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Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Direito da Universidade Federal de Pelotas, o qual obteve a nota máxima.TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Faculdade de Direito
Curso de Bacharelado em Direito
Trabalho de Concluso
Da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, acessrio ou
munio: uma anlise luz dos princpios fundamentais de Direito Penal
Anglica Almeida da Silva Vellar
Pelotas, 2014
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Anglica Almeida da Silva Vellar
Da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e da posse
ilegal de arma de fogo, acessrio ou munio: uma anlise luz dos princpios
fundamentais do Direito Penal
Trabalho de concluso apresentado ao curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial obteno do ttulo de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Daniel Brod Rodrigues de Sousa.
Pelotas, 2014
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Anglica Almeida da Silva Vellar
Da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e da posse ilegal de
arma de fogo, acessrio ou munio: uma anlise luz dos princpios fundamentais
do Direito Penal
Trabalho de concluso de curso aprovado, como requisito parcial, para obteno do ttulo de Bacharel em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Pelotas.
Data da Defesa: ...................................................................
Banca examinadora:
Prof. Dr. Daniel Brod Rodrigues de Sousa (Orientador)
Prof. ............................................................................................................................. Doutor em ..................................... pela Universidade .............................................................................................................................. ........................................................................................................................................ Prof. ............................................................................................................................ Doutor em ..................................... pela Universidade ............................................................................................................................. Prof. ............................................................................................................................. Doutor em ..................................... pela Universidade .............................................................................................................................. ........................................................................................................................................
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H duas coisas que o Senhor Deus detesta: que o inocente
seja condenado e que o culpado seja declarado inocente.
Provrbios 17.15
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Resumo
Os crimes do porte e da posse de arma de fogo, acessrio ou munio presentes no Estatuto do Desarmamento tm levantado inmeros questionamentos no tocante sua proteo jurdica, principalmente no que diz com o modo desta proteo. O objeto deste trabalho analisar os diversos posicionamentos acerca da temtica, e examinar quais modalidades podem ser consideradas inconstitucionais luz dos princpios fundamentais de direito penal. Para possibilitar isso, fez-se, inicialmente, uma abordagem histrica acerca da origem das armas de fogo e do surgimento do controle destes instrumentos pelo Estado, bem assim traou-se os conceitos acerca dos objetos materiais dos delitos analisados, bem como foram tecidas consideraes acerca da teoria do bem jurdico. Apontou-se o posicionamento da doutrina no tocante ao bem jurdico tutelado e forma de sua proteo, bem assim o entendimento jurisprudencial. Da anlise de todo esse arcabouo terico e do confronto das modalidades analisadas com os princpios fundamentais de direito penal, concluiu-se pela inconstitucionalidade de algumas delas. Palavras-chave: estatuto desarmamento; bem jurdico; crimes de perigo abstrato; inconstitucionalidade.
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Abstract
The crimes of possession and possession of a firearm accessory or ammunition - present in the Disarmament Statute - have raised numerous questions regarding their legal protection, especially when it comes to the way this protection. The object of this work is to analyze the various positions on the subject, and examine which modalities can be considered unconstitutional in the light of the fundamental principles of criminal law. To make this possible, if made, initially, a historical approach on the origin of firearms and the emergence of state control of these instruments, as well as outlined the concepts about the material objects of the crimes analyzed, as well as considerations were woven about the theory of legal right. Pointed out the positioning of the doctrine regarding the legal tutored well and the shape of your protection, as well as the jurisprudential understanding. Analysis of all this theoretical framework and comparison of treatment processes with the fundamental principles of criminal law, we concluded the unconstitutionality of some of them. Keywords: disarmament statute; well legal; abstract danger crimes; unconstitutional.
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Sumrio
1. Introduo ....................................................................................................... 8
2. Breve histria das armas ............................................................................. 10
2.1. Das armas primitivas at as armas de fogo ............................................... 10
2.2. Surgimento da poltica de controle de armas no mundo .......................... 11
2.3. Controle de armas no Brasil ........................................................................ 13
3. Conceito de arma de fogo, munio e acessrio ...................................... 19
4. Da comercializao de armas de fogo, munies e acessrios e do
registro e do porte de arma de fogo ...................................................................... 21
5. Das modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munio
ou acessrio na legislao criminal brasileira ..................................................... 24
5.1. Consideraes iniciais ................................................................................. 24
5.2. Da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso permitido (artigo 12) ................................................................................................................. 25
5.3. Do porte ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso permitido (artigo 14) ................................................................................................................. 27
5.4. Do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso restrito ou proibido (artigo 16) ........................................................................ 30
6. A proteo jurdica das modalidades do porte e da posse ilegal ............ 36
6.1. A importncia da teoria do bem jurdico para o Direito Penal .................. 36
6.2. O bem jurdico protegido e o modo de sua proteo nas modalidades do porte e da posse de arma de fogo, acessrio ou munio.................................. 48
7. Do exame da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e
da posse de arma de fogo, acessrio ou munio luz dos princpios
fundamentais de direito penal ................................................................................ 51
7.1. Consideraes iniciais ................................................................................. 51
7.2. Da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso permitido (artigo 12) ................................................................................................................. 54
7.3. Do porte ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso permitido (artigo 14) ................................................................................................................. 58
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7.4. Do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso restrito ou proibido (artigo 16) ........................................................................ 61
8. Anlise da jurisprudncia ptria ................................................................. 64
8.1. Supremo Tribunal Federal (STF) ................................................................. 64
8.1.1. Arma desmuniciada Habeas Corpus n. 10.208-7 .................................... 64
8.1.2. Decises posteriores ao Habeas Corpus n. 10.208-7: ............................. 67
8.2. Superior Tribunal de Justia (STJ): ............................................................ 68
8.3. Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS): .................. 72
8.4. A reafirmao da posio defendida a partir dos votos dicotmicos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello no HC n. 10.208-7: ......................... 73
9. O controle jurisdicional sob normas penais invlidas qual a soluo
mais eficaz? ............................................................................................................. 77
10. Concluso ..................................................................................................... 81
11. Referncias ................................................................................................... 83
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1. Introduo
Os crimes do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio
constituem verdadeira celeuma jurdica no que diz respeito proteo jurdica a qual
quis contemplar o legislador infraconstitucional por meio da Lei n. 10.826/2003 o
Estatuto do Desarmamento.
De um lado esto os que defendem a inconstitucionalidade dos dispositivos,
sob a alegao de que tratariam de delitos de perigo abstrato e, nesse caso, o bem
jurdico tutelado no sofreria ofensa alguma, configurando, assim, as condutas
meras infringncias ao exerccio do poder regulamentar e, portanto, atpicas
materialmente.
Outros sustentam a regularidade dos delitos da posse e do porte no
ordenamento jurdico. Adotando posicionamento estritamente legalista, entendem
que o legislador ao antecipar a tutela do bem jurdico por meio do risco abstrato no
necessitaria obedecer o postulado da ofensividade.
H ainda aqueles que apontam para uma postura intermediria, defendendo a
constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, porm, mantendo a necessidade
de aferio da ofensividade da conduta.
Definir quais os bens jurdicos que devero receber a tutela penal e a forma
de sua proteo tarefa tormentosa para o legislador, assim como para o
intrprete aferir a ofensividade do perigo ou da leso que advm do bem atingido.
No entanto, da Constituio Federal irradiam princpios vetores a todo o
ordenamento jurdico, sobretudo para o direito penal, que busca controlar o corpo
social de forma mais intensa do que todos os demais ramos do direito, pois emerge
de si a ameaa punitiva.
Da porque exsurge a necessidade de definir precisamente o bem jurdico
protegido pelas normas analisadas e a forma desta proteo. Entendendo-se que
seriam crimes de perigo, ser verificado se o risco seria concreto ou abstrato e,
inclusive, em sendo o segundo, se no se estaria diante de delitos inconstitucionais.
Desse modo analisar-se- luz dos princpios fundamentais do direito penal a
constitucionalidade das modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo,
cuidando para que se delimite claramente o seu mbito de proteo jurdica.
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9
Inicialmente apresentar-se- um breve histrico acerca do surgimento das
armas e sua evoluo at as letais armas de fogo e, posteriormente, ser
examinado o aparecimento das primeiras leis acerca do controle das armas no
Brasil. Justifica-se a aluso histrica porque indispensvel para melhor compreender
o contexto em que a legislao de armas se desenvolveu.
Depois partir-se- para o exame das modalidades que sero estudadas,
trazendo suas peculiaridades tcnicas e jurdicas.
Por fim, abordar-se- a teoria do bem jurdico, os delitos de perigo e, mais
precisamente, as modalidades consideradas inconstitucionais, buscando inclusive
demonstrar qual o melhor meio de solver a inconstitucionalidade do ordenamento
jurdico penal.
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2. Breve histria das armas
2.1. Das armas primitivas at as armas de fogo
A utilizao das armas como instrumento para ferir no fato histrico
recente, mas fruto do prprio desenvolvimento humano. Se, no perodo anterior ao
surgimento da escrita (pr-histria), os homens usavam armas pedras, pedaos
de madeira, pedaos de ossos polidos para caa e defesa contra animais, com o
tempo perceberam que poderiam as utilizar para defesa e ataque contra o seu
semelhante.
Com o incremento e aprimoramento da metalurgia, ainda na fase primitiva, as
armas passaram a ser um pouco mais robustas e, diga-se, mais letais, pois
produzidas a partir dos metais bronze, ferro ou cobre.
Na Antiguidade, as principais armas desenvolvidas foram o arco e flecha, as
espadas, os punhais, as adagas e as lanas.
As armas de fogo, por sua vez, s foram surgir na Idade Mdia, acredita-se
que na China, por volta do ano de 1259, tendo ligao direta com o desenvolvimento
da plvora no sculo IX, cujo descobrimento se atribui aos chineses ou rabes.
H duas referncias histricas importantes acerca da origem das armas de
fogo que projetavam balas de plvora, e que tinham destinao blica.
