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História do teatro em música no Brasil durante o século XVIII. Dividido em capítulos tratando das convenções, contexto socio-político, texto literário e musical, gênero e etnicidade, poder. Finaliza com uma cronologia das produções dramático-musicais entre 1700 e 1808.A history of musical teatre in Brazil during the eighteenth century. Chapters divided into conventions, socio-political context, literary and musical text, gender ane ethnicity, power.

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Universidade Federal do Paran Reitora em exerccio Mrcia Helena Mendona Pr-Reitora de Pesquisa e Ps-Graduao Maria Consuelo Andrade Marques Diretora do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes Maria Tarcisa Silva Bega Chefe do Departamento de Artes Geraldo Leo Veiga de Camargo Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Msica Rosane Cardoso de Arajo Editora do DeArtes Diretor Norton Dudeque Conselho Editorial lvaro Carlini Beatriz Ilari Norton Dudeque Paulo Reis Walter Lima Torres Neto

teatro e msica na amrica portuguesa - convenes, repertrio, raa, gnero e poder

rogrio budasz curitiba deartes ufpr 2008

2008 Rogrio Budasz

teatro e msica na amrica portuguesa: convenes, repertrio, raa, gnero e poder Budasz, Rogrio Teatro e msica na Amrica Portuguesa : convenes, repertrio, raa, gnero e poder / Rogrio Budasz. Curitiba : DeArtes UFPR, 2008. 2a tiragem. 290 p. : il. : 24,5 cm. ISBN 978-85-98826-15-8 1. Msica Brasil Histria. 2. Teatro Brasil Histria. I. Budasz, Rogrio. II. Ttulo. CDD 780.981 CDD 792.0981

DeArtes UFPR Editora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paran Rua Coronel Dulcdio 638 80420-170 Curitiba PR (41) 3222 6568 www.artes.ufpr.br Printed in Brazil 2008

Essa pesquisa foi possvel graas ao auxlio do Programa Nacional de Apoio Pesquisa, atravs da concesso de uma bolsa de pesquisador visitante na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro durante os anos de 2007 e 2008. O apoio de outras pessoas e instituies tambm foi fundamental para a concluso desse trabalho: Andr Guerra Cotta Beatriz Ilari David Cranmer Lucas Robatto Manuel Carlos de Brito Maria Elizabeth Lucas Paulo Castagna Rosana Marreco Brescia Rui Vieira Nery Srgio Dias Suely Maria Perucci Esteves Acervo Curt Lange, Belo Horizonte Arquivo Nacional, Rio de Janeiro Arquivo Pblico Mineiro, Belo Horizonte Biblioteca do Palcio da Ajuda, Lisboa Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Msica da UFRJ, Rio de Janeiro Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa Ministrio da Cultura, Braslia Museu da Msica, Mariana

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Captulo 1 Convenes Lommagio dellincolta America ben degno del grande Metastasio. Questo nome ascoltato con ammirazione nel fondo delle nostre foreste. - Baslio da Gama1

Pietro Metastasio olhou para o pacote que acabara de chegar. O registro do correio indicava uma procedncia distante: Rio de Janeiro, 1769. O contedo inclua um livro impresso em portugus juntamente com uma carta, onde o autor, Baslio da Gama, expressava sua admirao pelo poeta italiano e explicava que o assunto da sua obra era todo americano. Metastasio folheou algumas pginas, tentou ler alguns versos, mas desistiu logo em seguida, passando a redigir a seguinte resposta:2 A BASILIO DE GAMA - RIO DE JANEIRO Viena, 7 de abril de 1770. Minha crassa ignorncia do idioma de seu poema no bastou, gentilssimo senhor de Gama, para ocultar de mim o grande valor que ele tem. Desse valor, j descobri o suficiente para ficar convencido de que tambm nas margens do Rio Janeiro [sic], Apolo tem a sua Delos, seu Cinto e seu Hlicon. [...] Sorte minha, j que a idade no acompanha a violenta tentao de mudar de hemisfrio para desfrutar em pessoa a invejvel parcialidade das espirituosas Ninfas americanas; ali encontraria em meu benevolente intrprete um rival demasiado perigoso. [...]

O livro era O Uraguay, um poema pico sobre a Guerra Guarantica e o desmantelamento das redues jesuticas no sul do Brasil. O autor, Jos Baslio da Gama, nasceu em So Jos del Rei (hoje Tiradentes), Minas Gerais, em 1740. Estudou na Universidade de Coimbra e tambm com os jesutas em Roma, onde em algum ponto entre 1763 e 1767 foi admitido na Accademia dellArcadia sob o nome de Termindo Siplio. Ao registrar sua nacionalidade, Baslio da Gama declarou-se americano o usual para um branco nascido no Brasil seria considerar-se portugus.3 Aps o banimento da Companhia de Jesus em 1759, Gama havia sido acusado de jesuitismo e enviado para o exlio em Angola. Alguns anos depois, novamente em Portugal, publicou o poema anti-jesutico O Uraguay, talvez buscando limpar o nome das acusaes. Mesmo que tenha sido essa a razo principal para a publicao, no 1

METASTASIO, P. Tutte le opere. Milo: Mondadori, 1954, v. 4, p. 897. Para o texto completo, ver Apndice 9. Ibid., carta 1854, v. 4, p. 822. Para o texto completo, ver Apndice 9. Roma, Biblioteca Angelica: Archivio IV - Catalogo IV, p. 111. Apud HOLANDA, S. B. Esboo de figuras. So Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 327-353.

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difcil encontrar em O Uraguay insinuaes de movimentos estticos e culturais bem posteriores, como o indianismo ou o americanismo, sem relao direta com o projeto poltico pombalino, mas com bvias razes iluministas. Afinal, o poema era composto sobre uma temtica contempornea, e no sobre narrativas de heris da mitologia clssica ou pseudo-histria medieval. As cenas de guerra, por exemplo, onde Gama descreve o enfrentamento entre armas de fogo e canhes europeus de um lado e arcos e flechas americanos de outro, apresentam os Guaranis sob uma perspectiva ao mesmo tempo herica e trgica. O sucesso literrio de O Uraguay trouxe algum prestgio a Baslio da Gama, a ponto de um cidado em Coimbra ter solicitado o seu apoio para o estabelecimento de um teatro naquela cidade, episdio comentado recentemente por Francisco Topa.4 Gama participou ainda da Zamperineida, contenda potica em torno da soprano italiana Anna Zamperini, que causou admirao e escndalo em Lisboa na primeira metade da dcada de 1770. Baslio ajudou a alimentar a controvrsia escrevendo trs poemas, entre eles O Entrudo:5 [...] Zamperine aparece; adeus, Talaia! Zamperine em Francs, em prosa, em verso, Nas salas, no Teatro, nas Tabernas, Tudo se enzamparina; os Homens digo, Que as Mulheres maldita graa lhe acham. J de mil pretendentes rodeada, Se constitui Penlope s avessas, Porque a outra esperava o seu Esposo, E esta correndo vai climas diversos, Somente para achar alguns Ulisses. Cr ach-los aqui, que a Fama voa De ser Ulisses quem fundou Lisboa. [...]

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Durante a sua permanncia em Roma, quase dez anos antes, Baslio da Gama parece ter buscado o reconhecimento da Arcdia Ultramarina de Vila Rica junto Accademia dellArcadia, embora isso ainda no tenha sido confirmado pela historiografia. Mesmo assim, das muitas academias literrias moldadas a partir das Arcdias italianas e portuguesas que apareceram intermitentemente no Brasil durante a segunda metade do sculo XVIII, a Arcdia Ultramarina foi a mais influente e a que durou mais. Entre seus membros, encontravam-se Cludio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto e Toms Antonio Gonzaga, todos envolvidos na conspirao inconfidente de 1789 perigosa ocupao para uma academia literria, e uma receita certa para o desastre. Para os conspiradores, no havia contradio em sonhar com uma repblica independente e, ao mesmo tempo, ter como dolo e modelo o poeta cesreo da Corte de 4

Trata-se da Epistola a Joze Basilio da Gama sobre a utilidade de hum Theatro em Coimbra, de autor annimo, Biblioteca e Arquivo Distrital de vora, Fundo Manizola, MS 542, p. 186-193; outro exemplar, onde o autor assina J.C.D.M., encontra-se na biblioteca particular de Jos Mindlin, RBM/5/b. Conforme TOPA, F. A Declamao Lrica de Baslio da Gama: um indito recuperado. Lnguas e Literaturas Revista da Faculdade de Letras do Porto, v.20, n.1, 2003, p. 187-221. PIMENTEL, A. Zamperineida. Lisboa: Gomes de Carvalho, 1907, p. 177-184. TEIXEIRA, I. Obras poticas de Baslio da Gama. So Paulo: EDUSP,1996, p. 304-310.

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Viena, Metastasio. Dramas de Metastasio foram listados nos inventrios de Alvarenga Peixoto e do Cnego Lus Vieira da Silva, conforme os Autos da Devassa. Cludio Manuel da Costa e Baslio da Gama at mesmo traduziram alguns textos de Metastasio para o portugus. E se Baslio da Gama exagerou um pouco ao descrever como os brasileiros faziam ponto de honra em no comparecer ao teatro todas as vezes que a composio no [era] de Metastasio ou o quanto achava belo ver as nossas ndias chorar com o livro [de Metastasio] na mo, documentos da Casa da pera de Vila Rica comprovam que o poeta romano era, junto com Goldoni, um grande sucesso nos palcos mineiros. A influncia de Metastasio permaneceu forte no Brasil, especialmente no interior do pas, onde seus dramas continuaram a ser representados at o final do sculo XIX. A conexo de Metastasio com os valores do Antigo Regime evidente em sua biografia e em suas obras, mas importantes tambm eram suas aspiraes pedaggicas e moralizantes. Escrevendo ao castrato Carlo Broschi, Il Farinello, em 8 de janeiro de 1750, Metastasio confessava:6 Comeo a desejar que d vontade em algum de escrever a minha vida, e desejaria que o historiador, sem trair a verdade, dissesse algo mais ou menos assim: Que em setecentos viveu o abade Metastasio, poeta sofrvel entre os maus, nem feio nem bonito: mais necessitado que avaro: terno com o belo sexo, mas respeitoso: fiel aos amigos, mas de pouca valia: provido da vontade de fazer o bem e privado dos meios de faz-lo: desperdiou toda a sua vida para educar o gnero humano agradando-o.

