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MARIA JOSÉ REBECCA BUSNARDO
TECENDO A VIDA NOS FIOS DA POESIA
UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA PARA A IDENTIDADE
INFANTO JUVENIL
UNISAL Americana
2014
MARIA JOSÉ REBECCA BUSNARDO
TECENDO A VIDA NOS FIOS DA POESIA
UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA PARA A IDENTIDADE
INFANTO JUVENIL
Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação à Comissão Julgadora do Centro Universitário Salesiano, sob a orientação do Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa.
UNISAL Americana
2014
Catalogação: Bibliotecária Carla Cristina do Valle Faganelli CRB-8/9319
UNISAL: Unidade de Ensino de Americana
Busnardo, Maria José Rebecca.
B982t Tecendo a vida nos fios da poesia: uma proposta de intervenção pedagógica para a identidade infanto juvenil / Maria José Rebecca Busnardo. – Americana: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2014.186f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro
Universitário Salesiano - UNISAL / SP. Orientador (a): Prof. Dr. Severino Antonio Moreira Barbosa. Inclui Bibliografia.
1. Educação sociocomunitária. 2. Poesia. 3. Infância. I. Título. II. Autor
CDD 372.416
FOLHA DE APROVAÇÃO:
Autora: Maria José Rebecca Busnardo Título: Tecendo a vida nos fios da poesia: uma proposta de intervenção pedagógica para a identidade infanto juvenil
Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de mestre ao Programa de Mestrado em Educação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa.
Dissertação de Mestrado defendida e aprovada em 15/03/2014, pela Comissão Julgadora: Membro Externo: Prof. Dr. José Geraldo Marques _________________________ Membro Interno: Prof. Dr. Francisco Evangelista __________________________ Orientador: Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa ________________________
UNISAL Americana
2014
Ao meu esposo, Amarildo
Aos meus filhos, Bruno e Camila
Ao amigo eterno, Emílio
AGRADECIMENTOS
Ao Mestre Severino Antônio, cuja luz gostaria de poder sempre
evocar. Exemplo máximo do que, para mim, é ser pessoa humana,
educador e referência espiritual. Alma de perfume, de música e de
cor, que transforma nossa travessia.
Ao amado esposo e amados filhos, pelas presenças, sempre e
sempre.
Ao querido irmão, Dionísio, pelo exemplo e inspiração que sempre
foi em minha vida.
Ao “filho” Tiago, pela coragem e luta pela vida.
Ao amigo inesquecível Emílio Coelho Augusto, que possibilitou a
realização deste trabalho, mas que, infelizmente, não pôde vê-lo
terminado. Gratidão eterna.
Aos meus alunos e alunas, que me possibilitam um interminável
estar sendo.
Muito obrigada!
Sabemos agora que somos todos poeira de estrelas e que as estrelas são nossos ancestrais; e que somos irmãos dos animais
selvagens e primos das papoulas dos campos. Compartilhamos a mesma história cósmica. Seguramos o infinito do universo nas
palmas das mãos.
Trin Xuan Thuan
Resumo
A presente pesquisa busca compreender a possível contribuição da literatura – em especial a poesia – no resgate de memórias e na (re) construção da subjetividade da criança, por meio da escrita poética significativa, de tal forma que lhe possibilite outras leituras do ser e estar no mundo. A pesquisa qualitativa envolve alunos de sextos anos de uma escola pública municipal, de período integral, em Americana/SP, desenvolvendo atividades de leitura de poetas nacionais, e utilizando-se materiais audiovisuais, como forma de motivação para a produção textual. Como referencial teórico, fundamentamo-nos em Alfredo Bosi, Octávio Paz, Severino Antônio e Paulo Freire, dentre inúmeros outros. O objetivo primordial desta pesquisa é reconhecer a voz e autonomia de sujeitos invisíveis em nossa sociedade, bem como propor uma intervenção pedagógica transformadora, por meio da expressão escrita poética. O presente trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, são feitas algumas considerações sobre língua, linguagem, poesia e arte, bem como sua importância na vida do homem, tanto pela necessidade de comunicação, quanto – e especialmente – pela possibilidade, por meio da linguagem poética, de transformação e ressignificação da subjetividade da criança que vive em situação de ausências extremas: de família, de valores, de solidariedade, de afeto, etc., na sociedade contemporânea. No segundo capítulo, discorremos acerca da Educação e do Conhecimento, bem como de seu papel no restabelecimento do todo, na reestruturação e reunificação da fragmentação do saber e do homem. Reiteramos a necessidade de um novo pensar a Educação, voltada para a solidariedade, a ética e o respeito entre os homens, e destes com o planeta. No terceiro capítulo, descrevemos a pesquisa realizada com crianças de 11 e 12 anos, durante quatro meses, tempo em que foram desenvolvidas atividades de leitura e expressão escrita, tendo como referência a arte literária poética. As produções poéticas das crianças envolvidas foram consequência de atividades que trabalharam a imaginação, a criatividade e a sensibilidade, o que as fez aproximarem-se, sobremaneira, do contexto artístico literário. Além disso, todo o trabalho esteve voltado para a reflexão do ser, do estar no mundo e das possibilidades de transformações que a percepção de si mesmo e do outro pode trazer para a vida.
Palavras-chave: Educação Sociocomunitária; Poesia; Infância; Expressão Escrita.
Abstract
This research intents the comprehension the possible contribution of literature – especially poetry- in redemption of memories and (re)construction of children subjectivity, through writing significant poetry, in a way that it allows further readings of to be in the world. The research involves students of the 6th grade in a full-time public school, in Americana/SP, developing reading activities of national writers, and using audiovisual materials, as a stimulus for the production of texts. As theoretical reference we mostly based in Alfredo Bosi, Octávio Paz, Severino Antônio e Paulo Freire. The primary objective of this research is to seek autonomy and give voice to invisible subjects in our society, and to develop a transformative pedagogical intervention, by means of written poetic expression. This paper is divided into three chapters. In the first chapter, some considerations about the mother tongue, language, poetry and art and also its importance in human life, both the need for communication, as - and especially - the possibility, by means of poetic language, transformation and reinterpretation the subjectivity of the children who lives in a situation of extreme absences: family, value, solidarity, affection, etc., in contemporary society. In the second chapter, we discuss about education, knowledge, and its role in the restoration of the whole, the restructuring and unification of fragmentation of knowledge and the man himself. We reiterate the necessity for a new thinking about Education, focused on solidarity, ethics and respect among men, and those with the planet. In the third chapter, we described a survey of children aged 11 to 12 years, during four months, when activities were developed for reading and writing expression, with reference on the literary art of poetry. The poetic productions of the children involved were a result of activities involving imagination, creativity and sensitivity, what caused them to approach, intensely to the artistic literary context. Furthermore, all the work was focused on the reflection of being, of being in the world and the possibilities of change that perception of himself and the other can bring to life.
Keywords: Socio-Communitarian Education; Poetry; Infancy; Written Expression.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................09
CAPÍTULO I: NA MELODIA DA LINGUAGEM, NASCE A POESIA..............13
1.1- Linguagem: em busca do desvelamento de mundos................................13
1.2- As faces da Arte........................................................................................15
1.3- A poesia ressignificando a vida.................................................................21
CAPÍTULO II – EDUCAÇÃO: VOZES QUE ECOAM E CONSTROEM
DIÁLOGOS.......................................................................................................28
2.1- Educação: a medida de todas as coisas...................................................28
2.2- Algumas concepções modernas e contemporâneas de Educação..........32
2.3- Educação formal.......................................................................................44
2.4- Educação informal....................................................................................47
2.5- Educação não formal................................................................................49
2.6- Em busca de uma Pedagogia da autonomia............................................52
2.7- Ser criança e jovem: tragédia e comédia, o lirismo sempre presente na
tessitura da vida...............................................................................................56
2.8- A autoria de si mesmo: culturas infanto juvenis em tempos atuais..........59
CAPÍTULO III – TECENDO OS FIOS DA POEVIDA......................................63
3.1- O CIEP: um pouco da história..................................................................63
3.2- O CIEP “Anísio Spínola Teixeira” e o Projeto “Tecendo a vida nos fios
da poesia”........................................................................................................66
3.3- O “semanário de bordo”...........................................................................69
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................119
ANEXOS........................................................................................................124
APÊNDICE.................................................................................................. 126
9
Introdução
Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (...) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta (...). Trouxeste a chave? (Drummond)
Este trabalho resulta de antiga indagação e tomou forma de pesquisa,
buscando compreender a possível contribuição da literatura – especialmente o
gênero poético – como elemento propulsor no resgate de memórias da criança
e sua (re) construção de subjetividade por meio da expressão escrita poética,
tornando-a significativa, de maneira a promover outras leituras do ser e estar
no mundo, e poder se constituir como uma ação educacional transformadora
para a criança.
Propõe-se a discussão de concepções de mundo – por meio de
conceitos como violência, amor, escola, família, o “eu” – e, através da reflexão
com a poesia (gênero literário que impulsiona a razão, a imaginação e a
expressão), deixar margem à interpretação/autoria dos sujeitos envolvidos.
Dessa forma, pretende-se, também, encaminhar a construção do
conhecimento linguístico, não apenas de maneira pragmática no processo de
comunicação, mas de forma que a criança veja e atribua sentido às coisas que
a cercam, ao mundo em que está inserida e a si própria, pela linguagem
poética.
A pesquisa envolve alunos de duas classes de sextos anos de uma
escola de período integral da rede municipal de ensino de Americana, com
abordagem predominantemente qualitativa.
Para tanto, estão sendo desenvolvidas atividades de leitura e escrita de
textos literários de variados poetas brasileiros.
Materiais audiovisuais, como vídeos de animação, músicas variadas,
trechos de filmes, clipes de músicas também são utilizados como motivação e
provocações para o desenvolvimento das atividades.
10
Compõem o quadro referencial teórico autores como Alfredo Bosi, Ezra
Pound, Severino Antônio, Rainer Maria Rilke, Edgar Morin, Octávio Paz, Ernst
Fischer, Ivonne Bordelois, Paulo Freire e Walter Benjamin. Como fonte de
produções poéticas, oferecemos às crianças participantes das atividades,
obras dos poetas: Bartolomeu Campos de Queirós, Vinícius de Moraes, Mário
Quintana, Cecília Meireles, Cora Coralina e Carlos Drummond de Andrade, em
meio a outros tantos. A escolha desses mestres da poesia foi extremamente
difícil, dadas as constelações que povoam o universo poético nacional.
Com o advento da Lei de Diretrizes e Bases nº 9394/96, é repensado o
conceito de produção textual, antes categorizado em tipologia – narração,
descrição e dissertação- e destinado a correções ortográficas e gramaticais na
maioria das vezes. A produção textual assume seu caráter social de forma de
expressão de sentidos, destinada a estabelecer vínculos, criar laços e amarras
entre um sujeito que escreve e outro que lê/ouve e sente.
Assim, por meio da expressão escrita, sobretudo a poética, busca-se dar
voz a crianças emudecidas ou meras reprodutoras de discursos dominantes,
dos quais estarão sempre à deriva.
A língua, por um lado, é formadora de cultura, representação simbólica
de marcas que trazemos no corpo e memória, forma de participarmos do
mundo, de transformá-lo, de reinventá-lo. Por outro, a língua é um dos
primeiros instrumentos de opressão social, cultural, econômica e política de um
povo, mas, através da linguagem poética, pode ser o antídoto mais eficaz
contra esse status quo, já que pode promover a construção do respeito - a si e
ao outro-, da alteridade, da valorização de sua cultura e resgate de suas
memórias.
A escrita, há muito, está presente na história da humanidade, sobretudo
nas obras de arte, eternas formas de expressão de ver, sentir e (re) criar o
mundo:
(...) a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa. (RILKE, 2007, p.23).
11
Rilke, em uma de suas correspondências com o jovem Kappus,
aconselha-o sobre a importância do voltar-se para dentro de si, de seu mundo,
suas lembranças e vivências pessoais a fim de compor o trabalho com a
linguagem, a poesia: obra de arte literária:
(...) utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. (...) para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. (...) Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. (...) voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida. (RILKE, 2007, p.26-27)
A literatura, particularmente a poesia, potencializa a função catártica da
obra de arte, podendo trazer à tona elementos estruturais para a formação de
um novo sujeito, ou um sujeito em formação, capaz de dar voz às suas ideias,
seus pontos de vista, seus valores, enfim, seu mundo.
O presente trabalho está dividido em três capítulos, a saber:
No primeiro capítulo, são feitas algumas considerações sobre língua,
linguagem, poesia e arte, bem como sua importância na vida do homem, tanto
pela necessidade de comunicação, quanto – e especialmente – pela
possibilidade, por meio da linguagem poética, de transformação e
ressignificação da subjetividade da criança que vive em situação de ausências
extremas: de família, de valores, de solidariedade, de afeto, etc., na sociedade
contemporânea.
No segundo capítulo, discorremos acerca da Educação e do
Conhecimento, bem como de seu papel no restabelecimento do todo, na
reestruturação e reunificação da fragmentação do saber e do homem.
Reiteramos a necessidade de um novo pensar a Educação, voltada para a
solidariedade, a ética e o respeito entre os homens, e destes com o planeta.
No terceiro capítulo, descrevemos a pesquisa realizada com crianças de
11 e 12 anos, durante 4 meses, tempo em que foram desenvolvidas atividades
de leitura e expressão escrita, tendo como referência a arte literária poética. As
produções poéticas das crianças envolvidas foram consequência de atividades
12
que trabalharam a imaginação, a criatividade e a sensibilidade, o que as fez
aproximarem-se, sobremaneira, do contexto artístico literário. Além disso, todo
o trabalho esteve voltado para a reflexão do ser, do estar no mundo e das
possibilidades de transformações que a percepção de si mesmo pode trazer
para a vida.
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CAPÍTULO I
NA MELODIA DA LINGUAGEM, NASCE A POESIA
Para bem criar passarinho é necessário ter o corpo capaz de escutar o silêncio das pedras, o som do vento nas folhas, o ruído de soluços preso em garganta. Isso se alcança afinando bem os sentidos, para perceber sopros de flauta, cordas de harpa e murmúrios das perguntas e lembranças.
Bartolomeu Campos de Queirós
Pra bem criar passarinho Você tem que ser solto
Porque preso Parece que você
É um esboço! Luís Fernando – 6º A
1.1 – Linguagem: em busca do desvelamento de mundos
Desde a Antiguidade, estudiosos debruçam-se sobre pesquisas para
tentar entender como se dá a aquisição da linguagem pelo homem,
relacionando a linguagem à mente, ao cérebro, à alma e ao coração. Dentre a
vasta relação, a título de exemplificação da diversidade, figuram Aristóteles,
William Harvey - o médico britânico do século XVI que detalhou corretamente o
sistema circulatório -, René Descartes, Francis Bacon e John Locke.
No século XX, com o aprofundamento das pesquisas e o surgimento da
Línguística, surgiram estudiosos como Ferdinand Saussure, Noam Chomsky,
Roman Jakobson, em meio a tantos outros modernos e contemporâneos.
Não bastantes as divergências postuladas por esses pesquisadores, a
confluência está na consideração de que a linguagem é o principal meio de
comunicação humana.
14
O pensador setecentista, Jean-Jacques Rousseau, que transitava por
várias dimensões do conhecimento humano, também discorreu acerca da
língua e da linguagem:
A palavra distingue os homens entre os animais; a linguagem, as nações entre si – não se sabe de onde é um homem antes de ter ele falado. (...) A língua de convenção só pertence ao homem e esta é a razão por que o homem progride, seja para o bem ou para o mal, e por que os animais não o conseguem. Essa distinção, por si só, pode levar-nos longe. Dizem que se explica pela diferença de órgãos. Gostaria de conhecer tal explicação. (ROUSSEAU, 1973, p.165 e 169)
Também acerca da linguagem, Pound (2006, p.37-38) afirma que “O
estadista não pode governar, o cientista não pode comunicar suas
descobertas, os homens não podem se entender sobre a ação mais
conveniente, sem a linguagem.”
Numa abordagem um tanto pragmática sobre linguagem e literatura,
Pound ressalta a importância que ambas ocupam na vida das pessoas e em
sua sobrevivência como nação:
(...) os escritores têm uma função social definida. (...) os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente. (...) A linguagem é o principal meio de comunicação humana. (...) Se a literatura de uma nação entra em declínio, a nação se atrofia e decai. (...) A Grécia e Roma civilizaram via linguagem. (...) Roma se elevou com o idioma de César, Ovídio e Tácito e decaiu num banho de retórica, a linguagem dos diplomatas, “feita para ocultar o pensamento”. (POUND, 2006, p. 36-37)
É através dela que o homem se relaciona com os seus semelhantes,
transformando-os, sendo transformado e transformando o mundo. Contendo-a
e sendo contido por ela.
Na fala de Morin (2002, p.37):
A linguagem, portanto, é a encruzilhada essencial do biológico, do humano, do cultural, do social. A linguagem é uma parte da totalidade humana, mas a totalidade humana está contida na linguagem. (...) A língua vive como uma grande árvore cujas raízes atingem o mais fundo da vida social e cerebral, cuja copa resplandece no céu das ideias ou dos mitos, cujas folhas farfalham em miríades de conversas. A vida da linguagem é muito intensa nas gírias e poesias, nas quais as palavras acasalam-se, gozam, enchem-se de conotações que invocam e evocam, com a explosão de metáforas, o desabrochar de analogias, frases sacudindo as cadeias gramaticais, alcançando a liberdade. (...) O homem se faz na linguagem que o faz.
15
Ivonne Bordelois, em sua obra “A Palavra Ameaçada”, faz um alerta a
todos os usuários da palavra – leitores, falantes, escritores, ouvintes – sobre o
aniquilamento da consciência linguística, no mundo contemporâneo, o
emudecimento poético frente à ditadura tecnológica que estamos vivendo. Ao
mesmo tempo, ela propõe que celebremos a palavra, a chave para o
conhecimento, para o prazer e para a consciência artística.
Para ela, a linguagem é tão necessária à vida do homem como o próprio
alimento. Todavia, o que se constata, nas grandes cidades, é uma ausência
total de escuta poética, perdida na poluição sonora dos grandes centros
urbanos.
Uma forma de se respeitar a linguagem é estudar a etimologia das
palavras.
É preciso ter gosto pela linguagem e poesia, como saída para que a
palavra deixe de ser ameaçada, segundo Bordelois (2005, p.111):
Assim como a chuva surge d´água e para a água volta, assim como o mar ascende aos céus para regressar para si,assim também a poesia emerge da linguagem e à linguagem retorna, purificando-a em sua viagem desde os abismos às alturas mais remotas.
Em relação à linguagem, Walter Benjamin dizia que as ideias possuem
um recinto próprio, que é a linguagem. A redenção dos seres humanos
dependia da recuperação das vivências da humanidade em sua origem, e a
mais marcante de todas essas vivências foi a gênese da linguagem, pois,
através dela (o “Verbo”) Deus criou o mundo. Na linguagem adâmica, os
nomes das coisas correspondiam a elas; depois da expulsão do paraíso, a
linguagem passou a ser um instrumento meramente comunicativo. Nos anos
trinta do século vinte, a linguagem – sua degradação – passa a ser analisada
como consequência da ascensão da burguesia ao poder e ao modo de
produção capitalista.
1.2 – As faces da Arte
16
O homem é um ser inacabado que anseia incorporar o mundo em que
vive. Deixar suas marcas e fazer-se marcar por outras. Busca uma constante
integração com o “todo”, num desejo de identificação.
Sabedor de suas limitações e na busca pela sua completude, ele encontra
na Arte seu reflexo, suas respostas e seu complemento. Fischer (1976, p.13)
reforça esse sentido da arte: “A arte é o meio indispensável para essa união do
indivíduo com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação,
para a circulação de experiências e de ideias.”
Bertolt Brecht (2005), numa visão não-aristotélica, de caráter marxista,
especialmente do drama, defende que a arte – o teatro- deve promover um
apelo à ação, a mecanismos de movimentação social. A obra de arte deve
“apoderar-se” da platéia para que possa ser considerada obra artística
efetivamente, de tal forma que não haja possibilidade de passividade, mas de
ação.
Toda obra de arte é produto da criação humana. Nela, o homem revela
como vê o mundo e como se vê nele – e tudo que os envolve nessa mesma
constelação.
Muito se tem falado a respeito de arte, seus reflexos e poderes sobre o
homem.
Bruno Pucci (2006), em seu texto “O riso e o trágico na indústria cultural:
a catarse administrada”, em brilhante análise, faz referência a Theodoro
Adorno e seu ensaio “Teoria da Semiformação”, no qual se verificava que a
burguesia, quando da conquistar do poder nos países europeus, demonstrava
maior desenvolvimento cultural do que os senhores feudais. A formação
burguesa era distinta e elevada, o que ratificava sua posição como classe
hegemônica, desempenhando tarefas econômicas e administrativas. No
entanto, o proletariado, composto por camponeses, pequenos artesãos,
comerciantes e os trabalhadores fabris, cumpriam extensas jornadas de
trabalho, sem que houvesse tempo para se dedicarem às “coisas do espírito”,
sem formação cultural: “A desumanização implantada pelo processo capitalista
de produção negou aos trabalhadores todos os pressupostos para a formação
e, acima de tudo, o ócio.” (ADORNO, 2003, p.6).
17
Ainda de acordo com Pucci (2006), depois de insistentes batalhas,
trabalhadores regridem aos poucos a sua “jornada”, mas a classe burguesa
continua o processo de exclusão para a formação dos trabalhadores. A
burguesia nega as condições de formação, entretanto, possibilita uma imitação,
uma cópia, um “arremedo de formação”.
Aparentemente livre para as “coisas do espírito”, o empregado, na
verdade, tem seu tempo “ocioso” transformado em prolongamento do trabalho,
pois essa “liberdade” passa a ser preenchida pela indústria cultural.
De acordo com Horkheimer e Adorno (1986, p.123)., ela se encarrega de
“(...) ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a
chegada ao relógio-de-ponto, na manhã seguinte.”
O riso e o trágico são expressões humanas manipuladas pela indústria
cultural, cujos objetivos são: manter as pessoas, ao mesmo tempo, ocupadas e
distraídas, mas conectadas às milhares de informações que invadem seu
universo. As pessoas extravasam as suas emoções, seus sentimentos e
aliviam suas tensões, apaziguam seus corações e consciências através do riso
e do trágico. No entanto, não há acréscimo espiritual.
A palavra kathasis, cuja origem se deu na medicina antiga, era traduzida
por liberação do que era estranho ao organismo, do que causava perturbações,
ou seja, aquilo que causava purgação, desembaraço, alívio.
Catarse é, portanto, uma forma de purificação e de absolvição dos atos
injustos mediante sacrifícios. O processo catártico é uma forma de o homem
alcançar a paz interior, a paz perante os outros homens, de livrar-se da culpa,
preservar-se do mal.
Para Platão, catarse confirma a ideia de purificação, de conservação do
bem estar espiritual, da libertação da alma em relação à materialidade, aos
prazeres, aos desejos. É uma forma de reencontrar a sabedoria.
Por sua vez, Aristóteles utiliza o termo catarse com duas conotações:
como purgação, purificação, no sentido médico, fisiológico, físico, biológico;
numa abordagem estética, tem sentido de “libertação ou serenidade que a
poesia e a música provocam no homem” (ARISTÓTELES, apud PUCCI, 2006,
p.99). Ouvir cantos sacros impressiona a alma, provoca uma sensação de cura,
18
de purificação. Aristóteles foi o pioneiro na concepção de catarse como
expressão estética.
Em sua obra “Poética”, discorrendo acerca da definição de tragédia e
suas partes ou elementos essenciais, afirma:
É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.” (ARISTÓTELES, 1973, p.447)
Goethe enfatiza o equilíbrio das emoções na interpretação aristotélica da
catarse: é um fenômeno que conserva a dimensão médica, uma vez que cura o
corpo e também o espírito; a catarse não anula as emoções, mas diminui as
tensões presentes nas emoções, de tal forma que a razão consiga administrá-
la.
Nietzsche (1996, p.49 e 84), por sua vez, ao discorrer acerca da arte
dionisíaca, afirmava que o homem era levado ao máximo de suas
potencialidades, que ele experimentava e exprimia sentimentos desconhecidos,
ao mesmo tempo em que participava do sofrimento da existência, da sabedoria
e, “no fundo da alma do mundo, anunciava a verdade.”
Para ele, a arte é, simultaneamente, apolínea e dionisíaca: um não
poderia viver sem o outro, uma vez que se completam, se harmonizam. Apolo é
o deus da expressão, da beleza. Por outro lado, encontramos também em
Apolo uma linha de ponderação, o equilíbrio nas emoções mais violentas. “É o
deus da lógica, da coerência interna, do equilíbrio perfeito.”
Dionísio representa o mundo da embriaguês, do “estado narcótico”, em que os
homens se libertam de suas teias culturais. Ele desperta a vontade de viver no
indivíduo.
A experiência dionisíaca oferece ao homem a possibilidade de ser
poderosamente negativo, crítico, pessimista. O homem chega a se sentir
impotente, inútil. O conhecimento do verdadeiro mata a ação; para agir, é
imprescindível que “sobre o mundo paire o véu da ilusão”.
19
Por outro lado, a arte apolínea é fundamental para trazer o homem
dionisíaco de volta ao mundo cotidiano, com suas tristezas e dificuldades. No
entanto, um homem fortalecido e renovado.
Na Alemanha da segunda metade do século XIX, segundo Nietzsche, a
cultura, a arte transformam-se em bens que ficam à mercê das leis do
mercado. Tanto a cultura quanto a arte transformam-se em arremedos, perdem
sua potencialidade crítica.
Adorno e Horkheimer, mais de meio século depois, novamente discutem
as críticas de Nietzsche em relação à cultura e à arte “democratizadas” e
mostram como a indústria cultural precisa administrar o trágico, para que
continue a se reproduzir: homo homini lupus est.1, segundo Hobbes.
