes, entre

os programas rivais, muito mais do que entre os seres, que acon­

44 Ver a esse respeito o estudo Monadologie et Sociologie, publicado em EssaisetMélanges, Paris-Lyon, Storck et Masson, 1895. [Existe uma tradução brasileira: Monodologia e socio­logia e outros ensaios, trad. de Paulo Neves, São Paulo, Cosac Naify, 2007. (N. do T.)]

Gabriel Tarde 113

tece a grande batalha pela vida que elimina os menos adaptados.

Dessa forma, o subsolo misterioso do mundo fenomenal seria tão

rico em diversidades - embora sejam outras diversidades - quanto

o patamar das realidades superficiais.

Mas, no fim das contas, a metafísica aqui esboçada é de es­

cassa importância em relação a tudo que foi exposto até aqui, e é

entre parênteses que eu lanço essa hipótese, fazendo observar que,

mesmo rejeitada, ela deixará de pé as considerações mais sólidas

e positivas apresentadas anteriormente. Ela tão somente permite

abarcar, sob um mesmo ponto de vista, os dois tipos de verdades,

aparentemente estranhas entre si, que nós colhemos ao longo de

nosso caminho, a saber: aquelas que dizem respeito à progressão

regular das repetições, das lutas, das harmonias universais, ao

aspecto regular do mundo, alimento da ciência; e aquelas relativas

ao aspecto selvagem do mundo, presa extraordinária da arte em

perpétua renovação em face do que parece ser a eterna necessidade

do diverso, do desordenado, graças ao próprio funcionamento da

assimilação, da simetrização, da harmonização universais. Nada

é mais fácil de compreender do que essa aparente anomalia, se

supormos que as originalidades subfenomenais das coisas traba­

lham não para apagar-se, mas para florescer num nível mais alto.

A partir disso, tudo se explica; e assim como as relações

mútuas entre os nossos três termos, repetição, oposição, adapta­

ção, são facilmente inteligíveis quando consideramos a repetição

progressiva como algo que funciona a serviço da adaptação que

ela propaga e que, por suas interferências, ela desenvolve - mas

também como algo que às vezes funciona a favor da oposição, que

por interferências de outro tipo, ela também condiciona - pode-se

igualmente acreditar que todas as três colaboram para o floresci­

mento da variação universal sob suas formas individuais e pessoais

mais elevadas, mais amplas e mais profundas.

(Outubro de 1897)