O tipo de instruo proporcionada pelos enredos de Metastasio envolvia invariavelmente o auto-sacrifcio, o controle do indivduo sobre seus prprios desejos em favor do bem maior de servir ptria e ao povo. Em uma de suas ltimas obras publicadas, o Estratto dellArte Poetica dAristotele, Metastasio buscava explicar como se dava esse processo educativo, ao mesmo tempo em que legitimava sua obra luz dos preceitos de Aristteles:7 A experincia continuada nos demonstra que o espectador, at o mais malvado, admira os grandes exemplos das virtudes hericas, que ajudam as teis ou triunfam sobre as paixes daninhas, e se compraz em v-las representadas. Quando vemos um filho inocente sacrificar generosamente a prpria glria e a vida para salvar o pai; um amigo prximo que se esquece de si para no decepcionar o amigo; um cidado que troca a sua prpria felicidade pela da ptria; um favorecido que renuncia a um benefcio para no ser ingrato com o benfeitor, posse de um reino, ou de um objeto querido e digno das mais ternas esperanas; um ofendido que abre mo da vingana fcil de uma agresso sangrenta, sofrida injustamente, e no somente perdoa o agressor, mas lhe estende a mo prestativa em caso de grave perigo; quando vemos (digo) as representaes de aes assim louvveis e luminosas, nossa alma se engrandece na glria da nossa espcie, que delas nos parece capaz; iludimo-nos de tambm sermos capazes de execut-las; e nutridos de ideias to nobres, pode-se at esperar que s vezes nos tornemos capazes de imit-las.

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METASTASIO, P. Tutte le opere. Milo: Mondadori, 1954, v. 3, carta 340. Ver Apndice 9. METASTASIO, P. Estratto dellArte Poetica dAristotele. Prato: Vannini, 1820, p. 129-130. Opere complete dellAbate Pietro Metastasio, 14 v. Ver Apndice 9. Ver tambm WEISS, P. Metastasio, Aristotle, and the Opera Seria. The Journal of Musicology, v.1, n.4, out. 1982, p. 385-394.

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Fig. 1: Folha de rosto do libreto de Artaserse, de Metastasio. Lisboa: Antonio Isidoro da Fonseca, 1737.

O componente didtico dos seus textos, enfatizando a submisso ao Estado e Igreja, a qualidade melflua e concisa da poesia, alm, claro, do destaque que desfrutava como Poeta Cesreo em Viena e o consequente endosso da monarquia austraca, contriburam para o sucesso de Metastasio em toda a Europa. Em Portugal, seus libretos passaram a ser encenados j em 1737, com Alessandro nellIndie, Artaserse, Demofoonte e LOlimpiade, consolidando o estabelecimento da pera italiana naquele pas, no contexto de um processo de italianizao musical iniciado na dcada anterior. Paradoxalmente, pelo menos no campo da msica profana, isto ocorreu sem apoio real direto. Como demonstrou Manuel Carlos de Brito, a introduo da pera italiana em Portugal pode ser vista como um efeito colateral dos esforos de dom Joo V em transformar Lisboa em uma segunda Roma e de seu interesse pela msica sacra italiana. Ao enviar compositores portugueses para estudar em Roma e contratar msicos da Cappella Giulia, o rei no previa que cantores, instrumentistas e compositores logo promoveriam a interao tambm no campo da msica dramtica.

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Um deles, Alessandro Maria Paghetti, violinista da Capela Real, chegou a criar uma companhia de pera, na qual as maiores atraes eram suas duas filhas, as Paquetas. Aps Farnace, libreto annimo encenado em dezembro de 1735 com msica do bolonhs Gaetano Maria Schiassi, a companhia de Paghetti produziu vrias peras de Metastasio e Zeno, primeiro na Academia da Trindade, e, a partir de 1738, no Teatro da Rua dos Condes.8 Em 1742 dom Joo V ficou hemiplgico e passou a ser dominado por um terror religioso que o levou a banir espetculos teatrais, tanto na corte como em teatros pblicos, com a exceo de oratrios e festas religiosas. A situao permaneceu assim at sua morte, em 1750. Seu sucessor, dom Jos I, no tardou em demonstrar o quo diferentes eram suas prioridades das de seu pai por iniciar o estabelecimento de uma organizao operstica nunca antes vista em Portugal. Rui Vieira Nery nota que na esfera poltica esses eventos relacionavam-se s reformas promovidas por seu ministro Sebastio Jos de Carvalho, mais tarde Marqus de Pombal, ao promover um modelo de absolutismo que enfatizava a separao entre o Estado e a Igreja e por favorecer iniciativas culturais inovadoras e, at certo ponto, independentes do poder pblico. 9 Nery argumenta ainda que, sendo aficionados da pera italiana, dom Jos e dona Mariana Vitria tambm buscavam, atravs da implantao de um estabelecimento operstico nos moldes italianos, conferir um novo impulso civilista cultura portuguesa. Em parte, pode-se atribuir esse movimento tambm eterna rivalidade entre Portugal e Espanha. No campo da pera italiana, a corte de Madri havia disparado na frente, contando j por alguns anos com as produes magnficas de ningum menos que Farinelli, a ponto de o prprio Metastasio declarar-lhe em 1750 Em suma, Madri, graas ao vosso cuidado, tem ocupado o primeiro lugar dentre todos os teatros da Europa.10 A partir daquele mesmo ano, dom Jos I no poupou recursos para trazer a Lisboa alguns dos melhores cantores europeus. O castrato Gizziello aceitou mudar-se depois de um ano de negociaes conduzidas por Pombal, que achou exorbitantes os termos finais do contrato.11 Manuel Carlos de Brito, que estudou detalhadamente o processo de contratao de artistas para a pera de dom Jos, observa que Pombal considerava de menor valor o tenor Anton Raaff, mas mesmo assim o mandou contratar em Bolonha. Alm de cantores e danarinos, Pombal tambm trouxe conhecidos arquitetos, pintores e maquinistas, como Giovanni Carlo Sicini Bibiena, que planejou os teatros do Forte, de Salvaterra, e o mais impressionante de todos, a pera do Tejo. Para supervisionar a companhia, dom Jos mandou buscar o compositor napolitano Davide Perez. Entre 1752 e 1755, Perez dirigiu nove de suas peras Il Siroe, Demofoonte, Didone abbandonata, LOlimpiade, Leroe cinese, LAdriano in Siria,

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BRITO, M. C. Opera in Portugal in the eighteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 7-23. NERY, R. V. Histria da msica. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1991, p. 99. "In somma Madrid, merc la vostra cura, ha occupato il primo luogo fra tutti i teatri dEuropa. METASTASIO, P. Tutte le opere. Milo: Mondadori, 1954, v. 3, carta 340. BRITO, M. C. Estudos de histria da msica em Portugal. Lisboa: Estampa, 1989, p. 127-138.

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LIpermestra, LArtaserse, culminando com Alessandro nellIndie em 31 de maro de 1755. Charles Burney descreveu esse perodo da carreira do compositor: 12 Em 1752 ele foi para Portugal, onde foi empregado a servio do rei Jos. Sua primeira pera em Lisboa, Demofoonte, foi recebida com grande aplauso. Gizziello era o soprano principal, e o celebrado Raaff o tenor [nota de Burney: Gizziello recebia um salrio da corte de Lisboa, totalizando 4000 libras esterlinas]. Ela foi tornada magnfica pela interpretao de uma orquestra poderosa e decoraes absolutamente esplndidas. Mas o teatro novo de Sua Majestade portuguesa, que foi inaugurado no aniversrio da rainha, 31 de maro de 1755, sobrepujou em magnitude e decorao, tudo aquilo de que os tempos modernos podem se orgulhar. Naquela ocasio, Perez comps msica nova para a pera Alessandro nellIndie, na qual uma tropa de cavalos aparecia no palco, com uma falange macednica. Um dos mestres de equitao do rei cavalgou Bucfalo em uma marcha que Perez comps na Mange [escola de equitao] para um grand pas de um belo cavalo; o todo excedeu em muito tudo aquilo que Farinelli havia tentado introduzir no grande teatro sob sua direo em Madri, para cuja realizao ele tinha poderes ilimitados. Alm dessa decorao esplndida, Sua Majestade portuguesa reuniu os maiores cantores ento existentes [nota de Burney: esses eram, de acordo com Pacchierotti, Elisi, Manzoli, Caffarelli, Gizziello, Veroli, Babbi, Luciani, Raaff, Raina e Guadagni], a fim de que as produes lricas de Perez fossem beneficiadas com todos os recursos possveis e resultando na mais perfeita e cativante execuo que se poderia lhes dar.

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A descrio de Burney foi baseada em relatos de Grard de Visme, seu informante em Portugal, deixando clara a obsesso de dom Jos pelo espetculo como demonstrao de poder de uma maneira no imaginada por seu pai. A produo de Alessandro nellIndie na pera do Tejo em 1755 finalizava com uma apotetica licenza, na qual descia do cu o Tempio della Gloria, emprestado de outra obra metastasiana, povoado de seres mitolgicos e heris da Antiguidade prestando homenagem ao retrato de dona Mariana Vitria, esposa de dom Jos e aniversariante do dia. As licenze e as cerimnias do retrato real ao final de cada pera garantiam que o pblico no perdesse a conexo entre o heri moral da pera e o seu soberano, ou os valores por ele representados. Embora com recursos mais limitados, esse tipo de espetculo de representao e persuaso poltico-ideolgica tambm foi replicado no Brasil, onde adentraria as primeiras dcadas do sculo XIX. Em 1 de novembro de 1755, sete meses aps a inaugurao da pera do Tejo, Lisboa foi sacudida pelo notrio terremoto que destruiu a Baixa e desmantelou no s o teatro como todo o estabelecimento operstico do rei. Na nova Lisboa imaginada por Pombal, conclui Nery, no haveria lugar para uma custosa pera de corte, que se viu encolhida em forma e funo, voltando a servir como entretenimento particular da Famlia Real e de seus convidados.13 Ainda assim, certo tipo de controle poltico-ideolgico continuaria a existir mesmo fora do mbito da pera de corte. O conhecido alvar concedido em 17 de julho de 1771 a um grupo de comerciantes para que abrissem uma sociedade destinada a gerenciar teatros pblicos em Lisboa soa como se tivesse sado da pena do prprio 12

BURNEY, C. A general history of music from the earliest ages to the present period. Londres: [s.e.], 1789, v. 4, p. 570-571. Ver Apndice 9. NERY, R. V. op. cit, p. 101.

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Metastasio. Para o rei dom Jos I e o Marqus de Pombal, signatrios do documento, uma casa de pera era tambm uma 14 Escola, onde os povos aprendem as mximas ss da poltica, da moral, do amor da ptria, do valor, do zelo, da fidelidade, com que devem servir os seus soberanos: civilizando-se e desterrando insensivelmente alguns restos de barbaridade, que neles deixaram os sculos infelizes da ignorncia.