A primeira ocorreu no ano de 1232, na China, no perodo da dinastia Sung,
por ocasio da batalha Kai-Keng, entre chineses e mongis. Relata-se que o
exrcito chins ao lutar com os mongis utilizou objetos propulsores de projteis de
plvora produzidos com tubos de bambu.
O xito no funcionamento do rstico artefato se dava por que o tubo de
bambu era preenchido por pedras ou outros objetos de arremesso onde uma
mistura de salitre, enxofre e carvo em contato com o fogo criava um escape de
gazes responsvel por expelir os objetos..1
Ainda conta-se que os mongis, aps a batalha, passaram a construir o seu
prprio modelo de arma, e acredita-se que foi por meio deles que o armamento se
disseminou pelo continente europeu.
1 PAR, Ambroise. As primeiras leses por armas de fogo: novo paradigma para o cirurgio militar.
Revista Portuguesa de Cirurgia. Portugal. II Srie, n. 23, p. 77-78, dez. 2012. Disponvel em: Acesso em: 26 de jun. 2014, 14:35:20.
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11
A segunda referncia vem da Batalha de Tarifa, na Espanha, em 1340, Jared
Diamound aduz que os condes ingleses Derby e Salisbury, presentes na batalha,
ficaram impressionados quando os rabes utilizaram canhes contra os espanhis,
tanto que levaram a inveno ao exrcito ingls, que adotou o artefato seis anos
depois contra os soldados franceses na batalha de Crcy.2
A partir da as armas de fogo foram evoluindo. No sculo XVI, foi criado o
sistema de disparo fecho de roda, que consistia em um dispositivo autnomo no qual
o percursor era abaixado sobre a roda e o gatilho liberava a mola, que fazendo girar
a roda, atritava a pirita (mineral duro e gneo) e produzia fascas, que atingiam a
plvora, provocando o disparo.3
No sculo XIX, so engendradas pelos americanos Samuel Colt (revlver
carregamento simples) e Hugo Borchardt (pistola semiautomtica) armas mais
modernas, que inauguraram nos Estados Unidos a fase da industrializao do
armamento belicoso.4
No sculo posterior, destacaram-se a pistola automtica M1911, calibre 45
ACP, projetada pelo americano John Moses Brownin5, e a inveno das
metralhadoras e dos fuzis, o de mais destaque inexoravelmente o fuzil AK-47,
projetado em 1947 por Mikhail Timofeevich Kalashnikov e produzido pela indstria
de armamento da Unio Sovitica no mesmo ano.
2.2. Surgimento da poltica de controle de armas no mundo
Diante da rpida evoluo tecnolgica das armas e da demonstrao de seu
alto poder lesivo emergiu a necessidade de as naes criarem polticas de controle
do uso e da comercializao de armas de fogo, tanto no mbito interno como
externo.
Essa poltica, que passou a ser objeto inclusive de diretrizes internacionais,
em tratados e convenes, de acordo com Luciano Bueno, :
2 Armas, germes e ao. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. p. 249.
3 PAGLIUCA, Jos Carlos Gobbis. PUPIN, Alosio A. C. Barros Pupin. Armas: aspectos jurdicos e
tcnicos. 1 ed. So Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 7. 4 Id., p. 9.
5 Id., p.10.
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12
um conjunto de leis e prticas que possibilitam aos rgos estatais encarregados da segurana e da ordem pblica a atuarem de forma administrativa e jurdica para minimizarem os riscos do mau uso de um instrumento considerado intrinsicamente perigo.
6
Algumas naes se destacaram ao institurem mecanismos de controle das
armas de fogo dentro de seus territrios.
A Inglaterra editou leis importantes como o Black Act de 1722, o Six Act de
1820, o Pistol Act de 1903 que foi a primeira legislao que se tem conhecimento
sobre o controle de pistolas e o Aliens Bill de 1911, o qual proibia estrangeiros de
possurem armas de fogo sem a autorizao do chefe de polcia local.7
Em 1911, o Estado de Nova York, nos Estados Unidos, criou a Lei Sullivan,
a primeira no pas a exigir licena para a posse de armas, malgrado a liberdade para
possuir armas de fogo seja expressamente permitida no pas desde a Constituio
Americana de 1787.8
O Canad, em 1892, obrigou os possuidores de armas de fogo a adquirirem
permisso para posse e proibiu a venda de pistolas a menores de 16 anos9, assim
como a Austrlia que desde 1802 tambm exigia o registro das armas de fogo.10
A preocupao com um efetivo controle do uso e comercializao de armas
de fogo acentuou-se mais significativamente aps a Primeira Guerra Mundial (1914
a 1918), principalmente na esfera internacional.
Nesse perodo, foi criada a Liga das Naes, antecessora da ONU, por meio
do Pacto da Sociedade das Naes a primeira parte do Tratado de Paz de
Versalhes. Os Aliados assinaram o pacto no dia 28 de junho de 1919, em Versalhes,
Frana, que estabelecia no artigo 23 que os membros da Sociedade a
encarregavam da fiscalizao geral do comrcio de armas e munies com o pas
em que a fiscalizao desse comrcio indispensvel ao interesse comum.11
6 Controle de armas: um estudo comparativo de polticas pblicas entre Gr-Bretanha, EUA,
Canad, Austrlia e Brasil. 2001. 215 f. Trabalho apresentado como requisito para obteno do ttulo de mestre em Administrao Pblica. Escola de Administrao de Empresas, Fundao Getlio Vargas, So Paulo, 2001. p. 36. Disponvel em: Acesso em: 27 de jun. 2014, 17:34:10. 7 Id., p. 57-58.
8 Id., p. 103.
9 Id., p. 119
10 Id., p. 149.
11 Pacto da Sociedade das Naes. Disponvel em:
Acesso em: 28 de jun. 2014, 17:27:11.
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Com a Segunda Guerra Mundial e a utilizao da bomba atmica pelos
Estados Unidos contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, o enfoque
internacional mais acentuado passou a ser o da no proliferao de armas
nucleares. Nesse cenrio que a ONU exercer papel imprescindvel relativamente
ao controle de armas de fogo nos anos vindouros.
Atualmente a discusso acerca do controle das armas de fogo no mbito
interno gera inmeras polmicas.
Os favorveis a uma poltica de segurana pblica pautada pelo controle das
armas alegam que liberar a utilizao e o comrcio de aludidos instrumentos aos
cidados encadeia aumentos significativos dos ndices de violncia urbana.
Por outro lado, h os que invocam a existncia de um direito individual de
autodefesa que justificaria a ausncia do controle das armas pelo Estado.
Independentemente das motivaes certo que o assunto exige uma
discusso minuciosa entre os diversos setores da sociedade de cada pas, inclusive
por meio de estudos e levantamentos estatsticos.
Devendo inclusive considerar-se no debate questes culturais e sociais, at
para que se tenha elementos suficientes para afirmar se conveniente afastar do
Estado o controle de instrumentos de potencial lesivo to elevado, manter um
controle absoluto ou ainda buscar uma soluo intermediria.
2.3. Controle de armas no Brasil
A histria do controle de armas no Brasil remonta o perodo das Ordenaes
do Reino. A primeira meno se faz nas ordenaes Filipinas de 1603, cuja vigncia
referente parte criminal s terminou em 1830, com a promulgao do Cdigo
Criminal do Imprio.12
O livro 5, ttulo 80, das mencionadas ordenaes, informa as armas que eram
defesas no Reino, naquela poca era permitido apenas trazer armas brancas
(espadas, adagas, facas e punhais):
Defendemos, que pessoa alguma, no traga em qualquer parte de nossos Reinos, pla, de chumbo, nem de frro, nem de pedra feitia; e sendo
12
ZAFARRONI, Eugnio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Volume 1. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 196.
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achado com ela seja preso, e st na Cada por um mez, e pague quatro mil ris, e mais seja aoutado publicamente com barao, e prego pela Cidade, Villa, ou Lugar onde for achado.
13
O Cdigo Criminal de 1830 manteve a proibio, estabelecendo na parte
quarta (dos crimes policiais), captulo V (das armas defesas), artigo 297, o seguinte:
Usar de armas offensivas, que forem prohibidas. Penas - de priso por quinze a
sessenta dias, e de multa correspondente metade do tempo, atm da perda das
armas. 14
A definio de quais armas eram defesas era delegada s Cmaras
Municipais consoante o artigo 299 do Cdigo Criminal. De acordo com Liliana Buff
de Souza e Silva e Luiz Felipe de Souza e Silva:
Primeiramente, o uso de armas defezas era considerado crime policial. Depois, por uma lei de 26,10.1831, punia-se alm do uso das armas proibidas, tambm o uso, sem licena, de determinadas armas pistola, bacamarte, faca de ponta, punhal, sovelas ou qualquer outro instrumento perfurante com a pena de priso com trabalho por um a seis meses, duplicando-se na reincidncia.
15
No livro III, captulo V, o Cdigo Penal de 1890 trouxe a proibio do uso de
armas e da fabricao de armas e plvora (artigos 376 e 377), que agora constitua
contraveno penal, ao invs de crime policial, punida com priso de 15 a 60 dias.16
Aps a Primeira Guerra Mundial se intensificou a tenso em torno do
comrcio e do uso das armas de fogo, razo pela qual a Conveno de 10 de
setembro de 1919, relativa ao comrcio de armas e munies, foi assinada em Saint
Germain-en-Laye, na Frana, pelos pases Aliados, incluindo o Brasil, que a
promulgou em 19 de maio de 1922, conforme o Decreto n. 15.47517.
13
PORTUGAL, Ordenaes Filipinas. Disponvel em: Acesso em: 29 de jun. 2014, 20:27:08. 14
BRASIL, Cdigo Criminal de 1830. Disponvel em: Acesso em: 29 de jun. 2014, 20:29:08. 15
SILVA, Liliana Buff de Souza. SILVA, Luiz Felipe de Souza. Breve histrico sobre legislao de armas de fogo no Brasil, o Estatuto do Desarmamento e a ordem constitucional. In: DAON, Alexandre Jean (Org.). Estatuto do desarmamento: Comentrios e reflexes Lei 10.826/03. So Paulo: Quartier Latin, 2004. p.35-51. 16
BRASIL, Cdigo Penal de 1890. Disponvel em: Acesso em: 29 de jun. 2014, 20:34:30. 17
BRASIL, Decreto n. 15.475/1922. Disponvel em: Acesso em: 30 de jun. 2014, 21:23:05.
