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verve 285 Teatro e anarquia gustavo ramus* Resenhas teatro e anarquia Avelino Fóscolo, Marino Spagnolo, Pedro Catallo. Antologia do teatro anarquista. Maria Thereza Vargas (org.). São Paulo, Editora Martins Fontes, 2009, 316 pp. O teatro foi por muito tempo uma experiência de propaganda libertária com o objetivo de difundir os ideais anarquistas. No Brasil, a princípio, eram montadas peças vindas da Europa, e com o passar do tempo começaram a surgir alguns dramaturgos brasileiros e alguns imigrantes que escreviam em português. Os autores eram, muitas vezes, também atores e diretores de suas peças. Esses escritores eram influenciados não só por pensadores anarquistas como Proudhon, Tolstoi, Reclus, Bakunin, Kropotkin, entre outros, mas também tiveram contato com duas antologias de teatro muito difundidas por anarquistas italianos, o Teatro populare I e II. O livro Antologia do teatro anarquista traz três peças de escritores anarquistas: Avelino Fóscolo, Marino Spagnolo e Pedro * Bacharel em Ciências Sociais, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, bolsista CNPq e integrante do Nu-Sol. verve, 16: 285-291, 2009

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Ramus - Teatro e anarquía

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    Teatro e anarquia

    gustavo ramus*

    Resenhasteatro e anarquia

    Avelino Fscolo, Marino Spagnolo, Pedro Catallo. Antologia do teatro anarquista. Maria Thereza Vargas (org.). So Paulo, Editora Martins Fontes, 2009, 316 pp.

    O teatro foi por muito tempo uma experincia de propaganda libertria com o objetivo de difundir os ideais anarquistas. No Brasil, a princpio, eram montadas peas vindas da Europa, e com o passar do tempo comearam a surgir alguns dramaturgos brasileiros e alguns imigrantes que escreviam em portugus. Os autores eram, muitas vezes, tambm atores e diretores de suas peas. Esses escritores eram influenciados no s por pensadores anarquistas como Proudhon, Tolstoi, Reclus, Bakunin, Kropotkin, entre outros, mas tambm tiveram contato com duas antologias de teatro muito difundidas por anarquistas italianos, o Teatro populare I e II. O livro Antologia do teatro anarquista traz trs peas de escritores anarquistas: Avelino Fscolo, Marino Spagnolo e Pedro

    * Bacharel em Cincias Sociais, mestrando no Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da PUC-SP, bolsista CNPq e integrante do Nu-Sol.

    verve, 16: 285-291, 2009

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    Catallo, respectivamente autores de O Semeador, A bandeira proletria e Uma mulher diferente.

    As trs peas tm em comum uma crtica socieda-de moderna e trazem personagens emblemticos muito parecidos, como ricos industriais ou proprietrios que simbolizam a explorao capitalista; um operrio hu-milde que luta por seus direitos; uma mulher inferiori-zada diante da sociedade por no concordar e no agir conforme os valores morais estabelecidos; e um jovem idealista defensor da anarquia que luta por igualdade e pelo fim das injustias. As peas eram encenadas por pessoas comuns, geralmente por militantes anarquistas ou por alguns trabalhadores de origem humilde. Assim queriam os anarquistas. Exercitar uma arte que fosse a expresso de um momento vivido, um exerccio atento s falhas da sociedade, suas contradies e violncias. Uma dramaturgia perfeita, portanto, seria aquela cujas palavras conseguissem tecer mostras de vida, de certa forma ainda incompletas enquanto no conquistassem o direito de se tornarem livres, no sentido amplo da pa-lavra (p. X).

    O livro organizado por Maria Thereza Vargas, formada em Crtica Teatral pela Escola de Arte Dramtica de So Paulo e que ajudou a fundar o departamento de Informao e Documentao Artsticas/IDART da Secretaria Municipal de So Paulo. Juntamente com Maringela Alves de Lima, realizou um levantamento sobre Teatro Anarquista publicado em 1980 pela Secretaria Municipal de Cultura. A censura no autorizou a publicao com a palavra anarquista, passando a ser publicado como O teatro operrio na cidade de So Paulo.

    Avelino Fscolo (1864-1944), autor de O semeador, viveu em pequenas cidades mineiras. Decepcionado com o regime republicano e influenciado por pensado-res como Elise Reclus, Jean Grave e Piort Kropotkin, aderiu ao anarquismo. Fscolo era rfo e trabalhou junto com escravos nas minas de Morro Velho. Autodi-

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    data, interessava-se por geografia, poltica e farmaco-logia, profisso que exerceu grande parte de sua vida. Escreveu alguns romances como O mestio, O cabloco e O vulco e fundou o peridico anarquista A nova era.