Instruir de forma agradvel e impor os valores morais sob o pretexto de entreter dom Jos I compreendia melhor do que qualquer outro soberano portugus o papel que a pera poderia desempenhar em promover sua ideologia, mesmo sem precisar desembolsar as quantias astronmicas dos anos anteriores ao terremoto. Mesmo assim, no importa o quanto tentasse se distanciar dos empreendimentos religiosos de seu pai, laos importantes ainda permaneceriam entre o Teatro e Igreja, o que, de resto, tambm verdadeiro em outros centros europeus, como a Itlia e a ustria.

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Fig. 1: Folha de rosto do libreto de Alessandro nellIndie, de Metastasio. Lisboa: Sylviana, 1755. 14

Instituia da Sociedade estabelecida para a subsistencia dos Theatros Pblicos da Corte. Lisboa: Sylviana, 1771. Apud BENEVIDES, F. F. O Real Theatro de S. Carlos de Lisboa. Lisboa: Castro Irmo, 1883, p. 12.

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Alm da natureza dramtica da liturgia catlica ilustrada nas pginas do Theatro Ecclesiastico, o principal livro litrgico portugus da segunda metade do sculo XVIII e primeira do sculo XIX uma forma peculiar, quase teatral de religiosidade, caracterizada por festas, procisses e dramas religiosos floresceu na Pennsula Ibrica e Amrica Latina. Para Wilson Martins, a igreja barroca no Brasil, pelo seu plano, decorao e clara orientao hedonista, transforma-se em teatro: simultaneamente o teatro profano de Deus e o templo sagrado da representao teatral.15 Em Lima, na ltima dcada do sculo XVIII, ao responder as crticas ao gnero operstico feitas pelo franciscano Antonio de Olavarrieta, que considerava ridculo que se representassem dramas cantados, o jornalista peruano Jos Rossi y Rubi traou interessantes analogias entre a pera e a liturgia:16 Por esta razn es capaz el Padre de decir, que tambin es impropio el sagrado uso de nuestra Madre Iglesia, que en la Semana Santa refiere la dolorosa Pasin de Nuestro Redentor, cantando este principal dogma de nuestra creencia, y representando esa Divina Persona, que por si misma entona sus tormentos, y todos los funestos pasos de esa escena Religiosa. Tambin se cantan las misas, y todos los oficios Divinos en las fiestas solemnes. Si el Padre Olavarrieta en lugar de pensar en las comedias hubiese asistido al Coro con la compuncin que se observa en todos los dems individuos de su orden ejemplarisima, supiera que la msica inflama los afectos, eleva los corazones, y hace ms sensibles las Almas para dejarse impresionar de los conceptos que son la base del canto.

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Antes do advento dos teatros, ou casas da pera, peas teatrais com ou sem msica a includos no apenas autos religiosos, mas tambm comdias e tragdias eram geralmente encenados em tablados, ou palcos improvisados ao ar livre. Certos espetculos poderiam ter lugar dentro de alguma igreja, como a representao de uma tragdia no Colgio Jesuta de So Lus do Maranho, em 1731. A princpio escandalizados, os superiores da Ordem logo concordaram com encenaes desse tipo, desde que as peas fossem representadas por atores masculinos, apresentassem teor religioso, e no comprometessem as funes regulares da Igreja.17 A partir das pesquisas iniciadas por Curt Lange na dcada de 1940, sabe-se que instrumentistas, cantores, compositores e adaptadores que forneciam msica para cerimnias litrgicas nas principais cidades das Minas Gerais eram essencialmente os mesmos que trabalhavam nas casas da pera. verdade que conflitos ocorreram entre os poderes civil e religioso, sendo exemplares as polmicas em Mariana, entre o msico da pera e mestre de capela Francisco Mexia e o Bispo Frei Manuel da Cruz, e em So Paulo, entre o tambm msico da pera e mestre de capela Antonio Manso e o Bispo Frei Manuel da Ressurreio. notvel que em ambos os casos, os poderes civis apoiavam os referidos msicos. Por outro lado, se no Brasil colonial o teatro tinha a reputao de ser um lugar de entretenimento tanto quanto de doutrinao moral e poltica, formas de 15 16 17

MARTINS, W. Histria da inteligncia brasileira. So Paulo: T. A. Queiroz, 1992, v. 1, p. 554-555. Mercurio Peruano, v. ii, n. 23, jun. 1791, p. 137-138. Segundo Joo Lcio dAzevedo, escrevendo em 1901, a pea teria como assunto a concrdia. Para Serafim Leite, este seria o prprio ttulo da tragdia. AZEVEDO, J. L. Os jesutas no Gro-Par. Belm: SECULT, 1999, p. 180. LEITE, S. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1943, v. 4, p. 298.

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circularidade social e cultural operavam tambm no interior das igrejas. Para a maioria, teatro e igreja eram lugares onde surgiam algumas das raras oportunidades de interao entre os sexos. Expresses de desgosto sobre os namoricos e flertes que costumavam ocorrer durante as cerimnias religiosas, e a existncia de leis proibindo a msica secular incluindo danas dentro das igrejas demonstram o quanto tais prticas eram comuns. Alm disso, o prprio espao ocupado pela msica na liturgia, a disposio espacial de cantores e instrumentistas, a diviso das Missas em rias, duetos, ensembles e coros, e at o virtuosismo vocal, dariam congregao transformada em plateia o mesmo sentido de espetculo que experimentaria em um teatro de pera. A prtica de se musicar obras dramticas na sua totalidade premissa fundamental da pera sria italiana desde o sculo XVII era desconhecida no Brasil antes do sculo XIX. claro que formas de teatro musical existiram na colnia bem antes disso, enraizadas nos autos vicentinos e no teatro moral jesutico. O principal dramaturgo a atuar no Brasil seiscentista, Jos de Anchieta, escreveu e produziu vrios autos em portugus, tupi, espanhol e latim, onde os dilogos alternavam com nmeros musicais na sua maior parte verses religiosas de cantigas e romances ibricos (contrafacta) e danas amerndias e portuguesas.18 Alm dos autos religiosos, as representaes dramticas no Brasil do sculo XVII e primeiras dcadas do sculo XVIII consistiam geralmente de comdias espanholas de autores como Caldern de la Barca e Agustn Moreto, entremeadas de alguns nmeros musicais. No h ainda como precisar at que ponto tais encenaes fariam uso tambm de dilogos cantados, ou recitativos, prtica documentada na Pennsula Ibrica e Amrica Espanhola. Encenaes de obras dramticas no religiosas em lngua portuguesa tornaram-se mais e mais populares aps a dcada de 1740, graas ao sucesso das peras do dramaturgo brasileiro Antonio Jos da Silva (1705-1739), revivendo o antigo gnero do teatro de marionetes. Seus textos, repletos de stira social e poltica, eram desenvolvidos sobre algumas convenes da comdia nova espanhola, emprestando elementos tambm dos entremezes e farsas portuguesas. O sucesso das peras do judeu acabou estabelecendo novas convenes teatrais, que por sua vez influenciaram as tradues e encenaes portuguesas de peas de Molire, Zeno, Metastasio e Goldoni. A partir de meados do sculo XVIII, tambm as plateias brasileiras seriam expostas a libretos italianos, traduzidos para o portugus e adaptados ao gosto local, embora ainda no musicados em sua totalidade. Em 1813, uma nova edio do dicionrio de lngua portuguesa do carioca Antonio Morais e Silva definia pera como:19 Drama trgico ou cmico que os italianos recitam em voz cantante, e assim o usam os franceses, com rias em vez de coros, e outras irregularidades, ou diferenas, da tragdia e comdia regulares.

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Ver BUDASZ, R. A presena do cancioneiro ibrico na lrica de Jos de Anchieta. Latin American Music Review, Austin, v. 17, n. 1, Spring/Summer 1996, p. 42-77; BUDASZ, R. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: um enfoque musicolgico. So Paulo, 1996. Dissertao (Mestrado em Artes), Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo. SILVA, A. M. Dicionrio da lngua portuguesa. Lisboa: Lacerdina, 1813, v. 2, p. 366.

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No era s pelo seu carter trgico ou cmico que estes gneros diferiam, como mostra Morais e Silva:20 COMDIA. Fbula dramtica em que se representa alguma ao da vida e pessoas ordinrias, para se corrigir o vcio por meio do ridculo. TRAGDIA. Poema dramtico em que se representa ao grande e sria entre pessoas ilustres, que tem de ordinrio algum fim funesto e excita o terror ou compaixo.

Documentos relativos s casas da pera brasileiras do perodo colonial e relatos oficiais de festas cvicas lanam alguma dvida sobre a classificao de Morais e Silva. Um manuscrito do final do sculo XVIII que descreve festas em Cuiab no ano de 1790, refere-se pea intitulada Saloio cidado como uma comdia ou entremez, e Zenbia no Oriente como uma comdia ou tragdia.21 A aparente confuso pode ser explicada pelo uso ento corrente no Brasil do termo comdia em sua acepo espanhola, conforme definio do Diccionario de Autoridades (1729-1732):22 COMEDIA. Obra hecha para el teatro, donde se representaban antiguamente las acciones del pueblo, y los sucesos de la vida comn; pero hoy segn el estilo universal, se toma este nombre de comedia por toda suerte de poema dramtico, que se hace para representarse en el teatro, sea comedia, tragedia, tragicomedia, o pastoral.

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Por essa poca, as funes teatrais no Brasil poderiam compreender um pea sria ou jocossria em dois ou mais atos na maior parte em dilogos falados, geralmente incluindo algum nmero musical. Curtos entremezes de um ato e/ou bailes eram encenados durante os intervalos dos atos e no final da funo. Essa sequncia de peas de vrios gneros dentro da estrutura da funo teatral, lembrava a comdia espanhola da segunda metade do sculo XVII, que geralmente observava a seguinte ordem:23 1. Loa ou outro tipo de introduo 2. I Jornada (ato) da comdia 3. Entremez ou Sainete 4. II Jornada da comdia 5. Entremez, Sainete, Baile ou Jcara 6. III Jornada da comdia 7. Sarau, Mogiganga ou Fim de Festa

Durante as vrias noites que duraram os festejos do aniversrio de Diogo de Lara Ordonhes em Cuiab nos meses de agosto e setembro de 1790, as funes teatrais em um tablado ao ar livre incluram, entre outros, uma comdia (Eurene) entremeada 20 21

Ibid., v. 1, p. 418, 793. PIZA, A. T. Lista das pessoas que entraram nas funces principaes de Agosto de 1790. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, v. 4, 1888-1889, p. 223-224. Ver Apndice 6. Diccionario de Autoridades. Madrid: Real Academia, 1729, v. 3, p. 428. Ver COTARELO Y MOR. Coleccin de entremeses, loas, bailes, jcaras y mogigangas desde fines del siglo XVI a mediados del XVIII. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2000.