Nas tragédias gregas, a arte suavizava as feridas, era purgativa,
emancipatória.
Hoje, nos filmes comerciais, nos programas de entretenimento, na mídia
impressa, o trágico apresenta-se como “o resultado punitivo dos que infringem
os valores vigentes, não seguem as prescrições das instituições estabelecidas”
(2006, p.105)
Adorno faz uma proposta: “desbarbarizar” a sociedade como a ação
mais urgente e necessária da educação:
É preciso que a escola tome ou retome em suas mãos o processo de formação cultural; que favoreça o esclarecimento, a reflexão crítica e as formas de resistência ao império cada vez mais dominante das máquinas sobre as pessoas, pois o progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao progresso da humanidade das pessoas, e fortalece um modo de ser acrítico, pré-reflexivo, não racional e não espiritual. (ADORNO, 1995, p.155)
No mundo contemporâneo, segundo o mesmo autor, devido ao processo
de semiformação cultural, percebe-se que aquilo que perturba, que é estranho
ao organismo, ao espírito, não é mais purificado pela arte, mas que sofre um
processo de “camuflagem”, reveste-se de brilhos e cores, enganando as
pessoas com uma pseudo sensação de alívio, uma vez que resulta de uma
pseudo arte.
Se um dos resultados benfazejos da catarse estética era gerar, em
seus participantes, a purgação espiritual para que pudessem aguçar
1 Tradução: “O homem é o lobo do homem”.
20
os elementos de resistência e de confronto à realidade adversa, na
arte sem sonho destinada ao consumo, o que se processa é uma
catarse às avessas: sua pseudopoética leva os participantes à
identificação integral com o todo, à fusão impessoal com o real.
(HORKHEIMER, M.; ADORNO,T.W.,1986, p.124)
Walter Benjamin, em seu livro “A Obra de Arte na Época de sua
Reprodutibilidade Técnica” (apud KONDER, 1999, p.56), defende a ideia de
que a obra de arte está envolta numa aura, que a torna singular, única. Porém,
com o advento daquilo que Adorno chamou de indústria cultural, referindo-se
especialmente ao cinema, essa aura tende a diluir-se nas inúmeras
reproduções que são feitas da produção artística. Assim, o caráter de objeto
único, singular, sagrado, do qual a obra artística se reveste, acaba por se
descaracterizar.
Não obstante as abordagens acima, há que se sentir a arte com outro
olhar: a Arte transforma o homem, especialmente para melhor. Se pode
transformá-lo, também o fará em relação ao mundo.
A arte tem o poder de religar o individual ao coletivo, o homem à
natureza, o homem ao outro homem, o homem a ele mesmo. Ela carrega em si
a potencialidade de “restaurar a unidade humana perdida” (FISCHER,1976, p.
52)
Um artista se expressa a partir do que vê e sente do mundo, deixando
seus registros como depoimento de seu tempo, dos valores, das coisas
importantes e das insignificantes, se assim o desejar. Conhece-se uma
determinada época e o homem que nela existe, através dos olhos do artista e
sua obra, não apenas por documentos e registros históricos oficiais. Na maioria
das vezes, o espírito humano de determinado período só nos é desvelado por
meio de uma obra artística.
Da mesma forma que uma obra de arte pode elevar o homem aos mais
fragmentados estados, pode fazê-lo atingir o estado mais completo, mais
íntegro e total de sua humanidade.
Ela é necessária para que o homem possa conhecer o mundo e
transformá-lo, pela magia que carrega em si.
Em sua concepção de arte, Fischer (1976, p. 19) sabiamente diz:
(...) a arte jamais é uma mera descrição clínica do real. Sua função concerne sempre ao homem total, capacita o “Eu” a identificar-se com
21
a vida de outros, capacita-o a incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser.
Mais adiante, assim se refere à obra artística:
A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-lhe a determinação de torná-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria é uma realidade social. (FISCHER, 1976, p.57)
Se a arte tanto ajuda a pessoa a suportar sua realidade quanto a
modificá-la, o Projeto “Tecendo a vida...” se fortalece ainda mais, porque
propõe momentos de encantamento, de sublimação e de reflexão sobre uma
possível (re) construção, pela arte poética.
1.3 – A poesia ressignificando a vida
As palavras aí estão, uma a uma: porém minha alma sabe mais.
Cecília Meireles
Minha alma é do século passado eu é que sou recente
Entre canecas de café o meu cão me olha,
(séculos sentidos de amor) e o silêncio no chão,
furando o tapete.
Dionísio Rebecca
A arte literária, cuja matéria prima é a palavra, e que existe há milênios,
trabalha com dois conceitos: a (re) criação e a representação.
O autor inventa uma situação, explorando sua imaginação, criatividade e
sensibilidade, e cria uma realidade imaginária. No entanto, esse universo
imaginário é uma forma de representação do mundo real.
Dessa forma, a literatura – como obra de arte - é uma maneira que o
escritor tem de representar a realidade, utilizando uma linguagem carregada de
significados, de sentidos, de símbolos.
Octávio Paz, em “O Arco e a Lira”, nos ensina:
A palavra é um símbolo que emite símbolos. O homem é homem graças à linguagem, graças à metáfora original que o fez ser outro e o separou do mundo natural. O homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo. (1982, p.42).
22
Na concepção de Ezra Pound (2006, p.41), as palavras são
carregadas de significado por três maneiras: pela fanopéia, melopéia ou
logopéia, ou seja, pela produção de imagem visual na imaginação do leitor;
pela exploração de sons produzidos pelas palavras, e pela combinação dos
conteúdos e formas das palavras para a obtenção de um resultado estético
desejado.
Estendendo seu raciocínio, numa imagem clara sobre a literatura, afirma
que “Literatura é linguagem carregada de significado (...). Literatura é novidade
que permanece novidade” (POUND, 2006, p.32-33).
No entanto, os efeitos que as palavras podem causar no leitor não
podem se limitar a essas três características. O próprio Pound (2006, p.49)
orienta que “o termo `significado´ não pode se restringir a significações
estritamente intelectuais ou `puramente intelectuais´”, o que estendemos a
técnicas.
Para Bosi (2010, p.19): “A imagem é um modo da presença que tende a
suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua
existência em nós.”
Quando se fala em poesia, não há como deixar de mencionar a divisão
clássica aristotélica dos gêneros literários, quais sejam: lírico, épico e
dramático.
Para Aristóteles, a poesia, bem como a tragédia e a epopéia, eram
imitações:
A epopéia, a tragédia, assim como a poesia (...) todas são, em geral, imitações. (...) Pois tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras (por arte ou por costume), assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente. Por exemplo, só de harmonia e ritmo usam a aulética e a citarística e quaisquer outras artes congêneres, como a siríngica; com o ritmo e sem harmonia, imita a arte dos dançarinos, porque também estes, por ritmos gesticulados, imitam caracteres, afetos e ações. (ARISTÓTELES,1973, p.443)
Mais adiante, refletindo sobre a origem da poesia, revela:
Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois,
23
de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. (...) A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]. Os de mais baixas inclinações voltaram-se para as ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e encômios. (Idem, ibidem p.445)
A literatura brasileira teve suas origens na colonização européia
portuguesa, que trouxe consigo a influência da tradição greco-romana, pautada
em Aristóteles.
Desde o Romantismo, mais ainda do Modernismo e atualmente, a
rigidez na divisão dos gêneros literários deu lugar a uma flexibilização, a uma
“contaminação” entre eles: efeitos da maior liberdade proposta pela concepção
artística modernista.
O foco de nossa atenção está na poesia - obra literária – como
referência para o desenvolvimento deste trabalho, por inúmeros motivos,
dentre os quais recorremos a Morin para explicá-lo:
A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais que a literatura, leva-nos à dimensão poética da existência humana. Revela que habitamos a Terra não só prosaicamente – sujeitos à utilidade e à funcionalidade -, mas também poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor, ao êxtase. Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério, que está além do dizível. (MORIN, apud ANTÔNIO, 2010,p.26)
Já no final do século XIX, Max Weber expressava seu
“desencantamento do mundo”, em decorrência do ideal capitalista moderno e
suas ações na vida do homem, e propunha, como antídoto, um resgate de
tradições, de mitos, de antigas crenças.
Hoje, mais que antes, a poesia é bem vinda porque “o mundo onde ela
precisa subsistir tornou-se atravancado de objetos, atulhado de imagens,
aturdido de informações, submerso em palavras, sinais e ruídos de toda sorte.”
(BOSI, 2010, p.260).
Apesar de tudo, ela resiste. Talvez a forma mais genuína de resistência
às barbáries humanas:
A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, “esta coleção de objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se
24
recorta no horizonte da utopia. Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um ou outro pseudovalor formal vigente – e, daí, obliquamente ideológico – venha a cruzar o seu jogo verbal.) (BOSI, 2010, p.169)
O mundo moderno exilou a poesia, tornou-se antipoético ao mais
elevado grau. É preciso poetizar a educação, a convivência, a existência, caso
contrário, estaremos fadados ao embrutecimento, à perda do pertencimento à
humanidade. Nesse sentido, Severino Antônio (2009, p.120):
A poesia não separa, mas religa o pensar e o sentir, o perceber e o imaginar, a criatividade e a comunhão. Assim, desperta e desenvolve a capacidade de interpretar. Revela-se imprescindível para o educar a capacidade de interpretação: mais do que as linhas, as entrelinhas. Ensina-nos a reconhecer a multiplicidade de sentidos, nos textos e no mundo, assim como nas nossas existências.
Dessa forma, a criação poética é a recriação da própria vida, nas
memórias que resgatamos e que, inúmeras vezes, gostaríamos de deixar no
esquecimento.
Entretanto, a expressão poética pode ser a oportunidade de se ter voz,
de transformação, de criação de sentido para a vida, exatamente trabalhando
essas mesmas memórias-vivências resgatadas.
Neste mundo em que habitamos, cada dia mais voltado para os
interesses econômicos em detrimento dos sociais, as relações pessoais sofrem
os reflexos da corrida desenfreada para a aquisição de bens materiais. Isso
provoca modificações no universo pessoal, afetivo e emocional das pessoas, já
que aqueles que não têm condições econômicas, em geral são cada vez mais
excluídos de um contexto social que os valorize como pessoas, reforçando,
cada vez mais, as desigualdades sociais, tão flagrantes em nossa sociedade.
Em busca dessa valorização, as pessoas – especialmente as crianças –
se expõem nos meios de comunicação tecnológicos, sobretudo nas redes
sociais. Essa exposição, além de tornar evidente a valoração do espaço virtual
em detrimento do real, ressalta o sentimento de solidão, de não pertencimento,
não compartilhamento de valores que têm provocado dificuldades no
25
estabelecimento de contatos pessoais e comunicacionais mais profundos entre
as pessoas.
Por outro lado, as novas tecnologias trazem novos acessos às
informações, novas maneiras de organização e mobilização das e entre as
pessoas. É também uma maneira bastante eficaz de divulgação de
conhecimentos, podendo transformar a vida daqueles que, por exemplo, têm
como única opção o estudo a distância, através dessas tecnologias. Da mesma
forma, pode-se ter acesso ao universo cultural – filmes, museus, concertos,
dentre outros – pela utilização das novas tecnologias.
Nesse contexto – ou também decorrente dele – há que se mencionar o
papel da escola pública nessa mesma sociedade. Não cabe aqui dissertar
sobre este assunto, mas é fundamental uma colocação: em geral, a escola não
vem cumprindo sua função. Ao contrário, ela contribui para o fortalecimento do
caráter excludente de camadas sociais menos favorecidas, reforçando o
discurso daqueles que detêm o poder/controle. Fortalecendo essa ideia,
recorremos novamente ao pensamento de Severino Antônio (2002, p.106-107):
Temos dificuldades extremas com a nossa escola, especialmente a pública, que vive momentos desesperadores. A crise é tão grande que pode parecer estranha esta proposta de poetizar a educação. (...) A convivência com os símbolos, tão intensa na prática da poesia, torna-se educação para a vida, para compreender e transformar a vida, tanto no sentido individual como no coletivo. Contra a miséria da educação, é necessária uma pedagogia viva, capaz de despertar e desenvolver capacidades latentes e energias adormecidas, capaz de educar a sensibilidade e de educar a inteligência. A poesia, sendo poesia, participa da construção dessa pedagogia crítica e criadora.
Assim, é possível reverter o quadro, é possível através da poesia. A
poesia é uma das muitas formas de criação de que o ser humano dispõe. E
temos necessidade de criação para representar e transformar a vida, o mundo,
a realidade, e nos fazer ouvir.
A linguagem poética cria mundos, tece vínculos, toca, emociona,
sensibiliza o ser humano, estabelecendo laços com o outro. Isso provoca um
resgate ou até mesmo uma descoberta da subjetividade, das experiências
vividas, que podem ser compartilhadas e revisitadas pelas pessoas. Nesse
revisitar, a perspectiva do transformar.
26
No entanto, não é possível haver transformação sem que, antes, haja
sensibilização. É preciso, pois, educar a sensibilidade para perceber-se e
perceber o mundo. Encontramos um exemplo de como essa educação para a
sensibilidade pode ser realizada com Rainer Maria Rilke, em sua obra “Cartas
a um jovem poeta”, que nos presenteia com uma verdadeira aula poética de
sensibilidade, quando aconselha o jovem Kappus:
Então se aproxime da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê e vivencia e ama e perde. (...) resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza – descreva tudo isso com sinceridade íntima, serena, paciente, e utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. (...) para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegasse a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse passado tão vasto; sua personalidade ganhará firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma habitação a meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros. Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida. (RILKE, 2007, p. 25-27)
O texto poético nos ajuda a (re) escrever as linhas de nossa existência:
Sem poesia, muitos continentes de vida e de linguagem permanecem apenas latentes, não se tornam vir a ser. Sem a dimensão poética, muito do que realmente somos e podemos ser não se transforma em história vivida, em atos de criação do texto da própria existência. Não se trata de cultivar ilusões, os tempos são de crise devastadora. Exatamente por isso, temos necessidade de renascimentos. (ANTÔNIO, 2008, p.20. Grifo nosso)
Piaget relaciona inteligência e pensamento ao caráter simbólico da
linguagem:
A inteligência é a solução de um problema novo para o indivíduo, é a coordenação dos meios para atingir um certo fim, que não é acessível de maneira imediata; enquanto o pensamento é a inteligência interiorizada e se apoiando não mais sobre a ação direta, mas sobre um simbolismo, sobre a evocação simbólica pela linguagem, pelas imagens mentais etc. (PIAGET, 1983, p.216)
Em consonância a esse pensamento, podemos citar Piaget, para nos
lembrar de que a poesia, excelentemente, representa a educação:
27
O principal objetivo da educação é criar homens que sejam capazes de realizar coisas novas. Não simplesmente de repetir o que outras gerações fizeram; homens que sejam criativos, inventivos e descobridores. (PIAGET, apud ANTÔNIO, 2013, p.24).
Vale lembrar que não apenas a concepção piagetiana de educação –
embora Piaget não fosse educador - pode ser alcançada pela poesia, como
também outras concepções, inclusive a de Vygotsky, que analisou os
fenômenos da linguagem e do pensamento, tentando compreendê-los no
processo de interação do sujeito e o meio, de sujeitos e sujeitos, de trocas de
vivências, conhecimentos, afetividade que interferem e transformam pessoas.
Segundo o conceito de mediação desenvolvido por Vygotsky, “a relação
do indivíduo com o mundo não é direta, mas mediada pelos sistemas
simbólicos” (VYGOTSKY, 2000, p.89). A poesia é a morada dos símbolos.
Nesse sentido, Bosi (2010, p.227), poeticamente nos incita: “A poesia
traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual, ou contra
a qual, vale a pena lutar.”
Nada se iguala ao simbologismo da poesia, aos sinais e signos
abundantemente encontrados nela. Assim, entre sinais e símbolos, estabelece-
se o diálogo entre o mundo físico do ser e o mundo humano do sentido.
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CAPÍTULO II
EDUCAÇÃO: VOZES QUE ECOAM E CONSTRÓEM DIÁLOGOS
O homem não aprende somente com sua inteligência, mas com seu corpo e suas vísceras,
sua sensibilidade e imaginação. Antonio Muniz de Rezende
(...) nada se esquece
quando se ama pra valer, já que tudo na vida
tem razão, motivo e porque. Giovana – 6º B
2.1 – Educação: a medida de todas as coisas
Etimologicamente, sobre Educação, educar, temos dois apontamentos: 1-
Educere, e-ducere, em que “duc” significa conduzir: conduzir a, ao mundo, à
sociedade. 2- Exducere, em que o termo “ex” nos indica conduzir de dentro
para fora. Em outras palavras, fazer nascer o que está dentro da pessoa.
Embora amplamente discutido nas escolas e demais espaços
preocupados com o complexo processo da educação, continua-se a perceber
no cotidiano a distância em relação ao que se considera ideal: uma sociedade
composta por pessoas participativas, autônomas e sujeitos de sua história.
Isso é facilmente constatado nas mídias que pululam o espaço social,
revelando as dificuldades pelas quais a sociedade passa em termos de
violência, ausências múltiplas: de solidariedade, de afetividade, de identidade,
de atuação consciente nas comunidades, do conhecimento, entre outras
tantas.
Durante o século XX, as ciências humanas começaram a se distanciar do
pensamento positivista/racionalista de concepção da construção do
conhecimento, da educação, e começaram a elaborar um novo caminho para a
construção do saber, mais próximo de abordagens fenomenológicas ou mesmo
do paradigma da complexidade.
Os métodos de pesquisa foram alterados e, a cada dia, vem sofrendo
novas transformações, de forma a transformar o mundo e, via de
29
consequência, o próprio homem. Ao encontro dessa assertiva, Groppo e
Martins (2009, p.66):
Entre as principais epistemologias utilizadas em pesquisas sobre o fenômeno educacional, quatro parecem se destacar mais ao longo do tempo e no presente: o positivismo, a fenomenologia, o marxismo e o assim chamado “paradigma da complexidade”. (...) diferentes concepções sobre a relação entre o objeto de estudo e sujeito pesquisador na construção de conhecimentos científicos.
Nas palavras de Boaventura Santos, encontra-se uma referência que
traduz, de certa forma, o novo olhar sobre educação, quando ele discorre sobre
o conhecimento científico, afirmando que ele só é válido a partir do momento
em que provoca transformações, tanto a do senso comum quanto a de si
mesmo. Ambas têm de servir para a transformação do mundo. Em outras
palavras, de nada adianta a produção do saber científico (aqui remeto-me à
Educação) – tão valorizado no mundo contemporâneo -, se não servir para que
o homem se conheça mais, conheça mais o seu próximo, a natureza, de tal
forma que, a partir de outros saberes (mítico, poético, religioso, por exemplo),
ele não apenas sobreviva, mas que saiba viver.
(...) uma vez feita a ruptura epistemológica, o ato epistemologicamente mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica. Isto significa que, do meu ponto de vista de vista, deixou de ter sentido criar um conhecimento novo e autônomo em confronto com o senso comum (primeira ruptura) se esse conhecimento não se destinar a transformar o senso comum e a transformar-se nele (segunda ruptura). Depois de três séculos de prodigioso desenvolvimento científico, torna-se intoleravelmente alienante concluir com Wittgenstein, (...) que a acumulação de tanto conhecimento sobre o mundo se tenha traduzido em tão pouca sabedoria do mundo, do homem consigo próprio, com os outros, com a natureza. Tal fato,vê-se agora, deveu-se à hegemonia incondicional do saber científico e à consequente marginalização de outros saberes vigentes na sociedade, tais como o saber religioso, artístico, literário, mítico, poético e político, que em épocas anteriores tinham em conjunto sido responsáveis pela sabedoria prática (a phronesis), ainda que restrita a camadas privilegiadas da sociedade. A vocação técnica e instrumental do conhecimento científico tornou possível a sobrevivência do homem a um nível nunca antes atingido (apesar de a promessa inicial ter ficado muito aquém da promessa técnica), mas, porque aprendemos a sobreviver no mesmo processo e medida em que deixamos de saber viver. Um conhecimento anônimo reduziu a práxis à técnica. (SANTOS, 2003, p.147-148)
30
A Educação tem de nascer de todos os sentidos, expostos e simultâneos;
não pode ser aprisionada em muros ou a conceitos temporais e falíveis. Deve
ser carregada de poesia, não apenas de definições acadêmicas. Tem de
proporcionar ao homem a possibilidade de ser, por meio de motivações
múltiplas que valorizem a vida, o respeito, a ética.
A Educação se dá para que o homem viva e conviva, crie sentidos e os
descubra em sua existência e nas dos outros.
Pisamos em solos repletos de escombros: de existências, de
conhecimentos, de respeito, de ética, de empatia, de valores. Tempos em que
o conhecimento, quanto mais se especializa, tanto mais se distancia do todo,
posto que se fragmenta, perdendo o sentido de fazer parte de.
Por outro lado, surge uma nova forma de “ler o mundo”, entendendo-se
aqui desde o micro até o macrocosmos, e o homem inserido neles. O contexto,
a concretude, as múltiplas faces do mundo interligadas e interdependentes
compõem o quadro a que denominamos conhecimento. Neste contexto, a
educação, responsável pela criação e recriação de sentidos, é que fará o
papel, conforme Severino Antônio (2009, p.15), de:
(...) religação dos conhecimentos científicos, das ciências entre si e com a sociedade, a história, a vida; religação da objetividade e da subjetividade, assim como a religação do cognitivo e do afetivo. Isso significa a primazia da interpretação e do questionamento, do aprender crítico e criativo, com ideias e palavras próprias e diálogos significativos, e não mais predomínio da memorização sem sentido, de doutrinações, de adestramentos.
No entanto, há grandes desafios a serem vencidos. Um dos maiores
problemas por que passamos desde as últimas décadas do século XX,
encontra-se na esfera da educação: as dificuldades de aprendizagem dos
alunos. São questões causadas por motivos cognitivos, afetivos, culturais,
sociais, econômicos, dentre outros, e, muitas dessas dificuldades, estão
relacionadas à ausência de leitura, no mais hermenêutico sentido da palavra
leitura, por parte dos alunos (e muitos professores). Em outras palavras, à falta
de leituras interpretativas, à dificuldade de compreender enunciados e mundos,
31
cristalizadas por métodos ultrapassados que não valorizam nem procuram
despertar a imaginação, a criatividade e a sensibilidade dos jovens alunos.
Uma proposta para superar essa crise está no trabalho do educador em
sala de aula, possibilitando diálogos entre as disciplinas, contextualizando e
recontextualizando as pulverizações que descaracterizam o conhecimento;
religando sujeito e objeto; inteligência e sensibilidade, razão e emoção.
É certo que o trabalho da docência em sala de aula, e além dela, fica a
cada dia mais difícil de ser realizado em função do bombardeio pelo qual as
crianças e jovens passam todos os dias com o mundo midiático, impondo
valores de mercado, ideologicamente fortalecidos por princípios desse mesmo
mercado. Também é fato que a extraordinária quantidade de informações que
eles recebem não implica, necessariamente, conhecimento. Em outras
palavras, é provável que não haja transformação da informação em
conhecimento, pois não há reflexão, que necessita de tempo para o pensar, o
ponderar e o incorporar as ideias.
Em relação à caracterização da sociedade contemporânea com seus
(des) valores midiáticos que impinge sua ditadura à educação, e que necessita
de ser modificada, Olgária Matos (2002, p.3), em seu artigo “A Educação na
transformação da sociedade” afirma que:
De natureza diversa é a sociedade do espetáculo contemporânea, a da mídia, cujos "valores" de facilidade e consumo rápido de informações passam a impregnar a educação, substituindo práticas formadoras pelas performáticas. Educação para a transformação requer resistir às mídias desinibidoras da violência, inibidoras do pensamento e dissipadoras do gosto - uma vez que neutralizam o bom gosto, o abjeto e o grotesco. Sua antítese são as artes.
No mesmo artigo, ela sustenta que uma educação que promova a
transformação social, primeiro tem de transformar as pessoas, de tal forma que
ressentimentos sejam desfeitos, que haja tolerância, luta pela inclusão dos que
se encontram à deriva do acesso aos bens materiais e culturais, e, acima de
tudo, que a educação seja a grande promotora das potencialidades morais e
espirituais. Defende que, para combater as injustiças e a tirania, notoriamente
deflagradas, erga-se o baluarte da amizade.
Dir-se-ia que, além da amizade, há que se resgatar valores outros, como
a empatia, a aceitação das diferenças, o respeito, e tantos mais. Isso se
32
consegue pela sensibilização das pessoas. Com educação de qualidade. Com
a arte, especialmente para nós, a arte poética.
A fim de se entender o atual panorama da educação, faz-se necessária
a retomada de alguns pensadores de diferentes áreas do conhecimento, como
pedagogia, história, filosofia, sociologia, psicologia – dentre inúmeras outras –
e de algumas concepções ou correntes epistemológicas que, de forma ou mais
ou menos radical, e cada qual a seu modo, fizeram e fazem parte da
construção do universo educacional atual.
Acima de tudo, o resgate desses gigantes é imprescindível, já que na
constelação de seus legados, na tessitura de suas vozes – que ecoam no
universo - é que nos espelhamos para nossa prática educativa.
2.2 - Algumas concepções modernas e contemporâneas de Educação
Justifica-se iniciar o presente tópico por Jean-Jacques Rousseau, em
virtude de ter sido ele, no século XVIII, a revolucionar o conceito de educação,
quando colocou a criança no centro do processo educativo, e não o professor,
como era a prática pedagógica de então.
Daí dizer-se que Rousseau provocou uma “revolução copernicana” na
pedagogia: da mesma forma como Copérnico defendeu a tese do
heliocentrismo, retirando a Terra do centro do universo e colocando o Sol,
Rousseau retirou o professor do centro da prática educativa. O lugar era do
aluno.