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15
Demorou um pouco para que nosso pas enrijecesse, embora timidamente, o
controle sob o comrcio de armas e munies na esfera penal, que s veio a se
efetivar com o Decreto-Lei n. 3.688/1941.
A Lei de Contravenes Penais18, ainda vigente, tipificou no artigo 19 a
conduta de trazer consigo arma de fogo fora de casa ou dependncia desta sem
licena da autoridade policial, punindo-a com priso simples, de 15 dias a 6 meses,
ou multa, ou ambos cumulativamente.
Esse foi o primeiro passo criminalizao da conduta que ocorreria cinquenta
e seis anos depois com a Lei n. 9.473/97.19
A Lei n. 9.473/97, que instituiu o Sistema Nacional de Armas o SINARM e
estabeleceu as condies para o registro e para o porte de armas de fogo, alm de
definir os crimes correlatos, foi fruto da presso internacional exercida pela
Organizao das Naes Unidas (ONU) para que o Brasil tratasse com mais rigor as
infraes relativas s armas.
O indicador mais evidente para que o Brasil dedicasse esforos para um
controle mais rgido sob as armas internamente se deu em duas participaes do
pas em sesses da Comisso de Preveno do Delito e Justia Penal da ONU.
Nesse sentido Damsio de Jesus explica que:
Realmente, as Naes Unidas tm insistido nas "campanhas de sensibilizao pblica sobre o controle de armas de fogo" ("Public awareness campaigns on firearms regulations"), conforme se verificou no Quinto Perodo de Sesses da Comisso de Preveno do Crime e Justia Penal, realizado em Viena, em maio de 1996 (Naes Unidas, doc. E/CN.15/1996/14, 16 de abril de 1996; Report on the Fifth Session, United Nations, Comission on Crime Prevention and Criminal Justice, Nova York, 1996, Suplemento n. 10, ps. 26 e 58). E no Sexto Perodo de Sesses, realizado em Viena, em abril-maio de 1997, a ONU voltou a insistir no valor das campanhas de desarmamento e controle do uso de armas de fogo.
20
Logo em seguida, em 20 de fevereiro de 1997, sancionada a Lei n.
9.437/1997, trazendo o rigor exigido, e incrustada na promessa de reduo da
criminalidade urbana.
18
BRASIL, Lei de Contravenes Penais. Disponvel em: Acesso em: 30 de jun. 2014, 22:00:03 19
BRASIL, Lei 9.437/1997. Disponvel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9437.htm > Acesso em: 1 de jul. 2014. 10:05:45. 20
JESUS, Damsio E. de. Porte de arma de fogo: seu controle pelas Naes Unidas e Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponvel em: . Acesso em: 1 de jul. 2014. 16:43:09.
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16
A recm criada legislao de armas de fogo situou os verbos possuir, deter,
portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor venda ou fornecer, receber, ter em
depsito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar,
manter sob guarda e ocultar arma de fogo em um mesmo dispositivo legal, que, em
2001, passou a ser tratado como crime de menor potencial ofensivo, devido
alterao trazida pela Lei n. 10.259/2001.21
No bastou a Lei n. 9.437/1997 para concretizar a promessa de diminuir a
criminalidade latente no Brasil. Segundo Jos Carlos Gobbis Pagliuca e Aloso A. C.
Barros Pupin, no ano de 1999, o Brasil possua 2,3% da populao mundial, e 8,8%
dos homicdios por armas de fogo.22
Mais uma vez a presso internacional foi decisiva. O Brasil, pelo Decreto n.
3.229/199923, promulgou a Conveno Interamericana contra a fabricao e o trfico
ilcitos de armas de fogo, munies, explosivos e outros materiais correlatos, e a
partir da se intensificou o debate para uma nova mudana na legislao brasileira
de armas.
A resposta mudana erigiu com o projeto de Lei n. 292 de 1999, de
iniciativa do Senado Federal24 e que na Cmara dos Deputados passou a ser o
projeto de Lei n. 1.555/2003.25
Intensos debates foram travados poca acerca do projeto que visava o
desarmamento civil, at que em 22 de dezembro de 2003 foi promulgada Lei n.
10.826.26
O estatuto do desarmamento ainda foi regulado por meio do Decreto
5.123/200427.
21
BRASIL, Lei 10.259/2001. Disponvel em: Acesso em: 02 de jul. 2014. 09:49:00. 22
Armas, op. cit., p. 7. 23
BRASIL, Decreto n. 3.229/1999. Disponvel em: Acesso em: 5 jul. 2014. 11:42:09. 24
BRASIL, Projeto de Lei n. 292/1999. Disponvel em: Acesso em: 02 de jul. 2014. 10:00:07. 25
BRASIL, Projeto de Lei n. 1.555/2003. Disponvel em: Acesso em: 02 de jul. 2014. 11:23:09. 26
BRASIL, Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento). Disponvel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/10.826.htm Acesso em: 04 de jul. 2014. 09:07:09. 27
BRASIL, Decreto 5.123/2004. Disponvel em: Acesso em: 03 de jul. 2014. 10:05:23.
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17
Em 2005, conforme estabeleceu o artigo 35, 1, do Estatuto do
Desarmamento, foi decretado um referendo popular a fim de consultar a populao
acerca da proibio do comrcio de armas de fogo e munio no territrio nacional.
O resultado do referendo, por maioria considervel dos votos, foi pela permisso da
comercializao.
Com a nova Lei, os delitos da posse e do porte de arma de fogo deixaram de
ser de menor de potencial ofensivo, sendo tratados em dispositivos distintos e com
penas mais severas. Ademais, houve acrscimo nos tipos penais do porte e da
posse, incluindo-se como objeto material a munio e o acessrio.
O compromisso de abaixar os ndices de criminalidade tambm no foi
exitoso com a nova Lei. O mapa da violncia de 2013 do Centro Brasileiro de
Estudos Latino-Americanos demonstrou que mais uma vez o recrudescimento na
proteo penal sobre os delitos relativos s armas de fogo falhou:
Entre 1990 e 2003 o crescimento foi relativamente sistemtico e regular, com um ritmo muito acelerado: 7,3% ao ano. Depois do pico de 39,3 mil mortes em 2003, os nmeros, num primeiro momento, caram para aproximadamente 36 mil, mas depois de 2008 ficam oscilando em torno das 39 mil mortes anuais. O Estatuto e a Campanha do Desarmamento, que iniciam em 2004, pareceriam ser fatores de peso na explicao dessa mudanas. Os dados indicam que essas polticas, se conseguiram sofrear a tendncia do crescimento acelerado da mortalidade por armas de fogo imperante no pas, no tiveram suficiente efetividade ou fora para reverter o processo e fazer os nmeros regredirem.
28
No mesmo sentido apontou o Estudo Global sobre Homicdios, realizado pela
ONU, em 2013, posicionando o Brasil como um dos pases que mais tira vidas por
meio das armas de fogo.29
H de esclarecer-se que no se almeja aqui analisar pormenorizadamente a
efetividade da atual legislao brasileira sobre armas.
Essas consideraes visam to somente enriquecer a discusso doutrinria
que se pretende travar mais adiante acerca da posse e do porte de arma de fogo,
acessrio ou munio, bem como situar as possveis mudanas legislativas que
podem advir.
28
Mapa da Violncia 2013. Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Disponvel em: Acesso em: 03 de jul. 2014. 12:13:24. 29
Estudo Global sobre Homicdios 2013. ONU. Disponvel em: Acesso em: 03 de jul. 2014. 13:00:00.
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18
Nesse sentido, inclusive, o legislador infraconstitucional busca dar dois
tratamentos distintos ao tema armas de fogo no pas por meio de duas alteraes
legislativas, ainda embrionrias.
O Projeto de Lei n. 3722/201230 objetiva revogar o atual Estatuto do
Desarmamento, flexibilizando a obteno do porte de armas de fogo de uso
permitido, bem assim as penas do porte e da posse, inclusive descriminalizando
estas condutas relativamente munio e ao acessrio.
De outro lado, o anteprojeto do novo Cdigo Penal31, que unifica todas as leis
penais existentes, equipara novamente a posse e o porte ilegal de arma de fogo, e
mantm o mesmo rigor no tocante s penas.
A concluso a que se chega de que o legislador age com incoerncia e
impreciso. Primeiro definiu o porte como contraveno penal, depois, com a Lei n.
9.437/97, ascendeu a conduta crime, incluindo a posse, e novamente reduziu o
rigor tratando ambas as condutas como crimes de menor potencial ofensivo.
Em 2003, construiu o estatuto do desarmamento e, mais recentemente,
trouxe dois projetos de Lei tratando de formas distintas os delitos da posse e do
porte de arma de fogo, munio ou acessrio.
Tudo isso a refletir a insegurana jurdica que paira sobre a polmica das
armas, que no aflige somente o legislador, mas tambm a jurisprudncia nacional
como se ver tempestivamente.
30
BRASIL, Projeto de Lei n. 3722/2012. Disponvel em: Acesso em: 14:28:09. 31
BRASIL, Anteprojeto do Novo Cdigo Penal. Disponvel em: Acesso em: 03 de jul. 2014. 17:00:00.
-
19
3. Conceito de arma de fogo, munio e acessrio
Segundo Fernando Capez as armas de fogo so espcies do gnero armas
prprias, que seriam os objetos, os instrumentos, as mquinas ou os engenhos
dotados de potencialidade ofensiva, fabricados com a finalidade exclusiva de
servirem como meios de ataque e defesa.32
Na legislao brasileira, o conceito expresso acerca da definio do que seja
arma de fogo trazido pelo artigo 3, inciso XIII, do Decreto 3.665/200033, o qual diz
que arma de fogo o artefato que arremessa projteis empregando a fora
expansiva dos gases gerados pela combusto de um propelente confinado em uma
cmara que, normalmente, est solidria a um cano que tem a funo de propiciar
continuidade combusto do propelente, alm de direo e estabilidade ao projtil.