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de danas (11 de agosto); uma comdia ou tragdia (Zenbia) com um entremez em um de seus intervalos (16 de agosto); uma tragdia (Zara) com algumas rias e duetos em portugus, introduzida e concluda com nmeros corais em homenagem a Diego de Lara, e na sequncia apresentando o entremez O tutor enganado (provavelmente a zarzuela de Ramn de la Cruz, de 1764); esta funo foi encerrada com uma dana popular luso-brasileira. O prprio Diogo de Lara descreveu entusiasmado:24 Domingo, 29: Representou-se a tragdia de Zara, acompanhada com o mais jocoso entremez que vi representado. Esta noite foi certamente muito plausvel, a tragdia, boa de si mesma por ser muito terna e comover muito os afetos, suposto que a versificao um pouco frouxa por defeito do tradutor; os heris escolhidos, pois representou o papel de Osman o incomparvel Joo Francisco, e o de Zara, Silvrio Jos da Silva; o asseio e o adorno das damas; a propriedade, asseio e riqueza dos vestidos dos otomanos, distinguindo-se sobre todos o de Osman, a quem at encarnaram a cara, braos e pernas; o asseio do que vestia francesa; a abundncia de rias e recitados, cantados com feliz execuo pelo mesmo Joo Francisco, e alguns duetos por outros, com letra prpria da tragdia (ainda que imprpria nesta a cantoria); as belas sonatas que frequentemente executou a orquestra, que teve de mais a mais a singularidade nunca vista, ao menos no meu tempo, em Cuiab, de possuir uma trompa; a boa iluminao, a bem executada ao das duas mortes e, finalmente, o sobredito entremez, que no fez um instante a toda a plateia cessar de rir e bater palmas (porque ali estava Joo Francisco de velho enamorado), tudo isto deu um lustre e gosto muito grande a esta funo. Os mesmos que a executaram foram os que ma ofereceram; o mestre rgio foi quem os ensinou e na sua casa se vestiram as duas damas, e o major Gabriel foi quem o protegeu. No princpio e no fim da tragdia cantaram uma letra em forma de coro em meu louvor, e no fim do entremez danaram a Tirana em meu louvor, como dizia o velho, o qual fez maravilhas na mesma dana.

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A descrio de Diogo de Lara e a lista de atores e seus respectivos papis, preservada em um documento separado, nos revela importantes detalhes sobre algumas prticas teatrais brasileiras da ltima dcada do sculo XVIII. Primeiramente, a tragdia de Voltaire foi apresentada em traduo portuguesa versificada. Pela coincidncia na grafia dos nomes de alguns personagens (Osman, Orasmin, Nerestan, Chatillon, Meledor), a verso utilizada foi provavelmente a de Pedro Antonio, publicada vrias vezes em folheto de cordel, sendo a de Antonio Rodrigues Galhardo a mais conhecida (Lisboa, 1783). A meno especial aos recitados e rias cantados por Joo Francisco e duetos por outros personagens implica que nem todo o texto havia sido musicado. Mas os nmeros musicais rias, recitados e duetos foram compostos e cantados sobre o texto traduzido, o que parece ter surpreendido o prprio cronista, que achava imprpria a cantoria em uma tragdia. Documentos contemporneos de Minas Gerais e Rio de Janeiro comprovam que era comum nesta poca, em peas traduzidas do italiano para o portugus, a incluso de nmeros musicais em italiano. Provavelmente isso no se aplicaria a Zara, 24

PIZA, A. T. Lista das pessoas que entraram nas funces principaes de Agosto de 1790, e Crtica das Festas. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, v. 4, 1888-1889, p. 219-242. Ver Apndice 6. Para informaes adicionais, ver MOURA, C. F. O teatro em Mato Grosso no sculo XVIII. Belm: SUDAM, 1976.

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traduzida do francs, e nem aos entremezes e s peras do judeu, compostos originalmente em portugus. Finalmente, nota-se que, pelo menos no Brasil, a ordem dos diversos componentes de uma funo teatral no costumava ser to rgida quanto na Espanha. Em seu dicionrio publicado entre os anos de 1712 a 1728, Raphael Bluteau notou que algumas tragdias no apresentavam um final funesto. Tambm mencionou o papel da msica e dos entremezes em uma funo teatral:25 TRAGDIA. Divide Aristteles a tragdia antiga em quatro partes, a saber, o prlogo, o coro, o episdio, e o xodo. A esta sucedeu a tragdia de cinco atos, com muitas cenas, e a cada ato se acrescentou um entremez e msicas, ou sinfonias. Das primeiras tragdias, que tiveram fins, ou catstrofes funestos, nasceu o erro dos que imaginam que toda a tragdia poema dramtico com fim triste e lutuoso, porm nas dezenove tragdias escritas por Eurpides, achamos muitas com festivo e alegre desfecho.

Bluteau, Morais e Silva, e o Diccionario de Autoridades definiam entremez como um drama curso, jocoso e burlesco, geralmente colocado entre os atos de uma comdia ou tragdia, a fim de conferir maior variedade ao espetculo, ou para alegrar e entreter a plateia. Esta classificao de gneros dramticos no era, de maneira alguma, precisa no Brasil do sculo XVIII. No raro encontrar esses termos usados de forma intercambivel ou de acordo com outros parmetros, tais como o gnero da escrita (versos metrificados na tragdia e na comdia e versos livres ou prosa no entremez), distribuio dos nmeros no espetculo como um todo (uma tragdia ou uma comdia como a principal atrao, e um entremez e/ou um baile como atraes secundrias o que tambm poderia variar a ponto de, em alguns casos, a funo consistir em apenas uma comdia ou um entremez), ou a incluso de personagens cmicos (a ponto de uma tragdia ser classificada como comdia). De fato, uma das particularidades mais notveis do teatro ibrico durante os sculos XVII e XVIII a conspcua presena dos graciosos, ou bobos, que dinamizavam as aes e unificavam os enredos.26 Em 1841, na introduo de Um Auto de Gil Vicente, pea que marca uma nova fase no teatro portugus, Almeida Garret rememorava em tom de complacncia essa e outras prticas teatrais do sculo anterior:27 Drogas que se no fazem na terra, que remdio h seno mand-las vir de fora! O marqus de Pombal mandou vir uma pera italiana para el-rei. O povo comps-se a exemplo do rei: traduziam em portugus as peras de Metastsio, metiam-lhes graciosos, chamava-se a isto acomodar ao gosto portugus; e meio rezado, meio cantarolado, l se ia representando. Vinha o Entremez da Castanheira no fim, ou outro que tal: e que mais queriam?

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BLUTEAU, R. Vocabulario portugus e latino. Coimbra: Real Collegio das Artes, 1712-1728, v. 4, p. 235- 236. Ver FORBES, F. W. The "Gracioso:" Toward a Functional Re-Evaluation. Hispania, v. 61, n. 1, mar. 1978, p. 78-83. GARRETT, A. Obras de Almeida Garrett. So Paulo: Cultura, 1943, v. 2, p. 176-176.

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Mesmo mudando a ordem dos elementos e apresentando de uma forma simplista processos que se desenvolveram durante quase um sculo, Garret sumariza os aspectos bsicos daquela acomodao de peras italianas ao gosto portugus. Talvez no futuro fique esclarecido se, por meio rezado meio cantarolado, Garret referia-se simplesmente percepo novecentista do recitativo seco como algo antiquado, ou a um genuno estilo declamatrio luso-brasileiro que se perdeu. Garret tambm no deixa claro quem era o povo responsvel por aquelas prticas pouco compreendidas e ainda hoje avaliadas de forma preconceituosa. Afinal, quem pagava ingressos para assistir aos espetculos nos teatros do Bairro Alto e da Rua dos Condes em Lisboa e nas Casas da pera de Vila Rica e do Rio de Janeiro, onde aquelas adaptaes formaram a base do repertrio por quase cinquenta anos, era a elite local, formada pelos comerciantes, cidados de classe mdia, intelectuais e aristocratas. Quanto ao efetivo uso dos graciosos no teatro brasileiro dos setecentos, alguns detalhes so fornecidos na correspondncia de Joo de Sousa Lisboa, construtor e primeiro administrador da Casa da pera de Vila Rica. Escrevendo ao Padre Joo Caetano Pinto, em Sabar, em 13 de julho de 1770, Sousa Lisboa solicitava:28 Tambm ter chegado notcia de V.M.c, que mandei fazer aqui uma Casa de pera, que se acha comeada, mas o melhor lhe falta, que so algumas figuras para representar o gracioso para o papel de bobo. Se V.M.c a tiver notcias de algum sujeito que tenha exercitado em operas, e ainda que no tenha, se tiver propriedade para representar, eu careo deles. V.M.c lhe fale, a saber deles se querem vir, caso vossa merc d sua determinao.

Como o assunto no retorna em cartas posteriores, deduz-se que Sousa Lisboa acabou encontrando os atores que procurava, que seriam usados em papis como os de Paquete e Ranheta na Comdia do mais alto segredo ou Artaxerxe, ou de Corisco e Fasca na pera de Demofoonte em Trcia, adaptaes de libretos de Metastasio que circularam em Minas Gerais no final do sculo XVIII.29 Mas como os graciosos teriam ido parar nos dramas de Metastasio? A questo , em parte, esclarecida pelo prprio contexto em que surgiram tais adaptaes, preenchendo o vazio deixado nos teatros populares de Lisboa aps a morte de Antnio Jos da Silva. A incluso de graciosos Sevadilha e Semicpio, em Guerras do Alecrim e Manjerona, por exemplo uma dentre vrias convenes da comdia espanhola incorporadas nas peras do judeu e perpetuadas por seus imitadores. As adaptaes de Metastasio e Goldoni, que comeam a surgir em meados do sculo XVIII, atendiam s expectativas daquele mesmo pblico. Sua difuso impressa seguiu um caminho paralelo ao das peras do judeu, e foi justamente atravs de folhetos de cordel e de colees como o Teatro cmico portugus e as peras segundo o gosto e costume portugus que os textos daquelas comdias, entremezes e peras portuguesas chegaram s provncias e colnias. Isso explicaria apenas parcialmente o fenmeno de adaptao de libretos italianos ao gosto portugus. Algo semelhante havia ocorrido na Espanha pelo menos 28 29

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Belo Horizonte, Arquivo Pblico Mineiro, Cdice CC1205, f. 28r. Ver Apndice 4. Manuscritos no Museu da Msica de Mariana, sem nmero de catlogo, atribudos a Cludio Manuel da Costa. Sobre os problemas dessa atribuio, ver Captulo 4.