Além disso, defende que a criança deva ser tratada como tal, em
consonância com sua especificidade, e não como “um adulto em miniatura”.
Em “Emílio”, relata a educação do jovem que dá título à obra. Ele tem o
acompanhamento de um preceptor considerado ideal e distante da sociedade,
que corrompe. Todavia, o pensador suíço sofreu muitas críticas em relação ao
seu pensamento pedagógico. Aranha (2006, p.209) afirma:
Rousseau sofreu diversas críticas à sua pedagogia: uns a consideravam elitista, já que Emílio é acompanhado por um preceptor; outros a rejeitavam por defender uma educação individualista, já que separava o aluno da sociedade.
33
O fato é que Rousseau tinha posição contrária à educação de seu
tempo, cujas características eram pautadas no autoritarismo, na adaptação e
adestramento da criança, na concepção da maldade da natureza humana. Seu
ponto de vista já antecipava o romantismo, por voltar-se mais aos sentimentos
e à natureza, o que permite dizer que ele é considerado um marco na
pedagogia contemporânea.
Neste sentido:
Para ele, a pessoa não se reduz à dimensão intelectual, como se a natureza pudesse ser apenas razão e reflexão, porque antes da “idade da razão” (15 anos) já existe uma “razão sensitiva”. “Portanto, os sentidos, as emoções, os instintos e os sentimentos são anteriores ao pensar elaborado, e essas disposições primitivas são mais dignas de confiança do que os hábitos de pensamento inculcados pela sociedade. (ARANHA, 2006, p.209)
Num dos primeiros textos em que Rousseau discorre sobre educação,
nota-se sua posição de crítica, especialmente às questões morais:
Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento. Vejo em todos os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres. Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras que em lugar algum de usam; saberão compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da verdade, possuirão a arte de torná-los ambos irreconhecíveis aos outros, graças a argumentos especiosos; mas não saberão o que são as palavras magnanimidade, equidade, temperança, humanidade e coragem; nunca lhes atingirá o ouvido a doce palavra pátria e, se ouvem falar de Deus, será menos para reverenciá-lo do que para temê-lo. Preferiria, dizia um sábio, que meu aluno tivesse passado o tempo jogando péla, pois pelo menos o corpo estaria mais bem disposto. Sei que é preciso ocupar as crianças e que a ociosidade constitui para elas o maior dos perigos a evitar. Que deverão, pois, apreender? Eis uma questão interessante. Que aprendam o que devem fazer sendo homens e não o que devem esquecer. ( ROUSSEAU, 1973, p.355-356)
Pode-se dizer que Rousseau é um “precursor não só das pedagogias do
final do século XIX que valorizam a atividade da criança, como a Escola Nova,
mas, sobretudo, de movimentos mais radicais das pedagogias não diretivas.”
(ARANHA, 2006, p.210)
Serão feitas, de passagem, algumas breves evocações-invocações de
pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para algum tipo de
transformação no panorama da educação, no Brasil e no mundo.
34
Primeira evocação-invocação para este diálogo, Rousseau, por trazer
luz à educação, reconhecendo a criança como um universo único e, a partir de
então, permitir outros olhares sobre os jovens também, merecedores de nosso
respeito e sujeitos de nosso interesse pedagógico.
Necessária a referência a Pestalozzi, considerado por muitos o grande
mestre da “pedagogia romântica”. Ele viveu, em primeira pessoa, as
vicissitudes, os dramas da educação que defendeu, quer pelos projetos pelos
quais lutou, pelas dificuldades enfrentadas, pelas derrotas advindas.
Como ponto central de seu pensamento pedagógico, acham-se três
teorias (CAMBI, 1999, p.418-420):
1. A da educação como processo que deve seguir a natureza, retomada de Rousseau, segundo a qual o homem é bom e deve ser apenas assistido no seu desenvolvimento, de modo a liberar todas as suas capacidades morais e intelectuais. Isso significa que a educação deve desenvolver – harmonicamente- todo o homem, pondo ênfase sobre a “unidade das faculdades” (...) a criança já tem em si todas as “faculdades da natureza humana”: “ela é como um botão que ainda não se abriu, mas quando se abre cada pétala se expande e nenhuma permanece no seu interior, e assim deve ser o processo da educação”; 2. A da formação espiritual do homem como unidade de “coração”, “mente” e “mão” (ou “arte”), que deve ser desenvolvida por meio da educação moral, intelectual e profissional, estreitamente ligadas entre si (...); 3. A da instrução, à qual Pestalozzi dedicou a mais ampla atenção (...), segundo a qual, no ensino, é necessário sempre partir da intuição, do contato direto com as diversas experiências que cada aluno deve concretamente realizar no próprio meio.
Assim, pode-se dizer que Pestalozzi concebe a educação como
formação espiritual, humana e sociopolítica, com toda a problemática que isso
pode acarretar. Por isso, continua a ser grande referência para a pedagogia
contemporânea.
Segunda evocação-invocação para este diálogo, Pestalozzi, por deixar
seu trabalho com crianças destituídas: de educação, de afetividade, de
reconhecimento social, recursos materiais etc. um exemplo a ser seguido, o
que ora se pretende.
Na mesma linha de pensamento, encontram-se Schiller (1990), Goethe,
Froebel, dentre tantos outros mestres.
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Schiller (1990) desenvolve pesquisas sobre o belo e a arte, daí defende
como ideal de homem aquele que traga em seu interior a harmonia do homem
grego, opondo-se à apologia ao “útil” da época. Afirma que, a fim de que os
problemas políticos sejam resolvidos, o caminho é a estética, porque só é
possível alcançar a liberdade pela beleza.
Na concepção de Schiller, o novo homem tem como principal
característica a harmonia entre sensibilidade e razão, o que se consegue
educando o sentimento. Essa educação só é possível pela/na arte,
reconhecendo, assim, a função educativa da arte. Ele também defende a
multilateralidade das faculdades humanas.
Goethe, por sua vez, retoma algumas concepções de Schiller, que são
desenvolvidas em contexto, paradoxalmente, mais prático e mais utópico,
senão vejamos:
Imagina, de fato, um lugar exclusivamente dedicado à formação dos jovens, onde, sob a direção de “sábios” mestres, se dá às novas gerações tanto um rico, embora livre, conhecimento da cultura quanto uma profunda concepção do mundo. No plano do conhecimento valoriza-se, sobretudo, uma recomposição das atividades intelectuais com as manuais, favorecendo todo contato com a vida dos campos e impondo a cada jovem a escolha de um trabalho, como também se dá amplo espaço à educação estética, desde o canto (considerado expressão naturalmente voltada para a alegria e a comunhão com os outros) até a escultura, desde a pintura até a poesia épica. (CAMBI, 1999, p.422)
A terceira evocação-invocação para o presente diálogo faz-se no plural,
Schiller e Goethe, em redundante registro, pela reverência à Arte como
elemento imprescindível para a Educação. A educação aqui perseguida tem
como âmago o trabalho com a arte poética, de tal forma a resultar, exatamente,
na harmonia entre a sensibilidade e a razão (aqui traduzida por consciência),
resgatando memórias e buscando uma ação transformadora do estar/sentir-se
no mundo. Aí se estabelece o diálogo.
Há quem considere como o ápice da “pedagogia romântica” o
pensamento de Froebel. Para ele, o mundo inteiro é a representação, a
imagem sensível do espírito humano, há uma unidade em tudo.
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Do pensamento pedagógico de Froebel, destacam-se três aspectos: a
ideia de infância e sua concepção; a implantação dos jardins-de-infância; a
didática voltada para a primeira infância, considerada o “coração” do
pensamento froebeliano, tão difundido no século XIX.
Froebel já defendia que é preciso reforçar a capacidade criativa da
criança, o seu mergulho no “mundo-natureza”, conhecendo-o, dominando-o,
com sentimento, e pela arte – com cores, figuras, ritmos, sons etc.
Dessa forma, a atividade desenvolvida pelas crianças deve ser o jogo,
considerado uma atividade “séria” na infância.
Acerca dos jardins-de-infância, Cambi (1999, p.426-427) nos ensina:
(...) são locais não só de recolhimento de crianças (abrigos), mas também espaços aparelhados para o jogo e o trabalho infantil, para as atividades de grupo (canto), organizados por uma professora especializada que orienta as atividades, sem que estas jamais assumam uma forma orgânica e programática, como ocorre nas escolas. No jardim, é a “intuição das coisas” que é colocada no centro da atividade, é o jogo que predomina. No jardim existem canteiros e áreas verdes, de modo a estimular as mais variadas atividades na criança, sob a orientação do educador.
Com relação à pedagogia froebeliana:
(...) a pedagogia froebeliana fixou uma imagem da infância como idade criativa e fantástica, que deve ser “educada” segundo suas próprias modalidades e que é, talvez, o momento crucial da educação, aquele que lança as sementes da personalidade futura do homem e que, portanto, deve ser enfrentado com forte consciência teórica e viva sensibilidade formativa. Com Froebel estamos diante de um pedagogo que, pela primeira vez depois de Rousseau, redefiniu organicamente a imagem da infância e teorizou a da sua “escola”.(Idem)
Quarta evocação-invocação para este diálogo: do pensamento de
Froebel, evidenciamos a importância do sentimento e das artes no cotidiano
pedagógico do aluno, pela ressonância com as práticas pedagógicas, nas
quais se fundamenta nossa propositura. Da mesma forma, invocamos a
influência de Schelling acerca de sua concepção da unidade das coisas.
A quinta evocação-invocação, Weber, pode causar estranhamento por ser uma
concepção sociológica, fugindo um pouco das abordagens anteriores, embora
tenha causado profundas repercussões na educação. A referência que se faz
37
aqui de Weber justifica-se pela sua visão de mundo – com significativos
reflexos na educação – tendo em vista o seu “desencantamento do mundo”,
conceito aparentemente paradoxal para a época, considerando-se que o
contexto em que estava inserido era o do mundo tecnicista, marcado pelos
valores do mercado capitalista. Mundo impregnado pelo poder do capital, em
que concepções metafísicas, voltadas para a espiritualidade, para valores
humanísticos eram rechaçados diante da cientificidade da época.
Exatamente por esse motivo, aparentemente contraditório, chama-nos a
atenção seu pensamento. A necessidade do homem de busca por valores
metafísicos, transcendentais, de suas tradições e culturas espirituais começa a
despontar, no auge de um período voltado para a negação desses valores e
supervalorização de aspectos materialistas e cientificistas. Em suma, a ideia de
que o homem é um todo, composto por múltiplas partes que se completam e se
necessitam, para que ele seja uma unidade, para que se reencante com o
mundo ao qual pertence, é o motivo de nosso interesse.
Weber afirma:
A ciência nos faz ver na realidade externa unicamente forças cegas, que podemos dispor a nosso serviço, mas não pode fazer sobreviver nada dos mitos e da divindade com que o pensamento dos primitivos populava o universo. Nesse “mundo desprovido de encantos”, as sociedades humanas evoluem para uma organização mais racional e sempre mais burocrática. (WEBER, 2004, p.63)
Assim, clara fica a necessidade de o homem resgatar seus valores
culturais, suas tradições religiosas e humanísticas, “contaminando” uma
sociedade vazia de sentimentos.
Sob a ótica weberiana, a sociedade e a educação caracterizam-se pela
proposta de equilíbrio entre o que ele chamou de carisma e burocracia. A
analogia ao conceito apolíneo e dionisíaco de Nietzsche dar-nos-á a dimensão
do sentido que Weber propôs. Apolo, o deus da beleza, da racionalidade, da
contenção, assim como da individuação, permite que Dioniso se manifeste. Por
sua vez, Dionísio, o deus da embriaguez, da emoção, dos excessos possibilita
que Apolo se exprima. Em outras palavras, o primeiro representa a ponderação
e domínio de si, enquanto o segundo, o exagero, o arrebatamento. Eis a ideia
de burocracia e carisma, respectivamente, na acepção weberiana.
38
No sentido do equilíbrio, Weber aponta:
Para a possibilidade de rompermos com o estado de coisas, originado no capitalismo moderno. Portanto, é preciso pensar numa terapia (...) que desconfie da razão que se coloca como um princípio ordenador da relação homem-mundo, expressa no caráter burocrático da existência. (...) Retomar o espírito carismático-dionisíaco pode ser o caminho. (...) A educação pode nos ajudar nesse processo. Em vez de uma vida fundada na rigidez, na frieza e no cálculo, experimentar a sensação fornecida pelo movimento que resulta da dança. Assim, podemos pensar numa educação que leve em conta a dança alegre dionisíaca e o espírito extático do carisma. (WEBER , 2004, p.72-73)
O mundo não pode ser caracterizado apenas pela visão maniqueísta:
apolíneo-burocrático e dionisíaco-carismático. Acreditamos que a procura deva
ser pelo equilíbrio desses opostos. Cabe à educação exercer esse papel de
equilíbrio, de harmonia entre os opostos, considerando-se que as relações
interpessoais – não apenas pedagógicas – são muito mais complexas que essa
divisão reducionista.
Completando estas breves reflexões acerca de alguns aspectos entre
Weber e a educação, chamamos as vozes de Bourdieu e Passeron, ditas
muitas décadas mais tarde, mas atemporais, de que a escola não é uma ilha
separada do contexto social. Ao contrário, a escola é definida como “um
espaço da reprodução social e um eficiente domínio de legitimação das
desigualdades sociais” (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.63). Portanto, as
marcas entre sociedade e educação são indeléveis e profundas.
Ainda nesta digressão, há que se fazer referência e reverência a alguns
outros gigantes da área do conhecimento pedagógico - ou não -
imprescindíveis para este diálogo.
Reportamo-nos aqui ao que se denomina “pedagogia progressista”,
cujas bases teóricas, de forma geral, estão na literatura marxista, quer seja
pela dialética, quer pela crítica ao liberalismo que potencializa uma sociedade
dividida em classes sociais discrepantes, o que dificulta uma real
democratização da escola.
O francês Célestin Freinet (2004) teve seu trabalho identificado como
“pedagogia popular e democrática”, cuja influência alcançou as correntes
“antiautoritárias de base socialista” e as construtivistas (com Vygotsky), dentre
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inúmeras outras. Freinet – sexta evocação-invocação – por sua concepção de
educação que se confunde com a vida; com sua proposta de estudo do entorno
(estudo do meio) que propunha não apenas a observação de suas
características físicas, geográficas, históricas, etc., mas o estudo transformador
do meio, iniciado pelo olhar crítico e consciente da realidade.
Por outro lado, Freinet não perdia a veia poética, unindo, dessa forma,
uma proposta pedagógica que buscava a autonomia das crianças, aliada a um
fazer pedagógico poético:
Quando éramos pequenos, sonhávamos à noite com uma grande escada mágica, cujos se iam colocando uns diante dos outros e subindo assim até o céu. E eis que os homens, imitando os pássaros, abandonaram os degraus metódicos para tomarem impulso para o azul. Também nós tomamos impulso para a vida; se a criança de interessa e se apaixona pela sua própria cultura, se “quer” criar, instruir-se, enriquecer-se, ela o conseguirá, talvez por ilógicos caminhos de contrabando, mas num tempo recorde, com uma segurança e uma plenitude que nos edificarão. O principal é encontrar esse ardor, essa vida, esse furor de querer, que é bem próprio da natureza do nosso ser. Se o conseguirmos nas nossas classes, todos os problemas acessórios estarão resolvidos. Poderemos, então, tirar nossa escada metódica e iniciar o voo. (FREINET, 2004, p.90)
Aqui situamos Paulo Freire, sétima evocação-invocação, com sua
“pedagogia da libertação” e “pedagogia do oprimido” e seu método de
alfabetização de adultos, durante os anos 1960, num Brasil borbulhante de
movimentos populares.
A principal característica da proposta de Paulo Freire concentra-se numa
educação voltada para a conscientização da opressão, que possibilitaria a
transformação do indivíduo oprimido. Freire chegou à conclusão de que a
educação, a cultura e a liberdade eram negadas à classe oprimida, portanto,
por meio de uma educação libertadora, posto que conscientizadora, haveria
possibilidade de os oprimidos recuperarem sua “humanidade roubada”:
(...) A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo. (...) A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como
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consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (FREIRE, 2004, p.67)
Neste sentido, Freire distingue dois tipos de educação: a pedagogia dos
dominantes e a dos oprimidos:
Comparando as duas pedagogias, freire acusa a primeira de se basear em uma concepção “bancária” da educação, segundo a qual o professor “deposita” o saber e o “saca” por ocasião do exame, definindo uma relação de verticalidade, em que o saber é doado de cima para baixo, e de autoritarismo, pois só o professor “sabe”. Já a pedagogia do oprimido é problematizadora, e parte da concepção de que o ato de conhecer não é uma “doação” do educador, mas um processo que se estabelece no contato do educando com o mundo vivido, lembrando que este se encontra em contínua transformação. Ainda mais, a relação entre educador e educandos e destes entre si é dialógica: e o diálogo, como sabemos, supõe troca, não imposição. Essa postura permite que o conhecimento adquirido seja crítico, porque autenticamente reflexivo, implicando o constante desvelamento da realidade para nela se posicionar. (ARANHA, 2006, p.274)
No entanto, o papel do educador, para que se dê a educação
libertadora, é fundamental:
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. (FREIRE, 2004,p.68)
É essa condição de oprimido - sem ter consciência de o ser; de ter a sua
humanidade roubada; da voz silenciada por uma sociedade excludente; esses
ecos caminham em direção ao trabalho com textos poéticos como forma de
expressão de uma subjetividade resgatada e passível de ação transformadora,
quer para o jovem, individualmente, quer pela comunidade à qual ele pertence.
A derradeira – oitava - evocação-invocação: Edgar Morin.
Na voz de Morin, o nó borromeano, o canto maior.
Edgar Morin dá nome à obra e à parte de seu pensamento com o título
do livro “Ciência com Consciência” (s/d), no qual afirma que, do mesmo modo
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que a ciência é enriquecedora, é também aniquiladora, tirânica. Ele critica a
especialização das Ciências, a técnica e a industrialização do século XIX como
forma mutiladora, simplificadora, reducionista e fragmentadora do ser e do
saber.
Faz algumas propostas: uma reflexão bioantropológica do
conhecimento, e também nos aspectos sociais e históricos; um questionamento
das estruturas ideológicas do ser humano pela sua falibilidade; uma reflexão
sobre nós mesmos e nossa participação no universo sociocultural. E mais:
sustenta que o antídoto é o diálogo reflexivo e crítico das interrelações entre
Ciência, Sociedade, Técnica e Política. Em outras palavras, “o todo é uma
unidade complexa”.
Segundo Morin (2000), o mundo atravessa uma “policrise”, em que está
em risco a própria sobrevivência do planeta, portanto da raça humana e de
todos os seres vivos que nele habitam. Afirma que vivemos uma “agonia
planetária” e que, para superarmos esse estado de coisas, é necessário que
coloquemos em prática a solidariedade. Não apenas com os outros de nossa
espécie, mas com tudo o que há no planeta.
No entanto, o homem só conseguirá viver essa solidariedade quando
tiver consciência e compreender o seu real destino no planeta.
Neste contexto, entra a Educação como meio pelo qual é possível
reverter esse quadro sombrio. Todavia, segundo Morin, a escola perdeu sua
identidade, necessitando redefinir seu papel nos âmbitos social, político,
histórico etc., juntamente com todos os membros que a compõem: desde
alunos, funcionários, professores, gestores e toda a comunidade envolvida no
processo de ensino aprendizagem.
Izabel Petraglia (2011), em sua obra “Edgar Morin: a educação e a
complexidade do ser e do saber”, tece algumas considerações sobre as
concepções de Morin acerca de escola e educação:
E assim, se impõe a necessidade de se pensar a educação numa perspectiva “complexa”, capaz de se compreender e viver a solidariedade em diversas dimensões e sob os mais variados e múltiplos aspectos também dentro da escola, partindo-se da ideia do processo auto-eco-organizador que todo sujeito desenvolve, segundo Morin. (PETRAGLIA, 2011, p.78)
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Morin critica o saber fragmentado, mutilado presente no currículo
escolar, herança do século XIX, cujo foco era o desenvolvimento científico e
técnico como forma de se chegar ao progresso, tão perseguido então.
Efetuaram-se progressos gigantescos nos conhecimentos no âmbito das especializações disciplinares, durante o século XX. Porém, estes progressos estão dispersos, desunidos, devido justamente à especialização que muitas vezes fragmenta os contextos, as globalidades e as complexidades. Por isso, enormes obstáculos somam-se para impedir o exercício do conhecimento pertinente no próprio seio de nossos sistemas de ensino. Estes sistemas provocam a disjunção entre as humanidades e as ciências, assim como a separação das ciências em disciplinas hiperespecializadas, fechadas em si mesmas. Desse modo, as realidades globais e complexas fragmentam-se; o humano desloca-se; sua dimensão biológica, inclusive o cérebro, é encerrada nos departamentos de biologia; suas dimensões psíquica, social, religiosa e econômica são ao mesmo tempo relegadas e separadas umas das outras nos departamentos de ciências humanas; seus caracteres subjetivos, existenciais, poéticos encontram-se confinados nos departamentos de literatura e poesia. A filosofia, que é por natureza a reflexão sobre qualquer problema humano, tornou-se, por sua vez, um campo fechado sobre si mesmo. Os problemas fundamentais e os problemas globais estão ausentes das ciências disciplinares. São salvaguardados apenas na filosofia, mas deixam de ser nutridos pelos aportes das ciências. Nestas condições, as mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos). (MORIN, 2000, p.40-41)
Ainda hoje, vivem-se os reflexos dessa prática reducionista de
educação, que não permite a visão do todo, da unidade do conhecimento,
tampouco promove o diálogo entre disciplinas e saberes:
As crianças aprendem a história, a geografia, a química e a física dentro de categorias isoladas, sem saber, ao mesmo tempo, que a história sempre se situa dentro de espaços geográficos e que cada paisagem geográfica é fruto de uma história terrestre: sem saber que a química e a microfísica têm o mesmo objeto, porém em escalas diferentes. As crianças aprendem a conhecer os objetos isolando-os, quando seria preciso, também, recolocá-los em seu meio ambiente para melhor conhecê-los, sabendo que todo ser vivo só pode ser conhecido na sua relação com o meio que o cerca, onde vai buscar energia e organização. (MORIN, apud PETRAGLIA, 2011, p.78-79)
43
Para que haja mudança na educação, tem de haver, primeiro uma
mudança no pensamento do educador, em sua mentalidade e sua postura: ele
necessita entender que “tudo se liga a tudo”.
O global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. Dessa maneira, uma sociedade é mais que um contexto: é o todo organizador de que fazemos parte. O planeta Terra é mais do que um contexto: é o todo ao mesmo tempo organizador e desorganizador de que fazemos parte. O todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e certas qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições provenientes do todo. (...) “É preciso efetivamente recompor o todo para conhecer as partes. Daí se tem a virtude cognitiva do princípio de Pascal, no qual a educação do futuro deverá se inspirar: “sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas por um elo natural e insensível que une as mais distantes e as mais diferentes, considero ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”. Além disso, tanto no ser humano, quanto nos outros seres vivos, existe a presença do todo no interior das partes: cada célula contém a totalidade do patrimônio genético de um organismo policelular; a sociedade, como um todo, está presente em cada indivíduo, na sua linguagem, em seu saber, em suas obrigações e em suas normas. Dessa forma, assim como cada ponto singular de um holograma contém a totalidade da informação do que representa, cada célula singular, cada indivíduo singular contém de maneira “hologrâmica” o todo do qual faz parte e que ao mesmo tempo faz parte dele. (MORIN, 2000, p.37-38)
Assim, a educação vai muito além da interdisciplinaridade das
disciplinas. Deve alcançar a transdisciplinaridade das disciplinas, das práticas
cotidianas, da vida. Em outras palavras, conforme Petraglia (2011, p.83): “na
prática transdisciplinar não há espaço para conceitos fechados e pensamentos
estanques, enclausurados em gavetas disciplinares; há a busca de todas as
relações que possam existir entre todo o conhecimento.”
Dessa forma, estabelecem-se os diálogos, ao mesmo tempo múltiplos e
unívocos. Apenas com a audição dessas vozes que, como as estrelas, povoam
céu e terra tentando se fazer presentes, é que poderemos pensar em algum
tipo de mudança na mentalidade das pessoas, na educação.
É preciso tirar os tampões de nossos tímpanos e deixar entrar a melodia
do universo.
A educação pode ser traduzida como um processo de entendimento de
símbolos, presentes nas múltiplas linguagens desenvolvidas pelo homem,
44
através das quais ele se expressa e se insere em seu mundo, sua comunidade,
podendo transformá-los ou não, dependendo de seu grau de interesse e de
conscientização.
Assim, educar implica cumplicidade, extrapolar os limites do educando e
do educador, confundi-los, gerar novos conhecimentos. A partir da junção das
informações das partes envolvidas, objetiva-se construir autonomia: “ninguém é
sujeito da autonomia de ninguém”.(FREIRE, 2009)
A educação não compreende um espaço único para que ocorra. Não
depende de condições únicas. Não existem garantias de que ocorra
plenamente e não se fecha diante de uma informação. O processo é contínuo,
não tem hora para começar, tampouco para terminar; não tem uma estrutura
fixa, nem existem receitas e modelos corretos para seu pleno desenvolvimento.
A educação é um processo em constante construção. Educar é uma via de
mão dupla, vitalícia, parte da cultura humana.
Muitos estudiosos e profissionais da educação discutem suas
possíveis classificações e, em sua maioria, aceitam defini-la em três campos
que compreendem a educação formal, a educação informal e a educação não
formal.
A abordagem será feita porque as atividades desenvolvidas com as
crianças do projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” muitas vezes transitam
por todas essas áreas, embora tenham na educação formal sua base de
atuação.