    O semeador uma obra dramtica em trs atos que estabelece uma crtica propriedade. A histria se pas-sa em uma fazenda onde h uma tentativa de diluir a propriedade, sobre o ideal de cada um obter apenas o necessrio para si. Jlio, o personagem principal, entra em contato com o pensamento anarquista aps uma viagem Europa. Ao regressar, tenta modificar os hbitos institudos na fazenda de seu pai, comeando por no se reconhecer como superior diante dos traba-lhadores, mesmo sendo o herdeiro das terras. Tratava todos por igual, inclusive os ex-escravos. Props o fim do salrio, visto como uma nova forma de escravido, podendo todos usufruir do fruto do trabalho comum, e reduziu as horas de trabalho para que os trabalhadores pudessem gozar mais de seu tempo livre. Para isso, im-plantou o uso de mquinas na produo, lanando mo do uso das novas tcnicas e saberes desenvolvidos para o benefcio de todos.

    A pea no critica somente a propriedade, ela tam-bm denuncia a injustia sobre os trabalhadores braais e a falta de instruo, a opresso sofrida pelas mulheres, a devastao do solo e o mau uso da terra. Idealiza a construo de comunidades auto-suficientes onde pre-valece a igualdade e a liberdade, o amor mtuo e a so-lidariedade. Uma transformao social vivida por todos, uma experincia prxima da autogesto proudhoniana. Jlio tenta dividir suas terras entre os trabalhadores, assim como o anarquista Liev Tolstoi tentou fazer com sua propriedade, impedido por sua mulher que alegou loucura do escritor russo e passou desde ento a contro-lar todos os bens da famlia.

    Pode-se reconhecer na pea vrios princpios cristos, comeando pelo ttulo o semeador, o homem que traz a boa nova, que semeia a semente da igualdade e do

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    amor fraternal. Jlio idealiza transformar a humanidade numa imensa famlia universal por meio da solidarie-dade. Contudo, Fscolo se distancia do pensamento de Tolstoi quando o heri de seu drama decide pegar em armas para defender os trabalhadores contra a repres-so de seu pai e de seu cunhado que eram contrrios s inovaes implantadas. Ao decidir pela ao violenta, o autor se afasta do pacifismo prprio do pensamento tolstoiano e se aproxima de Kropotkin.

    A segunda pea, A bandeira proletria, de Marino Spagnolo, militante anarquista de So Paulo, e foi apre-sentada pela primeira vez em 28 de outubro de 1922 no Salo das Classes Laboriosas. Apesar de no ter mui-tas informaes sobre autor, como datas de nascimen-to e de morte, sabe-se que era de origem hispnica, e exerceu as profisses de vidreiro e alfaiate. O drama tambm escrito em trs atos discute os vcios como o jogo e o alcoolismo, tema muito combatido no interior da militncia anarquista, por afastar os operrios da luta e minimizar o sentimento de revolta. O alcoolismo, principalmente, era muito recorrente no meio operrio, muitas vezes para enganar a fome e o cansao de mais de doze horas de jornada de trabalho. Em determinado momento da pea executa-se a msica marselhesa, hino nacional francs, porque a censura no permitiu a execuo do hino da Internacional. Paulo, o persona-gem principal, um soturno operrio, pobre e amante das letras, portador de uma humilde biblioteca e que, por vezes, se arriscava em alguns versos. Lder no movi-mento operrio, foi preso acusado de agitar uma greve. Ao sair, v um amigo morrer assassinado e toma a ima-gem de seu companheiro morto como um exemplo de luta. Realiza um culto aos mrtires exaltando o sangue do proletrio como bandeira de luta, o que torna a pea um tanto quanto enfadonha.

    Pedro Catallo (1900-1963), o terceiro autor desta antologia, iniciou sua experincia com teatro em 1928 com o Grupo Teatral da Unio dos Artfices em

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    Calados, e depois no Grupo Teatral Aurora, cujas peas eram encenadas em espanhol. Catallo nasceu na Itlia, cresceu na Argentina e mudou-se para o Brasil aos dezessete anos. Escreveu O heri e viandante, uma adaptao do tango Silncio; e tambm A Madrid, uma histria que conta a luta contra o fascismo. Traduziu textos de Florncio Sanchez, dentre eles Os mortos e Nossos filhos. E finalmente escreveu uma trilogia de peas feministas: A insensata, O corao um labirinto e Uma mulher diferente. Essa ltima pea, apresentada no livro, faz uma crtica sociedade da poca, questionando seus valores e a posio da mulher no seu interior. Estabelece uma crtica ao matrimnio e defende a ideia que a mulher dona de si, de seu corpo, de seu corao, que capaz de ser independente, sem viver sombra de um marido.