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uma dcada antes, com a diferena de que o elemento mediador entre a comdia seiscentista e o drama metastasiano teria sido no a pera do judeu, mas a zarzuela. Alm da incluso de graciosos, apropriao direta da comdia, os adaptadores espanhis reduziram os libretos a dois atos e os compositores, seguindo as convenes da zarzuela, incluram uma profuso de ensembles duos, trios, quartetos e nmeros corais, inclusive na cena de abertura. Para Jos-Maximo Leza, essas modificaes teriam sido realizadas tanto para satisfazer as expectativas do pblico como para explorar as habilidades dos intrpretes, treinados em uma tradio dramtica diversa da italiana.30 possvel que as primeiras adaptaes de textos de Metastasio ao gosto portugus em meados do sculo XVIII tenham surgido em resposta a esse fenmeno espanhol das dcadas de 1730 e 40. A estrutura da funo dramtica compreendendo uma pea sria tragdia, drama ou comdia como principal nmero, e peas leves e despretensiosas nos intervalos e ao final, adentraria as primeiras dcadas do sculo XIX. Escrevendo do Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1819, o viajante prussiano Ludwig von Rango descrevia suas impresses sobre um espetculo no Real Teatro So Joo, o mais importante da corte: Tancredo, um fragmento da Caa de Henrique IV, o Califa de Bagd e outras peras conhecidas so exibidas, mas mutiladas e desfiguradas. No intervalo de dois atos, costumam apresentar um bailado. Obviamente, desta parte que os portugueses mais gostam, visto que logo depois se retira a metade do pblico. O todo pelo todo, no lhes nego razo; o bailado ainda o melhor do espetculo. Dois bons danarinos e duas danarinas regulares aparecem em cada representao e admira que mantenham esse nvel todas as noites. O nmero principal uma imitao do fandango. Do sobretudo valor aos grandes saltos. A dana do povo consiste num movimento convergente dos joelhos e numa repetida inclinao do corpo. bem divertida, mas em nada atraente. Ao contrrio, prova o quanto o povo est atrasado em qualquer manifestao de cultura. Nos ruidosos aplausos a esta dana mesmo pela gente de qualidade, manifesta-se de pleno a vulgaridade do gosto. S s oito da noite comea o espetculo e raramente termina antes da uma hora.

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Na primeira dcada de existncia do Real Teatro So Joo, bailados eram includos tanto nos intervalos dos espetculos da Companhia Italiana, lrica, quanto pela Companhia Nacional, dramtica, contribuindo para que aquelas funes se prolongassem por at quatro horas. Anncios publicados no Jornal do Commercio nas dcadas de 1820 e 30 deixam transparecer uma coerncia na estrutura das funes teatrais da Companhia Nacional no teatro reconstrudo, agora denominado So Pedro de Alcntara, geralmente na sequncia: 1) um drama ou comdia em dois ou trs atos; 2) uma ou mais danas; 3) uma farsa, geralmente ornada de msica; e por ltimo, mas no to frequentemente, 4) outros divertimentos incluindo equilibrismo, prestidigitao, etc. O espetculo da noite de 11 de dezembro de 1830, um sbado, anunciado no Jornal do Commercio daquele mesmo dia, pode ser considerado tpico: 30

LEZA, J.-M. Metastasio on the Spanish stage. Early Music, v. 26, n. 4, nov.1998, p. 623-631.

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IMPERIAL TEATRO DE S. PEDRO DE ALCNTARA Hoje, 11 do corrente em Benefcio do Escritor Dramtico do referido Teatro, se representar um novo Drama em 2 atos, intitulado: O AMIGO DO POVO, OU A PERUA E EU, OU NEM EU, NEM A PERUA Seguir-se- umas lindas variaes tocadas na flauta por Francisco da Motta, Msico de Cmara de S. M. I. e C. Depois um baile espanhol, danado por Maria Ricardine, seguindo-se a este a bem aceita Dana: O NAUFRGIO FELIZ Dando fim ao divertimento uma nova farsa em msica, e em que entra o ator Manoel Alves, denominada: OS DOIS LIBRIOS, OU O AMANTE COXO

J os espetculos da Companhia Italiana esforavam-se em trazer ao pblico carioca a pera italiana no sentido estrito do termo, ou seja, enredos representados em italiano e integralmente postos em msica, embora, pelo menos aos olhos de viajantes estrangeiros, estes fossem quase sempre mutilados, estropiados e desfigurados. Algumas vezes durante a dcada de 1810, o pblico carioca chegou a presenciar produes que, pelos recursos financeiros e artsticos envolvidos, poderiam igualar-se quelas apresentadas famlia real enquanto ainda residia em Lisboa. Mas estas foram poucas, sempre financiadas pelo errio real ou por alguns sditos abastados, especialmente aquelas levadas cena nos ltimos aniversrios de dona Maria, na aclamao de dom Joo VI, e nas comemoraes pela chegada da princesa Leopoldina ao Brasil. De maneira geral, um tipo de representao mais modesta, a meio caminho entre alta e baixa cultura, entre o teatro falado e cantado, o que se entendia no Brasil do sculo XVIII por pera, e que formava a base do repertrio dos teatros no Rio de Janeiro, Vila Rica e outros centros.

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Tabela 1: Definies de gneros dramticos em dicionrios portugueses e espanhis (grafia original).

Bluteau, Vocabulrio (1712-1728) OPERA. Dos Italianos aos Francezes, & dos Francezes a varias naes da Europa, se comunicou esta palavra, & hoje he usada nesta Corte, quando se falla nas celebres Comedias, inventadas dos Venezianos, as quaes se recito em tom musical, & se represento com deliciosas symphonias, notaveis maquinas, & admiraveis apparencias. No mez de Maro do anno de 1672 se representou em Pariz o primeyro Opera, intitulado, Pomona. Oper. Fabulae, quae musicis modis decantatur, & machinis decoratur. (vol. 3, p. 83) TRAGEDIA [ . . . ] Divide Aristoteles a Tragedia antiga em quatro partes, a saber, o Prologo, o Coro, o Episodio, & o Exodo. A esta succedeo a Tragedia de cinco Actos, com muitas Scenas, & a cada Acto se acrescentou hum Entremez, & Musicas, ou Symphonias. Das primeiras Tragedias, que tivera fins, ou catastrophes funestos, naceo o erro dos que imagina, que toda a Tragedia he Poema Dramatico com fim triste, & luctuoso, porm nas dezanove Tragedias, escritas por Euripides, achamos muitas com festivo, & alegre desfecho. [ . . . ] (vol. 4, p. 235-6) Diccionario de Autoridades (1729-1732) OPERA. [ . . . ] Se llama tambin la representacin theatral de Msica. Lat. Melodrama. Fabula musicis modis decantata. (1737, vol. O, p. 41) Morais e Silva, Dicionrio (1813) OPERA, s.f. Drama tragico, ou comico, que os Italianos recito em voz cantante, e assim o usa os Francezes; com arias em vez de cros, e outras iregularidades, ou differenas da Tragedia, e Comedia regular. (vol. 2, p. 366)

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TRAGEDIA. s.f. [ . . . ] Oy comnmente se entiende por la obra potica, en que se representa algn sucesso, que tuvo fin infeliz y funesto. [ . . . ] (1739, vol S-Z, p. 317.

TRAGEDIA, s.f. Poema Dramatico, em que se representa aco grande, e seria entre pessoas illustres, que tem de ordinario algum fim funesto, e excita o terror, ou compaixo. [ . . . ] (Vol. 2, p. 793)

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COMEDIA. s.f. Obra hecha para el theatro, donde se representaban antiguamente las acciones del Pueblo, y los sucessos de la vida comn; pero oy segn el estilo universal, se toma este nombre de Comdia por toda suerte de Poema dramtico, que se hace para representarse en el theatro, sea Comdia, Tragdia, Tragicomdia, Pastoral. [ . . . ] (1729, vol. C, p. 428) ENTREMES. s.m. Representacin breve, jocosa y burlesca, la qual se entremete de ordinario entre una jornada y otra de la comedia, para mayor variedad, para divertir y alegrar al auditorio. Viene del Latino Intermedium, y por esso algunos y le llaman Intermedio. [ . . . ] (1732, vol A, p. 529)

COMDIA, s.f. Fabula Dramatica, em que se representa alguma aco da vida, e pessoas ordinarias, para se corrigir o vicio por meio do ridiculo. (Vol. 1, p. 418)

ENTREMES, Entrems, ou Entremez. O que entre os actos de huma comedia, ou tragedia se representa no theatro para entreter, & recrear os circunstantes. Ludicrum inter actus intermedium, ou interjectum. Os que lhe chama Diludium, tem obrigaa de provar, que esta palavra significa propriamente Entremez. Tambem na lhe podemos chamar chorus, porque muitas vezes fazem os Antigos sahir huns coros no meyo dos Actos. Por divertir da gravidade, & decoro das pessoas introduzidas, inventara os comicos modernos Entremezes, & bailes. Lobo, Corte na Aldea, 342. (vol. 2, p. 154)

ENTREMEZ, s.m. Drama pequeno, que se representa entre os actos da Comedia, ou Tragedia, e talvez depois da Comedia, ou Tragedia. Tomar alguem ou alguma coisa para entremez; i.e. para objecto de riso, zombarias, e ridculo. [ . . . ] (Vol. 1, p. 716)

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Captulo 2 Espaos Na segunda metade do sculo XVIII, casas da pera foram abertas em vrias cidades e vilas brasileiras. Para aquela sociedade perifrica, lutando para impor instituies e valores europeus em um ambiente estranho, selvagem e tropical, a manuteno de casas da pera com temporadas regulares poderia ajudar a conferir certo grau de civilizao. Como nem todos no Brasil acreditavam que pudesse haver algo de virtuoso no teatro, era fundamental que os responsveis pela concepo e administrao de um empreendimento desses tivessem sucesso em demonstrar as tais alegadas conexes entre civilizao, modernidade, moralidade e artes cnicas. Isso geralmente era conseguido por salientar-se o aspecto didtico do teatro, supostamente um timo instrumento na propagao de valores morais elevados. O insucesso nessa argumentao resultaria no indeferimento das necessrias autorizaes por parte dos poderes pblicos. Mas uma coisa justificar-se perante as autoridades civis e religiosas, e outra persuadir o cidado a desembolsar uma quantia no desprezvel para assistir a uma representao dramtico-musical. Argumentao, motivao e propaganda deveriam apoiar-se em diferentes fundamentos, se necessrio at contraditrios, quando a negociao fosse com o Governador, o Senado da Cmara, o Bispo, ou o pblico pagante. Afinal, as casas de pera eram espaos fechados, administrados comercialmente, empregando corpos mais ou menos estveis de atores, cantores e msicos, onde representaes dramticas profissionais eram apresentadas mediante a cobrana de ingressos. Apenas excepcionalmente, em datas festivas e com apoio financeiro dos poderes pblicos, uma casa da pera comercial poderia apresentar espetculos gratuitos, ou para convidados especiais. Todavia, medida que avanam as pesquisas sobre o assunto, fica cada vez mais evidente que nas maiores vilas e cidades do Brasil da segunda metade do sculo XVIII vrias casas da pera foram construdas e administradas com participao direta parcial ou total do poder executivo. Vrias das primeiras casas da pera foram tambm os primeiros teatros municipais brasileiros e certamente no coincidncia que, das casas da pera que funcionavam em Ouro Preto, Sabar, Rio de Janeiro, So Paulo, Belm, Salvador e Recife, algumas so at hoje edifcios pblicos, enquanto outras, hoje demolidas, ocupavam terrenos que continuam sendo pblicos. Esse interesse pblico poderia se manifestar pela construo ou reforma de algum edifcio pblico, pela nomeao ou concesso de alvar a um cidado que ficaria incumbido da construo e administrao, ou ento pela emisso de loterias para cobrir os custos de construo e subsidiar espetculos que no se auto-sustentassem. De qualquer forma, uma casa de espetculos dificilmente teria sucesso de pblico se anunciasse apenas peas promovendo a virtude e bons valores morais. De fato, muitos relatos de viajantes europeus criticavam funes teatrais no Brasil exatamente pela aparente falta de tais valores, particularmente nos intervalos, quando