2.3 - Educação formal
Entende-se por educação formal aquela desenvolvida em escolas
regulares ou instituições do mesmo porte. São espaços regulamentados por
leis, com conteúdos planejados e elaborados com antecedência, discutidos e
debatidos em reuniões de planejamento, com professores diplomados, com
regras, padrões e normas estabelecidos. Tais elementos estão revestidos da
necessidade e obrigatoriedade de desenvolver habilidades e competências
variadas, organizada em currículos, com tempo e pessoal específicos.
Necessitam de uma sistematização sequencial, dividindo-se de acordo com a
faixa etária, além do reconhecimento da aprendizagem por órgãos superiores,
45
da certificação e a titulação dos indivíduos que participaram do processo
(GOHN, 2006). É um processo institucional que ocorre nos bancos escolares.
Observam-se nos planos escolares algumas preocupações que
extravasam essas expectativas e trabalham no sentido de promover a efetiva
aprendizagem. São educadores buscando formas alternativas de atrair a
atenção, despertar o interesse e o encantamento nos alunos, considerando-se
que pouco se satisfazem, quase não mais são tocados com as estratégias de
giz e lousa e com as informações, salvo raras exceções, quando são
meramente repetidas num processo de transmissão de conhecimento.
Hoje, há processos avaliativos pelos quais a educação formal é
submetida. No entanto, os resultados, que poderiam servir de parâmetro para
um repensar sobre as práticas, os métodos e as estratégias utilizadas nas
escolas, não alcançam esse fim. Um dos inúmeros motivos: as instituições que
realizam esses processos de avaliação nem sempre conhecem as realidades
escolares que são submetidas a essas “provas de aproveitamento” do
educando.
A educação formal é aquela pela qual todos nós devemos passar ao
completar seis anos de idade. Algumas crianças iniciam antes seu processo
educativo formal, porém, em condições favoráveis de vida, o início é nessa
idade.
Qualquer pessoa, independente da idade que se tenha, deverá se
lembrar da primeira professora ou daquela que deixou sua marca gravada,
durante o período escolar. É nesse espaço que se constrói a ideia de que o
conhecimento deve ser sistematizado, ou seja, o contato com o universo dos
signos e símbolos, o registro das novas informações, a percepção de um
mundo cheio de representações, o descobrir-se “no mundo”, por exemplo, é
feito no ambiente escolar.
Entretanto, o processo não é o mesmo para todos os alunos. Os
conflitos que podem aparecer nesse contexto educativo muitas vezes não são
solucionados devido à rigidez com que seus conteúdos são abordados, em
função de algumas metodologias e, especialmente, pelo distanciamento
observado da realidade dos educandos.
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A educação formal, por mais que tenha um projeto inovador, em geral
acaba sendo refreada pelos seus próprios limites: seus muros. Dificilmente
rompem-se as barreiras entre escola e bairro e, muitas vezes, sua rigidez
impede o pleno aprendizado. A criança e o jovem não vislumbram a percepção
do estar no mundo, transformando-o, transformando-se ou vice versa.
Por outro lado, muitas escolas ousaram implantar diferentes
metodologias de ensino, conseguindo superar alguns problemas e revelam
como as parcerias podem exercer papel fundamental na busca por uma
educação plena.
Algumas escolas superaram o mero formalismo de seus currículos,
inovaram buscando parceiros, tecendo redes e procurando maneiras
alternativas de desenvolver o processo educativo a partir da autonomia
daquele que está inserido em seus bancos – agora móveis -, em busca de
novos espaços.
De acordo com uma pesquisa de Laranjeira e Teixeira (2008), a escola,
responsável pela educação formal, possui limites para a inserção social e
profissional daqueles que a frequentam. Os jovens entrevistados em sua
pesquisa e matriculados na escola pública apresentavam referenciais que
identificavam os limites do modelo formal/oficial como distantes dos seus
interesses e de sua realidade. Na Bahia, local onde ocorreu a pesquisa, ficou
claro que a escola formal não entendia o que se passava com seus alunos,
como também não os habilitava profissionalmente, objetivo daquela instituição
escolar. A falta de comunicação entre os profissionais envolvidos na educação
com os alunos foram marcas distintivas do problema identificado pelas
pesquisadoras.
Neste caso, a mera transmissão de informações tornava-se vazia, uma
vez que nada representava de concreto na vida daqueles alunos, que
esperavam que a escola pudesse proporcionar uma melhora substancial em
suas vidas, permitindo-lhes conseguir empregos e salários.
Em outros lugares a situação não é diferente: professores
despreparados, desmotivados, mal remunerados, absoluta ausência de diálogo
entre os sujeitos envolvidos no processo, entre outros motivos. Isso tudo acaba
colocando em rota de colisão os mestres, os poderes públicos e os educandos.
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Esse tipo de educação, entendida como formal, possui um planejamento
específico, com definições de objetivos e currículos enviesados por estruturas
burocráticas, formalmente hierarquizadas, além de serem definidas pelo
governo e seus órgãos do sistema de ensino. Trata-se da educação
institucionalizada.
O projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” – embora tenha se dado
em ambiente de educação formal -, pode estabelecer a comunicação entre a
educação formal e a não formal, uma vez que ele é passível de acontecer
“entre os muros da escola” – caracterizando a educação formal-, ou em outros
locais, tais como espaços públicos, praças, igrejas, salões comunitários etc,
desde que haja a intencionalidade, uma das marcas da educação não formal.
É, inclusive, interessante que também possa se desenvolver em
ambientes não escolares, já que permite um olhar para dentro desses
possíveis espaços, dos quais fazem parte as crianças e os jovens, e nos quais
exercem suas identidades.
2.4 - Educação informal
Embora existam muitas discussões sobre a educação informal e suas
formas de desenvolvimento, Gohn (2006) esboça as definições mais aceitas
atualmente sobre o tema. De acordo com ela, a educação informal se
processaria nos lugares ditos informais, ou seja, na família, no grupo de
amigos, nas ruas do bairro, nos clubes e outros espaços de convivência em
que é possível adquirir valores e culturas referentes ao meio em que se vive.
Nesses espaços constroem-se os laços de solidariedade e pertencimento, além
de se desenvolverem sentimentos.
Não é difícil identificarmos esses lugares no nosso cotidiano e menos
difícil ainda se dermos uma volta pelo quarteirão onde moramos. Nas cidades
pequenas é fácil observar crianças e jovens pelas ruas brincando de soltar
pipa, jogar futebol, conversando.
Nas cidades grandes, isso não é diferente. O que ocorre é a
necessidade de um olhar mais cuidadoso para perceber, nos detalhes, a
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presença de culturas em transformação. Embora a cidade grande esconda tais
transformações, um olhar minucioso consegue identificá-las por todos os
lugares.
Na educação informal, os pais, os amigos, os vizinhos, os meios de
comunicação em geral são os agentes educadores e a informação aparece
espontaneamente, através das relações sociais, das preferências que cada um
desenvolve. Ela possibilita gerar hábitos, condutas, maneiras de se expressar,
comportamentos e atitudes, bem como expressa a socialização das pessoas
envolvidas. Não há uma preocupação em sistematizar o conhecimento ou a
informação, ela é espontânea, adquirida de acordo com as relações sociais de
cada indivíduo, atuando no campo das relações emocionais e dos sentimentos
(GOHN, 2006). Por não existir uma organização e por ser baseada no senso
comum das pessoas envolvidas, essa educação pode gerar ou reproduzir
preconceitos.
Portanto, a educação informal faz parte da vida das pessoas, assim que
nascem e começam a ter suas primeiras impressões de mundo. Aprendem,
com isso, a comer, andar, vestirem-se, como também, as primeiras regras do
convívio em sociedade, no seio da família ou no lugar em que estão inseridas.
Em função disso, os valores são variáveis, as formas de pensar, também. Há
uma imensa diversidade de pensamentos, e eles variam de acordo com local e
cultura.
Esse tipo de educação é também importante para a construção do
indivíduo. Ela será responsável por seu repertório cultural, que se transformará
ao longo de sua vida, adicionando, transformando e recriando suas crenças,
seu modo de ser e estar no mundo.
É o primeiro contato que podemos considerar uma rede: família, vizinhos,
amigos da rua. Constróem-se formas de socialização, de compartilhamentos
nesses espaços. Vínculos afetivos são criados e transmitidos, permitindo uma
percepção de mundo. Com novos valores adquiridos ou transformados a partir
desses processos chamados informais, novas formas de interação social vão
desabrochando. Isso permite que as pessoas construam suas identidades –
que estarão em constante reconstrução.
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Os espaços de aprendizagem, portanto, são múltiplos e constantes.
2.5 - Educação não formal
A educação deve “confundir” educador e educando. Não existem
limites para a ação de cada um no momento da construção da aprendizagem.
Educador é aquele que constrói junto com o educando a informação,
que processa, gera dúvida e que, “de repente, aprende.” Educando é aquele
que investiga, procura, incentiva-se cada vez mais ao descobrir ainda mais
informações, traz novos conhecimentos, reconstrói e também ensina. Essa
dialética da educação confunde os papéis. Não existe idade para ensinar e não
existem limites para aprender. Todos constroem o conhecimento juntos. Existe
uma intencionalidade na aprendizagem para a formação plena da pessoa.
Nesse sentido, o projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” também
volta seu olhar para prática da cidadania, já que considera as crianças e os
jovens como cidadãos em potencial. Na concepção do Projeto, cidadão é
aquele que participa ativamente de seu meio, porque conhece seus direitos,
reconhece-se em suas necessidades individuais e exige, através da educação
e participação, a sua visibilidade.
Educação não formal é uma categoria utilizada para mapear e distinguir
atividades e experiências que ocorrem fora do ambiente escolar, mas que têm
uma intencionalidade em sua execução, ou seja, interessa-se por construir um
aprendizado. Trata-se de uma educação que acontece à margem da escola, no
“mundo da vida”, compartilhando experiências através de ações coletivas,
valorizando atividades não somente ligadas à formação profissional, mas
relativas à cultura. (PARK ; FERNANDES, 2005)
O educador na educação não formal é o outro com o qual haverá a
interação (GOHN, 2006). É aquele que se predispõe ao singular trabalho com
crianças e jovens de rua, que realiza oficinas de arte e música a partir de seus
conhecimentos, que faz da comunicação uma possibilidade para que as
pessoas aprendam a se expressar e sejam ouvidas. Permite, ainda, que as
pessoas entendam a importância das memórias culturais urbanas, como as
50
músicas hip hop e rap, por exemplo. Esse educador possibilita intervenções
urbanas de todos os tipos como grafite, painéis, entre outros. Ele também é um
facilitador da recriação da cultura, a partir da capoeira, do esporte, da arte e
outras formas de aprendizagem, fazendo a conexão da riqueza dos espaços de
educação e arte não formais, sendo estendidas às camadas populares (PARK;
FERNANDES, 2005). Procura-se com isso, também, criar possibilidades de
profissionalização, encaixando o jovem no mercado de trabalho, possibilitando
a aprendizagem de um ofício.
Sobre a educação não formal, Gohn (2006, p. 29-30):
(...) A educação não formal capacita os indivíduos a se tornarem cidadãos do mundo, no mundo. Sua finalidade é abrir janelas de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais. Seus objetivos não são dados a priori, eles se constroem no processo interativo, gerando um processo educativo.Um modo de educar surge como resultado do processo voltado para os interesses e as necessidades que dele participa.
Com isso, ainda conforme a autora, é possível desenvolver os laços
sociais de igualdade e justiça, fomentando o exercício da cidadania e da
autonomia. É nessa relação que também ocorre a formação sociocultural das
pessoas, permitindo que informações sejam partilhadas na expectativa de
combater o individualismo e a invisibilidade das pessoas.
Por não estar presa em séries, idades e conteúdos, a educação não
formal permite que o indivíduo se aproprie dos espaços em que circula, através
de um conhecimento organizado, estabelecendo laços subjetivos e de
interesses comuns com o grupo, gerando, também, sentimento de
pertencimento, colaborando com sua auto estima, construindo critérios de
solidariedade, criando seu papel social (GOHN, 2006). Com isso, essas
pessoas serão capazes de participar de forma ativa e criativa em seu entorno,
capazes de transformá-lo para o bem de suas vidas. O espaço em que moram
não mais será tido como possibilidade de abandono, mas de transformação.
As expectativas da educação não formal é o desenvolvimento para
atingir resultados dentro de processos que visam:
(...) – a construção e reconstrução de concepção (ões) de mundo e sobre o mundo;
51
- contribuição para um sentimento de identidade com uma dada comunidade; - quando presente em programas com crianças ou jovens adolescentes, a educação não formal resgata o sentimento de valorização de si próprio (o que a mídia e os manuais de auto ajuda denominam, simplificadamente, como a auto estima; ou seja, dá condições aos indivíduos para desenvolverem sentimentos de auto valorização, de rejeição dos preconceitos que lhes são dirigidos, o desejo de lutarem para ser reconhecidos como iguais (enquanto seres humanos), dentro de suas diferenças (raciais, étnicas, religiosas, culturais, etc.); - os indivíduos adquirem conhecimento de sua própria prática, os indivíduos aprendem a ler e interpretar o mundo que os cerca. (GOHN, 2006, p.30-31)
Contudo, esses elementos acima demandam desafio e preparação, o
que nem sempre acontece.
Mais tarde, em sua obra “Educação Não Formal e o Educador Social:
atuação no desenvolvimento de projetos sociais” (2010), Gohn faz um breve
histórico sobre as várias denominações e concepções de educação não formal
que vão sendo construídas, especialmente a partir da década de 1980, suas
pesquisas para melhor delinear essa categoria de educação, e o repensar
sobre as próprias teorias, até então:
(...) desde os anos 1980 eu trabalhava com o pressuposto de que os movimentos sociais e outras práticas associativas coletivas tinham um caráter educativo, para seus participantes, para aqueles que eram alvo dos protestos e demandas e para a sociedade em geral. Mas eu não havia ainda conseguido exemplificar bem este caráter por meio de uma categoria analítica. A construção da categoria educação não formal para exemplificar o processo de aprendizagens e a construção de saberes foi a luz na escuridão. (...) a categoria educação não formal foi sendo construída em textos na minha produção sob forte influência de vivências práticas. Eu não havia pesquisado ainda sobre esta categoria na produção acadêmica, o que veio a ocorrer logo a seguir. Inicialmente busquei nomear o processo educativo que tratava da aprendizagem no interior dos movimentos sociais, tentando diferenciá-lo não apenas da educação formal – escolar -, mas também da educação popular relacionada com os processos de alfabetização de adultos, sob modalidades alternativas. (GOHN, 2010, p.9-10)
Na mesma obra, Gohn nos revela que, ainda hoje, uma das maiores
dificuldades é encontrar uma forma adequada de defini-la. Para isso, a
concepção de educação não formal é alcançada contrapondo-a à educação
formal:
52
Um dos grandes desafios da educação não formal tem sido defini-la, caracterizando-a pelo que ela é. Usualmente ela é definida pela negatividade – pelo que ela não é. (...) A posição mais usual quando os textos se referem à educação não formal é a que expus anteriormente – contrapor a educação não formal à educação
formal/escolar. (GOHN, 2010, p.22)
A autora também cita vários autores que utilizam outras denominações
como sinônimos de educação não formal, tais como: “não escolar”, “educação
extraescolar”, “educação alternativa”, “Educação de Adultos”, “educação
sociocomunitária”, dentre outras. Com relação à educação sociocomunitária,
afirma:
Educação sociocomunitária é uma proposta que faz uma articulação entre as duas últimas abordagens que tratamos. Groppo (2006) a define como uma forma de olhar os fenômenos educacionais. Ele a aborda como um foco ‘sociocomunitário sobre a educação que, num sentido genérico, destacaria as influências recíprocas entre a educação e a comunidade-sociedade’ (2006, p.135). A contribuição de Groppo é dada ao introduzir e destacar a questão das diferentes lógicas sociais que articulam as práticas educativas no campo do que denomino como educação não-formal.(GOHN, 2010, p.27)
Seguindo o raciocínio da autora, enquanto na educação formal as
metodologias para o desenvolvimento de seus objetivos são elaboradas a partir
de um conteúdo previsto por lei no âmbito dos espaços tradicionais de
educação, e a educação informal garante como método a vivência e a
reprodução do conhecimento, a educação não formal, por outro lado, depende
do processo, não se antecipa, precisa esperar os resultados das ações
humanas para construir sua teia de envolvimento e seus métodos de aplicação.
2.6 - Em busca de uma pedagogia da autonomia
A aprendizagem também é realizada a partir da subjetividade. O
conceito é compreendido pelas pessoas somente quando lhes fazem sentido e
a partir de sua realidade, do mundo em que vivem, das coisas nas quais
acreditam. Sendo assim, as referências que trazemos em nossas vidas, que
são as nossas memórias, nossa bagagem cultural, são fundamentais no
momento da construção dos conceitos, pois são elas que darão o sentido para
53
que se possam entender os signos e símbolos que povoam nossas formas de
expressão – especialmente a literária.
São elas que nos fornecem os meios comparativos, os exemplos de que
precisamos para que novos conhecimentos façam sentido em nossa
aprendizagem.
Essa aprendizagem não acontece de modo individual, ao contrário, ela é
fruto da interação social, das experiências trocadas, dos sentidos
compartilhados e de um constante caminho a ser trilhado. Acontece em
qualquer momento de nossas vidas, parte de nosso processo de
amadurecimento.
Parte desse pensamento podemos encontrar nos estudos de Freinet,
que sustenta que as aprendizagens escolares não podem estar separadas da
realidade. Para ele, o método não era um modo de fazer, mas um processo
completo que envolvia o conjunto de ações e o fim que se esperava alcançar.
Ainda mais, “que as estratégias de educação deviam acontecer a partir
do aproveitamento da experiência da realidade, da vivência das pessoas”.
(FREINET, 2004)
Para Freinet, (2004, p.75-76) “a atividade, o desejo de conhecer e a
expressão caminham lado a lado”. Trabalhar com o potencial de cada pessoa
estimula e gera possibilidades de desenvolvimento intelectual. A liberdade de
produção desse conhecimento é o que garante a felicidade que, por sua vez, é
o que permite o contato com outras pessoas e um constante processo de
ensinar e aprender. Portanto, a cooperação é passo fundamental na
aprendizagem.
Chegamos, então, a mais uma dessas encruzilhadas do trabalho do
“Tecendo a vida...”. Aproveitado quanto a seu método – ainda que Freinet não
gostasse muito da palavra -, este autor expõe em seus estudos lições básicas
para o entendimento do processo de construção do conhecimento humano, e
este é reinventado no Projeto “Tecendo a vida...”, em sua prática pedagógica.
A cooperação, a troca de experiências, o amparo são elementos
fundamentais na construção das atividades propostas pelo Projeto, assim como
acredita Freinet. As pessoas podem até aprender sozinhas, mas é na interação
54
com seus pares que a cultura passa a ser transformada, assumida e
representada. Nisso, há que se fazer referência, também, a Vygotsky.
Assim, as bases para a construção da cidadania e novas possibilidades
de vir a ser são lançadas, pois o estímulo à cooperação, à troca, à empatia e
solidariedade acaba engendrando sentimentos de reciprocidade,
companheirismo e partilha. Logo, não é apenas uma aprendizagem científica,
acadêmica, em que o conhecimento é fechado e pronto para ser construído.
Trata-se, também, de uma aprendizagem moral, ou melhor, da articulação de
posturas sadias para a vida consigo e com o outro, em sociedade.
Considerar a experiência, a vivência das pessoas em torno daquilo que
se pretende ensinar pode fazer a verdadeira diferença, ou seja, quando se
passa pela experiência, quando se vivencia as sensações e ações é possível
conectá-las e permitir-lhes sentido imediato. A vida é a grande experiência da
qual as pessoas devem estar munidas para construir suas ações. O
conhecimento não é fruto apenas de pesquisas acadêmicas.
Acerca de produção de conhecimento, autonomia e sociedade, Paulo
Freire nos dá a base para mostrar, mais uma vez, como a dinâmica social e a
educação são ricas, suplantando autor e obra, construindo novas
oportunidades do estar no mundo.
As contribuições de Paulo Freire são muitas. Suas ideias foram
aproveitadas intensamente no Projeto e, a partir delas, novas práticas
educativas foram formuladas buscando ultrapassar a “educação bancária”. O
respeito por aquele que aprende é o ponto fundamental:
(...) O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de
55
ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber. (FREIRE, 2009, p.59-61)
O respeito às experiências vividas, à autonomia, o constante diálogo são
os pressupostos básicos do seu trabalho que deram as diretrizes para o
desenvolvimento das atividades do Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia”.
As experiências desenvolvidas por Paulo Freire são referenciais para
todos os profissionais da área da educação. Defendendo que a educação deve
ser feita a partir do povo e direcionada a ele, buscando condições de sua
realidade, de sua própria vida para que seja efetivamente construída, Paulo
Freire desenvolve sua pedagogia nos anos de 1950-1960.
Como foco de seu projeto, Paulo Freire defende que é na alfabetização
– voltada para adultos - que as pessoas se conscientizam e é a partir desse
processo que será possível a construção de uma sociedade democrática, que
se pretende mais justa.
Tal conscientização deve ser promovida pelo método de ensino, ou seja,
com relação à alfabetização. Em vez de manuais de letras soltas, o caminho
seria o de temas geradores contextualizados à realidade na qual as pessoas
vivem. Sendo assim, o processo de leitura e escrita começaria com a tomada
de consciência da condição de vida por parte do educando, entendendo o que
se passa a sua volta e tornando-se sujeito dentro do processo.
Nessa perspectiva, o sujeito que sofre o ato de aprender não é passivo,
não está “sofrendo” o ato, na verdade. Ele é autor, participa, é ator, constrói,
deixa de ser espectador. Torna-se “visível”.
De acordo com Paulo Freire, com isso a educação passa a ter uma
dimensão política, que possibilita à pessoa transformar sua realidade através
da conscientização e ação.
Todos os seres “visíveis” são capazes de construir o conhecimento
conjuntamente. Os seres “invisíveis” são convidados a participarem do
processo e isso é o que concerne a essas crianças e jovens a autonomia.
A crítica de Paulo Freire ao sistema bancário é entendida como
possibilidades e estratégias que construam com as pessoas a consciência
crítica de sua realidade e maneiras de mudá-la.
56
O respeito à diversidade é um dos fatores para a construção dessa
consciência, da autonomia, da cidadania, para a superação das desigualdades
e para o reconhecimento das habilidades necessárias ao desenvolvimento
individual e local. A superação dos estigmas sociais é um dos pontos centrais
nesse Projeto, que busca a sensibilização, a socialização, o pensamento
crítico, as possibilidades de diálogos, entre outros.
Ultrapassar os muros escolares e fazer com que a educação seja um
processo humano, mais que social, superando os espaços clássicos
destinados a sua aplicação, permitindo que todo lugar seja concebido
intencionalmente para a prática educativa, eis um dos pontos fundamentais
pretendidos com as atividades do Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia”.
2.7 - Ser criança e jovem: tragédia e comédia, o lirismo sempre presente na
tessitura da vida
As discussões acerca da diversidade cultural e, por consequência, de
cultura serão importantes para a compreensão dos conceitos a serem
debatidos adiante.
A cultura é um processo em construção, formada a partir de seu
cotidiano e forjada de acordo com os interesses dos inúmeros grupos sociais,
especialmente por aqueles que estão no poder e tentam tornar o seu modelo
de vida um padrão universal, a ser seguido por todos. Portanto, parte dessa
sociedade é constituída culturalmente.
O objeto de debate, nesse momento, é a criança e o jovem, sua
produção cultural e expressão artística, e o trabalho do Projeto como elemento
disparador dessa produção, acreditando no despertar da consciência individual,
subjetiva, além da coletiva, de tal forma que haja a construção da autonomia e
da cidadania.
Falar em crianças e jovens pressupõe compreender inúmeras esferas do
humano, inclusive conceitos elaborados, sobretudo, por diversas áreas do
conhecimento. Assim, puberdade pode ser definida como um termo que se
refere às mudanças no corpo da pessoa, identificando a passagem da criança
57
para a vida adulta. O termo adolescência, praticado por psicólogos educadores,
faz referência às mudanças comportamentais desse período. Os sociólogos,
por sua vez, referem-se a essa fase como juventude, especificando as
atribuições da etapa anterior e desse novo período do desenvolvimento
humano. Com algumas divergências, essas fases compreendem o período que
vai dos 10 ou 12 anos aos 19 ou 20 anos, aproximadamente, segundo Groppo
(2009).
Várias são as interpretações e inúmeros os conceitos que são
trabalhados por diversos profissionais e nas mais variadas vertentes das
ciências: antropologia, psicologia, sociologia, literatura, entre outras. As idades
que determinam os períodos também variam de acordo com os pensadores
sobre o assunto. Para nós, a categoria infanto juvenil é a que embasou nossos
estudos, especialmente o início dela, compreendido entre 10 a 12 anos.
Por juventude, a partir de interpretação sociológica, entende-se o período no
qual ocorre um processo social e cultural que prepara as pessoas, até então
crianças ou adolescentes, a assumirem as funções de adultos nas variadas
esferas da vida: profissão, família, círculo de amigos etc. Sob o prisma
da interpretação cultural, pode-se compreender que a juventude é um período
que possui diferenças e diversidades se observado em várias culturas e ao
longo da história. Em outras palavras, a juventude adquire conotações e
características diferenciadas de acordo com as sociedades e épocas. Até
mesmo dentro de uma mesma sociedade ela é diferenciada em função dos
grupos sociais culturalmente diversos. Por isso, ela é entendida também como
uma construção social e cultural.