Dentro deste amplo conceito cabem inmeras classificaes acerca das
armas de fogo que so apresentadas pelo Regulamento para a fiscalizao de
produtos controlados (R-105), alterado pelo Decreto n. 3.665/2000.
As armas de fogo ainda se dividem em: armas de fogo de uso permitido
(artigo 10 da Lei 5.123/200434 e artigos 3, inciso LXXIX, e 17, incisos I a VI, do
Decreto 3.665/2000), armas de fogo de uso restrito (artigo 11 da Lei 5.123/200435 e
artigos 3, inciso LXXXI, e 16, incisos I a XI, do Decreto 3.665/2000) e armas de fogo
de uso proibido.
Arma de uso proibido como bem aponta Fernando Capez o artefato que
no pode ser vendido, possudo ou portado por ningum36, que exclusivo do
Exrcito Brasileiro. Exemplifica o autor que o caso de um canho, um tanque de
guerra ou de granadas, armamentos que nem mesmo o Exrcito pode autorizar o
particular a ter.37
32
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Legislao Penal Especial. Volume 4. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 334. 33
BRASIL, Decreto 3.665/2000. Disponvel em: Acesso em: 04 de jul. 2014. 07:05:48. 34
Cf. Art. 10. Arma de fogo de uso permitido aquela cuja utilizao autorizada a pessoas fsicas, bem como a pessoas jurdicas, de acordo com as normas do Comando do Exrcito e nas condies previstas na Lei n
o 10.826, de 2003.
35 Cf. Art. 11. Arma de fogo de uso restrito aquela de uso exclusivo das Foras Armadas, de
instituies de segurana pblica e de pessoas fsicas e jurdicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exrcito, de acordo com legislao especfica. 36
CAPEZ, Fernando, op. cit., p. 332. 37
Id., loc. cit.
-
20
No entanto, como acertadamente explica Ricardo Jos Gasques de Almeida
Silvares, uso proibido e uso restrito para efeitos legais so conceitos sinonmicos,
uma vez que o artigo 3, LXXX, do R-105 refere que a antiga designao de uso
proibido dada aos produtos controlados pelo Exrcito designados como de uso
restrito .38
A munio, por sua vez, de acordo com o artigo 3, inciso LXIV, do R-105,
o artefato completo, pronto para carregamento e disparo de uma arma, cujo efeito
desejado pode ser: destruio, iluminao ou ocultamento do alvo; efeito moral
sobre pessoal; exerccio; manejo; outros efeitos especiais.
O acessrio, finalmente, o artefato que, acoplado a uma arma, possibilita a
melhoria do desempenho do atirador, a modificao de um efeito secundrio do tiro
ou a modificao do aspecto visual da arma (artigo 3, inciso II, do R-105).
A exemplo das armas de fogo, as munies e os acessrios tambm se
classificam em de uso permitido, restrito ou proibido, com as mesmas peculiaridades
apontadas para aquelas.
O rol de munies e acessrios de uso restrito e permitido tambm est
elencado no artigo 16 e 17 do R-105, respectivamente.
38
SILVARES, Ricardo Jos Gasques de Almeida. Estatuto do Desarmamento. In: GOMES, Luiz Flvio. SANCHES, Rogrio (Coord.). Legislao Criminal Especial. Coleo Cincias Criminais. Volume 6. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 326.
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21
4. Da comercializao de armas de fogo, munies e acessrios e do
registro e do porte de arma de fogo
Tendo em vista que todas as armas de fogo existentes no territrio nacional
devem estar sob o controle do Estado, a Lei n. 10.826/2003 alargou o rol de
competncias do Sistema Nacional de Armas SINARM em comparao com a lei
anterior.
O SINARM, institudo pelo Ministrio da Justia, no mbito da Polcia federal,
tem circunscrio em todo o territrio nacional. Cabe a ele manter o cadastro geral,
integrado e permanente das armas de fogo importadas, produzidas e vendidas no
pas, de sua competncia.
O artigo 1 do Decreto n. 5.123/2004 detalha quais armas sero cadastradas
no SINARM.
Alm deste sistema, foi criado pelo decreto regulamentador, o Sistema de
Gerenciamento Militar de Armas SIGMA institudo pelo Ministrio da Defesa, no
mbito do Comando do Exrcito, com circunscrio tambm em todo o territrio
nacional. Tendo por finalidade manter um cadastro geral, permanente e integrado
das armas de fogo importadas, produzidas e vendidas no pas, de sua competncia,
e das armas de fogo que constem dos registros prprios, ou seja diversos do
SINARM (artigo 2 do Decreto n. 5.123/2004).
Ento, h dois sistemas de controle de armas de fogo no Brasil, os quais
atualmente esto interligados pela rede INFOSEG (Rede de Integrao Nacional de
Informaes de Segurana Pblica, Justia e Fiscalizao)39, conforme estabeleceu
o artigo 9 do Decreto n. 5.123/2004.
A aquisio de uma arma de fogo de uso permitido deve obrigatoriamente ser
precedida de autorizao do SINARM, devendo o interessado, alm de declarar
efetiva necessidade, preencher os requisitos do artigo 4 da Lei n. 10.826/03, e de
outros previstos no artigo 12 do Decreto n. 5.123/2004.
Preenchidos os requisitos, o SINARM expedir autorizao para compra da
arma indicada em nome do requerente, sendo intransfervel esta autorizao (artigo
4, 1, da Lei n. 10.826/03).
39
Disponvel em: < http://www.infoseg.gov.br/paginas/rede-infoseg/descricao> Acesso em: 05 de jul. 2014. 10:09:56.
-
22
As empresas que comercializarem armas de fogo devem comunicar,
mensalmente, as vendas realizadas em territrio nacional e a quantidade de armas
em estoque. Possuindo responsabilidade legal sob essas mercadorias, que ficaro
registradas como de sua propriedade, de forma precria, enquanto no vendidas,
sujeitando os seus responsveis s penas previstas em lei (art. 20 do Regulamento).
Alm disso, a comercializao de acessrios de armas de fogo e de
munies, s poder ser efetuada em estabelecimento credenciado pela Polcia
Federal e pelo comando do Exrcito, que mantero um cadastro dos comerciantes
(artigo 21 do Decreto).
Pertinente referir que a compra de munies somente poder ser efetuada
para o calibre correspondente arma registrada e na quantidade estabelecida por
portaria do Ministrio da Defesa (artigo 21, 2, do Decreto n. 5.123/2004).
Atualmente a portaria que regulamenta a matria a de n. 1.811/2006.40
As armas de fogo, munies e demais produtos controlados, de uso restrito,
no podero ser comercializados (artigo 19 do Regulamento 5123). No entanto, o
Comando do Exrcito poder autorizar, em carter excepcional, a aquisio de
armas de fogo de uso restrito (artigo 27 do Regulamento 5123), as quais sero
registradas neste rgo autorizador.
O certificado de registro de arma de fogo, que tem validade nacional, e
expedido pela Polcia Federal, comprova que a pessoa, fsica ou jurdica, est
autorizada pelo poder pblico, representado pelo SINARM, a manter a arma de fogo
exclusivamente no interior de sua residncia ou domiclio, ou dependncia desses,
ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsvel legal
pelo estabelecimento ou empresa (artigo 5 da Lei 10.826/2003).
Resumidamente, o registro, consoante explicam Jos Carlos Gobbis Pagliuca
e Alosio A. C. Barros Pupin41, a identidade, a certido de nascimento da arma de
fogo, ele que certifica a sua propriedade.
Alm disso obrigatrio, conforme dispe o artigo 3 da Lei 10.826, vez que
todo aquele que pretender possuir arma de fogo deve t-la registrada.
40
Disponvel em: Acesso em: 06 jul. 2014. 07:17:35 41
Armas, op. cit., p. 65.
-
23
Com efeito, o porte consiste na autorizao dada pelo SINARM para que
determinada pessoa possa trazer consigo, carregar arma de fogo fora das situaes
previstas no artigo 5 da Lei n. 10.826/03.
O porte proibido em todo o territrio nacional, em regra, mas pode ser
autorizado nos casos previstos no artigo 6 da Lei n. 10.826/0342 e em legislao
prpria.
Portanto, como explica Ricardo Jos Gasques de Almeida Silvares o rol
previsto no artigo 6 no taxativo, vez que lei poder prever outros casos como
ocorre nas leis atinentes aos membros do Ministrio Pblico e da Magistratura.43
De acordo com o artigo 22 do Decreto n. 5.123/04, o porte de arma de fogo
de uso permitido vincula-se ao prvio registro da arma e seu cadastro junto ao
SINARM. Ter validade em todo o territrio nacional e ser expedido pela Polcia
Federal, nos casos excepcionais, desde que preenchidos os requisitos do artigo 10
da Lei n. 10.826/2003.
O porte de arma de fogo pessoal, intransfervel e revogvel a qualquer
tempo, sendo vlido apenas com relao arma nele especificada, devendo o
portador apresentar documento de identificao para atestar sua regularidade (artigo
24 do Regulamento).
42
Cf. Art. 6o proibido o porte de arma de fogo em todo o territrio nacional, salvo para os casos
previstos em legislao prpria e para: I os integrantes das Foras Armadas; II os integrantes de rgos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituio Federal; III os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municpios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condies estabelecidas no regulamento desta Lei; IV - os integrantes das guardas municipais dos Municpios com mais de 50.000 (cinqenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em servio; (Redao dada pela Lei n 10.867, de 2004) V os agentes operacionais da Agncia Brasileira de Inteligncia e os agentes do Departamento de Segurana do Gabinete de Segurana Institucional da Presidncia da Repblica; VI os integrantes dos rgos policiais referidos no art. 51, IV, e no art. 52, XIII, da Constituio Federal; VII os integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, os integrantes das escoltas de presos e as guardas porturias; VIII as empresas de segurana privada e de transporte de valores constitudas, nos termos desta Lei; IX para os integrantes das entidades de desporto legalmente constitudas, cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo, na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislao ambiental. X - integrantes das Carreiras de Auditoria da Receita Federal do Brasil e de Auditoria-Fiscal do Trabalho, cargos de Auditor-Fiscal e Analista Tributrio. (Redao dada pela Lei n 11.501, de 2007) XI - os tribunais do Poder Judicirio descritos no art. 92 da Constituio Federal e os Ministrios Pblicos da Unio e dos Estados, para uso exclusivo de servidores de seus quadros pessoais que efetivamente estejam no exerccio de funes de segurana, na forma de regulamento a ser emitido pelo Conselho Nacional de Justia - CNJ e pelo Conselho Nacional do Ministrio Pblico - CNMP. (Includo pela Lei n 12.694, de 2012) 43
Legislao Criminal Especial. op. cit., p. 313.