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entremezes e bailes eram executados no palco, muitas vezes incluindo o lundum, dana afro-brasileira reinterpretada pelas elites urbanas e considerada lasciva por observadores estrangeiros. Em 4 de janeiro de 1771, um ms antes de deixar a administrao da casa da pera de Vila Rica, Joo de Sousa Lisboa escrevia ao seu amigo Jos Gomes Freire de Andrade, recm-chegado a Vila Boa de Gois, argumentando de forma pouco ortodoxa mas bastante pragmtica sobre os efeitos teraputicos do teatro:1 O que mais sinto V.M.c mandar me dizer a m hospedagem que essa terra lhe deu, mas como princpio, poder esta mudar de condio e achar V.M.c melhoras na sua molstia, que por fora V.M.c havia de estranhar, porque lhe falta o mimo da corte, e vir achar nessa terra o limitado, e tosco dela, que o pior V.M.c no ter l nenhum, que se V.M.c h de vir agora na minha casa da pera, encontra duas raparigas de bom gosto, e esto representando com muita aceitao, que os que V.M.c viu eram de homens que j ningum os quer ver. Se eles no vo ao tablado, seguro lhe que V.M.c logo tinha sade e parece-me que V.M.c s com essa notcia sara. No me aproveito das dessa terra por quanto, como l estive e as vi, no s so desengano do mundo, seno tambm de ns mesmos.

No vendo a necessidade de exaltar o suposto papel virtuoso do teatro, o conselho de Sousa Lisboa para levantar o moral de seu colega refletia a motivao de boa parte do pblico: apreciar o talento e a bela figura das talentosas atrizes que atuavam no palco da casa da pera. Vozes e corpos masculinos tambm traziam pblico, mas pela informao de Sousa Lisboa, os cantores de Vila Rica andavam com a popularidade em baixa nos idos de 1771. Tambm h o aspecto da novidade, pois o costume naquela poca e local ainda era de homens representarem papis de mulheres. Em geral, a argumentao moralizante, ressaltando os aspectos educativos do teatro, no partia de empresrios e produtores, mas sim de autores buscando justificar sua existncia em um ambiente conservador, s vezes no muito simptico prpria existncia do gnero. Isso ilustrado nos escritos de Metastasio e, cerca de um sculo depois, em 1866, continua nesse caminho a argumentao de Castro Alves: 2 O teatro uma tribuna. de Beaumarchais. O teatro uma escola. de Hugo. Caminhai moos, ide ao teatro. Entrai homens do povo, bebei a luz daquele tabernculo. Mergulhai neste oceano de nobreza e de crimes, descei como o mergulhador indiano quele turbilho de paixes. Descei. [...] L no fundo est a prola. Esta prola uma ideia, ideia boa, santa e justa, ideia moral, ideia religiosa...

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Belo Horizonte, Arquivo Pblico Mineiro, Cdice CC1174, f. 46v-48r. Para essa e outras cartas de Sousa Lisboa, ver Apndice 4. CASTRO ALVES. Obras completas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1921, v. 2, p. 377-386. Apud: FARIA, Joo Roberto. Ideias Teatrais. So Paulo: Perspectiva, 2001, p. 399-405.

2

ESPAOS

Em 1878, Joaquim Manuel de Macedo manifestaria uma opinio menos idealista. O teatro ainda seria uma escola, mas os ensinamentos ali obtidos poderiam ser de outra ordem:3 Talvez que alguns pensem que a lamentvel falta de bom teatro dramtico seja de pouca importncia. Positivamente assim no . No teatro pode-se tomar o pulso civilizao e capacidade moral do povo de um pas. O teatro coisa muito sria. a mais extensa e concorrida escola pblica da boa ou da m educao do povo.

M educao, segundo a viso conservadora de Macedo, seria aquilo que ofereciam teatros como o Alcazar, ou Teatro Lrico Francs, imensamente populares no Rio de Janeiro graas aos trocadilhos obscenos, cancs e exibies de mulheres seminuas que teriam determinado a decadncia da arte dramtica e a depravao do gosto na cena teatral daquela cidade em meados do sculo XIX.4 Em suma, o dilema apontado na viso de Metastasio, Castro Alves e Joaquim Manuel de Macedo envolve a busca de equilbrio entre o sucesso comercial atravs do novo, do espetacular e do estimulante e os valores e expectativas morais, filosficas e estticas da poca, ou seja, a legitimao daquela atividade perante a sociedade conservadora que a mantm. Outra constante, que em parte se perpetua at os dias de hoje, a participao do Estado na construo e administrao de teatros e o seu uso na propagao da ideologia oficial. Um breve histrico das mais importantes casas de pera no Brasil do sculo XVIII ilustra algo dessa dinmica. Salvador Em Salvador, durante boa parte do sculo XVIII, tablados eram costumeiramente montados para a encenao de comdias espanholas. Um relato detalhado de uma dessas representaes foi impresso em 1727 no livro de viagens do francs Guy le Gentil de la Barbinais. Em fevereiro de 1718, durante a festa anual de So Gonalo, Barbinais assistiu representao de La Monja Alfrez, de Juan Perez de Montalbn em um tablado armado ao lado da capela dedicada quele santo, que Beatriz Cato Santos identifica como a Capela do Rio Vermelho (Fig. 3).5 Gravuras diferentes apareceram nas edies impressas em Amsterdam (1727) e Paris (1728). Em ambas h um grupo de folies carregando a esttua de So Gonalo, mas na segunda, a cena toda ocorre do lado de fora da Igreja, em frente a um tablado onde teria sido representada a comdia. Barbinais participou da festa de So Gonalo como convidado do vice-rei, o Marqus de Angeja, e registrou em seu livro alguns comentrios mais ou menos preconceituosos. Impressionou-se, sobretudo, com a mistura social dentro da Igreja, 3 4 5

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MACEDO, J. M. Memrias da Rua do Ouvidor. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p. 259-260. Ibid, p. 258-259. SANTOS, B. C. C. A festa de So Gonalo na viagem em cartas de La Barbinais. Via Spiritus, v.11, 2004, p. 221-238.

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onde padres, mulheres, monges, cavalheiros e escravos danavam e saltavam caoticamente, enquanto jogavam a esttua do santo de um lado para o outro. Barbinais tambm reconheceu a capacidade de mobilizao popular da festividade, que atraiu uma multido estonteante de gente.6 O Marqus de Angeja j havia demonstrado o quando gostava desse tipo de representao dramtico-musical um ano antes, nas festas organizadas em homenagem ao nascimento de seu neto. Naquela ocasio, entre os dias 21 e 25 de janeiro de 1717, foram representadas em um tablado em frente ao palcio as comdias El Conde Lucanor, Afectos de Odio y Amor e Rendirse a la obligacin.

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Fig. 3 : Fte religieuse portugaise l'glise de Saint-Gonzals d'Amarante. Gravura de Le Roux Durant. BARBINAIS, Nouveau voyage, 1727, v.3, p. 216. 6

BARBINAIS, G. L. G. Nouveau voyage autour du monde. Amsterdam: P. Mortier, 1728, p. 155-158. Essa edio no contm a gravura da Festa de So Gonalo. Ver Apndice 9.

ESPAOS

A pesquisadora Rosana Marreco Brescia tem estudado detalhadamente o histrico de tais construes no Brasil colonial e recentemente localizou na Biblioteca Nacional em Lisboa, o panegrico relativo ao evento, impresso por Miguel Manescal em 1718. O folheto traz informaes preciosas sobre a montagem e aparncia do tablado:7 Fabricou-se na frente do mesmo Palcio, na distncia de quarenta passos, o Teatro para as representaes Dramticas, sendo o modelo a fachada de outro Palcio, imitada com propriedade, e exornada com sua galantaria, por quanto havendo de fazer-se as representaes de noite com as tochas que ardessem nas janelas, ficasse a funo primorosamente luzida. Na mesma fachada se abriram trs prticos, assim para darem sada s figuras, como para descobrirem algumas perspectivas, conformes aos lances das Comdias. Nos lados do mesmo Teatro se levantaram Torres, e compuseram jardins, tudo com caprichoso artificio, e correspondente aos mesmos lances.

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Fig. 4: Folha de rosto de uma edio do incio do sculo XVIII da comdia El Conde Lucanor, de Caldern de la Barca, [s.e., s.d.]. Aplauso natalcio com que a cidade da Bahia celebrou a notcia do feliz primognito do Excelentssimo Senhor Dom Antonio de Noronha. Lisboa: Miguel Manescal, 1718. Agradeo a Rosana Marreco Brescia por ter gentilmente cedido transcries e imagens desse documento.

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Tablados de grandes dimenses, como o de 1717, poderiam continuar em funcionamento por vrios anos. Outra construo desse tipo, preparada sob ordem do Conde de Sabugosa, o vice-rei que sucedeu ao Marqus de Angeja, funcionava na Casa da Cmara e esteve em atividade durante cerca de quatro anos, at ser dasativado por ordem de dom Joo V. Em carta de 9 de outubro de 1733, o rei dirigia-se ao ouvidor Jos dos Santos Varjo, responsvel pela denncia, nos seguintes termos:8 Dom Joo por graa de Deus Rei de Portugal e dos Algarves daqum e dalm mar em Africa Senhor da Guin vos fao saber a vs Jos dos Santos Varjo, ouvidor geral da Comarca da Bahia que se viu a vossa carta de oito de maio deste presente ano em que me dveis conta de que entrando em correio na Casa da Cmara dessa cidade a vistes indecorosamente ocupada de um tablado de comdias e de uns palanques para assento do auditrio, permanecendo sempre armado h trs para quatro anos e que alm das representaes srias se passava a outras de injuriosos arremedos em oprbrio de vrias pessoas, por cuja causa parecendo- nos esta indecncia indigna de to veneranda Casa destinada somente para as mais graves dependncias e empregos da Repblica, mandastes vocalmente em presena dos oficiais da Cmara ao Procurador dela que dentro de quinze dias fizesse tirar aquele tablado e por que, passando quase o referido termo, tornando- vos Cmara, encontrastes nela persistente o mesmo teatro, sem que o dito Procurador desse a mais leve escusa desta omisso o mandastes prender, porm que tomando o Vice Rei como prpria querela, o Conde o mandou soltar, ficando o tablado na Cmara como dantes, e vendo as mais circunstncias que parecia comum nesta matria me pareceu que logo mandeis lanar fora da Casa da Cmara o tablado sem embargo de qualquer ordem do Vice Rei.