De acordo com Giovanni Levi e Jean-Claude Schmidt (1996, p.8):
(...) a juventude caracteriza-se por seu marcado caráter de limite. Com efeito, ela se situa no interior das margens móveis entre a dependência infantil e a autonomia da idade adulta, naquele período de pura mudança e inquietude em que se realizam as promessas da adolescência, entre a imaturidade sexual e a maturidade, entre a formação e o pleno florescimento das faculdades mentais, entre a falta e a aquisição de autoridade e poder. Nesse sentido, nenhum limite fisiológico basta para identificar analiticamente uma fase da vida que se pode explicar melhor pela determinação cultural das sociedades humanas (...).
58
Com isso, considera-se que a juventude é mais um dado cultural
construído pelas sociedades para atender às suas necessidades. Tais
necessidades são diferentes de acordo com as sociedades em que estão
inseridas. Em uma sociedade capitalista, podemos vislumbrar artigos e roupas
que fazem um apelo ao modo do jovem- e da criança - se vestir, comportar-se
e, por isso, incentivam o consumo. Nessa mesma sociedade, podemos
observar também jovens e crianças que, ao precisarem ajudar no sustento da
casa, desenvolvem outros tipos de características e estilo culturais. Isso,
considerando-se apenas um aspecto, que é o consumo e o modo como eles
compõem sua identidade através da escolha da roupa, por exemplo. As
características variam a partir do gosto musical, das atividades realizadas e
partilhadas pelo grupo social, dos locais frequentados, entre outros. Contudo,
se levarmos em conta as condições sociais, as características sofrem
alterações, mudando desde o consumo até as atividades de lazer
desenvolvidas por eles.
Isso é de extrema importância, pois, na medida em que as condições
sociais são melhores do ponto de vista financeiro, tanto as crianças quanto os
jovens têm possibilidades de escolher entre as inúmeras atividades que a
sociedade oferece, desde esportes até cursos de idiomas e viagens, por
exemplo.
Para segmentos menos privilegiados da sociedade, é preciso esperar
por programas de assistência social, cursos oferecidos pelas prefeituras que,
na maioria das vezes, incentivam a preparação para o mercado de trabalho e
não puramente o lazer. Obviamente, não se pode e nem se está generalizando,
mas se mostrando um amplo aspecto das sociedades de hoje.
Direcionando a reflexão para outros aspectos, podemos observar
sociedades completamente distintas umas das outras no que se refere às suas
crianças e jovens. As sociedades indígenas são um exemplo de como a
juventude é entendida e incorporada pelos índios de maneira completamente
diversa daquelas mencionadas anteriormente.
De acordo com os antropólogos, as cerimônias de iniciação nas tribos
indígenas, ou os ritos de passagem, marcam a passagem da juventude para a
vida adulta. Em documentário baseado na obra de Darcy Ribeiro, intitulado “O
59
povo brasileiro”2, tais cerimônias contam com pintura do corpo, o uso de
enfeites ou adereços usados para a ocasião, a prova de coragem e bravura (no
caso dos meninos) ou sendo a pessoa retirada brevemente do grupo, em
função da primeira menstruação (no caso das meninas). A juventude não é
uma fase específica dessas sociedades, nem é valorizada. Trata-se da
passagem de uma fase para outra, essa sim, de grande importância, a fase
adulta.
A incorporação de sua cultura e a transmissão da cultura indígena
seguem valores diferentes. O uso da oralidade, bem como a valorização das
pessoas de mais idade na tribo são elementos essenciais na composição
cultural das tribos indígenas. Isso sem contar no processo de mudança que as
tribos no Brasil sofreram, após a chegada dos portugueses e ao longo de todos
esses anos.
Com as tribos africanas não é diferente, conforme o mesmo
documentário. Vários grupos étnicos possuem sua história e uma organização
social típica de seu grupo, que era diferente da estrutura imposta pelos
europeus, durante o século XVI, e mesmo nos dias de hoje.
Assim, a interpretação que cada grupo oferece para o seu grupo de
pessoas é diferenciada entre os demais grupos sociais e chega a ser diferente
dentro dela mesma. Isso é o que chamamos de diversidade cultural, de
construção das identidades individuais, culturais e sociais, dos modos de ser e
estar no mundo. Podemos dizer que estamos diante da diversidade na unidade
e vice versa, da complexidade e unidade planetárias.
2.8 – A autoria de si mesmo: culturas infanto juvenis em tempos atuais
Eu, Etiqueta Em minha calça está grudado um nome Que não é meu de batismo ou de cartório Um nome... estranho (...)
2 O Povo Brasileiro. Direção: Regina M. Ferreira: TV Cultura, 1995. 1 DVD (260 min).
60
Desde a cabeça ao bico dos sapatos, São mensagens, Letras falantes, Gritos visuais, Ordens de uso, abuso, reincidências. Costume, hábito, premência, Indispensabilidade, E fazem de mim homem-anúncio itinerante, Escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda Seja negar minha identidade,
Drummond
Os processos culturais, econômicos, sociais e políticos contemporâneos
alertam que o fenômeno da infância e juventude não deve ser compreendido
em faixas etárias muito bem demarcadas. As experiências de vida das
pessoas, as necessidades mais urgentes, as questões familiares – quando há
famílias -, além de outras exigências, como a aceitação de si mesmas, o
mercado de trabalho, acabaram prolongando ou encurtando as fases
entendidas como infância e juventude.
A construção das identidades culturais está, a cada dia, mais
relacionada à expansão dos meios de comunicação – especialmente as mídias
digitais – responsáveis pela difusão dos discursos, por sua elaboração e
negociação em que se insere o universo infanto juvenil.
Os meios de comunicação digital tornaram-se o local não só por onde a
realidade chega, mas o local onde ela se faz, e quem não tem acesso a ela,
está excluído do sistema, impreterivelmente. A escolha por aquilo que se
tornará notícia acaba privilegiando o conhecimento de alguns temas em
detrimento de outros.
A mídia dita regras às quais as pessoas, sobretudo as crianças e os
jovens, acabam se submetendo, e quase nada escapa a essa perspectiva de
dominação.
De um lado, o apelo imagético midiático tentando nos convencer a viver
segundo padrões estabelecidos; de outro, as relações humanas e sociais
tornando-se cada vez mais pluralizadas e diversas. Com isso, a criação de
identidades que assumem os modelos de determinado momento são uma das
61
vertentes existentes no cotidiano. Há, também, as pessoas que rejeitam as
identidades forjadas e impostas pela mídia e que passam a construir a sua
própria maneira de ser e estar no mundo. Certamente, estas últimas são uma
minoria.
Entender a formação das identidades a partir da perspectiva da própria
autoria, rejeitando modelos prontos, significa levar em conta os contextos
humano, afetivo, social, cultural, histórico, etc. com que essas identidades são
constituídas, e as dinâmicas que estão por trás disso.
O questionamento de modelos estereotipados, padronizados e impostos
em relação à própria existência, à participação social da criança e do jovem é
algo que está sendo sempre suscitado nas mediações e intervenções
pedagógicas do Projeto. Isso ultrapassa qualquer conceito de educação formal,
informal e não formal. Transforma-se na educação para a vida.
No início do Projeto, ouvi de uma aluna de 11 anos a seguinte frase “Eu
só gosto de usar roupa de marca.” Considerando-se o contexto de inúmeras
ausências dessa criança, é de causar assombro essa afirmação. Vivendo num
universo com pouquíssimos recursos: material, afetivo, cultural fica evidente a
sua necessidade de ser aceita num grupo que ela considera “ideal”, do qual a
professora é a representante imediata (em sua concepção), e ela se sente
excluída. A frase, dita num momento de conversa informal, soa como um
pedido de desculpas e de aceitação. É como se ela se desculpasse por não
poder corresponder àquilo que supõe ser de valor para determinado grupo e,
ao mesmo tempo, pede que a aceitem – já que ela compartilha dos mesmos
desejos desse grupo. Como se o não ter (uma calça jeans cara, os tênis e
acessórios da moda, uma casa sobre a qual falar, uma família...) a fizessem
“não ser”.
Inúmeras desconstruções passaram a ser perseguidas através das
leituras, discussões e escritas – propositalmente poéticas – durante o Projeto.
Por outro lado, muitas construções aconteceram da mesma forma,
durante as atividades, que buscaram a percepção do si, do fazer-se autor de
sua voz e de sua travessia, despojando-se de vestes emprestadas e
inadequadas.
62
Nesse universo em que vivemos, carregado de linguagens apelativas, a
criança e o jovem – extremamente influenciados pelas mídias e regras do
mercado – são alvo perfeito para o entorpecimento dos sentidos, da
imaginação criadora, da sensibilidade fraterna. O antídoto: o trabalho com a
linguagem poética: sensível, criativa, construtora de sentidos, libertadora. A
linguagem poética é uma travessia, através da qual há a possibilidade de se
reverter a fragmentação, a invisibilidade e o esfacelamento de nossa
humanidade.
63
CAPÍTULO III
TECENDO OS FIOS DA POEVIDA
O caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração.
Schiller
A poesia é criação do ser pelas palavras. Gaston Bachelard
Música planetária para ouvidos mortais,
a poesia transforma tudo o que toca. Sua secreta alquimia transmuta em ouro potável
as águas letais que da morte escorrem pela vida. Percy Shelley
Para criar passarinho
É preciso amor e carinho Porque ele é frágil com um ninho.
Vinícius – 6º A
3.1- O CIEP: um pouco da história
Uma breve retrospectiva se faz necessária, antes de apresentar o
Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia”, porque é importante saber as
origens das coisas.
No início da década de 1980, no Brasil, estavam acontecendo inúmeras
transformações e mudanças que iriam afetar o destino de muitas pessoas,
inclusive o meu. Dentre elas, enumero algumas: economicamente, houve um
considerável aumento da recessão e do desemprego, o que provocou um fluxo
migratório bastante intenso de pessoas buscando centros urbanos e industriais
à procura de emprego, bem como um índice muito elevado de marginalizados,
vivendo em condições subumanas, sem muita perspectiva; tivemos o fim da
ditadura militar e a consequente necessidade de retomada da democracia no
país; os profissionais da educação lutaram pela qualidade do ensino público;
surgiram inúmeros partidos políticos, e aconteceram as eleições diretas para
presidente e governadores; Leonel de Moura Brizola é eleito governador do
Estado do Rio de Janeiro, tendo como vice o antropólogo e educador Darcy
64
Ribeiro, grande idealizador de um tipo diferenciado de escola, os CIEPs,
influenciado pelo ideário escolanovista, especialmente por Anísio Teixeira.
Surgem, assim, os CIEPs – Centros Integrados de Educação Pública –
com proposta pedagógica que enfatizava a transdisciplinaridade, a gestão
democrática, o trabalho com as diversas possibilidades de linguagem como
maneira de expressão, articulando educação e cultura, no ensino de período
integral de 8 horas.
Talvez a mais importante característica dos CIEPs fosse a preocupação
com uma pedagogia voltada para o público carente que os frequentaria.
Muita polêmica e discussão foram geradas. Uns defendiam as novas
escolas, outros as acusavam de serem puramente frutos de interesses
políticos. Milhões foram gastos nas implantações dos CIEPs, não apenas no
Rio de Janeiro, mas em São Paulo, especificamente na cidade de Americana.
No início da década de 1990, o então prefeito Waldemar Tebaldi, do
mesmo partido político de Leonel Brizola, inaugura os dois primeiros CIEPs no
município de Americana: CIEP Anísio Spínola Teixeira, no Bairro São
Jerônimo; CIEP Oniva de Moura Brizola, no Bairro Antonio Zanaga.
Essas escolas de período integral – 8 horas diárias – passam a atender
crianças oriundas, em sua maioria, de famílias de migrantes, que tinham sido
atraídas para o município pela ideia de prosperidade em função das indústrias
têxteis locais. Entretanto, essas pessoas não encontravam colocação no
mercado de trabalho e acabavam vivendo em condições precárias, em locais
sem infraestrutura. A população marginalizada aumentou e, com ela, as
favelas.
Era comum encontrar crianças subnutridas, no centro da cidade,
maltrapilhas e sujas, fora das escolas, cujas famílias não tinham onde morar, a
não ser em barracos construídos nos bairros periféricos de Americana.
Foi neste panorama de polêmica e discussões entre políticos, membros
de órgãos educacionais, da sociedade civil e da mídia impressa local que se
inauguraram os CIEPs do Zanaga e do São Jerônimo, sendo que o último
ocupa lugar especial em minha história pessoal e profissional.
65
Em 1991, após ser aprovada em concurso público, ingressei como
professora de língua portuguesa, num dos Centros Integrados de Educação
Pública – CIEP – escolas municipais de Americana, que acabavam de ser
inauguradas.
Construídas à semelhança ideológica dos CIEPs de Leonel Brizola, do
Rio de Janeiro, a proposta pedagógica era desafiadora e sedutora para
educadores que, assim como eu, acreditavam na Educação como uma das
formas de libertação e de emancipação do ser humano, e viam na proposta das
novas escolas a possibilidade de realização de ideais profissionais.
Foram dez anos de muito trabalho, de incertezas, de angústias e
surpresas.
O início foi marcado pela desconstrução de muitos “valores” que eu
tinha. Tive de repensar minha concepção de educação: o que eu acreditava ser
o ideal era, de fato, o ideal para aquelas crianças? O que era prioridade,
naquele momento? Como poderia trabalhar conteúdos se lhes faltava o
conceito de escola? Se o estômago estava sempre a pedir alimento, como
alimentar o intelecto? Como falar de valores éticos e morais se viviam em
situações de abusos na própria família?
Enfim, foi um tempo de (re) construção, de buscas e de muitas
incertezas. Com erros e acertos, fui/fomos construindo a minha/nossa
travessia.
Foi no CIEP São Jerônimo que aprendi que só se consegue uma
aprendizagem significativa quando se “toca” o aluno; quando se consegue
transpor algumas barreiras, erigidas para o que acreditam ser uma defesa.
Durante dez anos, nesse ambiente, aprendi a inventar situações que
possibilitassem àquelas crianças e jovens poderem expor as imagens de si
próprios, do mundo e do outro, tendo a possibilidade de repensarem e, quiçá,
reconstruírem essas imagens.
Basicamente, meu trabalho centrava-se em música, literatura
(especialmente a poesia), filmes e dramatização. Esses eram os “motes” para o
estudo da língua portuguesa, das possíveis discussões e interpretações dos
textos e do mundo, das produções escritas por eles.
66
Certamente, as desconstruções e (re) construções aconteciam para
ambos os lados: o deles e o meu. Por isso, desnecessário dizer o quão difícil,
porém imprescindível foi, para ambos os lados.
3.2- O CIEP “Anísio Spínola Teixeira” e o projeto “Tecendo a vida nos fios da
Poesia”
Figura 1- Fachada do CIEP São Jerônimo. Foto tirada dia 16 de
agosto de 2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto.
Acervo pessoal da autora.
Hoje, o Ciep “Anísio Spínola Teixeira” conta com 738 alunos, da faixa
etária de 06 aos 15 anos (em média) e 13 alunos da EJA (Educação de Jovens
e Adultos).
A escola está localizada no Bairro São Jerônimo, periferia de
Americana e atende alunos deste bairro e também dos bairros Parque
Gramado, Jardim da Paz e Parque da Liberdade.
A escola também atende os alunos do 1º ao 5º ano residentes no
Conjunto Habitacional “Governador Mário Covas”, entregue às famílias em
meados de 2004, que possui escola somente do 6º ano em diante. Os alunos
deste bairro são transportados pelo poder público municipal.
67
Esses bairros caracterizam-se como de alta densidade demográfica,
com a população de baixa e média renda.
As construções são de pequeno e médio porte, em geral de alvenaria.
Mesmo assim, muitas caracterizam o nível socioeconômico dos moradores
como baixo.
Uma grande porcentagem de alunos provém de famílias
desestruturadas, apresentando, dessa forma, carências socioafetivas. Os pais
vivem de subempregos e lhes falta formação profissional.
O nível cultural é heterogêneo devido à procedência de vários estados e
regiões brasileiras.
São oferecidos 4 períodos e cursos, assim distribuídos: período integral
(7h30 às 15h50); período parcial (12h10 às 17h30); período vespertino (16h30
às 21h) e EJA (19h às 22h).
O quadro docente é composto por, aproximadamente, 50 professores,
entre PEB I e PEB II e 05 estagiários.
A escola possui biblioteca, sala de informática, brinquedoteca e
laboratório de Ciências, além de quadra poliesportiva e refeitório. Possui
também um gabinete dentário, onde os alunos recebem tratamento.
Segundo o PPP – Planejamento Político Pedagógico – do Ciep “Anísio
Spínola Teixeira” (2013, p.38), também conhecido por Ciep São Jerônimo:
A Educação Básica de Americana fundamenta sua proposta pedagógica apoiada nas concepções de homem, sociedade e cultura dentro da perspectiva histórico-cultural, tendo-as como ponto de partida para a estruturação do quadro curricular. A contribuição de alguns teóricos é importantíssima para a fundamentação dessa proposta para que haja entendimento e compreensão das relações entre desenvolvimento e aprendizagem, da importância da relação interpessoal e da afetividade no processo educativo, da relação cultura e educação, ajustada às situações de aprendizagem e das características da atividade mental construtiva do aluno em cada momento de sua escolaridade. As visões de mundo e os projetos educacionais desses teóricos, implícita ou explicitamente estão voltados à emancipação humana, à democracia, à igualdade social, à ruptura com modelos sociais excludentes e segregacionistas. Dentre eles, destacam-se Anísio Teixeira, implantador da 1ª escola pública de tempo integral, inspirando, assim, Darcy Ribeiro, idealizador dos CIEPs; Jean Piaget e Emília Ferreiro que indicam o processo de aquisição da escrita; Lev Vygotsky, que centra suas discussões na importância do processo em termos de aprendizagem. Para ele, a aprendizagem acontece nas interações com o meio social
68
e, dessa forma, ela alavanca o desenvolvimento do indivíduo; Henri Wallon, com sua teoria sobre a psicogênese da pessoa completa, a afetividade é como um refinamento das emoções, que acontece nas relações da pessoa com o meio, e Paulo Freire que aborda a questão da consciência emancipadora do sujeito, desenvolvida através da reflexão e a importância do papel do professor estar em constante reflexão sobre sua prática, revendo seus saberes e fazeres. Também é dele a contribuição às concepções da rede quanto à alfabetização de jovens e adultos. Essa fundamentação pedagógica procura respeitar a diversidade de cada segmento educacional com suas características e vivências próprias e apóia-se em princípios e diretrizes que regem e dão unidade à política pedagógica do município.
Doze anos após ter me desligado do CIEP São Jerônimo, depois de ter
trilhado alamedas e labirintos, e já cursando o Mestrado em Educação,
algumas vozes começaram a ecoar e tomar forma, até vir a certeza de que
minha pesquisa do Mestrado há muito tinha lugar definido para se realizar.
Foi com muita emoção e também ansiedade que retornei ao local em
que aprendi a ser educadora, tanto tempo depois.
Muitos amigos ainda estavam trabalhando lá, e isso facilitou
sobremaneira meu acesso às crianças e o desenvolvimento de minha
pesquisa.
Assim, comecei meu trabalho no dia 16 de agosto de 2013, uma sexta-
feira, e o dei por encerrado no dia 06 de dezembro do mesmo ano, também
numa sexta-feira.
Durante os, praticamente, quatro meses em que o Projeto se
desenvolveu, era uma prática sempre começar nossa atividade fazendo um
breve relaxamento com música, seguido de exercício de escrita automática.
Foram feitas projeções de vídeos de animação, de leituras de textos
poéticos literários de poetas como Bartolomeu Campos de Queirós, Carlos
Drummond de Andrade, José Paulo Paes, Cora Coralina, Vinícius de Moraes,
Cecília Meireles, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Florbela Espanca,
Fernando Pessoa, dentre tantos.
O contato com os textos sempre foi feito de forma cuidadosa: com leitura
expressiva, dramatização, declamação, audição dos próprios poetas revelando
seus poemas, projeções de slides com músicas e poesias, vídeos.
69
Intercalando o contato com os textos literários poéticos, numa situação
de diálogo com as crianças, deve haver a exploração do universo sensitivo das
palavras, vistas através dos cinco sentidos: sua sonoridade, as imagens que
elas evocam, o ritmo que elas produzem, o gosto que elas sugerem, suas
cores, seus cheiros, pesos e formas. Para tanto, há inúmeras possibilidades de
atividades, todas, porém, buscando aflorar a capacidade de criação, de
sensibilidade e de ressignificação de sentimentos trazidos pelas memórias.
3.3- O “semanário” de bordo
Dia 16 de agosto de 2013. Eram 7h30 de uma manhã de sexta-feira,
quando entrei no 6º ano B, já “orientado” pela professora de língua portuguesa,
durante a semana, de que a “professora de poesia”, como fiquei conhecida,
viria na sexta.
Eram muitos pares de olhos curiosos tentando desvendar a professora
que iria trabalhar poesia com eles.
Vencidos os momentos iniciais, comecei um monólogo, falando sobre
mim – como professora, mas também minha história de vida-, o porquê de
estar ali, e a importância que eles tinham para o meu trabalho.
Começamos com um breve exercício de relaxamento – que passou a ser
feito como o início de todos os nossos encontros.
Foi muito difícil no começo, já que eles tinham de fechar os olhos e se
deixar “levar” pela música de fundo – que, intencionalmente, era clássica,
instrumental, ou estilo “new age”. O estranhamento e agitação iniciais, com o
passar do tempo, acabaram dando lugar à ideia de que não poderíamos
começar as nossas atividades sem “relaxar”.
Também como procedimento de rotina, fazíamos a escrita automática,
que consiste no registro escrito do fluxo de pensamento, na medida em que ele
se dá na mente. Esse tipo de exercício é uma espécie de “aquecimento” e
“catarse”. Da mesma forma, é uma excelente maneira de motivar sensações e
emoções, por meio de lembranças auditivas, para a produção final do texto que
será escrito. Fazíamos a escrita automática ao som de trechos de músicas
variadas, de estilos diversos, passando pelo clássico, sertanejo, rock, funk,
70
pagode, MPB. Ao final da escrita automática, que não tem nenhum
compromisso com as normas gramaticais, coerência e coesão de ideias, a
maioria das crianças preferia rasgar e jogar no lixo o que havia registrado. É
um movimento de “limpeza”, em que o jovem é deixado em total liberdade de
expressão escrita, cujo registro não será lido por ninguém, nem por ele mesmo,
se assim o desejar.
Como primeira atividade, propus que escrevessem “Algumas
lembranças que me marcaram”, uma maneira de conhecê-los e de nortear o
trabalho que estava começando.
Fiz alguns desenhos na lousa:
Um olho, em cuja frente escrevi: “Alguma coisa/cena/acontecimento que
eu vi”; uma boca: “Uma palavra/frase que falei e feriu ou fez uma outra pessoa
feliz”; uma orelha: “Uma palavra/frase que ouvi de alguém e que me feriu ou
me fez feliz”; um pé: “Um lugar onde fui”; um coração: “Trago no meu
coração...”
Eles quiseram desenhar e colorir as imagens, antes de escreverem.
Perguntei quem gostaria de ler o que escrevera. Quase todos se manifestaram.
Conforme iam lendo, pedíamos para que dessem mais detalhes; como era hoje
falar sobre aquilo, por exemplo. Enfim, conversávamos sobre as lembranças e
os sentimentos que elas provocavam; sobre como alguns fatos lembrados
mudaram a vida de alguns, por exemplo.
Assim que terminaram, li para eles o poema “Minha Cidade”, de Cora
Coralina (2004, p.112):
Goiás, minha cidade... Eu sou aquela amorosa de tuas ruas estreitas,
curtas, indecisas, entrando,
saindo uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. Eu sou Aninha.
Eu sou aquela mulher
que ficou velha, esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
71
contando estórias, fazendo adivinhação.
Cantando teu passado. Cantando teu futuro.
Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.
Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.
Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras.
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.
Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
72
Pastados.
Calcinados
E renascidos.
Minha vida, meus sentidos,
minha estética,
todas as vibrações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.
Eu sou a menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Fizemos uma discussão sobre os possíveis entendimentos do poema, os
vocábulos que eles desconheciam; as sonoridades das palavras; os jogos de
palavras; falei-lhes um pouco sobre a autora do poema.
Dentre as inúmeras colocações que fizeram, uma delas causou-me
grande surpresa. A Jennifer (6º B), depois de momentos em silêncio, disse:
“Professora, parece que ela e a cidade são a mesma coisa...”
Li mais três poemas de outros alunos, de outra escola, que já haviam
feito a mesma atividade, como forma de motivação e valorização do que é
produzido por eles.
Pedi, então, depois de tudo o que havíamos conversado, lido e ouvido,
que cada um escrevesse o seu poema, cujo título gostaria que fosse “Eu Sou”.
Eles escreveram da forma como quiseram, e foi assim que terminamos nosso
primeiro encontro, cujos poemas tivemos de deixar para ler na semana
seguinte, porque a aula se acabara.
A Joyce (6º A) entregou-me um bilhete. Só consegui ler em casa: “Olá
aqui é a Joyce eu queria te agradecer a você por vim conhecer a nossa sala
obrigada por essas duas aulas maravilhosa que você deu para gente e
pretendo que você volte varias outras vezes! Gostei muito de você.” Havia um
coração no meio da página com meu nome escrito dentro. O bilhete estava
assinado:
73
Figura 2. Bilhete escrito pela aluna Joyce, do 6º A,
no primeiro dia de aula. Acervo pessoal da autora.
Como resultado da proposta “Algumas lembranças que me marcaram”,
selecionei alguns trechos reveladores da imagem que aqueles jovens têm do
mundo e de si mesmos. Os registros das perdas que sofreram, das cenas de
violência, dos aspectos negativos da vida são muito mais frequentes que
aqueles que remetem a momentos felizes.