-
24
5. Das modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munio
ou acessrio na legislao criminal brasileira
5.1. Consideraes iniciais
necessrio esclarecer que sero apresentados os conceitos acerca das
modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio com
base na doutrina brasileira, sem, por ora, apontar as modalidades consideradas
inconstitucionais.
Tambm imprescindvel referir alguns apontamentos introdutrios acerca dos
tipos penais a serem analisados.
Nesse sentido, diferentemente da lei anterior, que concentrava os tipos penais
em um mesmo dispositivo legal, o Estatuto do Desarmamento estremou o porte da
posse ilegal de arma de fogo de uso permitido e, ainda, agregou aos dispositivos a
munio e o acessrio.
Os artigos 1244 e 1445 do Estatuto tratam da posse e do porte ilegal de arma
de fogo, munio ou acessrio de uso permitido, respectivamente, e o artigo 1646
traz a posse e o porte ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso restrito.
So estes os dispositivos os quais sero esmiuados a partir de agora e que
constituem normas penais em branco, j que dependem da anlise de outras
normas para sua integrao ou complementao.
Como elucida Renato Marco sua eficcia est condicionada existncia de
outras espcies normativas (leis, portaria, regulamentos etc.).47
Alm disso, estes crimes so permanentes, porque a consumao se
prolonga no tempo. Assim, consoante informa Ricardo Jos Gasques de Almeida
44
Cf. Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessrio ou munio, de uso permitido, em desacordo com determinao legal ou regulamentar, no interior de sua residncia ou dependncia desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsvel legal do estabelecimento ou empresa: Pena deteno, de 1 (um) a 3 (trs) anos, e multa. 45
Cf. Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depsito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessrio ou munio, de uso permitido, sem autorizao e em desacordo com determinao legal ou regulamentar: Pena recluso, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. 46
Cf. Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depsito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessrio ou munio de uso proibido ou restrito, sem autorizao e em desacordo com determinao legal ou regulamentar: Pena recluso, de 3 (trs) a 6 (seis) anos, e multa. 47
Estatuto do Desarmamento: Anotaes e interpretao jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2002. 2 Ed. So Paulo: Saraiva. p. 62.
-
25
Silvares, a qualquer momento, pode ocorrer a apreenso da arma e a priso em
flagrante.48
5.2. Da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso permitido
(artigo 12)
Muito embora o nomen iuris posse irregular de arma de fogo de uso
permitido, ser adotado aqui o entendimento de Ricardo Jos Gasques de Almeida
Silvares, que considera mais adequado o termo posse ilegal ao invs de irregular,
porque segundo ele o crime se perfaz primeiramente por desobedincia norma
legal e, subsidiariamente, regulamentar.49
A conduta tpica vem expressa em duas aes nucleares: possuir e manter
sob sua guarda.
Possuir para Renato Marco significa ter em seu poder, disposio, em
condies de fruio50. Adverte ainda que para possuir no preciso que o agente
seja o proprietrio da arma, acessrio ou munio.51
Sendo assim no se deve confundir posse com domnio. Isso porque como
exemplifica Ricardo Jos Gasques de Almeida Silvares o agente pode ter pego a
arma de terceiro, a ttulo de aluguel (fato no tanto incomum na criminalidade), no
sendo, pois, seu titular.52
Complementarmente, Luiz Flvio Gomes e William Terra Oliveira referem que
a posse no aspecto jurdico-penal pressupe a existncia de um animus especial em
relao arma (animus possidendi ou nimo de apoderamento), sujeio a regras
temporais e circunstanciais para sua configurao e a aferio de sua real
ofensividade.53
Mais, sustentam que isso limita o crime aos casos em que a pessoa
realmente teve a inteno de manter-se na posse do objeto, para usufruir sua
utilidade quando desejado.54
48
Legislao Criminal Especial. op. cit., p. 344. 49
Id., p. 338. 50
Estatuto do Desarmamento. op., cit., p. 6. 51
Id., loc. cit. 52
Legislao Criminal Especial. op. cit., loc. cit. 53
Lei das armas de fogo. 2 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.126. 54
Id., loc. cit.
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26
No tocante ao verbo manter sob sua guarda apontam-se as observaes
acertadas de Guilherme de Souza Nucci, para quem o termo implica o mesmo que
posse.55 Justificando que no h possibilidade de se manter algo sob tutela sem ter
a posse.56
Com o que concorda tambm Ricardo Jos Gasques de Almeida Silvares:
Manter sob sua guarda significa conservar consigo. No conseguimos aprender a diferena entre as condutas previstas no tipo do artigo 12, pois parece-nos bvio que a circunstncia de algum manter um arma sob sua guarda, equivale possu-la, pois no h qualquer necessidade de que o possuidor seja tambm o seu proprietrio.
57
O objeto material da posse ilegal a arma de fogo, a munio ou o acessrio,
que j foram definidos anteriormente. O elemento normativo aparece na expresso
em desacordo com a determinao legal ou regulamentar.
Assim, desobedecendo as normas do Estatuto (Lei 10.826) ou do
Regulamento (Decreto 5.123/2004) se consubstanciar a posse ilegal.
Isso ocorrer, por exemplo, com a arma de fogo sem registro pela autoridade
competente (artigo 5 , 1, da Lei n. 10.826/03) ou que estiver com o prazo de
validade expirado (artigo 5, 2, da Lei n. 10.826/2003); quando exigido o registro,
o acessrio no o tiver; ou quando a quantidade de munio e o rol de acessrios
permitidos no estiver de acordo com a portaria n. 1.811/2006, conforme
determinou o artigo 21, 2, do Regulamento.
A pena cominada ao caso de um a trs anos de deteno, mais multa. No
se permite, pois, a transao penal (artigo 61 da Lei n. 9.099/9558), contudo,
possibilita-se a aplicao da suspenso condicional do processo (artigo 89 da Lei n.
9.099/95).
55
Leis penais e processuais comentadas. 5 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 84. 56
Id., loc. cit. 57
Legislao Criminal Especial. op. cit., p. 339. 58
BRASIL, Lei n. 9.099/1995. Disponvel em: Acesso em: 20 de ago. 2014. 08:55:02.
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27
5.3. Do porte ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de uso permitido (artigo 14)
Aqui tambm vale a lio acerca do nomen iuris apresentada quando do
exame da posse, soando mais apropriada a expresso porte ilegal, que, clarifique-
se, comporta todos os demais ncleos do tipo.
O porte ilegal cujo objeto material a arma de fogo, a munio ou o acessrio
de uso permitido comporta 13 aes nucleares, quais sejam portar, deter,
adquirir, fornecer, receber, ter em depsito, transportar, ceder (gratuita ou
onerosamente), emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda e
ocultar.
Luiz Flvio Gomes e William Terra de Oliveira, sob gide da lei anterior,
entendiam que, enquanto conduta punvel, ou seja, verbo tpico:
Portar uma arma de fogo significa traz-la consigo, em condies de pronta utilizao, mantendo-a sob sua disponibilidade imediata. Portar levar a arma, circular om ela. Alm disso, o verbo no abrange apenas o contato fsico com a arma, mas tambm significa que o agente tem o objeto ao seu alcance, em condies de fazer rpido uso do mesmo. A ideia de portar no significa exatamente trazer a arma nas mos, mas sim em qualquer lugar de fcil apossamento, sem obstculos (como na cintura, no bolso, nas imediaes etc.), e fora dos casos de guarda autorizada.
59
Outros exemplos podem ser trazidos para melhor elucidar a questo como
trazer a arma, munio ou acessrio no porta-luvas ou no console do veculo, no
assoalho deste, embaixo ou atrs do banco do motorista, presa no tornozelo, sob as
vestes, em capanga, ou no arreio de animal.60
Deter, por sua vez, o mesmo que trazer a arma consigo de maneira
transitria e precria. Sendo punida a reteno passageira, sem contudo, o agente
ter o animus de possuir ou ser proprietrio.61
Seria a situao de quem permanece com arma de terceiro por um alguns
segundos, por exemplo.62
Adquirir, segundo Ricardo Jos Gasques de Almeida Silvares a obteno
onerosa da arma, munio ou acessrio, seja por meio de compra ou troca63. Para
59
Lei das armas de fogo, op. cit., p.154. 60
CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 362-363. 61
GOMES, Luiz Flvio. OLIVEIRA, William Terra. op. cit. p., 222-223. 62
SILVARES, Ricardo Jos Gasques de Almeida. op. cit., p. 356. 63
Legislao Criminal Especial. op. cit., p. 359.
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28
Guilherme de Souza Nucci, significa comprar mediante o pagamento de certo
preo.64
Vale analisar conjuntamente as condutas de fornecer e ceder a fim de
delimitar suas peculiaridades.