A carta seria enviada apenas em 21 de julho do ano seguinte, mas bem antes disso, em 25 de dezembro de 1733, o Procurador do Senado junto s Cortes de Lisboa, Diogo Falco, havia remetido Bahia o resultado da deciso do Conselho Ultramarino, revelando que a questo da legitimidade do teatro era apenas um detalhe na acirrada disputa local pelo poder:9 Pelo que respeita a querer o ouvidor Jos dos Santos Varjo intrometer-se na cobrana do Donativo Real e seu estabelecimento, ainda se no tem tomado a resoluo, porm a tenho aplicado e feito com que fosse haver pelo Procurador da Fazenda, a quem j falei nesta matria, como tambm ao Procurador da Coroa, a respeito das desatenes de mandar prender o dito Ouvidor em uma cadeia pblica ao Procurador do Conselho, em que ainda se no tomou tambm resoluo e s sim no que toca a demolir o tablado que nas Casas da Cmara mandou fazer o Conde Vice-Rei, ainda que sua custa, pois entendeu o Conselho Ultramarino se no devia perpetuar o mesmo tablado nas casas da dita Cmara e assim se manda passar ordem para que se no conserve.

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Pelas informaes contidas nos documentos, no possvel precisar se o teatro funcionava em uma das salas ou no ptio interno da Casa da Cmara.10 Estando 8 9

Salvador, Arquivo Histrico, Cartas de S.M. ao Senado, 1710-1745, cd. 27.1, f.149v-150r. Salvador, Arquivo Histrico, Cartas do Senado, 1731-1745, f.142r-146r. BOCCANERA, S. O theatro na Bahia, da Colnia Repblica (1800-1923). Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1924, p. 4-5. Boccanera cita Hypolitho Cassiano de Almeida como autor dessa observao,

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o tablado em atividade j por quatro anos, isso nos remete a 1729 ou mesmo 1728, ano em que Salvador comemorou o duplo casamento dos infantes de Portugal e Castela. Da festa constaram representaes de comdias na Praa do Palcio, hoje Praa Municipal, onde se situavam a Casa da Cmara e o Pao. A descrio impressa em 1729 revela que o tablado era uma construo complexa e cara, o que fortalece a hiptese de que alguns materiais tivessem sido reutilizados aps o desmonte, ou que o inteiro teatro tivesse sido transferido para o interior da Cmara, onde poderia ter permanecido em uso durante os anos seguintes.11 Outra construo efmera foi edificada na mesma praa por Bernardo Calixto Proena em 1760, seguindo diretrizes estabelecidas pelo Senado da Cmara para os festejos das bodas reais entre o infante dom Pedro e a princesa dona Maria.

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Fig. 5: Detalhe da folha 279 do cdice 27 das Atas da Cmara de Salvador.

O Arquivo Municipal de Salvador guarda documentos sobre a construo desse teatro, trazidos tona por Affonso Ruy em 1959. Ruy chamou a construo de Teatro da Praia, a partir de uma leitura equivocada das Atas da Cmara.12 Na ata da reunio do Senado da Cmara de 27 de setembro de 1760, h um borro justamente sobre uma das duas vezes em que grafada a palavra praa, embora a cedilha ainda seja visvel (Fig. 5), indicando que o tablado foi construdo na Praa do Palcio, em frente Cmara (Fig. 6, letra I), e no na cidade baixa.

registrada em seus comentrios s Memrias histricas e polticas da Provncia da Bahia, de Ignacio Accioly. Almeida supunha que o tablado havia sido armado em uma das salas da Casa da Cmara. 11

MATOS, J. F. Dirio Histrico das celebridades que na cidade da Bahia se fizeram em ao de graas pelos felicissimos casamentos dos Serenssimos Senhores Prncipes de Portugal e Castela. Lisboa: Manoel Fernandes da Costa, 1729, p.52-53. RUY, A. Histria do Teatro na Bahia. Salvador: Universidade da Bahia, 1959, p. 26-7.

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A viabilidade de uma construo desse tipo no Terreiro de Jesus (Fig. 6, letra P) reduzida, pois o espao j estava reservado para as cavalhadas que seriam realizadas durante as mesmas festas e seriam assistidas pelas autoridades do alto de um camarote, como descreve o mesmo documento. Duas atas registram detalhes sobre o contrato, a primeira delas, de 27 de setembro, traz algumas informaes sobre as produes opersticas:13 apareceu presente Bernardo Calixto Proena com o qual ajustou este Senado o representar na praa pblica desta mesma cidade trs peras nos dias que se lhe combinassem em aplauso da pblica alegria com que este povo estimou a fausta notcia do casamento da Serenssima Princesa do Brasil Nossa Senhora com o Serenssimo Infante Dom Pedro, todas pelo preo de hum conto de ris, obrigando-se o dito Bernardo Calixto a desempenhar esta funo com todo o devido asseio tanto de instrumentos, como de vesturio e tudo o mais de sorte que servisse de recreao, de alegria e de aplauso ao objeto que se oferecia este festejo

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Fig. 6: Plan de la Ville de St. Salvador. FRZIER, Relation du voyage, 1716.

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Salvador, Arquivo Histrico, Atas da Cmara da Cidade do Salvador, cd. 27, f. 279v e 285r. O borro na palavra praa aparece f. 279r. Reproduo diplomtica em SALVADOR. CMARA MUNICIPAL. Actas da Cmara: 1751-1765. Salvador: Cmara Municipal, Fundao Gregrio de Mattos, 1996, p. 247, 251 e 252.

ESPAOS

Detalhes sobre a construo dos dois tablados so fornecidos na ata da reunio de 22 de novembro, um ms depois de encerradas as festas: apareceu o Capito Bernardo Calixto Proena, o qual por ordem deste Senado tinha feito vinte e oito camarotes para acomodao da Cmara ou famlias dos oficiais dela e da Nobreza e poltico desta cidade para assistirem s peras, e composio da plateia para a diviso do povo e nobreza, e palanque para acomodao das mulheres comuns, como tambm um camarote levantado para nele assistir s cavalhadas deste Senado no terreiro de Jesus, e no mesmo um tablado tambm levantado para assistirem os Juzes que foram dos prmios assim como tambm uma tenda feita e assoalhada de madeira para o [ilegvel] [ilegvel]dor das cavalhadas, cujas obras todas havia ele dito Bernardo Calixto feito a sua carta e requereu na dita vereao o seu pagamento, e na mesma se ajustou na quantia de trezentos e sessenta mil ris, por haver na formao de ser este o preo mais barato por que se podiam fazer as ditas obras, de cuja quantia se lhe mandou passar mandado

A partir da anlise das atas no h como precisar se o teatro na praa era uma construo aberta ou fechada, embora o primeiro caso fosse mais comum. A ausncia de referncias posteriores tambm sugere que a construo era provisria, talvez apenas um tablado circundado por camarotes, alm de espaos para a plateia comum, que teriam sido desmontados no se sabe quanto tempo depois das representaes das peras Alexandre na ndia, Artaxerxe e Dido abandonada. 14 30

Fig. 7: Grand thtre a Bahia. Gravura de Bachelier. FROND, V.; RIBEYROLLES, C. Brazil pittoresco. Paris: Lemercier, 1861, gravura 41. 14

TORRES, M. C. Narrao panegyrico-histrica. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, n. 3, 1909- 1913, p. 414.

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As breves menes de Manuel Querino sobre o teatrinho na Rua do Saldanha e o Teatro do Guadalupe (tambm chamado pera nova, depois pera velha) publicadas em 1909 continuam sendo as principais informaes de que dispomos sobre casas de espetculos em Salvador nas ltimas dcadas do sculo XVIII. O primeiro teria sido palco dos eventos de uma quase-revoluo em 1798, servindo de refgio ao governador dom Fernando Jos. O segundo, no qual teriam se apresentado Damio Barbosa de Arajo, Jos Rebouas, Honorato Regis e outros, era de madeira e forrado de pano. Sua notoriedade entre cronistas posteriores deve-se ao fato de ter se situado prximo aos brejos da Rua da Vala e por receber constantes visitas dos anfbios que ali residiam.15 O carter anedtico destas informaes no se modificou nos ltimos cem anos, clamando por um aprofundamento das pesquisas nos arquivos histricos de Salvador. Em 1812, foi inaugurado o Teatro So Joo o primeiro grande teatro de pera brasileiro, com capacidade para at 2.000 pessoas. Em sua primeira dcada, o teatro foi visitado por Maria Graham Calcott e Louis-Franois Tollenare, que deixaram interessantes descries sobre o seu interior, pblico, artistas e repertrio.16 Recentes trabalhos de Lucas Robatto, Clara Rodrigues e Marcos Sampaio tm lanado luz sobre aspectos relativos ao repertrio, pblico e relaes trabalhistas, bem como a ideologia que permeou a concepo e construo do edifcio, iniciada em 1806, dois anos antes da vinda da corte portuguesa.17 Rio de Janeiro Em 30 de maro de 1750, um tablado ricamente decorado foi preparado no trio do Convento da Ajuda, em comemorao consagrao do edifcio (Fig. 8), onde se representou o oratrio de Santa Helena, ou SantElena al Calvario, de Metastasio (Fig. 9):18

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mandou o Ilustrssimo Excelentssimo Governador Capito General armar no trio da Portaria do Convento um tablado ornado de bastidores e vistas onde com todo dispndio mandou representar o Oratrio de Santa Helena obra do insigne cmico Matastario [Metastasio] recitado por excelentes msicos precedidos primeiro de uma maravilhosa sonata tocada na orquestra composta dos melhores professores curiosos do pas estando a portaria aberta e armada de vistosas e ricas Placas Espelhos que a faziam luzidssima

Esse no teria sido o primeiro tablado a ser erguido no Rio de Janeiro para uma representao teatral. A tradio remonta pelo menos ao governo de Salvador 15 16 17

QUERINO, M. Theatros da Bahia. Revista do Instituto Histrico da Bahia, v. 16, n. 35, 1909, p. 117-120. Ver Apndice 9. ROBATTO, L.; RODRIGUES, C. C.; SAMPAIO, M. S. O Teatro So Joo desta cidade da Bahia 1806-1821: a criao e o estabelecimento. Anais do XIV Congresso da ANPPOM. Porto Alegre: UFRGS, 2003. ROBATTO, L.; RODRIGUES, C. C.; SAMPAIO, M. S. Os primrdios do Teatro So Joo desta Cidade da Bahia. Revista da Bahia, Salvador, v. 32, n. 37, 2003, p. 62-67. JORDO, F. A. Relao da Procio das Religiosas Fundadoras que da Bahia viero em dia 21 de Nov. do anno passado de 1749 para fundarem o Convento de Nossa Senhora da Conceio e Ajuda no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, MS II34,15,45.