“Vi, mas não queria ter visto o meu avô morto no velório” (Vinícius – 6ºA)
“A morte do meu avô que, com certeza, deve estar com Deus, no
momento” (Carolline – 6º A)
“Quando o meu avô foi morto” (Gustavo – 6º A)
“Quando eu fui ver meu avô no caixão” (Ana Clara – 6º A)
“O meu cachorrinho morrendo, ele estava com virose, não estava
conseguindo respirar, daí passou um tempo e eu saí com a minha mãe. Na
hora que eu cheguei ele já estava morto. Daí o meu primo foi lá e enterrou ele.
O nome do meu cachorrinho era Spyke” (Sabrina- 6º B)
“No dia do meu aniversário, fui para uma chácara e quando cheguei lá,
minha família inteira estava lá, e eu me emocionei, aquilo ficou na minha
cabeça e no coração” (Pedro Henrique – 6º B)
74
“Meu cachorro sendo atropelado”; “No enterro da minha tia” (Diego –
6ºB)
“Eu vi meu pai e minha mãe brigando”; “Eu falei que o meu irmão era
macaco”; “Que me ponharam apelido grilo em mim” (Igor – 6ºB)
“Quando eu vi pela primeira vez minha avó, com 10 anos” (Ana Carolina
– 6ºB)
“Enterro do meu tio” (Izabella – 6ºB)
“Uma coisa muito ruim, vi um cara bater muito no meu pai, é uma
péssima lembrança” (Jennifer – 6ºB)
“Quando meu avô morreu” (Guilherme – 6ºB)
“Os médicos falaram que a minha irmã tinha 7 horas de vida” (Izabella –
6ºB)
“Quando fui em São Carlos e minha família estava toda junta” (Ana
Carolina – 6ºB)
“Hoje de manhã vi uma menina apanhando de seu pai no meio da rua,
espancando a menina, deixando a cara dela roxa com o cinto na mão” (André –
6ºA)
“Hoje sexta-feira dia 16/08/13 eu vindo para escola, uma menina estava
apanhando de seu pai, o rosto dela estava tudo marcado e marcou muito ne
mim” (Joyce – 6ºA)
“Vi minha família triste, meu irmão estava preso” (Guilherme Henrique –
6ºA)
“Minha tia ofender minha mãe (tudo pela causa da inveja)” (Daniely –
6ºA)
Como resultados da produção do poema “Eu Sou”, percebe-se nos
trechos abaixo, embora escritos com vocabulário simples, o mergulho intenso
no universo emotivo, não muito comum e freqüente em jovens de 11 e 12 anos.
Os temas habituais versam sobre “grandes amores” e melhores amigos (as).
“Eu sou tudo Sou o que sou Sou o vento De vez em quando só o mar Eu sou como a água que refresca.” (Elano - 6ºA)
75
“Eu queria viajar
Pra qualquer lugar.
Ubatuba é um bom lugar.
Eu trago no meu coração e no meu olhar
Uma felicidade que não dá pra contar.” (Luís Fernando – 6ºA)
“Eu sou eu
Não sou quem você pensa que sou
Eu não sou do jeito que eu me visto
Eu sou eu por dentro
E não por fora.” (Pedro Henrique – 6ºB)
“Tenho vergonha de tudo
Até de falar com as pessoas
Como você pode ver
Não sou muito boa em poemas
E na aula que vem
Eu vou morrer de vergonha
De olhar para você
Pois vai ter lido este poema.” (Stéfany – 6ºB)
“Eu sou assim
Quando meu irmão sofreu acidente
Senti assim como uma onda tivesse me levado para longe
E o mar era feito pelas minhas lágrimas.” (Daniele – 6ºA)
76
Figura 3. Primeiro dia de "aula de poesia". 6º B com a professora Cibele. Foto tirada no dia 16 de
agosto de 2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto. Observa-se a data correta no
canto superior esquerdo da lousa. Acervo pessoal da autora.
Figura 4. Primeiro dia de "aula de poesia". 6º A com a professora Cibele. Foto tirada no
dia 16 de agosto de 2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto. Observa-se
a data correta no canto superior esquerdo da lousa. Acervo pessoal da autora.
77
Dia 23 de agosto de 2013, sexta-feira, 7h30.
Iniciamos a aula lendo os poemas feitos na semana anterior. Cada um
leu o seu, para a classe, e respondeu perguntas da turma. Fizemos um “varal
de poesias” na sala.
Nesse dia, começamos a atividade com um “brainstorm”, ou, “escrita
automática”. Eles preferiram a primeira denominação. Sempre ouvíamos
trechos de músicas como “objeto disparador” de memórias e emoções,
preparando-os para a escrita do texto final do dia.
Distribuí cópias de alguns poemas: “Ismália”, de Alphonsus de
Guimaraens; “Infância” e “Parêmia de cavalo”, ambos de Drummond;
“Reinvenção” e “Vai chover”, de Cecília Meireles; “O vento” e “Bilhete”, de
Mário Quintana; “Mundo pequeno- VII” e “As coisas tinham para nós...”, de
Manoel de Barros. Cada um leu aquele que recebera, tecendo algum
comentário, trocando as impressões.
Propus que fizessem “Comparações Originais” que consistiam em fazer
comparações inovadoras, a partir de sensações relativas aos cinco sentidos.
Na verdade é um exercício com a figura de linguagem chamada de
Comparação. Havia uma ressalva: eles não poderiam reproduzir associações
já comuns e desgastadas pela repetição (metáforas mortas), do tipo: azul como
céu; doce como mel; leve como pena etc.
Sugeri as seguintes imagens, que eles deveriam completar,
relacionando o adjetivo a uma percepção de sentido:
Azul como...
Silencioso como...
Leve como...
Delicado como...
Brilhante como...
Quente como...
Rápido como...
Escuro como...
Macio como...
Barulhento como...
Áspero como...
78
Agudo como...
Suave como...
Vazio como...
Pesado como...
Claro como...
Verde como...
Cheiroso como...
Triste como...
Lindo como...
Todos queriam ler as suas comparações. Pedi para que escolhessem
as cinco de que mais tinham gostado e, com elas, criassem um poema. Nós os
leríamos na próxima aula, pois não havia mais tempo.
Resultados surpreendentes das comparações, das quais apresento alguns
trechos:
“Leve como a minha alma
Forte como Sansão
Mas em certa ocasião
Em família não boto a mão” (Rafael – 6A)
“Pesado como a consciência
Cheiroso como o perfume da mãe
Triste como a morte do meu bisavô” (Pedro Henrique – 6ºB)
“Suave como ninho de pássaro
Cheiroso como menina” (Paulo Henrique – 6ºB)
“Vazio como uma pessoa sem amigos e
Pesado como a culpa de fazer o mal” (Ana Carolina – 6ºB)
“Escuro como uma prisão
Macio como as nuvens se movendo
Suave como o vento indo para um lugar onde não fui” (Cristhian – 6ºB)
“Azul como a amizade
79
Silencioso como casa abandonada
Áspero como o ódio” (Geovana- 6ºA)
“Azul como amigas juntas
Silencioso como árvore sem passarinhos
Triste como é ser pobre” (Ana Clara – 6ºA)
“Azul como o amor de um pai
Leve como toque de mãe
Brilhante como um diploma” (Samuel – 6ºA)
Dia 30 de agosto de 2013, sexta-feira, 7h30.
Começamos nossa aula lendo um trecho do livro Indez (2004), de
Bartolomeu Campos de Queirós. Percebia-se o interesse e mergulho na prosa
poética do escritor mineiro pelo silêncio das bocas e brilho nos olhos.
Sempre que fazíamos a leitura de poemas ou de prosa poética,
discutíamos sobre o que tínhamos ouvido e compartilhávamos as emoções
sentidas. Sempre havia a relação de algum fato com a vida de alguém. Nesses
momentos, eu aproveitava para questioná-los se o desfecho poderia ser
diferente, qual atitude poderia ser tomada, diferente da que foi, que
consequências para a vida da(s) personagem (s) aquela atitude acarretaria, por
exemplo. Procurava relacionar a ficção à vida deles, partir do ponto de vista
deles e fazê-los refletir sobre as “verdades” que a vida nos ensina; sobre
nossas escolhas, que são nossa responsabilidade, e que vão nos tornar mais
ou menos realizados e felizes; sobre as injustiças que sofremos e possíveis
formas de modificar essa realidade.
Esses momentos de leitura da obra de Bartolomeu, carregada de
sensibilidade e delicadeza, eram sempre aguardados com ansiedade, porque
eles queriam saber o que iria acontecer com o personagem, cujo relato de vida
não lhes era totalmente distante.
Fizemos a leitura dos poemas que eles haviam produzido na aula
anterior, utilizando algumas Comparações Originais:
80
O pássaro
Leve como lágrima de felicidade
Delicado como mão de princesa
Onde passa sempre deixa saudade
E afasta toda a tristeza.
Barulhento como as crianças
Do amanhecer ao pôr do sol
Nunca nos deixa perder a esperança
Pois nos fisga como um anzol.
(Stéfany – 6ºB)
Imaginação
É muito simples usar a imaginação
Não precisa de nenhum lugar silencioso
Como um porão.
Talvez tudo seja tão rápido
Como nosso pensamento
E se o sol não voltar
A gente pede para o vento.
(Giovana- 6ºB)
Poesia sobre coisas do mundo
Leve como as folhas secas
A cair sem machucar
Não é como a gente
Sem pensar ao desmatar.
A gota é igual à neve que cai
Tão levinha e macia
Para onde vai caindo
Até esparramar.
(Daniele- 6ºB)
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Nossas histórias
Um avião voando entre as nuvens geladas
Está no meio do nada
Num lugar escuro e pesado
Como uma mágoa.
(Júlia- 6ºA)
Desabafo
Quando você chega em uma pessoa
E vai falar o que sente
Fica o silêncio de uma canoa
E acaba que você mente.
(Vinícius- 6ºA)
Figura 5 - Alunas do 6º A fazendo a leitura das "Comparações Originais",
aula anterior. Foto tirada dia 30 de agosto. Acervo pessoal da autora.
82
Figura 6 - Alunos do 6º B fazendo a leitura das "Comparações Originais", da aula anterior.
Foto tirada dia 30 de agosto. Acervo pessoal da autora.
Dia 06 de setembro de 2013, sexta-feira: não tivemos aula, porque foi
dia de avaliação.
Dia 13 de setembro de 2013, sexta-feira: não tivemos aula, porque foi
reunião de pais.
Dia 20 de setembro de 2013, sexta-feira. Aula, finalmente! Várias
meninas (quase todas da classe) vieram me receber com um beijo e abraço.
Alguns meninos ensaiaram um beijo, mas a maioria ficou no abraço. A
vergonha era maior. No entanto, os laços estavam estabelecidos.
Contaram-me as “novidades” da turma e continuamos a nossa leitura e,
depois, conversamos sobre o livro do Bartolomeu. Presenteei-os com cópias de
poemas de Cecília Meireles e Drummond. Fizeram a primeira leitura sozinhos,
depois, quem quis, leu para a classe. Como de costume, conversamos sobre
os poemas lidos, seus autores e as descobertas que eles – alunos – faziam
nas obras que liam.
Nesse dia, assistimos ao vídeo de animação, traduzido como
“Convivência”3, produzido pela PIXAR Animation Studios (2001), com duração
de quatro minutos, aproximadamente. Tive de passar duas vezes, porque eles
3 Título original “For the birds”
83
me pediram. Todos queriam fazer algum comentário sobre a história. Tivemos
de nos organizar. Deixei-os à vontade para expor suas impressões. Falaram da
violência velada e explícita que, assim como no vídeo, acontece na vida. A
questão do preconceito, da intolerância e da discriminação em relação aos
“diferentes”, relacionando o personagem do vídeo e a si próprios a essa
situação de marginalização, em virtude de suas condições socioeconômicas.
Refletimos sobre as possibilidades de como lidar com situações de injustiças,
violência e intolerância. Levantaram casos de “outras” crianças e jovens que
sofrem violência e abusos na própria casa; de “outras” crianças e jovens, cujos
pais estão presos (muitas vezes pai e mãe) e têm de ficar em casas de
pessoas desconhecidas, que as maltratam; de “outras” crianças e jovens que
não têm o que comer, vestir etc.; daquelas que são usadas no tráfico de drogas
pelos próprios pais e assim por diante.
Figura 7 - Alunos do 6º A assistindo ao vídeo de animação "Convivência". Foto tirada
dia 20/09/2013. Acervo pessoal da autora.
Abaixo, alguns trechos selecionados das produções feitas pelos alunos.
Aparece, inúmeras vezes, a expressão “moral da história”, ou apenas “moral”,
sem que tivéssemos sugerido.
84
“Não se deve julgar pela aparência, mas pelo caráter” (Izabela -6ºA)
“Quando o cara se sentiu muito abalado foi buscar ajuda, mas só que ninguém
queria ajudar, aí ele foi em frente, com a cabeça erguida; quem xingava, ele
não dava nem treta. Chegou um dia, eles pararam e pediram desculpas”.
(Henrique- 6ºA)
“Na verdade, os passarinhos estavam tendo bullying com o pássaro grande e
não querendo deixar ele brincar” (Rhaissa – 6ºA)
“Isso significa que quem ri por último, ri melhor. Isso é bullying (...) tem que
aprender a conviver com todos, se ponha no lugar pra você vê se é bom. Quem
planta coisa boa, colhe coisa boa. E quem planta coisa ruim vai colher coisa
pior.” (Luís Fernando – 6ºA)
“Moral: Não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você.”
(Douglas – 6ºB)
“Moral da história: Não se deve julgar as pessoas pela aparência, mas
conversar com ela e saber o que ela tem de melhor, mesmo que ela não seja
bonita. Todos temos o nosso melhor para oferecer a outra pessoa ou para nós
mesmos.” (Izabella – 6ºB)
“Moral da história: Nunca rejeite uma pessoa, porque todos somos iguais.”
(Lorena – 6º B)
O texto abaixo foi escrito pela Jennifer, do 6º B, e transcrito após:
85
Figura 8- Texto produzido pela aluna Jennifer - 6º B. Acervo pessoal da autora.
Transcrição:
INDIFERENÇA!
Há coisas que eu não intendo, porque que a diferença é tão prejudicial a algumas pessoas? Se não houvesse a diferença o mundo seria sem cor, sem inspiração, pois todos teriam a mesma cara, os mesmos gostos, e não seria
legal. Por isso eu afirmo a diferença é precisa! Uma prova que a (há) descriminação pela diferença é um vídeo que eu assisti:
CONVIVÊNCIA Com dez pássaros pequenos de uma espécie voando, podemos considerar
uma ninhada de pássaros, até aí tudo bem, mas o problema começa quando um pousa em um lugar, e os outros começam a esbarrar um no outro, e
principalmente quando encontram um pássaro DIFERENTE deles, por ser maior, e de outra espécie.
Desde aí esses pássaros menores faz um grupinho para pensar no que fazer com o pássaro “diferente”.
O resultado não foi muito bom, no caso deles o resultado foi “frio” kkk, brincadeira, mas eu quis dizer eles ficaram sem pelos, mas com muitas
pessoas o resultado é uma dor mental.
86
Ao usar a palavra “indiferença”, a aluna revela sua sensibilidade e
percepção da falta de altruísmo, presença de egoísmo que movem os seres
humanos, representados no vídeo pelos pássaros.
Dia 27 de setembro de 2013, sexta-feira, 7h30.
Lemos mais um trecho do livro Indez (2004, p.65-66) do Bartolomeu.
Acredito que a maneira simples e, ao mesmo tempo, as palavras carregadas
de poesia têm o poder de encantamento nos jovens ouvintes, especialmente
pelo silêncio que fazem, o que não é o “normal” entre eles: Enquanto o frio
deixava névoa sobre as águas e sobre os campos, as asas tomavam sol nos
beirais das janelas. Vestidos de cetim branco, de anjos, eram repassados com
ferro de brasa enquanto as irmãs esperavam cada noite com os cabelos em
papelotes, enrolados com papel de macarrão.
Amêndoa é comida de anjo. Com a panela no fogo, a mãe dava banho
de açúcar em grãos de amendoim torrado. Aos poucos eles se vestiam de
roupa branca, e doce, combinando com o mês, a festa e a Santa.
No fim da tarde, armados em balaio, os cartuchos de papel-crepom
seriam a ceia dos anjos depois da coroação da Virgem.
Sobre o altar, com longas escadas laterais, Maria esperava sua coroa e
sua palma entre chuva de pétalas de rosas.
O pai trouxe pares de pilhas, pedaços de fios e lâmpadas pequeninas.
Enrolou o fio na coroa das meninas com as lâmpadas soldadas na ponta. As
pilhas ficavam em saquinhos de pano, que a mãe cosera, debaixo dos braços
das irmãs, anjos.
Na hora da coroação, entre cantos e solos, as luzes da igreja apagavam.
As irmãs com coroas iluminadas eram quase de verdade. E os fiéis oravam
juntos (...).
Depois os anjos recebiam cartuchos, e pela noite adentro caminhavam
de volta para casa comendo pérolas de açúcar. Era um pedaço do céu que
passava sob os olhos de Antônio.
Outra vez conversamos sobre o livro, as nossas vidas, o mundo, a
escola, os amigos e a família.
Pedi, então, para que fizessem um poema com o título “Coisas de que
eu gosto”. Observa-se, nos trechos abaixo, a importância de pequenas coisas
87
do cotidiano, a possível felicidade encontrada em situações de extrema
simplicidade. Ao mesmo tempo, as ausências e perdas.
“A felicidade de uma chegada
O amor que nunca acaba” (Ketlyn – 6ºB)
“Sentar na calçada e ver as estrelas
Ver meu bisavô me chamar
Entrar na casa e pensar
Depois deitar na cama
E sonhar” (Igor – 6º B)
“Adoro ser criança, mas sei que vou crescer
Mas criança por dentro
Sempre vou ser” (Não se identificou – 6º B)
“Acordar cedo
Olhar o amanhecer
Ir para o campo
Treinar na grama verdinha
(...)
Ir para a casa da minha vó
E todos os domingos comer macarronada,
arroz temperado ou lasanha.
Escutar o barulho do carro do meu pai chegando do trabalho”
(Víctor Hugo- 6ºB)
“No dia: acordo
Tenho vontade de ver meu primo
Ele me vê lá de cima
Tenho vontade
De ter um celular
Mas falta o dinheiro.
Como é bom ter amor
88
(...)
Não o vazio...
Ter uma vida dura
Mas ter o amor
É o importante.
A minha vida é boa
Porque tem o amor.” (Katleen – 6ºB)
“Acordar no sábado bem cedinho
Parar e pensar
Em minha vó
Que eu gostaria
de ter conhecido” (Bárbara- 6ºB)
“Lembrar dos bons amigos
Que não vejo mais,
Pois desta vida já partiram
Mas lá de cima me observam.
À noite, deixar o que passou para trás
Para no dia seguinte
Sempre lembrar que sou capaz.” (Bruna- 6ºB)
“Acordar cedo todos os domingos
(..)
Esperar meu pai chegar e
Matar a saudade grande.
Sempre que ele está comigo
Tudo é lindo.” (Eduarda – 6ºB)
Giovana (6ºB) fez o poema abaixo, cuja transcrição segue em seguida:
89
Coisas de que eu gosto
Do amanhecer...
bem quente do verão
de que tudo é feliz
quando se usa a imaginação.
De que nada se esquece
quando ama pra valer, já
que tudo tem razão, motivo e porquê.
Eu gosto de como um conto
se desencadeia no decorrer da folha,
no decorrer da linha.
Gosto de ver a esperança no
Olhar de cada criança, o
Colapso do pensamento.
90
Escrever o que me toca
no poço sem fim da gratidão
de como tudo que eu gosto
é com muito amor e compaixão.
Gosto de observar cada lugar
com a maior atenção que alguém
pode ter... afinal, isso é o que gosto
o que gosto de fazer.
Dia 04 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30.
Continuamos com nossa leitura do Bartolomeu. Lemos os poemas feitos
na aula anterior. Fizemos um breve exercício de escrita automática, ouvindo
trechos de músicas: rock, funk, clássica, sertaneja e pagode. Depois, ao som
de uma música instrumental ao fundo, pedi para que escrevessem “Coisas de
que não gosto”. Selecionei alguns trechos. No primeiro deles, nota-se o uso do
verbo odiar e não da expressão “não gostar”. A força verbal revela o
sentimento carregado pelo jovem, como se, nessas palavras, estivesse contida
toda a revolta que ele sente, abrangendo muito mais que família e amizades. É
todo um universo social, econômico e emocional o objeto da revolta,
evidenciado, especialmente, nos dois últimos versos.
“Odeio ficar sem a minha família
Odeio ficar sem amizades
Não me rebaixo para ninguém
Sempre vou ser quem eu sou.” (Guilherme- 6º A)
“(De) Menina feia
(de ficar) Sem meus amigos
Sem meus pais
Sem roupa de marca
Sem passear.
Faltar na escola
91
Não gosto de ver gente triste.” (Elano – 6º A)
“Das horas e minutos que passam depressa nos momentos bons.”
(Danielle – 6º A)
“De morar no Jardim da Paz
Da escola
Escrever
Ficar sozinho
Estudar
(...)
Não gosto de nada da escola, só dos passeios.” (João Vitor – 6º A)
“Ver alguém sofrer,
A falta de noção que existe no mundo
Pessoas brigando,
A morte.
Também não gosto da falta de respeito
Apenas queria
Que o mundo
Fosse um lugar melhor.” (Nadhyen – 6º A)
“Não gosto de ir pra escola
Não gosto de morar aqui nesse Jardim da Paz.
Não gosto de ler
Não gosto que levantem a voz comigo,
Que apontem o dedo,
De tapa.
Não gosto da professora ...
Não gosto da inspetora
Não gosto do diretor,
ele fala que eu sou o errado.” (Joel – 6º A)
“Não gosto de ofensas
92
Puxões, tapas, beliscões
Ou de uma brincadeira de mau gosto.
Queria que todo o mundo fosse tudo de bom
E o mundo sem violência.
Só amizade, paz, amor e união
Nesse mundo tão grandão.” (Stéfany – 6º B)
“Ouvir mais uma vez pela boca de meu pai: sua avó está doente.
Acordar e não ter o que fazer, pra onde ir.
Ouvir que alguém na família está doente com algo grave.
Chegar na casa de minha tia e ela está passando mal.
Ouvir o meu priminho chorar.
Acordar cedo com saudade do meu tio, minha tia e minhas primas
Longe eles estão e não posso vê-los.
Ouvir meu pai falar de meu avô e não poder conhecê-lo,
pois ele morreu quando eu tinha apenas quatro meses.”
(Não se identificou – 11 anos – 6º B)
Dia 11 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30. Hoje não houve aula,
porque os alunos ganharam ingressos para o Hopi Hari.
Dia 18 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30. Perguntei sobre o passeio
da semana anterior. Era como se estivesse no meio de um bando de pequenos
pássaros barulhentos. Eu sabia que eles estavam esperando por esse
momento. Não poderia decepcioná-los.
Para aquele dia, escolhi outra obra de Bartolomeu Campos de Queirós:
“Para criar passarinho” (2009). Por dois motivos: primeiro porque eles se
encantaram com a primeira, cuja leitura já havíamos terminado; segundo,
porque eu mesma me encantara pelo novo “livrinho”.
Mostrei-lhes a obra, e a exploramos visualmente. As cores vivas:
vermelho, amarelo, verde, tons de azul, rosa e lilás: por que será? “Porque é
alegre!”, “Para ficar mais bonito!”. As ilustrações: o que será que significavam?
“Elas estão representando as pessoas diferentes no meio das outras”;
93
“Representam que nem todos são iguais, tem sempre um diferente”; “Tem
sempre uma pessoa, um animalzinho, alguma coisa diferente, mas tudo junto
fica bonito, que nem os desenhos do livro”.
Relacionaram as ilustrações da obra com o vídeo “Convivência”, a que já
haviam assistido. Daí para fatos de seus cotidianos foi uma questão de
minutos.
Contei um pouco da história do autor daquele “livrinho”.
Entreguei um trecho digitado para cada aluno e solicitei 16 voluntários
para compor os 16 trechos da obra. Numerei-os de 1 a 16, aleatoriamente, sem
seguir a sequência numérica do livro, e fui pedindo que cada um lesse o seu
trecho para a classe.
A cada leitura, eu relia a passagem, da forma mais expressiva possível,
e discutíamos as inúmeras possibilidades de compreensão, as palavras, cujos
significados eles desconheciam; os sons; os possíveis porquês, as
probabilidades de relação com as vidas das pessoas e deles mesmos.
Cada aluno, então, escreveu o seu texto “Para criar passarinho” e
ilustrou. Combinamos de ler os poemas na aula seguinte.
Figura 9 - Alunos do 6º A escrevendo "Para criar passarinho". Foto tirada em
18/10/2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto.
Acervo pessoal da autora.
94
Figura 10 - Alunos do 6º B escrevendo "Para criar passarinho". Foto tirada
dia 18/10/2013. Acervo pessoal da autora.
Esse dia foi de extremo envolvimento. Pode ser pelo tema ou a forma
poética e simples com que Bartolomeu fala de sentimentos profundos como a
busca pela liberdade, a realização dos sonhos, a importância da sensibilidade
no convívio com os outros, a compaixão por tudo o que nos rodeia.
Contagiados pela envolvente prosa poética de Bartolomeu, os alunos
escreveram, com o título “Para criar passarinho”:
95
Figura 11- Poema produzido pelo aluno do 6º A, Luís Fernando,
dia 18-10-2013. Acervo pessoal da autora.
“Para criar passarinho
É preciso amor e carinho
Porque ele é frágil como um ninho.
Voar sem pensar
de um lado para outro
Voar, voar, voar sem parar.
Para criar passarinho
É preciso de espaço
Ser livre como o vento
96
Amar a cada passo.” (Vinícius – 12 anos – 6º A)
“Para bem criar passarinho
Tem que abrir as asas para o infinito
Não ter medo de viver
e ser livre para chegar ao seu destino.