    A histria narra o drama de uma jovem que resolve se entregar por uma noite para um rico empresrio na condio de que o mesmo retirasse seu pai da priso. A corajosa mulher sofre represlia da sociedade, inclusive de seu prprio pai, por quem rejeitada. A pea bem humorada em alguns momentos, mas contundente ao formular a crtica ao casamento: Porque o matrimnio destri a candidez e a beleza que envolve as almas que se querem bem. O matrimnio confunde o amor com a cozinha, as contas com o idlio, as premncias grosseiras da vida com a ternura sequiosa dos sentimentos, tor-nando tudo banal e sem encantos. (C, p. 285). No en-tanto, o autor no confunde a crtica ao matrimnio com a formao de uma famlia pelo lao do amor, pois a personagem principal tem um filho e ama um homem, apenas recusa-se casar. A pea termina com um ideal de alguns anarquismos que tambm pode ser reconhe-cido no cristianismo primitivo: a formao de uma fam-lia universal, todos se reconhecendo como irmos, sem dio, misria, guerras e dominao.

    O livro traz uma breve cronologia que data de 1867 a 1967 e traz nomes como Pietro Gori, Luigi Damiani,

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    Fbio Luz, Neno Vasco, Marcelo Gama, Jos Oiticica, Afonso Schmidt, alm dos autores das trs peas pu-blicadas. Indica a fundao de grupos de teatro e dra-maturgia, assim como os Centros de Cultura, e data de apresentaes teatrais.

    Ao longo dos anos, o teatro anarquista quase de-sapareceu, mas ressurgiu de uma outra maneira, trazendo novas problematizaes. O Centro de Cultura Social de So Paulo recuperou a prtica de leituras dramticas entre seus frequentadores. Renata Pallottini escreveu Colnia Ceclia, um pouco de ideal e polenta, publicada pela editora Achiam, um poema dramtico para teatro que conta a histria da Colnia anarquista bra-sileira fundada no final do sculo XIX por Giovanni Rossi. Outro anarquista brasileiro com grande importncia para o teatro foi Roberto Freire que dirigiu e escreveu diversas peas para o teatro como O&A e Quarto de empregada, Quarto de estudante e Quarto de hotel, pequenas peas publicadas em um pequeno livro intitulado 3/4. Freire foi presidente da Associao Paulista da Classe Teatral, diretor do Servio Nacional de Teatro e diretor artstico no TUCA (Teatro da Universidade Catlica de So Paulo). Tambm no teatro da PUC-SP, o Nu-sol vem realizando, desde 2007, uma atividade semestral, a aula-teatro, rompendo o espao disciplinar da sala de aula, dando lugar a uma experimentao artstica que une msica, dramaturgia, literatura, invenes cnicas com o corpo, filosofia, poesia e cincias sociais. Sem representa-o, sem atores. Apresenta novas inquietaes, expe problemas; desde a Revoluo Russa sob a perspectiva de uma mulher anarquista (Emma Goldman na Revoluo Russa); de um jovem anarcoterrorista na Frana do sculo XIX (Eu, mile Henry); a apresentao de um filsofo contemporneo de um ponto de vista libertrio (FOUCAULT); o abolicionismo penal e os campos de concentrao da vida cotidiana (Estamos todos presos); a liberdade (Limiares da liberdade), todas publicadas aqui em Verve.

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    Cinema libertrio

    A acuidade do teatro ao longo da histria da militn-cia anarquista de vital importncia. Uma arte nica que, assim como o anarquismo, vivida flor da pele. A cultura libertria lanou mo da dramaturgia ence-nada em palcos e teatros improvisados em ateneus ou Centros de Cultura, no s para afirmar seus ideais e difundi-los, mas tambm para propiciar novas experi-mentaes e um outro mtodo de instruo direcionada para uma vida livre. O pensamento libertrio expres-so em forma artstica, no s emociona o pblico, mas desperta o sentimento de revolta. Uma forma de ao direta, de tornar pblica a anarquia. E por meio dessa prtica propagou-se e habitaram-se diversas formas de anarquismos.

    cinema libertrio

    Isabelle Marinone. (2004) Cinema e Anarquia: Uma histria obscura do cinema na Frana (1895-1935). Traduo de Adilson Incio Mendes, Carlos Roberto de Souza, Fernanda Murad e Flvia Lago. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2009, 216 pp.

    Michel Foucault em Nietzsche, a genealogia e a histria, um pequeno texto de 1971, explicita a noo de histria a partir de uma perspectiva genealgica voltada para os baixos comeos dos acontecimentos. Ela exige a mincia em vasculhar documentos quase esquecidos em meio poeira que lhes cobre.

    mauricio freitas*

    * Integrante do Nu-Sol e estudante de Histria na USP.

    verve, 16: 291-295, 2009