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Correia de S e Benevides, que em 1641 mandou representar uma comdia em um teatro especialmente montado para isso na praa da cidade. A tempestade que caiu na quinta-feira, 4 de abril, alterou os planos do governador, e a representao foi transferida para o salo do seu palcio.19 Quanto histria dos teatros fechados, permanentes, no Rio de Janeiro, o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti recentemente trouxe tona documentos que mostram que o histrico dessas casas de espetculos retrocede em pelo menos meio sculo a data at ento aceita por historiadores do sculo XX para a inaugurao da pera velha do legendrio Padre Ventura. Cavalcanti demonstra que, em 29 de novembro de 1719, uma sociedade comercial destinada a gerenciar um prespio, na verdade um teatro de marionetes, havia sido constituda no Rio de Janeiro por Plcido Coelho de Castro, responsvel pela produo dos bonecos, Manoel Silveira vila, pintor, e Antonio Pereira, encarregado da preparao de msica a quatro vozes e o cuidado com os instrumentos musicais.20 Rezava o contrato que o prespio deveria estar pronto para a noite de natal daquele ano, mas poderia continuar funcionando depois disso, pelo tempo que durasse a sociedade. Cavalcanti conjectura que outro teatro, dirigido pelo Padre Ventura e que passou a ser conhecido em fins do sculo XVIII como pera velha, teria sido tambm um teatro de bonecos em seus primeiros dias. Seria esta a casa descrita por um marinheiro francs, tripulante da nave LArc en Ciel, que esteve no Rio de Janeiro de 22 de abril a 10 de maio de 1748. A descrio, includa dcadas depois no livro de viagens do naturalista Pierre Sonnerat, mencionava marionetes de tamanho natural sendo usados em um auto sobre Santa Catarina e a converso de filsofos do Oriente. Segundo o viajante annimo, as marionetes eram bem feitas, ricamente decoradas, e tinham a voz e os movimentos agradveis, e o mecanismo feliz o suficiente para escapar vista. Ele tambm achou que a orquestra era suficientemente boa nos violinos, adicionando que havia um ingls que tocava excelentemente a flauta transversal.21 O marinheiro francs ainda descreveu com medidas precisas o interior do edifcio, permitindo que Nireu Cavalcanti desenhasse um plano conjetural. O prdio possua dimenses aproximadas s do Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, usado para representaes com marionetes, pelo menos desde o ano de 1733, com um repertrio formado principalmente por peras de Antonio Jos da Silva. Baseando-se em documentos recentemente encontrados pelo genealogista Gilson Nazareth, Cavalcanti infere que a casa descrita no relato de 1748 era a mesma mencionada em contratos de arrendamento de 1749 e 1754, assinados por Boaventura Dias Lopes nome completo do Padre Ventura e sua me.22 No documento de 1754, o 19

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Relao da aclamao que se fez na Capitania do Rio de Janeirodo Estado do Brasil & nas mais do sul ao Senhor Rei Dom Joo o IV por verdadeiro Rei e Senhor do seu Reino de Portugal com a felicssima restituio que dele se fez a Sua Magestade que Deus o guarde. Lisboa: Jorge Rodrigues, 1641. Disponvel em CAVALCANTI, N. O Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 171. Arquivo Nacional, 2 ofcio de notas, livro 28, p. 186v, 187r (29.11.1719). Por encontrar-se em pssimas condies, o livro est interditado para consulta; agradeo a Rosana Marreco Brescia pelo emprstimo de sua transcrio. SONNERAT, P. Voyage aux Indes Orientales et la Chine. Paris : Dentu, 1806, v. 4, p. 26-27. Para o texto completo em francs, ver Apndice. NAZARETH, G. Da identificao histrica atravs da biografia individual e coletiva, Brasil Genealgico Revista do Colgio Brasileiro de Genealogia, n. 54, v. 4, 1990, p. 10-17.

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msico profissional Salvador de Brito concordou em pagar a Lopes a quantia de 600$000 por dois anos de aluguel do prdio, agora chamado pera dos vivos j que atores haviam substitudo as marionetes em tamanho natural. O edifcio ficava na Rua do Marisco da Alfndega, hoje Rua da Alfndega, e o arrendamento inclua solfas e vestidos e bastidores e tudo que pertence representao da dita pera.23

Fig. 8: Fachada e ptio das festas do Convento da Ajuda no incio do sculo XX. Fotos de Augusto Malta. Arquivo do Estado do Rio de Janeiro.

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Fig. 9: Folha de rosto do oratrio SantElena al Calvario, de Metastasio. Viena: Van Ghelen, 1731. 23

Arquivo Nacional, 2 ofcio de notas, livro 70, caixa 12.922 (30 ago. 1754). Apud CAVALCANTI, N. O Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 173.

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Fig. 10: Localizao da pera Nova em mapas de cerca de 1760 e 1812.

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Em 1776, o prdio foi engolido pelo fogo durante uma encenao de Os encantos de Medeia, de Antonio Jos da Silva. O sinistro ficou impresso na memria coletiva da cidade e a histria tem sido recontada, vez aps vez, por cronistas e historiadores. A partir da, e at a chegada da Corte Portuguesa, espetculos de vrios gneros teatrais com ou sem msica seriam encenadas no Rio de Janeiro primariamente na pera nova, ao lado do palcio do Vice-Rei, na praa mais importante da cidade. Poucos historiadores ainda acreditam que a pera nova tivesse iniciado suas atividades apenas depois de 1770, opinio que era corrente durante a maior parte do sculo XX. Nireu Cavalcanti alerta para o fato de que que j antes de 1760 um teatro existia naquele mesmo lugar, pois um mapa de cerca de 1758, descoberto h alguns anos por Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha, traz a palavra pera logo acima da quadra onde se situava a pera nova (Fig. 10).24

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Fig. 11: Detalhe da Epanfora Festiva. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1763, p. 27-28.

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Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Cartografia ARC 025,06,001.

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Narrando as festividades em comemorao ao nascimento de dom Jos, filho de dona Maria e herdeiro do trono portugus, o folheto Epanfora festiva relata que, em maio de 1762, trs peras foram representadas em um teatro que se construiu na praa contgua ao Palcio de residncia dos Governadores (Fig. 11).25 Como parece demonstrar o mapa de 1758, uma casa da pera contgua ao palcio j existia, mas no lado oposto ao da praa. Embora o contexto parea indicar uma construo efmera especialmente montada para o evento, no se pode descartar a hiptese de que os espetculos tenham sido realizados na casa da pera e que o cronista tenha propositalmente criado um texto ambguo, dando a entender ao leitor que a casa da pera, que j existia, tivesse sido recm-construda. Por outro lado, a existncia de um teatro fechado no eliminaria a necessidade de um tablado em praa pblica, que permitiria a afluncia de um pblico muito maior do que a casa da pera. Os dirios de viagem do Morgado de Mateus mostram que em meados de 1765, o vice-rei, Conde da Cunha, costumava oferecer espetculos para seus convidados em um edifcio prximo ao palcio, identificado simplesmente como pera:26 [20 jun. 1765] O Sr. Conde tinha mandado preparar a pera e conduzindo ao Sr. Governador a ela, se divertiu, vendo representar Precipcios de Faetonte, com excelente msica e danas. [23 jun. 1765] [...] Veio o coche buscar o Sr. Governador para a pera, que neste dia se representou Dido abandonada, com excelente msica, e danas, e finda, se recolheu. [24 jun. 1765] [...] de tarde saiu para o Palcio e noite foi para a pera, que se executou Srio [Ciro] reconhecido, com excelente msica e danas; e acabada se recolheu para casa. [28 jun. 1765] No dia 28 esteve o Sr. Governador fechado com a dita escrita e noite veio o coche procur-lo para a pera e se executou Alexandre na ndia com excelentes danas e msica. [30 jun. 1765] No dia 30 foi o Sr. Governador pera, digo missa, vindo o coche a conduzi-lo, e de tarde foi para o Palcio onde ficou para ver a pera que se executou Adriano na Sria.

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Esse edifcio no poderia ser a pera velha, muito distante do palcio para cumprir as funes de teatro quase particular do governante, e tambm no parece ter sido uma construo efmera, pois Louis Antoine de Bougainville conheceu esse teatro em julho de 1767, ainda no governo do Conde da Cunha:27 25

Epanafora festiva, ou Relao summaria das festas, com que na cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil se celebrou o feliz nascimento do serenssimo prncipe da beira nosso senhor. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1763. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Seo de Manuscritos 21,04,14, mao 1, f. 16r-18v. BOUGAINVILLE, L. A. Voyage autour du monde. Paris: Saillant et Nyon, 1771, p. 77. Na segunda edio de 1772, o trecho encontra-se p. 137. A primeira traduo em ingls, de 1772, descreve a cena de forma um pouco diferente, sem julgar a qualidade da orquestra: We saw in a tolerable handsome hall, the best works of Metastasio presented by a band of mulattoes; and heard the divine composition of the great Italian masters, executed by an orchestra, which was under the direction of a hump-back priest, in his canonicals. A voyage round the world. Londres: J. Nourse, 1772, p. 75.

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Contudo, a ateno que nos dispensava o vice-rei continuou por mais alguns dias; ele at nos anunciou sua inteno de nos oferecer um jantar beira-mar sob um caramancho de jasmins e laranjeiras, e nos fez preparar um camarote na pera. Em uma sala assaz bela, ns pudemos assistir as obras primas de Metastasio, representadas por uma trupe de mulatos, e ouvir peas divinas dos grandes mestres italianos, executados por uma orquestra m dirigida por um padre corcunda em traje eclesistico.

bem provvel que o padre corcunda em traje eclesistico fosse o prprio Boaventura Dias Lopes, agora atuando na pera nova. A partir de documentos do Arquivo Nacional, Nireu Cavalcanti demonstra que, de 1766 a 1772