Tem que abrir as asas do coração
e ter amor e compaixão.
Tem que voar sem medo
de perder o equilíbrio.
Tem que confiar em si mesmo
E só, só assim chegará a seu destino.” (Ketlyn – 11 anos – 6º B)
Figura 12 - Ilustração da Ketlyn para o poema acima. Acervo pessoal da autora.
Para bem criar passarinho
É preciso ter muito carinho
Sendo você diferente e tal
Todo mundo é especial.
Para bem criar passarinho...
Você é muito especial
Mesmo sendo negro e tal.
Eu me sinto sozinho
Mas Deus está comigo.”
(Pedro Henrique – 11 anos)
97
Figura 13 - Poema e ilustração de Pedro Henrique - 11 anos - 6º B.
Acervo pessoal da autora.
Nos versos: “Você é muito especial/ Mesmo sendo negro e tal./Eu me
sinto sozinho/ Mas Deus está comigo.”, eis uma “confissão” do mais íntimo
grau, já que o jovem está falando de si mesmo, da segregação e discriminação
que sofre. Certamente, não foi um ato insignificante expor-se assim. Isso só foi
possível pelo trabalho de motivação e sensibilização por meio dos textos
poéticos, e por deixá-los ter voz, todos os dias de nossos encontros.
Criar laços de amizade e respeito foi fator imprescindível para que eles
conseguissem quebrar barreiras de baixa autoestima, de invisibilidade, de auto
imagem negativa. Trabalhando com a linguagem poética e valorizando o que
tinham a dizer, aos poucos aqueles jovens foram alterando alguns
comportamentos, como a dificuldade de expressar seus sentimentos ao outro.
Exemplo disso foi que, junto do poema, Pedro entregou-me o desenho abaixo:
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Figura 14 - Desenho de Pedro - 11 anos - 6º B.
No canto superior esquerdo está escrito:
De: Pedro; Para: Rebeca; 18/10. Acervo pessoal da autora.
Figura 15 - Poema escrito pela Daniely - 11 anos - 6º A - data: 18/10/13.
Acervo pessoal da autora.
O Guilherme tem 11 anos (6º A), mas parece que tem mais. Observa-se
que, ao citar Bartolomeu, ele relaciona o texto poético à própria vida, e o faz de
99
uma maneira muito profunda e madura para a idade que tem. Ele entende que
poesia e vida andam juntas:
Para criar passarinho A vida é sofrida, mas Deus cuidará dela. Como dizia Bartolomeu, “para bem criar passarinho é essencial possuir um arco-íris, ilusão de água e sol, rabiscando no céu para passarinho pousar depois da chuva. E isso se faz possível escolhendo nas nuvens as sete cores, ao entardecer.” Muitas vezes você está se perdendo, mas aprendi que nós só saímos da gaiola, quando a vida permitir. Na vida você ganha, perde, a gente aprende com o tempo, basta ter fé.
Para bem criar passarinho,
É preciso lhe dar amor e carinho
Não deixá-lo preso e nem sozinho.
Deixá-lo solto, vagando por aí, dia e noite, céu afora
Fugindo de seus grandes inimigos
De quem ele só quer ser amigo.
(Bruna – 11 anos – 6º B)
Para bem criar passarinho
É preciso soltá-lo livremente
E deixá-lo voar.
Criar passarinho não é prender, é ensinar.
Criar passarinho é cair e levantar,
É ter certeza de que você pode superar.
E também é preciso aprender a perdoar.
(Víctor Hugo – 11 anos – 6º B)
Para bem criar passarinho
É preciso criar asas (...) pensar nas diferenças daqueles que são iguais
(Cristhian – 11 anos – 6º B)
Para bem criar passarinho
É preciso ser um deles
Para ver como a vida deles é dura
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Ver o ódio, a raiva, o caráter e o amor,
que é o mais importante para nossa vida,
Não tem. (...)
É duro ter uma vida ruim.
(Katleen – 12 anos – 6º B)
Para criar passarinho
É preciso superar desafios
E aguentar as dores
Que o caminho,
para um lugar melhor,
causam em ti.”
(Kevin – 11 anos – 6º B)
Em todos os trechos acima, é flagrante a analogia que conseguiram
fazer da poesia com a vida: os passarinhos são eles mesmos, e deixam isso
explícito ao afirmarem, por exemplo: “É preciso criar asas (...) pensar nas
diferenças daqueles que são iguais”; “Para ver como a vida deles é dura/ Ver o
ódio, a raiva, o caráter e o amor/ que é o mais importante para nossa vida/ Não
tem./ (...) É duro ter uma vida ruim.”
Ao terminar a aula, saindo da classe, veio ao meu encontro a aluna
Katleen Cristina, com um envelope nas mãos. Disse-me: “Professora, é para a
senhora ler em casa, tá?” Sorriu e saiu correndo para o intervalo.
Figura 16 - Envelope com duas remetentes: Katleen, a aluna do 6º B, e
Katherine, sua irmãzinha de 01 ano de idade. Acervo pessoal da autora.
101
Dentro, o bilhete carregado de carinho:
Figura 17 - Bilhete da aluna Katleen Cristina - 6º B - Acervo pessoal da autora.
Assim diz:
Rebecca eu gosto muito de você. Você é minha professora preferida. Te amo, eu adoro você e a aula de Poesia.
Rentil (ela quis dizer Gentil) inTeligente mEiga Educada Bonita LEgal Aula de Poesia Carinhosa Maravilhosa
RebeCca rOmântica Amorosa
Te Amo (dentro do coração) Feliz dia dos professores, eu não esqueci, mas ficou atrasado. Rebecca sempre esperança Eu adoro sua aula.
Chamou-me a atenção a palavra “esperança”, na penúltima linha do
bilhete. Ela deve estar associada à ideia de que a professora, por meio das
aulas de poesia, possibilita-lhe acreditar que é possível algo de bom acontecer,
de tal forma que algum aspecto de sua vida melhore. O foco, portanto, são as
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aulas de poesia e o que ela pode provocar na vida da criança, e não a
professora.
Dia 25 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30.
Fomos à quadra de esportes para cantar o Hino Nacional. A diretora da
escola era quem inspecionava os alunos para ver se eles sabiam cantar direito.
Disse-me que precisávamos resgatar o respeito aos símbolos da pátria; que se,
não fizessem isso, daqui a algum tempo eles nem saberiam o nosso Hino.
Entre sonolentos e desmotivados, eles cantaram não só o Hino
Nacional, mas o hino da cidade de Americana. O primeiro eu também cantei ao
lado deles, mas o segundo deixou-me envergonhada, pois eu não sabia a letra.
Em classe, relembramos o que havíamos feito na semana anterior e
deixei livre para quem quisesse ler o seu poema para a turma.
Como se tornara hábito, felizmente, todos queriam ser os primeiros a ler.
Organizamos as leituras e, ao final de cada uma, eles começavam a aplaudir
o(a) amigo(a).
Vivenciaram momentos de orgulho de si mesmos, por perceberem que
eram capazes de produzir algo que provocava a admiração e o respeito nos
outros.
Perceberam que, pela linguagem poética, eles poderiam se expressar,
ter suas vozes ouvidas e ganhar o respeito das pessoas.
Os textos produzidos por eles, também serão referência para estudarem
a língua portuguesa, conforme me pediu a professora Cibele. Confessou-me
que os conhecera muito mais, depois de ler as produções feitas por eles, e que
aquilo a ajudaria a entendê-los e orientá-los melhor.
A autoconfiança, o refletir sobre si mesmo, o mundo e o outro; a
possibilidade de transformar a realidade, de se fazer ouvir são alguns
resultados que, acredito, pelo menos algumas daquelas crianças alcançaram.
Tive essa certeza pelas produções que fizeram, pelo próprio comportamento
observado nesse tempo em que estivemos juntos e, nesse dia, materializou-se
na atitude de uma das alunas, talvez a mais tímida da classe, com muitas
dificuldades de escrita e de aprendizagem.
Abaixo, o bilhete e, após, a transcrição:
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Figura 18 - Bilhete escrito pela aluna Katleen – 12 anos - 6º B. Acervo pessoal da autora.
O bilhete diz:
Rebecca No começo eu não tinha vontade de escrever o poema porque não tinha
tema, mas agora não tenho mais isso porque tem temas. No começo quando você foi se apresentar eu tava com medo de você falar que não tava legal, mas agora não tenho. (Dados pessoais da aluna, inclusive a data de nascimento: 16/05/2001)
A palavra “tema” nos remete às atividades de motivação desenvolvidas:
ler e ouvir poemas, prosa poética de autores diversos, ouvir músicas, discutir
sobre determinado assunto antes de iniciar a produção escrita, dentre outras.
Em geral, os alunos associam a produção dos textos à escrita formal, às
vezes impessoal, mais voltada para aspectos gramaticais, para posterior
correção da professora. Uma produção destinada a questões técnicas,
desprovida de valores e marcas pessoais. Portanto, não significativa.
Naquela sexta-feira, antes de terminar a aula, pedi para anotarem no
caderno, a fim de não esquecerem: na próxima semana não haveria aula, em
virtude do feriado de Finados, mas, na outra semana, que eles levassem à aula
um objeto ou uma foto (poderiam ser os dois), que fosse muito significativo e
trouxesse(m) lembranças de momento(s) muito(s) importante(s) em suas vidas.
Dia 01 de novembro, sexta-feira. Não houve aula. Feriado de Finados.
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Dia 08 de novembro de 2013, sexta-feira, 9h. Fui à escola para
desculpar-me, pois não poderia ficar naquele dia. Compromissos profissionais
impediam-me. Principalmente, em respeito às “memórias” que eles tinham
levado. A professora alertou-me para o que encontraria no 6º B: estavam aos
prantos, porque duas amigas da classe estavam indo embora para outra
escola.
Pedi licença ao professor que estava na sala, desculpei-me com eles e
começamos a conversar sobre perdas; idas e vindas; lembranças que ficam
guardadas no coração; pessoas queridas que sempre são representadas por
algum símbolo - algo que as fazem presentes, mesmo estando ausentes
fisicamente; sobre a importância da amizade.
Foi, então, que a aluna Giovana, uma das que iam para outra escola,
pediu-me para fazer uma homenagem à classe. Queria ler o seu poema “Para
criar passarinho” para os amigos. Nesse momento, entendi a importância do
que havíamos feito nesses encontros às sextas-feiras. Fora tão significativo
para todos eles a realização das produções escritas que a Giovana, num
momento de extrema carga emotiva para eles, queria presenteá-los com algo
do qual todos haviam participado, como se fossem cúmplices, e aquilo lhes
falasse na alma. Estavam todos falando a mesma língua, em sintonia.
Figura 19 - Giovana lendo seu poema "para criar passarinho",
em homenagem aos amigos: o 6º B. Acervo pessoal da autora.
105
Alguns versos do poema da Giovana – 12 anos – 6º B:
“Para bem criar passarinho,
que (o menino) voe distante novamente
que voe para dentro e para fora de si
que seja a realidade de quem canta
para alguém dormir.
(...)
Voe alto na imaginação
junto do que ama seu coração.
Voe triste, voe feliz, voe na solidão
Do pequeno passarinho
Que será um gavião.”
Figura 20 - Os semblantes de tristeza pela partida das amigas, 6º B –
Acervo pessoal da autora.
106
Figura 21 - O registro da despedida: a professora Rebecca ladeada pela
Giovana (E) e pela Bruna (D). Ao redor, todos os amigos e amigas do 6º B.
Dia 22 de novembro de 2013, sexta-feira, 7h30. A classe estava em
polvorosa: uns porque exibiam satisfeitos seus objetos preciosos trazidos sob
recomendações de cuidados de alguém de casa; outros porque não se
conformavam que haviam esquecido.
Como de costume, distribuí alguns poemas inteiros e trechos de outros,
de Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa, Henriqueta Lisboa. Leram em
silêncio, primeiro; depois pedi, para quem quisesse, que lesse o que havia
recebido. Conversamos, um pouco, sobre as leituras feitas e suas percepções.
Estavam muito ansiosos. Começamos, então, com cada um mostrando a
sua foto ou seu objeto e contando sua história. As fotos eram afixadas na
lousa, e os objetos colocados sobre a mesa da professora.
Abaixo, exemplos de dois momentos:
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Figura 22 - Fotos do 6º A afixadas na lousa. Acervo pessoal da autora.
Figura 23 - Objetos do 6º B. Acervo pessoal da autora.
Selecionamos pequenos trechos das produções feitas pelos alunos dos
6º A e 6º B:
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“Lembranças do passado
Eu trouxe duas fotos e um vestido rosa com flores. Ele passou por três
gerações: eu, minha prima e minha irmã, e vai ir para minha filha. A foto tirei
com 2 anos no parque Zológico de Americana.
Minha tia tinha ganhado o meu primo Bruno, só que depois de 2 semanas, ele morreu bem bebê, que dó.”
(Katleen Cristina – 6º B – 12 anos)
A aluna Jennifer, do 6º B, levou uma foto de quando era bebê, mas não
quis falar sobre sua história. Pediu-me se poderia apenas escrever. Concordei.
Eis seu relato:
“Na minha
Família a
Tristesa é
Sem fim.
Mortes,
Brigas,
Confusões
É normal
Em toda família,
Mas na minha é natural.
Professora,
Na minha família é normal confusões, brigas, discussões, esse foi um
dos motivos para meus pais se separarem, porque minha avó se mudou com
os meus primos e meu tio pra onde nós morávamos. Não gosto de contar
histórias pessoais, mas isso ninguém me contou essa história, eu que
presenciei e tirei a conclusão.”
109
Figura 24 - Texto da Jennifer, 12 anos - 6º B- sobre o objeto levado: uma foto.
Acervo pessoal da autora.
“A blusinha da Bisa
Certa vez minha Bisavó pediu para que eu fosse ao quartinho dela para
me dar um presente, pois era meu aniversário. Então ela me deu uma blusinha,
dali pouco tempo ela veio a falecer. Por isso essa blusinha é tão importante na
minha memória.”
(Mayara – 11 anos – 6º B)
“A história do meu primeiro vestido rosa
A minha vó comprou um vestido pra minha mãe, quando ela era nenen,
com o passar do tempo a minha mãe gostou tanto do vestido que guardou pelo
110
resto da sua infância. Passou alguns anos e minha mãe me teve e quando eu
completei 11 meses, por aí, ela me deu, e tirou uma foto e até hoje nos meus
12 anos eu o guardo de recordação.”
(Larissa – 12 anos – 6º A)
“Bem, aquela foto é de quando eu era pequena, tinha 2 anos e o Kevin
também, a gente estava na casa do Kevin brincando de casinha. Eu escolhi
essa foto por ele ser um amigo muito especial e a nossa amizade ser de anos,
vai fazer 10 anos que nós somos amigos, e é isso. Eu gosto muito dele e
espero que a gente sejamos amigos para sempre. Apesar dele ser chato e
bobo às vezes mas eu gosto muito dele.”
(Maria Eduarda – 6º A)
“Computadorzinho
Quando eu era pequena meu pai tinha um mini computador tipo um
netebook aí minha mãe mandou eu limpar ele e eu lavei com água e quebrei.
Depois que meu pai descobriu bateu em mim e no meu irmão no banho.”
(Izabela – 11 anos – 6º A)
“La muerte
Estava roco e com um pouco de falta de respiração. Minha mãe me
levou ao médico e no meio do caminho eu perdi totalmente a voz e parei de
respirar, e quando eu cheguei lá respirei por uma mascara de oxigênio, mas eu
ainda não tava falando e o medico disse se eu tivesse demorado um
pouco mais eu teria morrido, aí quando fui comer no hospital tinha 3 tipos de
gelatina aí eu apontei pra uma e minha mãe brincava comigo falando a outra e
foi o melhor dia que eu fui ao hospital.”
(Vinícius – 6º A)
111
Figura 25 - Texto escrito pelo aluno João Pedro - 11 anos - 6º B.
Acervo pessoal da autora.
Naquele final de manhã, já de saída, ouço me chamarem. A Daniele vem
correndo com um papel na mão. Entrega-me e sai correndo de novo, sem dizer
palavra.
112
Figura 26 - Bilhete escrito pela aluna Daniele - 6ºB - Acervo pessoal da autora.
Criar laços afetivos, estabelecer relação de respeito mútuo e motivar as
crianças a refletirem e expressarem seus universos pessoais são fundamentais
na (re) construção de sua auto imagem e perspectiva de vida. Isso estava
acontecendo, por meio do mundo poético.
Dia 29 de novembro de 2013, sexta-feira. Não fui à escola, porque
minha netinha nasceu no finalzinho da tarde do dia anterior. Estávamos todos
embriagados, em casa, sem espaço para outro pensar. Avisei a professora que
não iria e me desculpei.
Dia 06 de dezembro de 2013, sexta-feira, 7h30. Fui à escola, mas não
teve aula. Era dia de reunião de pais e os alunos não foram.
Dia 13 de dezembro de 2013, sexta-feira, 7h30. Recebera recado da
professora de que seria Conselho de Classe naquele dia, portanto, não haveria
aula. Fui mesmo assim. Eu não veria mais os alunos naquele ano, mas pedi
113
autorização para voltar no ano seguinte, no início das aulas, para agradecer,
despedir-me deles e entregar-lhes uma lembrança.
Aquele também foi o dia em que vi o amigo Emílio Coelho Augusto pela
última vez. Foi ele, na condição de coordenador pedagógico da escola, quem
possibilitou meu trabalho com aquelas crianças. Sua vida lhe seria roubada, um
mês depois, exatamente por um jovem que, anos antes, fora aluno da escola.
Pode ser – quem o saberá – que a poesia tivesse mudado o curso da
vida daquele ex-aluno que, possivelmente, ratificou a imagem que tinha de si
mesmo e do mundo em que vive, encontrando, num ato de barbárie, a
visibilidade que não tivera até então.
O texto poético desperta a sensibilidade, a capacidade de percepção
das pessoas quando leem, ouvem e conversam sobre ele. É possível levar a
criança a ler nas entrelinhas os sentidos implícitos e latentes nas obras
literárias. Como exemplo, podemos citar o comentário da aluna Jennifer (6ºB)
em relação ao poema de Cora Coralina, “Minha Cidade”: “ Professora, parece
que ela e a cidade são a mesma coisa...”
A literatura contribui para o resgate de memórias da criança e do jovem
e sua (re) construção de subjetividade: “Eu sou eu/ Não sou quem você pensa
que sou/ Eu não sou do jeito que eu me visto/ Eu sou eu por dentro/ E não por
fora.” (Pedro Henrique – 6ºB).
Pelas memórias-lembranças resgatadas com os textos poéticos, eles
revelam as imagens que têm de si, da família, do lugar onde moram e do
mundo. Suas perdas e revoltas ficaram muito mais evidentes que os aspectos
positivos de suas vidas: “Quando eu fui ver meu avô no caixão.” (Ana Clara -
6ºA); “Uma coisa muito ruim, vi um cara bater muito no meu pai, é uma
péssima lembrança.” (Jennifer – 6ºB); “Vi minha família triste, meu irmão
estava preso.” (Guilherme Henrique – 6º A); “(Não gosto) de morar no Jardim
da Paz...” (João Vitor – 6ºA); “Não gosto de ir pra escola/ Não gosto de morar
aqui nesse Jardim da Paz/ (...) Não gosto da professora/ Não gosto da
inspetora/ Não gosto do diretor, ele fala que eu sou o errado.” (Joel – 6º A).
Nota-se, no último trecho, a sensação de não pertencimento ao grupo, de
negação de aspectos relevantes que compõem a própria identidade, que são
intensificados pelo recorrente uso do advérbio de negação “não”. Em “ele fala
114
que eu sou o errado”, a criança já introjetou a negatividade em sua auto
imagem; ela revela a sua voz emudecida, a sua invisibilidade, naquele
momento. No entanto, a poesia “transforma tudo o que toca” e, uma vez tendo
tocado o coração da criança, é bem provável que transmutará “em ouro potável
as águas letais que da morte escorrem pela vida”.
Por meio da linguagem poética, há um mergulho intenso no plano das
emoções. A poesia produz encantamento, sensibiliza o ser humano e
estabelece laços entre as pessoas, fazendo-as (re) pensar sua própria
existência e sua relação com tudo o que as cerca: “Vazio como uma pessoa
sem amigos/ e pesado como culpa de fazer o mal.” (Ana Carolina – 6º B);
“Leve como as folhas secas/ a cair sem machucar/ Não é como a gente/ Sem
pensar ao desmatar.” (Daniele – 6º B); “O pássaro: leve como lágrima de
felicidade/Delicado como mão de princesa/ Onde passa sempre deixa saudade/
E afasta toda a tristeza (...).” (Stéfany – 6º B).
Os símbolos que povoam os textos poéticos despertam a imaginação, a
criatividade e nos permitem estabelecer relações entre a ficção e a realidade
vivida: “(...) tem que aprender a conviver com todos, se ponha no lugar pra
você vê se é bom. Quem planta coisa boa, colhe coisa boa. E quem planta
coisa ruim vai colher coisa pior.” (Luís Fernando – 6º A); “(...) Todos temos o
nosso melhor para oferecer a outra pessoa ou para nós mesmos.” (Izabella –
6º B); “Para bem criar passarinho/ Você tem que ser solto/ Porque preso
parece que você/ É um esboço!” (Luís Fernando – 6º A).
O mundo simbólico da poesia pode transformar vivências que causam
sofrimento em projeções e perspectivas de melhores momentos, de uma
existência mais feliz: “Para criar passarinho: Sempre voei carregando pesos/
para conseguir ser quem eu muito quero ser/ Não vou, nem quero fazer coisas
que me falam para fazer/ Para viver sigo para frente/ Com a linha do infinito/
Vou completamente sem paz/ Mas crendo em mim/ posso aguardar a riqueza
que um dia vou encontrar (...)” (Daniely – 6º A); “Criar passarinho é cair e
levantar/ É ter certeza de que você pode superar/ E também é preciso aprender
a perdoar.” (Vítor Hugo – 6ºB).
115
A convicção no caráter transformador da linguagem poética foi ratificada
por recente estudo realizado por especialistas da Universidade de Liverpool,
publicado em 15 de janeiro de 2013, afirmando que a poesia provoca o lado
direito cerebral, responsável pelo armazenamento das memórias e lembranças
das pessoas, ajudando-as nas reflexões autobiográficas, de forma a entendê-
las sob outra perspectiva.
Segundo Jobim e Souza (2005, p.159):
O mundo em que a criança vive suas relações com o outro é um “claro-escuro de verdade e engano”. Nesse mundo, assegura Kosik (1976), a verdade não é dada, não está acabada, impressa de forma imutável na consciência humana; a verdade é algo que se faz constantemente nas relações sociais e por meio delas. Quando a criança se apropria da linguagem, revelando seu potencial expressivo e criativo, ela rompe com as formas fossilizadas e cristalizadas de seu uso cotidiano, iniciando um diálogo mais profundo entre os limites do conhecimento e da verdade na compreensão do real.
A linguagem poética é, pois, um elemento propulsor no resgate de
memórias, na possível (re) construção da subjetividade e na promoção de
outras leituras do ser e estar no mundo, podendo constituir-se numa ação
transformadora para a vida da criança, como revelaram as produções escritas,
citadas neste trabalho.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, talvez mais felizes,
e a assumirmos a dimensão poética de nossa vida. A poesia leva-nos à dimensão poética da existência humana. Revela que habitamos a Terra
não só prosaicamente – sujeitos à utilidade e à funcionalidade -, mas também poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor,
ao êxtase.Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério, que está além do dizível.
Edgar Morin
Escrever é desvendar o mundo. Simone de Beauvoir
Eu trago no meu coração e no meu olhar
Uma felicidade que não dá pra contar. Luís Fernando – 6º A
O Projeto buscou, em todas as suas atividades, possibilitar a leitura e
criação de textos, o mais poéticos possível, por meio de textos literários,
igualmente poéticos, de tal forma que, pelo ato da própria expressão, as
crianças e jovens envolvidos tivessem consciência de si e do outro, do mundo
e da vida.
O Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” foi desenvolvido no âmbito
da educação formal, mas talvez pudesse ter sido desenvolvido num ambiente
de educação não formal. É provável que os objetivos tivessem sido
alcançados, da mesma forma, como o foram no Projeto.
A busca por uma educação para a cidadania, para a justiça social, pelos
direitos humanos, pela visibilidade, igualdade, liberdade, extinção ou
minimização de preconceitos, democracia e diversidade cultural, fez parte do
ideário do “Tecendo a vida nos fios da poesia” e foi perseguida durante a
realização das atividades, para que alcançássemos os objetivos a que nos
propusemos.
Além dos propósitos acima mencionados, outro grande fator motivador
que permeou toda a realização do Projeto foi o de acreditar que as crianças e
os jovens que dele participaram poderiam ser despertados, de alguma forma,
117
para um sentimento de pertença, de ser e estar no mundo, de tal forma que
cressem que suas vozes são imprescindíveis no universo de que fazem parte.
Também consideramos atingido esse fim.
A constatação do alcance desses objetivos fundamenta-se nas
produções poéticas escritas por eles – exemplificadas, abundantemente, no
Capítulo III -, nas quais se desnudam, revelando-nos a imagem que fazem de
si, da família, da escola etc., e da projeção que esboçam do que podem vir a
ser.
Recorremos a inúmeros autores para fundamentar a importância da
função do educador nesse processo político, que é a educação, mas que deve
ser, acima de tudo, poético. O verdadeiro mestre é aquele que desaparece
dentro do processo de aprendizagem, aquele que cria condições para que seus
alunos sejam autônomos na construção do conhecimento.
A pessoa deve ser o foco de todo o trabalho do educador, premissa que
permeou o nosso.