Fornecer arma de fogo, munio ou acessrio , segundo Ricardo Jos
Gasques de Almeida Silvares, entrega-la por qualquer meio, seja oneroso ou
gratuito. abastecer.65
Ceder, por sua vez, a ttulo oneroso ou gratuito equivale, no entendimento do
autor supracitado, a passar a outrem a posse do objeto, sem que haja,
necessariamente, transferncia de propriedade ou contraprestao.66
Traz-se como exemplo a situao em que o agente precisou entrar em uma
casa bancria e deixou a arma com um amigo, que o esperou porta do
estabelecimento. Nesse caso, os dois cometeriam ilcitos, o primeiro por ceder, e o
segundo por deter o objeto sem autorizao para o porte.67
Adverte-se ainda que conquanto a no tipificao do verbo vender fora do
exerccio da atividade comercial ou industrial (artigo 17 da Lei 10.826/2003), as
aes de fornecer e ceder comportam, implicitamente, a ideia de venda
Transportar significa deslocar a arma, munio ou acessrio de um lugar para
outro, fora das hipteses configuradoras do porte e da posse.68 O transporte da arma
de fogo necessita de uma autorizao, o chamado porte de trnsito, nesse sentido
dispe o artigo 28 do Decreto 5.123/2004:
O proprietrio de arma de fogo de uso permitido registrada, em caso de mudana de domiclio ou outra situao que implique o transporte da arma, dever solicitar guia de trnsito Polcia Federal para as armas de fogo cadastradas no SINARM, na forma estabelecida pelo Departamento de Polcia Federal.
Desse modo, aquele que tiver o porte legal, inclusive o de trnsito, da arma
de fogo, acessrio ou munio no incorre na conduta de transportar. Mais
especificamente, conforme delineia Luiz Flvio Gomes e William Terra de Oliveira:
64
Leis penais e processuais comentadas, op. cit., p.89. 65
Legislao Criminal Especial. op. cit., p. 357. 66
Id., loc. cit. 67
Id., loc. cit. 68
Id., p. 356.
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29
Quem possui o porte de arma no precisa de tal autorizao (guia de trnsito), pois pode trazer consigo a arma em qualquer local (ressalvadas as restries legais). Aquele que possui o registro da arma somente pode manter o objeto dentro de sua residncia ou local de trabalho, devidamente guardado.
69
Discorda-se, ademais, do entendimento defendido por Fernando Capez,
segundo o qual o transporte se configuraria quando a arma levada como um objeto
inerte e inidneo a qualquer emprego durante o trajeto. Apresentando a situao
hipottica da conduo de arma desmuniciada, desmontada, no porta-malas de
automvel, envolta em embalagem hermeticamente fechada.70
Isso porque a depender do caso no se estar defronte da ao de portar,
nem de transportar ilegalmente arma de fogo.
Adotando o entendimento de Ricardo Jos Gasques de Almeida Silvares
sero analisadas as aes nucleares de receber, ter em depsito, emprestar,
remeter, empregar, manter sob sua guarda e ocultar.
Receber o mesmo que aceitar o objeto de algum, independentemente se
como mero possuidor ou proprietrio.71
Ter em depsito importa guardar, manter armazenado o objeto para seu uso,
seja qual for o objetivo final, usar ou vender, desde que, neste ltimo caso, no seja
praticado no exerccio da atividade comercial ou industrial.72
Remeter traz a ideia de remessa do objeto material para outro lugar,
desacompanhado do agente, ou seja, este no est prximo do objeto. Nesse caso,
o agente poder encaminhar o objeto, por exemplo, por meio dos correios ou de
terceiro.73
Emprestar ceder em carter temporrio o objeto material, mas sempre com
ideia de que o mesmo ser devolvido posteriormente.74
Manter sob sua guarda significa a manuteno do objeto com o agente, mas
em nome de terceiro. Se a mantena estiver foras das hipteses do artigo 12 do
Estatuto, ento, configurar-se- o porte.75
69
Lei das armas de fogo, op. cit., p.232. 70
Curso de Direito Penal. op. cit. p. 363. 71
Legislao Criminal Especial, op. cit., p. 356. 72
Id., p. 357. 73
Id., loc. cit. 74
Id., loc. cit. 75
Id., loc. cit.
-
30
Ocultar o mesmo que esconder a arma, o acessrio ou a munio para que
no sejam encontrados.76
Por fim, segundo Fernando Capez, empregar tem o sentido de emprego da
arma de fogo para qualquer utilizao, com exceo ao disparo, uma vez que nesse
caso a conduta j est contemplada pelo artigo 15 do Estatuto.77
Segue o autor dizendo que se o emprego for por exemplo para a prtica de
ameaa, por fora do princpio da consuno, o agente responder pelo delito mais
grave, ou seja o porte. De outro lado se o emprego for para a prtica de roubo,
responder o agente pelo delito contra o patrimnio, porque mais grave.78
A pena cominada ao porte ilegal a recluso de dois a quatro anos, mais a
multa, a qual no se permite sequer a suspenso condicional do processo.
5.4. Do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munio ou acessrio de
uso restrito ou proibido (artigo 16)
O artigo 16, caput, do Estatuto do Desarmamento comporta todas as
condutas analisadas a pouco, ou seja, os verbos atinentes posse e ao porte ilegal
de arma, munio ou acessrio de uso permitido, com a diferena de que o objeto
material de uso restrito ou proibido.
Assim, at para evitar tautologia, sero examinadas to somente as
modalidades equiparadas do pargrafo nico, do artigo 16, da Lei n. 10.826/2003,
o qual diz que:
Nas mesmas penas incorre quem: I suprimir ou alterar marca, numerao ou qualquer sinal de identificao de arma de fogo ou artefato; II modificar as caractersticas de arma de fogo, de forma a torn-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz; III possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendirio, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar; IV portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numerao, marca ou qualquer outro sinal de identificao raspado, suprimido ou adulterado;
76
Id., loc. cit. 77
Curso de Direito Penal. op. cit. p. 364. 78
Id., loc. cit.
-
31
V vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessrio, munio ou explosivo a criana ou adolescente; e VI produzir, recarregar ou reciclar, sem autorizao legal, ou adulterar, de qualquer forma, munio ou explosivo.
O pargrafo nico traz trs objetos materiais ainda no conceituados, quais
sejam artefato explosivo, incendirio ou artefato isoladamente.
Adotando a preleo de Guilherme de Souza Nucci artefato explosivo seria a
pea capaz de produzir abalo seguido de forte rudo, causado pelo surgimento
repentino de energia fsica ou expanso de gs.79 Um conceito mais tcnico o
apresentado pelo artigo 3, inciso LI, do Decreto 3.665/2000, tratando explosivo
como um tipo de matria que, quando iniciada, sofre decomposio muito rpida
em produtos mais estveis, com grande liberao de calor e desenvolvimento sbito
de presso.
O artefato incendirio, por sua vez, seria a pea capaz de provocar fogo
intenso, com forte poder de destruio.
Tambm explica Guilherme de Souza Nucci que a expresso artefato
isoladamente pode comportar duas acepes:
ao tratar do acessrio da arma, estabelece ser o artefato que, acoplado a uma arma, possibilita a melhoria do desempenho do atirador, a modificao de um efeito secundrio do tiro ou a modificao do aspecto visual da arma. Usa-se, pois, o termo artefato como sinnimo de acessrio da arma de fogo. Entretanto, pode-se considera-lo, tambm, qualquer peca destinada a exploso ou combusto. Dependendo, pois, do contexto, tende-se a interpret-lo de um modo ou de outro.
80
Outra definio ainda no apresentada a de marca e numerao. Luiz
Flvio Gomes e Willian Terra de Oliveira explicam que a primeira seria o nome,
expresso ou sinal que individualiza e identifica o produto81, j numerao seria o
nmero de srie que singulariza a substncia.82
Pagliuca e Gobbis acrescentam:
o chamado nmero de srie, que embora denominado nmero, pode ser formado por caracteres alfanumricos. colocado nas armas mediante processo de puno mecnica, e, modernamente, por raio laser. O processo de puno abrasivo e, por isso, os sulcos deixados no metal, mesmo quando a arma seja raspada, lixada ou similar, permite, na grande
79
Leis penais e processuais comentadas. op. cit., p. 102. 80
Id. p. 100. 81
Id. loc. cit. 82
Lei das armas de fogo, op. cit., p.291.
-
32
maioria, o descobrimento da numerao original mediante percia, enquanto que o laser, de menor perfurao, impossibilita o mesmo aproveitamento.
83
Afora essas definies, pertinente o esclarecimento de Fernando Capez no
tocante ao alcance do objeto material das modalidades do pargrafo nico,
afirmando que no importa se de uso permitido ou restrito.84
Isso porque, sustenta o autor, o legislador equiparou a posse e o porte ilegal
de arma de fogo, acessrio ou munio de uso restrito s hipteses do pargrafo
nico apenas para efeitos da incidncia de idntica sano penal.85
Alm disso, tampouco importa se a arma foi obtida por meio ilcito ou se
possui registro. Ainda, nesses casos, manifestar-se-o as condutas do pargrafo
nico, do artigo 16.86
A pena prevista para as modalidades equiparadas a mesma do caput,
recluso de trs a seis anos, mais multa.
Dito tudo isso, possvel analisar a primeira modalidade, qual seja a
supresso, conforme ensina Fernando Capez, a eliminao total, mediante
raspagem ou qualquer outro mtodo.87 J a alterao, conforme firma o mesmo
autor a modificao parcial da numerao ou do sinal de identificao de arma de
fogo ou artefato.88
Consoante Ricardo Jos essenciais para o controle dos armamentos so os
respectivos sinais de identificao, como o nmero de srie que toda a arma de fogo
deve possuir89, em razo disso, o autor defende a pertinncia do dispositivo.
O inciso II, do artigo 16, do Estatuto, trata da modificao das caractersticas
de arma de fogo, prevendo duas condutas.
A primeira j tinha previso semelhante no artigo 10, 3, inciso II, da Lei n.
9.437/97, lei revogada pelo Estatuto do Desarmamento, e tem por finalidade tornar a
arma de fogo de uso permitido em de uso restrito ou proibido.
Isso ocorrer, por exemplo, se for alterado o cano, a cmara ou o calibre.
Nesse sentido:
83
Armas, op. cit., p. 101. 84
Curso de Direito Penal. op. cit. p. 388. 85
SILVARES, Ricardo Gasques de Almeida., op. cit., p. 368. 86
Id., loc. cit. 87
Curso de Direito Penal. op. cit., loc. cit. 88
Id., loc. cit. 89
Legislao Criminal Especial. op. cit., p. 366.
-
33
1. serrar o cano de espingarda calibre 12, porque o Decreto 3665/2000 exige que as armas de alma lisa de calibre 12 ou inferior devem ter cano de comprimento mnimo de 61 cm. Assim, encurtando o cano, a espingarda torna-se mais perigosa, porque espalha chumbo em rea muito grande; 2. Transformar um revlver calibre 38 em 357 Magnum atravs de modificao do tambor, que vai permitir a utilizao de munio 3 vezes mais potente; 3. Adaptar silenciador na arma de fogo com o objetivo de abafar o estampido; 4. Adaptar mira telescpica que aumenta mais de 6 vezes ou com emprego de luz laser para marcar o alvo.
90
A segunda refere-se a modificao da arma para induzir em erro autoridade
policial, perito ou juiz. Nesse caso, inovou o legislador.
Anteriormente aquele que modificasse as caractersticas da arma para induzir
de algum modo o juiz ou o perito respondia pelo artigo 347 do Cdigo Penal, com
penalidade bem menor.91
A posse, a deteno, a fabricao e o emprego de artefato explosivo ou
incendirio sem autorizao ou em desacordo com a determinao legal ou
regulamentar constitui a modalidade tpica do artigo 16, paragrafo nico, inciso III, do
Estatuto do Desarmamento.
Os conceitos de posse, deteno e emprego j foram esmiuados quando do
estudo da posse ilegal e do porte de uso restrito, no h porque renov-los.
A fabricao seria o manufaturamento de algo a partir de matrias-primas,
aquele que mediante determinadas substncias produz o artefato explosivo ou
incendirio pratica esta conduta.92
No se deve confundir este dispositivo com o artigo 253 do Cdigo Penal
(Fabricar, fornecer, adquirir, possuir ou transportar, sem licena da autoridade,
substncia ou engenho explosivo, gs txico ou asfixiante, ou material destinado
sua fabricao)93, cuja pena de deteno de seis meses a dois anos, mais multa.
A lei 9.437/97 j tipificava esta conduta (possuir, deter, fabricar artefato
explosivo e/ou incendirio), e compreende-se que j havia derrogado o artigo 253
do Cdigo Penal. A nova lei mera repetio daquela, com a ressalva de que o
Estatuto acrescenta o verbo empregar.94
90
THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: primeiras anotaes. Disponvel em: Acesso em: 06 de jun. 2014. 13:58:09. 91
Legislao Criminal Especial. op. cit, p. 369. 92
Id. p. 372. 93
BRASIL, Cdigo Penal Brasileiro. Disponvel em: Acesso em: 06 de jun. 2014. 13:58:09. 94
SILVARES, Ricardo Gasques de Almeida., op. cit., p. 371.
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34
Outra dvida que pode surgir com relao eventual revogao do artigo
251 do Cdigo Penal (Expor a perigo a vida, a integridade fsica ou o patrimnio de
outrem, mediante exploso, arremesso ou simples colocao de engenho de
dinamite ou de substncia de efeitos anlogos), cuja pena de recluso, de trs a
seis anos, e multa bem como de seu pargrafo primeiro (Se a substncia utilizada
no dinamite ou explosivo de efeitos anlogos), sancionado com a pena de
recluso de um a quatro anos, mais multa. No estaria nesse caso a conduta
abarcada na figura tpica empregar do pargrafo nico, inciso III, do artigo 16 do
Estatuto?
Prepondera o entendimento de que se ocorrer perigo concreto para vida ou
patrimnio alheio conduta resta tipificada nos artigos 250 ou 251, ambos do
Cdigo Penal. Acaso no demonstrado o perigo concreto incidir na modalidade do
Estatuto.95
Conclui-se que se a posse, deteno, emprego ou fabricao tiver
autorizao, como ocorre nos casos de empresas de construo pesada (tneis,
linhas de trens) ou mineradoras, estar afastada a conduta.
O inciso IV pune a conduta de possuir, portar, adquirir, transportar e fornecer
arma de fogo com numerao, marca ou qualquer outro sinal de identificao
raspado, suprimido ou adulterado. Diferentemente do inciso I, que prev a ao
daquele que realiza o ato material de suprimir ou alterar o sinal de identificao da
arma de fogo.96
A venda, a entrega ou o fornecimento de arma de fogo, acessrio, munio,
ou explosivo criana ou ao adolescente constitui conduta punvel, nos termos do
inciso V, pargrafo nico, do artigo 16, do Estatuto do Desarmamento.
Criana, nos termos do artigo 2 do Estatuto da Criana e do Adolescente, a
pessoa com at 12 anos de idade, e adolescente a com idade entre 12 e 18 anos.97
Oportuno aludir que a conduta do inciso V, do pargrafo nico, do artigo 16,
do Estatuto, assemelha-se do artigo 242 do Estatuto da Criana e do Adolescente
(Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a
criana ou adolescente arma, munio ou explosivo), cuja pena original era de
95
Assim entendem: CAPEZ, Fernando, op. cit., p. 393; SILVARES, Ricardo Gasques de Almeida, op. cit., p. 372; MORAES, Alexandre de Morais. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislao Penal Especial. Srie fundamentos jurdicos. 9. ed. Sao Paulo: Atlas, 2006. p. 362. 96
CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 393. 97
BRASIL, Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criana e do Adolescente). Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 24 de jul. 2014. 23:05:54.
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35
deteno de seis meses a dois anos, mas com a nova redao dada pela Lei n.
10.764, de 12 de novembro de 2003, editada um ms antes da entrada em vigor da
Lei 10.826/2003, foi agravada para recluso de trs anos a seis anos, mesma pena
do artigo citado do Estatuto do Desarmamento.
Assim, entende-se que o artigo 242 do ECA foi revogado pela nova lei.98
Diverge-se das razes de Alexandre de Morais e Gianpaolo Poggio Smanio, os
quais informam que a norma foi derrogada, inferindo que o artigo 242 do Cdigo
Penal continuaria aplicvel no tocante a outras armas que no as de fogo.99
Isso porque considerar, por exemplo, a mesma pena (recluso de trs a seis
anos) para quem vender, fornecer ou entregar arma branca criana ou ao
adolescente fere o princpio da proporcionalidade, no obstante, o Estatuto utilize a
expresso arma isoladamente.
Derradeiramente, o inciso VI, do artigo 16, do Estatuto, inflige pena a quem
produz, recarrega ou recicla, sem autorizao legal, ou adultera, de qualquer forma,
munio ou explosivo.
Em conformidade com o que exprime Fernando Capez, compreende-se que o
verbo produzir visa reprimir to somente a conduta de produo mais rudimentar
do explosivo e da munio. Diversamente, do inciso III, que sugere a produo por
meio industrial, ao utilizar o termo fabricar.100
Em que pese a advertncia formal, as duas condutas remetem a mesma
sano penal.
De resto, recarregar significa por carga novamente na munio ou explosivo,
e reciclar o ato de reaproveitar o material, sem a devida autorizao legal.
Adulterar, por sua vez, implica a modificao da munio ou explosivo, e que, por
bvio, dispensa a expresso autorizao legal, porque no possvel adulterar nem
com permisso legal.101
98
Leis penais e processuais comentadas. op. cit., p. 103. 99
Legislao Penal Especial. op. cit., p. 363. 100
Curso de Direito Penal. op. cit., p. 400. 101
Curso de Direito Penal. op. cit., p. 400-401.
-
36
6. A proteo jurdica das modalidades do porte e da posse ilegal
6.1. A importncia da teoria do bem jurdico para o Direito Penal
Tem futuro a teoria do bem jurdico indaga Lus Greco.102 As modalidades
analisadas tratam de delitos de leso ou de perigo? Se de perigo, seria este
concreto ou abstrato? Se abstrato, seriam todas as modalidades inconstitucionais,
pois, ferem o princpio da ofensividade?
A partir de singela abordagem acerca destas questes e da tentativa de
respond-las que se buscar demonstrar a legitimidade ou no da criminalizao
das modalidades estudadas.
Lus Greco de forma bastante lcida frente realidade moderna do direito
penal, a partir da anlise de uma deciso do Tribunal Constitucional Alemo a
respeito da constitucionalidade do crime de incesto, traa questionamentos acerca
da viabilidade e da continuidade da teoria do bem jurdico.
Para o autor, a deciso da Corte Alem levou em conta dois argumentos
contra a teoria do bem jurdico. O primeiro baseado na problemtica conceitual e o
segundo acerca da fundamentao da teoria, ou seja, com que embasamento
pretende se posicionar acima do legislador e limitar o poder punitivo.103
Ademais, ele descreve que o Tribunal patrocina que a interveno estatal nos
direitos fundamentais deve estar formalmente amparada em lei e, materialmente,
respeitar os limites da esfera nuclear da autonomia da vida privada, bem como ser
proporcional.104
Nesse sentido, deve-se retomar compreenso do que seria bem jurdico e a
partir de qual momento parte sua construo. Adiantando-se, desde j, que no h
um conceito fechado, acabado acerca de sua significao.105
A concepo de bem jurdico, como aponta Fbio Roberto Dvila, j
encontrava seu suporte inicial na obra de Cesare Beccaria, dos delitos e das
penas.106
102
GRECO, Lus. Tem futuro a teoria do bem jurdico? Reflexes a partir da deciso do Tribunal Constitucional Alemo a respeito do crime de incesto (173 Strafgesetzbuch). Revista Brasileira de Cincias Criminais, So Paulo, v. 18, n. 82, p. 165-185, jan.-fev., 2010. 103
Id. p. 169-170. 104
Id. p. 166. 105
SMANIO, Gianpaolo Poggio. O bem jurdico e a Constituio Federal. Disponvel em: http://livros-e-revistas.vlex.com.br/vid/bem-juridico-federal-41278381. Acesso em: 27 de jul. 2014. 10:28:17.
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37
por meio desta obra que toma fora a ideia de que o crime no se trata de
afronta divindade, mas de fato danoso sociedade.107 Inaugura-se, ento, a fase
de secularizao do Direito Penal e sua dissociao da moral.