Ao longo de anos, e para esta pesquisa, propusemos uma prática com
as palavras, que tecem os textos, reinventando mundos. Todas as atividades
desenvolvidas seguiram esse critério, na medida em que trabalhamos a
simbologia e imagens suscitadas pelas palavras; sua sonoridade; as
possibilidades de sentidos e de combinações. Como exemplo, citamos as
produções realizadas em torno do livro “Para criar passarinho”.
Antes de qualquer coisa, é preciso motivar, provocar a criança e o
jovem, por meio de leituras, discussões e interpretações dos mais variados
textos literários poéticos. Além disso, levá-los a experimentar sentimentos,
utilizando também imagens, músicas, vídeos, clipes e outras linguagens
poéticas. Essas são algumas formas de tocá-los, prepará-los e encorajá-los
para a travessia da escrita poética.
As atividades em que esteve pautado o presente trabalho tiveram por
objetivo despertar no aluno a motivação, a curiosidade, a sensibilidade e o
prazer por novas leituras e descobertas do universo interior e exterior.
A dinâmica das atividades desenvolvidas no Projeto permitiu que os
laços de confiança fossem construídos na interação com as pessoas
118
envolvidas no processo e, a cada encontro, com as atividades de imaginação,
criatividade e sensibilização com textos poéticos, mais se revelaram, na exata
proporção em que se aceitavam e se ajudavam, pela confiança que
aprenderam a depositar em si mesmos e nos outros.
É imprescindível que, após o término de cada vivência, as crianças e os
jovens possam ter suas vozes ouvidas na leitura de seus textos, e terem suas
produções expostas de alguma forma. Esse procedimento foi realizado por nós.
Assim, pela linguagem poética, é possível relacionar, resgatar o mundo
vivido e suas memórias, transformando as vivências queridas ou sofridas em
possibilidades de poder ser, de vir a ser, ou de já estar sendo um ser humano
mais feliz, mais autônomo, sujeito de sua história, valorizado e representado
pela voz que sai do seu poema.
Ao término deste trabalho, resta-nos pouco a acrescentar ao que, de
maneira simples, mas profundamente poética e verdadeira, as crianças e os
jovens que dele participaram o expressaram.
O desejo é que esta modesta pesquisa possa servir de fagulha para a
realização de muitas outras; que ela sirva de inspiração de novas aventuras e
travessias de linguagem e de vida; de inspiração para o trabalho de colegas
que, assim como esta pesquisadora, acreditam na Educação como forma
libertadora e transformadora da vida das crianças, dos jovens e de nós
mesmos.
Por derradeiro, que esta pesquisa seja um exemplo vivo de que o
universo poético pode ser o grande responsável pelo resgate da humanidade
fragmentada e perdida nos escombros da modernidade.
119
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124
ANEXO 01
CARTA AOS PAIS
Americana, 18 de fevereiro de 2014.
Prezado pai e prezada mãe,
Eu sou a professora Rebecca, trabalhei no Ciep São Jerônimo, logo que ele foi inaugurado (1991), permanecendo nele como professora de Português, durante 10 anos.
Atualmente, sou professora de uma faculdade daqui da nossa região, e acabei revendo muitos alunos e alunas para quem dei aula no CIEP. Quanta alegria! Também dou aula, na faculdade, para várias pessoas que moram no bairro.
Em 2013, realizei um trabalho com seu(sua) filho(a), com produção de texto poético, para o curso de Mestrado que faço no UNISAL, em Americana.
As crianças escreveram inúmeros poemas, lemos bastante poesia, conversamos muito sobre família, as lembranças que temos das pessoas a quem amamos, os amigos... Tiramos algumas fotos: lendo e escrevendo textos, reunidos com os(as) colegas de classe, por exemplo. Quanta coisa bela!
Gostaria muito de poder colocar essas imagens no meu trabalho de Mestrado, mas só poderei fazê-lo se você(s) me permitir(rem). Por isso, junto a esta cartinha, envio um “Termo de autorização de imagem”, na esperança de poder contar com sua ajuda, assinando-o.
Caso deseje conversar comigo, tirar alguma possível dúvida, ver as fotos, etc, estarei à disposição de você(s) no CIEP, na sexta-feira, 21/02/14, a partir das 19h, até as 21h.
Se achar que não há necessidade de conversarmos, peço que, gentilmente, assine o “Termo” e entregue a seu(sua) filho(a) para trazer no Ciep na segunda-feira, dia 24/02. Eu mesma buscarei.
Desde já, agradeço a gentileza e colaboração, e coloco-me à sua inteira disposição.
Muito obrigada! Um abraço, Profa. Rebecca
125
ANEXO 02
TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE IMAGEM
Eu, ______________________________________________________(nome),
__________________(nacionalidade), _______________________(profissão),
portador(a) da Cédula de Identidade (RG) nº________________________,
inscrito(a) no CPF sob nº___________________________________, residente
à Rua/Av._____________________________________________, nº_______,
na cidade de _____________________________/SP, AUTORIZO o uso da
imagem do(a) menor______________________________________________,
para ser utilizada na Dissertação de Mestrado de Maria José Rebecca
Busnardo, sob o título “Tecendo a vida nos fios da poesia”, realizada no Centro
Universitário UNISAL , Campus Maria Auxiliadora, Americana, SP.
Americana,____ de_____________________de_______
_______________________________________
Assinatura do(a) responsável
126
APÊNDICE
127
Memorial
Por onde começar? Quais sentimentos e lembranças selecionar?
Talvez a seleção se dê naturalmente, obedecendo a critérios próprios de
importância.
Busco primeiro os sentimentos e, assim fazendo, as lembranças junto
deles.
Nasci menina simples, quase pobre, a terceira de dois filhos homens, na
pequena cidade de Brotas.
Mãe costurava para fora, cuidava da casa, enrolava cabelo e tirava
sobrancelhas das vizinhas e primas, em casa.
Eu andava descalça, brincava de casinha com a cachorrinha Zazá,
colhia flores no terreno baldio, próximo de casa e, principalmente, brincava de
professora.
Certa vez, devia ter oito ou nove anos ( ah! A memória...), destruí a
plantação de milho de minha mãe, “corrigindo” meus indisciplinados “alunos”,
cujos “cabelinhos loiros” apenas despontavam nas espigas do quintal.
Eu era uma aluna exemplar, para os padrões da época, início da década
de 70. Era muito estudiosa (referência de meu irmão do meio, que norteou
quase toda a minha vida). Adorava ler! Lembro-me de que a biblioteca da
cidade ficava na praça em frente à escola onde eu estudava.
Fiz minha carteirinha, mas não pude desfrutar por muito tempo daquele
mundo mágico. Mudamo-nos para Americana, em busca de “estudo para os
filhos”: meus pais.
128
Meu irmão do meio, cinco anos mais velho que eu, que viera antes de
nós, vivendo na casa de uma irmã de minha mãe, matriculou-me na escola
mais bem conceituada e, por conseguinte, mais concorrida da cidade. Deixou-
me, no primeiro dia de aula, às portas da imensa escola e foi trabalhar. Não me
lembro de como me acomodei numa das cadeiras daquele infinito anfiteatro,
para os meus olhos de menina assustada e só. Eu e mais centenas de
crianças, alinhadamente, silenciosamente esperando os comandos da diretora.
A única coisa de que me recordo é que não fui chamada. Meu nome não
constava em nenhuma 5ª série, embora houvesse várias.
Tinha onze anos e estava só. Desesperadamente perdida. Mandaram-
me voltar para casa e que viesse alguém da família para ver o que poderia ser
feito. Fui embora a pé, naquele que me pareceu o mais longo caminho em
busca de proteção, na companhia de um guarda-chuva que me escondia do sol
e dos olhares curiosos das pessoas que ouviam meus soluços. O pano negro
sob o qual me aninhei.
(...)
Gostava das aulas de Português, especialmente de ler textos poéticos.
Nunca tive muita intimidade com números e cálculos.
“A pata nada. Pata, pa. Nada, na.”
Não sei bem por que, mas trago em minha memória um poema que li
pela primeira vez na 5ª série. Aquilo era de uma pungência que partia meu
coração de menina. De uma tristeza familiar, de identidade mesmo. De Manuel
Bandeira.
Meninos carvoeiros
Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
129
— Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.
Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um
gemido.)
— Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles . . .
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
—Eh, carvoero!
Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,
Encarapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados.
(...)
130
Participei, certa feita, de um festival de músicas francesas na escola.
São vagas memórias, mas até hoje tenho verdadeiro fascínio pela cultura
francesa. Sua musicalidade idiomática me transporta para outras eras,
remotas, como vestígios nostálgicos de lugares, cheiros e sentimentos que
perdi, sem ter, ao menos, vivido.
Butterfly
Tu me dis loin des yeux, loin du cœur
Tu me dis qu'on oublie le meilleur
Malgré les horizons,je sais qu'elle m'aime encore
Cette fille que j'avais surnommée:
(Refrain)
Butterfly, my Butterfly
Dans un mois je reviendrais
Butterfly, my Butterfly
Près de toi je resterais
131
L'océan c'est petit, tout petit
Pour deux cœurs où l'amour a grandi
Malgré ce que tu dist, tu vois qu'elle m'aime encore
Cette fille que j'avais enlacée
(Au Refrain)
Notre amour est si grand, oui si grand
Que le ciel y tiendrait tout dedans
Malgré ce que tu dis,
Je sais qu'elle m'aime encore
Cette fille que j'avais embrassée
Meu irmão mais velho.
Meu irmão do meio.
Quando tinha catorze anos, resolvi fazer teatro. Seguia os passos de
meu irmão do meio, minha grande referência. Fiz cursos, representei, viajei
com o grupo, fiz e perdi amigos, talvez tenha me perdido...
(...)
Lia e escrevia muito. Acabava me destacando na escola.
Durante uma aula de redação (ou literatura, não me recordo, já que era
o mesmo querido professor), ele, cuja voz nitidamente ouço em meu coração,
perguntou-me se eu gostaria de trabalhar, pois havia uma vaga na biblioteca
132
municipal e ele, como diretor do Departamento de Cultura, não conseguia
pensar em outra pessoa para pôr lá, que não fosse eu. Como foi bom ouvir
aquilo!
Estava terminando o ensino médio e era FELIZ!
(...)
O primeiro amor: fui passar as férias na casa da avó, em Brotas,
apaixonei-me e não queria mais voltar. Meu irmão do meio teve de ir me
buscar. Guardei durante 01 ano o chiclete que o Amor me deu no cinema.
Comecei a trabalhar na biblioteca municipal e passei no vestibular. Não
havia muitas opções: Unicamp, PUCC ou Unimep (que nem cogitei). O curso?
Claro que era Letras. No entanto, na Unicamp só havia Linguística e eu nem
sabia direito o que significava, mas resolvi fazer assim mesmo. Passei, mas
fiquei na PUCC por alguns motivos: primeiro, o curso desejado; segundo, eu
tinha que trabalhar e estava no melhor emprego do mundo! Detalhe mais
importante: não fui fazer a segunda fase da Unicamp porque fiquei com medo
de não passar. Covardia.
Quede Pai? Mãe?
Lembro-me de minha mãe sempre trabalhando. O pai, idem (de onde
vem mesmo essa minha prioridade de trabalho vinculado aos estudos?).
133
Ela era merendeira de escola; ele, motorista de caminhão da prefeitura.
Adorava passarinhos. Gosto trazido da infância em Brotas. Menino solto na
vastidão das pastagens, comendo frutas que se ofereciam nos pés; pisando no
estrume do gado, caçando pardais (“são praga”!) para comer ali mesmo no
mato, tão grotesco, mas estupidamente delicioso. Outros, sabiás, canarinhos,
pássaros pretos, ele os recolhia em gaiolas e os levava para casa. Minha casa
era cheia de pequenas prisões habitadas pelos pequeninos seres mais bem
tratados do planeta. Ele tinha licença do IBAMA.
Era um exímio nadador quando jovem, com fôlego de gigante (no fim da
vida, precisava correr com ele para o hospital, com aparelho de oxigênio e
tudo, devido à falta de ar. Cigarros, dos quais ele não conseguia se libertar).
Contava sempre uma história que me enchia de orgulho, ao mesmo
tempo que me dava uma sensação de que ele estava falando de outra pessoa.
Uma história muito antiga...
Foram chamá-lo em sua casa, após uma forte tempestade que arrancou
árvores, derrubou cercas, fez o rio transbordar. Um menino fora arrastado pela
correnteza do rio. Lá se foi ele, mergulhou, procurou, procurou até encontrar o
corpo do menino, preso entre galhos, no fundo das águas barrentas, de olhos
abertos.
134
Dizia que nunca mais se esquecera da imagem do corpo do menino
afogado que ele, sem ter coragem de se recusar, tivera de resgatar.
Outra história que nos contava, com a cumplicidade de minha mãe, é
claro, e com zanga de quem duvidasse, era a seguinte: numa noite de lua
cheia, quando voltava do sítio da namorada (minha mãe), no meio de um
pasto, seu cavalo empacou. Ele, que vinha cochilando sobre o cavalo (o animal
sabia de cor o caminho do amor!), assustou-se. Foi quando avistou a figura de
um imenso animal parecido com um cachorro (mas não era!), com um bezerro
(mas não era!), que passou a centímetros do cavalo. Era um lobisomem! Um
frio percorreu-lhe o corpo, mas, tanto o bicho (não o cavalo) quanto ele
seguiram seus caminhos. Em direções opostas, claro.
A mãe.
Estou buscando, há minutos, as minhas memórias sobre ela. Difícil.
Meu irmão do meio era gêmeo com uma menina. Ela nasceu morta; ele,
por nada que não morreu. Minha mãe foi “desenganada” pelos médicos. Meu
pai não arredou pé do hospital enquanto ela corria risco de morte.
Durante um ano, o bebê só chorava e quase não comia. Davam leite do
peito, papinha de arroz, benziam, davam banho de picão e nada! O menino não
135
arribava. Diz ele, hoje, que ainda deve ter seu vômito grudado por entre os
tijolos do chão da casa.
Mãe custou a se recuperar.
Eu vim depois disso tudo. Diz ela que meu pai, em dez minutos, foi
buscar um carro para levá-la ao hospital, quando dei sinal de nascimento. Ele
não saiu de seu lado, enquanto não nasci. Depois, saiu contando para todo o
mundo que era uma menina! Como estava feliz, ele. Hoje me pergunto: como
terá sido essa gravidez, depois de tudo o que ela passou? Quanto medo terá
sentido?
Ela gostava, e gosta, da lua. Diz que se lembra de quando namorava o
meu pai, lá no sítio.
Não havia energia elétrica, portanto, era a lua que reinava soberana e,
em colóquio com as estrelas, iluminava o rio, a estrada de terra batida, a mata
e, especialmente, o coração apaixonado de minha mãe. Meu pai foi o único
amor da vida dela. Quanto aos filhos, o primeiro lugar era de meu pai.
O melhor lugar era sempre dele; o maior bife era dele. Dele também era
a escolha do programa. Não sei qual era o nosso lugar.
(...)
136
Conheci meu marido no “Beleléu”, um café que havia no bairro Carioba,
em Americana, no início da década de 80.
Chamou-me a atenção a maneira como ele me olhava. Parafraseando
Machado de Assis, com “olhos de ressaca”, pois pareciam querer me arrebatar
para dentro dele. Era a “noite do chapéu” e, literalmente, eu tomei conta da
cabeça dele.
Demorei meses, até que me rendi aos apelos da delicadeza do
tratamento, ao jeito carinhoso com que me tratava, à atenção que dava aos
meus mais insignificantes desejos. Cedi à sensualidade da pele queimada de
sol, revelando músculos, pelos e cheiros.
Fascinação
(Com a Elis Regina)
Os sonhos mais lindos sonhei. De quimeras mil um castelo ergui E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão mil venturas previ.
O teu corpo é luz, sedução, Poema divino cheio de esplendor.
Teu sorriso prende, inebria e entontece. És fascinação, amor.
Os sonhos mais lindos sonhei. De quimeras mil um castelo ergui E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão mil venturas previ.
O teu corpo é luz, sedução, Poema divino cheio de esplendor.
Teu sorriso prende, inebria e entontece. És fascinação, amor.
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A importância que me devotava conquistou-me definitivamente.
Namoramos durante quatro anos e meio, tempo em que eu mudei de emprego
(fui trabalhar como secretária de uma indústria têxtil), terminei a faculdade de
Letras e passei no concurso de professora de Português do Estado.
Janeiro de 1986: nosso casamento.
Eu não queria tirar o vestido de noiva. Era tão pouco tempo com ele, e
ele era tão lindo... Queria prolongar a sensação de ser princesa pela primeira
vez...
Em 1987 meu filho nasceu. A mãe em mim se apossou de todas as
outras minhas faces e me fez sentir o quão incompleta eu era.
Meu filho deu o sentido, o norte/sul e a certeza de minha vinda ao
mundo. Sentia-me plena, absurdamente feliz. Amor transbordava de meus
olhos, boca e alma.
Lembro-me, também, de que o amor de avô e neto perfumava a casa e
ecoava alegria, e isso foi até o fim do avô.
Avôhai
Zé Ramalho
Um velho cruza a soleira De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar Na laje fria onde quarava
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Sua camisa e seu alforje De caçador...
Oh! Meu velho e Invisível Avôhai!
Oh! Meu velho e Indivisível Avôhai!
Neblina turva e brilhante Em meu cérebro coágulos de sol
Amanita matutina E que transparente cortina
Ao meu redor...
Se eu disser Que é meio sabido
Você diz que é meio pior Mas e pior do que planeta Quando perde o girassol...
É o terço de brilhante Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo Da porteira
Nem também da companheira Que nunca dormia só...
Avôhai! Avôhai! Avôhai!
O brejo cruza a poeira De fato existe
Um tom mais leve Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos Que amargam as pessoas
Que fitar...
Mas que bebem sua vida Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas Cabelos de Avôhai...
Na pedra de turmalina E no terreiro da usina
Eu me criei Voava de madrugada
E na cratera condenada
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Eu me calei E se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar Mas e calado vai ficando
Só fala quando eu mandar...
Rebuscando a consciência Com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa Girando na carrapeta No jogo de improvisar
Entrecortando Eu sigo dentro a linha reta Eu tenho a palavra certa
Prá doutor não reclamar...
Avôhai! Avôhai! Avôhai! Avôhai!
Preciso de um capítulo à parte.
Três anos depois, minha filha veio ao mundo. Era uma menina... e
agora? Eu sabia lidar perfeitamente com o sexo oposto, mas com ela, como
seria? Como EU seria? Como daria a ela aquilo que achava não ter em mim?
Tive uma profunda depressão que quase me levou... Não comia, não
dormia, só chorava. “Tive uma febre terçã”. A vida não tinha mais sentido.
Paradoxalmente, pensava: Será que vai secar o meu leite e não terei como
alimentá-la? Meu Deus, que sentimento de culpa!
Uma Canção Desnaturada
Chico Buarque
Por que creceste, curuminha Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
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Eu revertia o tempo Para viver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha Que atravessei em claro
Ignorar teu choro E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos Botequins
Tornar azeite o leite Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha De onde não deverias
Nunca ter saído
Fiz tratamento, tomei remédio, me benzeram, fizeram simpatia, padre
benzeu minha casa. Aos poucos, fui me fortalecendo (“aquilo que não nos
mata, nos fortalece!”). O que ficou de meses foi um quase total esquecimento.
Hoje, ela é minha companheira, minha menina, meu anjo... Tento dar a
ela tudo o que tive de aprender a construir em mim.
O Leãozinho
Caetano Veloso
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Gosto muito de te ver, leãozinho Caminhando sob o sol
Gosto muito de você, leãozinho
Para desentristecer, leãozinho O meu coração tão só
Basta eu encontrar você no caminho
Um filhote de leão raio da manhã; Arrastando o meu olhar como um ímã... O meu coração é o sol, pai de toda cor; Quando ele lhe doura a pele ao léu...
Gosto de te ver ao sol, leãozinho De te ver entrar no mar
Tua pele, tua luz, tua juba
Gosto de ficar ao sol, leãozinho De molhar minha juba
De estar perto de você e entrar numa.
Outro capítulo à parte.
Procuro estar presente sempre na vida dos dois e morro por eles: Bruno
e Camila.
Meu marido e companheiro ainda está ao meu lado, após vinte e sete
anos de casados, e me apóia em tudo o que julga ser importante para mim. Só
reclama que trabalho muito. Obrigada, querido.
Céu de Santo Amaro
Caetano Veloso
Olho para o céu Tantas estrelas dizendo da imensidão
Do universo em nós A força desse amor
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Nos invadiu... Com ela veio a paz, toda beleza de sentir
Que para sempre uma estrela vai dizer Simplesmente amo você...
Meu amor... Vou lhe dizer Quero você
Com a alegria de um pássaro Em busca de outro verão
Na noite do sertão Meu coração só quer bater por ti
Eu me coloco em tuas mãos Para sentir todo o carinho que sonhei
Nós somos rainha e rei
Na noite do sertão Meu coração só quer bater por ti
Eu me coloco em tuas mãos Para sentir todo o carinho que sonhei
Nós somos rainha e rei
Olho para o céu Tantas estrelas dizendo da imensidão
Do universo em nós A força desse amor nos invadiu...
Então... Veio a certeza de amar você...
Meu pai já se foi. Saudade, pai...
Minha mãe sobreviveu à morte de meu pai. Hoje cuida do neto mais
velho, que quase morreu recentemente.
Meu irmão mais velho enfrenta seus demônios familiares. Sinto muito.
Meu irmão do meio encontrou sua cara metade e está feliz. Escreveu um
livro lindo... É a pessoa mais altruísta e apegada à família que conheço.
Obrigada!
143
Quanto a mim, passei no concurso do Estado para professora de Língua
Portuguesa, tão logo terminei o curso de Letras, na PUCCAMP. Trabalhei dez
anos em algumas escolas da cidade. Também prestei concurso na prefeitura
de Americana e, em 1991, iniciei minha carreira na rede municipal como
professora de Língua Portuguesa, mais precisamente no CIEP São Jerônimo –
Prof. Anísio Spínola Teixeira -, onde permaneci por dez anos. Foi lá que
aprendi a ser educadora. Também foi para lá que voltei para fazer minha
pesquisa de Mestrado.
Na época em que trabalhava no CIEP, organizei e participei de inúmeros
projetos com alunos. Era gratificante perceber que, às vezes, o mínimo para
nós era demasiado importante para eles. Por exemplo, levá-los a uma chácara
(emprestada de algum amigo) e, numa minúscula piscina infantil, vê-los
dividirem espaço com a classe toda. Uma água barrenta que chegava apenas
aos joelhos, e eles tinham de ficar em pé. Mas era uma piscina de verdade!
A dificuldade era geral, com algumas exceções. Não se alimentavam
direito, a escola fornecia alimentação, material escolar. Muitos iam estudar
descalços, quando muito de chinelos de dedo (não era moda naqueles idos!).
Um dos maiores problemas que tínhamos de enfrentar era a falta de noção do
que fosse um ambiente escolar. Também havia a grave questão familiar: a total
desestrutura, os abusos que aconteciam, os abandonos, o tráfico (que levou
144
muitos de meus alunos), a ausência de afeto. As ausências. Eram muitos
desafios.
Nesta época, comecei a fazer o Curso de Pedagogia, influenciada por
uma antiga amiga do Ensino Médio. O que aprendi me ajudou a olhar com
outros olhos aquela situação e vislumbrar possibilidades, até então
desconhecidas.
Terminada a Pedagogia, iniciei o curso de Direito, na UNIMEP. Logo
depois, participei de processo seletivo e comecei a trabalhar no Colégio
Salesiano Dom Bosco de Americana, como professora de Literatura, no Ensino
Médio. Acabei ampliando a carga horária e a função: professora de Língua
Portuguesa e Produção de Textos do Ensino Fundamental II. Foram onze anos
de vivência salesiana, que trouxeram luzes a momentos obscuros, pessoal e
profissional.
Já tendo sido aprovada no Exame da Ordem (dos Advogados) e
exercendo a profissão, recebi um convite para dar aula de Direito no Ensino
Superior, em 2005. Seria sonho? Era o que parecia...
Assim, originou-se uma trajetória que, espero, esteja longe de um termo.
Continuo no Ensino Superior, como professora e coordenadora do curso
de Pedagogia.
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Após ter feito três graduações (Letras, Pedagogia e Direito, nessa
ordem) e três pós-graduações (Didática; Direito e Processo do Trabalho;
Educação Especial e Inclusiva), finalmente comecei a realizar o meu grande
sonho acadêmico: fazer o mestrado!
Houve algumas investiduras anteriores, na Unicamp, mas não dei cabo
de nenhuma delas. Acho que aquela história do curso de Linguística,
parafraseando Clarice Lispector, “é uma história de amor sem ponto final,
retrato sem cor”. Cheguei a colocar meu Projeto de Pesquisa no envelope, mas
não o levei ao correio.
Por outro lado, acabei encontrando no UNISAL o que buscava (talvez
ainda mais) nos amigos que conheci, nos que reencontrei, nos livros que me
foram indicados (e outros por escolha pessoal), mas, sobretudo, nos mestres
que me possibilitaram mais esta travessia. Em especial ao mestre Severino
Antônio, que já tinha passagem pela família, embora nem suspeitasse (meu
irmão do meio, novamente!). Grande referência em minha vida acadêmica, que
verbalizou muitas de minhas práticas, antes realizadas por muita intuição e
alguma sensibilidade.
Severino Antônio foi quem me fez ver a “boniteza” contida no trabalho de
anos, antes de se transformar nesta pesquisa; foi quem me apresentou a
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outros grandes mestres, que me revelaram que eu estava na margem certa: a
terceira margem do rio...
Hoje, levo a certeza de ter feito a opção correta: nasci para a educação
e pretendo continuar neste caminho. Quem sabe, para o Doutorado, retome
trilhas meio esquecidas, repletas de floradas perfumadas e borboletas
amarelas, aguardando para serem resgatadas.