Seria a projeo da ideia de dano que, segundo Fbio Roberto:
assumia-se, assim, como elemento central do fenmeno criminoso, mas tambm como elemento crtico de criminalizao, preenchendo um importante papel na realizao das aspiraes ilustradas de conteno e validao do poder punitivo do Estado, atravs da imposio de vnculos objetivos de legitimidade. Contudo, nesse momento histrico, falar-se em tutela de bens jurdicos em sentido estrito, no era ainda possvel.
108
Somente com as ideias de Feuerbach, no incio do sculo XIX, que se
passou construir um conceito material do delito, embora com carter eminentemente
subjetivista. O ilcito penal, nesta poca, era uma ofensa ou uma leso a um direito
subjetivo.109
Foi com Birnbaum que a teoria do bem jurdico se arregimentou de contornos
objetivos. Assim, a proteo penal devia voltar-se para determinado objeto, e no
para direitos subjetivos.110
Na viso de Fbio Roberto, a formulao de Birnbaum retrata a noo de bem
jurdico como objeto de proteo da norma penal, bem assim a ideia de
ofensividade, em suas formas fundamentais, dano e perigo.111
Despontam tambm as contribuies de Binding e Franz von Liszt para a
teoria do bem jurdico.
Para Gianpaolo Poggio Smanio, Binding defendia que pode converter-se em
bem jurdico tudo que aos olhos do legislador tem valor como condio para uma
vida saudvel dos cidados112, a posio advm de sua acentuada linha positivista.
Por outro lado, ele sustentava que o bem jurdico se lana para a coletividade, e
apenas com esse vis social os objetos dos juzos individuais de valor gozavam de
proteo jurdica.113
106
DVILA, Fbio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurdicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 60. 107
Id., loc. cit. 108
Id., p. 61. 109
SILVA, ngelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituio. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 31. 110
Id., loc. cit. 111
Ofensividade em Direito Penal, op. cit., p. 64-65. 112
O bem jurdico e a Constituio Federal, op. cit. 113
Id.
-
38
J para Franz von Liszt, apesar de alinhar-se ao pensamento de Binding, de
acordo com ngelo Roberto Ilha da Silva, no limitava os bens jurdicos vontade
do legislador. Desenhava que o legislador apenas os apanhava das relaes sociais
para apenas reconhec-los por meio da incriminao legal.114
No perodo das duas grandes guerras mundiais, a teoria do bem jurdico
sofreu forte abalo quando do surgimento das filosofias nazi-fascistas, a Escola de
Kiel, na Alemanha, defendia que o delito constitua mera violao a deveres.115 A
conceituao consistia em primoroso artifcio para sustentar a represso criminal
imposta pelos governos totalitrios da poca.
Segundo Luigi Ferrajoli, o primeiro objetivo da cultura penal-democrtica ps-
segunda guerra mundial foi de restaurar a referncia semntica do conceito de bem
jurdico a situaes objetivas e interesses de fato, independentemente das normas
jurdicas ou preexistentes a elas. Mas tambm restituir a este conceito importncia
crtica e funo axiolgica, embora se aponte como limitador interno valores ou bens
constitucionais.116
Todavia, Ferrajoli sustenta que a limitao travada pela Constituio na
determinao de bens jurdicos no deve ser acolhida. Para ele, os bens
merecedores da tutela penal no podem depender nem estar condicionados ao que
dizem as normas positivas, mas devem elaborar-se autonomamente.117
Essa viso tambm apoiada por Gianpaolo:
A viso constitucional defendida hoje por inmeros doutrinadores em todo o mundo nada mais do que o desenvolvimento da viso positivista, reconhecendo a criao do conceito do bem jurdico penal a partir das normas jurdicas hierarquicamente superiores s demais, quais sejam aquelas decorrentes da Constituio Federal. (...) O conceito de bem jurdico existe anteriormente norma jurdica, e, portanto, o conceito de bem jurdico penal anterior normal penal, ainda que de matiz constitucional.
118
Gianpaolo busca amparo para sua tese na Teoria da Imputao Objetiva de
Gnther Jakobs, embora no pretenda como este mitigar a teoria do bem jurdico.119
114
Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituio, op. cit., p. 32. 115
Ibid., p. 33-34. 116
Traduo livre. Derecho penal mnimo y bienes jurdicos fundamentales. Disponvel em: Acesso em: 13 de ago. 2014, 16:34:23. 117
Id. 118
O bem jurdico e a Constituio Federal, op. cit. 119
Id.
-
39
Pertinente dizer que Jakobs, autor do direito penal do inimigo, faz duras
crticas teoria do bem jurdico como justificador da tutela penal, afirmando:
O que com razo pode ser qualificado como um ataque perigoso a um bem jurdico tem que ser, segundo parece, socialmente nocivo, se se intenta definir o estado da sociedade pela intangibilidade dos bens jurdicos. Tomar o bem jurdico como exclusivo ponto de partida sem dvida conduz ao extravasamento, porque com isso cai completamente fora da perspectiva a esfera jurdica do autor.
120
O importante para Jakobs o reconhecimento da vigncia da norma por parte
dos membros sociais, j que ele entende que dessa forma restam asseguradas as
expectativas da sociedade.121
Ferrajoli, para escapar de um conceito estritamente positivista de bem
jurdico, defende o que ele chama de princpio da ofensividade pessoal, segundo o
qual o Estado somente poderia justificar condutas criminosas que fossem dirigidas a
impedir ofensas a bens fundamentais da pessoa, sejam elas de dano ou de perigo.
No entanto, admite que da decorre um outro problema, que seria definir o que so
bens fundamentais das pessoas.122
Juarez Tavares, por sua vez, discorrendo acerca das quatro vises formadas
ao longo do contexto histrico sobre a teoria do bem jurdico, a positivista, a
neokantiana, a ontolgica e a viso funcionalista, formula sua prpria viso, a qual
intitula de viso crtica.123
Voltando s problematizaes de Lus Greco, ele explica que
Winfried Hassemer, em voto divergente, criticou severamente a posio dominante
do Tribunal Alemo na deciso que atestou a constitucionalidade da proibio penal
do incesto. Sustentando que uma convico social no seria capaz de legitimar
constitucionalmente uma norma penal, j que para esta finalidade haveria
instrumentos mais idneos do que o direito penal.124
120
JAKOBS, Gnther. Fundamentos do direito penal. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2003. p. 110. 121
BEM, Leonardo Schmitt de. O Princpio da Proteo de Bens Jurdicos. Disponvel em: < https://www.academia.edu/6130663/O_principio_da_protecao_de_bens_juridicos> Acesso em: 02 de ago. 2014, 08:00:00. 122
Derecho penal mnimo y bienes jurdicos fundamentales. op. cit. 123
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002. p. 187-197. 124
Tem futuro a teoria do bem jurdico? Reflexes a partir da deciso do Tribunal Constitucional Alemo a respeito do crime de incesto (173 Strafgesetzbuch), op. cit., p. 168.
-
40
Explica Greco que a tese defendida pela Corte Alem a do moralismo
jurdico-penal, segundo o qual a imoralidade de uma conduta j uma razo
suficiente para justificar a incriminao.125
Todavia, trazer a moral como justificativa para criminalizao de condutas
induz a um retrocesso histrico para o Direito Penal, uma perigosa via para
criminalizar posturas dominantes na sociedade e marginalizar minorias.
Se aceita-se a teoria do bem jurdico, deve-se sustentar, conforme Greco, que
o direito penal no pode proteger a moral, porque a sua tarefa se esgota na
proteo de bens jurdicos, e a moral no um bem jurdico. Meras moralidades
no so assunto, do direito penal.126
No obstante, aponta que se a teoria do bem jurdico fosse aplicada deciso
o Tribunal no poderia mais recorrer proibio de outras convices morais, nem
tampouco a certos aspectos da proteo do matrimonio e da famlia (principalmente
no que diz respeitos aos papis estruturadores dessas instituies.127
O autor afirma que s o recurso autonomia pode servir de baluarte contra a
fundamentao democrtica da tese moralista pelo Tribunal Constitucional Alemo,
ou seja, no se estaria necessariamente vinculando posicionamento contrrio
deciso com um conceito de bem jurdico.128
Em verdade, considera que o erro na deciso se deu porque no foi aplicada
tese de autonomia da vontade privada para infirmar a punio de um
comportamento imoral.129
No entanto, Greco externa que a Corte Alem exagerou ao recusar totalmente
a ideia de bem jurdico, j que aferir se um comportamento adequado, necessrio
e proporcional pressupe um referencial, e este seria o bem jurdico.130
A teoria do bem jurdico, embora as dificuldades apresentadas por Greco,
persiste como principal justificador da proteo penal, reconhecida
predominantemente na doutrina.131
125
Id., p. 172. 126
Id., p. 174-175. 127
Id., p. 176-177. 128
Id., p. 178. 129
Id., loc. cit. 130
Id., loc. cit. 131
Nesse sentido alguns exemplos: 1. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Volume 1. So Paulo: Saraiva, 211. p. 41-43; 2. SILVARES, Ricardo Jos Gasques de Almeida. op. cit., p. 317-319; 3. GOMES, Luiz Flvio. Princpio da Ofensividade. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 11-26. 4. DVILA, Fbio Roberto, op. cit., p. 57-79, 5. SILVA, ngelo Roberto Ilha da, op. cit, p. 29-49; 6. ZAFFARONI, Eugnio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal
-
41
Nesses termos, vale anotar o que diz Juarez Cirino Santos:
Consideradas todas as limitaes e crticas, o conceito de bem jurdico, como critrio de criminalizao e como objeto de proteo, parece constituir garantia poltica irrenuncivel do Direito Penal do Estado Democrtico de Direito, nas formaes sociais estruturadas sobre a relao capital/trabalho assalariado, em que se articulam as classes soais fundamentais do neoliberalismo contemporneo.
132
Igualmente Pierpaolo Cruz Bottini:
A dificuldade para fixar critrios de identificao de bens jurdicos, e a identificao de tipos penais sem um objeto de tutela evidente como o crime de maus tratos a animais e, na Alemanha, de incesto atrai questionamentos capacidade de rendimento do conceito para legitimar ou limitar o ius puniedi. Tal dificuldade no afasta a importncia do instituto d